O NÃO SER EM PARMÊNIDES ELEIA - SciELO · Trans/Form/Ação, Marília, v. 41, n. 2, p. 9-36,...

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Trans/Form/Ação, Marília, v. 41, n. 2, p. 9-36, Abr./Jun., 2018 9 O não-ser em Parmênides de Eleia Artigos / Articles O NÃO-SER EM PARMÊNIDES DE ELEIA Nicola Stefano Galgano 1 RESUMO: No fragmento DK 28 B 2 de seu poema, Parmênides apresenta seu método para distinguir a persuasão verdadeira da falta de persuasão verdadeira. As famosas duas vias para o pensar que ele pro- põe são o enunciado complexo de um sistema que quer garantir a veracidade das armações para obter, anal, um discurso conável, o único capaz de persuasão verdadeira. O presente artigo mostra que o papel central da argumentação parmenidiana é atribuído ao não-ser, uma noção derivada certamente de uma reexão sobre a impossibilidade da negação do ser. Assim, o inteiro fragmento é interpretado a partir dessa noção central, evidenciando que Parmênides descobre aquela impossibilidade de nega- ção, que hoje nós chamamos de “contradição”, e enuncia qual é a maneira de evitar a contradição no pensamento e no discurso, uma regra que atualmente nós chamamos princípio de não-contradição. O estudo aqui apresentado faz uma investigação detalhada da noção de não-ser, no fragmento DK 28 B 2, oferecendo nalmente uma nova tradução. PALAVRAS-CHAVE: Parmênides. Não-ser. Não-contradição. Eleatismo. Parricídio. 1 INTRODUÇÃO A expressão “não-ser”, enquanto noção losóca, comparece pela pri- meira vez com Parmênides. A história da losoa mostra que “não-ser” não é uma noção trivial, como o uso pragmático que dela fazemos poderia sugerir. Desde seu aparecimento, no texto parmenidiano, o não-ser apresentou uma aporia fortíssima, talvez a maior das aporias, e, apesar das tentativas dos maio- res lósofos, parece reapresentar-se de tempo em tempo, como uma ferida que se reabre, denunciando que, de fato, nunca cicatrizou. Da pragmática à noção crítica, o salto é tão grande que, se se aplicasse à pragmática a noção crítica, o mundo, assim como nós pragmaticamente o vemos e interpretamos, cairia abaixo. O primeiro a perceber isso foi Parmênides e, com ele, os eleatas. A 1 Pesquisador de Pós-Doutorado na USP, São Paulo, SP – Brasil. E-mail: [email protected] Entre os trabalhos recentes, destacam-se o livro I precetti della dea. Non essere e contraddizione in Parmenide di Elea (2017c) e a direção geral do projeto internacional “Eleatic Ontology: origin and reception”, para a publicação, em múltiplos volumes, de uma obra sobre a inuência do eleatismo em toda a história da losoa. is is an open-access article distributed under the terms of the Creative Commons Attribution License. http://dx.doi.org/10.1590/0101-3173.2018.v41n2.02.p9

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O natildeo-ser em Parmecircnides de Eleia Artigos Articles

O NAtildeO-SER EM PARMEcircNIDES DE ELEIA

Nicola Stefano Galgano1

RESUMO No fragmento DK 28 B 2 de seu poema Parmecircnides apresenta seu meacutetodo para distinguir a persuasatildeo verdadeira da falta de persuasatildeo verdadeira As famosas duas vias para o pensar que ele pro-potildee satildeo o enunciado complexo de um sistema que quer garantir a veracidade das afirmaccedilotildees para obter afinal um discurso confiaacutevel o uacutenico capaz de persuasatildeo verdadeira O presente artigo mostra que o papel central da argumentaccedilatildeo parmenidiana eacute atribuiacutedo ao natildeo-ser uma noccedilatildeo derivada certamente de uma reflexatildeo sobre a impossibilidade da negaccedilatildeo do ser Assim o inteiro fragmento eacute interpretado a partir dessa noccedilatildeo central evidenciando que Parmecircnides descobre aquela impossibilidade de nega-ccedilatildeo que hoje noacutes chamamos de ldquocontradiccedilatildeordquo e enuncia qual eacute a maneira de evitar a contradiccedilatildeo no pensamento e no discurso uma regra que atualmente noacutes chamamos princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo O estudo aqui apresentado faz uma investigaccedilatildeo detalhada da noccedilatildeo de natildeo-ser no fragmento DK 28 B 2 oferecendo finalmente uma nova traduccedilatildeo

PALAVRAS-CHAVE Parmecircnides Natildeo-ser Natildeo-contradiccedilatildeo Eleatismo Parriciacutedio

1 INTRODUCcedilAtildeO

A expressatildeo ldquonatildeo-serrdquo enquanto noccedilatildeo filosoacutefica comparece pela pri-meira vez com Parmecircnides A histoacuteria da filosofia mostra que ldquonatildeo-serrdquo natildeo eacute uma noccedilatildeo trivial como o uso pragmaacutetico que dela fazemos poderia sugerir Desde seu aparecimento no texto parmenidiano o natildeo-ser apresentou uma aporia fortiacutessima talvez a maior das aporias e apesar das tentativas dos maio-res filoacutesofos parece reapresentar-se de tempo em tempo como uma ferida que se reabre denunciando que de fato nunca cicatrizou Da pragmaacutetica agrave noccedilatildeo criacutetica o salto eacute tatildeo grande que se se aplicasse agrave pragmaacutetica a noccedilatildeo criacutetica o mundo assim como noacutes pragmaticamente o vemos e interpretamos cairia abaixo O primeiro a perceber isso foi Parmecircnides e com ele os eleatas A

1 Pesquisador de Poacutes-Doutorado na USP Satildeo Paulo SP ndash Brasil E-mail nicolagalganouspbrEntre os trabalhos recentes destacam-se o livro I precetti della dea Non essere e contraddizione in Parmenide di Elea (2017c) e a direccedilatildeo geral do projeto internacional ldquoEleatic Ontology origin and receptionrdquo para a publicaccedilatildeo em muacuteltiplos volumes de uma obra sobre a influecircncia do eleatismo em toda a histoacuteria da filosofia

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mais radical expressatildeo da aporia eleaacutetica se encontra em Melisso Com nossas palavras atuais e com nossas noccedilotildees podemos expressaacute-la nestes termos se de um lado natildeo-ser eacute a negaccedilatildeo absoluta do ser (natildeo a negaccedilatildeo do ser absoluto mas a negaccedilatildeo absoluta do ser) fica impossiacutevel sustentar a explicaccedilatildeo comum do fenocircmeno que noacutes chamamos devir o qual consiste em asserir que as coisas nascem e morrem que tudo se transforma que tudo passa a ser o que natildeo era e deixa de ser o que era A posta em jogo explicitada pela noccedilatildeo criacutetica de ldquonatildeo-serrdquo eacute simplesmente toda a estrutura da nossa visatildeo de mundo Por isso constitui um problema genuinamente filosoacutefico que absorveu as atenccedilotildees e os esforccedilos dos grandes filoacutesofos ao longo da histoacuteria do pensamento ocidental

2 O TEMA DO POEMA

Os cerca de 160 versos do poema compotildeem atualmente 19 fragmen-tos reconstruiacutedos a partir de citaccedilotildees No primeiro fragmento ao longo dos primeiros 27 versos um cenaacuterio didaacutetico eacute apresentado um jovem aprendiz (embora jaacute preparado em sabedoria) eacute levado por um carro divino orientado por deusas diante de uma deusa anocircnima a qual seraacute sua mestra de sabedoria e ateacute mesmo eu diria com Cordero (1990) mestra de filosofia se por filosofia entendemos a dedicaccedilatildeo a qualquer saber a todo o saber Com efeito logo na chegada do jovem aprendiz depois das saudaccedilotildees a deusa apresenta o progra-ma de aprendizagem o primeiro autecircntico iacutendice programaacutetico (ROSSETTI 2010) de que se tem notiacutecia Ela diz

Eacute necessaacuterio que tu aprendas tudotanto a mente firme que vem da verdade bem conexaquanto a opiniatildeo dos mortais nos quais natildeo se encontra certeza verdadeira2

No entanto tambeacutem isto aprenderaacutes como as aparecircnciasdeviam validamente ser tudo por tudo atravessando3

Vamos desconsiderar aqui os uacuteltimos dois versos os quais aleacutem de ter traduccedilatildeo difiacutecil e contestada reciprocamente nas muitas versotildees dos vaacute-

2 A justificaccedilatildeo dessa traduccedilatildeo bastante diferente daquela proposta por Diels e por todos os demais criacuteticos se encontra em Galgano (2012)3 Parmecircnides (DK 28 128-32) χρεὼ δέ σε πάντα πυθέσθαι ἠμὲν Ἀληθείης εὐκυκλέος ἀτρεμὲς ἦτορ ἠδὲ βροτῶν δόξας ταῖς οὐκ ἔνι πίστις ἀληθής ἀλλrsquo ἔμπης καὶ ταῦτα μαθήσεαι ὡς τὰ δοκοῦντα χρῆν δοκίμως εἶναι διὰ παντὸς πάντα περῶντα A traduccedilatildeo dos primeiros trecircs versos (128-30) eacute minha a traduccedilatildeo dos uacuteltimos dois (131-2) eacute de Cavalcante de Souza (1978 p 141)

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rios criacuteticos parecem referir-se agrave descriccedilatildeo do mundo dos fenocircmenos par-te do poema de que natildeo trataremos aqui Vamos examinar apenas os trecircs versos anteriores No primeiro em sua segunda metade a deusa anocircnima anuncia ao disciacutepulo que ele iraacute aprender tudo (πάντα)4 tanto a mente firme fruto da verdade bem conexa quanto as opiniotildees dos mortais onde as certezas natildeo satildeo verdadeiras As duas afirmaccedilotildees satildeo precedidas pelas partiacuteculas correlativas ἠμὲνhellip ἠδὲ que tecircm significado natildeo propriamente adversativo mas antiteacutetico (SMYTH 1956 p 644) e tecircm como traduccedilatildeo ldquode fato por um lado hellip de fato por outro ladordquo (DENNISTON 1954 p 287) A antiacutetese se refere a dois tipos de estados cognitivos antiteacuteticos cada um com sua respectiva qualificaccedilatildeo por um lado a mente firme resultado da verdade bem conexa por outro lado as opiniotildees dos mortais que aqui natildeo significam um conjunto de conhecimentos mas uma manei-ra de pensar a qual natildeo possui uma certeza verdadeira Se consideramos a estrutura antiteacutetica podemos ver que a mente firme eacute antiacutetese de ldquoopiniatildeo dos mortaisrdquo enquanto ldquoverdade bem conexardquo estaacute em antiacutetese com ldquofalta de certeza verdadeirardquo O que Parmecircnides traz em questatildeo eacute aproxima-damente aquilo que hoje chamariacuteamos de criteriologia ou seja o estudo daquilo que faz com que uma proposiccedilatildeo possa ser tida como verdadeira Ele o faz agrave sua maneira arcaica sem uma terminologia pronta disponiacutevel e com pouquiacutessimo questionamento jaacute culturalmente assentado sobre esse tema Grosso modo tradicionalmente se entendia com as devidas exceccedilotildees que os deuses falavam a verdade de forma que o relato miacutetico embora pudesse ateacute parecer inverossiacutemil era tido por verdadeiro (como atualmen-te ainda acontece com muitos livros considerados sagrados pelas religiotildees atuais) Todavia uma criacutetica ferrenha aos relatos miacuteticos e aos cultos re-ligiosos jaacute estava em ato no pensamento dos jocircnicos5 e Parmecircnides outra coisa natildeo faz senatildeo dar um passo agrave frente nesse caminho

A visatildeo criacutetica de Parmecircnides eacute primorosa De fato ele potildee em evidecircn-cia a partir da constataccedilatildeo de que haacute ldquoverdadesrdquo natildeo verdadeiras (Xenoacutefanes)

4 O programa de aprendizagem oferecido por Parmecircnides por ser o mais avanccedilado da eacutepoca tem como puacuteblico-alvo pessoas jaacute de elevada cultura 5 Por exemplo Xenoacutefanes em DK 21 B 14 ldquoMas os mortais acreditam que os deuses satildeo gerados que como eles se vestem e tecircm voz e corpordquo em DK 21 B 15 ldquoMas se matildeos tivessem os bois os cavalos e os leotildees e pudessem com as matildeos desenhar e criar obras como os homens os cavalos semelhantes aos cavalos os bois semelhantes aos bois desenhariam as formas dos deuses e os corpos fariam tais quais eles proacuteprios tecircmrdquo e em DK 21 B 16 ldquoOs egiacutepcios dizem que os deuses tecircm nariz chato e satildeo negros os traacutecios que eles tecircm olhos verdes e cabelos ruivosrdquo (CAVALCANTE DE SOUZA 1978 traduccedilatildeo de A L Prado)

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que aquilo que eacute chamado de ldquoverdaderdquo (relato verdadeiro na concepccedilatildeo arcai-ca da noccedilatildeo da verdade) eacute antes de tudo um fato psicoloacutegico subjetivo eacute uma convicccedilatildeo uma certeza subjetiva um ldquoestar persuadido derdquo Dada essa con-vicccedilatildeo do ponto de vista subjetivo ela eacute sempre uma verdade mas olhando as coisas de fora eacute possiacutevel perceber que haacute convicccedilotildees que natildeo satildeo verdadeiras (exemplo as vaacuterias concepccedilotildees miacuteticas a respeito do todo ou dos deuses) Des-se modo a convicccedilatildeo subjetiva passa a natildeo ser mais criteacuterio suficiente de verda-de eacute necessaacuterio um meacutetodo que garanta agrave mente a certeza da convicccedilatildeo agora colocada em duacutevida pela observaccedilatildeo do comportamento cognitivo das vaacuterias culturas (Xenoacutefanes) Em outras palavras uma vez observado que a convicccedilatildeo subjetiva natildeo eacute suficiente para garantir a veracidade daquela proposiccedilatildeo eacute ne-cessaacuterio encontrar um outro meacutetodo que garanta essa veracidade6

Observemos pois o status questionis proposto por Parmecircnides (1) a mente em geral tem convicccedilotildees7 (2) poreacutem agora sabemos que estar con-vencido de algo natildeo eacute suficiente para garantir a verdade daquela convicccedilatildeo logo natildeo sabemos se as convicccedilotildees da mente satildeo verdadeiras ou natildeo (3) haacute um meacutetodo objetivo que garante a verdade das convicccedilotildees (que satildeo sempre subjetivas) (4) depois da aplicaccedilatildeo do meacutetodo sabemos que haacute convicccedilotildees verdadeiras e convicccedilotildees natildeo verdadeiras as primeiras deixam a mente firme e sem a oscilaccedilatildeo da duacutevida as segundas satildeo aquelas que submetidas ao meacute-todo deixam a mente em oscilaccedilatildeo (satildeo as opiniotildees dos mortais) Podemos assim reler a expressatildeo da deusa ldquoEacute necessaacuterio que tu aprendas (a respeito do) lsquotudorsquo por um lado a mente firme que vem da verdade bem conexa

6 Que Parmecircnides em sua criacutetica esteja referindo-se ao pensamento tradicional pode ser inferido pelo todo do poema Mas haacute passagens aqui natildeo discutidas as quais evidenciam essa criacutetica O elemento mais importante parece-me eacute que ele se refere aos brotoi os mortais os quais tecircm opiniotildees (crenccedilas nos relatos miacuteticos especificamente aqueles voltados a explicar os fatos naturais) nas quais falta a certeza confiaacutevel Quem satildeo os brotoi Embora haja divergecircncias e alguns queiram ver nos brotoi figuras relacionadas a pensadores supostamente antagonistas (por exemplo os heraclitianos) haacute uma passagem que nos faz entender claramente que se trata de uma criacutetica ao pensamento miacutetico tradicional No fr 7 a deusa convida o disciacutepulo a natildeo permitir que um ethos polypeirov o haacutebito de muita experiecircncia o obrigue a permanecer no caminho errado O que eacute ethos polypeirov Trata-se de um haacutebito de pensamento que se adquire pela repetida experiecircncia (cultural) Um tal haacutebito por razotildees cronoloacutegicas natildeo pode ser proveniente da forma mentis proacutepria das recentes conquistas da ciecircncia jocircnica ou daquela pitagoacuterica recentes demais para chegar a serem consideradas uma maneira de pensar assentada isto eacute um ethos polypeiron um haacutebito de muita experiecircncia Afora essas correntes natildeo haacute outros candidatos de pensamento ldquonatildeo miacuteticordquo que podem ser alvo da criacutetica de Parmecircnides Por conseguinte como objeto das criacuteticas resta somente o pensamento miacutetico tradicional isto eacute aqueles relatos que de uma maneira ou de outra tentavam explicar o mundo o que coloca Parmecircnides em perfeita continuidade com seu mestre Xenoacutefanes7 Para a noccedilatildeo de ldquomenterdquo em Parmecircnides ver Galgano (2016 2017) parte primeira e segunda

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(aquela que passou pelo meacutetodo) e por outro as opiniotildees dos mortais nas quais a convicccedilatildeo natildeo eacute verificadardquo

3 OS CAMINHOS

Apoacutes a explicitaccedilatildeo do programa de ensino a deusa comeccedila a explicar seu meacutetodo de verificaccedilatildeo Eacute aqui que nos deteremos mais porque eacute neste ponto que estreia pela primeira vez a noccedilatildeo de natildeo-ser Trata-se do fr DK 28 B 2 que ora passamos a estudar e que em grego eacute assim

εἰ δrsquo ἄγrsquo ἐγὼν ἐρέω κόμισαι δὲ σὺ μῦθον ἀκούσας

αἵπερ ὁδοὶ μοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαιἡ μὲν ὅπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναιΠειθοῦς ἐστι κέλευθος (Ἀληθείηι γὰρ ὀπηδεῖ)ἡ δrsquo ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναιτὴν δή τοι φράζω παναπευθέα ἔμμεν ἀταρπόνοὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε μὴ ἐὸν (οὐ γὰρ ἀνυστόν)οὔτε φράσαις

31 OS VERSOS 1 E 2

Vejamos os primeiros dois versos do fragmentoEi drsquoaacutegrsquoegograven ereacuteo koacutemisai degrave sugrave mucircthon akouacutesas

haacuteiper hodoigrave moucircnai dizeacutesios eisi noecircsai

Pois bem eu te direi e tu recebe a palavra que ouviste

os uacutenicos caminhos de inqueacuterito que satildeo a pensar

Sua importacircncia eacute estrutural dentro do poema a deusa anuncia que vai dizer algo importante e pede ao kouros para preparar-se pois haacute caminhos especiacuteficos para o pensar investigativo e satildeo somente alguns (moucircnai depois saberemos que satildeo dois)

Houve muita discussatildeo sobre o sentido de νοῆσαι principalmente so-bre se ele eacute ativo ou passivo Aqui noesai se refere a um pensar investigativo o

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qual eacute necessariamente ativo pois uma investigaccedilatildeo passiva eacute um dos oximo-ros mais esdruacutexulos imaginaacuteveis O sentido eacute os caminhos que o pensar segue quando se dedica agrave investigaccedilatildeo satildeo aqueles uacutenicos que descreveraacute a seguir Uma outra maneira de traduzir pode ser esta o pensar entre todos os cami-nhos possiacuteveis segue estes uacutenicos em sua atividade de investigar Portanto a traduccedilatildeo de Cavalcante de Souza soa oacutetima a pensarhellip que

Vejamos na sequecircncia a coordenaccedilatildeo com os versos 3 e 5 que apresen-tam os correlativos comeccedilando pela construccedilatildeo

Pois bem eu te direi e tu recebe a palavra que ouviste

que os uacutenicos caminhos de inqueacuterito satildeo(verso 2 + verso 3) a pensar que eacute e que portanto natildeo eacute natildeo ser

(verso 2 + verso 5) a pensar que natildeo eacute e portanto que eacute preciso natildeo ser

A construccedilatildeo mostra que o sentido do noein (νοῆσαι) nesse caso eacute ativo Haacute uma atividade especiacutefica da mente Nessa atividade a mente se en-caminha por vaacuterios rumos de investigaccedilatildeo dos quais somente dois parecem ser viaacuteveis ou parecem ter sentido a investigaccedilatildeo a pensar que eacute e a investigaccedilatildeo a pensar que natildeo eacute

Que nos diz esse verso 2 Que Parmecircnides se pocircs a refletir sobre a mente humana embora ele natildeo tivesse esse conceito de ldquomenterdquo como noacutes a entendemos Essa reflexatildeo foi fatal e aos poucos veremos por quecirc Por en-quanto podemos sustentar que o ponto de partida de Parmecircnides eacute reflexivo Sua reflexatildeo verteu sobre o funcionamento da mente mais especificamente sobre que tipo de funcionamento leva agrave persuasatildeo ou leva a conclusotildees insatis-fatoacuterias do ponto de vista da explicaccedilatildeo do mundo

32 OS VERSOS 3 E 4he megraven hoacutepos eacutestin te kaigrave os eacutesti megrave eicircnai

peithoucircs esti keacuteleuthos (aletheiacuteei gagraver opedeicirc)

o primeiro que eacute e portanto que natildeo eacute natildeo-ser

de persuasatildeo eacute o caminho (pois agrave verdade acompanha)

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O verso 3 eacute provavelmente o mais estudado de Parmecircnides merece Entretanto vejamos primeiro o verso 4 Ali notamos a presenccedila de uma palavra marcadamente psicoloacutegica πειθοῦς persuasatildeo Parmecircnides percebe que a persuasatildeo eacute um fato da ldquomenterdquo conceito este uacuteltimo que lhe eacute estra-nho mas que ele consegue identificar descrevendo as sensaccedilotildees mentais8 E identifica duas persuasotildees uma acompanhada da verdade e outra na qual o convencimento natildeo eacute acompanhado da verdadeira confianccedila Agrave primeira ele chama de πειθός que gera a sensaccedilatildeo de firmeza na mente (ἀτρεμὲς ἦτορ DK 1 29) e acompanha a verdade Agrave segunda ele chama de ldquoopiniotildees dos mortaisrdquo na qual natildeo haacute uma πίστις ἀληθής (DK 1 30) um convenci-mento acompanhado de verdade

Essa distinccedilatildeo nos mostra agudeza da observaccedilatildeo psicoloacutegica A certeza pode ser de dois tipos ou eacute uma certeza que deixa espaccedilo a duacutevidas ou eacute uma certeza indubitaacutevel Isso expotildee um problema gnosioloacutegico posto que se tem uma convicccedilatildeo (e todo homem tem convicccedilotildees) como saber se essa convicccedilatildeo corresponde agrave verdade ou eacute uma convicccedilatildeo sem fundamento e sem correspon-decircncia com a realidade Natildeo eacute possiacutevel sabecirc-lo A mente mostra apenas sua convicccedilatildeo subjetiva e para saber se tal convicccedilatildeo eacute acompanhada de verdade ou se natildeo tem feacute verdadeira eacute preciso recorrer a algo extramental eacute necessaacuteria uma prova externa porque a mente por si soacute natildeo consegue identificar uma sua convicccedilatildeo proacutepria como verdadeira ou falsa

A diferenciaccedilatildeo de dois tipos de persuasatildeo no poema eacute clara9 e se a ordem dos fragmentos de Diels estiver correta essa diferenciaccedilatildeo pertence agrave parte propedecircutica pois natildeo se fala dela na parte do eon no fr 8 quando a ordem do mundo eacute explicada com exceccedilatildeo do final do discurso da deusa onde ela anuncia o encerramento de seu discurso confiaacutevel (πιστὸν λόγον) Isso significa que esse tema faz parte do instrumental argumentativo preacutevio que conduziraacute agrave sucessiva anaacutelise cosmoloacutegica Enfim nos versos 3-4 uma proclamaccedilatildeo anteriormente anunciada (vv 1-2) eacute agora enunciada (vv 3-4) em seu primeiro caminho Eacute enunciado o caminho que pensa o inqueacuterito com persuasatildeo verdadeira natildeo aquele pensar no qual natildeo haacute convicccedilatildeo ver-

8 A discussatildeo completa estaacute em Galgano (2012)9 Embora nesse fragmento a palavra persuasatildeo natildeo apareccedila associada aos ldquomortaisrdquo em outras partes essa ligaccedilatildeo eacute clara ou ateacute mesmo literal como em 8 38-39 onde se frisa que ldquoseratildeo nomes todas as coisas que os mortais determinaram persuadidos de ser verdaderdquo (τῶι πάντrsquo ὄνομ(α) ἔσται ὅσσα βροτοὶ κατέθεντο πεποιθότες εἶναι ἀληθῆ) Note-se πεποιθότες atribuiacutedo aos mortais particiacutepio perfeito de πείθω

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dadeira mas aquele caminho enfim que anda com a verdade Vamos agora voltar ao verso 3

Natildeo se pode isolar o verso 3 ἡ μὲν ὅπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι do anterior verso 2 (e nem do seu correlativo verso 5) e portanto natildeo se pode esquecer que trata de um caminho ou seja de um elemento di-nacircmico No entanto a primeira coisa que salta aos olhos eacute que todas as noccedilotildees envolvidas satildeo estaacuteticas e natildeo haacute nenhum elemento dinacircmico ou sequencial ou de qualquer natureza minimamente motora O sentido desse ponto de vista eacute que o pensar o ldquoἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναιrdquo natildeo eacute o pensar de um momento mas um pensar que segue por um caminho Ou seja significa que no percurso seguido pelo pensar para que o inqueacuterito seja de verdadeira per-suasatildeo o ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι deve ser constante Essa noccedilatildeo eacute estrutural o caminho de inqueacuterito a pensar deve conter uma constante vaacutelida em qualquer momento e passagem do caminho O fato de ser a afirmaccedilatildeo de uma constante (estaacutetica) numa dimensatildeo de caminho (dinacircmica) reforccedila a ideia de algo externo e de natureza fixa a ser aplicado a algo de natureza pro-cessual ou seja eacute uma lei porque a noccedilatildeo de lei expressa tambeacutem as relaccedilotildees fixas entre as dinacircmicas de elementos de um ou mais processos

Vamos observar a estrutura sintaacutetica do verso mais de perto ἡ μὲν ὅπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι Depois da conjunccedilatildeo correlativa ἡ μὲν ndash que se coadunaraacute com o ἡ δὲ de 25 (ἡ δrsquo ὡς) ndash o verso eacute constituiacutedo de duas unidades sintaacuteticas autocircnomas mas subordinadas ao verso 2 pelos pronomes ὅπως e ὡς ademais as duas unidades estatildeo ligadas pela conjunccedilatildeo τε καὶ Vejamos a construccedilatildeo sintaacutetica sem entrar ainda na semacircntica ou seja sem traduzir os termos ἔστιν οὐκ ἔστι e μὴ εἶναι

por um lado (ἡ μὲν) que ldquoArdquo e tambeacutem (τε καὶ) que ldquoBrdquo

A conjunccedilatildeo τε καὶ (e tambeacutem que) indica que temos duas oraccedilotildees as quais pela estrutura de todo o fragmento devem ser completas Devem porque natildeo parece que o sejam vejamo-las separadamente e sem os pronomes

A ἔστιν

B οὐκ ἔστι μὴ εἶναι

A primeira oraccedilatildeo eacute sem sujeito e sem objeto sendo constituiacuteda somen-te pelo verbo a segunda eacute igualmente sem sujeito contudo tem um objeto

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direto A primeira eacute afirmativa enquanto a segunda eacute negativa entretanto a segunda nega uma segunda negaccedilatildeo contida no objeto eacute negaccedilatildeo de negaccedilatildeo

Conjunccedilatildeo correlativa

Pronome relativo sujeito verbo objeto

Verso 23 ἡ μὲνOraccedilatildeo 1 ὅπως mdash ἔστιν mdashOraccedilatildeo 2 ὡς mdash οὐκ ἔστι μὴ εἶναι

Posto que em grego antigo o sujeito ou eacute expliacutecito ou eacute subentendido o grande misteacuterio dessas palavras eacute exatamente que o sujeito natildeo aparece nem expliacutecito e nem subentendido constituindo uma autecircntica anomalia literaacuteria Natildeo conveacutem nesta ocasiatildeo reconstruir a discussatildeo dos vaacuterios estudiosos em relaccedilatildeo a essa falta de nosso lado enfrentaremos a questatildeo por outras provi-decircncias Por enquanto vamos apresentar o resumo das possibilidades de solu-ccedilatildeo reportadas por Cordero (2005) Para o estudioso haacute quatro possibilidades para explicar a anomalia a saber ldquoa) Trata-se de um erro de transmissatildeo de texto se assim for este deve ser corrigido introduzindo o sujeito ausente b) haacute um sujeito conceitual impliacutecito que deve ser buscado no resto do Poema c) natildeo haacute nenhum sujeito possiacutevel e d) o sujeito deve ser extraiacutedo do predicado isolado pois o eacutestin ldquoproduzrdquo o sujeito As quatro possibilidades encontraram defensoresrdquo (CORDERO 2005 p 63)

Natildeo penso que seja o caso de tomar partido agora faremos isso so-mente no fim da nossa anaacutelise por enquanto vamos prosseguir com as nos-sas consideraccedilotildees A primeira delas eacute que as duas oraccedilotildees natildeo satildeo simples-mente conjuntas elas satildeo mais que conjuntas porque reuacutenem uma uacutenica noccedilatildeo em trecircs variaccedilotildees ἔστιν οὐκ ἔστι e μὴ εἶναι satildeo variaccedilotildees do campo semacircntico de εἰμί o verbo ser Seriam simplesmente conjuntas se apresen-tassem verbos e objetos diretos diferentes Naturalmente uma construccedilatildeo desse tipo seria possiacutevel10 e apresentaria duas oraccedilotildees sintaticamente inde-pendentes e conjuntas Poreacutem no nosso caso a construccedilatildeo eacute feita com trecircs formas do mesmo verbo que muito dificilmente tecircm uma conexatildeo apenas conjuntiva Ademais a primeira oraccedilatildeo eacute afirmativa e a segunda duplamente negativa o que faz pensar na estrutura da citaccedilatildeo platocircnica (Soph 237a8 DK B 7 1) a qual natildeo eacute sintaticamente igual mas muito semelhante que nunca os natildeo entes sejam onde tambeacutem uma dupla negaccedilatildeo recusa existecircncia

10 Por exemplo ldquoos uacutenicos caminhos de inqueacuterito a pensar por um lado que examina e que natildeo pretende natildeo avaliarrdquo

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aos natildeo entes implicando apenas variaccedilotildees formais de εἶναι dessa vez com o particiacutepio no neutro plural τὰ ἐοντα que natildeo estaacute presente no fr 211 Esses elementos precisam ser investigados

Vamos comeccedilar pela conjunccedilatildeo12 τε καὶ em geral traduzida por sim-ples conjunccedilatildeo pelos criacuteticos assume aqui um valor mais forte O fato de que seja uma conjunccedilatildeo elimina de iniacutecio a interpretaccedilatildeo do verso 3 como uma disjunccedilatildeo13 Mais que uma conjunccedilatildeo as duas subordinadas satildeo ligadas por uma conexatildeo vital na qual o τε καὶ no sentido de ldquotambeacutemrdquo ou ateacute mesmo ldquoambosrdquo representa a conjunccedilatildeo de uma segunda parte reforccedilando a primeira natildeo porque explica mas simplesmente porque as duas fazem parte de um todo como dois lados de uma mesma moeda14

Vamos deixar de lado por enquanto o primeiro hemistiacutequio e con-siderar somente o segundo O segundo hemistiacutequio de 3 soa assim os uacutenicos caminhos de inqueacuterito a pensar satildeo por um lado que [ldquoArdquo] e tambeacutem que natildeo eacute natildeo-ser O fato singular eacute que aleacutem da repeticcedilatildeo da negaccedilatildeo (natildeohellip natildeo) tem-se tambeacutem a repeticcedilatildeo do verbo εἰμί (eacutehellip ser) Obviamente natildeo se tra-ta de uma ditografia e portanto teremos que diferenciar o primeiro negar (οὐκ ἔστι natildeo eacute) do segundo negar (μὴ εἶναι natildeo-ser) O primeiro negar eacute feito pela partiacutecula negativa οὐκ e o presente do indicativo ἔστι A traduccedilatildeo simples e direta soa natildeo eacute Natildeo parece haver dificuldade quanto agrave traduccedilatildeo em si restando apenas o problema da falta de sujeito Se ldquonatildeo eacuterdquo estaacute certo resta descobrir a que se refere essa negaccedilatildeo e natildeo haacute outro candidato que o seguinte μὴ εἶναι

11 Eacute possiacutevel mostrar (e o fazemos em sede apropriada) que a citaccedilatildeo platocircnica (v 7 2) tem a mesma estrutura do v 2 312 Humbert (1954 p 370) ldquoDrsquoailleurs drsquoune faccedilon geacuteneacuterale une certaine indeacutetermination inseacuteparable de la poeacutesie qui exprime moins qursquoelle ne suggegravere est peu favorable agrave un emploi rigoreux et preacutecis des particulesrdquo13 Alguns interpretam de fato como disjunccedilatildeo ex Mansfeld (1960) em Meijer (1997) p 100 et passim O argumento de Mansfeld parte da consideraccedilatildeo de que o silogismo disjuntivo natildeo precisa de sujeito (aqui o argumento de Parmecircnides natildeo precisaria de um sujeito para o esti) A (ἔστιν) ou B (οὐκ ἔστι μὴ εἶναι)14 Aparentemente (pelo que pude descobrir) natildeo haacute estudos atuais completos sobre as partiacuteculas em grego antigo e parece que o uacuteltimo foi de Denniston (1954) De laacute para caacute as partiacuteculas foram estudadas por trabalhos especiacuteficos e separadamente por aacutereas literaacuterias (eacutepica trageacutedia etc) deixando uma lacuna na poesia onde o uso eacute muito menos rigoroso e oferece maiores dificuldades de interpretaccedilatildeo Um status questionis da problemaacutetica de te kai possivelmente se encontra em um paper do qual por enquanto soacute consegui o abstract Bonifazi (2012)

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Natildeo parece haver atestaccedilatildeo de μὴ εἶναι na poesia eacutepica Pela pesquisa no TLG as primeiras atestaccedilotildees parecem ser da eacutepoca de Parmecircnides se natildeo sucessivas sendo que nesse caso pode ter sido ele o primeiro a usar tal expres-satildeo Mas aguardando resultados filoloacutegicos mais precisos podemos assegurar que a noccedilatildeo de εἶναι contida no segundo negar natildeo deve ser a mesma do primeiro sob pena de gerar uma contradiccedilatildeo de termos incompreensiacutevel mas que justamente nesse sentido aticcedilou a fantasia de muitos criacuteticos Penso por exemplo naqueles que quiseram ver as duas negaccedilotildees apenas no sentido gra-matical15 e acabaram achando o argumento de Parmecircnides fraco ou tautoloacutegi-co quando natildeo inconsistente No entanto o primeiro negar (οὐκ ἔστι) quer negar um outro negar (μὴ) especiacutefico aquele que nega εἶναι

Vou repetir a sequecircncia porque por um lado a accedilatildeo do primeiro negar eacute predicativa e por outro lado a noccedilatildeo predicada eacute maacutexima e acaba por gerar um pequeno desconforto argumentativo O primeiro negar nega um segundo negar aquele que nega εἶναι Ou seja o segundo negar eacute um ldquonegar algo espe-ciacutefico (εἶναι)rdquo O conceito se torna claro se se manteacutem presente o sentido psi-coloacutegico muito mais que o gnosioloacutegico da expressatildeo parmenidiana Negar algo eacute o que fazem ambas as expressotildees tanto do primeiro quanto do segundo negar Todavia o segundo negar eacute a accedilatildeo especiacutefica de negaccedilatildeo de εἶναι a qual eacute uma accedilatildeo da mente eacute um comportamento concreto o comportamento mental de negar εἶναι Parmecircnides argumenta que o caminho persuasivo eacute aquele que nega que se possa ter o comportamento mental especiacutefico de negar εἶναι natildeo eacute possiacutevel (ter o comportamento mental de) negar εἶναι

Esse eacute um ponto que gerou muita confusatildeo Parmecircnides natildeo nega que se possa negar como se ele proacuteprio ao afirmar que o natildeo-ser natildeo eacute estivesse cometendo o maior dos disparates autocontraditoacuterios Satildeo muitiacutessimos os que interpretam Parmecircnides dessa forma e que afinal acabam asseverando que Parmecircnides eacute o filosofo do ser (apenas) Parmecircnides usa gramaticalmente a negaccedilatildeo e tambeacutem a usa gnosiologicamente e epistemicamente Daacute para dizer mais daacute para dizer que ele usa a negaccedilatildeo de forma magistral como poucos souberam usar na histoacuteria da filosofia De fato o segundo hemistiacutequio asseve-ra que haacute um percurso mental que eacute persuasivo (v 4) quando natildeo segue μὴ εἶναι Mais uma vez o percurso mental de inqueacuterito eacute persuasivo quando natildeo

15 Por exemplo C Kahn cuja uacutenica conclusatildeo segundo sua leitura seria ldquoIf we restate Parmenidesrsquo claim in the modern formal mode it might run lsquom knows that prsquo entails lsquoprsquordquo (KAHN 2009 p 153-154)

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se comporta mentalmente negando εἶναι quando natildeo tem a atitude de negar εἶναι Resta descobrir o que eacute εἶναι

O termo εἶναι eacute um infinitivo Como se sabe o infinitivo eacute a expressatildeo verbal depauperada de todo sentido acessoacuterio a ponto que ldquo[c]rsquoest de cette fa-ccedilon neacutegative que lrsquoinfinitif a eacuteteacute deacutefini comme repreacutesentant lrsquoideacutee verbale nuerdquo (HUMBERT 1954 p 125) Os mais variados estudos natildeo conseguiram expli-car de forma convincente um sentido especiacutefico para o uso feito por Parmecircnides Por exemplo The verb ldquoberdquo in ancient Greek (KAHN 2003 passim) um dos estudos mais completos sobre o tema vecirc-se obrigado a atribuir a Parmecircnides um uso supostamente novo mas parece-me de forma improacutepria e desnecessaacuteria16 Eu penso que quando Parmecircnides quis utilizar um novo sentido inventou um novo termo como no caso de to eon (invenccedilatildeo na linha jaacute consolidada de subs-tantivar verbos no gecircnero neutro) Natildeo fez o mesmo com εἶναι e suas demais formas verbais razatildeo pela qual o sentido deve ser buscado nas acepccedilotildees tradicio-nais as quais satildeo muacuteltiplas e equiacutevocas como diraacute mais tarde Aristoacuteteles

No infinitivo εἶναι expressa a ideia geral do verbo num campo se-macircntico que vai desde ldquopresenccedilardquo ateacute a funccedilatildeo predicativa comum a muitas liacutenguas indo-europeias Creio que seja inuacutetil buscar um sentido preciso como ldquoexistirrdquo ou ldquoestar presente localmenterdquo ou outro εἶναι significa tudo isso principalmente porque eacute usado no infinitivo e como objeto Em portuguecircs a palavra que expressa com a mesma equivocidade a pluralidade de sentido numa riqueza proacutexima ao grego eacute o verbo ldquoserrdquo17 Parece-me portanto per-feitamente inuacutetil cercear o sentido a uma uacutenica acepccedilatildeo restriccedilatildeo que acaba gerando interpretaccedilotildees polecircmicas Ateacute mesmo para a acepccedilatildeo de ldquoexistirrdquo se construiacuteram criacuteticas a meu ver improacuteprias pelas quais se chega a discutir se Parmecircnides pensasse ou natildeo que seres natildeo existentes como quimeras e outros

16 Kahn extrai o sentido de εἶναι em Parmecircnides natildeo do uso que o eleata faz mas do contexto geral da mensagem parmenidiana Teoricamente seria um meacutetodo viaacutevel posto que se consiga entender corre-tamente a mensagem do filoacutesofo Na praacutetica no caso do poema de Parmecircnides que verte exatamente sobre εἶναι e seus derivados haacute um risco enorme ndash ao qual em minha visatildeo Kahn sucumbiu ndash de cair num petitio principii onde o sentido de εἶναι eacute extraiacutedo da mensagem filosoacutefica geral (Kahn o extrai de 129 que eacute o ldquoiacutendice parmenidianordquo e portanto poderia oferecer a ideia geral do poema) e por sua vez a mensagem filosoacutefica eacute obtida a partir do sentido de εἶναι Kahn acredita ter encontrado no sentido ldquoveritativordquo o novo uso que Parmecircnides faz de εἶναι17 Para εἰμί o Dicionaacuterio LSJ apresenta sete campos (de A a G) com 16 acepccedilotildees e mais vaacuterias suba-cepccedilotildees Para o verbo ldquoserrdquo o Dicionaacuterio Houaiss apresenta 19 acepccedilotildees das quais 14 verbais e 5 como substantivo as subacepccedilotildees satildeo exemplificadas mas natildeo classificadas

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seres mitoloacutegicos pudessem ser incluiacutedos na leitura predicamental18 Principal-mente eacute necessaacuterio manter a equivocidade do termo porque corresponde agrave forma mentis do autor e natildeo se devem exigir distinccedilotildees que natildeo eram processa-das por aquela cultura sob pena mais uma vez de atribuir aos antigos a nossa proacutepria forma mentis pecado fatal para um historiador da filosofia

Desse modo de iniacutecio a traduccedilatildeo de μὴ εἶναι com ldquonatildeo-serrdquo ateacute mes-mo por ser equiacutevoca (para a nossa sensibilidade) manteacutem a equivocidade proacute-pria da eacutepoca e da liacutengua da eacutepoca Posta entatildeo essa equivocidade precisamos saber se expressa um sentido filosoacutefico antes de tudo para a eacutepoca e depois para noacutes A comparaccedilatildeo de 23 οὐκ ἔστι μὴ εἶναι com 71 Οὐ δαμῇ εἶναι μὴ ἐόντα que eacute o testemunho de Platatildeo nos faz entender que nessas palavras natildeo soacute se encontra um sentido filosoacutefico mas ateacute mesmo o sentido principal da filosofia de Parmecircnides Retomando portanto a construccedilatildeo precisamos entender por que pensar o natildeo-ser (μὴ εἶναι) eacute algo que natildeo eacute possiacutevel ou que natildeo se deve fazer ou que simplesmente natildeo eacute (natildeo acontece) segundo a expressatildeo usada por Parmecircnides οὐκ ἔστι

Aleacutem da traduccedilatildeo simples e imediata haveria outras possibilidades de traduccedilatildeo19 essas variaccedilotildees podem ser interessantes para evidenciar nuances aqui e acolaacute contudo tendo a possibilidade de utilizar o verbo ldquoserrdquo num uso equiacutevoco proacuteximo do grego natildeo precisamos recorrer agrave circunlocuccedilotildees e pode-mos traduzir οὐκ ἔστι com ldquonatildeo eacuterdquo20 e μὴ εἶναι com ldquonatildeo-serrdquo Diz portanto o segundo hemistiacutequio

Os uacutenicos caminhos de inqueacuterito ao pensar satildeo

Por um lado [ldquoArdquo] e que natildeo eacute natildeo-ser

18 De novo Kahn (2009) que assinala ldquoTo take the philosophical objection first it is simply false to say that you cannot think or talk about (point out in speech phrazein) what does not exist And the falseness of this would be obvious to any Greek who reflected for a moment on the profusion of monsters and fantastic creatures in traditional poetry and myth from Pegasus to the children of Gaia with a hundred arms and fifty heads apiecerdquo (HESIOD THEOGONY 150 172) Mais agrave frente ressaltamos que exatamente na questatildeo filosoacutefica Kahn estaacute errado e Parmecircnides estaacute certo eacute impossiacutevel pensar e dizer o natildeo-ser19 Um outro caminho possiacutevel de traduccedilatildeo utilizado principalmente pelos autores de liacutengua inglesa por motivos idiossincraacutesicos da liacutengua eacute empregar uma expressatildeo cuja noccedilatildeo tambeacutem eacute ampliacutessima e equiacutevoca ldquocoisardquo Mas essa expressatildeo por ser um substantivo natildeo possui o aspecto dinacircmico que o verbo tem sendo assim necessaacuterio acrescentar o verbo ser portanto eacute possiacutevel traduzir com ldquoas coisas que satildeordquo Outra possibilidade eacute usar o pronome ldquoquerdquo em sentido predicativo em substituiccedilatildeo de coisa ou coisas Outra ainda eacute o pronome demonstrativo (aquilo isto) ou o indefinido (algo) com a mesma funccedilatildeo substitutiva de coisa(s) no sentido mais indefinido possiacutevel20 Laacute onde em inglecircs haacute obrigatoriedade de explicitar-se o sujeito ldquowhat is notrdquo

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Se tiveacutessemos seguido a ordem metodoloacutegica tradicional ao examinar 23 teriacuteamos analisado primeiro ἔστιν e depois οὐκ ἔστι μὴ εἶναι E se de-pois de estudar o segundo hemistiacutequio voltaacutessemos nossa atenccedilatildeo ao primeiro hemistiacutequio natildeo teriacuteamos ganho metodoloacutegico nenhum pois redundariacuteamos na leitura por pressupostos em que o sentido de ἔστιν eacute obtido pelo pressu-posto de que ἔστιν significa em grego ldquoeacuterdquo todavia dessa maneira se chegaria aos resultados jaacute conhecidos considerados natildeo totalmente satisfatoacuterios pelos proacuteprios autores de cada interpretaccedilatildeo O dado concreto eacute que o poema natildeo oferece nenhuma definiccedilatildeo direta ou indireta de ἔστιν embora apresente mui-tos σήματα de ἐὸν Em compensaccedilatildeo o poema trata amplamente de μὴ εἶναι E natildeo eacute preciso ir muito longe para encontrar referecircncias para a noccedilatildeo de μὴ εἶναι pois observamos muitos dados nos versos de 5 a 8 do nosso fragmento Iremos portanto ao verso 5 e subsequentes

33 OS VERSOS 5 A 8 he drsquoos ouk eacutestin te kaigrave os khreoacuten esti megrave eicircnai

tegraven deacute toi phraacutezo panapeutheacutea eacutemmen atarpoacuten

ouacutete gagraver agravev gnoiacutees toacute ge megrave eograven (ou gagraver anustoacuten)

ouacutete phraacutezais

o outro que natildeo eacute e portanto que eacute preciso natildeo ser

este entatildeo eu te digo eacute atalho de todo incriacutevel

pois nem conhecerias o que natildeo eacute (pois natildeo eacute exequiacutevel)

nem o dirias

Vamos relembrar a letra do verso 5 ἡ δrsquo ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι Haacute uma construccedilatildeo paralela ao verso 3 dois hemistiacutequios no segundo dos quais encontramos nosso μὴ εἶναι No verso seguinte o caminho eacute chamado de παναπευθέα termo que muito fez e faz sofrer os filoacutelogos O sentido geral poreacutem eacute claro quer se queira traduzir como ldquode todo incriacutevelrdquo (CAVALCANTE DE SOUZA 1978) quer como ldquocompletamente inconos-ciblerdquo (CORDERO 2005 p 219) ou ldquowholly without reportrdquo (COXON 2009 p 56) ou como outro Em suma a noccedilatildeo geral eacute de que haacute uma difi-culdade intransponiacutevel em seguir esse caminho e por que eacute explicado a seguir

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Assim como em certa metodologia de exposiccedilatildeo primeiro se enuncia a tese e depois se propotildee o argumento demonstrativo Parmecircnides primeiro enuncia (como conveacutem agrave expressatildeo de uma deusa) e depois diz por quecirc Ora a novida-de cultural eacute exatamente esse porquecirc onde as afirmaccedilotildees natildeo satildeo mais apenas impostas por sua forccedila hieraacutetica mas precisam de explicaccedilotildees21

O nosso primeiro problema eacute que os enunciados (no verso 3 antes no verso 5 agora) natildeo satildeo claros para noacutes Nesse sentido podemos pedir clareza aos argumentos Qual eacute o argumento Eis a resposta de Parmecircnides οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε μὴ ἐὸν (οὐ γὰρ ἀνυστόν) οὔτε φράσαις Aqui a traduccedilatildeo eacute mais clara e natildeo haacute muita divergecircncia entre os criacuteticos pois nem poderias co-nhecer o que natildeo eacute (pois eacute impossiacutevel) nem o dirias Haacute aqui um claro objeto do discurso τό μὴ ἐὸν o qual sem hesitaccedilatildeo desta vez podemos traduzir por ldquoo que natildeo eacuterdquo Sem hesitaccedilatildeo porque τὸ ἐὸν eacute uma expressatildeo desconhecida antes de Parmecircnides aparece com ele eacute estudada por seus disciacutepulos e pelos seus criacuteticos (de Melisso a Aristoacuteteles) e eacute reportada pela doxografia como invenccedilatildeo parmenidiana

A noccedilatildeo exposta por Parmecircnides eacute sequencial o caminho de inqueacuterito que pensa οὐκ ἔστιν aqui chamado de ἀταρπόν natildeo pode ser percorrido porque eacute impossiacutevel ldquoconhecerrdquo (γνοίης ndash segunda pessoa do optativo aoristo ativo de γιγνώσκω) o que natildeo eacute e vamos deixar para depois a questatildeo do di-zer (οὔτε φράσαις) Vamos concentrar nossa atenccedilatildeo sobre γνοίης Para noacutes eacute menos importante a traduccedilatildeo gramaticalmente e estilisticamente precisa e mais importante a precisatildeo da noccedilatildeo filosoacutefica exposta Em relaccedilatildeo a essa pa-lavra houve (e ainda haacute) uma discussatildeo acirrada Discute-se se traduzir por ldquoconhecerrdquo como fazem alguns (COXON 2009 p 56 GALLOP 1984 p 55 TARAacuteN 1965 p 32 e muitos outros) ou ldquoreconhecerrdquo como fazem outros (por exemplo BARNES 1982 p 124) e principalmente que sentido atribuir ao ldquoconhecerrdquo Eu penso que considerado o contexto natildeo se trata do conhecer epistecircmico mas do conhecer gnosioloacutegico ou seja da capacidade que a mente possui de estabelecer um processo de conhecimento E que se trate de processo eacute claro pela vaacuteria terminologia que Parmecircnides usa mas principalmente pela sua ὁδός que ficaraacute para sempre como metaacutefora perfeita dos procedimentos a serem tomados para realizar tarefas de qualquer natureza vindo a receber o nome de meacutetodo

21 Rossetti (2010) A necessidade de explicaccedilotildees natildeo eacute mais soacute dos autores mas tambeacutem da audiecircncia que agora requer argumentos

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Para o meacutetodo do pensar epistecircmico declara Parmecircnides natildeo eacute con-veniente seguir um certo percurso porque sobre ele haacute ao menos uma etapa onde se deve ldquoconhecerrdquo ndash ou seja onde se deve exercer a capacidade gnosioloacute-gica ndash o τό μὴ ἐὸν mas isso eacute impossiacutevel Na verdade tanto o termo ἀνυστόν (reportado por Simpliacutecio) quanto sua variante ἐφικτόν (reportada por Proclo) tecircm um sentido processual quero dizer que a tarefa de pensar o τό μὴ ἐὸν natildeo apresenta uma impossibilidade que se realiza imediatamente mas uma que implica um processo o qual eacute impossiacutevel em sua inteireza porque natildeo pode ser levado a termo De fato ἀνυστός significa ldquoser completadordquo ldquopraticaacutevelrdquo enquanto ἐφικτός significa ldquofaacutecil de alcanccedilarrdquo ldquoacessiacutevelrdquo Ambos os termos tecircm sentido dinacircmico e processual e a negaccedilatildeo que Parmecircnides faz significa que esse processo natildeo pode ser levado a termo

De que processo se trata Em minha visatildeo trata-se do processo concre-to de pensar a negaccedilatildeo do ser Parmecircnides eacute de aacuterea de formaccedilatildeo pitagoacuterica e os pitagoacutericos ndash como assinala Aristoacuteteles (Metaph 986a15-26) ndash naquela eacutepoca estudavam as oposiccedilotildees as mais abstratas tendo passado da oposiccedilatildeo mais antiga entre par e iacutempar correspondentes a limitado e ilimitado (πέρας e ἄπειρον) a um conjunto de dez oposiccedilotildees Nada desabona uma possiacutevel tentativa de Parmecircnides buscar uma oposiccedilatildeo (a qual era feita tambeacutem por negaccedilatildeo como nos evidencia a expressatildeo verbal da oposiccedilatildeo entre πέρας e ἄπειρον com o ldquoαrdquo privativo) para o ldquotodordquo aquele πάντα que encontramos no verso 128 do poema e que em breve transformar-se-ia em φύσις no curso da evoluccedilatildeo histoacuterica dos conceitos filosoacuteficos da antiga Greacutecia

A meditaccedilatildeo do ldquonatildeo-serrdquo eacute das mais interessantes a se fazer na filosofia Tentar ldquopensarrdquo o ldquonatildeo-serrdquo eacute uma experiecircncia profunda a qual leva a conside-raccedilotildees radicais natildeo soacute sobre a existecircncia humana mas sobre a existecircncia como um todo Que Parmecircnides tenha se dedicado a essa meditaccedilatildeo eacute seguro pois ele o diz indiretamente em 22 quando afirma que os uacutenicos caminhos ao pensar satildeo aquele que pensa ἔστιν e aquele que pensa οὐκ ἔστιν O que natildeo sa-bemos e natildeo podemos afirmar com certeza eacute que tipo de meditaccedilatildeo ele reali-zou Eis que os termos ἀνυστόν ou ἐφικτόν vecircm nos socorrer e nos informam que se trata de uma meditaccedilatildeo processual que natildeo acaba Descrevi esse proces-so detalhadamente em outro trabalho (GALGANO 2010) e o repetirei aqui brevemente Pensar o natildeo-ser significa pensar concretamente a negaccedilatildeo do ser concreto (do mundo sensiacutevel ou inteligiacutevel) de cada ser Para tornar mais claro o processo pode-se comeccedilar negando a existecircncia de um ente depois daquilo

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que o rodeia depois do planeta depois do universo (sensiacutevel e inteligiacutevel atual e possiacutevel) e depois do mundo como um todo enfim do todo

O problema principal dessa meditaccedilatildeo eacute exatamente pensar se o sujeito pertence ou natildeo ao todo Quando se pensa a negaccedilatildeo do todo permanece ainda o sujeito pensante que pensa o todo como se o olhasse de um ponto virtual externo a ele E quando se tenta incluir o sujeito pensante de duas uma 1) ou o sujeito acreditando pensar a si proacuteprio dentro do todo reapa-rece externamente22 ou 2) o sujeito cognitivo desaparece e com ele qualquer noccedilatildeo cognitiva de ldquonatildeo-serrdquo Podemos assegurar claramente que o processo de pensar o τό μὴ ἐὸν natildeo termina seja porque eacute impossiacutevel incluir o sujeito no todo pois ele sempre reaparece a cada tentativa seja porque o processo quan-do inclui o sujeito no todo interrompe-se sendo assim impossiacutevel completar a negaccedilatildeo do todo Natildeo podemos saber se o modelo meditativo de Parmecircnides foi exatamente este mas natildeo me parece haver nada em desabono23

Entretanto qual eacute a importacircncia de natildeo se poder pensar a negaccedilatildeo de tudo Seguindo o argumento parmenidiano o caminho (ἀταρπόν) cognitivo que pensa τό μὴ ἐὸν natildeo pode ser concluiacutedo Ora ἀταρπόν eacute um sinocircnimo que Parmecircnides usa para o ὁδός do verso 22 (ὁδοὶ) isso quer dizer que o segundo caminho de inqueacuterito pode ser iniciado mas natildeo pode ser levado a termo Poreacutem se natildeo pode ser levado a termo por que eacute identificado como caminho Por que natildeo eacute excluiacutedo jaacute de iniacutecio quando a deusa ao inveacutes de anunciar os uacutenicos (moucircnai plural) caminhos natildeo anuncia um uacutenico cami-nho A resposta a essa pergunta torna clara a estranha afirmaccedilatildeo de que o caminho do pensar do segundo hemistiacutequio do verso 5 eacute necessaacuterio que per-maneccedila natildeo ser (χρεών ἐστι μὴ εἶναι) Parmecircnides assevera que embora seja um caminho que jamais pode ser completado ele ao mesmo tempo natildeo pode ser eliminado continua a pertencer aos (dois) uacutenicos caminhos de inqueacuterito ele eacute necessaacuterio

22 Se penso na aniquilaccedilatildeo de tudo incluindo a mim mesmo terei que pensar a mim mesmo aniquilado contudo esse pensar gerando esse novo pensamento gera um novo sujeito cognitivo pensante se aniquilo esse novo pensamento terei um novo sujeito cognitivo que pensa essa nova aniquilaccedilatildeo e assim por diante ad infinitum23 Natildeo quero garantir que Parmecircnides estreie uma filosofia do sujeito embora isso natildeo possa ser excluiacutedo a priori jaacute que os embriotildees de uma tal filosofia apareceratildeo em breve com Soacutecrates Acredito que se deve pensar mais no sujeito como o atleta campeatildeo das Olimpiacuteadas ou seja aquele capaz de cumprir (ou natildeo) certas proezas como fica extraordinariamente evidenciado no paradoxo de Zenatildeo cuja metaacutefora da filosofia (e do filoacutesofo) como tartaruga mostra que o pensar filosoacutefico eacute capaz de proezas maiores do que as proezas do proacuteprio Aquiles tidas como insuperaacuteveis pela cultura da eacutepoca

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Vamos de novo reconstruir essa parte do argumento com esse novo elemento os uacutenicos caminhos de inqueacuteritos satildeo

1) por um lado o caminho ao pensar que [versos 3 e 4] e

2) por outro lado o caminho ao pensar que [ldquoCrdquo (verso 5 primeiro hemistiacute-quio)] e que eacute necessaacuterio (que seja) natildeo-ser

De fato esse segundo caminho (ἀταρπόν) eacute inviaacutevel porque ldquonatildeo se consegue levar a cabo a reflexatildeordquo (γνοίης) quando se pensa o τό μὴ ἐὸν Ou seja fica muito clara a equaccedilatildeo entre o segundo caminho (v 5) e a reflexatildeo sobre o natildeo ser (τό μὴ ἐὸν) Finalmente o segundo hemistiacutequio do v 5 diz que esse eacute o caminho ao pensar que eacute necessaacuterio que seja μὴ εἶναι o qual agora sabemos eacute o caminho que tenta pensar o natildeo-ser (τό μὴ ἐὸν) Sabe-mos agora o que Parmecircnides chama de μὴ εἶναι Para Parmecircnides μὴ εἶναι eacute a estrutura do pensamento quando tenta inexoraacutevel e malogradamente pensar o natildeo-ser (τό μὴ ἐὸν)

Temos portanto a semacircntica de μὴ εἶναι e sabemos que significa a impossibilidade de pensar o natildeo-ser Com esse dado podemos reconstruir o resto do argumento mas primeiro vamos abordar a questatildeo do οὔτε φράσαις A premissa principal eacute o pano de fundo da pesquisa parmenidiana a qual estaacute em busca do discurso confiaacutevel como a deusa diz claramente no encerramen-to do fragmento 8 (talvez ecoando simetricamente alguma parte perdida do poema)24 Pensar o τό μὴ ἐὸν natildeo eacute possiacutevel logo ele eacute indiziacutevel Ora isso significa nem mais nem menos que dizer que o que eacute impossiacutevel eacute contra o sentido do dizer Eacute indiziacutevel natildeo porque natildeo se sabe do que se trata como querem muitos autores que fazem a leitura meramente epistemoloacutegica25 Eacute indiziacutevel porque dizer o ldquonatildeo-serrdquo significa fazer uma promessa que jamais se cumpriraacute ao se dizer ldquonatildeo-serrdquo parece que a expressatildeo aponta algo possiacutevel ou seja a negaccedilatildeo do ser e de fato quem estaacute desavisado assim acredita Mas a expressatildeo ldquonatildeo-serrdquo quer referir-se a algo que jamais seraacute cumprido que o

24 850-2 ldquoἐν τῶι σοι παύω πιστὸν λόγον ἠδὲ νόημα ἀμφὶς ἀληθείης δόξας δrsquo ἀπὸ τοῦδε βροτείας μάνθανε κόσμον ἐμῶν ἐπέων ἀπατηλὸν ἀκούωνrdquo ldquoNeste ponto encerro fidedigna palavra e pensamento sobre a verdade e opiniotildees mortais a partir daqui aprende a ordem enganadora de minhas palavras ouvindordquo (CAVALCANTE DE SOUZA 1978)25 Trata-se da leitura epistemoloacutegico-predicamental se natildeo sei a cor de um objeto (porque a cor natildeo eacute natildeo estaacute acessiacutevel ao meu conhecimento) natildeo posso falar da cor do objeto

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ser seja negado Esta eacute exatamente a noccedilatildeo expressa pelas palavras de Platatildeo jamais prevaleceraacute que natildeo entes sejam26

A expressatildeo μὴ εἶναι representa essa impossibilidade de pensamento e portanto eacute um dizer impossiacutevel o que se opotildee radicalmente agrave proacutepria noccedilatildeo de dizer a qualquer significar enquanto discurso confiaacutevel do mundo e da sua ordem Surge a pergunta mas se natildeo se pode dizer μὴ εἶναι se isso eacute impossiacute-vel natildeo haacute uma flagrante contradiccedilatildeo na deusa jaacute que ela proacutepria diz e cons-troacutei um argumento sobre o dizer μὴ εἶναι A objeccedilatildeo seria vaacutelida se a deusa dissesse o que eacute impossiacutevel de dizer ou seja se ela praticasse a impossibilidade Todavia a deusa natildeo diz o impossiacutevel a deusa aponta para o impossiacutevel indica o impossiacutevel pois ela diz que existem a ldquonoccedilatildeo de impossibilidade do pensarrdquo e a ldquonoccedilatildeo de impossibilidade do dizerrdquo Em outras palavras a deusa diz qual eacute o limite do pensar e qual eacute o limite do dizer Aleacutem desse limite o pensamento natildeo pode ir porque eacute impossiacutevel e tambeacutem o dizer natildeo pode ir porque eacute im-possiacutevel A impossiacutevel regiatildeo para aleacutem desse limite natildeo eacute admitida pelo dizer eacute contra o dizer eacute contraditoacuteria

A expressatildeo μὴ εἶναι em Parmecircnides eacute exatamente a palavra que ex-pressa o processo mental que noacutes chamamos contradiccedilatildeo e que ele primeiro assim chamou (οὔτε φράσαις natildeo diziacutevel) Eacute estranho que nenhum criacutetico te-nha percebido isso claramente Todos afirmam que o princiacutepio de natildeo contra-diccedilatildeo estaacute implicado em Parmecircnides assim como os outros princiacutepios loacutegicos pois os argumentos presentes no poema satildeo desenvolvidos segundo a natildeo con-tradiccedilatildeo poreacutem o princiacutepio natildeo eacute enunciado Alguns como Cordero veem justamente explicitado o princiacutepio do terceiro excluiacutedo (816 ἔστιν ἢ οὐκ ἔστιν) mas ningueacutem quis ver claramente que natildeo soacute a noccedilatildeo como tambeacutem a proacutepria palavra ldquocontradiccedilatildeordquo (οὔτε φράσαις natildeo diziacutevel contra o diziacutevel contra a dicccedilatildeo) estaacute explicitada no poema Penso que a razatildeo fundamental para que acontecesse esse lapsus tenha que ser procurada na grande atenccedilatildeo dada ao ldquoserrdquo e na pouca dada ao ldquonatildeo-serrdquo Como observaremos mais adiante por causa desse lapsus eu penso que natildeo se conseguiu entender plenamente a estrutura do fragmento 2 o qual simplesmente natildeo apresenta um silogismo disjuntivo nem nenhuma contradiccedilatildeo entre o caminho do ldquoserrdquo e o caminho do ldquonatildeo-serrdquo Parmecircnides assevera justamente que a expressatildeo ldquonatildeo-serrdquo eacute contraditoacuteria o ldquonatildeo-serrdquo natildeo pode ser dito porque ldquonatildeo-serrdquo eacute contraditoacute-

26 As duas expressotildees tecircm inversatildeo de predicado e negaccedilatildeo no entanto a noccedilatildeo permanece a mesma que os entes natildeo sejam (perecimento no fr 8) e que os natildeo entes sejam (nascimento no fr 8) A noccedilatildeo eacute o tracircnsito entre ser e natildeo ser

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rio e a expressatildeo ldquonatildeo-serrdquo indica tatildeo somente uma impossibilidade concreta aquela de que se realize o impossiacutevel

Vamos voltar ao nosso argumento e agrave questatildeo que deixamos em suspenso por que eacute necessaacuterio que μὴ εἶναι seja Sabemos que os versos 7 e 8 relatam um processo malogrado de pensar o natildeo ente (τό μὴ ἐὸν) Uso agora a palavra ente porque se justifica uma diferenciaccedilatildeo embora tanto ldquoenterdquo quanto ldquoserrdquo indiquem expressotildees gerais e natildeo individuais ldquoEnterdquo vem por conseguinte a significar o ente concreto aquele que eacute Parmecircnides sustenta que natildeo se pode pensar e dizer τό μὴ ἐὸν o ldquonatildeo enterdquo Esse processo recebe o nome de μὴ εἶναι ldquonatildeo-serrdquo a esse processo noacutes chamamos contradiccedilatildeo27 Entatildeo a indicaccedilatildeo eacute esta haacute um caminho ao pensar que pensa μὴ εἶναι (a contradiccedilatildeo) e eacute necessaacuterio que assim seja porque (vou repetir trecircs vezes de forma diferente28 para significar a mesma coisa)

1) se natildeo houvesse a contradiccedilatildeo

2) se natildeo se tem a noccedilatildeo de contradiccedilatildeo

3) se natildeo se sabe o que eacute contradiccedilatildeo

cai-se no discurso contraditoacuterio o que impede o inqueacuterito confiaacutevel Eacute ne-cessaacuterio saber que μὴ εἶναι (o processo de contradiccedilatildeo) eacute um caminho a ser evitado porque cria pensamentos e discursos contraditoacuterios

Vejamos de novo nosso fragmento com os elementos esclarecidos ateacute aqui

os uacutenicos caminhos de inqueacuterito a pensar satildeo

por um lado que [ versos 3 e 4]

e por outro lado que οὐκ ἔστιν e que eacute necessaacuterio que seja a contradiccedilatildeo (μὴ εἶναι)

a qual eacute um caminho natildeo criacutevel

pois eacute impossiacutevel pensar e dizer o natildeo ente (τό μὴ ἐὸν)

27 Mesmo para noacutes a contradiccedilatildeo eacute um processo porque indica a posiccedilatildeo de algo em contraposiccedilatildeo com mais algo isso significa que esses dois algos tecircm que ser relacionados para que haja contradiccedilatildeo do contraacuterio algo e mais algo podem conviver sem contraditoriedade Contudo esse assunto estaacute fora de tema e requer muitas outras providecircncias para o bom discernimento28 Repito buscando clareza pois nossas construccedilotildees comuns de linguagem nesses assuntos costumam ldquopatinarrdquo

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Penso que o espaccedilo conceitual deixado por οὐκ ἔστιν agora se pre-encha quase que por si haacute um caminho de inqueacuterito ao pensar que ldquonatildeo eacuterdquo e que eacute necessaacuterio que se considere contraditoacuterio porque eacute caminho que natildeo leva a lugar nenhum

A expressatildeo οὐκ ἔστιν eacute a negaccedilatildeo da terceira pessoa do indicativo de εἰμί a expressatildeo em si natildeo tem nada de especial significa tatildeo somente ldquonatildeo eacuterdquo restando em aberto o problema da ausecircncia de sujeito Mas agora sabemos o argumento complexo que estaacute na raiz da expressatildeo e a meu ver natildeo faz muito sentido a questatildeo de buscar um sujeito ou um objeto para definir se eacute usado de forma transitiva ou intransitiva se expressa existecircncia ou predicaccedilatildeo e as muitas combinaccedilotildees que podem ser montadas a partir da equivocidade do uso de εἰμί No entanto o acircmbito semacircntico foi evidenciado e estaacute claro e aleacutem do mais tem o testemunho de Platatildeo a confirmar o campo semacircntico da negaccedilatildeo de εἰμί nas vaacuterias formas estaacute relacionado a uma reflexatildeo sobre a impossibili-dade dessa negaccedilatildeo Obviamente para dizer que algo eacute impossiacutevel de alguma forma tenho que indicar essa impossibilidade com alguma expressatildeo Assim se digo ldquotriacircngulo quadradordquo aponto para uma impossibilidade jaacute que por defi-niccedilatildeo a essecircncia do triacircngulo exclui a essecircncia do quadrado logo a expressatildeo ldquotriacircngulo quadradordquo natildeo significa aquilo que parece prometer ou seja natildeo significa uma figura geomeacutetrica especial que eacute ao mesmo tempo triacircngulo e quadrado dizer ldquotriacircngulo quadradordquo eacute dizer algo ldquoindiziacutevelrdquo ldquonatildeo diziacutevelrdquo (na medida em que o diziacutevel quer expressar sentido) ldquoque nega o diziacutevelrdquo ldquoque eacute contra o diziacutevelrdquo que eacute contraditoacuterio

A semacircntica do ldquonatildeo serrdquo eacute fortiacutessima e estaacute muito aleacutem das sutilezas gramaticais morfoloacutegicas e sintaacuteticas e estas simplesmente natildeo afetam aquela O assunto tratado eacute tatildeo forte que ultrapassa qualquer forma linguiacutestica a pon-to de que esse assunto a ordem do ser e do natildeo-ser no mundo eacute responsaacutevel pela determinaccedilatildeo da lei da linguagem e natildeo vice-versa como bem entendeu Platatildeo no Sofista onde a teoria da predicaccedilatildeo surge em funccedilatildeo de uma refle-xatildeo sobre a ordem das leis baacutesicas do mundo Com efeito o approach linguiacutes-tico ao poema pode proceder ateacute certo ponto dali em diante o poema eacute fran-camente filosoacutefico e a chave linguiacutestica natildeo eacute suficiente para o acesso Isso quer dizer que com a chave linguiacutestica natildeo se abre a porta da questatildeo filosoacutefica do poema Se a questatildeo eacute que ldquojamais o natildeo ser pode se tornar serrdquo como (apro-ximadamente com essas palavras) argumenta Platatildeo citando Parmecircnides en-tatildeo diante da semacircntica que οὐκ ἔστιν apresenta discutir o sujeito de οὐκ ἔστιν se torna tarefa menor Considerada a desproporccedilatildeo entre o conteuacutedo (a

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semacircntica) e o recipiente (a palavra) entre o significado e o significante natildeo eacute impossiacutevel que οὐκ ἔστιν seja tatildeo somente uma expressatildeo simplificada quem sabe ateacute mesmo uma simplificaccedilatildeo didaacutetica pois o conteuacutedo do conceito estaacute expresso e justificado depois nos versos 7 e 8

O caminho de pensar que natildeo eacute e de pensar que eacute necessaacuterio natildeo ser eacute o caminho que afirma a necessidade de que a noccedilatildeo de natildeo-ser permaneccedila estaacutevel A contradiccedilatildeo tem que permanecer e ser identificada como tal pois eacute a uacutenica maneira de evitar que ela entre no pensamento e no discurso Se o ldquonatildeo-serrdquo natildeo for considerado contraditoacuterio a contradiccedilatildeo invade e domina o caminho de inqueacuterito o qual deixa de possuir πίστις ἀληθής (130) Assim eacute preciso que esse caminho seja identificado como μὴ εἶναι por um lado o ldquonatildeo-serrdquo eacute incognosciacutevel (οὔτε γὰρ ἂν γνοίης) mas por outro lado eacute neces-saacuterio que se saiba que ele eacute incognosciacutevel Saber do incognosciacutevel garante o conhecimento29 pois de fato ao natildeo se identificar o ldquonatildeo-serrdquo cai-se no risco de pensar que ldquoserrdquo e ldquonatildeo-serrdquo satildeo o mesmo e natildeo o mesmo como Parmecircni-des afirma em DK 6 5-6 Necessariamente o caminho que pensa οὐκ ἔστιν leva ao processo de contradiccedilatildeo (μὴ εἶναι) e a natildeo conclusatildeo do caminho (ἀνυστόν) natildeo eacute evidente na expressatildeo pelo contraacuterio τό μὴ ἐὸν parece uma negaccedilatildeo comum como qualquer outra poreacutem natildeo o eacute por isso eacute um saber destinado ao saacutebio e natildeo aos mortais porque eacute um saber fruto de uma reflexatildeo

34 DE VOLTA AOS VERSOS 3 E 4

Penso que podemos agora voltar ao verso 23 ao nosso segundo he-mistiacutequio onde aparece a expressatildeo μὴ εἶναι da qual jaacute temos a semacircntica Podemos entatildeo reconstruir ldquoos uacutenicos caminhos de inqueacuterito a pensar satildeo

por um lado a pensar que [ldquoArdquo] e tambeacutem a pensar que οὐκ ἔστι μὴ εἶναι este eacute caminho de persuasatildeo pois verdade acompanha e

por outro lado a pensar que ldquonatildeo eacuterdquo e tambeacutem a pensar que eacute necessariamente um percurso de pensamento contraditoacuterio porque eacute um caminho ldquoimpossiacutevelrdquo (παναπευθέα) pois o pensamento do ldquonatildeo enterdquo natildeo pode ser completado

O οὐκ ἔστι do verso 3 parece ser diferente do οὐκ ἔστιν do verso 5 Enquanto no 5 ele eacute quase que o nome do caminho (talvez uma simplificaccedilatildeo didaacutetica) no 3 parece significar simplesmente ldquonatildeo eacuterdquo em sentido comum

29 Estaacute aqui uma semente do socratismo

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predicativo De fato esse eacute o caminho da persuasatildeo e portanto eacute o caminho do pensamento natildeo-contraditoacuterio Ali a persuasatildeo era impossiacutevel pela con-tradiccedilatildeo aqui eacute possiacutevel pela natildeo-contradiccedilatildeo Sabemos que a expressatildeo μὴ εἶναι eacute a expressatildeo da contradiccedilatildeo suprema de sorte que a natildeo-contradiccedilatildeo eacute a negaccedilatildeo de μὴ εἶναι A traduccedilatildeo de οὐκ ἔστι fica faacutecil embora para a nossa sensibilidade possa parecer algo improacuteprio usar duas vezes οὐκ ἔστι de forma natildeo perfeitamente uniacutevoca a dois versos de distacircncia Logo para o segundo hemistiacutequio do v 3 mantenho esta traduccedilatildeo ldquonatildeo eacuterdquo em parte ambiacutegua para nossas exigecircncias mas que soa perfeitamente harmocircnica com o discurso par-menidiano [] ao pensar que [ldquoArdquo] e que natildeo eacute ldquocontradiccedilatildeordquo (μὴ εἶναι)

Acredito por fim que podemos abordar facilmente o ἔστιν do verso 3 que tanto fez e faz penar os estudiosos de Parmecircnides Aqui de novo a grandeza da questatildeo cosmoloacutegica envolvida ndash a coerecircncia eou a contradito-riedade do real ndash simplesmente torna tatildeo minuacutescula a questatildeo do sujeito de ἔστιν que ela quase desaparece Eu tenho a tendecircncia a pensar que a falta de sujeito seja uma simplificaccedilatildeo didaacutetica30 cuja irregularidade linguiacutestica ajuda na memorizaccedilatildeo31 Todavia afinal tomo partido e entro tambeacutem no quarto grupo daqueles listados por Cordero o sujeito deve ser extraiacutedo do predicado isolado pois ἔστιν produz o sujeito32 De qualquer forma o sentido filosoacutefico eacute preciso haacute um caminho de inqueacuterito ao pensar que eacute aquele que pensa o ldquoeacuterdquo esse mesmo caminho eacute aquele ao pensar que natildeo eacute (e natildeo pode ser33) ldquocon-tradiccedilatildeordquo Depois haacute um outro caminho aquele ao pensar que ldquonatildeo eacuterdquo que eacute o caminho ao pensar que leva necessariamente agrave contradiccedilatildeo O primeiro eacute o 30 Segundo o relato platocircnico no diaacutelogo Parmecircnides Zenatildeo acompanhado de seu mestre foi para as Panateneias com a finalidade de defender a filosofia de seu mestre esclarecendo com seu livro repleto de paradoxos as ideias parmenidianas Isso sugere que o poema natildeo expunha articuladamente a filosofia de Parmecircnides mas que constituiacutesse um proacute-memoacuteria com as ideias em sua forma essencial depois elaboradas nas aulas pessoais (KURFESS 2012)31 Eacute extraordinaacuterio como essa simplificaccedilatildeo didaacutetica continue ativa por um lado distorcendo entretanto por outro mantendo viva a mensagem parmenidiana em todas as escolas de ensino meacutedio onde se estuda filosofia vox populi Parmecircnides eacute o filoacutesofo que disse ldquoO que eacute eacute e o que natildeo eacute natildeo eacuterdquo Por outro lado o estrangeiro de Eleia no Sofista lembra outro verso e natildeo este32 Essa questatildeo natildeo aprofundada aqui natildeo possui relevacircncia filosoacutefica no argumento apresentado pode ter relevacircncia se se considera o tipo de reflexatildeo ou seja se se discute a ldquoexperiecircnciardquo do natildeo-ser e principalmente a experiecircncia concreta de Parmecircnides que talvez esteja ligada a praacuteticas de incubaccedilatildeo Nesse caso a dimensatildeo reflexiva adentra a dimensatildeo oniacuterica a qual possui outra sintaxe e onde um simples ἔστιν vale mais de mil articulaccedilotildees sintaacuteticas Natildeo sabemos com certeza dessas praacuteticas em Eleia contudo esse sentido preacute-sintaacutetico natildeo estaacute descartado inclusive alguns estudiosos entre os quais o proacuteprio Cordero atribuem ao ἔστιν o sentido de um grito como um Eureka Sugestotildees nesse sentido se encontram na minha dissertaccedilatildeo sobre Melisso (GALGANO 2010)33 A interpretaccedilatildeo modal eacute tambeacutem perfeitamente coerente aqui

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caminho que estabelece o discurso coerente (persuasivo) e o segundo natildeo leva a lugar nenhum e deve ser evitado Mas para que se saiba o que deve ser evi-tado eacute preciso que se conheccedila a impossibilidade do segundo caminho A fim de que se possa seguir o primeiro caminho eacute necessaacuterio saber que existe um outro sempre agrave espreita o qual parece oferecer a verdade mas que natildeo oferece uma verdade confiaacutevel que leva necessariamente agrave contradiccedilatildeo de pensamento e de expressatildeo linguiacutestica

4 O MEacuteTODO DA NAtildeO-CONTRADICcedilAtildeO

Parmecircnides provavelmente a partir de sugestotildees pitagoacutericas medita sobre a oposiccedilatildeo ao que existe e assim descobre o ldquonatildeo-serrdquo Descobre que ldquonatildeo serrdquo ou seja negar o ser negar o que haacute eacute de todo impossiacutevel (natildeo eacute possiacutevel completamente) Entende entatildeo que o ldquonatildeo-serrdquo essa impossibilidade eacute algo que a mente pensa julgando que esse pensamento leva por um caminho mas que na verdade ele descobre leva por outro caminho aquele que nunca che-ga a lugar nenhum Esse caminho que leva para lugar nenhum eacute o caminho dos mortais os quais confundem ser e natildeo ser No entanto o saacutebio deve saber distinguir por um lado o caminho do ldquoeacuterdquo que eacute o caminho do discurso natildeo contraditoacuterio e por outro lado o caminho do ldquonatildeo eacuterdquo que eacute o caminho do discurso que eacute tornado vatildeo pela contradiccedilatildeo

Parmecircnides descobre a contradiccedilatildeo (pela meditaccedilatildeo sobre o natildeo-ser) e percebe que ela eacute motivo de descaminho no discurso sobre o mundo Assim finalmente ele anuncia que a contradiccedilatildeo deve ser evitada A esse enunciado noacutes chamamos de princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo que aqui eacute aquele na versatildeo de Parmecircnides (depois a partir de Platatildeo e Aristoacuteteles haveraacute outras versotildees) Parmecircnides trabalha em acircmbito cosmoloacutegico e sua preocupaccedilatildeo ndash como os de seus colegas na eacutepoca ndash eacute com o mundo com a totalidade das coisas com os πάντα de seu proecircmio (128) Nesse acircmbito cosmoloacutegico descobre que haacute um princiacutepio do mundo pelo qual se daacute uma impossibilidade a contradiccedilatildeo A contradiccedilatildeo eacute um princiacutepio porque o que haacute (πάντα) enquanto todo escapa agrave negaccedilatildeo total Eis que a contradiccedilatildeo eacute princiacutepio tanto quanto a natildeo-contra-diccedilatildeo porque eacute a contradiccedilatildeo que permite a natildeo-contradiccedilatildeo Sem a noccedilatildeo de contradiccedilatildeo se anda com sentidos incertos como os mortais

O valor dessa afirmaccedilatildeo eacute historicamente inabalaacutevel porque Parmecircni-des partindo de um discurso sobre o mundo como que visto de fora por um observador (como Anaximandro via o mundo olhando seu pinax - cf ROS-

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SETTI 2013) alcanccedila um discurso que inclui o observador enquanto obser-vador estreando assim antes de tudo um discurso sobre os entes (ontologia) todos os entes incluindo os entes de pensamento (veja-se o famoso fragmento 3 onde se lecirc que pensar e ser satildeo o mesmo) Para ele o saacutebio natildeo eacute mais aquele que sabe soacute sobre as coisas externas ndash como o antigo xamatilde cuja figura indi-vidual se dissolve na mera intermediaccedilatildeo com o divino ndash poreacutem eacute tambeacutem aquele que consegue pensar sobre as coisas externas ou seja aquele que tem um domiacutenio cognitivo sobre os pensamentos de inqueacuterito e portanto sabe so-bre si mesmo Assim o saacutebio deve pensar por proacutepria conta e julgar pelo novo criteacuterio e natildeo pelo habitual discurso (κρῖναι δὲ λόγωι DK 75) ou seja natildeo deve julgar pelo discurso mas julgar o discurso porque agora o discurso enri-quecido de uma lei universal (a lei das αρχάι ἔστιν e οὐκ ἔστιν) possui uma medida de juiacutezo Parmecircnides amplia o mundo acrescentando ao mundo fiacutesico os mundos do pensamento e da linguagem Eis porque as αρχάι de Parmecircni-des sendo duas permanecem duas justamente eliminado uma delas deixando alguns criacuteticos enlouquecidos na discussatildeo sobre o monismo ou o dualismo de acordo com Parmecircnides o mundo eacute um todavia os sentidos nos enganam natildeo na pluralidade das coisas mas no argumento a respeito da pluralidade das coisas e principalmente ndash aspecto que ele discute explicitamente ndash a respeito do devir das coisas Haacute um princiacutepio que natildeo pode ser eliminado a contra-diccedilatildeo o qual eacute um princiacutepio de erro humano quando se elimina quando se desconsidera quando se faz de conta que natildeo existe a contradiccedilatildeo se instaura quando o princiacutepio eacute levado em conta a contradiccedilatildeo pode ser evitada

Eacute uma conceituaccedilatildeo esdruacutexula para noacutes tambeacutem porque temos que ter (a noccedilatildeo de) a contradiccedilatildeo para eliminar a contradiccedilatildeo temos que saber o que eacute contradiccedilatildeo para que possamos perceber quando o discurso eacute con-traditoacuterio Esses conceitos satildeo misteriosos ateacute agora e satildeo estranhas criaturas de nossas mentes Por exemplo a noccedilatildeo de ldquoimpossiacutevelrdquo obviamente (isto eacute para a nossa pragmaacutetica) natildeo se refere a nada de concreto no entanto temos essa noccedilatildeo e a usamos com o maacuteximo proveito outro exemplo a noccedilatildeo de ldquoinfinitordquo noccedilatildeo que natildeo se refere a algo pragmaticamente concreto mas que usamos igualmente com maacuteximo proveito O mesmo deve ser dito da noccedilatildeo de contradiccedilatildeo ou da noccedilatildeo de nada absoluto que usamos pragmaticamente com maior ou menor proveito

Parmecircnides encontra esse caminho e o expotildee Eacute um caminho assom-broso anti-intuitivo mas incontestaacutevel Dessa forma natildeo eacute de estranhar se a soluccedilatildeo platocircnica eacute a eliminaccedilatildeo fiacutesica da noccedilatildeo de nada absoluto (o par-

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riciacutedio) com sucessivo ldquoadeusrdquo34 achando de tecirc-lo ultrapassado Mas o nada absoluto enquanto noccedilatildeo contraditoacuteria permanece Assim como permane-ce a explicaccedilatildeo defeituosa do devir o qual assim como o conhecemos uma passagem do nada ao ser no nascimento e do ser ao nada no perecimento estaacute mal explicado Daqui por diante os comentaacuterios filosoacuteficos possiacuteveis satildeo inuacutemeros por conseguinte paro meu estudo neste ponto e proponho a versatildeo do fragmento 2 segundo a conceituaccedilatildeo apresentada ateacute aqui alterando de pouco a excelente versatildeo baacutesica de Cavalcante de Souza

Pois bem eu te direi e tu recebe a palavra que ouviste

os uacutenicos caminhos de inqueacuterito que satildeo a pensar

o primeiro que eacute e portanto que natildeo eacute (o caminho da) contradiccedilatildeo

de persuasatildeo eacute o caminho (pois agrave verdade acompanha)

o outro que natildeo eacute e portanto que eacute necessariamente (o caminho da) contradiccedilatildeo

este entatildeo eu te digo eacute atalho de todo incriacutevel

pois nem conhecerias o que natildeo eacute (pois natildeo eacute exequiacutevel)

nem o dirias

GALGANO N S Non-being in Parmenides of Elea Transformaccedilatildeo Mariacutelia v 41 n 2 p 9-36 AbrJun 2018

ABSTRACT In fragment DK 28 B 2 of his poem Parmenides presents his method for distinguishing true persuasion from the lack of true persuasion His famous proposal of these two ways of thinking form a complex statement of a system that intends to guarantee the veracity of statements in order to obtain reliable discourse the only discourse capable of true persuasion The present paper shows that the central role in Parmenidian argumentation is attributed to non-being a notion derived from a reflection on the impossibility of the negation of being Thus the whole fragment is interpreted in terms of this central notion We show that Parmenides discovered the impossibility of negation which we now call lsquocontradictionrsquo and that he articulated the means for avoiding contradiction in thought and discourse a rule which today we call the principle of non-contradiction The study presented here is a detailed investigation of the notion of non-being in the DK 28 B 2 fragment and includes a new translation of it

KEYWORDS Parmenides Non-being Non-contradiction Eleatism Parricide

34 Platatildeo Soph 258e7-259a1 ἡμεῖς γὰρ περὶ μὲν ἐναντίου τινὸς αὐτῷ χαίρειν πάλαι λέγομεν εἴτrsquo ἔστιν εἴτε μή λόγον ἔχον ἢ καὶ παντάπασιν ἄλογον

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mais radical expressatildeo da aporia eleaacutetica se encontra em Melisso Com nossas palavras atuais e com nossas noccedilotildees podemos expressaacute-la nestes termos se de um lado natildeo-ser eacute a negaccedilatildeo absoluta do ser (natildeo a negaccedilatildeo do ser absoluto mas a negaccedilatildeo absoluta do ser) fica impossiacutevel sustentar a explicaccedilatildeo comum do fenocircmeno que noacutes chamamos devir o qual consiste em asserir que as coisas nascem e morrem que tudo se transforma que tudo passa a ser o que natildeo era e deixa de ser o que era A posta em jogo explicitada pela noccedilatildeo criacutetica de ldquonatildeo-serrdquo eacute simplesmente toda a estrutura da nossa visatildeo de mundo Por isso constitui um problema genuinamente filosoacutefico que absorveu as atenccedilotildees e os esforccedilos dos grandes filoacutesofos ao longo da histoacuteria do pensamento ocidental

2 O TEMA DO POEMA

Os cerca de 160 versos do poema compotildeem atualmente 19 fragmen-tos reconstruiacutedos a partir de citaccedilotildees No primeiro fragmento ao longo dos primeiros 27 versos um cenaacuterio didaacutetico eacute apresentado um jovem aprendiz (embora jaacute preparado em sabedoria) eacute levado por um carro divino orientado por deusas diante de uma deusa anocircnima a qual seraacute sua mestra de sabedoria e ateacute mesmo eu diria com Cordero (1990) mestra de filosofia se por filosofia entendemos a dedicaccedilatildeo a qualquer saber a todo o saber Com efeito logo na chegada do jovem aprendiz depois das saudaccedilotildees a deusa apresenta o progra-ma de aprendizagem o primeiro autecircntico iacutendice programaacutetico (ROSSETTI 2010) de que se tem notiacutecia Ela diz

Eacute necessaacuterio que tu aprendas tudotanto a mente firme que vem da verdade bem conexaquanto a opiniatildeo dos mortais nos quais natildeo se encontra certeza verdadeira2

No entanto tambeacutem isto aprenderaacutes como as aparecircnciasdeviam validamente ser tudo por tudo atravessando3

Vamos desconsiderar aqui os uacuteltimos dois versos os quais aleacutem de ter traduccedilatildeo difiacutecil e contestada reciprocamente nas muitas versotildees dos vaacute-

2 A justificaccedilatildeo dessa traduccedilatildeo bastante diferente daquela proposta por Diels e por todos os demais criacuteticos se encontra em Galgano (2012)3 Parmecircnides (DK 28 128-32) χρεὼ δέ σε πάντα πυθέσθαι ἠμὲν Ἀληθείης εὐκυκλέος ἀτρεμὲς ἦτορ ἠδὲ βροτῶν δόξας ταῖς οὐκ ἔνι πίστις ἀληθής ἀλλrsquo ἔμπης καὶ ταῦτα μαθήσεαι ὡς τὰ δοκοῦντα χρῆν δοκίμως εἶναι διὰ παντὸς πάντα περῶντα A traduccedilatildeo dos primeiros trecircs versos (128-30) eacute minha a traduccedilatildeo dos uacuteltimos dois (131-2) eacute de Cavalcante de Souza (1978 p 141)

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rios criacuteticos parecem referir-se agrave descriccedilatildeo do mundo dos fenocircmenos par-te do poema de que natildeo trataremos aqui Vamos examinar apenas os trecircs versos anteriores No primeiro em sua segunda metade a deusa anocircnima anuncia ao disciacutepulo que ele iraacute aprender tudo (πάντα)4 tanto a mente firme fruto da verdade bem conexa quanto as opiniotildees dos mortais onde as certezas natildeo satildeo verdadeiras As duas afirmaccedilotildees satildeo precedidas pelas partiacuteculas correlativas ἠμὲνhellip ἠδὲ que tecircm significado natildeo propriamente adversativo mas antiteacutetico (SMYTH 1956 p 644) e tecircm como traduccedilatildeo ldquode fato por um lado hellip de fato por outro ladordquo (DENNISTON 1954 p 287) A antiacutetese se refere a dois tipos de estados cognitivos antiteacuteticos cada um com sua respectiva qualificaccedilatildeo por um lado a mente firme resultado da verdade bem conexa por outro lado as opiniotildees dos mortais que aqui natildeo significam um conjunto de conhecimentos mas uma manei-ra de pensar a qual natildeo possui uma certeza verdadeira Se consideramos a estrutura antiteacutetica podemos ver que a mente firme eacute antiacutetese de ldquoopiniatildeo dos mortaisrdquo enquanto ldquoverdade bem conexardquo estaacute em antiacutetese com ldquofalta de certeza verdadeirardquo O que Parmecircnides traz em questatildeo eacute aproxima-damente aquilo que hoje chamariacuteamos de criteriologia ou seja o estudo daquilo que faz com que uma proposiccedilatildeo possa ser tida como verdadeira Ele o faz agrave sua maneira arcaica sem uma terminologia pronta disponiacutevel e com pouquiacutessimo questionamento jaacute culturalmente assentado sobre esse tema Grosso modo tradicionalmente se entendia com as devidas exceccedilotildees que os deuses falavam a verdade de forma que o relato miacutetico embora pudesse ateacute parecer inverossiacutemil era tido por verdadeiro (como atualmen-te ainda acontece com muitos livros considerados sagrados pelas religiotildees atuais) Todavia uma criacutetica ferrenha aos relatos miacuteticos e aos cultos re-ligiosos jaacute estava em ato no pensamento dos jocircnicos5 e Parmecircnides outra coisa natildeo faz senatildeo dar um passo agrave frente nesse caminho

A visatildeo criacutetica de Parmecircnides eacute primorosa De fato ele potildee em evidecircn-cia a partir da constataccedilatildeo de que haacute ldquoverdadesrdquo natildeo verdadeiras (Xenoacutefanes)

4 O programa de aprendizagem oferecido por Parmecircnides por ser o mais avanccedilado da eacutepoca tem como puacuteblico-alvo pessoas jaacute de elevada cultura 5 Por exemplo Xenoacutefanes em DK 21 B 14 ldquoMas os mortais acreditam que os deuses satildeo gerados que como eles se vestem e tecircm voz e corpordquo em DK 21 B 15 ldquoMas se matildeos tivessem os bois os cavalos e os leotildees e pudessem com as matildeos desenhar e criar obras como os homens os cavalos semelhantes aos cavalos os bois semelhantes aos bois desenhariam as formas dos deuses e os corpos fariam tais quais eles proacuteprios tecircmrdquo e em DK 21 B 16 ldquoOs egiacutepcios dizem que os deuses tecircm nariz chato e satildeo negros os traacutecios que eles tecircm olhos verdes e cabelos ruivosrdquo (CAVALCANTE DE SOUZA 1978 traduccedilatildeo de A L Prado)

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que aquilo que eacute chamado de ldquoverdaderdquo (relato verdadeiro na concepccedilatildeo arcai-ca da noccedilatildeo da verdade) eacute antes de tudo um fato psicoloacutegico subjetivo eacute uma convicccedilatildeo uma certeza subjetiva um ldquoestar persuadido derdquo Dada essa con-vicccedilatildeo do ponto de vista subjetivo ela eacute sempre uma verdade mas olhando as coisas de fora eacute possiacutevel perceber que haacute convicccedilotildees que natildeo satildeo verdadeiras (exemplo as vaacuterias concepccedilotildees miacuteticas a respeito do todo ou dos deuses) Des-se modo a convicccedilatildeo subjetiva passa a natildeo ser mais criteacuterio suficiente de verda-de eacute necessaacuterio um meacutetodo que garanta agrave mente a certeza da convicccedilatildeo agora colocada em duacutevida pela observaccedilatildeo do comportamento cognitivo das vaacuterias culturas (Xenoacutefanes) Em outras palavras uma vez observado que a convicccedilatildeo subjetiva natildeo eacute suficiente para garantir a veracidade daquela proposiccedilatildeo eacute ne-cessaacuterio encontrar um outro meacutetodo que garanta essa veracidade6

Observemos pois o status questionis proposto por Parmecircnides (1) a mente em geral tem convicccedilotildees7 (2) poreacutem agora sabemos que estar con-vencido de algo natildeo eacute suficiente para garantir a verdade daquela convicccedilatildeo logo natildeo sabemos se as convicccedilotildees da mente satildeo verdadeiras ou natildeo (3) haacute um meacutetodo objetivo que garante a verdade das convicccedilotildees (que satildeo sempre subjetivas) (4) depois da aplicaccedilatildeo do meacutetodo sabemos que haacute convicccedilotildees verdadeiras e convicccedilotildees natildeo verdadeiras as primeiras deixam a mente firme e sem a oscilaccedilatildeo da duacutevida as segundas satildeo aquelas que submetidas ao meacute-todo deixam a mente em oscilaccedilatildeo (satildeo as opiniotildees dos mortais) Podemos assim reler a expressatildeo da deusa ldquoEacute necessaacuterio que tu aprendas (a respeito do) lsquotudorsquo por um lado a mente firme que vem da verdade bem conexa

6 Que Parmecircnides em sua criacutetica esteja referindo-se ao pensamento tradicional pode ser inferido pelo todo do poema Mas haacute passagens aqui natildeo discutidas as quais evidenciam essa criacutetica O elemento mais importante parece-me eacute que ele se refere aos brotoi os mortais os quais tecircm opiniotildees (crenccedilas nos relatos miacuteticos especificamente aqueles voltados a explicar os fatos naturais) nas quais falta a certeza confiaacutevel Quem satildeo os brotoi Embora haja divergecircncias e alguns queiram ver nos brotoi figuras relacionadas a pensadores supostamente antagonistas (por exemplo os heraclitianos) haacute uma passagem que nos faz entender claramente que se trata de uma criacutetica ao pensamento miacutetico tradicional No fr 7 a deusa convida o disciacutepulo a natildeo permitir que um ethos polypeirov o haacutebito de muita experiecircncia o obrigue a permanecer no caminho errado O que eacute ethos polypeirov Trata-se de um haacutebito de pensamento que se adquire pela repetida experiecircncia (cultural) Um tal haacutebito por razotildees cronoloacutegicas natildeo pode ser proveniente da forma mentis proacutepria das recentes conquistas da ciecircncia jocircnica ou daquela pitagoacuterica recentes demais para chegar a serem consideradas uma maneira de pensar assentada isto eacute um ethos polypeiron um haacutebito de muita experiecircncia Afora essas correntes natildeo haacute outros candidatos de pensamento ldquonatildeo miacuteticordquo que podem ser alvo da criacutetica de Parmecircnides Por conseguinte como objeto das criacuteticas resta somente o pensamento miacutetico tradicional isto eacute aqueles relatos que de uma maneira ou de outra tentavam explicar o mundo o que coloca Parmecircnides em perfeita continuidade com seu mestre Xenoacutefanes7 Para a noccedilatildeo de ldquomenterdquo em Parmecircnides ver Galgano (2016 2017) parte primeira e segunda

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(aquela que passou pelo meacutetodo) e por outro as opiniotildees dos mortais nas quais a convicccedilatildeo natildeo eacute verificadardquo

3 OS CAMINHOS

Apoacutes a explicitaccedilatildeo do programa de ensino a deusa comeccedila a explicar seu meacutetodo de verificaccedilatildeo Eacute aqui que nos deteremos mais porque eacute neste ponto que estreia pela primeira vez a noccedilatildeo de natildeo-ser Trata-se do fr DK 28 B 2 que ora passamos a estudar e que em grego eacute assim

εἰ δrsquo ἄγrsquo ἐγὼν ἐρέω κόμισαι δὲ σὺ μῦθον ἀκούσας

αἵπερ ὁδοὶ μοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαιἡ μὲν ὅπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναιΠειθοῦς ἐστι κέλευθος (Ἀληθείηι γὰρ ὀπηδεῖ)ἡ δrsquo ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναιτὴν δή τοι φράζω παναπευθέα ἔμμεν ἀταρπόνοὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε μὴ ἐὸν (οὐ γὰρ ἀνυστόν)οὔτε φράσαις

31 OS VERSOS 1 E 2

Vejamos os primeiros dois versos do fragmentoEi drsquoaacutegrsquoegograven ereacuteo koacutemisai degrave sugrave mucircthon akouacutesas

haacuteiper hodoigrave moucircnai dizeacutesios eisi noecircsai

Pois bem eu te direi e tu recebe a palavra que ouviste

os uacutenicos caminhos de inqueacuterito que satildeo a pensar

Sua importacircncia eacute estrutural dentro do poema a deusa anuncia que vai dizer algo importante e pede ao kouros para preparar-se pois haacute caminhos especiacuteficos para o pensar investigativo e satildeo somente alguns (moucircnai depois saberemos que satildeo dois)

Houve muita discussatildeo sobre o sentido de νοῆσαι principalmente so-bre se ele eacute ativo ou passivo Aqui noesai se refere a um pensar investigativo o

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qual eacute necessariamente ativo pois uma investigaccedilatildeo passiva eacute um dos oximo-ros mais esdruacutexulos imaginaacuteveis O sentido eacute os caminhos que o pensar segue quando se dedica agrave investigaccedilatildeo satildeo aqueles uacutenicos que descreveraacute a seguir Uma outra maneira de traduzir pode ser esta o pensar entre todos os cami-nhos possiacuteveis segue estes uacutenicos em sua atividade de investigar Portanto a traduccedilatildeo de Cavalcante de Souza soa oacutetima a pensarhellip que

Vejamos na sequecircncia a coordenaccedilatildeo com os versos 3 e 5 que apresen-tam os correlativos comeccedilando pela construccedilatildeo

Pois bem eu te direi e tu recebe a palavra que ouviste

que os uacutenicos caminhos de inqueacuterito satildeo(verso 2 + verso 3) a pensar que eacute e que portanto natildeo eacute natildeo ser

(verso 2 + verso 5) a pensar que natildeo eacute e portanto que eacute preciso natildeo ser

A construccedilatildeo mostra que o sentido do noein (νοῆσαι) nesse caso eacute ativo Haacute uma atividade especiacutefica da mente Nessa atividade a mente se en-caminha por vaacuterios rumos de investigaccedilatildeo dos quais somente dois parecem ser viaacuteveis ou parecem ter sentido a investigaccedilatildeo a pensar que eacute e a investigaccedilatildeo a pensar que natildeo eacute

Que nos diz esse verso 2 Que Parmecircnides se pocircs a refletir sobre a mente humana embora ele natildeo tivesse esse conceito de ldquomenterdquo como noacutes a entendemos Essa reflexatildeo foi fatal e aos poucos veremos por quecirc Por en-quanto podemos sustentar que o ponto de partida de Parmecircnides eacute reflexivo Sua reflexatildeo verteu sobre o funcionamento da mente mais especificamente sobre que tipo de funcionamento leva agrave persuasatildeo ou leva a conclusotildees insatis-fatoacuterias do ponto de vista da explicaccedilatildeo do mundo

32 OS VERSOS 3 E 4he megraven hoacutepos eacutestin te kaigrave os eacutesti megrave eicircnai

peithoucircs esti keacuteleuthos (aletheiacuteei gagraver opedeicirc)

o primeiro que eacute e portanto que natildeo eacute natildeo-ser

de persuasatildeo eacute o caminho (pois agrave verdade acompanha)

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O verso 3 eacute provavelmente o mais estudado de Parmecircnides merece Entretanto vejamos primeiro o verso 4 Ali notamos a presenccedila de uma palavra marcadamente psicoloacutegica πειθοῦς persuasatildeo Parmecircnides percebe que a persuasatildeo eacute um fato da ldquomenterdquo conceito este uacuteltimo que lhe eacute estra-nho mas que ele consegue identificar descrevendo as sensaccedilotildees mentais8 E identifica duas persuasotildees uma acompanhada da verdade e outra na qual o convencimento natildeo eacute acompanhado da verdadeira confianccedila Agrave primeira ele chama de πειθός que gera a sensaccedilatildeo de firmeza na mente (ἀτρεμὲς ἦτορ DK 1 29) e acompanha a verdade Agrave segunda ele chama de ldquoopiniotildees dos mortaisrdquo na qual natildeo haacute uma πίστις ἀληθής (DK 1 30) um convenci-mento acompanhado de verdade

Essa distinccedilatildeo nos mostra agudeza da observaccedilatildeo psicoloacutegica A certeza pode ser de dois tipos ou eacute uma certeza que deixa espaccedilo a duacutevidas ou eacute uma certeza indubitaacutevel Isso expotildee um problema gnosioloacutegico posto que se tem uma convicccedilatildeo (e todo homem tem convicccedilotildees) como saber se essa convicccedilatildeo corresponde agrave verdade ou eacute uma convicccedilatildeo sem fundamento e sem correspon-decircncia com a realidade Natildeo eacute possiacutevel sabecirc-lo A mente mostra apenas sua convicccedilatildeo subjetiva e para saber se tal convicccedilatildeo eacute acompanhada de verdade ou se natildeo tem feacute verdadeira eacute preciso recorrer a algo extramental eacute necessaacuteria uma prova externa porque a mente por si soacute natildeo consegue identificar uma sua convicccedilatildeo proacutepria como verdadeira ou falsa

A diferenciaccedilatildeo de dois tipos de persuasatildeo no poema eacute clara9 e se a ordem dos fragmentos de Diels estiver correta essa diferenciaccedilatildeo pertence agrave parte propedecircutica pois natildeo se fala dela na parte do eon no fr 8 quando a ordem do mundo eacute explicada com exceccedilatildeo do final do discurso da deusa onde ela anuncia o encerramento de seu discurso confiaacutevel (πιστὸν λόγον) Isso significa que esse tema faz parte do instrumental argumentativo preacutevio que conduziraacute agrave sucessiva anaacutelise cosmoloacutegica Enfim nos versos 3-4 uma proclamaccedilatildeo anteriormente anunciada (vv 1-2) eacute agora enunciada (vv 3-4) em seu primeiro caminho Eacute enunciado o caminho que pensa o inqueacuterito com persuasatildeo verdadeira natildeo aquele pensar no qual natildeo haacute convicccedilatildeo ver-

8 A discussatildeo completa estaacute em Galgano (2012)9 Embora nesse fragmento a palavra persuasatildeo natildeo apareccedila associada aos ldquomortaisrdquo em outras partes essa ligaccedilatildeo eacute clara ou ateacute mesmo literal como em 8 38-39 onde se frisa que ldquoseratildeo nomes todas as coisas que os mortais determinaram persuadidos de ser verdaderdquo (τῶι πάντrsquo ὄνομ(α) ἔσται ὅσσα βροτοὶ κατέθεντο πεποιθότες εἶναι ἀληθῆ) Note-se πεποιθότες atribuiacutedo aos mortais particiacutepio perfeito de πείθω

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dadeira mas aquele caminho enfim que anda com a verdade Vamos agora voltar ao verso 3

Natildeo se pode isolar o verso 3 ἡ μὲν ὅπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι do anterior verso 2 (e nem do seu correlativo verso 5) e portanto natildeo se pode esquecer que trata de um caminho ou seja de um elemento di-nacircmico No entanto a primeira coisa que salta aos olhos eacute que todas as noccedilotildees envolvidas satildeo estaacuteticas e natildeo haacute nenhum elemento dinacircmico ou sequencial ou de qualquer natureza minimamente motora O sentido desse ponto de vista eacute que o pensar o ldquoἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναιrdquo natildeo eacute o pensar de um momento mas um pensar que segue por um caminho Ou seja significa que no percurso seguido pelo pensar para que o inqueacuterito seja de verdadeira per-suasatildeo o ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι deve ser constante Essa noccedilatildeo eacute estrutural o caminho de inqueacuterito a pensar deve conter uma constante vaacutelida em qualquer momento e passagem do caminho O fato de ser a afirmaccedilatildeo de uma constante (estaacutetica) numa dimensatildeo de caminho (dinacircmica) reforccedila a ideia de algo externo e de natureza fixa a ser aplicado a algo de natureza pro-cessual ou seja eacute uma lei porque a noccedilatildeo de lei expressa tambeacutem as relaccedilotildees fixas entre as dinacircmicas de elementos de um ou mais processos

Vamos observar a estrutura sintaacutetica do verso mais de perto ἡ μὲν ὅπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι Depois da conjunccedilatildeo correlativa ἡ μὲν ndash que se coadunaraacute com o ἡ δὲ de 25 (ἡ δrsquo ὡς) ndash o verso eacute constituiacutedo de duas unidades sintaacuteticas autocircnomas mas subordinadas ao verso 2 pelos pronomes ὅπως e ὡς ademais as duas unidades estatildeo ligadas pela conjunccedilatildeo τε καὶ Vejamos a construccedilatildeo sintaacutetica sem entrar ainda na semacircntica ou seja sem traduzir os termos ἔστιν οὐκ ἔστι e μὴ εἶναι

por um lado (ἡ μὲν) que ldquoArdquo e tambeacutem (τε καὶ) que ldquoBrdquo

A conjunccedilatildeo τε καὶ (e tambeacutem que) indica que temos duas oraccedilotildees as quais pela estrutura de todo o fragmento devem ser completas Devem porque natildeo parece que o sejam vejamo-las separadamente e sem os pronomes

A ἔστιν

B οὐκ ἔστι μὴ εἶναι

A primeira oraccedilatildeo eacute sem sujeito e sem objeto sendo constituiacuteda somen-te pelo verbo a segunda eacute igualmente sem sujeito contudo tem um objeto

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direto A primeira eacute afirmativa enquanto a segunda eacute negativa entretanto a segunda nega uma segunda negaccedilatildeo contida no objeto eacute negaccedilatildeo de negaccedilatildeo

Conjunccedilatildeo correlativa

Pronome relativo sujeito verbo objeto

Verso 23 ἡ μὲνOraccedilatildeo 1 ὅπως mdash ἔστιν mdashOraccedilatildeo 2 ὡς mdash οὐκ ἔστι μὴ εἶναι

Posto que em grego antigo o sujeito ou eacute expliacutecito ou eacute subentendido o grande misteacuterio dessas palavras eacute exatamente que o sujeito natildeo aparece nem expliacutecito e nem subentendido constituindo uma autecircntica anomalia literaacuteria Natildeo conveacutem nesta ocasiatildeo reconstruir a discussatildeo dos vaacuterios estudiosos em relaccedilatildeo a essa falta de nosso lado enfrentaremos a questatildeo por outras provi-decircncias Por enquanto vamos apresentar o resumo das possibilidades de solu-ccedilatildeo reportadas por Cordero (2005) Para o estudioso haacute quatro possibilidades para explicar a anomalia a saber ldquoa) Trata-se de um erro de transmissatildeo de texto se assim for este deve ser corrigido introduzindo o sujeito ausente b) haacute um sujeito conceitual impliacutecito que deve ser buscado no resto do Poema c) natildeo haacute nenhum sujeito possiacutevel e d) o sujeito deve ser extraiacutedo do predicado isolado pois o eacutestin ldquoproduzrdquo o sujeito As quatro possibilidades encontraram defensoresrdquo (CORDERO 2005 p 63)

Natildeo penso que seja o caso de tomar partido agora faremos isso so-mente no fim da nossa anaacutelise por enquanto vamos prosseguir com as nos-sas consideraccedilotildees A primeira delas eacute que as duas oraccedilotildees natildeo satildeo simples-mente conjuntas elas satildeo mais que conjuntas porque reuacutenem uma uacutenica noccedilatildeo em trecircs variaccedilotildees ἔστιν οὐκ ἔστι e μὴ εἶναι satildeo variaccedilotildees do campo semacircntico de εἰμί o verbo ser Seriam simplesmente conjuntas se apresen-tassem verbos e objetos diretos diferentes Naturalmente uma construccedilatildeo desse tipo seria possiacutevel10 e apresentaria duas oraccedilotildees sintaticamente inde-pendentes e conjuntas Poreacutem no nosso caso a construccedilatildeo eacute feita com trecircs formas do mesmo verbo que muito dificilmente tecircm uma conexatildeo apenas conjuntiva Ademais a primeira oraccedilatildeo eacute afirmativa e a segunda duplamente negativa o que faz pensar na estrutura da citaccedilatildeo platocircnica (Soph 237a8 DK B 7 1) a qual natildeo eacute sintaticamente igual mas muito semelhante que nunca os natildeo entes sejam onde tambeacutem uma dupla negaccedilatildeo recusa existecircncia

10 Por exemplo ldquoos uacutenicos caminhos de inqueacuterito a pensar por um lado que examina e que natildeo pretende natildeo avaliarrdquo

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aos natildeo entes implicando apenas variaccedilotildees formais de εἶναι dessa vez com o particiacutepio no neutro plural τὰ ἐοντα que natildeo estaacute presente no fr 211 Esses elementos precisam ser investigados

Vamos comeccedilar pela conjunccedilatildeo12 τε καὶ em geral traduzida por sim-ples conjunccedilatildeo pelos criacuteticos assume aqui um valor mais forte O fato de que seja uma conjunccedilatildeo elimina de iniacutecio a interpretaccedilatildeo do verso 3 como uma disjunccedilatildeo13 Mais que uma conjunccedilatildeo as duas subordinadas satildeo ligadas por uma conexatildeo vital na qual o τε καὶ no sentido de ldquotambeacutemrdquo ou ateacute mesmo ldquoambosrdquo representa a conjunccedilatildeo de uma segunda parte reforccedilando a primeira natildeo porque explica mas simplesmente porque as duas fazem parte de um todo como dois lados de uma mesma moeda14

Vamos deixar de lado por enquanto o primeiro hemistiacutequio e con-siderar somente o segundo O segundo hemistiacutequio de 3 soa assim os uacutenicos caminhos de inqueacuterito a pensar satildeo por um lado que [ldquoArdquo] e tambeacutem que natildeo eacute natildeo-ser O fato singular eacute que aleacutem da repeticcedilatildeo da negaccedilatildeo (natildeohellip natildeo) tem-se tambeacutem a repeticcedilatildeo do verbo εἰμί (eacutehellip ser) Obviamente natildeo se tra-ta de uma ditografia e portanto teremos que diferenciar o primeiro negar (οὐκ ἔστι natildeo eacute) do segundo negar (μὴ εἶναι natildeo-ser) O primeiro negar eacute feito pela partiacutecula negativa οὐκ e o presente do indicativo ἔστι A traduccedilatildeo simples e direta soa natildeo eacute Natildeo parece haver dificuldade quanto agrave traduccedilatildeo em si restando apenas o problema da falta de sujeito Se ldquonatildeo eacuterdquo estaacute certo resta descobrir a que se refere essa negaccedilatildeo e natildeo haacute outro candidato que o seguinte μὴ εἶναι

11 Eacute possiacutevel mostrar (e o fazemos em sede apropriada) que a citaccedilatildeo platocircnica (v 7 2) tem a mesma estrutura do v 2 312 Humbert (1954 p 370) ldquoDrsquoailleurs drsquoune faccedilon geacuteneacuterale une certaine indeacutetermination inseacuteparable de la poeacutesie qui exprime moins qursquoelle ne suggegravere est peu favorable agrave un emploi rigoreux et preacutecis des particulesrdquo13 Alguns interpretam de fato como disjunccedilatildeo ex Mansfeld (1960) em Meijer (1997) p 100 et passim O argumento de Mansfeld parte da consideraccedilatildeo de que o silogismo disjuntivo natildeo precisa de sujeito (aqui o argumento de Parmecircnides natildeo precisaria de um sujeito para o esti) A (ἔστιν) ou B (οὐκ ἔστι μὴ εἶναι)14 Aparentemente (pelo que pude descobrir) natildeo haacute estudos atuais completos sobre as partiacuteculas em grego antigo e parece que o uacuteltimo foi de Denniston (1954) De laacute para caacute as partiacuteculas foram estudadas por trabalhos especiacuteficos e separadamente por aacutereas literaacuterias (eacutepica trageacutedia etc) deixando uma lacuna na poesia onde o uso eacute muito menos rigoroso e oferece maiores dificuldades de interpretaccedilatildeo Um status questionis da problemaacutetica de te kai possivelmente se encontra em um paper do qual por enquanto soacute consegui o abstract Bonifazi (2012)

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Natildeo parece haver atestaccedilatildeo de μὴ εἶναι na poesia eacutepica Pela pesquisa no TLG as primeiras atestaccedilotildees parecem ser da eacutepoca de Parmecircnides se natildeo sucessivas sendo que nesse caso pode ter sido ele o primeiro a usar tal expres-satildeo Mas aguardando resultados filoloacutegicos mais precisos podemos assegurar que a noccedilatildeo de εἶναι contida no segundo negar natildeo deve ser a mesma do primeiro sob pena de gerar uma contradiccedilatildeo de termos incompreensiacutevel mas que justamente nesse sentido aticcedilou a fantasia de muitos criacuteticos Penso por exemplo naqueles que quiseram ver as duas negaccedilotildees apenas no sentido gra-matical15 e acabaram achando o argumento de Parmecircnides fraco ou tautoloacutegi-co quando natildeo inconsistente No entanto o primeiro negar (οὐκ ἔστι) quer negar um outro negar (μὴ) especiacutefico aquele que nega εἶναι

Vou repetir a sequecircncia porque por um lado a accedilatildeo do primeiro negar eacute predicativa e por outro lado a noccedilatildeo predicada eacute maacutexima e acaba por gerar um pequeno desconforto argumentativo O primeiro negar nega um segundo negar aquele que nega εἶναι Ou seja o segundo negar eacute um ldquonegar algo espe-ciacutefico (εἶναι)rdquo O conceito se torna claro se se manteacutem presente o sentido psi-coloacutegico muito mais que o gnosioloacutegico da expressatildeo parmenidiana Negar algo eacute o que fazem ambas as expressotildees tanto do primeiro quanto do segundo negar Todavia o segundo negar eacute a accedilatildeo especiacutefica de negaccedilatildeo de εἶναι a qual eacute uma accedilatildeo da mente eacute um comportamento concreto o comportamento mental de negar εἶναι Parmecircnides argumenta que o caminho persuasivo eacute aquele que nega que se possa ter o comportamento mental especiacutefico de negar εἶναι natildeo eacute possiacutevel (ter o comportamento mental de) negar εἶναι

Esse eacute um ponto que gerou muita confusatildeo Parmecircnides natildeo nega que se possa negar como se ele proacuteprio ao afirmar que o natildeo-ser natildeo eacute estivesse cometendo o maior dos disparates autocontraditoacuterios Satildeo muitiacutessimos os que interpretam Parmecircnides dessa forma e que afinal acabam asseverando que Parmecircnides eacute o filosofo do ser (apenas) Parmecircnides usa gramaticalmente a negaccedilatildeo e tambeacutem a usa gnosiologicamente e epistemicamente Daacute para dizer mais daacute para dizer que ele usa a negaccedilatildeo de forma magistral como poucos souberam usar na histoacuteria da filosofia De fato o segundo hemistiacutequio asseve-ra que haacute um percurso mental que eacute persuasivo (v 4) quando natildeo segue μὴ εἶναι Mais uma vez o percurso mental de inqueacuterito eacute persuasivo quando natildeo

15 Por exemplo C Kahn cuja uacutenica conclusatildeo segundo sua leitura seria ldquoIf we restate Parmenidesrsquo claim in the modern formal mode it might run lsquom knows that prsquo entails lsquoprsquordquo (KAHN 2009 p 153-154)

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se comporta mentalmente negando εἶναι quando natildeo tem a atitude de negar εἶναι Resta descobrir o que eacute εἶναι

O termo εἶναι eacute um infinitivo Como se sabe o infinitivo eacute a expressatildeo verbal depauperada de todo sentido acessoacuterio a ponto que ldquo[c]rsquoest de cette fa-ccedilon neacutegative que lrsquoinfinitif a eacuteteacute deacutefini comme repreacutesentant lrsquoideacutee verbale nuerdquo (HUMBERT 1954 p 125) Os mais variados estudos natildeo conseguiram expli-car de forma convincente um sentido especiacutefico para o uso feito por Parmecircnides Por exemplo The verb ldquoberdquo in ancient Greek (KAHN 2003 passim) um dos estudos mais completos sobre o tema vecirc-se obrigado a atribuir a Parmecircnides um uso supostamente novo mas parece-me de forma improacutepria e desnecessaacuteria16 Eu penso que quando Parmecircnides quis utilizar um novo sentido inventou um novo termo como no caso de to eon (invenccedilatildeo na linha jaacute consolidada de subs-tantivar verbos no gecircnero neutro) Natildeo fez o mesmo com εἶναι e suas demais formas verbais razatildeo pela qual o sentido deve ser buscado nas acepccedilotildees tradicio-nais as quais satildeo muacuteltiplas e equiacutevocas como diraacute mais tarde Aristoacuteteles

No infinitivo εἶναι expressa a ideia geral do verbo num campo se-macircntico que vai desde ldquopresenccedilardquo ateacute a funccedilatildeo predicativa comum a muitas liacutenguas indo-europeias Creio que seja inuacutetil buscar um sentido preciso como ldquoexistirrdquo ou ldquoestar presente localmenterdquo ou outro εἶναι significa tudo isso principalmente porque eacute usado no infinitivo e como objeto Em portuguecircs a palavra que expressa com a mesma equivocidade a pluralidade de sentido numa riqueza proacutexima ao grego eacute o verbo ldquoserrdquo17 Parece-me portanto per-feitamente inuacutetil cercear o sentido a uma uacutenica acepccedilatildeo restriccedilatildeo que acaba gerando interpretaccedilotildees polecircmicas Ateacute mesmo para a acepccedilatildeo de ldquoexistirrdquo se construiacuteram criacuteticas a meu ver improacuteprias pelas quais se chega a discutir se Parmecircnides pensasse ou natildeo que seres natildeo existentes como quimeras e outros

16 Kahn extrai o sentido de εἶναι em Parmecircnides natildeo do uso que o eleata faz mas do contexto geral da mensagem parmenidiana Teoricamente seria um meacutetodo viaacutevel posto que se consiga entender corre-tamente a mensagem do filoacutesofo Na praacutetica no caso do poema de Parmecircnides que verte exatamente sobre εἶναι e seus derivados haacute um risco enorme ndash ao qual em minha visatildeo Kahn sucumbiu ndash de cair num petitio principii onde o sentido de εἶναι eacute extraiacutedo da mensagem filosoacutefica geral (Kahn o extrai de 129 que eacute o ldquoiacutendice parmenidianordquo e portanto poderia oferecer a ideia geral do poema) e por sua vez a mensagem filosoacutefica eacute obtida a partir do sentido de εἶναι Kahn acredita ter encontrado no sentido ldquoveritativordquo o novo uso que Parmecircnides faz de εἶναι17 Para εἰμί o Dicionaacuterio LSJ apresenta sete campos (de A a G) com 16 acepccedilotildees e mais vaacuterias suba-cepccedilotildees Para o verbo ldquoserrdquo o Dicionaacuterio Houaiss apresenta 19 acepccedilotildees das quais 14 verbais e 5 como substantivo as subacepccedilotildees satildeo exemplificadas mas natildeo classificadas

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seres mitoloacutegicos pudessem ser incluiacutedos na leitura predicamental18 Principal-mente eacute necessaacuterio manter a equivocidade do termo porque corresponde agrave forma mentis do autor e natildeo se devem exigir distinccedilotildees que natildeo eram processa-das por aquela cultura sob pena mais uma vez de atribuir aos antigos a nossa proacutepria forma mentis pecado fatal para um historiador da filosofia

Desse modo de iniacutecio a traduccedilatildeo de μὴ εἶναι com ldquonatildeo-serrdquo ateacute mes-mo por ser equiacutevoca (para a nossa sensibilidade) manteacutem a equivocidade proacute-pria da eacutepoca e da liacutengua da eacutepoca Posta entatildeo essa equivocidade precisamos saber se expressa um sentido filosoacutefico antes de tudo para a eacutepoca e depois para noacutes A comparaccedilatildeo de 23 οὐκ ἔστι μὴ εἶναι com 71 Οὐ δαμῇ εἶναι μὴ ἐόντα que eacute o testemunho de Platatildeo nos faz entender que nessas palavras natildeo soacute se encontra um sentido filosoacutefico mas ateacute mesmo o sentido principal da filosofia de Parmecircnides Retomando portanto a construccedilatildeo precisamos entender por que pensar o natildeo-ser (μὴ εἶναι) eacute algo que natildeo eacute possiacutevel ou que natildeo se deve fazer ou que simplesmente natildeo eacute (natildeo acontece) segundo a expressatildeo usada por Parmecircnides οὐκ ἔστι

Aleacutem da traduccedilatildeo simples e imediata haveria outras possibilidades de traduccedilatildeo19 essas variaccedilotildees podem ser interessantes para evidenciar nuances aqui e acolaacute contudo tendo a possibilidade de utilizar o verbo ldquoserrdquo num uso equiacutevoco proacuteximo do grego natildeo precisamos recorrer agrave circunlocuccedilotildees e pode-mos traduzir οὐκ ἔστι com ldquonatildeo eacuterdquo20 e μὴ εἶναι com ldquonatildeo-serrdquo Diz portanto o segundo hemistiacutequio

Os uacutenicos caminhos de inqueacuterito ao pensar satildeo

Por um lado [ldquoArdquo] e que natildeo eacute natildeo-ser

18 De novo Kahn (2009) que assinala ldquoTo take the philosophical objection first it is simply false to say that you cannot think or talk about (point out in speech phrazein) what does not exist And the falseness of this would be obvious to any Greek who reflected for a moment on the profusion of monsters and fantastic creatures in traditional poetry and myth from Pegasus to the children of Gaia with a hundred arms and fifty heads apiecerdquo (HESIOD THEOGONY 150 172) Mais agrave frente ressaltamos que exatamente na questatildeo filosoacutefica Kahn estaacute errado e Parmecircnides estaacute certo eacute impossiacutevel pensar e dizer o natildeo-ser19 Um outro caminho possiacutevel de traduccedilatildeo utilizado principalmente pelos autores de liacutengua inglesa por motivos idiossincraacutesicos da liacutengua eacute empregar uma expressatildeo cuja noccedilatildeo tambeacutem eacute ampliacutessima e equiacutevoca ldquocoisardquo Mas essa expressatildeo por ser um substantivo natildeo possui o aspecto dinacircmico que o verbo tem sendo assim necessaacuterio acrescentar o verbo ser portanto eacute possiacutevel traduzir com ldquoas coisas que satildeordquo Outra possibilidade eacute usar o pronome ldquoquerdquo em sentido predicativo em substituiccedilatildeo de coisa ou coisas Outra ainda eacute o pronome demonstrativo (aquilo isto) ou o indefinido (algo) com a mesma funccedilatildeo substitutiva de coisa(s) no sentido mais indefinido possiacutevel20 Laacute onde em inglecircs haacute obrigatoriedade de explicitar-se o sujeito ldquowhat is notrdquo

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Se tiveacutessemos seguido a ordem metodoloacutegica tradicional ao examinar 23 teriacuteamos analisado primeiro ἔστιν e depois οὐκ ἔστι μὴ εἶναι E se de-pois de estudar o segundo hemistiacutequio voltaacutessemos nossa atenccedilatildeo ao primeiro hemistiacutequio natildeo teriacuteamos ganho metodoloacutegico nenhum pois redundariacuteamos na leitura por pressupostos em que o sentido de ἔστιν eacute obtido pelo pressu-posto de que ἔστιν significa em grego ldquoeacuterdquo todavia dessa maneira se chegaria aos resultados jaacute conhecidos considerados natildeo totalmente satisfatoacuterios pelos proacuteprios autores de cada interpretaccedilatildeo O dado concreto eacute que o poema natildeo oferece nenhuma definiccedilatildeo direta ou indireta de ἔστιν embora apresente mui-tos σήματα de ἐὸν Em compensaccedilatildeo o poema trata amplamente de μὴ εἶναι E natildeo eacute preciso ir muito longe para encontrar referecircncias para a noccedilatildeo de μὴ εἶναι pois observamos muitos dados nos versos de 5 a 8 do nosso fragmento Iremos portanto ao verso 5 e subsequentes

33 OS VERSOS 5 A 8 he drsquoos ouk eacutestin te kaigrave os khreoacuten esti megrave eicircnai

tegraven deacute toi phraacutezo panapeutheacutea eacutemmen atarpoacuten

ouacutete gagraver agravev gnoiacutees toacute ge megrave eograven (ou gagraver anustoacuten)

ouacutete phraacutezais

o outro que natildeo eacute e portanto que eacute preciso natildeo ser

este entatildeo eu te digo eacute atalho de todo incriacutevel

pois nem conhecerias o que natildeo eacute (pois natildeo eacute exequiacutevel)

nem o dirias

Vamos relembrar a letra do verso 5 ἡ δrsquo ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι Haacute uma construccedilatildeo paralela ao verso 3 dois hemistiacutequios no segundo dos quais encontramos nosso μὴ εἶναι No verso seguinte o caminho eacute chamado de παναπευθέα termo que muito fez e faz sofrer os filoacutelogos O sentido geral poreacutem eacute claro quer se queira traduzir como ldquode todo incriacutevelrdquo (CAVALCANTE DE SOUZA 1978) quer como ldquocompletamente inconos-ciblerdquo (CORDERO 2005 p 219) ou ldquowholly without reportrdquo (COXON 2009 p 56) ou como outro Em suma a noccedilatildeo geral eacute de que haacute uma difi-culdade intransponiacutevel em seguir esse caminho e por que eacute explicado a seguir

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Assim como em certa metodologia de exposiccedilatildeo primeiro se enuncia a tese e depois se propotildee o argumento demonstrativo Parmecircnides primeiro enuncia (como conveacutem agrave expressatildeo de uma deusa) e depois diz por quecirc Ora a novida-de cultural eacute exatamente esse porquecirc onde as afirmaccedilotildees natildeo satildeo mais apenas impostas por sua forccedila hieraacutetica mas precisam de explicaccedilotildees21

O nosso primeiro problema eacute que os enunciados (no verso 3 antes no verso 5 agora) natildeo satildeo claros para noacutes Nesse sentido podemos pedir clareza aos argumentos Qual eacute o argumento Eis a resposta de Parmecircnides οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε μὴ ἐὸν (οὐ γὰρ ἀνυστόν) οὔτε φράσαις Aqui a traduccedilatildeo eacute mais clara e natildeo haacute muita divergecircncia entre os criacuteticos pois nem poderias co-nhecer o que natildeo eacute (pois eacute impossiacutevel) nem o dirias Haacute aqui um claro objeto do discurso τό μὴ ἐὸν o qual sem hesitaccedilatildeo desta vez podemos traduzir por ldquoo que natildeo eacuterdquo Sem hesitaccedilatildeo porque τὸ ἐὸν eacute uma expressatildeo desconhecida antes de Parmecircnides aparece com ele eacute estudada por seus disciacutepulos e pelos seus criacuteticos (de Melisso a Aristoacuteteles) e eacute reportada pela doxografia como invenccedilatildeo parmenidiana

A noccedilatildeo exposta por Parmecircnides eacute sequencial o caminho de inqueacuterito que pensa οὐκ ἔστιν aqui chamado de ἀταρπόν natildeo pode ser percorrido porque eacute impossiacutevel ldquoconhecerrdquo (γνοίης ndash segunda pessoa do optativo aoristo ativo de γιγνώσκω) o que natildeo eacute e vamos deixar para depois a questatildeo do di-zer (οὔτε φράσαις) Vamos concentrar nossa atenccedilatildeo sobre γνοίης Para noacutes eacute menos importante a traduccedilatildeo gramaticalmente e estilisticamente precisa e mais importante a precisatildeo da noccedilatildeo filosoacutefica exposta Em relaccedilatildeo a essa pa-lavra houve (e ainda haacute) uma discussatildeo acirrada Discute-se se traduzir por ldquoconhecerrdquo como fazem alguns (COXON 2009 p 56 GALLOP 1984 p 55 TARAacuteN 1965 p 32 e muitos outros) ou ldquoreconhecerrdquo como fazem outros (por exemplo BARNES 1982 p 124) e principalmente que sentido atribuir ao ldquoconhecerrdquo Eu penso que considerado o contexto natildeo se trata do conhecer epistecircmico mas do conhecer gnosioloacutegico ou seja da capacidade que a mente possui de estabelecer um processo de conhecimento E que se trate de processo eacute claro pela vaacuteria terminologia que Parmecircnides usa mas principalmente pela sua ὁδός que ficaraacute para sempre como metaacutefora perfeita dos procedimentos a serem tomados para realizar tarefas de qualquer natureza vindo a receber o nome de meacutetodo

21 Rossetti (2010) A necessidade de explicaccedilotildees natildeo eacute mais soacute dos autores mas tambeacutem da audiecircncia que agora requer argumentos

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Para o meacutetodo do pensar epistecircmico declara Parmecircnides natildeo eacute con-veniente seguir um certo percurso porque sobre ele haacute ao menos uma etapa onde se deve ldquoconhecerrdquo ndash ou seja onde se deve exercer a capacidade gnosioloacute-gica ndash o τό μὴ ἐὸν mas isso eacute impossiacutevel Na verdade tanto o termo ἀνυστόν (reportado por Simpliacutecio) quanto sua variante ἐφικτόν (reportada por Proclo) tecircm um sentido processual quero dizer que a tarefa de pensar o τό μὴ ἐὸν natildeo apresenta uma impossibilidade que se realiza imediatamente mas uma que implica um processo o qual eacute impossiacutevel em sua inteireza porque natildeo pode ser levado a termo De fato ἀνυστός significa ldquoser completadordquo ldquopraticaacutevelrdquo enquanto ἐφικτός significa ldquofaacutecil de alcanccedilarrdquo ldquoacessiacutevelrdquo Ambos os termos tecircm sentido dinacircmico e processual e a negaccedilatildeo que Parmecircnides faz significa que esse processo natildeo pode ser levado a termo

De que processo se trata Em minha visatildeo trata-se do processo concre-to de pensar a negaccedilatildeo do ser Parmecircnides eacute de aacuterea de formaccedilatildeo pitagoacuterica e os pitagoacutericos ndash como assinala Aristoacuteteles (Metaph 986a15-26) ndash naquela eacutepoca estudavam as oposiccedilotildees as mais abstratas tendo passado da oposiccedilatildeo mais antiga entre par e iacutempar correspondentes a limitado e ilimitado (πέρας e ἄπειρον) a um conjunto de dez oposiccedilotildees Nada desabona uma possiacutevel tentativa de Parmecircnides buscar uma oposiccedilatildeo (a qual era feita tambeacutem por negaccedilatildeo como nos evidencia a expressatildeo verbal da oposiccedilatildeo entre πέρας e ἄπειρον com o ldquoαrdquo privativo) para o ldquotodordquo aquele πάντα que encontramos no verso 128 do poema e que em breve transformar-se-ia em φύσις no curso da evoluccedilatildeo histoacuterica dos conceitos filosoacuteficos da antiga Greacutecia

A meditaccedilatildeo do ldquonatildeo-serrdquo eacute das mais interessantes a se fazer na filosofia Tentar ldquopensarrdquo o ldquonatildeo-serrdquo eacute uma experiecircncia profunda a qual leva a conside-raccedilotildees radicais natildeo soacute sobre a existecircncia humana mas sobre a existecircncia como um todo Que Parmecircnides tenha se dedicado a essa meditaccedilatildeo eacute seguro pois ele o diz indiretamente em 22 quando afirma que os uacutenicos caminhos ao pensar satildeo aquele que pensa ἔστιν e aquele que pensa οὐκ ἔστιν O que natildeo sa-bemos e natildeo podemos afirmar com certeza eacute que tipo de meditaccedilatildeo ele reali-zou Eis que os termos ἀνυστόν ou ἐφικτόν vecircm nos socorrer e nos informam que se trata de uma meditaccedilatildeo processual que natildeo acaba Descrevi esse proces-so detalhadamente em outro trabalho (GALGANO 2010) e o repetirei aqui brevemente Pensar o natildeo-ser significa pensar concretamente a negaccedilatildeo do ser concreto (do mundo sensiacutevel ou inteligiacutevel) de cada ser Para tornar mais claro o processo pode-se comeccedilar negando a existecircncia de um ente depois daquilo

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que o rodeia depois do planeta depois do universo (sensiacutevel e inteligiacutevel atual e possiacutevel) e depois do mundo como um todo enfim do todo

O problema principal dessa meditaccedilatildeo eacute exatamente pensar se o sujeito pertence ou natildeo ao todo Quando se pensa a negaccedilatildeo do todo permanece ainda o sujeito pensante que pensa o todo como se o olhasse de um ponto virtual externo a ele E quando se tenta incluir o sujeito pensante de duas uma 1) ou o sujeito acreditando pensar a si proacuteprio dentro do todo reapa-rece externamente22 ou 2) o sujeito cognitivo desaparece e com ele qualquer noccedilatildeo cognitiva de ldquonatildeo-serrdquo Podemos assegurar claramente que o processo de pensar o τό μὴ ἐὸν natildeo termina seja porque eacute impossiacutevel incluir o sujeito no todo pois ele sempre reaparece a cada tentativa seja porque o processo quan-do inclui o sujeito no todo interrompe-se sendo assim impossiacutevel completar a negaccedilatildeo do todo Natildeo podemos saber se o modelo meditativo de Parmecircnides foi exatamente este mas natildeo me parece haver nada em desabono23

Entretanto qual eacute a importacircncia de natildeo se poder pensar a negaccedilatildeo de tudo Seguindo o argumento parmenidiano o caminho (ἀταρπόν) cognitivo que pensa τό μὴ ἐὸν natildeo pode ser concluiacutedo Ora ἀταρπόν eacute um sinocircnimo que Parmecircnides usa para o ὁδός do verso 22 (ὁδοὶ) isso quer dizer que o segundo caminho de inqueacuterito pode ser iniciado mas natildeo pode ser levado a termo Poreacutem se natildeo pode ser levado a termo por que eacute identificado como caminho Por que natildeo eacute excluiacutedo jaacute de iniacutecio quando a deusa ao inveacutes de anunciar os uacutenicos (moucircnai plural) caminhos natildeo anuncia um uacutenico cami-nho A resposta a essa pergunta torna clara a estranha afirmaccedilatildeo de que o caminho do pensar do segundo hemistiacutequio do verso 5 eacute necessaacuterio que per-maneccedila natildeo ser (χρεών ἐστι μὴ εἶναι) Parmecircnides assevera que embora seja um caminho que jamais pode ser completado ele ao mesmo tempo natildeo pode ser eliminado continua a pertencer aos (dois) uacutenicos caminhos de inqueacuterito ele eacute necessaacuterio

22 Se penso na aniquilaccedilatildeo de tudo incluindo a mim mesmo terei que pensar a mim mesmo aniquilado contudo esse pensar gerando esse novo pensamento gera um novo sujeito cognitivo pensante se aniquilo esse novo pensamento terei um novo sujeito cognitivo que pensa essa nova aniquilaccedilatildeo e assim por diante ad infinitum23 Natildeo quero garantir que Parmecircnides estreie uma filosofia do sujeito embora isso natildeo possa ser excluiacutedo a priori jaacute que os embriotildees de uma tal filosofia apareceratildeo em breve com Soacutecrates Acredito que se deve pensar mais no sujeito como o atleta campeatildeo das Olimpiacuteadas ou seja aquele capaz de cumprir (ou natildeo) certas proezas como fica extraordinariamente evidenciado no paradoxo de Zenatildeo cuja metaacutefora da filosofia (e do filoacutesofo) como tartaruga mostra que o pensar filosoacutefico eacute capaz de proezas maiores do que as proezas do proacuteprio Aquiles tidas como insuperaacuteveis pela cultura da eacutepoca

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Vamos de novo reconstruir essa parte do argumento com esse novo elemento os uacutenicos caminhos de inqueacuteritos satildeo

1) por um lado o caminho ao pensar que [versos 3 e 4] e

2) por outro lado o caminho ao pensar que [ldquoCrdquo (verso 5 primeiro hemistiacute-quio)] e que eacute necessaacuterio (que seja) natildeo-ser

De fato esse segundo caminho (ἀταρπόν) eacute inviaacutevel porque ldquonatildeo se consegue levar a cabo a reflexatildeordquo (γνοίης) quando se pensa o τό μὴ ἐὸν Ou seja fica muito clara a equaccedilatildeo entre o segundo caminho (v 5) e a reflexatildeo sobre o natildeo ser (τό μὴ ἐὸν) Finalmente o segundo hemistiacutequio do v 5 diz que esse eacute o caminho ao pensar que eacute necessaacuterio que seja μὴ εἶναι o qual agora sabemos eacute o caminho que tenta pensar o natildeo-ser (τό μὴ ἐὸν) Sabe-mos agora o que Parmecircnides chama de μὴ εἶναι Para Parmecircnides μὴ εἶναι eacute a estrutura do pensamento quando tenta inexoraacutevel e malogradamente pensar o natildeo-ser (τό μὴ ἐὸν)

Temos portanto a semacircntica de μὴ εἶναι e sabemos que significa a impossibilidade de pensar o natildeo-ser Com esse dado podemos reconstruir o resto do argumento mas primeiro vamos abordar a questatildeo do οὔτε φράσαις A premissa principal eacute o pano de fundo da pesquisa parmenidiana a qual estaacute em busca do discurso confiaacutevel como a deusa diz claramente no encerramen-to do fragmento 8 (talvez ecoando simetricamente alguma parte perdida do poema)24 Pensar o τό μὴ ἐὸν natildeo eacute possiacutevel logo ele eacute indiziacutevel Ora isso significa nem mais nem menos que dizer que o que eacute impossiacutevel eacute contra o sentido do dizer Eacute indiziacutevel natildeo porque natildeo se sabe do que se trata como querem muitos autores que fazem a leitura meramente epistemoloacutegica25 Eacute indiziacutevel porque dizer o ldquonatildeo-serrdquo significa fazer uma promessa que jamais se cumpriraacute ao se dizer ldquonatildeo-serrdquo parece que a expressatildeo aponta algo possiacutevel ou seja a negaccedilatildeo do ser e de fato quem estaacute desavisado assim acredita Mas a expressatildeo ldquonatildeo-serrdquo quer referir-se a algo que jamais seraacute cumprido que o

24 850-2 ldquoἐν τῶι σοι παύω πιστὸν λόγον ἠδὲ νόημα ἀμφὶς ἀληθείης δόξας δrsquo ἀπὸ τοῦδε βροτείας μάνθανε κόσμον ἐμῶν ἐπέων ἀπατηλὸν ἀκούωνrdquo ldquoNeste ponto encerro fidedigna palavra e pensamento sobre a verdade e opiniotildees mortais a partir daqui aprende a ordem enganadora de minhas palavras ouvindordquo (CAVALCANTE DE SOUZA 1978)25 Trata-se da leitura epistemoloacutegico-predicamental se natildeo sei a cor de um objeto (porque a cor natildeo eacute natildeo estaacute acessiacutevel ao meu conhecimento) natildeo posso falar da cor do objeto

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ser seja negado Esta eacute exatamente a noccedilatildeo expressa pelas palavras de Platatildeo jamais prevaleceraacute que natildeo entes sejam26

A expressatildeo μὴ εἶναι representa essa impossibilidade de pensamento e portanto eacute um dizer impossiacutevel o que se opotildee radicalmente agrave proacutepria noccedilatildeo de dizer a qualquer significar enquanto discurso confiaacutevel do mundo e da sua ordem Surge a pergunta mas se natildeo se pode dizer μὴ εἶναι se isso eacute impossiacute-vel natildeo haacute uma flagrante contradiccedilatildeo na deusa jaacute que ela proacutepria diz e cons-troacutei um argumento sobre o dizer μὴ εἶναι A objeccedilatildeo seria vaacutelida se a deusa dissesse o que eacute impossiacutevel de dizer ou seja se ela praticasse a impossibilidade Todavia a deusa natildeo diz o impossiacutevel a deusa aponta para o impossiacutevel indica o impossiacutevel pois ela diz que existem a ldquonoccedilatildeo de impossibilidade do pensarrdquo e a ldquonoccedilatildeo de impossibilidade do dizerrdquo Em outras palavras a deusa diz qual eacute o limite do pensar e qual eacute o limite do dizer Aleacutem desse limite o pensamento natildeo pode ir porque eacute impossiacutevel e tambeacutem o dizer natildeo pode ir porque eacute im-possiacutevel A impossiacutevel regiatildeo para aleacutem desse limite natildeo eacute admitida pelo dizer eacute contra o dizer eacute contraditoacuteria

A expressatildeo μὴ εἶναι em Parmecircnides eacute exatamente a palavra que ex-pressa o processo mental que noacutes chamamos contradiccedilatildeo e que ele primeiro assim chamou (οὔτε φράσαις natildeo diziacutevel) Eacute estranho que nenhum criacutetico te-nha percebido isso claramente Todos afirmam que o princiacutepio de natildeo contra-diccedilatildeo estaacute implicado em Parmecircnides assim como os outros princiacutepios loacutegicos pois os argumentos presentes no poema satildeo desenvolvidos segundo a natildeo con-tradiccedilatildeo poreacutem o princiacutepio natildeo eacute enunciado Alguns como Cordero veem justamente explicitado o princiacutepio do terceiro excluiacutedo (816 ἔστιν ἢ οὐκ ἔστιν) mas ningueacutem quis ver claramente que natildeo soacute a noccedilatildeo como tambeacutem a proacutepria palavra ldquocontradiccedilatildeordquo (οὔτε φράσαις natildeo diziacutevel contra o diziacutevel contra a dicccedilatildeo) estaacute explicitada no poema Penso que a razatildeo fundamental para que acontecesse esse lapsus tenha que ser procurada na grande atenccedilatildeo dada ao ldquoserrdquo e na pouca dada ao ldquonatildeo-serrdquo Como observaremos mais adiante por causa desse lapsus eu penso que natildeo se conseguiu entender plenamente a estrutura do fragmento 2 o qual simplesmente natildeo apresenta um silogismo disjuntivo nem nenhuma contradiccedilatildeo entre o caminho do ldquoserrdquo e o caminho do ldquonatildeo-serrdquo Parmecircnides assevera justamente que a expressatildeo ldquonatildeo-serrdquo eacute contraditoacuteria o ldquonatildeo-serrdquo natildeo pode ser dito porque ldquonatildeo-serrdquo eacute contraditoacute-

26 As duas expressotildees tecircm inversatildeo de predicado e negaccedilatildeo no entanto a noccedilatildeo permanece a mesma que os entes natildeo sejam (perecimento no fr 8) e que os natildeo entes sejam (nascimento no fr 8) A noccedilatildeo eacute o tracircnsito entre ser e natildeo ser

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rio e a expressatildeo ldquonatildeo-serrdquo indica tatildeo somente uma impossibilidade concreta aquela de que se realize o impossiacutevel

Vamos voltar ao nosso argumento e agrave questatildeo que deixamos em suspenso por que eacute necessaacuterio que μὴ εἶναι seja Sabemos que os versos 7 e 8 relatam um processo malogrado de pensar o natildeo ente (τό μὴ ἐὸν) Uso agora a palavra ente porque se justifica uma diferenciaccedilatildeo embora tanto ldquoenterdquo quanto ldquoserrdquo indiquem expressotildees gerais e natildeo individuais ldquoEnterdquo vem por conseguinte a significar o ente concreto aquele que eacute Parmecircnides sustenta que natildeo se pode pensar e dizer τό μὴ ἐὸν o ldquonatildeo enterdquo Esse processo recebe o nome de μὴ εἶναι ldquonatildeo-serrdquo a esse processo noacutes chamamos contradiccedilatildeo27 Entatildeo a indicaccedilatildeo eacute esta haacute um caminho ao pensar que pensa μὴ εἶναι (a contradiccedilatildeo) e eacute necessaacuterio que assim seja porque (vou repetir trecircs vezes de forma diferente28 para significar a mesma coisa)

1) se natildeo houvesse a contradiccedilatildeo

2) se natildeo se tem a noccedilatildeo de contradiccedilatildeo

3) se natildeo se sabe o que eacute contradiccedilatildeo

cai-se no discurso contraditoacuterio o que impede o inqueacuterito confiaacutevel Eacute ne-cessaacuterio saber que μὴ εἶναι (o processo de contradiccedilatildeo) eacute um caminho a ser evitado porque cria pensamentos e discursos contraditoacuterios

Vejamos de novo nosso fragmento com os elementos esclarecidos ateacute aqui

os uacutenicos caminhos de inqueacuterito a pensar satildeo

por um lado que [ versos 3 e 4]

e por outro lado que οὐκ ἔστιν e que eacute necessaacuterio que seja a contradiccedilatildeo (μὴ εἶναι)

a qual eacute um caminho natildeo criacutevel

pois eacute impossiacutevel pensar e dizer o natildeo ente (τό μὴ ἐὸν)

27 Mesmo para noacutes a contradiccedilatildeo eacute um processo porque indica a posiccedilatildeo de algo em contraposiccedilatildeo com mais algo isso significa que esses dois algos tecircm que ser relacionados para que haja contradiccedilatildeo do contraacuterio algo e mais algo podem conviver sem contraditoriedade Contudo esse assunto estaacute fora de tema e requer muitas outras providecircncias para o bom discernimento28 Repito buscando clareza pois nossas construccedilotildees comuns de linguagem nesses assuntos costumam ldquopatinarrdquo

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Penso que o espaccedilo conceitual deixado por οὐκ ἔστιν agora se pre-encha quase que por si haacute um caminho de inqueacuterito ao pensar que ldquonatildeo eacuterdquo e que eacute necessaacuterio que se considere contraditoacuterio porque eacute caminho que natildeo leva a lugar nenhum

A expressatildeo οὐκ ἔστιν eacute a negaccedilatildeo da terceira pessoa do indicativo de εἰμί a expressatildeo em si natildeo tem nada de especial significa tatildeo somente ldquonatildeo eacuterdquo restando em aberto o problema da ausecircncia de sujeito Mas agora sabemos o argumento complexo que estaacute na raiz da expressatildeo e a meu ver natildeo faz muito sentido a questatildeo de buscar um sujeito ou um objeto para definir se eacute usado de forma transitiva ou intransitiva se expressa existecircncia ou predicaccedilatildeo e as muitas combinaccedilotildees que podem ser montadas a partir da equivocidade do uso de εἰμί No entanto o acircmbito semacircntico foi evidenciado e estaacute claro e aleacutem do mais tem o testemunho de Platatildeo a confirmar o campo semacircntico da negaccedilatildeo de εἰμί nas vaacuterias formas estaacute relacionado a uma reflexatildeo sobre a impossibili-dade dessa negaccedilatildeo Obviamente para dizer que algo eacute impossiacutevel de alguma forma tenho que indicar essa impossibilidade com alguma expressatildeo Assim se digo ldquotriacircngulo quadradordquo aponto para uma impossibilidade jaacute que por defi-niccedilatildeo a essecircncia do triacircngulo exclui a essecircncia do quadrado logo a expressatildeo ldquotriacircngulo quadradordquo natildeo significa aquilo que parece prometer ou seja natildeo significa uma figura geomeacutetrica especial que eacute ao mesmo tempo triacircngulo e quadrado dizer ldquotriacircngulo quadradordquo eacute dizer algo ldquoindiziacutevelrdquo ldquonatildeo diziacutevelrdquo (na medida em que o diziacutevel quer expressar sentido) ldquoque nega o diziacutevelrdquo ldquoque eacute contra o diziacutevelrdquo que eacute contraditoacuterio

A semacircntica do ldquonatildeo serrdquo eacute fortiacutessima e estaacute muito aleacutem das sutilezas gramaticais morfoloacutegicas e sintaacuteticas e estas simplesmente natildeo afetam aquela O assunto tratado eacute tatildeo forte que ultrapassa qualquer forma linguiacutestica a pon-to de que esse assunto a ordem do ser e do natildeo-ser no mundo eacute responsaacutevel pela determinaccedilatildeo da lei da linguagem e natildeo vice-versa como bem entendeu Platatildeo no Sofista onde a teoria da predicaccedilatildeo surge em funccedilatildeo de uma refle-xatildeo sobre a ordem das leis baacutesicas do mundo Com efeito o approach linguiacutes-tico ao poema pode proceder ateacute certo ponto dali em diante o poema eacute fran-camente filosoacutefico e a chave linguiacutestica natildeo eacute suficiente para o acesso Isso quer dizer que com a chave linguiacutestica natildeo se abre a porta da questatildeo filosoacutefica do poema Se a questatildeo eacute que ldquojamais o natildeo ser pode se tornar serrdquo como (apro-ximadamente com essas palavras) argumenta Platatildeo citando Parmecircnides en-tatildeo diante da semacircntica que οὐκ ἔστιν apresenta discutir o sujeito de οὐκ ἔστιν se torna tarefa menor Considerada a desproporccedilatildeo entre o conteuacutedo (a

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semacircntica) e o recipiente (a palavra) entre o significado e o significante natildeo eacute impossiacutevel que οὐκ ἔστιν seja tatildeo somente uma expressatildeo simplificada quem sabe ateacute mesmo uma simplificaccedilatildeo didaacutetica pois o conteuacutedo do conceito estaacute expresso e justificado depois nos versos 7 e 8

O caminho de pensar que natildeo eacute e de pensar que eacute necessaacuterio natildeo ser eacute o caminho que afirma a necessidade de que a noccedilatildeo de natildeo-ser permaneccedila estaacutevel A contradiccedilatildeo tem que permanecer e ser identificada como tal pois eacute a uacutenica maneira de evitar que ela entre no pensamento e no discurso Se o ldquonatildeo-serrdquo natildeo for considerado contraditoacuterio a contradiccedilatildeo invade e domina o caminho de inqueacuterito o qual deixa de possuir πίστις ἀληθής (130) Assim eacute preciso que esse caminho seja identificado como μὴ εἶναι por um lado o ldquonatildeo-serrdquo eacute incognosciacutevel (οὔτε γὰρ ἂν γνοίης) mas por outro lado eacute neces-saacuterio que se saiba que ele eacute incognosciacutevel Saber do incognosciacutevel garante o conhecimento29 pois de fato ao natildeo se identificar o ldquonatildeo-serrdquo cai-se no risco de pensar que ldquoserrdquo e ldquonatildeo-serrdquo satildeo o mesmo e natildeo o mesmo como Parmecircni-des afirma em DK 6 5-6 Necessariamente o caminho que pensa οὐκ ἔστιν leva ao processo de contradiccedilatildeo (μὴ εἶναι) e a natildeo conclusatildeo do caminho (ἀνυστόν) natildeo eacute evidente na expressatildeo pelo contraacuterio τό μὴ ἐὸν parece uma negaccedilatildeo comum como qualquer outra poreacutem natildeo o eacute por isso eacute um saber destinado ao saacutebio e natildeo aos mortais porque eacute um saber fruto de uma reflexatildeo

34 DE VOLTA AOS VERSOS 3 E 4

Penso que podemos agora voltar ao verso 23 ao nosso segundo he-mistiacutequio onde aparece a expressatildeo μὴ εἶναι da qual jaacute temos a semacircntica Podemos entatildeo reconstruir ldquoos uacutenicos caminhos de inqueacuterito a pensar satildeo

por um lado a pensar que [ldquoArdquo] e tambeacutem a pensar que οὐκ ἔστι μὴ εἶναι este eacute caminho de persuasatildeo pois verdade acompanha e

por outro lado a pensar que ldquonatildeo eacuterdquo e tambeacutem a pensar que eacute necessariamente um percurso de pensamento contraditoacuterio porque eacute um caminho ldquoimpossiacutevelrdquo (παναπευθέα) pois o pensamento do ldquonatildeo enterdquo natildeo pode ser completado

O οὐκ ἔστι do verso 3 parece ser diferente do οὐκ ἔστιν do verso 5 Enquanto no 5 ele eacute quase que o nome do caminho (talvez uma simplificaccedilatildeo didaacutetica) no 3 parece significar simplesmente ldquonatildeo eacuterdquo em sentido comum

29 Estaacute aqui uma semente do socratismo

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predicativo De fato esse eacute o caminho da persuasatildeo e portanto eacute o caminho do pensamento natildeo-contraditoacuterio Ali a persuasatildeo era impossiacutevel pela con-tradiccedilatildeo aqui eacute possiacutevel pela natildeo-contradiccedilatildeo Sabemos que a expressatildeo μὴ εἶναι eacute a expressatildeo da contradiccedilatildeo suprema de sorte que a natildeo-contradiccedilatildeo eacute a negaccedilatildeo de μὴ εἶναι A traduccedilatildeo de οὐκ ἔστι fica faacutecil embora para a nossa sensibilidade possa parecer algo improacuteprio usar duas vezes οὐκ ἔστι de forma natildeo perfeitamente uniacutevoca a dois versos de distacircncia Logo para o segundo hemistiacutequio do v 3 mantenho esta traduccedilatildeo ldquonatildeo eacuterdquo em parte ambiacutegua para nossas exigecircncias mas que soa perfeitamente harmocircnica com o discurso par-menidiano [] ao pensar que [ldquoArdquo] e que natildeo eacute ldquocontradiccedilatildeordquo (μὴ εἶναι)

Acredito por fim que podemos abordar facilmente o ἔστιν do verso 3 que tanto fez e faz penar os estudiosos de Parmecircnides Aqui de novo a grandeza da questatildeo cosmoloacutegica envolvida ndash a coerecircncia eou a contradito-riedade do real ndash simplesmente torna tatildeo minuacutescula a questatildeo do sujeito de ἔστιν que ela quase desaparece Eu tenho a tendecircncia a pensar que a falta de sujeito seja uma simplificaccedilatildeo didaacutetica30 cuja irregularidade linguiacutestica ajuda na memorizaccedilatildeo31 Todavia afinal tomo partido e entro tambeacutem no quarto grupo daqueles listados por Cordero o sujeito deve ser extraiacutedo do predicado isolado pois ἔστιν produz o sujeito32 De qualquer forma o sentido filosoacutefico eacute preciso haacute um caminho de inqueacuterito ao pensar que eacute aquele que pensa o ldquoeacuterdquo esse mesmo caminho eacute aquele ao pensar que natildeo eacute (e natildeo pode ser33) ldquocon-tradiccedilatildeordquo Depois haacute um outro caminho aquele ao pensar que ldquonatildeo eacuterdquo que eacute o caminho ao pensar que leva necessariamente agrave contradiccedilatildeo O primeiro eacute o 30 Segundo o relato platocircnico no diaacutelogo Parmecircnides Zenatildeo acompanhado de seu mestre foi para as Panateneias com a finalidade de defender a filosofia de seu mestre esclarecendo com seu livro repleto de paradoxos as ideias parmenidianas Isso sugere que o poema natildeo expunha articuladamente a filosofia de Parmecircnides mas que constituiacutesse um proacute-memoacuteria com as ideias em sua forma essencial depois elaboradas nas aulas pessoais (KURFESS 2012)31 Eacute extraordinaacuterio como essa simplificaccedilatildeo didaacutetica continue ativa por um lado distorcendo entretanto por outro mantendo viva a mensagem parmenidiana em todas as escolas de ensino meacutedio onde se estuda filosofia vox populi Parmecircnides eacute o filoacutesofo que disse ldquoO que eacute eacute e o que natildeo eacute natildeo eacuterdquo Por outro lado o estrangeiro de Eleia no Sofista lembra outro verso e natildeo este32 Essa questatildeo natildeo aprofundada aqui natildeo possui relevacircncia filosoacutefica no argumento apresentado pode ter relevacircncia se se considera o tipo de reflexatildeo ou seja se se discute a ldquoexperiecircnciardquo do natildeo-ser e principalmente a experiecircncia concreta de Parmecircnides que talvez esteja ligada a praacuteticas de incubaccedilatildeo Nesse caso a dimensatildeo reflexiva adentra a dimensatildeo oniacuterica a qual possui outra sintaxe e onde um simples ἔστιν vale mais de mil articulaccedilotildees sintaacuteticas Natildeo sabemos com certeza dessas praacuteticas em Eleia contudo esse sentido preacute-sintaacutetico natildeo estaacute descartado inclusive alguns estudiosos entre os quais o proacuteprio Cordero atribuem ao ἔστιν o sentido de um grito como um Eureka Sugestotildees nesse sentido se encontram na minha dissertaccedilatildeo sobre Melisso (GALGANO 2010)33 A interpretaccedilatildeo modal eacute tambeacutem perfeitamente coerente aqui

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caminho que estabelece o discurso coerente (persuasivo) e o segundo natildeo leva a lugar nenhum e deve ser evitado Mas para que se saiba o que deve ser evi-tado eacute preciso que se conheccedila a impossibilidade do segundo caminho A fim de que se possa seguir o primeiro caminho eacute necessaacuterio saber que existe um outro sempre agrave espreita o qual parece oferecer a verdade mas que natildeo oferece uma verdade confiaacutevel que leva necessariamente agrave contradiccedilatildeo de pensamento e de expressatildeo linguiacutestica

4 O MEacuteTODO DA NAtildeO-CONTRADICcedilAtildeO

Parmecircnides provavelmente a partir de sugestotildees pitagoacutericas medita sobre a oposiccedilatildeo ao que existe e assim descobre o ldquonatildeo-serrdquo Descobre que ldquonatildeo serrdquo ou seja negar o ser negar o que haacute eacute de todo impossiacutevel (natildeo eacute possiacutevel completamente) Entende entatildeo que o ldquonatildeo-serrdquo essa impossibilidade eacute algo que a mente pensa julgando que esse pensamento leva por um caminho mas que na verdade ele descobre leva por outro caminho aquele que nunca che-ga a lugar nenhum Esse caminho que leva para lugar nenhum eacute o caminho dos mortais os quais confundem ser e natildeo ser No entanto o saacutebio deve saber distinguir por um lado o caminho do ldquoeacuterdquo que eacute o caminho do discurso natildeo contraditoacuterio e por outro lado o caminho do ldquonatildeo eacuterdquo que eacute o caminho do discurso que eacute tornado vatildeo pela contradiccedilatildeo

Parmecircnides descobre a contradiccedilatildeo (pela meditaccedilatildeo sobre o natildeo-ser) e percebe que ela eacute motivo de descaminho no discurso sobre o mundo Assim finalmente ele anuncia que a contradiccedilatildeo deve ser evitada A esse enunciado noacutes chamamos de princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo que aqui eacute aquele na versatildeo de Parmecircnides (depois a partir de Platatildeo e Aristoacuteteles haveraacute outras versotildees) Parmecircnides trabalha em acircmbito cosmoloacutegico e sua preocupaccedilatildeo ndash como os de seus colegas na eacutepoca ndash eacute com o mundo com a totalidade das coisas com os πάντα de seu proecircmio (128) Nesse acircmbito cosmoloacutegico descobre que haacute um princiacutepio do mundo pelo qual se daacute uma impossibilidade a contradiccedilatildeo A contradiccedilatildeo eacute um princiacutepio porque o que haacute (πάντα) enquanto todo escapa agrave negaccedilatildeo total Eis que a contradiccedilatildeo eacute princiacutepio tanto quanto a natildeo-contra-diccedilatildeo porque eacute a contradiccedilatildeo que permite a natildeo-contradiccedilatildeo Sem a noccedilatildeo de contradiccedilatildeo se anda com sentidos incertos como os mortais

O valor dessa afirmaccedilatildeo eacute historicamente inabalaacutevel porque Parmecircni-des partindo de um discurso sobre o mundo como que visto de fora por um observador (como Anaximandro via o mundo olhando seu pinax - cf ROS-

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SETTI 2013) alcanccedila um discurso que inclui o observador enquanto obser-vador estreando assim antes de tudo um discurso sobre os entes (ontologia) todos os entes incluindo os entes de pensamento (veja-se o famoso fragmento 3 onde se lecirc que pensar e ser satildeo o mesmo) Para ele o saacutebio natildeo eacute mais aquele que sabe soacute sobre as coisas externas ndash como o antigo xamatilde cuja figura indi-vidual se dissolve na mera intermediaccedilatildeo com o divino ndash poreacutem eacute tambeacutem aquele que consegue pensar sobre as coisas externas ou seja aquele que tem um domiacutenio cognitivo sobre os pensamentos de inqueacuterito e portanto sabe so-bre si mesmo Assim o saacutebio deve pensar por proacutepria conta e julgar pelo novo criteacuterio e natildeo pelo habitual discurso (κρῖναι δὲ λόγωι DK 75) ou seja natildeo deve julgar pelo discurso mas julgar o discurso porque agora o discurso enri-quecido de uma lei universal (a lei das αρχάι ἔστιν e οὐκ ἔστιν) possui uma medida de juiacutezo Parmecircnides amplia o mundo acrescentando ao mundo fiacutesico os mundos do pensamento e da linguagem Eis porque as αρχάι de Parmecircni-des sendo duas permanecem duas justamente eliminado uma delas deixando alguns criacuteticos enlouquecidos na discussatildeo sobre o monismo ou o dualismo de acordo com Parmecircnides o mundo eacute um todavia os sentidos nos enganam natildeo na pluralidade das coisas mas no argumento a respeito da pluralidade das coisas e principalmente ndash aspecto que ele discute explicitamente ndash a respeito do devir das coisas Haacute um princiacutepio que natildeo pode ser eliminado a contra-diccedilatildeo o qual eacute um princiacutepio de erro humano quando se elimina quando se desconsidera quando se faz de conta que natildeo existe a contradiccedilatildeo se instaura quando o princiacutepio eacute levado em conta a contradiccedilatildeo pode ser evitada

Eacute uma conceituaccedilatildeo esdruacutexula para noacutes tambeacutem porque temos que ter (a noccedilatildeo de) a contradiccedilatildeo para eliminar a contradiccedilatildeo temos que saber o que eacute contradiccedilatildeo para que possamos perceber quando o discurso eacute con-traditoacuterio Esses conceitos satildeo misteriosos ateacute agora e satildeo estranhas criaturas de nossas mentes Por exemplo a noccedilatildeo de ldquoimpossiacutevelrdquo obviamente (isto eacute para a nossa pragmaacutetica) natildeo se refere a nada de concreto no entanto temos essa noccedilatildeo e a usamos com o maacuteximo proveito outro exemplo a noccedilatildeo de ldquoinfinitordquo noccedilatildeo que natildeo se refere a algo pragmaticamente concreto mas que usamos igualmente com maacuteximo proveito O mesmo deve ser dito da noccedilatildeo de contradiccedilatildeo ou da noccedilatildeo de nada absoluto que usamos pragmaticamente com maior ou menor proveito

Parmecircnides encontra esse caminho e o expotildee Eacute um caminho assom-broso anti-intuitivo mas incontestaacutevel Dessa forma natildeo eacute de estranhar se a soluccedilatildeo platocircnica eacute a eliminaccedilatildeo fiacutesica da noccedilatildeo de nada absoluto (o par-

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riciacutedio) com sucessivo ldquoadeusrdquo34 achando de tecirc-lo ultrapassado Mas o nada absoluto enquanto noccedilatildeo contraditoacuteria permanece Assim como permane-ce a explicaccedilatildeo defeituosa do devir o qual assim como o conhecemos uma passagem do nada ao ser no nascimento e do ser ao nada no perecimento estaacute mal explicado Daqui por diante os comentaacuterios filosoacuteficos possiacuteveis satildeo inuacutemeros por conseguinte paro meu estudo neste ponto e proponho a versatildeo do fragmento 2 segundo a conceituaccedilatildeo apresentada ateacute aqui alterando de pouco a excelente versatildeo baacutesica de Cavalcante de Souza

Pois bem eu te direi e tu recebe a palavra que ouviste

os uacutenicos caminhos de inqueacuterito que satildeo a pensar

o primeiro que eacute e portanto que natildeo eacute (o caminho da) contradiccedilatildeo

de persuasatildeo eacute o caminho (pois agrave verdade acompanha)

o outro que natildeo eacute e portanto que eacute necessariamente (o caminho da) contradiccedilatildeo

este entatildeo eu te digo eacute atalho de todo incriacutevel

pois nem conhecerias o que natildeo eacute (pois natildeo eacute exequiacutevel)

nem o dirias

GALGANO N S Non-being in Parmenides of Elea Transformaccedilatildeo Mariacutelia v 41 n 2 p 9-36 AbrJun 2018

ABSTRACT In fragment DK 28 B 2 of his poem Parmenides presents his method for distinguishing true persuasion from the lack of true persuasion His famous proposal of these two ways of thinking form a complex statement of a system that intends to guarantee the veracity of statements in order to obtain reliable discourse the only discourse capable of true persuasion The present paper shows that the central role in Parmenidian argumentation is attributed to non-being a notion derived from a reflection on the impossibility of the negation of being Thus the whole fragment is interpreted in terms of this central notion We show that Parmenides discovered the impossibility of negation which we now call lsquocontradictionrsquo and that he articulated the means for avoiding contradiction in thought and discourse a rule which today we call the principle of non-contradiction The study presented here is a detailed investigation of the notion of non-being in the DK 28 B 2 fragment and includes a new translation of it

KEYWORDS Parmenides Non-being Non-contradiction Eleatism Parricide

34 Platatildeo Soph 258e7-259a1 ἡμεῖς γὰρ περὶ μὲν ἐναντίου τινὸς αὐτῷ χαίρειν πάλαι λέγομεν εἴτrsquo ἔστιν εἴτε μή λόγον ἔχον ἢ καὶ παντάπασιν ἄλογον

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rios criacuteticos parecem referir-se agrave descriccedilatildeo do mundo dos fenocircmenos par-te do poema de que natildeo trataremos aqui Vamos examinar apenas os trecircs versos anteriores No primeiro em sua segunda metade a deusa anocircnima anuncia ao disciacutepulo que ele iraacute aprender tudo (πάντα)4 tanto a mente firme fruto da verdade bem conexa quanto as opiniotildees dos mortais onde as certezas natildeo satildeo verdadeiras As duas afirmaccedilotildees satildeo precedidas pelas partiacuteculas correlativas ἠμὲνhellip ἠδὲ que tecircm significado natildeo propriamente adversativo mas antiteacutetico (SMYTH 1956 p 644) e tecircm como traduccedilatildeo ldquode fato por um lado hellip de fato por outro ladordquo (DENNISTON 1954 p 287) A antiacutetese se refere a dois tipos de estados cognitivos antiteacuteticos cada um com sua respectiva qualificaccedilatildeo por um lado a mente firme resultado da verdade bem conexa por outro lado as opiniotildees dos mortais que aqui natildeo significam um conjunto de conhecimentos mas uma manei-ra de pensar a qual natildeo possui uma certeza verdadeira Se consideramos a estrutura antiteacutetica podemos ver que a mente firme eacute antiacutetese de ldquoopiniatildeo dos mortaisrdquo enquanto ldquoverdade bem conexardquo estaacute em antiacutetese com ldquofalta de certeza verdadeirardquo O que Parmecircnides traz em questatildeo eacute aproxima-damente aquilo que hoje chamariacuteamos de criteriologia ou seja o estudo daquilo que faz com que uma proposiccedilatildeo possa ser tida como verdadeira Ele o faz agrave sua maneira arcaica sem uma terminologia pronta disponiacutevel e com pouquiacutessimo questionamento jaacute culturalmente assentado sobre esse tema Grosso modo tradicionalmente se entendia com as devidas exceccedilotildees que os deuses falavam a verdade de forma que o relato miacutetico embora pudesse ateacute parecer inverossiacutemil era tido por verdadeiro (como atualmen-te ainda acontece com muitos livros considerados sagrados pelas religiotildees atuais) Todavia uma criacutetica ferrenha aos relatos miacuteticos e aos cultos re-ligiosos jaacute estava em ato no pensamento dos jocircnicos5 e Parmecircnides outra coisa natildeo faz senatildeo dar um passo agrave frente nesse caminho

A visatildeo criacutetica de Parmecircnides eacute primorosa De fato ele potildee em evidecircn-cia a partir da constataccedilatildeo de que haacute ldquoverdadesrdquo natildeo verdadeiras (Xenoacutefanes)

4 O programa de aprendizagem oferecido por Parmecircnides por ser o mais avanccedilado da eacutepoca tem como puacuteblico-alvo pessoas jaacute de elevada cultura 5 Por exemplo Xenoacutefanes em DK 21 B 14 ldquoMas os mortais acreditam que os deuses satildeo gerados que como eles se vestem e tecircm voz e corpordquo em DK 21 B 15 ldquoMas se matildeos tivessem os bois os cavalos e os leotildees e pudessem com as matildeos desenhar e criar obras como os homens os cavalos semelhantes aos cavalos os bois semelhantes aos bois desenhariam as formas dos deuses e os corpos fariam tais quais eles proacuteprios tecircmrdquo e em DK 21 B 16 ldquoOs egiacutepcios dizem que os deuses tecircm nariz chato e satildeo negros os traacutecios que eles tecircm olhos verdes e cabelos ruivosrdquo (CAVALCANTE DE SOUZA 1978 traduccedilatildeo de A L Prado)

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que aquilo que eacute chamado de ldquoverdaderdquo (relato verdadeiro na concepccedilatildeo arcai-ca da noccedilatildeo da verdade) eacute antes de tudo um fato psicoloacutegico subjetivo eacute uma convicccedilatildeo uma certeza subjetiva um ldquoestar persuadido derdquo Dada essa con-vicccedilatildeo do ponto de vista subjetivo ela eacute sempre uma verdade mas olhando as coisas de fora eacute possiacutevel perceber que haacute convicccedilotildees que natildeo satildeo verdadeiras (exemplo as vaacuterias concepccedilotildees miacuteticas a respeito do todo ou dos deuses) Des-se modo a convicccedilatildeo subjetiva passa a natildeo ser mais criteacuterio suficiente de verda-de eacute necessaacuterio um meacutetodo que garanta agrave mente a certeza da convicccedilatildeo agora colocada em duacutevida pela observaccedilatildeo do comportamento cognitivo das vaacuterias culturas (Xenoacutefanes) Em outras palavras uma vez observado que a convicccedilatildeo subjetiva natildeo eacute suficiente para garantir a veracidade daquela proposiccedilatildeo eacute ne-cessaacuterio encontrar um outro meacutetodo que garanta essa veracidade6

Observemos pois o status questionis proposto por Parmecircnides (1) a mente em geral tem convicccedilotildees7 (2) poreacutem agora sabemos que estar con-vencido de algo natildeo eacute suficiente para garantir a verdade daquela convicccedilatildeo logo natildeo sabemos se as convicccedilotildees da mente satildeo verdadeiras ou natildeo (3) haacute um meacutetodo objetivo que garante a verdade das convicccedilotildees (que satildeo sempre subjetivas) (4) depois da aplicaccedilatildeo do meacutetodo sabemos que haacute convicccedilotildees verdadeiras e convicccedilotildees natildeo verdadeiras as primeiras deixam a mente firme e sem a oscilaccedilatildeo da duacutevida as segundas satildeo aquelas que submetidas ao meacute-todo deixam a mente em oscilaccedilatildeo (satildeo as opiniotildees dos mortais) Podemos assim reler a expressatildeo da deusa ldquoEacute necessaacuterio que tu aprendas (a respeito do) lsquotudorsquo por um lado a mente firme que vem da verdade bem conexa

6 Que Parmecircnides em sua criacutetica esteja referindo-se ao pensamento tradicional pode ser inferido pelo todo do poema Mas haacute passagens aqui natildeo discutidas as quais evidenciam essa criacutetica O elemento mais importante parece-me eacute que ele se refere aos brotoi os mortais os quais tecircm opiniotildees (crenccedilas nos relatos miacuteticos especificamente aqueles voltados a explicar os fatos naturais) nas quais falta a certeza confiaacutevel Quem satildeo os brotoi Embora haja divergecircncias e alguns queiram ver nos brotoi figuras relacionadas a pensadores supostamente antagonistas (por exemplo os heraclitianos) haacute uma passagem que nos faz entender claramente que se trata de uma criacutetica ao pensamento miacutetico tradicional No fr 7 a deusa convida o disciacutepulo a natildeo permitir que um ethos polypeirov o haacutebito de muita experiecircncia o obrigue a permanecer no caminho errado O que eacute ethos polypeirov Trata-se de um haacutebito de pensamento que se adquire pela repetida experiecircncia (cultural) Um tal haacutebito por razotildees cronoloacutegicas natildeo pode ser proveniente da forma mentis proacutepria das recentes conquistas da ciecircncia jocircnica ou daquela pitagoacuterica recentes demais para chegar a serem consideradas uma maneira de pensar assentada isto eacute um ethos polypeiron um haacutebito de muita experiecircncia Afora essas correntes natildeo haacute outros candidatos de pensamento ldquonatildeo miacuteticordquo que podem ser alvo da criacutetica de Parmecircnides Por conseguinte como objeto das criacuteticas resta somente o pensamento miacutetico tradicional isto eacute aqueles relatos que de uma maneira ou de outra tentavam explicar o mundo o que coloca Parmecircnides em perfeita continuidade com seu mestre Xenoacutefanes7 Para a noccedilatildeo de ldquomenterdquo em Parmecircnides ver Galgano (2016 2017) parte primeira e segunda

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(aquela que passou pelo meacutetodo) e por outro as opiniotildees dos mortais nas quais a convicccedilatildeo natildeo eacute verificadardquo

3 OS CAMINHOS

Apoacutes a explicitaccedilatildeo do programa de ensino a deusa comeccedila a explicar seu meacutetodo de verificaccedilatildeo Eacute aqui que nos deteremos mais porque eacute neste ponto que estreia pela primeira vez a noccedilatildeo de natildeo-ser Trata-se do fr DK 28 B 2 que ora passamos a estudar e que em grego eacute assim

εἰ δrsquo ἄγrsquo ἐγὼν ἐρέω κόμισαι δὲ σὺ μῦθον ἀκούσας

αἵπερ ὁδοὶ μοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαιἡ μὲν ὅπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναιΠειθοῦς ἐστι κέλευθος (Ἀληθείηι γὰρ ὀπηδεῖ)ἡ δrsquo ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναιτὴν δή τοι φράζω παναπευθέα ἔμμεν ἀταρπόνοὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε μὴ ἐὸν (οὐ γὰρ ἀνυστόν)οὔτε φράσαις

31 OS VERSOS 1 E 2

Vejamos os primeiros dois versos do fragmentoEi drsquoaacutegrsquoegograven ereacuteo koacutemisai degrave sugrave mucircthon akouacutesas

haacuteiper hodoigrave moucircnai dizeacutesios eisi noecircsai

Pois bem eu te direi e tu recebe a palavra que ouviste

os uacutenicos caminhos de inqueacuterito que satildeo a pensar

Sua importacircncia eacute estrutural dentro do poema a deusa anuncia que vai dizer algo importante e pede ao kouros para preparar-se pois haacute caminhos especiacuteficos para o pensar investigativo e satildeo somente alguns (moucircnai depois saberemos que satildeo dois)

Houve muita discussatildeo sobre o sentido de νοῆσαι principalmente so-bre se ele eacute ativo ou passivo Aqui noesai se refere a um pensar investigativo o

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qual eacute necessariamente ativo pois uma investigaccedilatildeo passiva eacute um dos oximo-ros mais esdruacutexulos imaginaacuteveis O sentido eacute os caminhos que o pensar segue quando se dedica agrave investigaccedilatildeo satildeo aqueles uacutenicos que descreveraacute a seguir Uma outra maneira de traduzir pode ser esta o pensar entre todos os cami-nhos possiacuteveis segue estes uacutenicos em sua atividade de investigar Portanto a traduccedilatildeo de Cavalcante de Souza soa oacutetima a pensarhellip que

Vejamos na sequecircncia a coordenaccedilatildeo com os versos 3 e 5 que apresen-tam os correlativos comeccedilando pela construccedilatildeo

Pois bem eu te direi e tu recebe a palavra que ouviste

que os uacutenicos caminhos de inqueacuterito satildeo(verso 2 + verso 3) a pensar que eacute e que portanto natildeo eacute natildeo ser

(verso 2 + verso 5) a pensar que natildeo eacute e portanto que eacute preciso natildeo ser

A construccedilatildeo mostra que o sentido do noein (νοῆσαι) nesse caso eacute ativo Haacute uma atividade especiacutefica da mente Nessa atividade a mente se en-caminha por vaacuterios rumos de investigaccedilatildeo dos quais somente dois parecem ser viaacuteveis ou parecem ter sentido a investigaccedilatildeo a pensar que eacute e a investigaccedilatildeo a pensar que natildeo eacute

Que nos diz esse verso 2 Que Parmecircnides se pocircs a refletir sobre a mente humana embora ele natildeo tivesse esse conceito de ldquomenterdquo como noacutes a entendemos Essa reflexatildeo foi fatal e aos poucos veremos por quecirc Por en-quanto podemos sustentar que o ponto de partida de Parmecircnides eacute reflexivo Sua reflexatildeo verteu sobre o funcionamento da mente mais especificamente sobre que tipo de funcionamento leva agrave persuasatildeo ou leva a conclusotildees insatis-fatoacuterias do ponto de vista da explicaccedilatildeo do mundo

32 OS VERSOS 3 E 4he megraven hoacutepos eacutestin te kaigrave os eacutesti megrave eicircnai

peithoucircs esti keacuteleuthos (aletheiacuteei gagraver opedeicirc)

o primeiro que eacute e portanto que natildeo eacute natildeo-ser

de persuasatildeo eacute o caminho (pois agrave verdade acompanha)

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O verso 3 eacute provavelmente o mais estudado de Parmecircnides merece Entretanto vejamos primeiro o verso 4 Ali notamos a presenccedila de uma palavra marcadamente psicoloacutegica πειθοῦς persuasatildeo Parmecircnides percebe que a persuasatildeo eacute um fato da ldquomenterdquo conceito este uacuteltimo que lhe eacute estra-nho mas que ele consegue identificar descrevendo as sensaccedilotildees mentais8 E identifica duas persuasotildees uma acompanhada da verdade e outra na qual o convencimento natildeo eacute acompanhado da verdadeira confianccedila Agrave primeira ele chama de πειθός que gera a sensaccedilatildeo de firmeza na mente (ἀτρεμὲς ἦτορ DK 1 29) e acompanha a verdade Agrave segunda ele chama de ldquoopiniotildees dos mortaisrdquo na qual natildeo haacute uma πίστις ἀληθής (DK 1 30) um convenci-mento acompanhado de verdade

Essa distinccedilatildeo nos mostra agudeza da observaccedilatildeo psicoloacutegica A certeza pode ser de dois tipos ou eacute uma certeza que deixa espaccedilo a duacutevidas ou eacute uma certeza indubitaacutevel Isso expotildee um problema gnosioloacutegico posto que se tem uma convicccedilatildeo (e todo homem tem convicccedilotildees) como saber se essa convicccedilatildeo corresponde agrave verdade ou eacute uma convicccedilatildeo sem fundamento e sem correspon-decircncia com a realidade Natildeo eacute possiacutevel sabecirc-lo A mente mostra apenas sua convicccedilatildeo subjetiva e para saber se tal convicccedilatildeo eacute acompanhada de verdade ou se natildeo tem feacute verdadeira eacute preciso recorrer a algo extramental eacute necessaacuteria uma prova externa porque a mente por si soacute natildeo consegue identificar uma sua convicccedilatildeo proacutepria como verdadeira ou falsa

A diferenciaccedilatildeo de dois tipos de persuasatildeo no poema eacute clara9 e se a ordem dos fragmentos de Diels estiver correta essa diferenciaccedilatildeo pertence agrave parte propedecircutica pois natildeo se fala dela na parte do eon no fr 8 quando a ordem do mundo eacute explicada com exceccedilatildeo do final do discurso da deusa onde ela anuncia o encerramento de seu discurso confiaacutevel (πιστὸν λόγον) Isso significa que esse tema faz parte do instrumental argumentativo preacutevio que conduziraacute agrave sucessiva anaacutelise cosmoloacutegica Enfim nos versos 3-4 uma proclamaccedilatildeo anteriormente anunciada (vv 1-2) eacute agora enunciada (vv 3-4) em seu primeiro caminho Eacute enunciado o caminho que pensa o inqueacuterito com persuasatildeo verdadeira natildeo aquele pensar no qual natildeo haacute convicccedilatildeo ver-

8 A discussatildeo completa estaacute em Galgano (2012)9 Embora nesse fragmento a palavra persuasatildeo natildeo apareccedila associada aos ldquomortaisrdquo em outras partes essa ligaccedilatildeo eacute clara ou ateacute mesmo literal como em 8 38-39 onde se frisa que ldquoseratildeo nomes todas as coisas que os mortais determinaram persuadidos de ser verdaderdquo (τῶι πάντrsquo ὄνομ(α) ἔσται ὅσσα βροτοὶ κατέθεντο πεποιθότες εἶναι ἀληθῆ) Note-se πεποιθότες atribuiacutedo aos mortais particiacutepio perfeito de πείθω

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dadeira mas aquele caminho enfim que anda com a verdade Vamos agora voltar ao verso 3

Natildeo se pode isolar o verso 3 ἡ μὲν ὅπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι do anterior verso 2 (e nem do seu correlativo verso 5) e portanto natildeo se pode esquecer que trata de um caminho ou seja de um elemento di-nacircmico No entanto a primeira coisa que salta aos olhos eacute que todas as noccedilotildees envolvidas satildeo estaacuteticas e natildeo haacute nenhum elemento dinacircmico ou sequencial ou de qualquer natureza minimamente motora O sentido desse ponto de vista eacute que o pensar o ldquoἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναιrdquo natildeo eacute o pensar de um momento mas um pensar que segue por um caminho Ou seja significa que no percurso seguido pelo pensar para que o inqueacuterito seja de verdadeira per-suasatildeo o ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι deve ser constante Essa noccedilatildeo eacute estrutural o caminho de inqueacuterito a pensar deve conter uma constante vaacutelida em qualquer momento e passagem do caminho O fato de ser a afirmaccedilatildeo de uma constante (estaacutetica) numa dimensatildeo de caminho (dinacircmica) reforccedila a ideia de algo externo e de natureza fixa a ser aplicado a algo de natureza pro-cessual ou seja eacute uma lei porque a noccedilatildeo de lei expressa tambeacutem as relaccedilotildees fixas entre as dinacircmicas de elementos de um ou mais processos

Vamos observar a estrutura sintaacutetica do verso mais de perto ἡ μὲν ὅπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι Depois da conjunccedilatildeo correlativa ἡ μὲν ndash que se coadunaraacute com o ἡ δὲ de 25 (ἡ δrsquo ὡς) ndash o verso eacute constituiacutedo de duas unidades sintaacuteticas autocircnomas mas subordinadas ao verso 2 pelos pronomes ὅπως e ὡς ademais as duas unidades estatildeo ligadas pela conjunccedilatildeo τε καὶ Vejamos a construccedilatildeo sintaacutetica sem entrar ainda na semacircntica ou seja sem traduzir os termos ἔστιν οὐκ ἔστι e μὴ εἶναι

por um lado (ἡ μὲν) que ldquoArdquo e tambeacutem (τε καὶ) que ldquoBrdquo

A conjunccedilatildeo τε καὶ (e tambeacutem que) indica que temos duas oraccedilotildees as quais pela estrutura de todo o fragmento devem ser completas Devem porque natildeo parece que o sejam vejamo-las separadamente e sem os pronomes

A ἔστιν

B οὐκ ἔστι μὴ εἶναι

A primeira oraccedilatildeo eacute sem sujeito e sem objeto sendo constituiacuteda somen-te pelo verbo a segunda eacute igualmente sem sujeito contudo tem um objeto

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direto A primeira eacute afirmativa enquanto a segunda eacute negativa entretanto a segunda nega uma segunda negaccedilatildeo contida no objeto eacute negaccedilatildeo de negaccedilatildeo

Conjunccedilatildeo correlativa

Pronome relativo sujeito verbo objeto

Verso 23 ἡ μὲνOraccedilatildeo 1 ὅπως mdash ἔστιν mdashOraccedilatildeo 2 ὡς mdash οὐκ ἔστι μὴ εἶναι

Posto que em grego antigo o sujeito ou eacute expliacutecito ou eacute subentendido o grande misteacuterio dessas palavras eacute exatamente que o sujeito natildeo aparece nem expliacutecito e nem subentendido constituindo uma autecircntica anomalia literaacuteria Natildeo conveacutem nesta ocasiatildeo reconstruir a discussatildeo dos vaacuterios estudiosos em relaccedilatildeo a essa falta de nosso lado enfrentaremos a questatildeo por outras provi-decircncias Por enquanto vamos apresentar o resumo das possibilidades de solu-ccedilatildeo reportadas por Cordero (2005) Para o estudioso haacute quatro possibilidades para explicar a anomalia a saber ldquoa) Trata-se de um erro de transmissatildeo de texto se assim for este deve ser corrigido introduzindo o sujeito ausente b) haacute um sujeito conceitual impliacutecito que deve ser buscado no resto do Poema c) natildeo haacute nenhum sujeito possiacutevel e d) o sujeito deve ser extraiacutedo do predicado isolado pois o eacutestin ldquoproduzrdquo o sujeito As quatro possibilidades encontraram defensoresrdquo (CORDERO 2005 p 63)

Natildeo penso que seja o caso de tomar partido agora faremos isso so-mente no fim da nossa anaacutelise por enquanto vamos prosseguir com as nos-sas consideraccedilotildees A primeira delas eacute que as duas oraccedilotildees natildeo satildeo simples-mente conjuntas elas satildeo mais que conjuntas porque reuacutenem uma uacutenica noccedilatildeo em trecircs variaccedilotildees ἔστιν οὐκ ἔστι e μὴ εἶναι satildeo variaccedilotildees do campo semacircntico de εἰμί o verbo ser Seriam simplesmente conjuntas se apresen-tassem verbos e objetos diretos diferentes Naturalmente uma construccedilatildeo desse tipo seria possiacutevel10 e apresentaria duas oraccedilotildees sintaticamente inde-pendentes e conjuntas Poreacutem no nosso caso a construccedilatildeo eacute feita com trecircs formas do mesmo verbo que muito dificilmente tecircm uma conexatildeo apenas conjuntiva Ademais a primeira oraccedilatildeo eacute afirmativa e a segunda duplamente negativa o que faz pensar na estrutura da citaccedilatildeo platocircnica (Soph 237a8 DK B 7 1) a qual natildeo eacute sintaticamente igual mas muito semelhante que nunca os natildeo entes sejam onde tambeacutem uma dupla negaccedilatildeo recusa existecircncia

10 Por exemplo ldquoos uacutenicos caminhos de inqueacuterito a pensar por um lado que examina e que natildeo pretende natildeo avaliarrdquo

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aos natildeo entes implicando apenas variaccedilotildees formais de εἶναι dessa vez com o particiacutepio no neutro plural τὰ ἐοντα que natildeo estaacute presente no fr 211 Esses elementos precisam ser investigados

Vamos comeccedilar pela conjunccedilatildeo12 τε καὶ em geral traduzida por sim-ples conjunccedilatildeo pelos criacuteticos assume aqui um valor mais forte O fato de que seja uma conjunccedilatildeo elimina de iniacutecio a interpretaccedilatildeo do verso 3 como uma disjunccedilatildeo13 Mais que uma conjunccedilatildeo as duas subordinadas satildeo ligadas por uma conexatildeo vital na qual o τε καὶ no sentido de ldquotambeacutemrdquo ou ateacute mesmo ldquoambosrdquo representa a conjunccedilatildeo de uma segunda parte reforccedilando a primeira natildeo porque explica mas simplesmente porque as duas fazem parte de um todo como dois lados de uma mesma moeda14

Vamos deixar de lado por enquanto o primeiro hemistiacutequio e con-siderar somente o segundo O segundo hemistiacutequio de 3 soa assim os uacutenicos caminhos de inqueacuterito a pensar satildeo por um lado que [ldquoArdquo] e tambeacutem que natildeo eacute natildeo-ser O fato singular eacute que aleacutem da repeticcedilatildeo da negaccedilatildeo (natildeohellip natildeo) tem-se tambeacutem a repeticcedilatildeo do verbo εἰμί (eacutehellip ser) Obviamente natildeo se tra-ta de uma ditografia e portanto teremos que diferenciar o primeiro negar (οὐκ ἔστι natildeo eacute) do segundo negar (μὴ εἶναι natildeo-ser) O primeiro negar eacute feito pela partiacutecula negativa οὐκ e o presente do indicativo ἔστι A traduccedilatildeo simples e direta soa natildeo eacute Natildeo parece haver dificuldade quanto agrave traduccedilatildeo em si restando apenas o problema da falta de sujeito Se ldquonatildeo eacuterdquo estaacute certo resta descobrir a que se refere essa negaccedilatildeo e natildeo haacute outro candidato que o seguinte μὴ εἶναι

11 Eacute possiacutevel mostrar (e o fazemos em sede apropriada) que a citaccedilatildeo platocircnica (v 7 2) tem a mesma estrutura do v 2 312 Humbert (1954 p 370) ldquoDrsquoailleurs drsquoune faccedilon geacuteneacuterale une certaine indeacutetermination inseacuteparable de la poeacutesie qui exprime moins qursquoelle ne suggegravere est peu favorable agrave un emploi rigoreux et preacutecis des particulesrdquo13 Alguns interpretam de fato como disjunccedilatildeo ex Mansfeld (1960) em Meijer (1997) p 100 et passim O argumento de Mansfeld parte da consideraccedilatildeo de que o silogismo disjuntivo natildeo precisa de sujeito (aqui o argumento de Parmecircnides natildeo precisaria de um sujeito para o esti) A (ἔστιν) ou B (οὐκ ἔστι μὴ εἶναι)14 Aparentemente (pelo que pude descobrir) natildeo haacute estudos atuais completos sobre as partiacuteculas em grego antigo e parece que o uacuteltimo foi de Denniston (1954) De laacute para caacute as partiacuteculas foram estudadas por trabalhos especiacuteficos e separadamente por aacutereas literaacuterias (eacutepica trageacutedia etc) deixando uma lacuna na poesia onde o uso eacute muito menos rigoroso e oferece maiores dificuldades de interpretaccedilatildeo Um status questionis da problemaacutetica de te kai possivelmente se encontra em um paper do qual por enquanto soacute consegui o abstract Bonifazi (2012)

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Natildeo parece haver atestaccedilatildeo de μὴ εἶναι na poesia eacutepica Pela pesquisa no TLG as primeiras atestaccedilotildees parecem ser da eacutepoca de Parmecircnides se natildeo sucessivas sendo que nesse caso pode ter sido ele o primeiro a usar tal expres-satildeo Mas aguardando resultados filoloacutegicos mais precisos podemos assegurar que a noccedilatildeo de εἶναι contida no segundo negar natildeo deve ser a mesma do primeiro sob pena de gerar uma contradiccedilatildeo de termos incompreensiacutevel mas que justamente nesse sentido aticcedilou a fantasia de muitos criacuteticos Penso por exemplo naqueles que quiseram ver as duas negaccedilotildees apenas no sentido gra-matical15 e acabaram achando o argumento de Parmecircnides fraco ou tautoloacutegi-co quando natildeo inconsistente No entanto o primeiro negar (οὐκ ἔστι) quer negar um outro negar (μὴ) especiacutefico aquele que nega εἶναι

Vou repetir a sequecircncia porque por um lado a accedilatildeo do primeiro negar eacute predicativa e por outro lado a noccedilatildeo predicada eacute maacutexima e acaba por gerar um pequeno desconforto argumentativo O primeiro negar nega um segundo negar aquele que nega εἶναι Ou seja o segundo negar eacute um ldquonegar algo espe-ciacutefico (εἶναι)rdquo O conceito se torna claro se se manteacutem presente o sentido psi-coloacutegico muito mais que o gnosioloacutegico da expressatildeo parmenidiana Negar algo eacute o que fazem ambas as expressotildees tanto do primeiro quanto do segundo negar Todavia o segundo negar eacute a accedilatildeo especiacutefica de negaccedilatildeo de εἶναι a qual eacute uma accedilatildeo da mente eacute um comportamento concreto o comportamento mental de negar εἶναι Parmecircnides argumenta que o caminho persuasivo eacute aquele que nega que se possa ter o comportamento mental especiacutefico de negar εἶναι natildeo eacute possiacutevel (ter o comportamento mental de) negar εἶναι

Esse eacute um ponto que gerou muita confusatildeo Parmecircnides natildeo nega que se possa negar como se ele proacuteprio ao afirmar que o natildeo-ser natildeo eacute estivesse cometendo o maior dos disparates autocontraditoacuterios Satildeo muitiacutessimos os que interpretam Parmecircnides dessa forma e que afinal acabam asseverando que Parmecircnides eacute o filosofo do ser (apenas) Parmecircnides usa gramaticalmente a negaccedilatildeo e tambeacutem a usa gnosiologicamente e epistemicamente Daacute para dizer mais daacute para dizer que ele usa a negaccedilatildeo de forma magistral como poucos souberam usar na histoacuteria da filosofia De fato o segundo hemistiacutequio asseve-ra que haacute um percurso mental que eacute persuasivo (v 4) quando natildeo segue μὴ εἶναι Mais uma vez o percurso mental de inqueacuterito eacute persuasivo quando natildeo

15 Por exemplo C Kahn cuja uacutenica conclusatildeo segundo sua leitura seria ldquoIf we restate Parmenidesrsquo claim in the modern formal mode it might run lsquom knows that prsquo entails lsquoprsquordquo (KAHN 2009 p 153-154)

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se comporta mentalmente negando εἶναι quando natildeo tem a atitude de negar εἶναι Resta descobrir o que eacute εἶναι

O termo εἶναι eacute um infinitivo Como se sabe o infinitivo eacute a expressatildeo verbal depauperada de todo sentido acessoacuterio a ponto que ldquo[c]rsquoest de cette fa-ccedilon neacutegative que lrsquoinfinitif a eacuteteacute deacutefini comme repreacutesentant lrsquoideacutee verbale nuerdquo (HUMBERT 1954 p 125) Os mais variados estudos natildeo conseguiram expli-car de forma convincente um sentido especiacutefico para o uso feito por Parmecircnides Por exemplo The verb ldquoberdquo in ancient Greek (KAHN 2003 passim) um dos estudos mais completos sobre o tema vecirc-se obrigado a atribuir a Parmecircnides um uso supostamente novo mas parece-me de forma improacutepria e desnecessaacuteria16 Eu penso que quando Parmecircnides quis utilizar um novo sentido inventou um novo termo como no caso de to eon (invenccedilatildeo na linha jaacute consolidada de subs-tantivar verbos no gecircnero neutro) Natildeo fez o mesmo com εἶναι e suas demais formas verbais razatildeo pela qual o sentido deve ser buscado nas acepccedilotildees tradicio-nais as quais satildeo muacuteltiplas e equiacutevocas como diraacute mais tarde Aristoacuteteles

No infinitivo εἶναι expressa a ideia geral do verbo num campo se-macircntico que vai desde ldquopresenccedilardquo ateacute a funccedilatildeo predicativa comum a muitas liacutenguas indo-europeias Creio que seja inuacutetil buscar um sentido preciso como ldquoexistirrdquo ou ldquoestar presente localmenterdquo ou outro εἶναι significa tudo isso principalmente porque eacute usado no infinitivo e como objeto Em portuguecircs a palavra que expressa com a mesma equivocidade a pluralidade de sentido numa riqueza proacutexima ao grego eacute o verbo ldquoserrdquo17 Parece-me portanto per-feitamente inuacutetil cercear o sentido a uma uacutenica acepccedilatildeo restriccedilatildeo que acaba gerando interpretaccedilotildees polecircmicas Ateacute mesmo para a acepccedilatildeo de ldquoexistirrdquo se construiacuteram criacuteticas a meu ver improacuteprias pelas quais se chega a discutir se Parmecircnides pensasse ou natildeo que seres natildeo existentes como quimeras e outros

16 Kahn extrai o sentido de εἶναι em Parmecircnides natildeo do uso que o eleata faz mas do contexto geral da mensagem parmenidiana Teoricamente seria um meacutetodo viaacutevel posto que se consiga entender corre-tamente a mensagem do filoacutesofo Na praacutetica no caso do poema de Parmecircnides que verte exatamente sobre εἶναι e seus derivados haacute um risco enorme ndash ao qual em minha visatildeo Kahn sucumbiu ndash de cair num petitio principii onde o sentido de εἶναι eacute extraiacutedo da mensagem filosoacutefica geral (Kahn o extrai de 129 que eacute o ldquoiacutendice parmenidianordquo e portanto poderia oferecer a ideia geral do poema) e por sua vez a mensagem filosoacutefica eacute obtida a partir do sentido de εἶναι Kahn acredita ter encontrado no sentido ldquoveritativordquo o novo uso que Parmecircnides faz de εἶναι17 Para εἰμί o Dicionaacuterio LSJ apresenta sete campos (de A a G) com 16 acepccedilotildees e mais vaacuterias suba-cepccedilotildees Para o verbo ldquoserrdquo o Dicionaacuterio Houaiss apresenta 19 acepccedilotildees das quais 14 verbais e 5 como substantivo as subacepccedilotildees satildeo exemplificadas mas natildeo classificadas

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seres mitoloacutegicos pudessem ser incluiacutedos na leitura predicamental18 Principal-mente eacute necessaacuterio manter a equivocidade do termo porque corresponde agrave forma mentis do autor e natildeo se devem exigir distinccedilotildees que natildeo eram processa-das por aquela cultura sob pena mais uma vez de atribuir aos antigos a nossa proacutepria forma mentis pecado fatal para um historiador da filosofia

Desse modo de iniacutecio a traduccedilatildeo de μὴ εἶναι com ldquonatildeo-serrdquo ateacute mes-mo por ser equiacutevoca (para a nossa sensibilidade) manteacutem a equivocidade proacute-pria da eacutepoca e da liacutengua da eacutepoca Posta entatildeo essa equivocidade precisamos saber se expressa um sentido filosoacutefico antes de tudo para a eacutepoca e depois para noacutes A comparaccedilatildeo de 23 οὐκ ἔστι μὴ εἶναι com 71 Οὐ δαμῇ εἶναι μὴ ἐόντα que eacute o testemunho de Platatildeo nos faz entender que nessas palavras natildeo soacute se encontra um sentido filosoacutefico mas ateacute mesmo o sentido principal da filosofia de Parmecircnides Retomando portanto a construccedilatildeo precisamos entender por que pensar o natildeo-ser (μὴ εἶναι) eacute algo que natildeo eacute possiacutevel ou que natildeo se deve fazer ou que simplesmente natildeo eacute (natildeo acontece) segundo a expressatildeo usada por Parmecircnides οὐκ ἔστι

Aleacutem da traduccedilatildeo simples e imediata haveria outras possibilidades de traduccedilatildeo19 essas variaccedilotildees podem ser interessantes para evidenciar nuances aqui e acolaacute contudo tendo a possibilidade de utilizar o verbo ldquoserrdquo num uso equiacutevoco proacuteximo do grego natildeo precisamos recorrer agrave circunlocuccedilotildees e pode-mos traduzir οὐκ ἔστι com ldquonatildeo eacuterdquo20 e μὴ εἶναι com ldquonatildeo-serrdquo Diz portanto o segundo hemistiacutequio

Os uacutenicos caminhos de inqueacuterito ao pensar satildeo

Por um lado [ldquoArdquo] e que natildeo eacute natildeo-ser

18 De novo Kahn (2009) que assinala ldquoTo take the philosophical objection first it is simply false to say that you cannot think or talk about (point out in speech phrazein) what does not exist And the falseness of this would be obvious to any Greek who reflected for a moment on the profusion of monsters and fantastic creatures in traditional poetry and myth from Pegasus to the children of Gaia with a hundred arms and fifty heads apiecerdquo (HESIOD THEOGONY 150 172) Mais agrave frente ressaltamos que exatamente na questatildeo filosoacutefica Kahn estaacute errado e Parmecircnides estaacute certo eacute impossiacutevel pensar e dizer o natildeo-ser19 Um outro caminho possiacutevel de traduccedilatildeo utilizado principalmente pelos autores de liacutengua inglesa por motivos idiossincraacutesicos da liacutengua eacute empregar uma expressatildeo cuja noccedilatildeo tambeacutem eacute ampliacutessima e equiacutevoca ldquocoisardquo Mas essa expressatildeo por ser um substantivo natildeo possui o aspecto dinacircmico que o verbo tem sendo assim necessaacuterio acrescentar o verbo ser portanto eacute possiacutevel traduzir com ldquoas coisas que satildeordquo Outra possibilidade eacute usar o pronome ldquoquerdquo em sentido predicativo em substituiccedilatildeo de coisa ou coisas Outra ainda eacute o pronome demonstrativo (aquilo isto) ou o indefinido (algo) com a mesma funccedilatildeo substitutiva de coisa(s) no sentido mais indefinido possiacutevel20 Laacute onde em inglecircs haacute obrigatoriedade de explicitar-se o sujeito ldquowhat is notrdquo

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Se tiveacutessemos seguido a ordem metodoloacutegica tradicional ao examinar 23 teriacuteamos analisado primeiro ἔστιν e depois οὐκ ἔστι μὴ εἶναι E se de-pois de estudar o segundo hemistiacutequio voltaacutessemos nossa atenccedilatildeo ao primeiro hemistiacutequio natildeo teriacuteamos ganho metodoloacutegico nenhum pois redundariacuteamos na leitura por pressupostos em que o sentido de ἔστιν eacute obtido pelo pressu-posto de que ἔστιν significa em grego ldquoeacuterdquo todavia dessa maneira se chegaria aos resultados jaacute conhecidos considerados natildeo totalmente satisfatoacuterios pelos proacuteprios autores de cada interpretaccedilatildeo O dado concreto eacute que o poema natildeo oferece nenhuma definiccedilatildeo direta ou indireta de ἔστιν embora apresente mui-tos σήματα de ἐὸν Em compensaccedilatildeo o poema trata amplamente de μὴ εἶναι E natildeo eacute preciso ir muito longe para encontrar referecircncias para a noccedilatildeo de μὴ εἶναι pois observamos muitos dados nos versos de 5 a 8 do nosso fragmento Iremos portanto ao verso 5 e subsequentes

33 OS VERSOS 5 A 8 he drsquoos ouk eacutestin te kaigrave os khreoacuten esti megrave eicircnai

tegraven deacute toi phraacutezo panapeutheacutea eacutemmen atarpoacuten

ouacutete gagraver agravev gnoiacutees toacute ge megrave eograven (ou gagraver anustoacuten)

ouacutete phraacutezais

o outro que natildeo eacute e portanto que eacute preciso natildeo ser

este entatildeo eu te digo eacute atalho de todo incriacutevel

pois nem conhecerias o que natildeo eacute (pois natildeo eacute exequiacutevel)

nem o dirias

Vamos relembrar a letra do verso 5 ἡ δrsquo ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι Haacute uma construccedilatildeo paralela ao verso 3 dois hemistiacutequios no segundo dos quais encontramos nosso μὴ εἶναι No verso seguinte o caminho eacute chamado de παναπευθέα termo que muito fez e faz sofrer os filoacutelogos O sentido geral poreacutem eacute claro quer se queira traduzir como ldquode todo incriacutevelrdquo (CAVALCANTE DE SOUZA 1978) quer como ldquocompletamente inconos-ciblerdquo (CORDERO 2005 p 219) ou ldquowholly without reportrdquo (COXON 2009 p 56) ou como outro Em suma a noccedilatildeo geral eacute de que haacute uma difi-culdade intransponiacutevel em seguir esse caminho e por que eacute explicado a seguir

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Assim como em certa metodologia de exposiccedilatildeo primeiro se enuncia a tese e depois se propotildee o argumento demonstrativo Parmecircnides primeiro enuncia (como conveacutem agrave expressatildeo de uma deusa) e depois diz por quecirc Ora a novida-de cultural eacute exatamente esse porquecirc onde as afirmaccedilotildees natildeo satildeo mais apenas impostas por sua forccedila hieraacutetica mas precisam de explicaccedilotildees21

O nosso primeiro problema eacute que os enunciados (no verso 3 antes no verso 5 agora) natildeo satildeo claros para noacutes Nesse sentido podemos pedir clareza aos argumentos Qual eacute o argumento Eis a resposta de Parmecircnides οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε μὴ ἐὸν (οὐ γὰρ ἀνυστόν) οὔτε φράσαις Aqui a traduccedilatildeo eacute mais clara e natildeo haacute muita divergecircncia entre os criacuteticos pois nem poderias co-nhecer o que natildeo eacute (pois eacute impossiacutevel) nem o dirias Haacute aqui um claro objeto do discurso τό μὴ ἐὸν o qual sem hesitaccedilatildeo desta vez podemos traduzir por ldquoo que natildeo eacuterdquo Sem hesitaccedilatildeo porque τὸ ἐὸν eacute uma expressatildeo desconhecida antes de Parmecircnides aparece com ele eacute estudada por seus disciacutepulos e pelos seus criacuteticos (de Melisso a Aristoacuteteles) e eacute reportada pela doxografia como invenccedilatildeo parmenidiana

A noccedilatildeo exposta por Parmecircnides eacute sequencial o caminho de inqueacuterito que pensa οὐκ ἔστιν aqui chamado de ἀταρπόν natildeo pode ser percorrido porque eacute impossiacutevel ldquoconhecerrdquo (γνοίης ndash segunda pessoa do optativo aoristo ativo de γιγνώσκω) o que natildeo eacute e vamos deixar para depois a questatildeo do di-zer (οὔτε φράσαις) Vamos concentrar nossa atenccedilatildeo sobre γνοίης Para noacutes eacute menos importante a traduccedilatildeo gramaticalmente e estilisticamente precisa e mais importante a precisatildeo da noccedilatildeo filosoacutefica exposta Em relaccedilatildeo a essa pa-lavra houve (e ainda haacute) uma discussatildeo acirrada Discute-se se traduzir por ldquoconhecerrdquo como fazem alguns (COXON 2009 p 56 GALLOP 1984 p 55 TARAacuteN 1965 p 32 e muitos outros) ou ldquoreconhecerrdquo como fazem outros (por exemplo BARNES 1982 p 124) e principalmente que sentido atribuir ao ldquoconhecerrdquo Eu penso que considerado o contexto natildeo se trata do conhecer epistecircmico mas do conhecer gnosioloacutegico ou seja da capacidade que a mente possui de estabelecer um processo de conhecimento E que se trate de processo eacute claro pela vaacuteria terminologia que Parmecircnides usa mas principalmente pela sua ὁδός que ficaraacute para sempre como metaacutefora perfeita dos procedimentos a serem tomados para realizar tarefas de qualquer natureza vindo a receber o nome de meacutetodo

21 Rossetti (2010) A necessidade de explicaccedilotildees natildeo eacute mais soacute dos autores mas tambeacutem da audiecircncia que agora requer argumentos

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Para o meacutetodo do pensar epistecircmico declara Parmecircnides natildeo eacute con-veniente seguir um certo percurso porque sobre ele haacute ao menos uma etapa onde se deve ldquoconhecerrdquo ndash ou seja onde se deve exercer a capacidade gnosioloacute-gica ndash o τό μὴ ἐὸν mas isso eacute impossiacutevel Na verdade tanto o termo ἀνυστόν (reportado por Simpliacutecio) quanto sua variante ἐφικτόν (reportada por Proclo) tecircm um sentido processual quero dizer que a tarefa de pensar o τό μὴ ἐὸν natildeo apresenta uma impossibilidade que se realiza imediatamente mas uma que implica um processo o qual eacute impossiacutevel em sua inteireza porque natildeo pode ser levado a termo De fato ἀνυστός significa ldquoser completadordquo ldquopraticaacutevelrdquo enquanto ἐφικτός significa ldquofaacutecil de alcanccedilarrdquo ldquoacessiacutevelrdquo Ambos os termos tecircm sentido dinacircmico e processual e a negaccedilatildeo que Parmecircnides faz significa que esse processo natildeo pode ser levado a termo

De que processo se trata Em minha visatildeo trata-se do processo concre-to de pensar a negaccedilatildeo do ser Parmecircnides eacute de aacuterea de formaccedilatildeo pitagoacuterica e os pitagoacutericos ndash como assinala Aristoacuteteles (Metaph 986a15-26) ndash naquela eacutepoca estudavam as oposiccedilotildees as mais abstratas tendo passado da oposiccedilatildeo mais antiga entre par e iacutempar correspondentes a limitado e ilimitado (πέρας e ἄπειρον) a um conjunto de dez oposiccedilotildees Nada desabona uma possiacutevel tentativa de Parmecircnides buscar uma oposiccedilatildeo (a qual era feita tambeacutem por negaccedilatildeo como nos evidencia a expressatildeo verbal da oposiccedilatildeo entre πέρας e ἄπειρον com o ldquoαrdquo privativo) para o ldquotodordquo aquele πάντα que encontramos no verso 128 do poema e que em breve transformar-se-ia em φύσις no curso da evoluccedilatildeo histoacuterica dos conceitos filosoacuteficos da antiga Greacutecia

A meditaccedilatildeo do ldquonatildeo-serrdquo eacute das mais interessantes a se fazer na filosofia Tentar ldquopensarrdquo o ldquonatildeo-serrdquo eacute uma experiecircncia profunda a qual leva a conside-raccedilotildees radicais natildeo soacute sobre a existecircncia humana mas sobre a existecircncia como um todo Que Parmecircnides tenha se dedicado a essa meditaccedilatildeo eacute seguro pois ele o diz indiretamente em 22 quando afirma que os uacutenicos caminhos ao pensar satildeo aquele que pensa ἔστιν e aquele que pensa οὐκ ἔστιν O que natildeo sa-bemos e natildeo podemos afirmar com certeza eacute que tipo de meditaccedilatildeo ele reali-zou Eis que os termos ἀνυστόν ou ἐφικτόν vecircm nos socorrer e nos informam que se trata de uma meditaccedilatildeo processual que natildeo acaba Descrevi esse proces-so detalhadamente em outro trabalho (GALGANO 2010) e o repetirei aqui brevemente Pensar o natildeo-ser significa pensar concretamente a negaccedilatildeo do ser concreto (do mundo sensiacutevel ou inteligiacutevel) de cada ser Para tornar mais claro o processo pode-se comeccedilar negando a existecircncia de um ente depois daquilo

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que o rodeia depois do planeta depois do universo (sensiacutevel e inteligiacutevel atual e possiacutevel) e depois do mundo como um todo enfim do todo

O problema principal dessa meditaccedilatildeo eacute exatamente pensar se o sujeito pertence ou natildeo ao todo Quando se pensa a negaccedilatildeo do todo permanece ainda o sujeito pensante que pensa o todo como se o olhasse de um ponto virtual externo a ele E quando se tenta incluir o sujeito pensante de duas uma 1) ou o sujeito acreditando pensar a si proacuteprio dentro do todo reapa-rece externamente22 ou 2) o sujeito cognitivo desaparece e com ele qualquer noccedilatildeo cognitiva de ldquonatildeo-serrdquo Podemos assegurar claramente que o processo de pensar o τό μὴ ἐὸν natildeo termina seja porque eacute impossiacutevel incluir o sujeito no todo pois ele sempre reaparece a cada tentativa seja porque o processo quan-do inclui o sujeito no todo interrompe-se sendo assim impossiacutevel completar a negaccedilatildeo do todo Natildeo podemos saber se o modelo meditativo de Parmecircnides foi exatamente este mas natildeo me parece haver nada em desabono23

Entretanto qual eacute a importacircncia de natildeo se poder pensar a negaccedilatildeo de tudo Seguindo o argumento parmenidiano o caminho (ἀταρπόν) cognitivo que pensa τό μὴ ἐὸν natildeo pode ser concluiacutedo Ora ἀταρπόν eacute um sinocircnimo que Parmecircnides usa para o ὁδός do verso 22 (ὁδοὶ) isso quer dizer que o segundo caminho de inqueacuterito pode ser iniciado mas natildeo pode ser levado a termo Poreacutem se natildeo pode ser levado a termo por que eacute identificado como caminho Por que natildeo eacute excluiacutedo jaacute de iniacutecio quando a deusa ao inveacutes de anunciar os uacutenicos (moucircnai plural) caminhos natildeo anuncia um uacutenico cami-nho A resposta a essa pergunta torna clara a estranha afirmaccedilatildeo de que o caminho do pensar do segundo hemistiacutequio do verso 5 eacute necessaacuterio que per-maneccedila natildeo ser (χρεών ἐστι μὴ εἶναι) Parmecircnides assevera que embora seja um caminho que jamais pode ser completado ele ao mesmo tempo natildeo pode ser eliminado continua a pertencer aos (dois) uacutenicos caminhos de inqueacuterito ele eacute necessaacuterio

22 Se penso na aniquilaccedilatildeo de tudo incluindo a mim mesmo terei que pensar a mim mesmo aniquilado contudo esse pensar gerando esse novo pensamento gera um novo sujeito cognitivo pensante se aniquilo esse novo pensamento terei um novo sujeito cognitivo que pensa essa nova aniquilaccedilatildeo e assim por diante ad infinitum23 Natildeo quero garantir que Parmecircnides estreie uma filosofia do sujeito embora isso natildeo possa ser excluiacutedo a priori jaacute que os embriotildees de uma tal filosofia apareceratildeo em breve com Soacutecrates Acredito que se deve pensar mais no sujeito como o atleta campeatildeo das Olimpiacuteadas ou seja aquele capaz de cumprir (ou natildeo) certas proezas como fica extraordinariamente evidenciado no paradoxo de Zenatildeo cuja metaacutefora da filosofia (e do filoacutesofo) como tartaruga mostra que o pensar filosoacutefico eacute capaz de proezas maiores do que as proezas do proacuteprio Aquiles tidas como insuperaacuteveis pela cultura da eacutepoca

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Vamos de novo reconstruir essa parte do argumento com esse novo elemento os uacutenicos caminhos de inqueacuteritos satildeo

1) por um lado o caminho ao pensar que [versos 3 e 4] e

2) por outro lado o caminho ao pensar que [ldquoCrdquo (verso 5 primeiro hemistiacute-quio)] e que eacute necessaacuterio (que seja) natildeo-ser

De fato esse segundo caminho (ἀταρπόν) eacute inviaacutevel porque ldquonatildeo se consegue levar a cabo a reflexatildeordquo (γνοίης) quando se pensa o τό μὴ ἐὸν Ou seja fica muito clara a equaccedilatildeo entre o segundo caminho (v 5) e a reflexatildeo sobre o natildeo ser (τό μὴ ἐὸν) Finalmente o segundo hemistiacutequio do v 5 diz que esse eacute o caminho ao pensar que eacute necessaacuterio que seja μὴ εἶναι o qual agora sabemos eacute o caminho que tenta pensar o natildeo-ser (τό μὴ ἐὸν) Sabe-mos agora o que Parmecircnides chama de μὴ εἶναι Para Parmecircnides μὴ εἶναι eacute a estrutura do pensamento quando tenta inexoraacutevel e malogradamente pensar o natildeo-ser (τό μὴ ἐὸν)

Temos portanto a semacircntica de μὴ εἶναι e sabemos que significa a impossibilidade de pensar o natildeo-ser Com esse dado podemos reconstruir o resto do argumento mas primeiro vamos abordar a questatildeo do οὔτε φράσαις A premissa principal eacute o pano de fundo da pesquisa parmenidiana a qual estaacute em busca do discurso confiaacutevel como a deusa diz claramente no encerramen-to do fragmento 8 (talvez ecoando simetricamente alguma parte perdida do poema)24 Pensar o τό μὴ ἐὸν natildeo eacute possiacutevel logo ele eacute indiziacutevel Ora isso significa nem mais nem menos que dizer que o que eacute impossiacutevel eacute contra o sentido do dizer Eacute indiziacutevel natildeo porque natildeo se sabe do que se trata como querem muitos autores que fazem a leitura meramente epistemoloacutegica25 Eacute indiziacutevel porque dizer o ldquonatildeo-serrdquo significa fazer uma promessa que jamais se cumpriraacute ao se dizer ldquonatildeo-serrdquo parece que a expressatildeo aponta algo possiacutevel ou seja a negaccedilatildeo do ser e de fato quem estaacute desavisado assim acredita Mas a expressatildeo ldquonatildeo-serrdquo quer referir-se a algo que jamais seraacute cumprido que o

24 850-2 ldquoἐν τῶι σοι παύω πιστὸν λόγον ἠδὲ νόημα ἀμφὶς ἀληθείης δόξας δrsquo ἀπὸ τοῦδε βροτείας μάνθανε κόσμον ἐμῶν ἐπέων ἀπατηλὸν ἀκούωνrdquo ldquoNeste ponto encerro fidedigna palavra e pensamento sobre a verdade e opiniotildees mortais a partir daqui aprende a ordem enganadora de minhas palavras ouvindordquo (CAVALCANTE DE SOUZA 1978)25 Trata-se da leitura epistemoloacutegico-predicamental se natildeo sei a cor de um objeto (porque a cor natildeo eacute natildeo estaacute acessiacutevel ao meu conhecimento) natildeo posso falar da cor do objeto

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ser seja negado Esta eacute exatamente a noccedilatildeo expressa pelas palavras de Platatildeo jamais prevaleceraacute que natildeo entes sejam26

A expressatildeo μὴ εἶναι representa essa impossibilidade de pensamento e portanto eacute um dizer impossiacutevel o que se opotildee radicalmente agrave proacutepria noccedilatildeo de dizer a qualquer significar enquanto discurso confiaacutevel do mundo e da sua ordem Surge a pergunta mas se natildeo se pode dizer μὴ εἶναι se isso eacute impossiacute-vel natildeo haacute uma flagrante contradiccedilatildeo na deusa jaacute que ela proacutepria diz e cons-troacutei um argumento sobre o dizer μὴ εἶναι A objeccedilatildeo seria vaacutelida se a deusa dissesse o que eacute impossiacutevel de dizer ou seja se ela praticasse a impossibilidade Todavia a deusa natildeo diz o impossiacutevel a deusa aponta para o impossiacutevel indica o impossiacutevel pois ela diz que existem a ldquonoccedilatildeo de impossibilidade do pensarrdquo e a ldquonoccedilatildeo de impossibilidade do dizerrdquo Em outras palavras a deusa diz qual eacute o limite do pensar e qual eacute o limite do dizer Aleacutem desse limite o pensamento natildeo pode ir porque eacute impossiacutevel e tambeacutem o dizer natildeo pode ir porque eacute im-possiacutevel A impossiacutevel regiatildeo para aleacutem desse limite natildeo eacute admitida pelo dizer eacute contra o dizer eacute contraditoacuteria

A expressatildeo μὴ εἶναι em Parmecircnides eacute exatamente a palavra que ex-pressa o processo mental que noacutes chamamos contradiccedilatildeo e que ele primeiro assim chamou (οὔτε φράσαις natildeo diziacutevel) Eacute estranho que nenhum criacutetico te-nha percebido isso claramente Todos afirmam que o princiacutepio de natildeo contra-diccedilatildeo estaacute implicado em Parmecircnides assim como os outros princiacutepios loacutegicos pois os argumentos presentes no poema satildeo desenvolvidos segundo a natildeo con-tradiccedilatildeo poreacutem o princiacutepio natildeo eacute enunciado Alguns como Cordero veem justamente explicitado o princiacutepio do terceiro excluiacutedo (816 ἔστιν ἢ οὐκ ἔστιν) mas ningueacutem quis ver claramente que natildeo soacute a noccedilatildeo como tambeacutem a proacutepria palavra ldquocontradiccedilatildeordquo (οὔτε φράσαις natildeo diziacutevel contra o diziacutevel contra a dicccedilatildeo) estaacute explicitada no poema Penso que a razatildeo fundamental para que acontecesse esse lapsus tenha que ser procurada na grande atenccedilatildeo dada ao ldquoserrdquo e na pouca dada ao ldquonatildeo-serrdquo Como observaremos mais adiante por causa desse lapsus eu penso que natildeo se conseguiu entender plenamente a estrutura do fragmento 2 o qual simplesmente natildeo apresenta um silogismo disjuntivo nem nenhuma contradiccedilatildeo entre o caminho do ldquoserrdquo e o caminho do ldquonatildeo-serrdquo Parmecircnides assevera justamente que a expressatildeo ldquonatildeo-serrdquo eacute contraditoacuteria o ldquonatildeo-serrdquo natildeo pode ser dito porque ldquonatildeo-serrdquo eacute contraditoacute-

26 As duas expressotildees tecircm inversatildeo de predicado e negaccedilatildeo no entanto a noccedilatildeo permanece a mesma que os entes natildeo sejam (perecimento no fr 8) e que os natildeo entes sejam (nascimento no fr 8) A noccedilatildeo eacute o tracircnsito entre ser e natildeo ser

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rio e a expressatildeo ldquonatildeo-serrdquo indica tatildeo somente uma impossibilidade concreta aquela de que se realize o impossiacutevel

Vamos voltar ao nosso argumento e agrave questatildeo que deixamos em suspenso por que eacute necessaacuterio que μὴ εἶναι seja Sabemos que os versos 7 e 8 relatam um processo malogrado de pensar o natildeo ente (τό μὴ ἐὸν) Uso agora a palavra ente porque se justifica uma diferenciaccedilatildeo embora tanto ldquoenterdquo quanto ldquoserrdquo indiquem expressotildees gerais e natildeo individuais ldquoEnterdquo vem por conseguinte a significar o ente concreto aquele que eacute Parmecircnides sustenta que natildeo se pode pensar e dizer τό μὴ ἐὸν o ldquonatildeo enterdquo Esse processo recebe o nome de μὴ εἶναι ldquonatildeo-serrdquo a esse processo noacutes chamamos contradiccedilatildeo27 Entatildeo a indicaccedilatildeo eacute esta haacute um caminho ao pensar que pensa μὴ εἶναι (a contradiccedilatildeo) e eacute necessaacuterio que assim seja porque (vou repetir trecircs vezes de forma diferente28 para significar a mesma coisa)

1) se natildeo houvesse a contradiccedilatildeo

2) se natildeo se tem a noccedilatildeo de contradiccedilatildeo

3) se natildeo se sabe o que eacute contradiccedilatildeo

cai-se no discurso contraditoacuterio o que impede o inqueacuterito confiaacutevel Eacute ne-cessaacuterio saber que μὴ εἶναι (o processo de contradiccedilatildeo) eacute um caminho a ser evitado porque cria pensamentos e discursos contraditoacuterios

Vejamos de novo nosso fragmento com os elementos esclarecidos ateacute aqui

os uacutenicos caminhos de inqueacuterito a pensar satildeo

por um lado que [ versos 3 e 4]

e por outro lado que οὐκ ἔστιν e que eacute necessaacuterio que seja a contradiccedilatildeo (μὴ εἶναι)

a qual eacute um caminho natildeo criacutevel

pois eacute impossiacutevel pensar e dizer o natildeo ente (τό μὴ ἐὸν)

27 Mesmo para noacutes a contradiccedilatildeo eacute um processo porque indica a posiccedilatildeo de algo em contraposiccedilatildeo com mais algo isso significa que esses dois algos tecircm que ser relacionados para que haja contradiccedilatildeo do contraacuterio algo e mais algo podem conviver sem contraditoriedade Contudo esse assunto estaacute fora de tema e requer muitas outras providecircncias para o bom discernimento28 Repito buscando clareza pois nossas construccedilotildees comuns de linguagem nesses assuntos costumam ldquopatinarrdquo

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Penso que o espaccedilo conceitual deixado por οὐκ ἔστιν agora se pre-encha quase que por si haacute um caminho de inqueacuterito ao pensar que ldquonatildeo eacuterdquo e que eacute necessaacuterio que se considere contraditoacuterio porque eacute caminho que natildeo leva a lugar nenhum

A expressatildeo οὐκ ἔστιν eacute a negaccedilatildeo da terceira pessoa do indicativo de εἰμί a expressatildeo em si natildeo tem nada de especial significa tatildeo somente ldquonatildeo eacuterdquo restando em aberto o problema da ausecircncia de sujeito Mas agora sabemos o argumento complexo que estaacute na raiz da expressatildeo e a meu ver natildeo faz muito sentido a questatildeo de buscar um sujeito ou um objeto para definir se eacute usado de forma transitiva ou intransitiva se expressa existecircncia ou predicaccedilatildeo e as muitas combinaccedilotildees que podem ser montadas a partir da equivocidade do uso de εἰμί No entanto o acircmbito semacircntico foi evidenciado e estaacute claro e aleacutem do mais tem o testemunho de Platatildeo a confirmar o campo semacircntico da negaccedilatildeo de εἰμί nas vaacuterias formas estaacute relacionado a uma reflexatildeo sobre a impossibili-dade dessa negaccedilatildeo Obviamente para dizer que algo eacute impossiacutevel de alguma forma tenho que indicar essa impossibilidade com alguma expressatildeo Assim se digo ldquotriacircngulo quadradordquo aponto para uma impossibilidade jaacute que por defi-niccedilatildeo a essecircncia do triacircngulo exclui a essecircncia do quadrado logo a expressatildeo ldquotriacircngulo quadradordquo natildeo significa aquilo que parece prometer ou seja natildeo significa uma figura geomeacutetrica especial que eacute ao mesmo tempo triacircngulo e quadrado dizer ldquotriacircngulo quadradordquo eacute dizer algo ldquoindiziacutevelrdquo ldquonatildeo diziacutevelrdquo (na medida em que o diziacutevel quer expressar sentido) ldquoque nega o diziacutevelrdquo ldquoque eacute contra o diziacutevelrdquo que eacute contraditoacuterio

A semacircntica do ldquonatildeo serrdquo eacute fortiacutessima e estaacute muito aleacutem das sutilezas gramaticais morfoloacutegicas e sintaacuteticas e estas simplesmente natildeo afetam aquela O assunto tratado eacute tatildeo forte que ultrapassa qualquer forma linguiacutestica a pon-to de que esse assunto a ordem do ser e do natildeo-ser no mundo eacute responsaacutevel pela determinaccedilatildeo da lei da linguagem e natildeo vice-versa como bem entendeu Platatildeo no Sofista onde a teoria da predicaccedilatildeo surge em funccedilatildeo de uma refle-xatildeo sobre a ordem das leis baacutesicas do mundo Com efeito o approach linguiacutes-tico ao poema pode proceder ateacute certo ponto dali em diante o poema eacute fran-camente filosoacutefico e a chave linguiacutestica natildeo eacute suficiente para o acesso Isso quer dizer que com a chave linguiacutestica natildeo se abre a porta da questatildeo filosoacutefica do poema Se a questatildeo eacute que ldquojamais o natildeo ser pode se tornar serrdquo como (apro-ximadamente com essas palavras) argumenta Platatildeo citando Parmecircnides en-tatildeo diante da semacircntica que οὐκ ἔστιν apresenta discutir o sujeito de οὐκ ἔστιν se torna tarefa menor Considerada a desproporccedilatildeo entre o conteuacutedo (a

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semacircntica) e o recipiente (a palavra) entre o significado e o significante natildeo eacute impossiacutevel que οὐκ ἔστιν seja tatildeo somente uma expressatildeo simplificada quem sabe ateacute mesmo uma simplificaccedilatildeo didaacutetica pois o conteuacutedo do conceito estaacute expresso e justificado depois nos versos 7 e 8

O caminho de pensar que natildeo eacute e de pensar que eacute necessaacuterio natildeo ser eacute o caminho que afirma a necessidade de que a noccedilatildeo de natildeo-ser permaneccedila estaacutevel A contradiccedilatildeo tem que permanecer e ser identificada como tal pois eacute a uacutenica maneira de evitar que ela entre no pensamento e no discurso Se o ldquonatildeo-serrdquo natildeo for considerado contraditoacuterio a contradiccedilatildeo invade e domina o caminho de inqueacuterito o qual deixa de possuir πίστις ἀληθής (130) Assim eacute preciso que esse caminho seja identificado como μὴ εἶναι por um lado o ldquonatildeo-serrdquo eacute incognosciacutevel (οὔτε γὰρ ἂν γνοίης) mas por outro lado eacute neces-saacuterio que se saiba que ele eacute incognosciacutevel Saber do incognosciacutevel garante o conhecimento29 pois de fato ao natildeo se identificar o ldquonatildeo-serrdquo cai-se no risco de pensar que ldquoserrdquo e ldquonatildeo-serrdquo satildeo o mesmo e natildeo o mesmo como Parmecircni-des afirma em DK 6 5-6 Necessariamente o caminho que pensa οὐκ ἔστιν leva ao processo de contradiccedilatildeo (μὴ εἶναι) e a natildeo conclusatildeo do caminho (ἀνυστόν) natildeo eacute evidente na expressatildeo pelo contraacuterio τό μὴ ἐὸν parece uma negaccedilatildeo comum como qualquer outra poreacutem natildeo o eacute por isso eacute um saber destinado ao saacutebio e natildeo aos mortais porque eacute um saber fruto de uma reflexatildeo

34 DE VOLTA AOS VERSOS 3 E 4

Penso que podemos agora voltar ao verso 23 ao nosso segundo he-mistiacutequio onde aparece a expressatildeo μὴ εἶναι da qual jaacute temos a semacircntica Podemos entatildeo reconstruir ldquoos uacutenicos caminhos de inqueacuterito a pensar satildeo

por um lado a pensar que [ldquoArdquo] e tambeacutem a pensar que οὐκ ἔστι μὴ εἶναι este eacute caminho de persuasatildeo pois verdade acompanha e

por outro lado a pensar que ldquonatildeo eacuterdquo e tambeacutem a pensar que eacute necessariamente um percurso de pensamento contraditoacuterio porque eacute um caminho ldquoimpossiacutevelrdquo (παναπευθέα) pois o pensamento do ldquonatildeo enterdquo natildeo pode ser completado

O οὐκ ἔστι do verso 3 parece ser diferente do οὐκ ἔστιν do verso 5 Enquanto no 5 ele eacute quase que o nome do caminho (talvez uma simplificaccedilatildeo didaacutetica) no 3 parece significar simplesmente ldquonatildeo eacuterdquo em sentido comum

29 Estaacute aqui uma semente do socratismo

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predicativo De fato esse eacute o caminho da persuasatildeo e portanto eacute o caminho do pensamento natildeo-contraditoacuterio Ali a persuasatildeo era impossiacutevel pela con-tradiccedilatildeo aqui eacute possiacutevel pela natildeo-contradiccedilatildeo Sabemos que a expressatildeo μὴ εἶναι eacute a expressatildeo da contradiccedilatildeo suprema de sorte que a natildeo-contradiccedilatildeo eacute a negaccedilatildeo de μὴ εἶναι A traduccedilatildeo de οὐκ ἔστι fica faacutecil embora para a nossa sensibilidade possa parecer algo improacuteprio usar duas vezes οὐκ ἔστι de forma natildeo perfeitamente uniacutevoca a dois versos de distacircncia Logo para o segundo hemistiacutequio do v 3 mantenho esta traduccedilatildeo ldquonatildeo eacuterdquo em parte ambiacutegua para nossas exigecircncias mas que soa perfeitamente harmocircnica com o discurso par-menidiano [] ao pensar que [ldquoArdquo] e que natildeo eacute ldquocontradiccedilatildeordquo (μὴ εἶναι)

Acredito por fim que podemos abordar facilmente o ἔστιν do verso 3 que tanto fez e faz penar os estudiosos de Parmecircnides Aqui de novo a grandeza da questatildeo cosmoloacutegica envolvida ndash a coerecircncia eou a contradito-riedade do real ndash simplesmente torna tatildeo minuacutescula a questatildeo do sujeito de ἔστιν que ela quase desaparece Eu tenho a tendecircncia a pensar que a falta de sujeito seja uma simplificaccedilatildeo didaacutetica30 cuja irregularidade linguiacutestica ajuda na memorizaccedilatildeo31 Todavia afinal tomo partido e entro tambeacutem no quarto grupo daqueles listados por Cordero o sujeito deve ser extraiacutedo do predicado isolado pois ἔστιν produz o sujeito32 De qualquer forma o sentido filosoacutefico eacute preciso haacute um caminho de inqueacuterito ao pensar que eacute aquele que pensa o ldquoeacuterdquo esse mesmo caminho eacute aquele ao pensar que natildeo eacute (e natildeo pode ser33) ldquocon-tradiccedilatildeordquo Depois haacute um outro caminho aquele ao pensar que ldquonatildeo eacuterdquo que eacute o caminho ao pensar que leva necessariamente agrave contradiccedilatildeo O primeiro eacute o 30 Segundo o relato platocircnico no diaacutelogo Parmecircnides Zenatildeo acompanhado de seu mestre foi para as Panateneias com a finalidade de defender a filosofia de seu mestre esclarecendo com seu livro repleto de paradoxos as ideias parmenidianas Isso sugere que o poema natildeo expunha articuladamente a filosofia de Parmecircnides mas que constituiacutesse um proacute-memoacuteria com as ideias em sua forma essencial depois elaboradas nas aulas pessoais (KURFESS 2012)31 Eacute extraordinaacuterio como essa simplificaccedilatildeo didaacutetica continue ativa por um lado distorcendo entretanto por outro mantendo viva a mensagem parmenidiana em todas as escolas de ensino meacutedio onde se estuda filosofia vox populi Parmecircnides eacute o filoacutesofo que disse ldquoO que eacute eacute e o que natildeo eacute natildeo eacuterdquo Por outro lado o estrangeiro de Eleia no Sofista lembra outro verso e natildeo este32 Essa questatildeo natildeo aprofundada aqui natildeo possui relevacircncia filosoacutefica no argumento apresentado pode ter relevacircncia se se considera o tipo de reflexatildeo ou seja se se discute a ldquoexperiecircnciardquo do natildeo-ser e principalmente a experiecircncia concreta de Parmecircnides que talvez esteja ligada a praacuteticas de incubaccedilatildeo Nesse caso a dimensatildeo reflexiva adentra a dimensatildeo oniacuterica a qual possui outra sintaxe e onde um simples ἔστιν vale mais de mil articulaccedilotildees sintaacuteticas Natildeo sabemos com certeza dessas praacuteticas em Eleia contudo esse sentido preacute-sintaacutetico natildeo estaacute descartado inclusive alguns estudiosos entre os quais o proacuteprio Cordero atribuem ao ἔστιν o sentido de um grito como um Eureka Sugestotildees nesse sentido se encontram na minha dissertaccedilatildeo sobre Melisso (GALGANO 2010)33 A interpretaccedilatildeo modal eacute tambeacutem perfeitamente coerente aqui

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caminho que estabelece o discurso coerente (persuasivo) e o segundo natildeo leva a lugar nenhum e deve ser evitado Mas para que se saiba o que deve ser evi-tado eacute preciso que se conheccedila a impossibilidade do segundo caminho A fim de que se possa seguir o primeiro caminho eacute necessaacuterio saber que existe um outro sempre agrave espreita o qual parece oferecer a verdade mas que natildeo oferece uma verdade confiaacutevel que leva necessariamente agrave contradiccedilatildeo de pensamento e de expressatildeo linguiacutestica

4 O MEacuteTODO DA NAtildeO-CONTRADICcedilAtildeO

Parmecircnides provavelmente a partir de sugestotildees pitagoacutericas medita sobre a oposiccedilatildeo ao que existe e assim descobre o ldquonatildeo-serrdquo Descobre que ldquonatildeo serrdquo ou seja negar o ser negar o que haacute eacute de todo impossiacutevel (natildeo eacute possiacutevel completamente) Entende entatildeo que o ldquonatildeo-serrdquo essa impossibilidade eacute algo que a mente pensa julgando que esse pensamento leva por um caminho mas que na verdade ele descobre leva por outro caminho aquele que nunca che-ga a lugar nenhum Esse caminho que leva para lugar nenhum eacute o caminho dos mortais os quais confundem ser e natildeo ser No entanto o saacutebio deve saber distinguir por um lado o caminho do ldquoeacuterdquo que eacute o caminho do discurso natildeo contraditoacuterio e por outro lado o caminho do ldquonatildeo eacuterdquo que eacute o caminho do discurso que eacute tornado vatildeo pela contradiccedilatildeo

Parmecircnides descobre a contradiccedilatildeo (pela meditaccedilatildeo sobre o natildeo-ser) e percebe que ela eacute motivo de descaminho no discurso sobre o mundo Assim finalmente ele anuncia que a contradiccedilatildeo deve ser evitada A esse enunciado noacutes chamamos de princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo que aqui eacute aquele na versatildeo de Parmecircnides (depois a partir de Platatildeo e Aristoacuteteles haveraacute outras versotildees) Parmecircnides trabalha em acircmbito cosmoloacutegico e sua preocupaccedilatildeo ndash como os de seus colegas na eacutepoca ndash eacute com o mundo com a totalidade das coisas com os πάντα de seu proecircmio (128) Nesse acircmbito cosmoloacutegico descobre que haacute um princiacutepio do mundo pelo qual se daacute uma impossibilidade a contradiccedilatildeo A contradiccedilatildeo eacute um princiacutepio porque o que haacute (πάντα) enquanto todo escapa agrave negaccedilatildeo total Eis que a contradiccedilatildeo eacute princiacutepio tanto quanto a natildeo-contra-diccedilatildeo porque eacute a contradiccedilatildeo que permite a natildeo-contradiccedilatildeo Sem a noccedilatildeo de contradiccedilatildeo se anda com sentidos incertos como os mortais

O valor dessa afirmaccedilatildeo eacute historicamente inabalaacutevel porque Parmecircni-des partindo de um discurso sobre o mundo como que visto de fora por um observador (como Anaximandro via o mundo olhando seu pinax - cf ROS-

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SETTI 2013) alcanccedila um discurso que inclui o observador enquanto obser-vador estreando assim antes de tudo um discurso sobre os entes (ontologia) todos os entes incluindo os entes de pensamento (veja-se o famoso fragmento 3 onde se lecirc que pensar e ser satildeo o mesmo) Para ele o saacutebio natildeo eacute mais aquele que sabe soacute sobre as coisas externas ndash como o antigo xamatilde cuja figura indi-vidual se dissolve na mera intermediaccedilatildeo com o divino ndash poreacutem eacute tambeacutem aquele que consegue pensar sobre as coisas externas ou seja aquele que tem um domiacutenio cognitivo sobre os pensamentos de inqueacuterito e portanto sabe so-bre si mesmo Assim o saacutebio deve pensar por proacutepria conta e julgar pelo novo criteacuterio e natildeo pelo habitual discurso (κρῖναι δὲ λόγωι DK 75) ou seja natildeo deve julgar pelo discurso mas julgar o discurso porque agora o discurso enri-quecido de uma lei universal (a lei das αρχάι ἔστιν e οὐκ ἔστιν) possui uma medida de juiacutezo Parmecircnides amplia o mundo acrescentando ao mundo fiacutesico os mundos do pensamento e da linguagem Eis porque as αρχάι de Parmecircni-des sendo duas permanecem duas justamente eliminado uma delas deixando alguns criacuteticos enlouquecidos na discussatildeo sobre o monismo ou o dualismo de acordo com Parmecircnides o mundo eacute um todavia os sentidos nos enganam natildeo na pluralidade das coisas mas no argumento a respeito da pluralidade das coisas e principalmente ndash aspecto que ele discute explicitamente ndash a respeito do devir das coisas Haacute um princiacutepio que natildeo pode ser eliminado a contra-diccedilatildeo o qual eacute um princiacutepio de erro humano quando se elimina quando se desconsidera quando se faz de conta que natildeo existe a contradiccedilatildeo se instaura quando o princiacutepio eacute levado em conta a contradiccedilatildeo pode ser evitada

Eacute uma conceituaccedilatildeo esdruacutexula para noacutes tambeacutem porque temos que ter (a noccedilatildeo de) a contradiccedilatildeo para eliminar a contradiccedilatildeo temos que saber o que eacute contradiccedilatildeo para que possamos perceber quando o discurso eacute con-traditoacuterio Esses conceitos satildeo misteriosos ateacute agora e satildeo estranhas criaturas de nossas mentes Por exemplo a noccedilatildeo de ldquoimpossiacutevelrdquo obviamente (isto eacute para a nossa pragmaacutetica) natildeo se refere a nada de concreto no entanto temos essa noccedilatildeo e a usamos com o maacuteximo proveito outro exemplo a noccedilatildeo de ldquoinfinitordquo noccedilatildeo que natildeo se refere a algo pragmaticamente concreto mas que usamos igualmente com maacuteximo proveito O mesmo deve ser dito da noccedilatildeo de contradiccedilatildeo ou da noccedilatildeo de nada absoluto que usamos pragmaticamente com maior ou menor proveito

Parmecircnides encontra esse caminho e o expotildee Eacute um caminho assom-broso anti-intuitivo mas incontestaacutevel Dessa forma natildeo eacute de estranhar se a soluccedilatildeo platocircnica eacute a eliminaccedilatildeo fiacutesica da noccedilatildeo de nada absoluto (o par-

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riciacutedio) com sucessivo ldquoadeusrdquo34 achando de tecirc-lo ultrapassado Mas o nada absoluto enquanto noccedilatildeo contraditoacuteria permanece Assim como permane-ce a explicaccedilatildeo defeituosa do devir o qual assim como o conhecemos uma passagem do nada ao ser no nascimento e do ser ao nada no perecimento estaacute mal explicado Daqui por diante os comentaacuterios filosoacuteficos possiacuteveis satildeo inuacutemeros por conseguinte paro meu estudo neste ponto e proponho a versatildeo do fragmento 2 segundo a conceituaccedilatildeo apresentada ateacute aqui alterando de pouco a excelente versatildeo baacutesica de Cavalcante de Souza

Pois bem eu te direi e tu recebe a palavra que ouviste

os uacutenicos caminhos de inqueacuterito que satildeo a pensar

o primeiro que eacute e portanto que natildeo eacute (o caminho da) contradiccedilatildeo

de persuasatildeo eacute o caminho (pois agrave verdade acompanha)

o outro que natildeo eacute e portanto que eacute necessariamente (o caminho da) contradiccedilatildeo

este entatildeo eu te digo eacute atalho de todo incriacutevel

pois nem conhecerias o que natildeo eacute (pois natildeo eacute exequiacutevel)

nem o dirias

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ABSTRACT In fragment DK 28 B 2 of his poem Parmenides presents his method for distinguishing true persuasion from the lack of true persuasion His famous proposal of these two ways of thinking form a complex statement of a system that intends to guarantee the veracity of statements in order to obtain reliable discourse the only discourse capable of true persuasion The present paper shows that the central role in Parmenidian argumentation is attributed to non-being a notion derived from a reflection on the impossibility of the negation of being Thus the whole fragment is interpreted in terms of this central notion We show that Parmenides discovered the impossibility of negation which we now call lsquocontradictionrsquo and that he articulated the means for avoiding contradiction in thought and discourse a rule which today we call the principle of non-contradiction The study presented here is a detailed investigation of the notion of non-being in the DK 28 B 2 fragment and includes a new translation of it

KEYWORDS Parmenides Non-being Non-contradiction Eleatism Parricide

34 Platatildeo Soph 258e7-259a1 ἡμεῖς γὰρ περὶ μὲν ἐναντίου τινὸς αὐτῷ χαίρειν πάλαι λέγομεν εἴτrsquo ἔστιν εἴτε μή λόγον ἔχον ἢ καὶ παντάπασιν ἄλογον

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O natildeo-ser em Parmecircnides de Eleia Artigos Articles

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Page 4: O NÃO SER EM PARMÊNIDES ELEIA - SciELO · Trans/Form/Ação, Marília, v. 41, n. 2, p. 9-36, Abr./Jun., 2018 9 O não-ser em Parmênides de Eleia Artigos / Articles O NÃO-SER EM

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que aquilo que eacute chamado de ldquoverdaderdquo (relato verdadeiro na concepccedilatildeo arcai-ca da noccedilatildeo da verdade) eacute antes de tudo um fato psicoloacutegico subjetivo eacute uma convicccedilatildeo uma certeza subjetiva um ldquoestar persuadido derdquo Dada essa con-vicccedilatildeo do ponto de vista subjetivo ela eacute sempre uma verdade mas olhando as coisas de fora eacute possiacutevel perceber que haacute convicccedilotildees que natildeo satildeo verdadeiras (exemplo as vaacuterias concepccedilotildees miacuteticas a respeito do todo ou dos deuses) Des-se modo a convicccedilatildeo subjetiva passa a natildeo ser mais criteacuterio suficiente de verda-de eacute necessaacuterio um meacutetodo que garanta agrave mente a certeza da convicccedilatildeo agora colocada em duacutevida pela observaccedilatildeo do comportamento cognitivo das vaacuterias culturas (Xenoacutefanes) Em outras palavras uma vez observado que a convicccedilatildeo subjetiva natildeo eacute suficiente para garantir a veracidade daquela proposiccedilatildeo eacute ne-cessaacuterio encontrar um outro meacutetodo que garanta essa veracidade6

Observemos pois o status questionis proposto por Parmecircnides (1) a mente em geral tem convicccedilotildees7 (2) poreacutem agora sabemos que estar con-vencido de algo natildeo eacute suficiente para garantir a verdade daquela convicccedilatildeo logo natildeo sabemos se as convicccedilotildees da mente satildeo verdadeiras ou natildeo (3) haacute um meacutetodo objetivo que garante a verdade das convicccedilotildees (que satildeo sempre subjetivas) (4) depois da aplicaccedilatildeo do meacutetodo sabemos que haacute convicccedilotildees verdadeiras e convicccedilotildees natildeo verdadeiras as primeiras deixam a mente firme e sem a oscilaccedilatildeo da duacutevida as segundas satildeo aquelas que submetidas ao meacute-todo deixam a mente em oscilaccedilatildeo (satildeo as opiniotildees dos mortais) Podemos assim reler a expressatildeo da deusa ldquoEacute necessaacuterio que tu aprendas (a respeito do) lsquotudorsquo por um lado a mente firme que vem da verdade bem conexa

6 Que Parmecircnides em sua criacutetica esteja referindo-se ao pensamento tradicional pode ser inferido pelo todo do poema Mas haacute passagens aqui natildeo discutidas as quais evidenciam essa criacutetica O elemento mais importante parece-me eacute que ele se refere aos brotoi os mortais os quais tecircm opiniotildees (crenccedilas nos relatos miacuteticos especificamente aqueles voltados a explicar os fatos naturais) nas quais falta a certeza confiaacutevel Quem satildeo os brotoi Embora haja divergecircncias e alguns queiram ver nos brotoi figuras relacionadas a pensadores supostamente antagonistas (por exemplo os heraclitianos) haacute uma passagem que nos faz entender claramente que se trata de uma criacutetica ao pensamento miacutetico tradicional No fr 7 a deusa convida o disciacutepulo a natildeo permitir que um ethos polypeirov o haacutebito de muita experiecircncia o obrigue a permanecer no caminho errado O que eacute ethos polypeirov Trata-se de um haacutebito de pensamento que se adquire pela repetida experiecircncia (cultural) Um tal haacutebito por razotildees cronoloacutegicas natildeo pode ser proveniente da forma mentis proacutepria das recentes conquistas da ciecircncia jocircnica ou daquela pitagoacuterica recentes demais para chegar a serem consideradas uma maneira de pensar assentada isto eacute um ethos polypeiron um haacutebito de muita experiecircncia Afora essas correntes natildeo haacute outros candidatos de pensamento ldquonatildeo miacuteticordquo que podem ser alvo da criacutetica de Parmecircnides Por conseguinte como objeto das criacuteticas resta somente o pensamento miacutetico tradicional isto eacute aqueles relatos que de uma maneira ou de outra tentavam explicar o mundo o que coloca Parmecircnides em perfeita continuidade com seu mestre Xenoacutefanes7 Para a noccedilatildeo de ldquomenterdquo em Parmecircnides ver Galgano (2016 2017) parte primeira e segunda

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(aquela que passou pelo meacutetodo) e por outro as opiniotildees dos mortais nas quais a convicccedilatildeo natildeo eacute verificadardquo

3 OS CAMINHOS

Apoacutes a explicitaccedilatildeo do programa de ensino a deusa comeccedila a explicar seu meacutetodo de verificaccedilatildeo Eacute aqui que nos deteremos mais porque eacute neste ponto que estreia pela primeira vez a noccedilatildeo de natildeo-ser Trata-se do fr DK 28 B 2 que ora passamos a estudar e que em grego eacute assim

εἰ δrsquo ἄγrsquo ἐγὼν ἐρέω κόμισαι δὲ σὺ μῦθον ἀκούσας

αἵπερ ὁδοὶ μοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαιἡ μὲν ὅπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναιΠειθοῦς ἐστι κέλευθος (Ἀληθείηι γὰρ ὀπηδεῖ)ἡ δrsquo ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναιτὴν δή τοι φράζω παναπευθέα ἔμμεν ἀταρπόνοὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε μὴ ἐὸν (οὐ γὰρ ἀνυστόν)οὔτε φράσαις

31 OS VERSOS 1 E 2

Vejamos os primeiros dois versos do fragmentoEi drsquoaacutegrsquoegograven ereacuteo koacutemisai degrave sugrave mucircthon akouacutesas

haacuteiper hodoigrave moucircnai dizeacutesios eisi noecircsai

Pois bem eu te direi e tu recebe a palavra que ouviste

os uacutenicos caminhos de inqueacuterito que satildeo a pensar

Sua importacircncia eacute estrutural dentro do poema a deusa anuncia que vai dizer algo importante e pede ao kouros para preparar-se pois haacute caminhos especiacuteficos para o pensar investigativo e satildeo somente alguns (moucircnai depois saberemos que satildeo dois)

Houve muita discussatildeo sobre o sentido de νοῆσαι principalmente so-bre se ele eacute ativo ou passivo Aqui noesai se refere a um pensar investigativo o

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qual eacute necessariamente ativo pois uma investigaccedilatildeo passiva eacute um dos oximo-ros mais esdruacutexulos imaginaacuteveis O sentido eacute os caminhos que o pensar segue quando se dedica agrave investigaccedilatildeo satildeo aqueles uacutenicos que descreveraacute a seguir Uma outra maneira de traduzir pode ser esta o pensar entre todos os cami-nhos possiacuteveis segue estes uacutenicos em sua atividade de investigar Portanto a traduccedilatildeo de Cavalcante de Souza soa oacutetima a pensarhellip que

Vejamos na sequecircncia a coordenaccedilatildeo com os versos 3 e 5 que apresen-tam os correlativos comeccedilando pela construccedilatildeo

Pois bem eu te direi e tu recebe a palavra que ouviste

que os uacutenicos caminhos de inqueacuterito satildeo(verso 2 + verso 3) a pensar que eacute e que portanto natildeo eacute natildeo ser

(verso 2 + verso 5) a pensar que natildeo eacute e portanto que eacute preciso natildeo ser

A construccedilatildeo mostra que o sentido do noein (νοῆσαι) nesse caso eacute ativo Haacute uma atividade especiacutefica da mente Nessa atividade a mente se en-caminha por vaacuterios rumos de investigaccedilatildeo dos quais somente dois parecem ser viaacuteveis ou parecem ter sentido a investigaccedilatildeo a pensar que eacute e a investigaccedilatildeo a pensar que natildeo eacute

Que nos diz esse verso 2 Que Parmecircnides se pocircs a refletir sobre a mente humana embora ele natildeo tivesse esse conceito de ldquomenterdquo como noacutes a entendemos Essa reflexatildeo foi fatal e aos poucos veremos por quecirc Por en-quanto podemos sustentar que o ponto de partida de Parmecircnides eacute reflexivo Sua reflexatildeo verteu sobre o funcionamento da mente mais especificamente sobre que tipo de funcionamento leva agrave persuasatildeo ou leva a conclusotildees insatis-fatoacuterias do ponto de vista da explicaccedilatildeo do mundo

32 OS VERSOS 3 E 4he megraven hoacutepos eacutestin te kaigrave os eacutesti megrave eicircnai

peithoucircs esti keacuteleuthos (aletheiacuteei gagraver opedeicirc)

o primeiro que eacute e portanto que natildeo eacute natildeo-ser

de persuasatildeo eacute o caminho (pois agrave verdade acompanha)

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O verso 3 eacute provavelmente o mais estudado de Parmecircnides merece Entretanto vejamos primeiro o verso 4 Ali notamos a presenccedila de uma palavra marcadamente psicoloacutegica πειθοῦς persuasatildeo Parmecircnides percebe que a persuasatildeo eacute um fato da ldquomenterdquo conceito este uacuteltimo que lhe eacute estra-nho mas que ele consegue identificar descrevendo as sensaccedilotildees mentais8 E identifica duas persuasotildees uma acompanhada da verdade e outra na qual o convencimento natildeo eacute acompanhado da verdadeira confianccedila Agrave primeira ele chama de πειθός que gera a sensaccedilatildeo de firmeza na mente (ἀτρεμὲς ἦτορ DK 1 29) e acompanha a verdade Agrave segunda ele chama de ldquoopiniotildees dos mortaisrdquo na qual natildeo haacute uma πίστις ἀληθής (DK 1 30) um convenci-mento acompanhado de verdade

Essa distinccedilatildeo nos mostra agudeza da observaccedilatildeo psicoloacutegica A certeza pode ser de dois tipos ou eacute uma certeza que deixa espaccedilo a duacutevidas ou eacute uma certeza indubitaacutevel Isso expotildee um problema gnosioloacutegico posto que se tem uma convicccedilatildeo (e todo homem tem convicccedilotildees) como saber se essa convicccedilatildeo corresponde agrave verdade ou eacute uma convicccedilatildeo sem fundamento e sem correspon-decircncia com a realidade Natildeo eacute possiacutevel sabecirc-lo A mente mostra apenas sua convicccedilatildeo subjetiva e para saber se tal convicccedilatildeo eacute acompanhada de verdade ou se natildeo tem feacute verdadeira eacute preciso recorrer a algo extramental eacute necessaacuteria uma prova externa porque a mente por si soacute natildeo consegue identificar uma sua convicccedilatildeo proacutepria como verdadeira ou falsa

A diferenciaccedilatildeo de dois tipos de persuasatildeo no poema eacute clara9 e se a ordem dos fragmentos de Diels estiver correta essa diferenciaccedilatildeo pertence agrave parte propedecircutica pois natildeo se fala dela na parte do eon no fr 8 quando a ordem do mundo eacute explicada com exceccedilatildeo do final do discurso da deusa onde ela anuncia o encerramento de seu discurso confiaacutevel (πιστὸν λόγον) Isso significa que esse tema faz parte do instrumental argumentativo preacutevio que conduziraacute agrave sucessiva anaacutelise cosmoloacutegica Enfim nos versos 3-4 uma proclamaccedilatildeo anteriormente anunciada (vv 1-2) eacute agora enunciada (vv 3-4) em seu primeiro caminho Eacute enunciado o caminho que pensa o inqueacuterito com persuasatildeo verdadeira natildeo aquele pensar no qual natildeo haacute convicccedilatildeo ver-

8 A discussatildeo completa estaacute em Galgano (2012)9 Embora nesse fragmento a palavra persuasatildeo natildeo apareccedila associada aos ldquomortaisrdquo em outras partes essa ligaccedilatildeo eacute clara ou ateacute mesmo literal como em 8 38-39 onde se frisa que ldquoseratildeo nomes todas as coisas que os mortais determinaram persuadidos de ser verdaderdquo (τῶι πάντrsquo ὄνομ(α) ἔσται ὅσσα βροτοὶ κατέθεντο πεποιθότες εἶναι ἀληθῆ) Note-se πεποιθότες atribuiacutedo aos mortais particiacutepio perfeito de πείθω

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dadeira mas aquele caminho enfim que anda com a verdade Vamos agora voltar ao verso 3

Natildeo se pode isolar o verso 3 ἡ μὲν ὅπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι do anterior verso 2 (e nem do seu correlativo verso 5) e portanto natildeo se pode esquecer que trata de um caminho ou seja de um elemento di-nacircmico No entanto a primeira coisa que salta aos olhos eacute que todas as noccedilotildees envolvidas satildeo estaacuteticas e natildeo haacute nenhum elemento dinacircmico ou sequencial ou de qualquer natureza minimamente motora O sentido desse ponto de vista eacute que o pensar o ldquoἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναιrdquo natildeo eacute o pensar de um momento mas um pensar que segue por um caminho Ou seja significa que no percurso seguido pelo pensar para que o inqueacuterito seja de verdadeira per-suasatildeo o ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι deve ser constante Essa noccedilatildeo eacute estrutural o caminho de inqueacuterito a pensar deve conter uma constante vaacutelida em qualquer momento e passagem do caminho O fato de ser a afirmaccedilatildeo de uma constante (estaacutetica) numa dimensatildeo de caminho (dinacircmica) reforccedila a ideia de algo externo e de natureza fixa a ser aplicado a algo de natureza pro-cessual ou seja eacute uma lei porque a noccedilatildeo de lei expressa tambeacutem as relaccedilotildees fixas entre as dinacircmicas de elementos de um ou mais processos

Vamos observar a estrutura sintaacutetica do verso mais de perto ἡ μὲν ὅπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι Depois da conjunccedilatildeo correlativa ἡ μὲν ndash que se coadunaraacute com o ἡ δὲ de 25 (ἡ δrsquo ὡς) ndash o verso eacute constituiacutedo de duas unidades sintaacuteticas autocircnomas mas subordinadas ao verso 2 pelos pronomes ὅπως e ὡς ademais as duas unidades estatildeo ligadas pela conjunccedilatildeo τε καὶ Vejamos a construccedilatildeo sintaacutetica sem entrar ainda na semacircntica ou seja sem traduzir os termos ἔστιν οὐκ ἔστι e μὴ εἶναι

por um lado (ἡ μὲν) que ldquoArdquo e tambeacutem (τε καὶ) que ldquoBrdquo

A conjunccedilatildeo τε καὶ (e tambeacutem que) indica que temos duas oraccedilotildees as quais pela estrutura de todo o fragmento devem ser completas Devem porque natildeo parece que o sejam vejamo-las separadamente e sem os pronomes

A ἔστιν

B οὐκ ἔστι μὴ εἶναι

A primeira oraccedilatildeo eacute sem sujeito e sem objeto sendo constituiacuteda somen-te pelo verbo a segunda eacute igualmente sem sujeito contudo tem um objeto

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direto A primeira eacute afirmativa enquanto a segunda eacute negativa entretanto a segunda nega uma segunda negaccedilatildeo contida no objeto eacute negaccedilatildeo de negaccedilatildeo

Conjunccedilatildeo correlativa

Pronome relativo sujeito verbo objeto

Verso 23 ἡ μὲνOraccedilatildeo 1 ὅπως mdash ἔστιν mdashOraccedilatildeo 2 ὡς mdash οὐκ ἔστι μὴ εἶναι

Posto que em grego antigo o sujeito ou eacute expliacutecito ou eacute subentendido o grande misteacuterio dessas palavras eacute exatamente que o sujeito natildeo aparece nem expliacutecito e nem subentendido constituindo uma autecircntica anomalia literaacuteria Natildeo conveacutem nesta ocasiatildeo reconstruir a discussatildeo dos vaacuterios estudiosos em relaccedilatildeo a essa falta de nosso lado enfrentaremos a questatildeo por outras provi-decircncias Por enquanto vamos apresentar o resumo das possibilidades de solu-ccedilatildeo reportadas por Cordero (2005) Para o estudioso haacute quatro possibilidades para explicar a anomalia a saber ldquoa) Trata-se de um erro de transmissatildeo de texto se assim for este deve ser corrigido introduzindo o sujeito ausente b) haacute um sujeito conceitual impliacutecito que deve ser buscado no resto do Poema c) natildeo haacute nenhum sujeito possiacutevel e d) o sujeito deve ser extraiacutedo do predicado isolado pois o eacutestin ldquoproduzrdquo o sujeito As quatro possibilidades encontraram defensoresrdquo (CORDERO 2005 p 63)

Natildeo penso que seja o caso de tomar partido agora faremos isso so-mente no fim da nossa anaacutelise por enquanto vamos prosseguir com as nos-sas consideraccedilotildees A primeira delas eacute que as duas oraccedilotildees natildeo satildeo simples-mente conjuntas elas satildeo mais que conjuntas porque reuacutenem uma uacutenica noccedilatildeo em trecircs variaccedilotildees ἔστιν οὐκ ἔστι e μὴ εἶναι satildeo variaccedilotildees do campo semacircntico de εἰμί o verbo ser Seriam simplesmente conjuntas se apresen-tassem verbos e objetos diretos diferentes Naturalmente uma construccedilatildeo desse tipo seria possiacutevel10 e apresentaria duas oraccedilotildees sintaticamente inde-pendentes e conjuntas Poreacutem no nosso caso a construccedilatildeo eacute feita com trecircs formas do mesmo verbo que muito dificilmente tecircm uma conexatildeo apenas conjuntiva Ademais a primeira oraccedilatildeo eacute afirmativa e a segunda duplamente negativa o que faz pensar na estrutura da citaccedilatildeo platocircnica (Soph 237a8 DK B 7 1) a qual natildeo eacute sintaticamente igual mas muito semelhante que nunca os natildeo entes sejam onde tambeacutem uma dupla negaccedilatildeo recusa existecircncia

10 Por exemplo ldquoos uacutenicos caminhos de inqueacuterito a pensar por um lado que examina e que natildeo pretende natildeo avaliarrdquo

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aos natildeo entes implicando apenas variaccedilotildees formais de εἶναι dessa vez com o particiacutepio no neutro plural τὰ ἐοντα que natildeo estaacute presente no fr 211 Esses elementos precisam ser investigados

Vamos comeccedilar pela conjunccedilatildeo12 τε καὶ em geral traduzida por sim-ples conjunccedilatildeo pelos criacuteticos assume aqui um valor mais forte O fato de que seja uma conjunccedilatildeo elimina de iniacutecio a interpretaccedilatildeo do verso 3 como uma disjunccedilatildeo13 Mais que uma conjunccedilatildeo as duas subordinadas satildeo ligadas por uma conexatildeo vital na qual o τε καὶ no sentido de ldquotambeacutemrdquo ou ateacute mesmo ldquoambosrdquo representa a conjunccedilatildeo de uma segunda parte reforccedilando a primeira natildeo porque explica mas simplesmente porque as duas fazem parte de um todo como dois lados de uma mesma moeda14

Vamos deixar de lado por enquanto o primeiro hemistiacutequio e con-siderar somente o segundo O segundo hemistiacutequio de 3 soa assim os uacutenicos caminhos de inqueacuterito a pensar satildeo por um lado que [ldquoArdquo] e tambeacutem que natildeo eacute natildeo-ser O fato singular eacute que aleacutem da repeticcedilatildeo da negaccedilatildeo (natildeohellip natildeo) tem-se tambeacutem a repeticcedilatildeo do verbo εἰμί (eacutehellip ser) Obviamente natildeo se tra-ta de uma ditografia e portanto teremos que diferenciar o primeiro negar (οὐκ ἔστι natildeo eacute) do segundo negar (μὴ εἶναι natildeo-ser) O primeiro negar eacute feito pela partiacutecula negativa οὐκ e o presente do indicativo ἔστι A traduccedilatildeo simples e direta soa natildeo eacute Natildeo parece haver dificuldade quanto agrave traduccedilatildeo em si restando apenas o problema da falta de sujeito Se ldquonatildeo eacuterdquo estaacute certo resta descobrir a que se refere essa negaccedilatildeo e natildeo haacute outro candidato que o seguinte μὴ εἶναι

11 Eacute possiacutevel mostrar (e o fazemos em sede apropriada) que a citaccedilatildeo platocircnica (v 7 2) tem a mesma estrutura do v 2 312 Humbert (1954 p 370) ldquoDrsquoailleurs drsquoune faccedilon geacuteneacuterale une certaine indeacutetermination inseacuteparable de la poeacutesie qui exprime moins qursquoelle ne suggegravere est peu favorable agrave un emploi rigoreux et preacutecis des particulesrdquo13 Alguns interpretam de fato como disjunccedilatildeo ex Mansfeld (1960) em Meijer (1997) p 100 et passim O argumento de Mansfeld parte da consideraccedilatildeo de que o silogismo disjuntivo natildeo precisa de sujeito (aqui o argumento de Parmecircnides natildeo precisaria de um sujeito para o esti) A (ἔστιν) ou B (οὐκ ἔστι μὴ εἶναι)14 Aparentemente (pelo que pude descobrir) natildeo haacute estudos atuais completos sobre as partiacuteculas em grego antigo e parece que o uacuteltimo foi de Denniston (1954) De laacute para caacute as partiacuteculas foram estudadas por trabalhos especiacuteficos e separadamente por aacutereas literaacuterias (eacutepica trageacutedia etc) deixando uma lacuna na poesia onde o uso eacute muito menos rigoroso e oferece maiores dificuldades de interpretaccedilatildeo Um status questionis da problemaacutetica de te kai possivelmente se encontra em um paper do qual por enquanto soacute consegui o abstract Bonifazi (2012)

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Natildeo parece haver atestaccedilatildeo de μὴ εἶναι na poesia eacutepica Pela pesquisa no TLG as primeiras atestaccedilotildees parecem ser da eacutepoca de Parmecircnides se natildeo sucessivas sendo que nesse caso pode ter sido ele o primeiro a usar tal expres-satildeo Mas aguardando resultados filoloacutegicos mais precisos podemos assegurar que a noccedilatildeo de εἶναι contida no segundo negar natildeo deve ser a mesma do primeiro sob pena de gerar uma contradiccedilatildeo de termos incompreensiacutevel mas que justamente nesse sentido aticcedilou a fantasia de muitos criacuteticos Penso por exemplo naqueles que quiseram ver as duas negaccedilotildees apenas no sentido gra-matical15 e acabaram achando o argumento de Parmecircnides fraco ou tautoloacutegi-co quando natildeo inconsistente No entanto o primeiro negar (οὐκ ἔστι) quer negar um outro negar (μὴ) especiacutefico aquele que nega εἶναι

Vou repetir a sequecircncia porque por um lado a accedilatildeo do primeiro negar eacute predicativa e por outro lado a noccedilatildeo predicada eacute maacutexima e acaba por gerar um pequeno desconforto argumentativo O primeiro negar nega um segundo negar aquele que nega εἶναι Ou seja o segundo negar eacute um ldquonegar algo espe-ciacutefico (εἶναι)rdquo O conceito se torna claro se se manteacutem presente o sentido psi-coloacutegico muito mais que o gnosioloacutegico da expressatildeo parmenidiana Negar algo eacute o que fazem ambas as expressotildees tanto do primeiro quanto do segundo negar Todavia o segundo negar eacute a accedilatildeo especiacutefica de negaccedilatildeo de εἶναι a qual eacute uma accedilatildeo da mente eacute um comportamento concreto o comportamento mental de negar εἶναι Parmecircnides argumenta que o caminho persuasivo eacute aquele que nega que se possa ter o comportamento mental especiacutefico de negar εἶναι natildeo eacute possiacutevel (ter o comportamento mental de) negar εἶναι

Esse eacute um ponto que gerou muita confusatildeo Parmecircnides natildeo nega que se possa negar como se ele proacuteprio ao afirmar que o natildeo-ser natildeo eacute estivesse cometendo o maior dos disparates autocontraditoacuterios Satildeo muitiacutessimos os que interpretam Parmecircnides dessa forma e que afinal acabam asseverando que Parmecircnides eacute o filosofo do ser (apenas) Parmecircnides usa gramaticalmente a negaccedilatildeo e tambeacutem a usa gnosiologicamente e epistemicamente Daacute para dizer mais daacute para dizer que ele usa a negaccedilatildeo de forma magistral como poucos souberam usar na histoacuteria da filosofia De fato o segundo hemistiacutequio asseve-ra que haacute um percurso mental que eacute persuasivo (v 4) quando natildeo segue μὴ εἶναι Mais uma vez o percurso mental de inqueacuterito eacute persuasivo quando natildeo

15 Por exemplo C Kahn cuja uacutenica conclusatildeo segundo sua leitura seria ldquoIf we restate Parmenidesrsquo claim in the modern formal mode it might run lsquom knows that prsquo entails lsquoprsquordquo (KAHN 2009 p 153-154)

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se comporta mentalmente negando εἶναι quando natildeo tem a atitude de negar εἶναι Resta descobrir o que eacute εἶναι

O termo εἶναι eacute um infinitivo Como se sabe o infinitivo eacute a expressatildeo verbal depauperada de todo sentido acessoacuterio a ponto que ldquo[c]rsquoest de cette fa-ccedilon neacutegative que lrsquoinfinitif a eacuteteacute deacutefini comme repreacutesentant lrsquoideacutee verbale nuerdquo (HUMBERT 1954 p 125) Os mais variados estudos natildeo conseguiram expli-car de forma convincente um sentido especiacutefico para o uso feito por Parmecircnides Por exemplo The verb ldquoberdquo in ancient Greek (KAHN 2003 passim) um dos estudos mais completos sobre o tema vecirc-se obrigado a atribuir a Parmecircnides um uso supostamente novo mas parece-me de forma improacutepria e desnecessaacuteria16 Eu penso que quando Parmecircnides quis utilizar um novo sentido inventou um novo termo como no caso de to eon (invenccedilatildeo na linha jaacute consolidada de subs-tantivar verbos no gecircnero neutro) Natildeo fez o mesmo com εἶναι e suas demais formas verbais razatildeo pela qual o sentido deve ser buscado nas acepccedilotildees tradicio-nais as quais satildeo muacuteltiplas e equiacutevocas como diraacute mais tarde Aristoacuteteles

No infinitivo εἶναι expressa a ideia geral do verbo num campo se-macircntico que vai desde ldquopresenccedilardquo ateacute a funccedilatildeo predicativa comum a muitas liacutenguas indo-europeias Creio que seja inuacutetil buscar um sentido preciso como ldquoexistirrdquo ou ldquoestar presente localmenterdquo ou outro εἶναι significa tudo isso principalmente porque eacute usado no infinitivo e como objeto Em portuguecircs a palavra que expressa com a mesma equivocidade a pluralidade de sentido numa riqueza proacutexima ao grego eacute o verbo ldquoserrdquo17 Parece-me portanto per-feitamente inuacutetil cercear o sentido a uma uacutenica acepccedilatildeo restriccedilatildeo que acaba gerando interpretaccedilotildees polecircmicas Ateacute mesmo para a acepccedilatildeo de ldquoexistirrdquo se construiacuteram criacuteticas a meu ver improacuteprias pelas quais se chega a discutir se Parmecircnides pensasse ou natildeo que seres natildeo existentes como quimeras e outros

16 Kahn extrai o sentido de εἶναι em Parmecircnides natildeo do uso que o eleata faz mas do contexto geral da mensagem parmenidiana Teoricamente seria um meacutetodo viaacutevel posto que se consiga entender corre-tamente a mensagem do filoacutesofo Na praacutetica no caso do poema de Parmecircnides que verte exatamente sobre εἶναι e seus derivados haacute um risco enorme ndash ao qual em minha visatildeo Kahn sucumbiu ndash de cair num petitio principii onde o sentido de εἶναι eacute extraiacutedo da mensagem filosoacutefica geral (Kahn o extrai de 129 que eacute o ldquoiacutendice parmenidianordquo e portanto poderia oferecer a ideia geral do poema) e por sua vez a mensagem filosoacutefica eacute obtida a partir do sentido de εἶναι Kahn acredita ter encontrado no sentido ldquoveritativordquo o novo uso que Parmecircnides faz de εἶναι17 Para εἰμί o Dicionaacuterio LSJ apresenta sete campos (de A a G) com 16 acepccedilotildees e mais vaacuterias suba-cepccedilotildees Para o verbo ldquoserrdquo o Dicionaacuterio Houaiss apresenta 19 acepccedilotildees das quais 14 verbais e 5 como substantivo as subacepccedilotildees satildeo exemplificadas mas natildeo classificadas

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seres mitoloacutegicos pudessem ser incluiacutedos na leitura predicamental18 Principal-mente eacute necessaacuterio manter a equivocidade do termo porque corresponde agrave forma mentis do autor e natildeo se devem exigir distinccedilotildees que natildeo eram processa-das por aquela cultura sob pena mais uma vez de atribuir aos antigos a nossa proacutepria forma mentis pecado fatal para um historiador da filosofia

Desse modo de iniacutecio a traduccedilatildeo de μὴ εἶναι com ldquonatildeo-serrdquo ateacute mes-mo por ser equiacutevoca (para a nossa sensibilidade) manteacutem a equivocidade proacute-pria da eacutepoca e da liacutengua da eacutepoca Posta entatildeo essa equivocidade precisamos saber se expressa um sentido filosoacutefico antes de tudo para a eacutepoca e depois para noacutes A comparaccedilatildeo de 23 οὐκ ἔστι μὴ εἶναι com 71 Οὐ δαμῇ εἶναι μὴ ἐόντα que eacute o testemunho de Platatildeo nos faz entender que nessas palavras natildeo soacute se encontra um sentido filosoacutefico mas ateacute mesmo o sentido principal da filosofia de Parmecircnides Retomando portanto a construccedilatildeo precisamos entender por que pensar o natildeo-ser (μὴ εἶναι) eacute algo que natildeo eacute possiacutevel ou que natildeo se deve fazer ou que simplesmente natildeo eacute (natildeo acontece) segundo a expressatildeo usada por Parmecircnides οὐκ ἔστι

Aleacutem da traduccedilatildeo simples e imediata haveria outras possibilidades de traduccedilatildeo19 essas variaccedilotildees podem ser interessantes para evidenciar nuances aqui e acolaacute contudo tendo a possibilidade de utilizar o verbo ldquoserrdquo num uso equiacutevoco proacuteximo do grego natildeo precisamos recorrer agrave circunlocuccedilotildees e pode-mos traduzir οὐκ ἔστι com ldquonatildeo eacuterdquo20 e μὴ εἶναι com ldquonatildeo-serrdquo Diz portanto o segundo hemistiacutequio

Os uacutenicos caminhos de inqueacuterito ao pensar satildeo

Por um lado [ldquoArdquo] e que natildeo eacute natildeo-ser

18 De novo Kahn (2009) que assinala ldquoTo take the philosophical objection first it is simply false to say that you cannot think or talk about (point out in speech phrazein) what does not exist And the falseness of this would be obvious to any Greek who reflected for a moment on the profusion of monsters and fantastic creatures in traditional poetry and myth from Pegasus to the children of Gaia with a hundred arms and fifty heads apiecerdquo (HESIOD THEOGONY 150 172) Mais agrave frente ressaltamos que exatamente na questatildeo filosoacutefica Kahn estaacute errado e Parmecircnides estaacute certo eacute impossiacutevel pensar e dizer o natildeo-ser19 Um outro caminho possiacutevel de traduccedilatildeo utilizado principalmente pelos autores de liacutengua inglesa por motivos idiossincraacutesicos da liacutengua eacute empregar uma expressatildeo cuja noccedilatildeo tambeacutem eacute ampliacutessima e equiacutevoca ldquocoisardquo Mas essa expressatildeo por ser um substantivo natildeo possui o aspecto dinacircmico que o verbo tem sendo assim necessaacuterio acrescentar o verbo ser portanto eacute possiacutevel traduzir com ldquoas coisas que satildeordquo Outra possibilidade eacute usar o pronome ldquoquerdquo em sentido predicativo em substituiccedilatildeo de coisa ou coisas Outra ainda eacute o pronome demonstrativo (aquilo isto) ou o indefinido (algo) com a mesma funccedilatildeo substitutiva de coisa(s) no sentido mais indefinido possiacutevel20 Laacute onde em inglecircs haacute obrigatoriedade de explicitar-se o sujeito ldquowhat is notrdquo

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Se tiveacutessemos seguido a ordem metodoloacutegica tradicional ao examinar 23 teriacuteamos analisado primeiro ἔστιν e depois οὐκ ἔστι μὴ εἶναι E se de-pois de estudar o segundo hemistiacutequio voltaacutessemos nossa atenccedilatildeo ao primeiro hemistiacutequio natildeo teriacuteamos ganho metodoloacutegico nenhum pois redundariacuteamos na leitura por pressupostos em que o sentido de ἔστιν eacute obtido pelo pressu-posto de que ἔστιν significa em grego ldquoeacuterdquo todavia dessa maneira se chegaria aos resultados jaacute conhecidos considerados natildeo totalmente satisfatoacuterios pelos proacuteprios autores de cada interpretaccedilatildeo O dado concreto eacute que o poema natildeo oferece nenhuma definiccedilatildeo direta ou indireta de ἔστιν embora apresente mui-tos σήματα de ἐὸν Em compensaccedilatildeo o poema trata amplamente de μὴ εἶναι E natildeo eacute preciso ir muito longe para encontrar referecircncias para a noccedilatildeo de μὴ εἶναι pois observamos muitos dados nos versos de 5 a 8 do nosso fragmento Iremos portanto ao verso 5 e subsequentes

33 OS VERSOS 5 A 8 he drsquoos ouk eacutestin te kaigrave os khreoacuten esti megrave eicircnai

tegraven deacute toi phraacutezo panapeutheacutea eacutemmen atarpoacuten

ouacutete gagraver agravev gnoiacutees toacute ge megrave eograven (ou gagraver anustoacuten)

ouacutete phraacutezais

o outro que natildeo eacute e portanto que eacute preciso natildeo ser

este entatildeo eu te digo eacute atalho de todo incriacutevel

pois nem conhecerias o que natildeo eacute (pois natildeo eacute exequiacutevel)

nem o dirias

Vamos relembrar a letra do verso 5 ἡ δrsquo ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι Haacute uma construccedilatildeo paralela ao verso 3 dois hemistiacutequios no segundo dos quais encontramos nosso μὴ εἶναι No verso seguinte o caminho eacute chamado de παναπευθέα termo que muito fez e faz sofrer os filoacutelogos O sentido geral poreacutem eacute claro quer se queira traduzir como ldquode todo incriacutevelrdquo (CAVALCANTE DE SOUZA 1978) quer como ldquocompletamente inconos-ciblerdquo (CORDERO 2005 p 219) ou ldquowholly without reportrdquo (COXON 2009 p 56) ou como outro Em suma a noccedilatildeo geral eacute de que haacute uma difi-culdade intransponiacutevel em seguir esse caminho e por que eacute explicado a seguir

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Assim como em certa metodologia de exposiccedilatildeo primeiro se enuncia a tese e depois se propotildee o argumento demonstrativo Parmecircnides primeiro enuncia (como conveacutem agrave expressatildeo de uma deusa) e depois diz por quecirc Ora a novida-de cultural eacute exatamente esse porquecirc onde as afirmaccedilotildees natildeo satildeo mais apenas impostas por sua forccedila hieraacutetica mas precisam de explicaccedilotildees21

O nosso primeiro problema eacute que os enunciados (no verso 3 antes no verso 5 agora) natildeo satildeo claros para noacutes Nesse sentido podemos pedir clareza aos argumentos Qual eacute o argumento Eis a resposta de Parmecircnides οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε μὴ ἐὸν (οὐ γὰρ ἀνυστόν) οὔτε φράσαις Aqui a traduccedilatildeo eacute mais clara e natildeo haacute muita divergecircncia entre os criacuteticos pois nem poderias co-nhecer o que natildeo eacute (pois eacute impossiacutevel) nem o dirias Haacute aqui um claro objeto do discurso τό μὴ ἐὸν o qual sem hesitaccedilatildeo desta vez podemos traduzir por ldquoo que natildeo eacuterdquo Sem hesitaccedilatildeo porque τὸ ἐὸν eacute uma expressatildeo desconhecida antes de Parmecircnides aparece com ele eacute estudada por seus disciacutepulos e pelos seus criacuteticos (de Melisso a Aristoacuteteles) e eacute reportada pela doxografia como invenccedilatildeo parmenidiana

A noccedilatildeo exposta por Parmecircnides eacute sequencial o caminho de inqueacuterito que pensa οὐκ ἔστιν aqui chamado de ἀταρπόν natildeo pode ser percorrido porque eacute impossiacutevel ldquoconhecerrdquo (γνοίης ndash segunda pessoa do optativo aoristo ativo de γιγνώσκω) o que natildeo eacute e vamos deixar para depois a questatildeo do di-zer (οὔτε φράσαις) Vamos concentrar nossa atenccedilatildeo sobre γνοίης Para noacutes eacute menos importante a traduccedilatildeo gramaticalmente e estilisticamente precisa e mais importante a precisatildeo da noccedilatildeo filosoacutefica exposta Em relaccedilatildeo a essa pa-lavra houve (e ainda haacute) uma discussatildeo acirrada Discute-se se traduzir por ldquoconhecerrdquo como fazem alguns (COXON 2009 p 56 GALLOP 1984 p 55 TARAacuteN 1965 p 32 e muitos outros) ou ldquoreconhecerrdquo como fazem outros (por exemplo BARNES 1982 p 124) e principalmente que sentido atribuir ao ldquoconhecerrdquo Eu penso que considerado o contexto natildeo se trata do conhecer epistecircmico mas do conhecer gnosioloacutegico ou seja da capacidade que a mente possui de estabelecer um processo de conhecimento E que se trate de processo eacute claro pela vaacuteria terminologia que Parmecircnides usa mas principalmente pela sua ὁδός que ficaraacute para sempre como metaacutefora perfeita dos procedimentos a serem tomados para realizar tarefas de qualquer natureza vindo a receber o nome de meacutetodo

21 Rossetti (2010) A necessidade de explicaccedilotildees natildeo eacute mais soacute dos autores mas tambeacutem da audiecircncia que agora requer argumentos

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Para o meacutetodo do pensar epistecircmico declara Parmecircnides natildeo eacute con-veniente seguir um certo percurso porque sobre ele haacute ao menos uma etapa onde se deve ldquoconhecerrdquo ndash ou seja onde se deve exercer a capacidade gnosioloacute-gica ndash o τό μὴ ἐὸν mas isso eacute impossiacutevel Na verdade tanto o termo ἀνυστόν (reportado por Simpliacutecio) quanto sua variante ἐφικτόν (reportada por Proclo) tecircm um sentido processual quero dizer que a tarefa de pensar o τό μὴ ἐὸν natildeo apresenta uma impossibilidade que se realiza imediatamente mas uma que implica um processo o qual eacute impossiacutevel em sua inteireza porque natildeo pode ser levado a termo De fato ἀνυστός significa ldquoser completadordquo ldquopraticaacutevelrdquo enquanto ἐφικτός significa ldquofaacutecil de alcanccedilarrdquo ldquoacessiacutevelrdquo Ambos os termos tecircm sentido dinacircmico e processual e a negaccedilatildeo que Parmecircnides faz significa que esse processo natildeo pode ser levado a termo

De que processo se trata Em minha visatildeo trata-se do processo concre-to de pensar a negaccedilatildeo do ser Parmecircnides eacute de aacuterea de formaccedilatildeo pitagoacuterica e os pitagoacutericos ndash como assinala Aristoacuteteles (Metaph 986a15-26) ndash naquela eacutepoca estudavam as oposiccedilotildees as mais abstratas tendo passado da oposiccedilatildeo mais antiga entre par e iacutempar correspondentes a limitado e ilimitado (πέρας e ἄπειρον) a um conjunto de dez oposiccedilotildees Nada desabona uma possiacutevel tentativa de Parmecircnides buscar uma oposiccedilatildeo (a qual era feita tambeacutem por negaccedilatildeo como nos evidencia a expressatildeo verbal da oposiccedilatildeo entre πέρας e ἄπειρον com o ldquoαrdquo privativo) para o ldquotodordquo aquele πάντα que encontramos no verso 128 do poema e que em breve transformar-se-ia em φύσις no curso da evoluccedilatildeo histoacuterica dos conceitos filosoacuteficos da antiga Greacutecia

A meditaccedilatildeo do ldquonatildeo-serrdquo eacute das mais interessantes a se fazer na filosofia Tentar ldquopensarrdquo o ldquonatildeo-serrdquo eacute uma experiecircncia profunda a qual leva a conside-raccedilotildees radicais natildeo soacute sobre a existecircncia humana mas sobre a existecircncia como um todo Que Parmecircnides tenha se dedicado a essa meditaccedilatildeo eacute seguro pois ele o diz indiretamente em 22 quando afirma que os uacutenicos caminhos ao pensar satildeo aquele que pensa ἔστιν e aquele que pensa οὐκ ἔστιν O que natildeo sa-bemos e natildeo podemos afirmar com certeza eacute que tipo de meditaccedilatildeo ele reali-zou Eis que os termos ἀνυστόν ou ἐφικτόν vecircm nos socorrer e nos informam que se trata de uma meditaccedilatildeo processual que natildeo acaba Descrevi esse proces-so detalhadamente em outro trabalho (GALGANO 2010) e o repetirei aqui brevemente Pensar o natildeo-ser significa pensar concretamente a negaccedilatildeo do ser concreto (do mundo sensiacutevel ou inteligiacutevel) de cada ser Para tornar mais claro o processo pode-se comeccedilar negando a existecircncia de um ente depois daquilo

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que o rodeia depois do planeta depois do universo (sensiacutevel e inteligiacutevel atual e possiacutevel) e depois do mundo como um todo enfim do todo

O problema principal dessa meditaccedilatildeo eacute exatamente pensar se o sujeito pertence ou natildeo ao todo Quando se pensa a negaccedilatildeo do todo permanece ainda o sujeito pensante que pensa o todo como se o olhasse de um ponto virtual externo a ele E quando se tenta incluir o sujeito pensante de duas uma 1) ou o sujeito acreditando pensar a si proacuteprio dentro do todo reapa-rece externamente22 ou 2) o sujeito cognitivo desaparece e com ele qualquer noccedilatildeo cognitiva de ldquonatildeo-serrdquo Podemos assegurar claramente que o processo de pensar o τό μὴ ἐὸν natildeo termina seja porque eacute impossiacutevel incluir o sujeito no todo pois ele sempre reaparece a cada tentativa seja porque o processo quan-do inclui o sujeito no todo interrompe-se sendo assim impossiacutevel completar a negaccedilatildeo do todo Natildeo podemos saber se o modelo meditativo de Parmecircnides foi exatamente este mas natildeo me parece haver nada em desabono23

Entretanto qual eacute a importacircncia de natildeo se poder pensar a negaccedilatildeo de tudo Seguindo o argumento parmenidiano o caminho (ἀταρπόν) cognitivo que pensa τό μὴ ἐὸν natildeo pode ser concluiacutedo Ora ἀταρπόν eacute um sinocircnimo que Parmecircnides usa para o ὁδός do verso 22 (ὁδοὶ) isso quer dizer que o segundo caminho de inqueacuterito pode ser iniciado mas natildeo pode ser levado a termo Poreacutem se natildeo pode ser levado a termo por que eacute identificado como caminho Por que natildeo eacute excluiacutedo jaacute de iniacutecio quando a deusa ao inveacutes de anunciar os uacutenicos (moucircnai plural) caminhos natildeo anuncia um uacutenico cami-nho A resposta a essa pergunta torna clara a estranha afirmaccedilatildeo de que o caminho do pensar do segundo hemistiacutequio do verso 5 eacute necessaacuterio que per-maneccedila natildeo ser (χρεών ἐστι μὴ εἶναι) Parmecircnides assevera que embora seja um caminho que jamais pode ser completado ele ao mesmo tempo natildeo pode ser eliminado continua a pertencer aos (dois) uacutenicos caminhos de inqueacuterito ele eacute necessaacuterio

22 Se penso na aniquilaccedilatildeo de tudo incluindo a mim mesmo terei que pensar a mim mesmo aniquilado contudo esse pensar gerando esse novo pensamento gera um novo sujeito cognitivo pensante se aniquilo esse novo pensamento terei um novo sujeito cognitivo que pensa essa nova aniquilaccedilatildeo e assim por diante ad infinitum23 Natildeo quero garantir que Parmecircnides estreie uma filosofia do sujeito embora isso natildeo possa ser excluiacutedo a priori jaacute que os embriotildees de uma tal filosofia apareceratildeo em breve com Soacutecrates Acredito que se deve pensar mais no sujeito como o atleta campeatildeo das Olimpiacuteadas ou seja aquele capaz de cumprir (ou natildeo) certas proezas como fica extraordinariamente evidenciado no paradoxo de Zenatildeo cuja metaacutefora da filosofia (e do filoacutesofo) como tartaruga mostra que o pensar filosoacutefico eacute capaz de proezas maiores do que as proezas do proacuteprio Aquiles tidas como insuperaacuteveis pela cultura da eacutepoca

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Vamos de novo reconstruir essa parte do argumento com esse novo elemento os uacutenicos caminhos de inqueacuteritos satildeo

1) por um lado o caminho ao pensar que [versos 3 e 4] e

2) por outro lado o caminho ao pensar que [ldquoCrdquo (verso 5 primeiro hemistiacute-quio)] e que eacute necessaacuterio (que seja) natildeo-ser

De fato esse segundo caminho (ἀταρπόν) eacute inviaacutevel porque ldquonatildeo se consegue levar a cabo a reflexatildeordquo (γνοίης) quando se pensa o τό μὴ ἐὸν Ou seja fica muito clara a equaccedilatildeo entre o segundo caminho (v 5) e a reflexatildeo sobre o natildeo ser (τό μὴ ἐὸν) Finalmente o segundo hemistiacutequio do v 5 diz que esse eacute o caminho ao pensar que eacute necessaacuterio que seja μὴ εἶναι o qual agora sabemos eacute o caminho que tenta pensar o natildeo-ser (τό μὴ ἐὸν) Sabe-mos agora o que Parmecircnides chama de μὴ εἶναι Para Parmecircnides μὴ εἶναι eacute a estrutura do pensamento quando tenta inexoraacutevel e malogradamente pensar o natildeo-ser (τό μὴ ἐὸν)

Temos portanto a semacircntica de μὴ εἶναι e sabemos que significa a impossibilidade de pensar o natildeo-ser Com esse dado podemos reconstruir o resto do argumento mas primeiro vamos abordar a questatildeo do οὔτε φράσαις A premissa principal eacute o pano de fundo da pesquisa parmenidiana a qual estaacute em busca do discurso confiaacutevel como a deusa diz claramente no encerramen-to do fragmento 8 (talvez ecoando simetricamente alguma parte perdida do poema)24 Pensar o τό μὴ ἐὸν natildeo eacute possiacutevel logo ele eacute indiziacutevel Ora isso significa nem mais nem menos que dizer que o que eacute impossiacutevel eacute contra o sentido do dizer Eacute indiziacutevel natildeo porque natildeo se sabe do que se trata como querem muitos autores que fazem a leitura meramente epistemoloacutegica25 Eacute indiziacutevel porque dizer o ldquonatildeo-serrdquo significa fazer uma promessa que jamais se cumpriraacute ao se dizer ldquonatildeo-serrdquo parece que a expressatildeo aponta algo possiacutevel ou seja a negaccedilatildeo do ser e de fato quem estaacute desavisado assim acredita Mas a expressatildeo ldquonatildeo-serrdquo quer referir-se a algo que jamais seraacute cumprido que o

24 850-2 ldquoἐν τῶι σοι παύω πιστὸν λόγον ἠδὲ νόημα ἀμφὶς ἀληθείης δόξας δrsquo ἀπὸ τοῦδε βροτείας μάνθανε κόσμον ἐμῶν ἐπέων ἀπατηλὸν ἀκούωνrdquo ldquoNeste ponto encerro fidedigna palavra e pensamento sobre a verdade e opiniotildees mortais a partir daqui aprende a ordem enganadora de minhas palavras ouvindordquo (CAVALCANTE DE SOUZA 1978)25 Trata-se da leitura epistemoloacutegico-predicamental se natildeo sei a cor de um objeto (porque a cor natildeo eacute natildeo estaacute acessiacutevel ao meu conhecimento) natildeo posso falar da cor do objeto

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ser seja negado Esta eacute exatamente a noccedilatildeo expressa pelas palavras de Platatildeo jamais prevaleceraacute que natildeo entes sejam26

A expressatildeo μὴ εἶναι representa essa impossibilidade de pensamento e portanto eacute um dizer impossiacutevel o que se opotildee radicalmente agrave proacutepria noccedilatildeo de dizer a qualquer significar enquanto discurso confiaacutevel do mundo e da sua ordem Surge a pergunta mas se natildeo se pode dizer μὴ εἶναι se isso eacute impossiacute-vel natildeo haacute uma flagrante contradiccedilatildeo na deusa jaacute que ela proacutepria diz e cons-troacutei um argumento sobre o dizer μὴ εἶναι A objeccedilatildeo seria vaacutelida se a deusa dissesse o que eacute impossiacutevel de dizer ou seja se ela praticasse a impossibilidade Todavia a deusa natildeo diz o impossiacutevel a deusa aponta para o impossiacutevel indica o impossiacutevel pois ela diz que existem a ldquonoccedilatildeo de impossibilidade do pensarrdquo e a ldquonoccedilatildeo de impossibilidade do dizerrdquo Em outras palavras a deusa diz qual eacute o limite do pensar e qual eacute o limite do dizer Aleacutem desse limite o pensamento natildeo pode ir porque eacute impossiacutevel e tambeacutem o dizer natildeo pode ir porque eacute im-possiacutevel A impossiacutevel regiatildeo para aleacutem desse limite natildeo eacute admitida pelo dizer eacute contra o dizer eacute contraditoacuteria

A expressatildeo μὴ εἶναι em Parmecircnides eacute exatamente a palavra que ex-pressa o processo mental que noacutes chamamos contradiccedilatildeo e que ele primeiro assim chamou (οὔτε φράσαις natildeo diziacutevel) Eacute estranho que nenhum criacutetico te-nha percebido isso claramente Todos afirmam que o princiacutepio de natildeo contra-diccedilatildeo estaacute implicado em Parmecircnides assim como os outros princiacutepios loacutegicos pois os argumentos presentes no poema satildeo desenvolvidos segundo a natildeo con-tradiccedilatildeo poreacutem o princiacutepio natildeo eacute enunciado Alguns como Cordero veem justamente explicitado o princiacutepio do terceiro excluiacutedo (816 ἔστιν ἢ οὐκ ἔστιν) mas ningueacutem quis ver claramente que natildeo soacute a noccedilatildeo como tambeacutem a proacutepria palavra ldquocontradiccedilatildeordquo (οὔτε φράσαις natildeo diziacutevel contra o diziacutevel contra a dicccedilatildeo) estaacute explicitada no poema Penso que a razatildeo fundamental para que acontecesse esse lapsus tenha que ser procurada na grande atenccedilatildeo dada ao ldquoserrdquo e na pouca dada ao ldquonatildeo-serrdquo Como observaremos mais adiante por causa desse lapsus eu penso que natildeo se conseguiu entender plenamente a estrutura do fragmento 2 o qual simplesmente natildeo apresenta um silogismo disjuntivo nem nenhuma contradiccedilatildeo entre o caminho do ldquoserrdquo e o caminho do ldquonatildeo-serrdquo Parmecircnides assevera justamente que a expressatildeo ldquonatildeo-serrdquo eacute contraditoacuteria o ldquonatildeo-serrdquo natildeo pode ser dito porque ldquonatildeo-serrdquo eacute contraditoacute-

26 As duas expressotildees tecircm inversatildeo de predicado e negaccedilatildeo no entanto a noccedilatildeo permanece a mesma que os entes natildeo sejam (perecimento no fr 8) e que os natildeo entes sejam (nascimento no fr 8) A noccedilatildeo eacute o tracircnsito entre ser e natildeo ser

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rio e a expressatildeo ldquonatildeo-serrdquo indica tatildeo somente uma impossibilidade concreta aquela de que se realize o impossiacutevel

Vamos voltar ao nosso argumento e agrave questatildeo que deixamos em suspenso por que eacute necessaacuterio que μὴ εἶναι seja Sabemos que os versos 7 e 8 relatam um processo malogrado de pensar o natildeo ente (τό μὴ ἐὸν) Uso agora a palavra ente porque se justifica uma diferenciaccedilatildeo embora tanto ldquoenterdquo quanto ldquoserrdquo indiquem expressotildees gerais e natildeo individuais ldquoEnterdquo vem por conseguinte a significar o ente concreto aquele que eacute Parmecircnides sustenta que natildeo se pode pensar e dizer τό μὴ ἐὸν o ldquonatildeo enterdquo Esse processo recebe o nome de μὴ εἶναι ldquonatildeo-serrdquo a esse processo noacutes chamamos contradiccedilatildeo27 Entatildeo a indicaccedilatildeo eacute esta haacute um caminho ao pensar que pensa μὴ εἶναι (a contradiccedilatildeo) e eacute necessaacuterio que assim seja porque (vou repetir trecircs vezes de forma diferente28 para significar a mesma coisa)

1) se natildeo houvesse a contradiccedilatildeo

2) se natildeo se tem a noccedilatildeo de contradiccedilatildeo

3) se natildeo se sabe o que eacute contradiccedilatildeo

cai-se no discurso contraditoacuterio o que impede o inqueacuterito confiaacutevel Eacute ne-cessaacuterio saber que μὴ εἶναι (o processo de contradiccedilatildeo) eacute um caminho a ser evitado porque cria pensamentos e discursos contraditoacuterios

Vejamos de novo nosso fragmento com os elementos esclarecidos ateacute aqui

os uacutenicos caminhos de inqueacuterito a pensar satildeo

por um lado que [ versos 3 e 4]

e por outro lado que οὐκ ἔστιν e que eacute necessaacuterio que seja a contradiccedilatildeo (μὴ εἶναι)

a qual eacute um caminho natildeo criacutevel

pois eacute impossiacutevel pensar e dizer o natildeo ente (τό μὴ ἐὸν)

27 Mesmo para noacutes a contradiccedilatildeo eacute um processo porque indica a posiccedilatildeo de algo em contraposiccedilatildeo com mais algo isso significa que esses dois algos tecircm que ser relacionados para que haja contradiccedilatildeo do contraacuterio algo e mais algo podem conviver sem contraditoriedade Contudo esse assunto estaacute fora de tema e requer muitas outras providecircncias para o bom discernimento28 Repito buscando clareza pois nossas construccedilotildees comuns de linguagem nesses assuntos costumam ldquopatinarrdquo

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Penso que o espaccedilo conceitual deixado por οὐκ ἔστιν agora se pre-encha quase que por si haacute um caminho de inqueacuterito ao pensar que ldquonatildeo eacuterdquo e que eacute necessaacuterio que se considere contraditoacuterio porque eacute caminho que natildeo leva a lugar nenhum

A expressatildeo οὐκ ἔστιν eacute a negaccedilatildeo da terceira pessoa do indicativo de εἰμί a expressatildeo em si natildeo tem nada de especial significa tatildeo somente ldquonatildeo eacuterdquo restando em aberto o problema da ausecircncia de sujeito Mas agora sabemos o argumento complexo que estaacute na raiz da expressatildeo e a meu ver natildeo faz muito sentido a questatildeo de buscar um sujeito ou um objeto para definir se eacute usado de forma transitiva ou intransitiva se expressa existecircncia ou predicaccedilatildeo e as muitas combinaccedilotildees que podem ser montadas a partir da equivocidade do uso de εἰμί No entanto o acircmbito semacircntico foi evidenciado e estaacute claro e aleacutem do mais tem o testemunho de Platatildeo a confirmar o campo semacircntico da negaccedilatildeo de εἰμί nas vaacuterias formas estaacute relacionado a uma reflexatildeo sobre a impossibili-dade dessa negaccedilatildeo Obviamente para dizer que algo eacute impossiacutevel de alguma forma tenho que indicar essa impossibilidade com alguma expressatildeo Assim se digo ldquotriacircngulo quadradordquo aponto para uma impossibilidade jaacute que por defi-niccedilatildeo a essecircncia do triacircngulo exclui a essecircncia do quadrado logo a expressatildeo ldquotriacircngulo quadradordquo natildeo significa aquilo que parece prometer ou seja natildeo significa uma figura geomeacutetrica especial que eacute ao mesmo tempo triacircngulo e quadrado dizer ldquotriacircngulo quadradordquo eacute dizer algo ldquoindiziacutevelrdquo ldquonatildeo diziacutevelrdquo (na medida em que o diziacutevel quer expressar sentido) ldquoque nega o diziacutevelrdquo ldquoque eacute contra o diziacutevelrdquo que eacute contraditoacuterio

A semacircntica do ldquonatildeo serrdquo eacute fortiacutessima e estaacute muito aleacutem das sutilezas gramaticais morfoloacutegicas e sintaacuteticas e estas simplesmente natildeo afetam aquela O assunto tratado eacute tatildeo forte que ultrapassa qualquer forma linguiacutestica a pon-to de que esse assunto a ordem do ser e do natildeo-ser no mundo eacute responsaacutevel pela determinaccedilatildeo da lei da linguagem e natildeo vice-versa como bem entendeu Platatildeo no Sofista onde a teoria da predicaccedilatildeo surge em funccedilatildeo de uma refle-xatildeo sobre a ordem das leis baacutesicas do mundo Com efeito o approach linguiacutes-tico ao poema pode proceder ateacute certo ponto dali em diante o poema eacute fran-camente filosoacutefico e a chave linguiacutestica natildeo eacute suficiente para o acesso Isso quer dizer que com a chave linguiacutestica natildeo se abre a porta da questatildeo filosoacutefica do poema Se a questatildeo eacute que ldquojamais o natildeo ser pode se tornar serrdquo como (apro-ximadamente com essas palavras) argumenta Platatildeo citando Parmecircnides en-tatildeo diante da semacircntica que οὐκ ἔστιν apresenta discutir o sujeito de οὐκ ἔστιν se torna tarefa menor Considerada a desproporccedilatildeo entre o conteuacutedo (a

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semacircntica) e o recipiente (a palavra) entre o significado e o significante natildeo eacute impossiacutevel que οὐκ ἔστιν seja tatildeo somente uma expressatildeo simplificada quem sabe ateacute mesmo uma simplificaccedilatildeo didaacutetica pois o conteuacutedo do conceito estaacute expresso e justificado depois nos versos 7 e 8

O caminho de pensar que natildeo eacute e de pensar que eacute necessaacuterio natildeo ser eacute o caminho que afirma a necessidade de que a noccedilatildeo de natildeo-ser permaneccedila estaacutevel A contradiccedilatildeo tem que permanecer e ser identificada como tal pois eacute a uacutenica maneira de evitar que ela entre no pensamento e no discurso Se o ldquonatildeo-serrdquo natildeo for considerado contraditoacuterio a contradiccedilatildeo invade e domina o caminho de inqueacuterito o qual deixa de possuir πίστις ἀληθής (130) Assim eacute preciso que esse caminho seja identificado como μὴ εἶναι por um lado o ldquonatildeo-serrdquo eacute incognosciacutevel (οὔτε γὰρ ἂν γνοίης) mas por outro lado eacute neces-saacuterio que se saiba que ele eacute incognosciacutevel Saber do incognosciacutevel garante o conhecimento29 pois de fato ao natildeo se identificar o ldquonatildeo-serrdquo cai-se no risco de pensar que ldquoserrdquo e ldquonatildeo-serrdquo satildeo o mesmo e natildeo o mesmo como Parmecircni-des afirma em DK 6 5-6 Necessariamente o caminho que pensa οὐκ ἔστιν leva ao processo de contradiccedilatildeo (μὴ εἶναι) e a natildeo conclusatildeo do caminho (ἀνυστόν) natildeo eacute evidente na expressatildeo pelo contraacuterio τό μὴ ἐὸν parece uma negaccedilatildeo comum como qualquer outra poreacutem natildeo o eacute por isso eacute um saber destinado ao saacutebio e natildeo aos mortais porque eacute um saber fruto de uma reflexatildeo

34 DE VOLTA AOS VERSOS 3 E 4

Penso que podemos agora voltar ao verso 23 ao nosso segundo he-mistiacutequio onde aparece a expressatildeo μὴ εἶναι da qual jaacute temos a semacircntica Podemos entatildeo reconstruir ldquoos uacutenicos caminhos de inqueacuterito a pensar satildeo

por um lado a pensar que [ldquoArdquo] e tambeacutem a pensar que οὐκ ἔστι μὴ εἶναι este eacute caminho de persuasatildeo pois verdade acompanha e

por outro lado a pensar que ldquonatildeo eacuterdquo e tambeacutem a pensar que eacute necessariamente um percurso de pensamento contraditoacuterio porque eacute um caminho ldquoimpossiacutevelrdquo (παναπευθέα) pois o pensamento do ldquonatildeo enterdquo natildeo pode ser completado

O οὐκ ἔστι do verso 3 parece ser diferente do οὐκ ἔστιν do verso 5 Enquanto no 5 ele eacute quase que o nome do caminho (talvez uma simplificaccedilatildeo didaacutetica) no 3 parece significar simplesmente ldquonatildeo eacuterdquo em sentido comum

29 Estaacute aqui uma semente do socratismo

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predicativo De fato esse eacute o caminho da persuasatildeo e portanto eacute o caminho do pensamento natildeo-contraditoacuterio Ali a persuasatildeo era impossiacutevel pela con-tradiccedilatildeo aqui eacute possiacutevel pela natildeo-contradiccedilatildeo Sabemos que a expressatildeo μὴ εἶναι eacute a expressatildeo da contradiccedilatildeo suprema de sorte que a natildeo-contradiccedilatildeo eacute a negaccedilatildeo de μὴ εἶναι A traduccedilatildeo de οὐκ ἔστι fica faacutecil embora para a nossa sensibilidade possa parecer algo improacuteprio usar duas vezes οὐκ ἔστι de forma natildeo perfeitamente uniacutevoca a dois versos de distacircncia Logo para o segundo hemistiacutequio do v 3 mantenho esta traduccedilatildeo ldquonatildeo eacuterdquo em parte ambiacutegua para nossas exigecircncias mas que soa perfeitamente harmocircnica com o discurso par-menidiano [] ao pensar que [ldquoArdquo] e que natildeo eacute ldquocontradiccedilatildeordquo (μὴ εἶναι)

Acredito por fim que podemos abordar facilmente o ἔστιν do verso 3 que tanto fez e faz penar os estudiosos de Parmecircnides Aqui de novo a grandeza da questatildeo cosmoloacutegica envolvida ndash a coerecircncia eou a contradito-riedade do real ndash simplesmente torna tatildeo minuacutescula a questatildeo do sujeito de ἔστιν que ela quase desaparece Eu tenho a tendecircncia a pensar que a falta de sujeito seja uma simplificaccedilatildeo didaacutetica30 cuja irregularidade linguiacutestica ajuda na memorizaccedilatildeo31 Todavia afinal tomo partido e entro tambeacutem no quarto grupo daqueles listados por Cordero o sujeito deve ser extraiacutedo do predicado isolado pois ἔστιν produz o sujeito32 De qualquer forma o sentido filosoacutefico eacute preciso haacute um caminho de inqueacuterito ao pensar que eacute aquele que pensa o ldquoeacuterdquo esse mesmo caminho eacute aquele ao pensar que natildeo eacute (e natildeo pode ser33) ldquocon-tradiccedilatildeordquo Depois haacute um outro caminho aquele ao pensar que ldquonatildeo eacuterdquo que eacute o caminho ao pensar que leva necessariamente agrave contradiccedilatildeo O primeiro eacute o 30 Segundo o relato platocircnico no diaacutelogo Parmecircnides Zenatildeo acompanhado de seu mestre foi para as Panateneias com a finalidade de defender a filosofia de seu mestre esclarecendo com seu livro repleto de paradoxos as ideias parmenidianas Isso sugere que o poema natildeo expunha articuladamente a filosofia de Parmecircnides mas que constituiacutesse um proacute-memoacuteria com as ideias em sua forma essencial depois elaboradas nas aulas pessoais (KURFESS 2012)31 Eacute extraordinaacuterio como essa simplificaccedilatildeo didaacutetica continue ativa por um lado distorcendo entretanto por outro mantendo viva a mensagem parmenidiana em todas as escolas de ensino meacutedio onde se estuda filosofia vox populi Parmecircnides eacute o filoacutesofo que disse ldquoO que eacute eacute e o que natildeo eacute natildeo eacuterdquo Por outro lado o estrangeiro de Eleia no Sofista lembra outro verso e natildeo este32 Essa questatildeo natildeo aprofundada aqui natildeo possui relevacircncia filosoacutefica no argumento apresentado pode ter relevacircncia se se considera o tipo de reflexatildeo ou seja se se discute a ldquoexperiecircnciardquo do natildeo-ser e principalmente a experiecircncia concreta de Parmecircnides que talvez esteja ligada a praacuteticas de incubaccedilatildeo Nesse caso a dimensatildeo reflexiva adentra a dimensatildeo oniacuterica a qual possui outra sintaxe e onde um simples ἔστιν vale mais de mil articulaccedilotildees sintaacuteticas Natildeo sabemos com certeza dessas praacuteticas em Eleia contudo esse sentido preacute-sintaacutetico natildeo estaacute descartado inclusive alguns estudiosos entre os quais o proacuteprio Cordero atribuem ao ἔστιν o sentido de um grito como um Eureka Sugestotildees nesse sentido se encontram na minha dissertaccedilatildeo sobre Melisso (GALGANO 2010)33 A interpretaccedilatildeo modal eacute tambeacutem perfeitamente coerente aqui

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caminho que estabelece o discurso coerente (persuasivo) e o segundo natildeo leva a lugar nenhum e deve ser evitado Mas para que se saiba o que deve ser evi-tado eacute preciso que se conheccedila a impossibilidade do segundo caminho A fim de que se possa seguir o primeiro caminho eacute necessaacuterio saber que existe um outro sempre agrave espreita o qual parece oferecer a verdade mas que natildeo oferece uma verdade confiaacutevel que leva necessariamente agrave contradiccedilatildeo de pensamento e de expressatildeo linguiacutestica

4 O MEacuteTODO DA NAtildeO-CONTRADICcedilAtildeO

Parmecircnides provavelmente a partir de sugestotildees pitagoacutericas medita sobre a oposiccedilatildeo ao que existe e assim descobre o ldquonatildeo-serrdquo Descobre que ldquonatildeo serrdquo ou seja negar o ser negar o que haacute eacute de todo impossiacutevel (natildeo eacute possiacutevel completamente) Entende entatildeo que o ldquonatildeo-serrdquo essa impossibilidade eacute algo que a mente pensa julgando que esse pensamento leva por um caminho mas que na verdade ele descobre leva por outro caminho aquele que nunca che-ga a lugar nenhum Esse caminho que leva para lugar nenhum eacute o caminho dos mortais os quais confundem ser e natildeo ser No entanto o saacutebio deve saber distinguir por um lado o caminho do ldquoeacuterdquo que eacute o caminho do discurso natildeo contraditoacuterio e por outro lado o caminho do ldquonatildeo eacuterdquo que eacute o caminho do discurso que eacute tornado vatildeo pela contradiccedilatildeo

Parmecircnides descobre a contradiccedilatildeo (pela meditaccedilatildeo sobre o natildeo-ser) e percebe que ela eacute motivo de descaminho no discurso sobre o mundo Assim finalmente ele anuncia que a contradiccedilatildeo deve ser evitada A esse enunciado noacutes chamamos de princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo que aqui eacute aquele na versatildeo de Parmecircnides (depois a partir de Platatildeo e Aristoacuteteles haveraacute outras versotildees) Parmecircnides trabalha em acircmbito cosmoloacutegico e sua preocupaccedilatildeo ndash como os de seus colegas na eacutepoca ndash eacute com o mundo com a totalidade das coisas com os πάντα de seu proecircmio (128) Nesse acircmbito cosmoloacutegico descobre que haacute um princiacutepio do mundo pelo qual se daacute uma impossibilidade a contradiccedilatildeo A contradiccedilatildeo eacute um princiacutepio porque o que haacute (πάντα) enquanto todo escapa agrave negaccedilatildeo total Eis que a contradiccedilatildeo eacute princiacutepio tanto quanto a natildeo-contra-diccedilatildeo porque eacute a contradiccedilatildeo que permite a natildeo-contradiccedilatildeo Sem a noccedilatildeo de contradiccedilatildeo se anda com sentidos incertos como os mortais

O valor dessa afirmaccedilatildeo eacute historicamente inabalaacutevel porque Parmecircni-des partindo de um discurso sobre o mundo como que visto de fora por um observador (como Anaximandro via o mundo olhando seu pinax - cf ROS-

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SETTI 2013) alcanccedila um discurso que inclui o observador enquanto obser-vador estreando assim antes de tudo um discurso sobre os entes (ontologia) todos os entes incluindo os entes de pensamento (veja-se o famoso fragmento 3 onde se lecirc que pensar e ser satildeo o mesmo) Para ele o saacutebio natildeo eacute mais aquele que sabe soacute sobre as coisas externas ndash como o antigo xamatilde cuja figura indi-vidual se dissolve na mera intermediaccedilatildeo com o divino ndash poreacutem eacute tambeacutem aquele que consegue pensar sobre as coisas externas ou seja aquele que tem um domiacutenio cognitivo sobre os pensamentos de inqueacuterito e portanto sabe so-bre si mesmo Assim o saacutebio deve pensar por proacutepria conta e julgar pelo novo criteacuterio e natildeo pelo habitual discurso (κρῖναι δὲ λόγωι DK 75) ou seja natildeo deve julgar pelo discurso mas julgar o discurso porque agora o discurso enri-quecido de uma lei universal (a lei das αρχάι ἔστιν e οὐκ ἔστιν) possui uma medida de juiacutezo Parmecircnides amplia o mundo acrescentando ao mundo fiacutesico os mundos do pensamento e da linguagem Eis porque as αρχάι de Parmecircni-des sendo duas permanecem duas justamente eliminado uma delas deixando alguns criacuteticos enlouquecidos na discussatildeo sobre o monismo ou o dualismo de acordo com Parmecircnides o mundo eacute um todavia os sentidos nos enganam natildeo na pluralidade das coisas mas no argumento a respeito da pluralidade das coisas e principalmente ndash aspecto que ele discute explicitamente ndash a respeito do devir das coisas Haacute um princiacutepio que natildeo pode ser eliminado a contra-diccedilatildeo o qual eacute um princiacutepio de erro humano quando se elimina quando se desconsidera quando se faz de conta que natildeo existe a contradiccedilatildeo se instaura quando o princiacutepio eacute levado em conta a contradiccedilatildeo pode ser evitada

Eacute uma conceituaccedilatildeo esdruacutexula para noacutes tambeacutem porque temos que ter (a noccedilatildeo de) a contradiccedilatildeo para eliminar a contradiccedilatildeo temos que saber o que eacute contradiccedilatildeo para que possamos perceber quando o discurso eacute con-traditoacuterio Esses conceitos satildeo misteriosos ateacute agora e satildeo estranhas criaturas de nossas mentes Por exemplo a noccedilatildeo de ldquoimpossiacutevelrdquo obviamente (isto eacute para a nossa pragmaacutetica) natildeo se refere a nada de concreto no entanto temos essa noccedilatildeo e a usamos com o maacuteximo proveito outro exemplo a noccedilatildeo de ldquoinfinitordquo noccedilatildeo que natildeo se refere a algo pragmaticamente concreto mas que usamos igualmente com maacuteximo proveito O mesmo deve ser dito da noccedilatildeo de contradiccedilatildeo ou da noccedilatildeo de nada absoluto que usamos pragmaticamente com maior ou menor proveito

Parmecircnides encontra esse caminho e o expotildee Eacute um caminho assom-broso anti-intuitivo mas incontestaacutevel Dessa forma natildeo eacute de estranhar se a soluccedilatildeo platocircnica eacute a eliminaccedilatildeo fiacutesica da noccedilatildeo de nada absoluto (o par-

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riciacutedio) com sucessivo ldquoadeusrdquo34 achando de tecirc-lo ultrapassado Mas o nada absoluto enquanto noccedilatildeo contraditoacuteria permanece Assim como permane-ce a explicaccedilatildeo defeituosa do devir o qual assim como o conhecemos uma passagem do nada ao ser no nascimento e do ser ao nada no perecimento estaacute mal explicado Daqui por diante os comentaacuterios filosoacuteficos possiacuteveis satildeo inuacutemeros por conseguinte paro meu estudo neste ponto e proponho a versatildeo do fragmento 2 segundo a conceituaccedilatildeo apresentada ateacute aqui alterando de pouco a excelente versatildeo baacutesica de Cavalcante de Souza

Pois bem eu te direi e tu recebe a palavra que ouviste

os uacutenicos caminhos de inqueacuterito que satildeo a pensar

o primeiro que eacute e portanto que natildeo eacute (o caminho da) contradiccedilatildeo

de persuasatildeo eacute o caminho (pois agrave verdade acompanha)

o outro que natildeo eacute e portanto que eacute necessariamente (o caminho da) contradiccedilatildeo

este entatildeo eu te digo eacute atalho de todo incriacutevel

pois nem conhecerias o que natildeo eacute (pois natildeo eacute exequiacutevel)

nem o dirias

GALGANO N S Non-being in Parmenides of Elea Transformaccedilatildeo Mariacutelia v 41 n 2 p 9-36 AbrJun 2018

ABSTRACT In fragment DK 28 B 2 of his poem Parmenides presents his method for distinguishing true persuasion from the lack of true persuasion His famous proposal of these two ways of thinking form a complex statement of a system that intends to guarantee the veracity of statements in order to obtain reliable discourse the only discourse capable of true persuasion The present paper shows that the central role in Parmenidian argumentation is attributed to non-being a notion derived from a reflection on the impossibility of the negation of being Thus the whole fragment is interpreted in terms of this central notion We show that Parmenides discovered the impossibility of negation which we now call lsquocontradictionrsquo and that he articulated the means for avoiding contradiction in thought and discourse a rule which today we call the principle of non-contradiction The study presented here is a detailed investigation of the notion of non-being in the DK 28 B 2 fragment and includes a new translation of it

KEYWORDS Parmenides Non-being Non-contradiction Eleatism Parricide

34 Platatildeo Soph 258e7-259a1 ἡμεῖς γὰρ περὶ μὲν ἐναντίου τινὸς αὐτῷ χαίρειν πάλαι λέγομεν εἴτrsquo ἔστιν εἴτε μή λόγον ἔχον ἢ καὶ παντάπασιν ἄλογον

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(aquela que passou pelo meacutetodo) e por outro as opiniotildees dos mortais nas quais a convicccedilatildeo natildeo eacute verificadardquo

3 OS CAMINHOS

Apoacutes a explicitaccedilatildeo do programa de ensino a deusa comeccedila a explicar seu meacutetodo de verificaccedilatildeo Eacute aqui que nos deteremos mais porque eacute neste ponto que estreia pela primeira vez a noccedilatildeo de natildeo-ser Trata-se do fr DK 28 B 2 que ora passamos a estudar e que em grego eacute assim

εἰ δrsquo ἄγrsquo ἐγὼν ἐρέω κόμισαι δὲ σὺ μῦθον ἀκούσας

αἵπερ ὁδοὶ μοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαιἡ μὲν ὅπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναιΠειθοῦς ἐστι κέλευθος (Ἀληθείηι γὰρ ὀπηδεῖ)ἡ δrsquo ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναιτὴν δή τοι φράζω παναπευθέα ἔμμεν ἀταρπόνοὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε μὴ ἐὸν (οὐ γὰρ ἀνυστόν)οὔτε φράσαις

31 OS VERSOS 1 E 2

Vejamos os primeiros dois versos do fragmentoEi drsquoaacutegrsquoegograven ereacuteo koacutemisai degrave sugrave mucircthon akouacutesas

haacuteiper hodoigrave moucircnai dizeacutesios eisi noecircsai

Pois bem eu te direi e tu recebe a palavra que ouviste

os uacutenicos caminhos de inqueacuterito que satildeo a pensar

Sua importacircncia eacute estrutural dentro do poema a deusa anuncia que vai dizer algo importante e pede ao kouros para preparar-se pois haacute caminhos especiacuteficos para o pensar investigativo e satildeo somente alguns (moucircnai depois saberemos que satildeo dois)

Houve muita discussatildeo sobre o sentido de νοῆσαι principalmente so-bre se ele eacute ativo ou passivo Aqui noesai se refere a um pensar investigativo o

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qual eacute necessariamente ativo pois uma investigaccedilatildeo passiva eacute um dos oximo-ros mais esdruacutexulos imaginaacuteveis O sentido eacute os caminhos que o pensar segue quando se dedica agrave investigaccedilatildeo satildeo aqueles uacutenicos que descreveraacute a seguir Uma outra maneira de traduzir pode ser esta o pensar entre todos os cami-nhos possiacuteveis segue estes uacutenicos em sua atividade de investigar Portanto a traduccedilatildeo de Cavalcante de Souza soa oacutetima a pensarhellip que

Vejamos na sequecircncia a coordenaccedilatildeo com os versos 3 e 5 que apresen-tam os correlativos comeccedilando pela construccedilatildeo

Pois bem eu te direi e tu recebe a palavra que ouviste

que os uacutenicos caminhos de inqueacuterito satildeo(verso 2 + verso 3) a pensar que eacute e que portanto natildeo eacute natildeo ser

(verso 2 + verso 5) a pensar que natildeo eacute e portanto que eacute preciso natildeo ser

A construccedilatildeo mostra que o sentido do noein (νοῆσαι) nesse caso eacute ativo Haacute uma atividade especiacutefica da mente Nessa atividade a mente se en-caminha por vaacuterios rumos de investigaccedilatildeo dos quais somente dois parecem ser viaacuteveis ou parecem ter sentido a investigaccedilatildeo a pensar que eacute e a investigaccedilatildeo a pensar que natildeo eacute

Que nos diz esse verso 2 Que Parmecircnides se pocircs a refletir sobre a mente humana embora ele natildeo tivesse esse conceito de ldquomenterdquo como noacutes a entendemos Essa reflexatildeo foi fatal e aos poucos veremos por quecirc Por en-quanto podemos sustentar que o ponto de partida de Parmecircnides eacute reflexivo Sua reflexatildeo verteu sobre o funcionamento da mente mais especificamente sobre que tipo de funcionamento leva agrave persuasatildeo ou leva a conclusotildees insatis-fatoacuterias do ponto de vista da explicaccedilatildeo do mundo

32 OS VERSOS 3 E 4he megraven hoacutepos eacutestin te kaigrave os eacutesti megrave eicircnai

peithoucircs esti keacuteleuthos (aletheiacuteei gagraver opedeicirc)

o primeiro que eacute e portanto que natildeo eacute natildeo-ser

de persuasatildeo eacute o caminho (pois agrave verdade acompanha)

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O verso 3 eacute provavelmente o mais estudado de Parmecircnides merece Entretanto vejamos primeiro o verso 4 Ali notamos a presenccedila de uma palavra marcadamente psicoloacutegica πειθοῦς persuasatildeo Parmecircnides percebe que a persuasatildeo eacute um fato da ldquomenterdquo conceito este uacuteltimo que lhe eacute estra-nho mas que ele consegue identificar descrevendo as sensaccedilotildees mentais8 E identifica duas persuasotildees uma acompanhada da verdade e outra na qual o convencimento natildeo eacute acompanhado da verdadeira confianccedila Agrave primeira ele chama de πειθός que gera a sensaccedilatildeo de firmeza na mente (ἀτρεμὲς ἦτορ DK 1 29) e acompanha a verdade Agrave segunda ele chama de ldquoopiniotildees dos mortaisrdquo na qual natildeo haacute uma πίστις ἀληθής (DK 1 30) um convenci-mento acompanhado de verdade

Essa distinccedilatildeo nos mostra agudeza da observaccedilatildeo psicoloacutegica A certeza pode ser de dois tipos ou eacute uma certeza que deixa espaccedilo a duacutevidas ou eacute uma certeza indubitaacutevel Isso expotildee um problema gnosioloacutegico posto que se tem uma convicccedilatildeo (e todo homem tem convicccedilotildees) como saber se essa convicccedilatildeo corresponde agrave verdade ou eacute uma convicccedilatildeo sem fundamento e sem correspon-decircncia com a realidade Natildeo eacute possiacutevel sabecirc-lo A mente mostra apenas sua convicccedilatildeo subjetiva e para saber se tal convicccedilatildeo eacute acompanhada de verdade ou se natildeo tem feacute verdadeira eacute preciso recorrer a algo extramental eacute necessaacuteria uma prova externa porque a mente por si soacute natildeo consegue identificar uma sua convicccedilatildeo proacutepria como verdadeira ou falsa

A diferenciaccedilatildeo de dois tipos de persuasatildeo no poema eacute clara9 e se a ordem dos fragmentos de Diels estiver correta essa diferenciaccedilatildeo pertence agrave parte propedecircutica pois natildeo se fala dela na parte do eon no fr 8 quando a ordem do mundo eacute explicada com exceccedilatildeo do final do discurso da deusa onde ela anuncia o encerramento de seu discurso confiaacutevel (πιστὸν λόγον) Isso significa que esse tema faz parte do instrumental argumentativo preacutevio que conduziraacute agrave sucessiva anaacutelise cosmoloacutegica Enfim nos versos 3-4 uma proclamaccedilatildeo anteriormente anunciada (vv 1-2) eacute agora enunciada (vv 3-4) em seu primeiro caminho Eacute enunciado o caminho que pensa o inqueacuterito com persuasatildeo verdadeira natildeo aquele pensar no qual natildeo haacute convicccedilatildeo ver-

8 A discussatildeo completa estaacute em Galgano (2012)9 Embora nesse fragmento a palavra persuasatildeo natildeo apareccedila associada aos ldquomortaisrdquo em outras partes essa ligaccedilatildeo eacute clara ou ateacute mesmo literal como em 8 38-39 onde se frisa que ldquoseratildeo nomes todas as coisas que os mortais determinaram persuadidos de ser verdaderdquo (τῶι πάντrsquo ὄνομ(α) ἔσται ὅσσα βροτοὶ κατέθεντο πεποιθότες εἶναι ἀληθῆ) Note-se πεποιθότες atribuiacutedo aos mortais particiacutepio perfeito de πείθω

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dadeira mas aquele caminho enfim que anda com a verdade Vamos agora voltar ao verso 3

Natildeo se pode isolar o verso 3 ἡ μὲν ὅπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι do anterior verso 2 (e nem do seu correlativo verso 5) e portanto natildeo se pode esquecer que trata de um caminho ou seja de um elemento di-nacircmico No entanto a primeira coisa que salta aos olhos eacute que todas as noccedilotildees envolvidas satildeo estaacuteticas e natildeo haacute nenhum elemento dinacircmico ou sequencial ou de qualquer natureza minimamente motora O sentido desse ponto de vista eacute que o pensar o ldquoἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναιrdquo natildeo eacute o pensar de um momento mas um pensar que segue por um caminho Ou seja significa que no percurso seguido pelo pensar para que o inqueacuterito seja de verdadeira per-suasatildeo o ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι deve ser constante Essa noccedilatildeo eacute estrutural o caminho de inqueacuterito a pensar deve conter uma constante vaacutelida em qualquer momento e passagem do caminho O fato de ser a afirmaccedilatildeo de uma constante (estaacutetica) numa dimensatildeo de caminho (dinacircmica) reforccedila a ideia de algo externo e de natureza fixa a ser aplicado a algo de natureza pro-cessual ou seja eacute uma lei porque a noccedilatildeo de lei expressa tambeacutem as relaccedilotildees fixas entre as dinacircmicas de elementos de um ou mais processos

Vamos observar a estrutura sintaacutetica do verso mais de perto ἡ μὲν ὅπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι Depois da conjunccedilatildeo correlativa ἡ μὲν ndash que se coadunaraacute com o ἡ δὲ de 25 (ἡ δrsquo ὡς) ndash o verso eacute constituiacutedo de duas unidades sintaacuteticas autocircnomas mas subordinadas ao verso 2 pelos pronomes ὅπως e ὡς ademais as duas unidades estatildeo ligadas pela conjunccedilatildeo τε καὶ Vejamos a construccedilatildeo sintaacutetica sem entrar ainda na semacircntica ou seja sem traduzir os termos ἔστιν οὐκ ἔστι e μὴ εἶναι

por um lado (ἡ μὲν) que ldquoArdquo e tambeacutem (τε καὶ) que ldquoBrdquo

A conjunccedilatildeo τε καὶ (e tambeacutem que) indica que temos duas oraccedilotildees as quais pela estrutura de todo o fragmento devem ser completas Devem porque natildeo parece que o sejam vejamo-las separadamente e sem os pronomes

A ἔστιν

B οὐκ ἔστι μὴ εἶναι

A primeira oraccedilatildeo eacute sem sujeito e sem objeto sendo constituiacuteda somen-te pelo verbo a segunda eacute igualmente sem sujeito contudo tem um objeto

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direto A primeira eacute afirmativa enquanto a segunda eacute negativa entretanto a segunda nega uma segunda negaccedilatildeo contida no objeto eacute negaccedilatildeo de negaccedilatildeo

Conjunccedilatildeo correlativa

Pronome relativo sujeito verbo objeto

Verso 23 ἡ μὲνOraccedilatildeo 1 ὅπως mdash ἔστιν mdashOraccedilatildeo 2 ὡς mdash οὐκ ἔστι μὴ εἶναι

Posto que em grego antigo o sujeito ou eacute expliacutecito ou eacute subentendido o grande misteacuterio dessas palavras eacute exatamente que o sujeito natildeo aparece nem expliacutecito e nem subentendido constituindo uma autecircntica anomalia literaacuteria Natildeo conveacutem nesta ocasiatildeo reconstruir a discussatildeo dos vaacuterios estudiosos em relaccedilatildeo a essa falta de nosso lado enfrentaremos a questatildeo por outras provi-decircncias Por enquanto vamos apresentar o resumo das possibilidades de solu-ccedilatildeo reportadas por Cordero (2005) Para o estudioso haacute quatro possibilidades para explicar a anomalia a saber ldquoa) Trata-se de um erro de transmissatildeo de texto se assim for este deve ser corrigido introduzindo o sujeito ausente b) haacute um sujeito conceitual impliacutecito que deve ser buscado no resto do Poema c) natildeo haacute nenhum sujeito possiacutevel e d) o sujeito deve ser extraiacutedo do predicado isolado pois o eacutestin ldquoproduzrdquo o sujeito As quatro possibilidades encontraram defensoresrdquo (CORDERO 2005 p 63)

Natildeo penso que seja o caso de tomar partido agora faremos isso so-mente no fim da nossa anaacutelise por enquanto vamos prosseguir com as nos-sas consideraccedilotildees A primeira delas eacute que as duas oraccedilotildees natildeo satildeo simples-mente conjuntas elas satildeo mais que conjuntas porque reuacutenem uma uacutenica noccedilatildeo em trecircs variaccedilotildees ἔστιν οὐκ ἔστι e μὴ εἶναι satildeo variaccedilotildees do campo semacircntico de εἰμί o verbo ser Seriam simplesmente conjuntas se apresen-tassem verbos e objetos diretos diferentes Naturalmente uma construccedilatildeo desse tipo seria possiacutevel10 e apresentaria duas oraccedilotildees sintaticamente inde-pendentes e conjuntas Poreacutem no nosso caso a construccedilatildeo eacute feita com trecircs formas do mesmo verbo que muito dificilmente tecircm uma conexatildeo apenas conjuntiva Ademais a primeira oraccedilatildeo eacute afirmativa e a segunda duplamente negativa o que faz pensar na estrutura da citaccedilatildeo platocircnica (Soph 237a8 DK B 7 1) a qual natildeo eacute sintaticamente igual mas muito semelhante que nunca os natildeo entes sejam onde tambeacutem uma dupla negaccedilatildeo recusa existecircncia

10 Por exemplo ldquoos uacutenicos caminhos de inqueacuterito a pensar por um lado que examina e que natildeo pretende natildeo avaliarrdquo

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aos natildeo entes implicando apenas variaccedilotildees formais de εἶναι dessa vez com o particiacutepio no neutro plural τὰ ἐοντα que natildeo estaacute presente no fr 211 Esses elementos precisam ser investigados

Vamos comeccedilar pela conjunccedilatildeo12 τε καὶ em geral traduzida por sim-ples conjunccedilatildeo pelos criacuteticos assume aqui um valor mais forte O fato de que seja uma conjunccedilatildeo elimina de iniacutecio a interpretaccedilatildeo do verso 3 como uma disjunccedilatildeo13 Mais que uma conjunccedilatildeo as duas subordinadas satildeo ligadas por uma conexatildeo vital na qual o τε καὶ no sentido de ldquotambeacutemrdquo ou ateacute mesmo ldquoambosrdquo representa a conjunccedilatildeo de uma segunda parte reforccedilando a primeira natildeo porque explica mas simplesmente porque as duas fazem parte de um todo como dois lados de uma mesma moeda14

Vamos deixar de lado por enquanto o primeiro hemistiacutequio e con-siderar somente o segundo O segundo hemistiacutequio de 3 soa assim os uacutenicos caminhos de inqueacuterito a pensar satildeo por um lado que [ldquoArdquo] e tambeacutem que natildeo eacute natildeo-ser O fato singular eacute que aleacutem da repeticcedilatildeo da negaccedilatildeo (natildeohellip natildeo) tem-se tambeacutem a repeticcedilatildeo do verbo εἰμί (eacutehellip ser) Obviamente natildeo se tra-ta de uma ditografia e portanto teremos que diferenciar o primeiro negar (οὐκ ἔστι natildeo eacute) do segundo negar (μὴ εἶναι natildeo-ser) O primeiro negar eacute feito pela partiacutecula negativa οὐκ e o presente do indicativo ἔστι A traduccedilatildeo simples e direta soa natildeo eacute Natildeo parece haver dificuldade quanto agrave traduccedilatildeo em si restando apenas o problema da falta de sujeito Se ldquonatildeo eacuterdquo estaacute certo resta descobrir a que se refere essa negaccedilatildeo e natildeo haacute outro candidato que o seguinte μὴ εἶναι

11 Eacute possiacutevel mostrar (e o fazemos em sede apropriada) que a citaccedilatildeo platocircnica (v 7 2) tem a mesma estrutura do v 2 312 Humbert (1954 p 370) ldquoDrsquoailleurs drsquoune faccedilon geacuteneacuterale une certaine indeacutetermination inseacuteparable de la poeacutesie qui exprime moins qursquoelle ne suggegravere est peu favorable agrave un emploi rigoreux et preacutecis des particulesrdquo13 Alguns interpretam de fato como disjunccedilatildeo ex Mansfeld (1960) em Meijer (1997) p 100 et passim O argumento de Mansfeld parte da consideraccedilatildeo de que o silogismo disjuntivo natildeo precisa de sujeito (aqui o argumento de Parmecircnides natildeo precisaria de um sujeito para o esti) A (ἔστιν) ou B (οὐκ ἔστι μὴ εἶναι)14 Aparentemente (pelo que pude descobrir) natildeo haacute estudos atuais completos sobre as partiacuteculas em grego antigo e parece que o uacuteltimo foi de Denniston (1954) De laacute para caacute as partiacuteculas foram estudadas por trabalhos especiacuteficos e separadamente por aacutereas literaacuterias (eacutepica trageacutedia etc) deixando uma lacuna na poesia onde o uso eacute muito menos rigoroso e oferece maiores dificuldades de interpretaccedilatildeo Um status questionis da problemaacutetica de te kai possivelmente se encontra em um paper do qual por enquanto soacute consegui o abstract Bonifazi (2012)

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Natildeo parece haver atestaccedilatildeo de μὴ εἶναι na poesia eacutepica Pela pesquisa no TLG as primeiras atestaccedilotildees parecem ser da eacutepoca de Parmecircnides se natildeo sucessivas sendo que nesse caso pode ter sido ele o primeiro a usar tal expres-satildeo Mas aguardando resultados filoloacutegicos mais precisos podemos assegurar que a noccedilatildeo de εἶναι contida no segundo negar natildeo deve ser a mesma do primeiro sob pena de gerar uma contradiccedilatildeo de termos incompreensiacutevel mas que justamente nesse sentido aticcedilou a fantasia de muitos criacuteticos Penso por exemplo naqueles que quiseram ver as duas negaccedilotildees apenas no sentido gra-matical15 e acabaram achando o argumento de Parmecircnides fraco ou tautoloacutegi-co quando natildeo inconsistente No entanto o primeiro negar (οὐκ ἔστι) quer negar um outro negar (μὴ) especiacutefico aquele que nega εἶναι

Vou repetir a sequecircncia porque por um lado a accedilatildeo do primeiro negar eacute predicativa e por outro lado a noccedilatildeo predicada eacute maacutexima e acaba por gerar um pequeno desconforto argumentativo O primeiro negar nega um segundo negar aquele que nega εἶναι Ou seja o segundo negar eacute um ldquonegar algo espe-ciacutefico (εἶναι)rdquo O conceito se torna claro se se manteacutem presente o sentido psi-coloacutegico muito mais que o gnosioloacutegico da expressatildeo parmenidiana Negar algo eacute o que fazem ambas as expressotildees tanto do primeiro quanto do segundo negar Todavia o segundo negar eacute a accedilatildeo especiacutefica de negaccedilatildeo de εἶναι a qual eacute uma accedilatildeo da mente eacute um comportamento concreto o comportamento mental de negar εἶναι Parmecircnides argumenta que o caminho persuasivo eacute aquele que nega que se possa ter o comportamento mental especiacutefico de negar εἶναι natildeo eacute possiacutevel (ter o comportamento mental de) negar εἶναι

Esse eacute um ponto que gerou muita confusatildeo Parmecircnides natildeo nega que se possa negar como se ele proacuteprio ao afirmar que o natildeo-ser natildeo eacute estivesse cometendo o maior dos disparates autocontraditoacuterios Satildeo muitiacutessimos os que interpretam Parmecircnides dessa forma e que afinal acabam asseverando que Parmecircnides eacute o filosofo do ser (apenas) Parmecircnides usa gramaticalmente a negaccedilatildeo e tambeacutem a usa gnosiologicamente e epistemicamente Daacute para dizer mais daacute para dizer que ele usa a negaccedilatildeo de forma magistral como poucos souberam usar na histoacuteria da filosofia De fato o segundo hemistiacutequio asseve-ra que haacute um percurso mental que eacute persuasivo (v 4) quando natildeo segue μὴ εἶναι Mais uma vez o percurso mental de inqueacuterito eacute persuasivo quando natildeo

15 Por exemplo C Kahn cuja uacutenica conclusatildeo segundo sua leitura seria ldquoIf we restate Parmenidesrsquo claim in the modern formal mode it might run lsquom knows that prsquo entails lsquoprsquordquo (KAHN 2009 p 153-154)

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se comporta mentalmente negando εἶναι quando natildeo tem a atitude de negar εἶναι Resta descobrir o que eacute εἶναι

O termo εἶναι eacute um infinitivo Como se sabe o infinitivo eacute a expressatildeo verbal depauperada de todo sentido acessoacuterio a ponto que ldquo[c]rsquoest de cette fa-ccedilon neacutegative que lrsquoinfinitif a eacuteteacute deacutefini comme repreacutesentant lrsquoideacutee verbale nuerdquo (HUMBERT 1954 p 125) Os mais variados estudos natildeo conseguiram expli-car de forma convincente um sentido especiacutefico para o uso feito por Parmecircnides Por exemplo The verb ldquoberdquo in ancient Greek (KAHN 2003 passim) um dos estudos mais completos sobre o tema vecirc-se obrigado a atribuir a Parmecircnides um uso supostamente novo mas parece-me de forma improacutepria e desnecessaacuteria16 Eu penso que quando Parmecircnides quis utilizar um novo sentido inventou um novo termo como no caso de to eon (invenccedilatildeo na linha jaacute consolidada de subs-tantivar verbos no gecircnero neutro) Natildeo fez o mesmo com εἶναι e suas demais formas verbais razatildeo pela qual o sentido deve ser buscado nas acepccedilotildees tradicio-nais as quais satildeo muacuteltiplas e equiacutevocas como diraacute mais tarde Aristoacuteteles

No infinitivo εἶναι expressa a ideia geral do verbo num campo se-macircntico que vai desde ldquopresenccedilardquo ateacute a funccedilatildeo predicativa comum a muitas liacutenguas indo-europeias Creio que seja inuacutetil buscar um sentido preciso como ldquoexistirrdquo ou ldquoestar presente localmenterdquo ou outro εἶναι significa tudo isso principalmente porque eacute usado no infinitivo e como objeto Em portuguecircs a palavra que expressa com a mesma equivocidade a pluralidade de sentido numa riqueza proacutexima ao grego eacute o verbo ldquoserrdquo17 Parece-me portanto per-feitamente inuacutetil cercear o sentido a uma uacutenica acepccedilatildeo restriccedilatildeo que acaba gerando interpretaccedilotildees polecircmicas Ateacute mesmo para a acepccedilatildeo de ldquoexistirrdquo se construiacuteram criacuteticas a meu ver improacuteprias pelas quais se chega a discutir se Parmecircnides pensasse ou natildeo que seres natildeo existentes como quimeras e outros

16 Kahn extrai o sentido de εἶναι em Parmecircnides natildeo do uso que o eleata faz mas do contexto geral da mensagem parmenidiana Teoricamente seria um meacutetodo viaacutevel posto que se consiga entender corre-tamente a mensagem do filoacutesofo Na praacutetica no caso do poema de Parmecircnides que verte exatamente sobre εἶναι e seus derivados haacute um risco enorme ndash ao qual em minha visatildeo Kahn sucumbiu ndash de cair num petitio principii onde o sentido de εἶναι eacute extraiacutedo da mensagem filosoacutefica geral (Kahn o extrai de 129 que eacute o ldquoiacutendice parmenidianordquo e portanto poderia oferecer a ideia geral do poema) e por sua vez a mensagem filosoacutefica eacute obtida a partir do sentido de εἶναι Kahn acredita ter encontrado no sentido ldquoveritativordquo o novo uso que Parmecircnides faz de εἶναι17 Para εἰμί o Dicionaacuterio LSJ apresenta sete campos (de A a G) com 16 acepccedilotildees e mais vaacuterias suba-cepccedilotildees Para o verbo ldquoserrdquo o Dicionaacuterio Houaiss apresenta 19 acepccedilotildees das quais 14 verbais e 5 como substantivo as subacepccedilotildees satildeo exemplificadas mas natildeo classificadas

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seres mitoloacutegicos pudessem ser incluiacutedos na leitura predicamental18 Principal-mente eacute necessaacuterio manter a equivocidade do termo porque corresponde agrave forma mentis do autor e natildeo se devem exigir distinccedilotildees que natildeo eram processa-das por aquela cultura sob pena mais uma vez de atribuir aos antigos a nossa proacutepria forma mentis pecado fatal para um historiador da filosofia

Desse modo de iniacutecio a traduccedilatildeo de μὴ εἶναι com ldquonatildeo-serrdquo ateacute mes-mo por ser equiacutevoca (para a nossa sensibilidade) manteacutem a equivocidade proacute-pria da eacutepoca e da liacutengua da eacutepoca Posta entatildeo essa equivocidade precisamos saber se expressa um sentido filosoacutefico antes de tudo para a eacutepoca e depois para noacutes A comparaccedilatildeo de 23 οὐκ ἔστι μὴ εἶναι com 71 Οὐ δαμῇ εἶναι μὴ ἐόντα que eacute o testemunho de Platatildeo nos faz entender que nessas palavras natildeo soacute se encontra um sentido filosoacutefico mas ateacute mesmo o sentido principal da filosofia de Parmecircnides Retomando portanto a construccedilatildeo precisamos entender por que pensar o natildeo-ser (μὴ εἶναι) eacute algo que natildeo eacute possiacutevel ou que natildeo se deve fazer ou que simplesmente natildeo eacute (natildeo acontece) segundo a expressatildeo usada por Parmecircnides οὐκ ἔστι

Aleacutem da traduccedilatildeo simples e imediata haveria outras possibilidades de traduccedilatildeo19 essas variaccedilotildees podem ser interessantes para evidenciar nuances aqui e acolaacute contudo tendo a possibilidade de utilizar o verbo ldquoserrdquo num uso equiacutevoco proacuteximo do grego natildeo precisamos recorrer agrave circunlocuccedilotildees e pode-mos traduzir οὐκ ἔστι com ldquonatildeo eacuterdquo20 e μὴ εἶναι com ldquonatildeo-serrdquo Diz portanto o segundo hemistiacutequio

Os uacutenicos caminhos de inqueacuterito ao pensar satildeo

Por um lado [ldquoArdquo] e que natildeo eacute natildeo-ser

18 De novo Kahn (2009) que assinala ldquoTo take the philosophical objection first it is simply false to say that you cannot think or talk about (point out in speech phrazein) what does not exist And the falseness of this would be obvious to any Greek who reflected for a moment on the profusion of monsters and fantastic creatures in traditional poetry and myth from Pegasus to the children of Gaia with a hundred arms and fifty heads apiecerdquo (HESIOD THEOGONY 150 172) Mais agrave frente ressaltamos que exatamente na questatildeo filosoacutefica Kahn estaacute errado e Parmecircnides estaacute certo eacute impossiacutevel pensar e dizer o natildeo-ser19 Um outro caminho possiacutevel de traduccedilatildeo utilizado principalmente pelos autores de liacutengua inglesa por motivos idiossincraacutesicos da liacutengua eacute empregar uma expressatildeo cuja noccedilatildeo tambeacutem eacute ampliacutessima e equiacutevoca ldquocoisardquo Mas essa expressatildeo por ser um substantivo natildeo possui o aspecto dinacircmico que o verbo tem sendo assim necessaacuterio acrescentar o verbo ser portanto eacute possiacutevel traduzir com ldquoas coisas que satildeordquo Outra possibilidade eacute usar o pronome ldquoquerdquo em sentido predicativo em substituiccedilatildeo de coisa ou coisas Outra ainda eacute o pronome demonstrativo (aquilo isto) ou o indefinido (algo) com a mesma funccedilatildeo substitutiva de coisa(s) no sentido mais indefinido possiacutevel20 Laacute onde em inglecircs haacute obrigatoriedade de explicitar-se o sujeito ldquowhat is notrdquo

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Se tiveacutessemos seguido a ordem metodoloacutegica tradicional ao examinar 23 teriacuteamos analisado primeiro ἔστιν e depois οὐκ ἔστι μὴ εἶναι E se de-pois de estudar o segundo hemistiacutequio voltaacutessemos nossa atenccedilatildeo ao primeiro hemistiacutequio natildeo teriacuteamos ganho metodoloacutegico nenhum pois redundariacuteamos na leitura por pressupostos em que o sentido de ἔστιν eacute obtido pelo pressu-posto de que ἔστιν significa em grego ldquoeacuterdquo todavia dessa maneira se chegaria aos resultados jaacute conhecidos considerados natildeo totalmente satisfatoacuterios pelos proacuteprios autores de cada interpretaccedilatildeo O dado concreto eacute que o poema natildeo oferece nenhuma definiccedilatildeo direta ou indireta de ἔστιν embora apresente mui-tos σήματα de ἐὸν Em compensaccedilatildeo o poema trata amplamente de μὴ εἶναι E natildeo eacute preciso ir muito longe para encontrar referecircncias para a noccedilatildeo de μὴ εἶναι pois observamos muitos dados nos versos de 5 a 8 do nosso fragmento Iremos portanto ao verso 5 e subsequentes

33 OS VERSOS 5 A 8 he drsquoos ouk eacutestin te kaigrave os khreoacuten esti megrave eicircnai

tegraven deacute toi phraacutezo panapeutheacutea eacutemmen atarpoacuten

ouacutete gagraver agravev gnoiacutees toacute ge megrave eograven (ou gagraver anustoacuten)

ouacutete phraacutezais

o outro que natildeo eacute e portanto que eacute preciso natildeo ser

este entatildeo eu te digo eacute atalho de todo incriacutevel

pois nem conhecerias o que natildeo eacute (pois natildeo eacute exequiacutevel)

nem o dirias

Vamos relembrar a letra do verso 5 ἡ δrsquo ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι Haacute uma construccedilatildeo paralela ao verso 3 dois hemistiacutequios no segundo dos quais encontramos nosso μὴ εἶναι No verso seguinte o caminho eacute chamado de παναπευθέα termo que muito fez e faz sofrer os filoacutelogos O sentido geral poreacutem eacute claro quer se queira traduzir como ldquode todo incriacutevelrdquo (CAVALCANTE DE SOUZA 1978) quer como ldquocompletamente inconos-ciblerdquo (CORDERO 2005 p 219) ou ldquowholly without reportrdquo (COXON 2009 p 56) ou como outro Em suma a noccedilatildeo geral eacute de que haacute uma difi-culdade intransponiacutevel em seguir esse caminho e por que eacute explicado a seguir

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Assim como em certa metodologia de exposiccedilatildeo primeiro se enuncia a tese e depois se propotildee o argumento demonstrativo Parmecircnides primeiro enuncia (como conveacutem agrave expressatildeo de uma deusa) e depois diz por quecirc Ora a novida-de cultural eacute exatamente esse porquecirc onde as afirmaccedilotildees natildeo satildeo mais apenas impostas por sua forccedila hieraacutetica mas precisam de explicaccedilotildees21

O nosso primeiro problema eacute que os enunciados (no verso 3 antes no verso 5 agora) natildeo satildeo claros para noacutes Nesse sentido podemos pedir clareza aos argumentos Qual eacute o argumento Eis a resposta de Parmecircnides οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε μὴ ἐὸν (οὐ γὰρ ἀνυστόν) οὔτε φράσαις Aqui a traduccedilatildeo eacute mais clara e natildeo haacute muita divergecircncia entre os criacuteticos pois nem poderias co-nhecer o que natildeo eacute (pois eacute impossiacutevel) nem o dirias Haacute aqui um claro objeto do discurso τό μὴ ἐὸν o qual sem hesitaccedilatildeo desta vez podemos traduzir por ldquoo que natildeo eacuterdquo Sem hesitaccedilatildeo porque τὸ ἐὸν eacute uma expressatildeo desconhecida antes de Parmecircnides aparece com ele eacute estudada por seus disciacutepulos e pelos seus criacuteticos (de Melisso a Aristoacuteteles) e eacute reportada pela doxografia como invenccedilatildeo parmenidiana

A noccedilatildeo exposta por Parmecircnides eacute sequencial o caminho de inqueacuterito que pensa οὐκ ἔστιν aqui chamado de ἀταρπόν natildeo pode ser percorrido porque eacute impossiacutevel ldquoconhecerrdquo (γνοίης ndash segunda pessoa do optativo aoristo ativo de γιγνώσκω) o que natildeo eacute e vamos deixar para depois a questatildeo do di-zer (οὔτε φράσαις) Vamos concentrar nossa atenccedilatildeo sobre γνοίης Para noacutes eacute menos importante a traduccedilatildeo gramaticalmente e estilisticamente precisa e mais importante a precisatildeo da noccedilatildeo filosoacutefica exposta Em relaccedilatildeo a essa pa-lavra houve (e ainda haacute) uma discussatildeo acirrada Discute-se se traduzir por ldquoconhecerrdquo como fazem alguns (COXON 2009 p 56 GALLOP 1984 p 55 TARAacuteN 1965 p 32 e muitos outros) ou ldquoreconhecerrdquo como fazem outros (por exemplo BARNES 1982 p 124) e principalmente que sentido atribuir ao ldquoconhecerrdquo Eu penso que considerado o contexto natildeo se trata do conhecer epistecircmico mas do conhecer gnosioloacutegico ou seja da capacidade que a mente possui de estabelecer um processo de conhecimento E que se trate de processo eacute claro pela vaacuteria terminologia que Parmecircnides usa mas principalmente pela sua ὁδός que ficaraacute para sempre como metaacutefora perfeita dos procedimentos a serem tomados para realizar tarefas de qualquer natureza vindo a receber o nome de meacutetodo

21 Rossetti (2010) A necessidade de explicaccedilotildees natildeo eacute mais soacute dos autores mas tambeacutem da audiecircncia que agora requer argumentos

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Para o meacutetodo do pensar epistecircmico declara Parmecircnides natildeo eacute con-veniente seguir um certo percurso porque sobre ele haacute ao menos uma etapa onde se deve ldquoconhecerrdquo ndash ou seja onde se deve exercer a capacidade gnosioloacute-gica ndash o τό μὴ ἐὸν mas isso eacute impossiacutevel Na verdade tanto o termo ἀνυστόν (reportado por Simpliacutecio) quanto sua variante ἐφικτόν (reportada por Proclo) tecircm um sentido processual quero dizer que a tarefa de pensar o τό μὴ ἐὸν natildeo apresenta uma impossibilidade que se realiza imediatamente mas uma que implica um processo o qual eacute impossiacutevel em sua inteireza porque natildeo pode ser levado a termo De fato ἀνυστός significa ldquoser completadordquo ldquopraticaacutevelrdquo enquanto ἐφικτός significa ldquofaacutecil de alcanccedilarrdquo ldquoacessiacutevelrdquo Ambos os termos tecircm sentido dinacircmico e processual e a negaccedilatildeo que Parmecircnides faz significa que esse processo natildeo pode ser levado a termo

De que processo se trata Em minha visatildeo trata-se do processo concre-to de pensar a negaccedilatildeo do ser Parmecircnides eacute de aacuterea de formaccedilatildeo pitagoacuterica e os pitagoacutericos ndash como assinala Aristoacuteteles (Metaph 986a15-26) ndash naquela eacutepoca estudavam as oposiccedilotildees as mais abstratas tendo passado da oposiccedilatildeo mais antiga entre par e iacutempar correspondentes a limitado e ilimitado (πέρας e ἄπειρον) a um conjunto de dez oposiccedilotildees Nada desabona uma possiacutevel tentativa de Parmecircnides buscar uma oposiccedilatildeo (a qual era feita tambeacutem por negaccedilatildeo como nos evidencia a expressatildeo verbal da oposiccedilatildeo entre πέρας e ἄπειρον com o ldquoαrdquo privativo) para o ldquotodordquo aquele πάντα que encontramos no verso 128 do poema e que em breve transformar-se-ia em φύσις no curso da evoluccedilatildeo histoacuterica dos conceitos filosoacuteficos da antiga Greacutecia

A meditaccedilatildeo do ldquonatildeo-serrdquo eacute das mais interessantes a se fazer na filosofia Tentar ldquopensarrdquo o ldquonatildeo-serrdquo eacute uma experiecircncia profunda a qual leva a conside-raccedilotildees radicais natildeo soacute sobre a existecircncia humana mas sobre a existecircncia como um todo Que Parmecircnides tenha se dedicado a essa meditaccedilatildeo eacute seguro pois ele o diz indiretamente em 22 quando afirma que os uacutenicos caminhos ao pensar satildeo aquele que pensa ἔστιν e aquele que pensa οὐκ ἔστιν O que natildeo sa-bemos e natildeo podemos afirmar com certeza eacute que tipo de meditaccedilatildeo ele reali-zou Eis que os termos ἀνυστόν ou ἐφικτόν vecircm nos socorrer e nos informam que se trata de uma meditaccedilatildeo processual que natildeo acaba Descrevi esse proces-so detalhadamente em outro trabalho (GALGANO 2010) e o repetirei aqui brevemente Pensar o natildeo-ser significa pensar concretamente a negaccedilatildeo do ser concreto (do mundo sensiacutevel ou inteligiacutevel) de cada ser Para tornar mais claro o processo pode-se comeccedilar negando a existecircncia de um ente depois daquilo

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O natildeo-ser em Parmecircnides de Eleia Artigos Articles

que o rodeia depois do planeta depois do universo (sensiacutevel e inteligiacutevel atual e possiacutevel) e depois do mundo como um todo enfim do todo

O problema principal dessa meditaccedilatildeo eacute exatamente pensar se o sujeito pertence ou natildeo ao todo Quando se pensa a negaccedilatildeo do todo permanece ainda o sujeito pensante que pensa o todo como se o olhasse de um ponto virtual externo a ele E quando se tenta incluir o sujeito pensante de duas uma 1) ou o sujeito acreditando pensar a si proacuteprio dentro do todo reapa-rece externamente22 ou 2) o sujeito cognitivo desaparece e com ele qualquer noccedilatildeo cognitiva de ldquonatildeo-serrdquo Podemos assegurar claramente que o processo de pensar o τό μὴ ἐὸν natildeo termina seja porque eacute impossiacutevel incluir o sujeito no todo pois ele sempre reaparece a cada tentativa seja porque o processo quan-do inclui o sujeito no todo interrompe-se sendo assim impossiacutevel completar a negaccedilatildeo do todo Natildeo podemos saber se o modelo meditativo de Parmecircnides foi exatamente este mas natildeo me parece haver nada em desabono23

Entretanto qual eacute a importacircncia de natildeo se poder pensar a negaccedilatildeo de tudo Seguindo o argumento parmenidiano o caminho (ἀταρπόν) cognitivo que pensa τό μὴ ἐὸν natildeo pode ser concluiacutedo Ora ἀταρπόν eacute um sinocircnimo que Parmecircnides usa para o ὁδός do verso 22 (ὁδοὶ) isso quer dizer que o segundo caminho de inqueacuterito pode ser iniciado mas natildeo pode ser levado a termo Poreacutem se natildeo pode ser levado a termo por que eacute identificado como caminho Por que natildeo eacute excluiacutedo jaacute de iniacutecio quando a deusa ao inveacutes de anunciar os uacutenicos (moucircnai plural) caminhos natildeo anuncia um uacutenico cami-nho A resposta a essa pergunta torna clara a estranha afirmaccedilatildeo de que o caminho do pensar do segundo hemistiacutequio do verso 5 eacute necessaacuterio que per-maneccedila natildeo ser (χρεών ἐστι μὴ εἶναι) Parmecircnides assevera que embora seja um caminho que jamais pode ser completado ele ao mesmo tempo natildeo pode ser eliminado continua a pertencer aos (dois) uacutenicos caminhos de inqueacuterito ele eacute necessaacuterio

22 Se penso na aniquilaccedilatildeo de tudo incluindo a mim mesmo terei que pensar a mim mesmo aniquilado contudo esse pensar gerando esse novo pensamento gera um novo sujeito cognitivo pensante se aniquilo esse novo pensamento terei um novo sujeito cognitivo que pensa essa nova aniquilaccedilatildeo e assim por diante ad infinitum23 Natildeo quero garantir que Parmecircnides estreie uma filosofia do sujeito embora isso natildeo possa ser excluiacutedo a priori jaacute que os embriotildees de uma tal filosofia apareceratildeo em breve com Soacutecrates Acredito que se deve pensar mais no sujeito como o atleta campeatildeo das Olimpiacuteadas ou seja aquele capaz de cumprir (ou natildeo) certas proezas como fica extraordinariamente evidenciado no paradoxo de Zenatildeo cuja metaacutefora da filosofia (e do filoacutesofo) como tartaruga mostra que o pensar filosoacutefico eacute capaz de proezas maiores do que as proezas do proacuteprio Aquiles tidas como insuperaacuteveis pela cultura da eacutepoca

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Vamos de novo reconstruir essa parte do argumento com esse novo elemento os uacutenicos caminhos de inqueacuteritos satildeo

1) por um lado o caminho ao pensar que [versos 3 e 4] e

2) por outro lado o caminho ao pensar que [ldquoCrdquo (verso 5 primeiro hemistiacute-quio)] e que eacute necessaacuterio (que seja) natildeo-ser

De fato esse segundo caminho (ἀταρπόν) eacute inviaacutevel porque ldquonatildeo se consegue levar a cabo a reflexatildeordquo (γνοίης) quando se pensa o τό μὴ ἐὸν Ou seja fica muito clara a equaccedilatildeo entre o segundo caminho (v 5) e a reflexatildeo sobre o natildeo ser (τό μὴ ἐὸν) Finalmente o segundo hemistiacutequio do v 5 diz que esse eacute o caminho ao pensar que eacute necessaacuterio que seja μὴ εἶναι o qual agora sabemos eacute o caminho que tenta pensar o natildeo-ser (τό μὴ ἐὸν) Sabe-mos agora o que Parmecircnides chama de μὴ εἶναι Para Parmecircnides μὴ εἶναι eacute a estrutura do pensamento quando tenta inexoraacutevel e malogradamente pensar o natildeo-ser (τό μὴ ἐὸν)

Temos portanto a semacircntica de μὴ εἶναι e sabemos que significa a impossibilidade de pensar o natildeo-ser Com esse dado podemos reconstruir o resto do argumento mas primeiro vamos abordar a questatildeo do οὔτε φράσαις A premissa principal eacute o pano de fundo da pesquisa parmenidiana a qual estaacute em busca do discurso confiaacutevel como a deusa diz claramente no encerramen-to do fragmento 8 (talvez ecoando simetricamente alguma parte perdida do poema)24 Pensar o τό μὴ ἐὸν natildeo eacute possiacutevel logo ele eacute indiziacutevel Ora isso significa nem mais nem menos que dizer que o que eacute impossiacutevel eacute contra o sentido do dizer Eacute indiziacutevel natildeo porque natildeo se sabe do que se trata como querem muitos autores que fazem a leitura meramente epistemoloacutegica25 Eacute indiziacutevel porque dizer o ldquonatildeo-serrdquo significa fazer uma promessa que jamais se cumpriraacute ao se dizer ldquonatildeo-serrdquo parece que a expressatildeo aponta algo possiacutevel ou seja a negaccedilatildeo do ser e de fato quem estaacute desavisado assim acredita Mas a expressatildeo ldquonatildeo-serrdquo quer referir-se a algo que jamais seraacute cumprido que o

24 850-2 ldquoἐν τῶι σοι παύω πιστὸν λόγον ἠδὲ νόημα ἀμφὶς ἀληθείης δόξας δrsquo ἀπὸ τοῦδε βροτείας μάνθανε κόσμον ἐμῶν ἐπέων ἀπατηλὸν ἀκούωνrdquo ldquoNeste ponto encerro fidedigna palavra e pensamento sobre a verdade e opiniotildees mortais a partir daqui aprende a ordem enganadora de minhas palavras ouvindordquo (CAVALCANTE DE SOUZA 1978)25 Trata-se da leitura epistemoloacutegico-predicamental se natildeo sei a cor de um objeto (porque a cor natildeo eacute natildeo estaacute acessiacutevel ao meu conhecimento) natildeo posso falar da cor do objeto

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O natildeo-ser em Parmecircnides de Eleia Artigos Articles

ser seja negado Esta eacute exatamente a noccedilatildeo expressa pelas palavras de Platatildeo jamais prevaleceraacute que natildeo entes sejam26

A expressatildeo μὴ εἶναι representa essa impossibilidade de pensamento e portanto eacute um dizer impossiacutevel o que se opotildee radicalmente agrave proacutepria noccedilatildeo de dizer a qualquer significar enquanto discurso confiaacutevel do mundo e da sua ordem Surge a pergunta mas se natildeo se pode dizer μὴ εἶναι se isso eacute impossiacute-vel natildeo haacute uma flagrante contradiccedilatildeo na deusa jaacute que ela proacutepria diz e cons-troacutei um argumento sobre o dizer μὴ εἶναι A objeccedilatildeo seria vaacutelida se a deusa dissesse o que eacute impossiacutevel de dizer ou seja se ela praticasse a impossibilidade Todavia a deusa natildeo diz o impossiacutevel a deusa aponta para o impossiacutevel indica o impossiacutevel pois ela diz que existem a ldquonoccedilatildeo de impossibilidade do pensarrdquo e a ldquonoccedilatildeo de impossibilidade do dizerrdquo Em outras palavras a deusa diz qual eacute o limite do pensar e qual eacute o limite do dizer Aleacutem desse limite o pensamento natildeo pode ir porque eacute impossiacutevel e tambeacutem o dizer natildeo pode ir porque eacute im-possiacutevel A impossiacutevel regiatildeo para aleacutem desse limite natildeo eacute admitida pelo dizer eacute contra o dizer eacute contraditoacuteria

A expressatildeo μὴ εἶναι em Parmecircnides eacute exatamente a palavra que ex-pressa o processo mental que noacutes chamamos contradiccedilatildeo e que ele primeiro assim chamou (οὔτε φράσαις natildeo diziacutevel) Eacute estranho que nenhum criacutetico te-nha percebido isso claramente Todos afirmam que o princiacutepio de natildeo contra-diccedilatildeo estaacute implicado em Parmecircnides assim como os outros princiacutepios loacutegicos pois os argumentos presentes no poema satildeo desenvolvidos segundo a natildeo con-tradiccedilatildeo poreacutem o princiacutepio natildeo eacute enunciado Alguns como Cordero veem justamente explicitado o princiacutepio do terceiro excluiacutedo (816 ἔστιν ἢ οὐκ ἔστιν) mas ningueacutem quis ver claramente que natildeo soacute a noccedilatildeo como tambeacutem a proacutepria palavra ldquocontradiccedilatildeordquo (οὔτε φράσαις natildeo diziacutevel contra o diziacutevel contra a dicccedilatildeo) estaacute explicitada no poema Penso que a razatildeo fundamental para que acontecesse esse lapsus tenha que ser procurada na grande atenccedilatildeo dada ao ldquoserrdquo e na pouca dada ao ldquonatildeo-serrdquo Como observaremos mais adiante por causa desse lapsus eu penso que natildeo se conseguiu entender plenamente a estrutura do fragmento 2 o qual simplesmente natildeo apresenta um silogismo disjuntivo nem nenhuma contradiccedilatildeo entre o caminho do ldquoserrdquo e o caminho do ldquonatildeo-serrdquo Parmecircnides assevera justamente que a expressatildeo ldquonatildeo-serrdquo eacute contraditoacuteria o ldquonatildeo-serrdquo natildeo pode ser dito porque ldquonatildeo-serrdquo eacute contraditoacute-

26 As duas expressotildees tecircm inversatildeo de predicado e negaccedilatildeo no entanto a noccedilatildeo permanece a mesma que os entes natildeo sejam (perecimento no fr 8) e que os natildeo entes sejam (nascimento no fr 8) A noccedilatildeo eacute o tracircnsito entre ser e natildeo ser

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rio e a expressatildeo ldquonatildeo-serrdquo indica tatildeo somente uma impossibilidade concreta aquela de que se realize o impossiacutevel

Vamos voltar ao nosso argumento e agrave questatildeo que deixamos em suspenso por que eacute necessaacuterio que μὴ εἶναι seja Sabemos que os versos 7 e 8 relatam um processo malogrado de pensar o natildeo ente (τό μὴ ἐὸν) Uso agora a palavra ente porque se justifica uma diferenciaccedilatildeo embora tanto ldquoenterdquo quanto ldquoserrdquo indiquem expressotildees gerais e natildeo individuais ldquoEnterdquo vem por conseguinte a significar o ente concreto aquele que eacute Parmecircnides sustenta que natildeo se pode pensar e dizer τό μὴ ἐὸν o ldquonatildeo enterdquo Esse processo recebe o nome de μὴ εἶναι ldquonatildeo-serrdquo a esse processo noacutes chamamos contradiccedilatildeo27 Entatildeo a indicaccedilatildeo eacute esta haacute um caminho ao pensar que pensa μὴ εἶναι (a contradiccedilatildeo) e eacute necessaacuterio que assim seja porque (vou repetir trecircs vezes de forma diferente28 para significar a mesma coisa)

1) se natildeo houvesse a contradiccedilatildeo

2) se natildeo se tem a noccedilatildeo de contradiccedilatildeo

3) se natildeo se sabe o que eacute contradiccedilatildeo

cai-se no discurso contraditoacuterio o que impede o inqueacuterito confiaacutevel Eacute ne-cessaacuterio saber que μὴ εἶναι (o processo de contradiccedilatildeo) eacute um caminho a ser evitado porque cria pensamentos e discursos contraditoacuterios

Vejamos de novo nosso fragmento com os elementos esclarecidos ateacute aqui

os uacutenicos caminhos de inqueacuterito a pensar satildeo

por um lado que [ versos 3 e 4]

e por outro lado que οὐκ ἔστιν e que eacute necessaacuterio que seja a contradiccedilatildeo (μὴ εἶναι)

a qual eacute um caminho natildeo criacutevel

pois eacute impossiacutevel pensar e dizer o natildeo ente (τό μὴ ἐὸν)

27 Mesmo para noacutes a contradiccedilatildeo eacute um processo porque indica a posiccedilatildeo de algo em contraposiccedilatildeo com mais algo isso significa que esses dois algos tecircm que ser relacionados para que haja contradiccedilatildeo do contraacuterio algo e mais algo podem conviver sem contraditoriedade Contudo esse assunto estaacute fora de tema e requer muitas outras providecircncias para o bom discernimento28 Repito buscando clareza pois nossas construccedilotildees comuns de linguagem nesses assuntos costumam ldquopatinarrdquo

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O natildeo-ser em Parmecircnides de Eleia Artigos Articles

Penso que o espaccedilo conceitual deixado por οὐκ ἔστιν agora se pre-encha quase que por si haacute um caminho de inqueacuterito ao pensar que ldquonatildeo eacuterdquo e que eacute necessaacuterio que se considere contraditoacuterio porque eacute caminho que natildeo leva a lugar nenhum

A expressatildeo οὐκ ἔστιν eacute a negaccedilatildeo da terceira pessoa do indicativo de εἰμί a expressatildeo em si natildeo tem nada de especial significa tatildeo somente ldquonatildeo eacuterdquo restando em aberto o problema da ausecircncia de sujeito Mas agora sabemos o argumento complexo que estaacute na raiz da expressatildeo e a meu ver natildeo faz muito sentido a questatildeo de buscar um sujeito ou um objeto para definir se eacute usado de forma transitiva ou intransitiva se expressa existecircncia ou predicaccedilatildeo e as muitas combinaccedilotildees que podem ser montadas a partir da equivocidade do uso de εἰμί No entanto o acircmbito semacircntico foi evidenciado e estaacute claro e aleacutem do mais tem o testemunho de Platatildeo a confirmar o campo semacircntico da negaccedilatildeo de εἰμί nas vaacuterias formas estaacute relacionado a uma reflexatildeo sobre a impossibili-dade dessa negaccedilatildeo Obviamente para dizer que algo eacute impossiacutevel de alguma forma tenho que indicar essa impossibilidade com alguma expressatildeo Assim se digo ldquotriacircngulo quadradordquo aponto para uma impossibilidade jaacute que por defi-niccedilatildeo a essecircncia do triacircngulo exclui a essecircncia do quadrado logo a expressatildeo ldquotriacircngulo quadradordquo natildeo significa aquilo que parece prometer ou seja natildeo significa uma figura geomeacutetrica especial que eacute ao mesmo tempo triacircngulo e quadrado dizer ldquotriacircngulo quadradordquo eacute dizer algo ldquoindiziacutevelrdquo ldquonatildeo diziacutevelrdquo (na medida em que o diziacutevel quer expressar sentido) ldquoque nega o diziacutevelrdquo ldquoque eacute contra o diziacutevelrdquo que eacute contraditoacuterio

A semacircntica do ldquonatildeo serrdquo eacute fortiacutessima e estaacute muito aleacutem das sutilezas gramaticais morfoloacutegicas e sintaacuteticas e estas simplesmente natildeo afetam aquela O assunto tratado eacute tatildeo forte que ultrapassa qualquer forma linguiacutestica a pon-to de que esse assunto a ordem do ser e do natildeo-ser no mundo eacute responsaacutevel pela determinaccedilatildeo da lei da linguagem e natildeo vice-versa como bem entendeu Platatildeo no Sofista onde a teoria da predicaccedilatildeo surge em funccedilatildeo de uma refle-xatildeo sobre a ordem das leis baacutesicas do mundo Com efeito o approach linguiacutes-tico ao poema pode proceder ateacute certo ponto dali em diante o poema eacute fran-camente filosoacutefico e a chave linguiacutestica natildeo eacute suficiente para o acesso Isso quer dizer que com a chave linguiacutestica natildeo se abre a porta da questatildeo filosoacutefica do poema Se a questatildeo eacute que ldquojamais o natildeo ser pode se tornar serrdquo como (apro-ximadamente com essas palavras) argumenta Platatildeo citando Parmecircnides en-tatildeo diante da semacircntica que οὐκ ἔστιν apresenta discutir o sujeito de οὐκ ἔστιν se torna tarefa menor Considerada a desproporccedilatildeo entre o conteuacutedo (a

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semacircntica) e o recipiente (a palavra) entre o significado e o significante natildeo eacute impossiacutevel que οὐκ ἔστιν seja tatildeo somente uma expressatildeo simplificada quem sabe ateacute mesmo uma simplificaccedilatildeo didaacutetica pois o conteuacutedo do conceito estaacute expresso e justificado depois nos versos 7 e 8

O caminho de pensar que natildeo eacute e de pensar que eacute necessaacuterio natildeo ser eacute o caminho que afirma a necessidade de que a noccedilatildeo de natildeo-ser permaneccedila estaacutevel A contradiccedilatildeo tem que permanecer e ser identificada como tal pois eacute a uacutenica maneira de evitar que ela entre no pensamento e no discurso Se o ldquonatildeo-serrdquo natildeo for considerado contraditoacuterio a contradiccedilatildeo invade e domina o caminho de inqueacuterito o qual deixa de possuir πίστις ἀληθής (130) Assim eacute preciso que esse caminho seja identificado como μὴ εἶναι por um lado o ldquonatildeo-serrdquo eacute incognosciacutevel (οὔτε γὰρ ἂν γνοίης) mas por outro lado eacute neces-saacuterio que se saiba que ele eacute incognosciacutevel Saber do incognosciacutevel garante o conhecimento29 pois de fato ao natildeo se identificar o ldquonatildeo-serrdquo cai-se no risco de pensar que ldquoserrdquo e ldquonatildeo-serrdquo satildeo o mesmo e natildeo o mesmo como Parmecircni-des afirma em DK 6 5-6 Necessariamente o caminho que pensa οὐκ ἔστιν leva ao processo de contradiccedilatildeo (μὴ εἶναι) e a natildeo conclusatildeo do caminho (ἀνυστόν) natildeo eacute evidente na expressatildeo pelo contraacuterio τό μὴ ἐὸν parece uma negaccedilatildeo comum como qualquer outra poreacutem natildeo o eacute por isso eacute um saber destinado ao saacutebio e natildeo aos mortais porque eacute um saber fruto de uma reflexatildeo

34 DE VOLTA AOS VERSOS 3 E 4

Penso que podemos agora voltar ao verso 23 ao nosso segundo he-mistiacutequio onde aparece a expressatildeo μὴ εἶναι da qual jaacute temos a semacircntica Podemos entatildeo reconstruir ldquoos uacutenicos caminhos de inqueacuterito a pensar satildeo

por um lado a pensar que [ldquoArdquo] e tambeacutem a pensar que οὐκ ἔστι μὴ εἶναι este eacute caminho de persuasatildeo pois verdade acompanha e

por outro lado a pensar que ldquonatildeo eacuterdquo e tambeacutem a pensar que eacute necessariamente um percurso de pensamento contraditoacuterio porque eacute um caminho ldquoimpossiacutevelrdquo (παναπευθέα) pois o pensamento do ldquonatildeo enterdquo natildeo pode ser completado

O οὐκ ἔστι do verso 3 parece ser diferente do οὐκ ἔστιν do verso 5 Enquanto no 5 ele eacute quase que o nome do caminho (talvez uma simplificaccedilatildeo didaacutetica) no 3 parece significar simplesmente ldquonatildeo eacuterdquo em sentido comum

29 Estaacute aqui uma semente do socratismo

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O natildeo-ser em Parmecircnides de Eleia Artigos Articles

predicativo De fato esse eacute o caminho da persuasatildeo e portanto eacute o caminho do pensamento natildeo-contraditoacuterio Ali a persuasatildeo era impossiacutevel pela con-tradiccedilatildeo aqui eacute possiacutevel pela natildeo-contradiccedilatildeo Sabemos que a expressatildeo μὴ εἶναι eacute a expressatildeo da contradiccedilatildeo suprema de sorte que a natildeo-contradiccedilatildeo eacute a negaccedilatildeo de μὴ εἶναι A traduccedilatildeo de οὐκ ἔστι fica faacutecil embora para a nossa sensibilidade possa parecer algo improacuteprio usar duas vezes οὐκ ἔστι de forma natildeo perfeitamente uniacutevoca a dois versos de distacircncia Logo para o segundo hemistiacutequio do v 3 mantenho esta traduccedilatildeo ldquonatildeo eacuterdquo em parte ambiacutegua para nossas exigecircncias mas que soa perfeitamente harmocircnica com o discurso par-menidiano [] ao pensar que [ldquoArdquo] e que natildeo eacute ldquocontradiccedilatildeordquo (μὴ εἶναι)

Acredito por fim que podemos abordar facilmente o ἔστιν do verso 3 que tanto fez e faz penar os estudiosos de Parmecircnides Aqui de novo a grandeza da questatildeo cosmoloacutegica envolvida ndash a coerecircncia eou a contradito-riedade do real ndash simplesmente torna tatildeo minuacutescula a questatildeo do sujeito de ἔστιν que ela quase desaparece Eu tenho a tendecircncia a pensar que a falta de sujeito seja uma simplificaccedilatildeo didaacutetica30 cuja irregularidade linguiacutestica ajuda na memorizaccedilatildeo31 Todavia afinal tomo partido e entro tambeacutem no quarto grupo daqueles listados por Cordero o sujeito deve ser extraiacutedo do predicado isolado pois ἔστιν produz o sujeito32 De qualquer forma o sentido filosoacutefico eacute preciso haacute um caminho de inqueacuterito ao pensar que eacute aquele que pensa o ldquoeacuterdquo esse mesmo caminho eacute aquele ao pensar que natildeo eacute (e natildeo pode ser33) ldquocon-tradiccedilatildeordquo Depois haacute um outro caminho aquele ao pensar que ldquonatildeo eacuterdquo que eacute o caminho ao pensar que leva necessariamente agrave contradiccedilatildeo O primeiro eacute o 30 Segundo o relato platocircnico no diaacutelogo Parmecircnides Zenatildeo acompanhado de seu mestre foi para as Panateneias com a finalidade de defender a filosofia de seu mestre esclarecendo com seu livro repleto de paradoxos as ideias parmenidianas Isso sugere que o poema natildeo expunha articuladamente a filosofia de Parmecircnides mas que constituiacutesse um proacute-memoacuteria com as ideias em sua forma essencial depois elaboradas nas aulas pessoais (KURFESS 2012)31 Eacute extraordinaacuterio como essa simplificaccedilatildeo didaacutetica continue ativa por um lado distorcendo entretanto por outro mantendo viva a mensagem parmenidiana em todas as escolas de ensino meacutedio onde se estuda filosofia vox populi Parmecircnides eacute o filoacutesofo que disse ldquoO que eacute eacute e o que natildeo eacute natildeo eacuterdquo Por outro lado o estrangeiro de Eleia no Sofista lembra outro verso e natildeo este32 Essa questatildeo natildeo aprofundada aqui natildeo possui relevacircncia filosoacutefica no argumento apresentado pode ter relevacircncia se se considera o tipo de reflexatildeo ou seja se se discute a ldquoexperiecircnciardquo do natildeo-ser e principalmente a experiecircncia concreta de Parmecircnides que talvez esteja ligada a praacuteticas de incubaccedilatildeo Nesse caso a dimensatildeo reflexiva adentra a dimensatildeo oniacuterica a qual possui outra sintaxe e onde um simples ἔστιν vale mais de mil articulaccedilotildees sintaacuteticas Natildeo sabemos com certeza dessas praacuteticas em Eleia contudo esse sentido preacute-sintaacutetico natildeo estaacute descartado inclusive alguns estudiosos entre os quais o proacuteprio Cordero atribuem ao ἔστιν o sentido de um grito como um Eureka Sugestotildees nesse sentido se encontram na minha dissertaccedilatildeo sobre Melisso (GALGANO 2010)33 A interpretaccedilatildeo modal eacute tambeacutem perfeitamente coerente aqui

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caminho que estabelece o discurso coerente (persuasivo) e o segundo natildeo leva a lugar nenhum e deve ser evitado Mas para que se saiba o que deve ser evi-tado eacute preciso que se conheccedila a impossibilidade do segundo caminho A fim de que se possa seguir o primeiro caminho eacute necessaacuterio saber que existe um outro sempre agrave espreita o qual parece oferecer a verdade mas que natildeo oferece uma verdade confiaacutevel que leva necessariamente agrave contradiccedilatildeo de pensamento e de expressatildeo linguiacutestica

4 O MEacuteTODO DA NAtildeO-CONTRADICcedilAtildeO

Parmecircnides provavelmente a partir de sugestotildees pitagoacutericas medita sobre a oposiccedilatildeo ao que existe e assim descobre o ldquonatildeo-serrdquo Descobre que ldquonatildeo serrdquo ou seja negar o ser negar o que haacute eacute de todo impossiacutevel (natildeo eacute possiacutevel completamente) Entende entatildeo que o ldquonatildeo-serrdquo essa impossibilidade eacute algo que a mente pensa julgando que esse pensamento leva por um caminho mas que na verdade ele descobre leva por outro caminho aquele que nunca che-ga a lugar nenhum Esse caminho que leva para lugar nenhum eacute o caminho dos mortais os quais confundem ser e natildeo ser No entanto o saacutebio deve saber distinguir por um lado o caminho do ldquoeacuterdquo que eacute o caminho do discurso natildeo contraditoacuterio e por outro lado o caminho do ldquonatildeo eacuterdquo que eacute o caminho do discurso que eacute tornado vatildeo pela contradiccedilatildeo

Parmecircnides descobre a contradiccedilatildeo (pela meditaccedilatildeo sobre o natildeo-ser) e percebe que ela eacute motivo de descaminho no discurso sobre o mundo Assim finalmente ele anuncia que a contradiccedilatildeo deve ser evitada A esse enunciado noacutes chamamos de princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo que aqui eacute aquele na versatildeo de Parmecircnides (depois a partir de Platatildeo e Aristoacuteteles haveraacute outras versotildees) Parmecircnides trabalha em acircmbito cosmoloacutegico e sua preocupaccedilatildeo ndash como os de seus colegas na eacutepoca ndash eacute com o mundo com a totalidade das coisas com os πάντα de seu proecircmio (128) Nesse acircmbito cosmoloacutegico descobre que haacute um princiacutepio do mundo pelo qual se daacute uma impossibilidade a contradiccedilatildeo A contradiccedilatildeo eacute um princiacutepio porque o que haacute (πάντα) enquanto todo escapa agrave negaccedilatildeo total Eis que a contradiccedilatildeo eacute princiacutepio tanto quanto a natildeo-contra-diccedilatildeo porque eacute a contradiccedilatildeo que permite a natildeo-contradiccedilatildeo Sem a noccedilatildeo de contradiccedilatildeo se anda com sentidos incertos como os mortais

O valor dessa afirmaccedilatildeo eacute historicamente inabalaacutevel porque Parmecircni-des partindo de um discurso sobre o mundo como que visto de fora por um observador (como Anaximandro via o mundo olhando seu pinax - cf ROS-

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SETTI 2013) alcanccedila um discurso que inclui o observador enquanto obser-vador estreando assim antes de tudo um discurso sobre os entes (ontologia) todos os entes incluindo os entes de pensamento (veja-se o famoso fragmento 3 onde se lecirc que pensar e ser satildeo o mesmo) Para ele o saacutebio natildeo eacute mais aquele que sabe soacute sobre as coisas externas ndash como o antigo xamatilde cuja figura indi-vidual se dissolve na mera intermediaccedilatildeo com o divino ndash poreacutem eacute tambeacutem aquele que consegue pensar sobre as coisas externas ou seja aquele que tem um domiacutenio cognitivo sobre os pensamentos de inqueacuterito e portanto sabe so-bre si mesmo Assim o saacutebio deve pensar por proacutepria conta e julgar pelo novo criteacuterio e natildeo pelo habitual discurso (κρῖναι δὲ λόγωι DK 75) ou seja natildeo deve julgar pelo discurso mas julgar o discurso porque agora o discurso enri-quecido de uma lei universal (a lei das αρχάι ἔστιν e οὐκ ἔστιν) possui uma medida de juiacutezo Parmecircnides amplia o mundo acrescentando ao mundo fiacutesico os mundos do pensamento e da linguagem Eis porque as αρχάι de Parmecircni-des sendo duas permanecem duas justamente eliminado uma delas deixando alguns criacuteticos enlouquecidos na discussatildeo sobre o monismo ou o dualismo de acordo com Parmecircnides o mundo eacute um todavia os sentidos nos enganam natildeo na pluralidade das coisas mas no argumento a respeito da pluralidade das coisas e principalmente ndash aspecto que ele discute explicitamente ndash a respeito do devir das coisas Haacute um princiacutepio que natildeo pode ser eliminado a contra-diccedilatildeo o qual eacute um princiacutepio de erro humano quando se elimina quando se desconsidera quando se faz de conta que natildeo existe a contradiccedilatildeo se instaura quando o princiacutepio eacute levado em conta a contradiccedilatildeo pode ser evitada

Eacute uma conceituaccedilatildeo esdruacutexula para noacutes tambeacutem porque temos que ter (a noccedilatildeo de) a contradiccedilatildeo para eliminar a contradiccedilatildeo temos que saber o que eacute contradiccedilatildeo para que possamos perceber quando o discurso eacute con-traditoacuterio Esses conceitos satildeo misteriosos ateacute agora e satildeo estranhas criaturas de nossas mentes Por exemplo a noccedilatildeo de ldquoimpossiacutevelrdquo obviamente (isto eacute para a nossa pragmaacutetica) natildeo se refere a nada de concreto no entanto temos essa noccedilatildeo e a usamos com o maacuteximo proveito outro exemplo a noccedilatildeo de ldquoinfinitordquo noccedilatildeo que natildeo se refere a algo pragmaticamente concreto mas que usamos igualmente com maacuteximo proveito O mesmo deve ser dito da noccedilatildeo de contradiccedilatildeo ou da noccedilatildeo de nada absoluto que usamos pragmaticamente com maior ou menor proveito

Parmecircnides encontra esse caminho e o expotildee Eacute um caminho assom-broso anti-intuitivo mas incontestaacutevel Dessa forma natildeo eacute de estranhar se a soluccedilatildeo platocircnica eacute a eliminaccedilatildeo fiacutesica da noccedilatildeo de nada absoluto (o par-

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riciacutedio) com sucessivo ldquoadeusrdquo34 achando de tecirc-lo ultrapassado Mas o nada absoluto enquanto noccedilatildeo contraditoacuteria permanece Assim como permane-ce a explicaccedilatildeo defeituosa do devir o qual assim como o conhecemos uma passagem do nada ao ser no nascimento e do ser ao nada no perecimento estaacute mal explicado Daqui por diante os comentaacuterios filosoacuteficos possiacuteveis satildeo inuacutemeros por conseguinte paro meu estudo neste ponto e proponho a versatildeo do fragmento 2 segundo a conceituaccedilatildeo apresentada ateacute aqui alterando de pouco a excelente versatildeo baacutesica de Cavalcante de Souza

Pois bem eu te direi e tu recebe a palavra que ouviste

os uacutenicos caminhos de inqueacuterito que satildeo a pensar

o primeiro que eacute e portanto que natildeo eacute (o caminho da) contradiccedilatildeo

de persuasatildeo eacute o caminho (pois agrave verdade acompanha)

o outro que natildeo eacute e portanto que eacute necessariamente (o caminho da) contradiccedilatildeo

este entatildeo eu te digo eacute atalho de todo incriacutevel

pois nem conhecerias o que natildeo eacute (pois natildeo eacute exequiacutevel)

nem o dirias

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ABSTRACT In fragment DK 28 B 2 of his poem Parmenides presents his method for distinguishing true persuasion from the lack of true persuasion His famous proposal of these two ways of thinking form a complex statement of a system that intends to guarantee the veracity of statements in order to obtain reliable discourse the only discourse capable of true persuasion The present paper shows that the central role in Parmenidian argumentation is attributed to non-being a notion derived from a reflection on the impossibility of the negation of being Thus the whole fragment is interpreted in terms of this central notion We show that Parmenides discovered the impossibility of negation which we now call lsquocontradictionrsquo and that he articulated the means for avoiding contradiction in thought and discourse a rule which today we call the principle of non-contradiction The study presented here is a detailed investigation of the notion of non-being in the DK 28 B 2 fragment and includes a new translation of it

KEYWORDS Parmenides Non-being Non-contradiction Eleatism Parricide

34 Platatildeo Soph 258e7-259a1 ἡμεῖς γὰρ περὶ μὲν ἐναντίου τινὸς αὐτῷ χαίρειν πάλαι λέγομεν εἴτrsquo ἔστιν εἴτε μή λόγον ἔχον ἢ καὶ παντάπασιν ἄλογον

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O natildeo-ser em Parmecircnides de Eleia Artigos Articles

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Page 6: O NÃO SER EM PARMÊNIDES ELEIA - SciELO · Trans/Form/Ação, Marília, v. 41, n. 2, p. 9-36, Abr./Jun., 2018 9 O não-ser em Parmênides de Eleia Artigos / Articles O NÃO-SER EM

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qual eacute necessariamente ativo pois uma investigaccedilatildeo passiva eacute um dos oximo-ros mais esdruacutexulos imaginaacuteveis O sentido eacute os caminhos que o pensar segue quando se dedica agrave investigaccedilatildeo satildeo aqueles uacutenicos que descreveraacute a seguir Uma outra maneira de traduzir pode ser esta o pensar entre todos os cami-nhos possiacuteveis segue estes uacutenicos em sua atividade de investigar Portanto a traduccedilatildeo de Cavalcante de Souza soa oacutetima a pensarhellip que

Vejamos na sequecircncia a coordenaccedilatildeo com os versos 3 e 5 que apresen-tam os correlativos comeccedilando pela construccedilatildeo

Pois bem eu te direi e tu recebe a palavra que ouviste

que os uacutenicos caminhos de inqueacuterito satildeo(verso 2 + verso 3) a pensar que eacute e que portanto natildeo eacute natildeo ser

(verso 2 + verso 5) a pensar que natildeo eacute e portanto que eacute preciso natildeo ser

A construccedilatildeo mostra que o sentido do noein (νοῆσαι) nesse caso eacute ativo Haacute uma atividade especiacutefica da mente Nessa atividade a mente se en-caminha por vaacuterios rumos de investigaccedilatildeo dos quais somente dois parecem ser viaacuteveis ou parecem ter sentido a investigaccedilatildeo a pensar que eacute e a investigaccedilatildeo a pensar que natildeo eacute

Que nos diz esse verso 2 Que Parmecircnides se pocircs a refletir sobre a mente humana embora ele natildeo tivesse esse conceito de ldquomenterdquo como noacutes a entendemos Essa reflexatildeo foi fatal e aos poucos veremos por quecirc Por en-quanto podemos sustentar que o ponto de partida de Parmecircnides eacute reflexivo Sua reflexatildeo verteu sobre o funcionamento da mente mais especificamente sobre que tipo de funcionamento leva agrave persuasatildeo ou leva a conclusotildees insatis-fatoacuterias do ponto de vista da explicaccedilatildeo do mundo

32 OS VERSOS 3 E 4he megraven hoacutepos eacutestin te kaigrave os eacutesti megrave eicircnai

peithoucircs esti keacuteleuthos (aletheiacuteei gagraver opedeicirc)

o primeiro que eacute e portanto que natildeo eacute natildeo-ser

de persuasatildeo eacute o caminho (pois agrave verdade acompanha)

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O verso 3 eacute provavelmente o mais estudado de Parmecircnides merece Entretanto vejamos primeiro o verso 4 Ali notamos a presenccedila de uma palavra marcadamente psicoloacutegica πειθοῦς persuasatildeo Parmecircnides percebe que a persuasatildeo eacute um fato da ldquomenterdquo conceito este uacuteltimo que lhe eacute estra-nho mas que ele consegue identificar descrevendo as sensaccedilotildees mentais8 E identifica duas persuasotildees uma acompanhada da verdade e outra na qual o convencimento natildeo eacute acompanhado da verdadeira confianccedila Agrave primeira ele chama de πειθός que gera a sensaccedilatildeo de firmeza na mente (ἀτρεμὲς ἦτορ DK 1 29) e acompanha a verdade Agrave segunda ele chama de ldquoopiniotildees dos mortaisrdquo na qual natildeo haacute uma πίστις ἀληθής (DK 1 30) um convenci-mento acompanhado de verdade

Essa distinccedilatildeo nos mostra agudeza da observaccedilatildeo psicoloacutegica A certeza pode ser de dois tipos ou eacute uma certeza que deixa espaccedilo a duacutevidas ou eacute uma certeza indubitaacutevel Isso expotildee um problema gnosioloacutegico posto que se tem uma convicccedilatildeo (e todo homem tem convicccedilotildees) como saber se essa convicccedilatildeo corresponde agrave verdade ou eacute uma convicccedilatildeo sem fundamento e sem correspon-decircncia com a realidade Natildeo eacute possiacutevel sabecirc-lo A mente mostra apenas sua convicccedilatildeo subjetiva e para saber se tal convicccedilatildeo eacute acompanhada de verdade ou se natildeo tem feacute verdadeira eacute preciso recorrer a algo extramental eacute necessaacuteria uma prova externa porque a mente por si soacute natildeo consegue identificar uma sua convicccedilatildeo proacutepria como verdadeira ou falsa

A diferenciaccedilatildeo de dois tipos de persuasatildeo no poema eacute clara9 e se a ordem dos fragmentos de Diels estiver correta essa diferenciaccedilatildeo pertence agrave parte propedecircutica pois natildeo se fala dela na parte do eon no fr 8 quando a ordem do mundo eacute explicada com exceccedilatildeo do final do discurso da deusa onde ela anuncia o encerramento de seu discurso confiaacutevel (πιστὸν λόγον) Isso significa que esse tema faz parte do instrumental argumentativo preacutevio que conduziraacute agrave sucessiva anaacutelise cosmoloacutegica Enfim nos versos 3-4 uma proclamaccedilatildeo anteriormente anunciada (vv 1-2) eacute agora enunciada (vv 3-4) em seu primeiro caminho Eacute enunciado o caminho que pensa o inqueacuterito com persuasatildeo verdadeira natildeo aquele pensar no qual natildeo haacute convicccedilatildeo ver-

8 A discussatildeo completa estaacute em Galgano (2012)9 Embora nesse fragmento a palavra persuasatildeo natildeo apareccedila associada aos ldquomortaisrdquo em outras partes essa ligaccedilatildeo eacute clara ou ateacute mesmo literal como em 8 38-39 onde se frisa que ldquoseratildeo nomes todas as coisas que os mortais determinaram persuadidos de ser verdaderdquo (τῶι πάντrsquo ὄνομ(α) ἔσται ὅσσα βροτοὶ κατέθεντο πεποιθότες εἶναι ἀληθῆ) Note-se πεποιθότες atribuiacutedo aos mortais particiacutepio perfeito de πείθω

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dadeira mas aquele caminho enfim que anda com a verdade Vamos agora voltar ao verso 3

Natildeo se pode isolar o verso 3 ἡ μὲν ὅπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι do anterior verso 2 (e nem do seu correlativo verso 5) e portanto natildeo se pode esquecer que trata de um caminho ou seja de um elemento di-nacircmico No entanto a primeira coisa que salta aos olhos eacute que todas as noccedilotildees envolvidas satildeo estaacuteticas e natildeo haacute nenhum elemento dinacircmico ou sequencial ou de qualquer natureza minimamente motora O sentido desse ponto de vista eacute que o pensar o ldquoἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναιrdquo natildeo eacute o pensar de um momento mas um pensar que segue por um caminho Ou seja significa que no percurso seguido pelo pensar para que o inqueacuterito seja de verdadeira per-suasatildeo o ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι deve ser constante Essa noccedilatildeo eacute estrutural o caminho de inqueacuterito a pensar deve conter uma constante vaacutelida em qualquer momento e passagem do caminho O fato de ser a afirmaccedilatildeo de uma constante (estaacutetica) numa dimensatildeo de caminho (dinacircmica) reforccedila a ideia de algo externo e de natureza fixa a ser aplicado a algo de natureza pro-cessual ou seja eacute uma lei porque a noccedilatildeo de lei expressa tambeacutem as relaccedilotildees fixas entre as dinacircmicas de elementos de um ou mais processos

Vamos observar a estrutura sintaacutetica do verso mais de perto ἡ μὲν ὅπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι Depois da conjunccedilatildeo correlativa ἡ μὲν ndash que se coadunaraacute com o ἡ δὲ de 25 (ἡ δrsquo ὡς) ndash o verso eacute constituiacutedo de duas unidades sintaacuteticas autocircnomas mas subordinadas ao verso 2 pelos pronomes ὅπως e ὡς ademais as duas unidades estatildeo ligadas pela conjunccedilatildeo τε καὶ Vejamos a construccedilatildeo sintaacutetica sem entrar ainda na semacircntica ou seja sem traduzir os termos ἔστιν οὐκ ἔστι e μὴ εἶναι

por um lado (ἡ μὲν) que ldquoArdquo e tambeacutem (τε καὶ) que ldquoBrdquo

A conjunccedilatildeo τε καὶ (e tambeacutem que) indica que temos duas oraccedilotildees as quais pela estrutura de todo o fragmento devem ser completas Devem porque natildeo parece que o sejam vejamo-las separadamente e sem os pronomes

A ἔστιν

B οὐκ ἔστι μὴ εἶναι

A primeira oraccedilatildeo eacute sem sujeito e sem objeto sendo constituiacuteda somen-te pelo verbo a segunda eacute igualmente sem sujeito contudo tem um objeto

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direto A primeira eacute afirmativa enquanto a segunda eacute negativa entretanto a segunda nega uma segunda negaccedilatildeo contida no objeto eacute negaccedilatildeo de negaccedilatildeo

Conjunccedilatildeo correlativa

Pronome relativo sujeito verbo objeto

Verso 23 ἡ μὲνOraccedilatildeo 1 ὅπως mdash ἔστιν mdashOraccedilatildeo 2 ὡς mdash οὐκ ἔστι μὴ εἶναι

Posto que em grego antigo o sujeito ou eacute expliacutecito ou eacute subentendido o grande misteacuterio dessas palavras eacute exatamente que o sujeito natildeo aparece nem expliacutecito e nem subentendido constituindo uma autecircntica anomalia literaacuteria Natildeo conveacutem nesta ocasiatildeo reconstruir a discussatildeo dos vaacuterios estudiosos em relaccedilatildeo a essa falta de nosso lado enfrentaremos a questatildeo por outras provi-decircncias Por enquanto vamos apresentar o resumo das possibilidades de solu-ccedilatildeo reportadas por Cordero (2005) Para o estudioso haacute quatro possibilidades para explicar a anomalia a saber ldquoa) Trata-se de um erro de transmissatildeo de texto se assim for este deve ser corrigido introduzindo o sujeito ausente b) haacute um sujeito conceitual impliacutecito que deve ser buscado no resto do Poema c) natildeo haacute nenhum sujeito possiacutevel e d) o sujeito deve ser extraiacutedo do predicado isolado pois o eacutestin ldquoproduzrdquo o sujeito As quatro possibilidades encontraram defensoresrdquo (CORDERO 2005 p 63)

Natildeo penso que seja o caso de tomar partido agora faremos isso so-mente no fim da nossa anaacutelise por enquanto vamos prosseguir com as nos-sas consideraccedilotildees A primeira delas eacute que as duas oraccedilotildees natildeo satildeo simples-mente conjuntas elas satildeo mais que conjuntas porque reuacutenem uma uacutenica noccedilatildeo em trecircs variaccedilotildees ἔστιν οὐκ ἔστι e μὴ εἶναι satildeo variaccedilotildees do campo semacircntico de εἰμί o verbo ser Seriam simplesmente conjuntas se apresen-tassem verbos e objetos diretos diferentes Naturalmente uma construccedilatildeo desse tipo seria possiacutevel10 e apresentaria duas oraccedilotildees sintaticamente inde-pendentes e conjuntas Poreacutem no nosso caso a construccedilatildeo eacute feita com trecircs formas do mesmo verbo que muito dificilmente tecircm uma conexatildeo apenas conjuntiva Ademais a primeira oraccedilatildeo eacute afirmativa e a segunda duplamente negativa o que faz pensar na estrutura da citaccedilatildeo platocircnica (Soph 237a8 DK B 7 1) a qual natildeo eacute sintaticamente igual mas muito semelhante que nunca os natildeo entes sejam onde tambeacutem uma dupla negaccedilatildeo recusa existecircncia

10 Por exemplo ldquoos uacutenicos caminhos de inqueacuterito a pensar por um lado que examina e que natildeo pretende natildeo avaliarrdquo

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aos natildeo entes implicando apenas variaccedilotildees formais de εἶναι dessa vez com o particiacutepio no neutro plural τὰ ἐοντα que natildeo estaacute presente no fr 211 Esses elementos precisam ser investigados

Vamos comeccedilar pela conjunccedilatildeo12 τε καὶ em geral traduzida por sim-ples conjunccedilatildeo pelos criacuteticos assume aqui um valor mais forte O fato de que seja uma conjunccedilatildeo elimina de iniacutecio a interpretaccedilatildeo do verso 3 como uma disjunccedilatildeo13 Mais que uma conjunccedilatildeo as duas subordinadas satildeo ligadas por uma conexatildeo vital na qual o τε καὶ no sentido de ldquotambeacutemrdquo ou ateacute mesmo ldquoambosrdquo representa a conjunccedilatildeo de uma segunda parte reforccedilando a primeira natildeo porque explica mas simplesmente porque as duas fazem parte de um todo como dois lados de uma mesma moeda14

Vamos deixar de lado por enquanto o primeiro hemistiacutequio e con-siderar somente o segundo O segundo hemistiacutequio de 3 soa assim os uacutenicos caminhos de inqueacuterito a pensar satildeo por um lado que [ldquoArdquo] e tambeacutem que natildeo eacute natildeo-ser O fato singular eacute que aleacutem da repeticcedilatildeo da negaccedilatildeo (natildeohellip natildeo) tem-se tambeacutem a repeticcedilatildeo do verbo εἰμί (eacutehellip ser) Obviamente natildeo se tra-ta de uma ditografia e portanto teremos que diferenciar o primeiro negar (οὐκ ἔστι natildeo eacute) do segundo negar (μὴ εἶναι natildeo-ser) O primeiro negar eacute feito pela partiacutecula negativa οὐκ e o presente do indicativo ἔστι A traduccedilatildeo simples e direta soa natildeo eacute Natildeo parece haver dificuldade quanto agrave traduccedilatildeo em si restando apenas o problema da falta de sujeito Se ldquonatildeo eacuterdquo estaacute certo resta descobrir a que se refere essa negaccedilatildeo e natildeo haacute outro candidato que o seguinte μὴ εἶναι

11 Eacute possiacutevel mostrar (e o fazemos em sede apropriada) que a citaccedilatildeo platocircnica (v 7 2) tem a mesma estrutura do v 2 312 Humbert (1954 p 370) ldquoDrsquoailleurs drsquoune faccedilon geacuteneacuterale une certaine indeacutetermination inseacuteparable de la poeacutesie qui exprime moins qursquoelle ne suggegravere est peu favorable agrave un emploi rigoreux et preacutecis des particulesrdquo13 Alguns interpretam de fato como disjunccedilatildeo ex Mansfeld (1960) em Meijer (1997) p 100 et passim O argumento de Mansfeld parte da consideraccedilatildeo de que o silogismo disjuntivo natildeo precisa de sujeito (aqui o argumento de Parmecircnides natildeo precisaria de um sujeito para o esti) A (ἔστιν) ou B (οὐκ ἔστι μὴ εἶναι)14 Aparentemente (pelo que pude descobrir) natildeo haacute estudos atuais completos sobre as partiacuteculas em grego antigo e parece que o uacuteltimo foi de Denniston (1954) De laacute para caacute as partiacuteculas foram estudadas por trabalhos especiacuteficos e separadamente por aacutereas literaacuterias (eacutepica trageacutedia etc) deixando uma lacuna na poesia onde o uso eacute muito menos rigoroso e oferece maiores dificuldades de interpretaccedilatildeo Um status questionis da problemaacutetica de te kai possivelmente se encontra em um paper do qual por enquanto soacute consegui o abstract Bonifazi (2012)

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Natildeo parece haver atestaccedilatildeo de μὴ εἶναι na poesia eacutepica Pela pesquisa no TLG as primeiras atestaccedilotildees parecem ser da eacutepoca de Parmecircnides se natildeo sucessivas sendo que nesse caso pode ter sido ele o primeiro a usar tal expres-satildeo Mas aguardando resultados filoloacutegicos mais precisos podemos assegurar que a noccedilatildeo de εἶναι contida no segundo negar natildeo deve ser a mesma do primeiro sob pena de gerar uma contradiccedilatildeo de termos incompreensiacutevel mas que justamente nesse sentido aticcedilou a fantasia de muitos criacuteticos Penso por exemplo naqueles que quiseram ver as duas negaccedilotildees apenas no sentido gra-matical15 e acabaram achando o argumento de Parmecircnides fraco ou tautoloacutegi-co quando natildeo inconsistente No entanto o primeiro negar (οὐκ ἔστι) quer negar um outro negar (μὴ) especiacutefico aquele que nega εἶναι

Vou repetir a sequecircncia porque por um lado a accedilatildeo do primeiro negar eacute predicativa e por outro lado a noccedilatildeo predicada eacute maacutexima e acaba por gerar um pequeno desconforto argumentativo O primeiro negar nega um segundo negar aquele que nega εἶναι Ou seja o segundo negar eacute um ldquonegar algo espe-ciacutefico (εἶναι)rdquo O conceito se torna claro se se manteacutem presente o sentido psi-coloacutegico muito mais que o gnosioloacutegico da expressatildeo parmenidiana Negar algo eacute o que fazem ambas as expressotildees tanto do primeiro quanto do segundo negar Todavia o segundo negar eacute a accedilatildeo especiacutefica de negaccedilatildeo de εἶναι a qual eacute uma accedilatildeo da mente eacute um comportamento concreto o comportamento mental de negar εἶναι Parmecircnides argumenta que o caminho persuasivo eacute aquele que nega que se possa ter o comportamento mental especiacutefico de negar εἶναι natildeo eacute possiacutevel (ter o comportamento mental de) negar εἶναι

Esse eacute um ponto que gerou muita confusatildeo Parmecircnides natildeo nega que se possa negar como se ele proacuteprio ao afirmar que o natildeo-ser natildeo eacute estivesse cometendo o maior dos disparates autocontraditoacuterios Satildeo muitiacutessimos os que interpretam Parmecircnides dessa forma e que afinal acabam asseverando que Parmecircnides eacute o filosofo do ser (apenas) Parmecircnides usa gramaticalmente a negaccedilatildeo e tambeacutem a usa gnosiologicamente e epistemicamente Daacute para dizer mais daacute para dizer que ele usa a negaccedilatildeo de forma magistral como poucos souberam usar na histoacuteria da filosofia De fato o segundo hemistiacutequio asseve-ra que haacute um percurso mental que eacute persuasivo (v 4) quando natildeo segue μὴ εἶναι Mais uma vez o percurso mental de inqueacuterito eacute persuasivo quando natildeo

15 Por exemplo C Kahn cuja uacutenica conclusatildeo segundo sua leitura seria ldquoIf we restate Parmenidesrsquo claim in the modern formal mode it might run lsquom knows that prsquo entails lsquoprsquordquo (KAHN 2009 p 153-154)

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se comporta mentalmente negando εἶναι quando natildeo tem a atitude de negar εἶναι Resta descobrir o que eacute εἶναι

O termo εἶναι eacute um infinitivo Como se sabe o infinitivo eacute a expressatildeo verbal depauperada de todo sentido acessoacuterio a ponto que ldquo[c]rsquoest de cette fa-ccedilon neacutegative que lrsquoinfinitif a eacuteteacute deacutefini comme repreacutesentant lrsquoideacutee verbale nuerdquo (HUMBERT 1954 p 125) Os mais variados estudos natildeo conseguiram expli-car de forma convincente um sentido especiacutefico para o uso feito por Parmecircnides Por exemplo The verb ldquoberdquo in ancient Greek (KAHN 2003 passim) um dos estudos mais completos sobre o tema vecirc-se obrigado a atribuir a Parmecircnides um uso supostamente novo mas parece-me de forma improacutepria e desnecessaacuteria16 Eu penso que quando Parmecircnides quis utilizar um novo sentido inventou um novo termo como no caso de to eon (invenccedilatildeo na linha jaacute consolidada de subs-tantivar verbos no gecircnero neutro) Natildeo fez o mesmo com εἶναι e suas demais formas verbais razatildeo pela qual o sentido deve ser buscado nas acepccedilotildees tradicio-nais as quais satildeo muacuteltiplas e equiacutevocas como diraacute mais tarde Aristoacuteteles

No infinitivo εἶναι expressa a ideia geral do verbo num campo se-macircntico que vai desde ldquopresenccedilardquo ateacute a funccedilatildeo predicativa comum a muitas liacutenguas indo-europeias Creio que seja inuacutetil buscar um sentido preciso como ldquoexistirrdquo ou ldquoestar presente localmenterdquo ou outro εἶναι significa tudo isso principalmente porque eacute usado no infinitivo e como objeto Em portuguecircs a palavra que expressa com a mesma equivocidade a pluralidade de sentido numa riqueza proacutexima ao grego eacute o verbo ldquoserrdquo17 Parece-me portanto per-feitamente inuacutetil cercear o sentido a uma uacutenica acepccedilatildeo restriccedilatildeo que acaba gerando interpretaccedilotildees polecircmicas Ateacute mesmo para a acepccedilatildeo de ldquoexistirrdquo se construiacuteram criacuteticas a meu ver improacuteprias pelas quais se chega a discutir se Parmecircnides pensasse ou natildeo que seres natildeo existentes como quimeras e outros

16 Kahn extrai o sentido de εἶναι em Parmecircnides natildeo do uso que o eleata faz mas do contexto geral da mensagem parmenidiana Teoricamente seria um meacutetodo viaacutevel posto que se consiga entender corre-tamente a mensagem do filoacutesofo Na praacutetica no caso do poema de Parmecircnides que verte exatamente sobre εἶναι e seus derivados haacute um risco enorme ndash ao qual em minha visatildeo Kahn sucumbiu ndash de cair num petitio principii onde o sentido de εἶναι eacute extraiacutedo da mensagem filosoacutefica geral (Kahn o extrai de 129 que eacute o ldquoiacutendice parmenidianordquo e portanto poderia oferecer a ideia geral do poema) e por sua vez a mensagem filosoacutefica eacute obtida a partir do sentido de εἶναι Kahn acredita ter encontrado no sentido ldquoveritativordquo o novo uso que Parmecircnides faz de εἶναι17 Para εἰμί o Dicionaacuterio LSJ apresenta sete campos (de A a G) com 16 acepccedilotildees e mais vaacuterias suba-cepccedilotildees Para o verbo ldquoserrdquo o Dicionaacuterio Houaiss apresenta 19 acepccedilotildees das quais 14 verbais e 5 como substantivo as subacepccedilotildees satildeo exemplificadas mas natildeo classificadas

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seres mitoloacutegicos pudessem ser incluiacutedos na leitura predicamental18 Principal-mente eacute necessaacuterio manter a equivocidade do termo porque corresponde agrave forma mentis do autor e natildeo se devem exigir distinccedilotildees que natildeo eram processa-das por aquela cultura sob pena mais uma vez de atribuir aos antigos a nossa proacutepria forma mentis pecado fatal para um historiador da filosofia

Desse modo de iniacutecio a traduccedilatildeo de μὴ εἶναι com ldquonatildeo-serrdquo ateacute mes-mo por ser equiacutevoca (para a nossa sensibilidade) manteacutem a equivocidade proacute-pria da eacutepoca e da liacutengua da eacutepoca Posta entatildeo essa equivocidade precisamos saber se expressa um sentido filosoacutefico antes de tudo para a eacutepoca e depois para noacutes A comparaccedilatildeo de 23 οὐκ ἔστι μὴ εἶναι com 71 Οὐ δαμῇ εἶναι μὴ ἐόντα que eacute o testemunho de Platatildeo nos faz entender que nessas palavras natildeo soacute se encontra um sentido filosoacutefico mas ateacute mesmo o sentido principal da filosofia de Parmecircnides Retomando portanto a construccedilatildeo precisamos entender por que pensar o natildeo-ser (μὴ εἶναι) eacute algo que natildeo eacute possiacutevel ou que natildeo se deve fazer ou que simplesmente natildeo eacute (natildeo acontece) segundo a expressatildeo usada por Parmecircnides οὐκ ἔστι

Aleacutem da traduccedilatildeo simples e imediata haveria outras possibilidades de traduccedilatildeo19 essas variaccedilotildees podem ser interessantes para evidenciar nuances aqui e acolaacute contudo tendo a possibilidade de utilizar o verbo ldquoserrdquo num uso equiacutevoco proacuteximo do grego natildeo precisamos recorrer agrave circunlocuccedilotildees e pode-mos traduzir οὐκ ἔστι com ldquonatildeo eacuterdquo20 e μὴ εἶναι com ldquonatildeo-serrdquo Diz portanto o segundo hemistiacutequio

Os uacutenicos caminhos de inqueacuterito ao pensar satildeo

Por um lado [ldquoArdquo] e que natildeo eacute natildeo-ser

18 De novo Kahn (2009) que assinala ldquoTo take the philosophical objection first it is simply false to say that you cannot think or talk about (point out in speech phrazein) what does not exist And the falseness of this would be obvious to any Greek who reflected for a moment on the profusion of monsters and fantastic creatures in traditional poetry and myth from Pegasus to the children of Gaia with a hundred arms and fifty heads apiecerdquo (HESIOD THEOGONY 150 172) Mais agrave frente ressaltamos que exatamente na questatildeo filosoacutefica Kahn estaacute errado e Parmecircnides estaacute certo eacute impossiacutevel pensar e dizer o natildeo-ser19 Um outro caminho possiacutevel de traduccedilatildeo utilizado principalmente pelos autores de liacutengua inglesa por motivos idiossincraacutesicos da liacutengua eacute empregar uma expressatildeo cuja noccedilatildeo tambeacutem eacute ampliacutessima e equiacutevoca ldquocoisardquo Mas essa expressatildeo por ser um substantivo natildeo possui o aspecto dinacircmico que o verbo tem sendo assim necessaacuterio acrescentar o verbo ser portanto eacute possiacutevel traduzir com ldquoas coisas que satildeordquo Outra possibilidade eacute usar o pronome ldquoquerdquo em sentido predicativo em substituiccedilatildeo de coisa ou coisas Outra ainda eacute o pronome demonstrativo (aquilo isto) ou o indefinido (algo) com a mesma funccedilatildeo substitutiva de coisa(s) no sentido mais indefinido possiacutevel20 Laacute onde em inglecircs haacute obrigatoriedade de explicitar-se o sujeito ldquowhat is notrdquo

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Se tiveacutessemos seguido a ordem metodoloacutegica tradicional ao examinar 23 teriacuteamos analisado primeiro ἔστιν e depois οὐκ ἔστι μὴ εἶναι E se de-pois de estudar o segundo hemistiacutequio voltaacutessemos nossa atenccedilatildeo ao primeiro hemistiacutequio natildeo teriacuteamos ganho metodoloacutegico nenhum pois redundariacuteamos na leitura por pressupostos em que o sentido de ἔστιν eacute obtido pelo pressu-posto de que ἔστιν significa em grego ldquoeacuterdquo todavia dessa maneira se chegaria aos resultados jaacute conhecidos considerados natildeo totalmente satisfatoacuterios pelos proacuteprios autores de cada interpretaccedilatildeo O dado concreto eacute que o poema natildeo oferece nenhuma definiccedilatildeo direta ou indireta de ἔστιν embora apresente mui-tos σήματα de ἐὸν Em compensaccedilatildeo o poema trata amplamente de μὴ εἶναι E natildeo eacute preciso ir muito longe para encontrar referecircncias para a noccedilatildeo de μὴ εἶναι pois observamos muitos dados nos versos de 5 a 8 do nosso fragmento Iremos portanto ao verso 5 e subsequentes

33 OS VERSOS 5 A 8 he drsquoos ouk eacutestin te kaigrave os khreoacuten esti megrave eicircnai

tegraven deacute toi phraacutezo panapeutheacutea eacutemmen atarpoacuten

ouacutete gagraver agravev gnoiacutees toacute ge megrave eograven (ou gagraver anustoacuten)

ouacutete phraacutezais

o outro que natildeo eacute e portanto que eacute preciso natildeo ser

este entatildeo eu te digo eacute atalho de todo incriacutevel

pois nem conhecerias o que natildeo eacute (pois natildeo eacute exequiacutevel)

nem o dirias

Vamos relembrar a letra do verso 5 ἡ δrsquo ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι Haacute uma construccedilatildeo paralela ao verso 3 dois hemistiacutequios no segundo dos quais encontramos nosso μὴ εἶναι No verso seguinte o caminho eacute chamado de παναπευθέα termo que muito fez e faz sofrer os filoacutelogos O sentido geral poreacutem eacute claro quer se queira traduzir como ldquode todo incriacutevelrdquo (CAVALCANTE DE SOUZA 1978) quer como ldquocompletamente inconos-ciblerdquo (CORDERO 2005 p 219) ou ldquowholly without reportrdquo (COXON 2009 p 56) ou como outro Em suma a noccedilatildeo geral eacute de que haacute uma difi-culdade intransponiacutevel em seguir esse caminho e por que eacute explicado a seguir

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Assim como em certa metodologia de exposiccedilatildeo primeiro se enuncia a tese e depois se propotildee o argumento demonstrativo Parmecircnides primeiro enuncia (como conveacutem agrave expressatildeo de uma deusa) e depois diz por quecirc Ora a novida-de cultural eacute exatamente esse porquecirc onde as afirmaccedilotildees natildeo satildeo mais apenas impostas por sua forccedila hieraacutetica mas precisam de explicaccedilotildees21

O nosso primeiro problema eacute que os enunciados (no verso 3 antes no verso 5 agora) natildeo satildeo claros para noacutes Nesse sentido podemos pedir clareza aos argumentos Qual eacute o argumento Eis a resposta de Parmecircnides οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε μὴ ἐὸν (οὐ γὰρ ἀνυστόν) οὔτε φράσαις Aqui a traduccedilatildeo eacute mais clara e natildeo haacute muita divergecircncia entre os criacuteticos pois nem poderias co-nhecer o que natildeo eacute (pois eacute impossiacutevel) nem o dirias Haacute aqui um claro objeto do discurso τό μὴ ἐὸν o qual sem hesitaccedilatildeo desta vez podemos traduzir por ldquoo que natildeo eacuterdquo Sem hesitaccedilatildeo porque τὸ ἐὸν eacute uma expressatildeo desconhecida antes de Parmecircnides aparece com ele eacute estudada por seus disciacutepulos e pelos seus criacuteticos (de Melisso a Aristoacuteteles) e eacute reportada pela doxografia como invenccedilatildeo parmenidiana

A noccedilatildeo exposta por Parmecircnides eacute sequencial o caminho de inqueacuterito que pensa οὐκ ἔστιν aqui chamado de ἀταρπόν natildeo pode ser percorrido porque eacute impossiacutevel ldquoconhecerrdquo (γνοίης ndash segunda pessoa do optativo aoristo ativo de γιγνώσκω) o que natildeo eacute e vamos deixar para depois a questatildeo do di-zer (οὔτε φράσαις) Vamos concentrar nossa atenccedilatildeo sobre γνοίης Para noacutes eacute menos importante a traduccedilatildeo gramaticalmente e estilisticamente precisa e mais importante a precisatildeo da noccedilatildeo filosoacutefica exposta Em relaccedilatildeo a essa pa-lavra houve (e ainda haacute) uma discussatildeo acirrada Discute-se se traduzir por ldquoconhecerrdquo como fazem alguns (COXON 2009 p 56 GALLOP 1984 p 55 TARAacuteN 1965 p 32 e muitos outros) ou ldquoreconhecerrdquo como fazem outros (por exemplo BARNES 1982 p 124) e principalmente que sentido atribuir ao ldquoconhecerrdquo Eu penso que considerado o contexto natildeo se trata do conhecer epistecircmico mas do conhecer gnosioloacutegico ou seja da capacidade que a mente possui de estabelecer um processo de conhecimento E que se trate de processo eacute claro pela vaacuteria terminologia que Parmecircnides usa mas principalmente pela sua ὁδός que ficaraacute para sempre como metaacutefora perfeita dos procedimentos a serem tomados para realizar tarefas de qualquer natureza vindo a receber o nome de meacutetodo

21 Rossetti (2010) A necessidade de explicaccedilotildees natildeo eacute mais soacute dos autores mas tambeacutem da audiecircncia que agora requer argumentos

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Para o meacutetodo do pensar epistecircmico declara Parmecircnides natildeo eacute con-veniente seguir um certo percurso porque sobre ele haacute ao menos uma etapa onde se deve ldquoconhecerrdquo ndash ou seja onde se deve exercer a capacidade gnosioloacute-gica ndash o τό μὴ ἐὸν mas isso eacute impossiacutevel Na verdade tanto o termo ἀνυστόν (reportado por Simpliacutecio) quanto sua variante ἐφικτόν (reportada por Proclo) tecircm um sentido processual quero dizer que a tarefa de pensar o τό μὴ ἐὸν natildeo apresenta uma impossibilidade que se realiza imediatamente mas uma que implica um processo o qual eacute impossiacutevel em sua inteireza porque natildeo pode ser levado a termo De fato ἀνυστός significa ldquoser completadordquo ldquopraticaacutevelrdquo enquanto ἐφικτός significa ldquofaacutecil de alcanccedilarrdquo ldquoacessiacutevelrdquo Ambos os termos tecircm sentido dinacircmico e processual e a negaccedilatildeo que Parmecircnides faz significa que esse processo natildeo pode ser levado a termo

De que processo se trata Em minha visatildeo trata-se do processo concre-to de pensar a negaccedilatildeo do ser Parmecircnides eacute de aacuterea de formaccedilatildeo pitagoacuterica e os pitagoacutericos ndash como assinala Aristoacuteteles (Metaph 986a15-26) ndash naquela eacutepoca estudavam as oposiccedilotildees as mais abstratas tendo passado da oposiccedilatildeo mais antiga entre par e iacutempar correspondentes a limitado e ilimitado (πέρας e ἄπειρον) a um conjunto de dez oposiccedilotildees Nada desabona uma possiacutevel tentativa de Parmecircnides buscar uma oposiccedilatildeo (a qual era feita tambeacutem por negaccedilatildeo como nos evidencia a expressatildeo verbal da oposiccedilatildeo entre πέρας e ἄπειρον com o ldquoαrdquo privativo) para o ldquotodordquo aquele πάντα que encontramos no verso 128 do poema e que em breve transformar-se-ia em φύσις no curso da evoluccedilatildeo histoacuterica dos conceitos filosoacuteficos da antiga Greacutecia

A meditaccedilatildeo do ldquonatildeo-serrdquo eacute das mais interessantes a se fazer na filosofia Tentar ldquopensarrdquo o ldquonatildeo-serrdquo eacute uma experiecircncia profunda a qual leva a conside-raccedilotildees radicais natildeo soacute sobre a existecircncia humana mas sobre a existecircncia como um todo Que Parmecircnides tenha se dedicado a essa meditaccedilatildeo eacute seguro pois ele o diz indiretamente em 22 quando afirma que os uacutenicos caminhos ao pensar satildeo aquele que pensa ἔστιν e aquele que pensa οὐκ ἔστιν O que natildeo sa-bemos e natildeo podemos afirmar com certeza eacute que tipo de meditaccedilatildeo ele reali-zou Eis que os termos ἀνυστόν ou ἐφικτόν vecircm nos socorrer e nos informam que se trata de uma meditaccedilatildeo processual que natildeo acaba Descrevi esse proces-so detalhadamente em outro trabalho (GALGANO 2010) e o repetirei aqui brevemente Pensar o natildeo-ser significa pensar concretamente a negaccedilatildeo do ser concreto (do mundo sensiacutevel ou inteligiacutevel) de cada ser Para tornar mais claro o processo pode-se comeccedilar negando a existecircncia de um ente depois daquilo

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que o rodeia depois do planeta depois do universo (sensiacutevel e inteligiacutevel atual e possiacutevel) e depois do mundo como um todo enfim do todo

O problema principal dessa meditaccedilatildeo eacute exatamente pensar se o sujeito pertence ou natildeo ao todo Quando se pensa a negaccedilatildeo do todo permanece ainda o sujeito pensante que pensa o todo como se o olhasse de um ponto virtual externo a ele E quando se tenta incluir o sujeito pensante de duas uma 1) ou o sujeito acreditando pensar a si proacuteprio dentro do todo reapa-rece externamente22 ou 2) o sujeito cognitivo desaparece e com ele qualquer noccedilatildeo cognitiva de ldquonatildeo-serrdquo Podemos assegurar claramente que o processo de pensar o τό μὴ ἐὸν natildeo termina seja porque eacute impossiacutevel incluir o sujeito no todo pois ele sempre reaparece a cada tentativa seja porque o processo quan-do inclui o sujeito no todo interrompe-se sendo assim impossiacutevel completar a negaccedilatildeo do todo Natildeo podemos saber se o modelo meditativo de Parmecircnides foi exatamente este mas natildeo me parece haver nada em desabono23

Entretanto qual eacute a importacircncia de natildeo se poder pensar a negaccedilatildeo de tudo Seguindo o argumento parmenidiano o caminho (ἀταρπόν) cognitivo que pensa τό μὴ ἐὸν natildeo pode ser concluiacutedo Ora ἀταρπόν eacute um sinocircnimo que Parmecircnides usa para o ὁδός do verso 22 (ὁδοὶ) isso quer dizer que o segundo caminho de inqueacuterito pode ser iniciado mas natildeo pode ser levado a termo Poreacutem se natildeo pode ser levado a termo por que eacute identificado como caminho Por que natildeo eacute excluiacutedo jaacute de iniacutecio quando a deusa ao inveacutes de anunciar os uacutenicos (moucircnai plural) caminhos natildeo anuncia um uacutenico cami-nho A resposta a essa pergunta torna clara a estranha afirmaccedilatildeo de que o caminho do pensar do segundo hemistiacutequio do verso 5 eacute necessaacuterio que per-maneccedila natildeo ser (χρεών ἐστι μὴ εἶναι) Parmecircnides assevera que embora seja um caminho que jamais pode ser completado ele ao mesmo tempo natildeo pode ser eliminado continua a pertencer aos (dois) uacutenicos caminhos de inqueacuterito ele eacute necessaacuterio

22 Se penso na aniquilaccedilatildeo de tudo incluindo a mim mesmo terei que pensar a mim mesmo aniquilado contudo esse pensar gerando esse novo pensamento gera um novo sujeito cognitivo pensante se aniquilo esse novo pensamento terei um novo sujeito cognitivo que pensa essa nova aniquilaccedilatildeo e assim por diante ad infinitum23 Natildeo quero garantir que Parmecircnides estreie uma filosofia do sujeito embora isso natildeo possa ser excluiacutedo a priori jaacute que os embriotildees de uma tal filosofia apareceratildeo em breve com Soacutecrates Acredito que se deve pensar mais no sujeito como o atleta campeatildeo das Olimpiacuteadas ou seja aquele capaz de cumprir (ou natildeo) certas proezas como fica extraordinariamente evidenciado no paradoxo de Zenatildeo cuja metaacutefora da filosofia (e do filoacutesofo) como tartaruga mostra que o pensar filosoacutefico eacute capaz de proezas maiores do que as proezas do proacuteprio Aquiles tidas como insuperaacuteveis pela cultura da eacutepoca

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Vamos de novo reconstruir essa parte do argumento com esse novo elemento os uacutenicos caminhos de inqueacuteritos satildeo

1) por um lado o caminho ao pensar que [versos 3 e 4] e

2) por outro lado o caminho ao pensar que [ldquoCrdquo (verso 5 primeiro hemistiacute-quio)] e que eacute necessaacuterio (que seja) natildeo-ser

De fato esse segundo caminho (ἀταρπόν) eacute inviaacutevel porque ldquonatildeo se consegue levar a cabo a reflexatildeordquo (γνοίης) quando se pensa o τό μὴ ἐὸν Ou seja fica muito clara a equaccedilatildeo entre o segundo caminho (v 5) e a reflexatildeo sobre o natildeo ser (τό μὴ ἐὸν) Finalmente o segundo hemistiacutequio do v 5 diz que esse eacute o caminho ao pensar que eacute necessaacuterio que seja μὴ εἶναι o qual agora sabemos eacute o caminho que tenta pensar o natildeo-ser (τό μὴ ἐὸν) Sabe-mos agora o que Parmecircnides chama de μὴ εἶναι Para Parmecircnides μὴ εἶναι eacute a estrutura do pensamento quando tenta inexoraacutevel e malogradamente pensar o natildeo-ser (τό μὴ ἐὸν)

Temos portanto a semacircntica de μὴ εἶναι e sabemos que significa a impossibilidade de pensar o natildeo-ser Com esse dado podemos reconstruir o resto do argumento mas primeiro vamos abordar a questatildeo do οὔτε φράσαις A premissa principal eacute o pano de fundo da pesquisa parmenidiana a qual estaacute em busca do discurso confiaacutevel como a deusa diz claramente no encerramen-to do fragmento 8 (talvez ecoando simetricamente alguma parte perdida do poema)24 Pensar o τό μὴ ἐὸν natildeo eacute possiacutevel logo ele eacute indiziacutevel Ora isso significa nem mais nem menos que dizer que o que eacute impossiacutevel eacute contra o sentido do dizer Eacute indiziacutevel natildeo porque natildeo se sabe do que se trata como querem muitos autores que fazem a leitura meramente epistemoloacutegica25 Eacute indiziacutevel porque dizer o ldquonatildeo-serrdquo significa fazer uma promessa que jamais se cumpriraacute ao se dizer ldquonatildeo-serrdquo parece que a expressatildeo aponta algo possiacutevel ou seja a negaccedilatildeo do ser e de fato quem estaacute desavisado assim acredita Mas a expressatildeo ldquonatildeo-serrdquo quer referir-se a algo que jamais seraacute cumprido que o

24 850-2 ldquoἐν τῶι σοι παύω πιστὸν λόγον ἠδὲ νόημα ἀμφὶς ἀληθείης δόξας δrsquo ἀπὸ τοῦδε βροτείας μάνθανε κόσμον ἐμῶν ἐπέων ἀπατηλὸν ἀκούωνrdquo ldquoNeste ponto encerro fidedigna palavra e pensamento sobre a verdade e opiniotildees mortais a partir daqui aprende a ordem enganadora de minhas palavras ouvindordquo (CAVALCANTE DE SOUZA 1978)25 Trata-se da leitura epistemoloacutegico-predicamental se natildeo sei a cor de um objeto (porque a cor natildeo eacute natildeo estaacute acessiacutevel ao meu conhecimento) natildeo posso falar da cor do objeto

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ser seja negado Esta eacute exatamente a noccedilatildeo expressa pelas palavras de Platatildeo jamais prevaleceraacute que natildeo entes sejam26

A expressatildeo μὴ εἶναι representa essa impossibilidade de pensamento e portanto eacute um dizer impossiacutevel o que se opotildee radicalmente agrave proacutepria noccedilatildeo de dizer a qualquer significar enquanto discurso confiaacutevel do mundo e da sua ordem Surge a pergunta mas se natildeo se pode dizer μὴ εἶναι se isso eacute impossiacute-vel natildeo haacute uma flagrante contradiccedilatildeo na deusa jaacute que ela proacutepria diz e cons-troacutei um argumento sobre o dizer μὴ εἶναι A objeccedilatildeo seria vaacutelida se a deusa dissesse o que eacute impossiacutevel de dizer ou seja se ela praticasse a impossibilidade Todavia a deusa natildeo diz o impossiacutevel a deusa aponta para o impossiacutevel indica o impossiacutevel pois ela diz que existem a ldquonoccedilatildeo de impossibilidade do pensarrdquo e a ldquonoccedilatildeo de impossibilidade do dizerrdquo Em outras palavras a deusa diz qual eacute o limite do pensar e qual eacute o limite do dizer Aleacutem desse limite o pensamento natildeo pode ir porque eacute impossiacutevel e tambeacutem o dizer natildeo pode ir porque eacute im-possiacutevel A impossiacutevel regiatildeo para aleacutem desse limite natildeo eacute admitida pelo dizer eacute contra o dizer eacute contraditoacuteria

A expressatildeo μὴ εἶναι em Parmecircnides eacute exatamente a palavra que ex-pressa o processo mental que noacutes chamamos contradiccedilatildeo e que ele primeiro assim chamou (οὔτε φράσαις natildeo diziacutevel) Eacute estranho que nenhum criacutetico te-nha percebido isso claramente Todos afirmam que o princiacutepio de natildeo contra-diccedilatildeo estaacute implicado em Parmecircnides assim como os outros princiacutepios loacutegicos pois os argumentos presentes no poema satildeo desenvolvidos segundo a natildeo con-tradiccedilatildeo poreacutem o princiacutepio natildeo eacute enunciado Alguns como Cordero veem justamente explicitado o princiacutepio do terceiro excluiacutedo (816 ἔστιν ἢ οὐκ ἔστιν) mas ningueacutem quis ver claramente que natildeo soacute a noccedilatildeo como tambeacutem a proacutepria palavra ldquocontradiccedilatildeordquo (οὔτε φράσαις natildeo diziacutevel contra o diziacutevel contra a dicccedilatildeo) estaacute explicitada no poema Penso que a razatildeo fundamental para que acontecesse esse lapsus tenha que ser procurada na grande atenccedilatildeo dada ao ldquoserrdquo e na pouca dada ao ldquonatildeo-serrdquo Como observaremos mais adiante por causa desse lapsus eu penso que natildeo se conseguiu entender plenamente a estrutura do fragmento 2 o qual simplesmente natildeo apresenta um silogismo disjuntivo nem nenhuma contradiccedilatildeo entre o caminho do ldquoserrdquo e o caminho do ldquonatildeo-serrdquo Parmecircnides assevera justamente que a expressatildeo ldquonatildeo-serrdquo eacute contraditoacuteria o ldquonatildeo-serrdquo natildeo pode ser dito porque ldquonatildeo-serrdquo eacute contraditoacute-

26 As duas expressotildees tecircm inversatildeo de predicado e negaccedilatildeo no entanto a noccedilatildeo permanece a mesma que os entes natildeo sejam (perecimento no fr 8) e que os natildeo entes sejam (nascimento no fr 8) A noccedilatildeo eacute o tracircnsito entre ser e natildeo ser

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rio e a expressatildeo ldquonatildeo-serrdquo indica tatildeo somente uma impossibilidade concreta aquela de que se realize o impossiacutevel

Vamos voltar ao nosso argumento e agrave questatildeo que deixamos em suspenso por que eacute necessaacuterio que μὴ εἶναι seja Sabemos que os versos 7 e 8 relatam um processo malogrado de pensar o natildeo ente (τό μὴ ἐὸν) Uso agora a palavra ente porque se justifica uma diferenciaccedilatildeo embora tanto ldquoenterdquo quanto ldquoserrdquo indiquem expressotildees gerais e natildeo individuais ldquoEnterdquo vem por conseguinte a significar o ente concreto aquele que eacute Parmecircnides sustenta que natildeo se pode pensar e dizer τό μὴ ἐὸν o ldquonatildeo enterdquo Esse processo recebe o nome de μὴ εἶναι ldquonatildeo-serrdquo a esse processo noacutes chamamos contradiccedilatildeo27 Entatildeo a indicaccedilatildeo eacute esta haacute um caminho ao pensar que pensa μὴ εἶναι (a contradiccedilatildeo) e eacute necessaacuterio que assim seja porque (vou repetir trecircs vezes de forma diferente28 para significar a mesma coisa)

1) se natildeo houvesse a contradiccedilatildeo

2) se natildeo se tem a noccedilatildeo de contradiccedilatildeo

3) se natildeo se sabe o que eacute contradiccedilatildeo

cai-se no discurso contraditoacuterio o que impede o inqueacuterito confiaacutevel Eacute ne-cessaacuterio saber que μὴ εἶναι (o processo de contradiccedilatildeo) eacute um caminho a ser evitado porque cria pensamentos e discursos contraditoacuterios

Vejamos de novo nosso fragmento com os elementos esclarecidos ateacute aqui

os uacutenicos caminhos de inqueacuterito a pensar satildeo

por um lado que [ versos 3 e 4]

e por outro lado que οὐκ ἔστιν e que eacute necessaacuterio que seja a contradiccedilatildeo (μὴ εἶναι)

a qual eacute um caminho natildeo criacutevel

pois eacute impossiacutevel pensar e dizer o natildeo ente (τό μὴ ἐὸν)

27 Mesmo para noacutes a contradiccedilatildeo eacute um processo porque indica a posiccedilatildeo de algo em contraposiccedilatildeo com mais algo isso significa que esses dois algos tecircm que ser relacionados para que haja contradiccedilatildeo do contraacuterio algo e mais algo podem conviver sem contraditoriedade Contudo esse assunto estaacute fora de tema e requer muitas outras providecircncias para o bom discernimento28 Repito buscando clareza pois nossas construccedilotildees comuns de linguagem nesses assuntos costumam ldquopatinarrdquo

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Penso que o espaccedilo conceitual deixado por οὐκ ἔστιν agora se pre-encha quase que por si haacute um caminho de inqueacuterito ao pensar que ldquonatildeo eacuterdquo e que eacute necessaacuterio que se considere contraditoacuterio porque eacute caminho que natildeo leva a lugar nenhum

A expressatildeo οὐκ ἔστιν eacute a negaccedilatildeo da terceira pessoa do indicativo de εἰμί a expressatildeo em si natildeo tem nada de especial significa tatildeo somente ldquonatildeo eacuterdquo restando em aberto o problema da ausecircncia de sujeito Mas agora sabemos o argumento complexo que estaacute na raiz da expressatildeo e a meu ver natildeo faz muito sentido a questatildeo de buscar um sujeito ou um objeto para definir se eacute usado de forma transitiva ou intransitiva se expressa existecircncia ou predicaccedilatildeo e as muitas combinaccedilotildees que podem ser montadas a partir da equivocidade do uso de εἰμί No entanto o acircmbito semacircntico foi evidenciado e estaacute claro e aleacutem do mais tem o testemunho de Platatildeo a confirmar o campo semacircntico da negaccedilatildeo de εἰμί nas vaacuterias formas estaacute relacionado a uma reflexatildeo sobre a impossibili-dade dessa negaccedilatildeo Obviamente para dizer que algo eacute impossiacutevel de alguma forma tenho que indicar essa impossibilidade com alguma expressatildeo Assim se digo ldquotriacircngulo quadradordquo aponto para uma impossibilidade jaacute que por defi-niccedilatildeo a essecircncia do triacircngulo exclui a essecircncia do quadrado logo a expressatildeo ldquotriacircngulo quadradordquo natildeo significa aquilo que parece prometer ou seja natildeo significa uma figura geomeacutetrica especial que eacute ao mesmo tempo triacircngulo e quadrado dizer ldquotriacircngulo quadradordquo eacute dizer algo ldquoindiziacutevelrdquo ldquonatildeo diziacutevelrdquo (na medida em que o diziacutevel quer expressar sentido) ldquoque nega o diziacutevelrdquo ldquoque eacute contra o diziacutevelrdquo que eacute contraditoacuterio

A semacircntica do ldquonatildeo serrdquo eacute fortiacutessima e estaacute muito aleacutem das sutilezas gramaticais morfoloacutegicas e sintaacuteticas e estas simplesmente natildeo afetam aquela O assunto tratado eacute tatildeo forte que ultrapassa qualquer forma linguiacutestica a pon-to de que esse assunto a ordem do ser e do natildeo-ser no mundo eacute responsaacutevel pela determinaccedilatildeo da lei da linguagem e natildeo vice-versa como bem entendeu Platatildeo no Sofista onde a teoria da predicaccedilatildeo surge em funccedilatildeo de uma refle-xatildeo sobre a ordem das leis baacutesicas do mundo Com efeito o approach linguiacutes-tico ao poema pode proceder ateacute certo ponto dali em diante o poema eacute fran-camente filosoacutefico e a chave linguiacutestica natildeo eacute suficiente para o acesso Isso quer dizer que com a chave linguiacutestica natildeo se abre a porta da questatildeo filosoacutefica do poema Se a questatildeo eacute que ldquojamais o natildeo ser pode se tornar serrdquo como (apro-ximadamente com essas palavras) argumenta Platatildeo citando Parmecircnides en-tatildeo diante da semacircntica que οὐκ ἔστιν apresenta discutir o sujeito de οὐκ ἔστιν se torna tarefa menor Considerada a desproporccedilatildeo entre o conteuacutedo (a

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semacircntica) e o recipiente (a palavra) entre o significado e o significante natildeo eacute impossiacutevel que οὐκ ἔστιν seja tatildeo somente uma expressatildeo simplificada quem sabe ateacute mesmo uma simplificaccedilatildeo didaacutetica pois o conteuacutedo do conceito estaacute expresso e justificado depois nos versos 7 e 8

O caminho de pensar que natildeo eacute e de pensar que eacute necessaacuterio natildeo ser eacute o caminho que afirma a necessidade de que a noccedilatildeo de natildeo-ser permaneccedila estaacutevel A contradiccedilatildeo tem que permanecer e ser identificada como tal pois eacute a uacutenica maneira de evitar que ela entre no pensamento e no discurso Se o ldquonatildeo-serrdquo natildeo for considerado contraditoacuterio a contradiccedilatildeo invade e domina o caminho de inqueacuterito o qual deixa de possuir πίστις ἀληθής (130) Assim eacute preciso que esse caminho seja identificado como μὴ εἶναι por um lado o ldquonatildeo-serrdquo eacute incognosciacutevel (οὔτε γὰρ ἂν γνοίης) mas por outro lado eacute neces-saacuterio que se saiba que ele eacute incognosciacutevel Saber do incognosciacutevel garante o conhecimento29 pois de fato ao natildeo se identificar o ldquonatildeo-serrdquo cai-se no risco de pensar que ldquoserrdquo e ldquonatildeo-serrdquo satildeo o mesmo e natildeo o mesmo como Parmecircni-des afirma em DK 6 5-6 Necessariamente o caminho que pensa οὐκ ἔστιν leva ao processo de contradiccedilatildeo (μὴ εἶναι) e a natildeo conclusatildeo do caminho (ἀνυστόν) natildeo eacute evidente na expressatildeo pelo contraacuterio τό μὴ ἐὸν parece uma negaccedilatildeo comum como qualquer outra poreacutem natildeo o eacute por isso eacute um saber destinado ao saacutebio e natildeo aos mortais porque eacute um saber fruto de uma reflexatildeo

34 DE VOLTA AOS VERSOS 3 E 4

Penso que podemos agora voltar ao verso 23 ao nosso segundo he-mistiacutequio onde aparece a expressatildeo μὴ εἶναι da qual jaacute temos a semacircntica Podemos entatildeo reconstruir ldquoos uacutenicos caminhos de inqueacuterito a pensar satildeo

por um lado a pensar que [ldquoArdquo] e tambeacutem a pensar que οὐκ ἔστι μὴ εἶναι este eacute caminho de persuasatildeo pois verdade acompanha e

por outro lado a pensar que ldquonatildeo eacuterdquo e tambeacutem a pensar que eacute necessariamente um percurso de pensamento contraditoacuterio porque eacute um caminho ldquoimpossiacutevelrdquo (παναπευθέα) pois o pensamento do ldquonatildeo enterdquo natildeo pode ser completado

O οὐκ ἔστι do verso 3 parece ser diferente do οὐκ ἔστιν do verso 5 Enquanto no 5 ele eacute quase que o nome do caminho (talvez uma simplificaccedilatildeo didaacutetica) no 3 parece significar simplesmente ldquonatildeo eacuterdquo em sentido comum

29 Estaacute aqui uma semente do socratismo

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predicativo De fato esse eacute o caminho da persuasatildeo e portanto eacute o caminho do pensamento natildeo-contraditoacuterio Ali a persuasatildeo era impossiacutevel pela con-tradiccedilatildeo aqui eacute possiacutevel pela natildeo-contradiccedilatildeo Sabemos que a expressatildeo μὴ εἶναι eacute a expressatildeo da contradiccedilatildeo suprema de sorte que a natildeo-contradiccedilatildeo eacute a negaccedilatildeo de μὴ εἶναι A traduccedilatildeo de οὐκ ἔστι fica faacutecil embora para a nossa sensibilidade possa parecer algo improacuteprio usar duas vezes οὐκ ἔστι de forma natildeo perfeitamente uniacutevoca a dois versos de distacircncia Logo para o segundo hemistiacutequio do v 3 mantenho esta traduccedilatildeo ldquonatildeo eacuterdquo em parte ambiacutegua para nossas exigecircncias mas que soa perfeitamente harmocircnica com o discurso par-menidiano [] ao pensar que [ldquoArdquo] e que natildeo eacute ldquocontradiccedilatildeordquo (μὴ εἶναι)

Acredito por fim que podemos abordar facilmente o ἔστιν do verso 3 que tanto fez e faz penar os estudiosos de Parmecircnides Aqui de novo a grandeza da questatildeo cosmoloacutegica envolvida ndash a coerecircncia eou a contradito-riedade do real ndash simplesmente torna tatildeo minuacutescula a questatildeo do sujeito de ἔστιν que ela quase desaparece Eu tenho a tendecircncia a pensar que a falta de sujeito seja uma simplificaccedilatildeo didaacutetica30 cuja irregularidade linguiacutestica ajuda na memorizaccedilatildeo31 Todavia afinal tomo partido e entro tambeacutem no quarto grupo daqueles listados por Cordero o sujeito deve ser extraiacutedo do predicado isolado pois ἔστιν produz o sujeito32 De qualquer forma o sentido filosoacutefico eacute preciso haacute um caminho de inqueacuterito ao pensar que eacute aquele que pensa o ldquoeacuterdquo esse mesmo caminho eacute aquele ao pensar que natildeo eacute (e natildeo pode ser33) ldquocon-tradiccedilatildeordquo Depois haacute um outro caminho aquele ao pensar que ldquonatildeo eacuterdquo que eacute o caminho ao pensar que leva necessariamente agrave contradiccedilatildeo O primeiro eacute o 30 Segundo o relato platocircnico no diaacutelogo Parmecircnides Zenatildeo acompanhado de seu mestre foi para as Panateneias com a finalidade de defender a filosofia de seu mestre esclarecendo com seu livro repleto de paradoxos as ideias parmenidianas Isso sugere que o poema natildeo expunha articuladamente a filosofia de Parmecircnides mas que constituiacutesse um proacute-memoacuteria com as ideias em sua forma essencial depois elaboradas nas aulas pessoais (KURFESS 2012)31 Eacute extraordinaacuterio como essa simplificaccedilatildeo didaacutetica continue ativa por um lado distorcendo entretanto por outro mantendo viva a mensagem parmenidiana em todas as escolas de ensino meacutedio onde se estuda filosofia vox populi Parmecircnides eacute o filoacutesofo que disse ldquoO que eacute eacute e o que natildeo eacute natildeo eacuterdquo Por outro lado o estrangeiro de Eleia no Sofista lembra outro verso e natildeo este32 Essa questatildeo natildeo aprofundada aqui natildeo possui relevacircncia filosoacutefica no argumento apresentado pode ter relevacircncia se se considera o tipo de reflexatildeo ou seja se se discute a ldquoexperiecircnciardquo do natildeo-ser e principalmente a experiecircncia concreta de Parmecircnides que talvez esteja ligada a praacuteticas de incubaccedilatildeo Nesse caso a dimensatildeo reflexiva adentra a dimensatildeo oniacuterica a qual possui outra sintaxe e onde um simples ἔστιν vale mais de mil articulaccedilotildees sintaacuteticas Natildeo sabemos com certeza dessas praacuteticas em Eleia contudo esse sentido preacute-sintaacutetico natildeo estaacute descartado inclusive alguns estudiosos entre os quais o proacuteprio Cordero atribuem ao ἔστιν o sentido de um grito como um Eureka Sugestotildees nesse sentido se encontram na minha dissertaccedilatildeo sobre Melisso (GALGANO 2010)33 A interpretaccedilatildeo modal eacute tambeacutem perfeitamente coerente aqui

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caminho que estabelece o discurso coerente (persuasivo) e o segundo natildeo leva a lugar nenhum e deve ser evitado Mas para que se saiba o que deve ser evi-tado eacute preciso que se conheccedila a impossibilidade do segundo caminho A fim de que se possa seguir o primeiro caminho eacute necessaacuterio saber que existe um outro sempre agrave espreita o qual parece oferecer a verdade mas que natildeo oferece uma verdade confiaacutevel que leva necessariamente agrave contradiccedilatildeo de pensamento e de expressatildeo linguiacutestica

4 O MEacuteTODO DA NAtildeO-CONTRADICcedilAtildeO

Parmecircnides provavelmente a partir de sugestotildees pitagoacutericas medita sobre a oposiccedilatildeo ao que existe e assim descobre o ldquonatildeo-serrdquo Descobre que ldquonatildeo serrdquo ou seja negar o ser negar o que haacute eacute de todo impossiacutevel (natildeo eacute possiacutevel completamente) Entende entatildeo que o ldquonatildeo-serrdquo essa impossibilidade eacute algo que a mente pensa julgando que esse pensamento leva por um caminho mas que na verdade ele descobre leva por outro caminho aquele que nunca che-ga a lugar nenhum Esse caminho que leva para lugar nenhum eacute o caminho dos mortais os quais confundem ser e natildeo ser No entanto o saacutebio deve saber distinguir por um lado o caminho do ldquoeacuterdquo que eacute o caminho do discurso natildeo contraditoacuterio e por outro lado o caminho do ldquonatildeo eacuterdquo que eacute o caminho do discurso que eacute tornado vatildeo pela contradiccedilatildeo

Parmecircnides descobre a contradiccedilatildeo (pela meditaccedilatildeo sobre o natildeo-ser) e percebe que ela eacute motivo de descaminho no discurso sobre o mundo Assim finalmente ele anuncia que a contradiccedilatildeo deve ser evitada A esse enunciado noacutes chamamos de princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo que aqui eacute aquele na versatildeo de Parmecircnides (depois a partir de Platatildeo e Aristoacuteteles haveraacute outras versotildees) Parmecircnides trabalha em acircmbito cosmoloacutegico e sua preocupaccedilatildeo ndash como os de seus colegas na eacutepoca ndash eacute com o mundo com a totalidade das coisas com os πάντα de seu proecircmio (128) Nesse acircmbito cosmoloacutegico descobre que haacute um princiacutepio do mundo pelo qual se daacute uma impossibilidade a contradiccedilatildeo A contradiccedilatildeo eacute um princiacutepio porque o que haacute (πάντα) enquanto todo escapa agrave negaccedilatildeo total Eis que a contradiccedilatildeo eacute princiacutepio tanto quanto a natildeo-contra-diccedilatildeo porque eacute a contradiccedilatildeo que permite a natildeo-contradiccedilatildeo Sem a noccedilatildeo de contradiccedilatildeo se anda com sentidos incertos como os mortais

O valor dessa afirmaccedilatildeo eacute historicamente inabalaacutevel porque Parmecircni-des partindo de um discurso sobre o mundo como que visto de fora por um observador (como Anaximandro via o mundo olhando seu pinax - cf ROS-

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SETTI 2013) alcanccedila um discurso que inclui o observador enquanto obser-vador estreando assim antes de tudo um discurso sobre os entes (ontologia) todos os entes incluindo os entes de pensamento (veja-se o famoso fragmento 3 onde se lecirc que pensar e ser satildeo o mesmo) Para ele o saacutebio natildeo eacute mais aquele que sabe soacute sobre as coisas externas ndash como o antigo xamatilde cuja figura indi-vidual se dissolve na mera intermediaccedilatildeo com o divino ndash poreacutem eacute tambeacutem aquele que consegue pensar sobre as coisas externas ou seja aquele que tem um domiacutenio cognitivo sobre os pensamentos de inqueacuterito e portanto sabe so-bre si mesmo Assim o saacutebio deve pensar por proacutepria conta e julgar pelo novo criteacuterio e natildeo pelo habitual discurso (κρῖναι δὲ λόγωι DK 75) ou seja natildeo deve julgar pelo discurso mas julgar o discurso porque agora o discurso enri-quecido de uma lei universal (a lei das αρχάι ἔστιν e οὐκ ἔστιν) possui uma medida de juiacutezo Parmecircnides amplia o mundo acrescentando ao mundo fiacutesico os mundos do pensamento e da linguagem Eis porque as αρχάι de Parmecircni-des sendo duas permanecem duas justamente eliminado uma delas deixando alguns criacuteticos enlouquecidos na discussatildeo sobre o monismo ou o dualismo de acordo com Parmecircnides o mundo eacute um todavia os sentidos nos enganam natildeo na pluralidade das coisas mas no argumento a respeito da pluralidade das coisas e principalmente ndash aspecto que ele discute explicitamente ndash a respeito do devir das coisas Haacute um princiacutepio que natildeo pode ser eliminado a contra-diccedilatildeo o qual eacute um princiacutepio de erro humano quando se elimina quando se desconsidera quando se faz de conta que natildeo existe a contradiccedilatildeo se instaura quando o princiacutepio eacute levado em conta a contradiccedilatildeo pode ser evitada

Eacute uma conceituaccedilatildeo esdruacutexula para noacutes tambeacutem porque temos que ter (a noccedilatildeo de) a contradiccedilatildeo para eliminar a contradiccedilatildeo temos que saber o que eacute contradiccedilatildeo para que possamos perceber quando o discurso eacute con-traditoacuterio Esses conceitos satildeo misteriosos ateacute agora e satildeo estranhas criaturas de nossas mentes Por exemplo a noccedilatildeo de ldquoimpossiacutevelrdquo obviamente (isto eacute para a nossa pragmaacutetica) natildeo se refere a nada de concreto no entanto temos essa noccedilatildeo e a usamos com o maacuteximo proveito outro exemplo a noccedilatildeo de ldquoinfinitordquo noccedilatildeo que natildeo se refere a algo pragmaticamente concreto mas que usamos igualmente com maacuteximo proveito O mesmo deve ser dito da noccedilatildeo de contradiccedilatildeo ou da noccedilatildeo de nada absoluto que usamos pragmaticamente com maior ou menor proveito

Parmecircnides encontra esse caminho e o expotildee Eacute um caminho assom-broso anti-intuitivo mas incontestaacutevel Dessa forma natildeo eacute de estranhar se a soluccedilatildeo platocircnica eacute a eliminaccedilatildeo fiacutesica da noccedilatildeo de nada absoluto (o par-

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riciacutedio) com sucessivo ldquoadeusrdquo34 achando de tecirc-lo ultrapassado Mas o nada absoluto enquanto noccedilatildeo contraditoacuteria permanece Assim como permane-ce a explicaccedilatildeo defeituosa do devir o qual assim como o conhecemos uma passagem do nada ao ser no nascimento e do ser ao nada no perecimento estaacute mal explicado Daqui por diante os comentaacuterios filosoacuteficos possiacuteveis satildeo inuacutemeros por conseguinte paro meu estudo neste ponto e proponho a versatildeo do fragmento 2 segundo a conceituaccedilatildeo apresentada ateacute aqui alterando de pouco a excelente versatildeo baacutesica de Cavalcante de Souza

Pois bem eu te direi e tu recebe a palavra que ouviste

os uacutenicos caminhos de inqueacuterito que satildeo a pensar

o primeiro que eacute e portanto que natildeo eacute (o caminho da) contradiccedilatildeo

de persuasatildeo eacute o caminho (pois agrave verdade acompanha)

o outro que natildeo eacute e portanto que eacute necessariamente (o caminho da) contradiccedilatildeo

este entatildeo eu te digo eacute atalho de todo incriacutevel

pois nem conhecerias o que natildeo eacute (pois natildeo eacute exequiacutevel)

nem o dirias

GALGANO N S Non-being in Parmenides of Elea Transformaccedilatildeo Mariacutelia v 41 n 2 p 9-36 AbrJun 2018

ABSTRACT In fragment DK 28 B 2 of his poem Parmenides presents his method for distinguishing true persuasion from the lack of true persuasion His famous proposal of these two ways of thinking form a complex statement of a system that intends to guarantee the veracity of statements in order to obtain reliable discourse the only discourse capable of true persuasion The present paper shows that the central role in Parmenidian argumentation is attributed to non-being a notion derived from a reflection on the impossibility of the negation of being Thus the whole fragment is interpreted in terms of this central notion We show that Parmenides discovered the impossibility of negation which we now call lsquocontradictionrsquo and that he articulated the means for avoiding contradiction in thought and discourse a rule which today we call the principle of non-contradiction The study presented here is a detailed investigation of the notion of non-being in the DK 28 B 2 fragment and includes a new translation of it

KEYWORDS Parmenides Non-being Non-contradiction Eleatism Parricide

34 Platatildeo Soph 258e7-259a1 ἡμεῖς γὰρ περὶ μὲν ἐναντίου τινὸς αὐτῷ χαίρειν πάλαι λέγομεν εἴτrsquo ἔστιν εἴτε μή λόγον ἔχον ἢ καὶ παντάπασιν ἄλογον

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O verso 3 eacute provavelmente o mais estudado de Parmecircnides merece Entretanto vejamos primeiro o verso 4 Ali notamos a presenccedila de uma palavra marcadamente psicoloacutegica πειθοῦς persuasatildeo Parmecircnides percebe que a persuasatildeo eacute um fato da ldquomenterdquo conceito este uacuteltimo que lhe eacute estra-nho mas que ele consegue identificar descrevendo as sensaccedilotildees mentais8 E identifica duas persuasotildees uma acompanhada da verdade e outra na qual o convencimento natildeo eacute acompanhado da verdadeira confianccedila Agrave primeira ele chama de πειθός que gera a sensaccedilatildeo de firmeza na mente (ἀτρεμὲς ἦτορ DK 1 29) e acompanha a verdade Agrave segunda ele chama de ldquoopiniotildees dos mortaisrdquo na qual natildeo haacute uma πίστις ἀληθής (DK 1 30) um convenci-mento acompanhado de verdade

Essa distinccedilatildeo nos mostra agudeza da observaccedilatildeo psicoloacutegica A certeza pode ser de dois tipos ou eacute uma certeza que deixa espaccedilo a duacutevidas ou eacute uma certeza indubitaacutevel Isso expotildee um problema gnosioloacutegico posto que se tem uma convicccedilatildeo (e todo homem tem convicccedilotildees) como saber se essa convicccedilatildeo corresponde agrave verdade ou eacute uma convicccedilatildeo sem fundamento e sem correspon-decircncia com a realidade Natildeo eacute possiacutevel sabecirc-lo A mente mostra apenas sua convicccedilatildeo subjetiva e para saber se tal convicccedilatildeo eacute acompanhada de verdade ou se natildeo tem feacute verdadeira eacute preciso recorrer a algo extramental eacute necessaacuteria uma prova externa porque a mente por si soacute natildeo consegue identificar uma sua convicccedilatildeo proacutepria como verdadeira ou falsa

A diferenciaccedilatildeo de dois tipos de persuasatildeo no poema eacute clara9 e se a ordem dos fragmentos de Diels estiver correta essa diferenciaccedilatildeo pertence agrave parte propedecircutica pois natildeo se fala dela na parte do eon no fr 8 quando a ordem do mundo eacute explicada com exceccedilatildeo do final do discurso da deusa onde ela anuncia o encerramento de seu discurso confiaacutevel (πιστὸν λόγον) Isso significa que esse tema faz parte do instrumental argumentativo preacutevio que conduziraacute agrave sucessiva anaacutelise cosmoloacutegica Enfim nos versos 3-4 uma proclamaccedilatildeo anteriormente anunciada (vv 1-2) eacute agora enunciada (vv 3-4) em seu primeiro caminho Eacute enunciado o caminho que pensa o inqueacuterito com persuasatildeo verdadeira natildeo aquele pensar no qual natildeo haacute convicccedilatildeo ver-

8 A discussatildeo completa estaacute em Galgano (2012)9 Embora nesse fragmento a palavra persuasatildeo natildeo apareccedila associada aos ldquomortaisrdquo em outras partes essa ligaccedilatildeo eacute clara ou ateacute mesmo literal como em 8 38-39 onde se frisa que ldquoseratildeo nomes todas as coisas que os mortais determinaram persuadidos de ser verdaderdquo (τῶι πάντrsquo ὄνομ(α) ἔσται ὅσσα βροτοὶ κατέθεντο πεποιθότες εἶναι ἀληθῆ) Note-se πεποιθότες atribuiacutedo aos mortais particiacutepio perfeito de πείθω

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dadeira mas aquele caminho enfim que anda com a verdade Vamos agora voltar ao verso 3

Natildeo se pode isolar o verso 3 ἡ μὲν ὅπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι do anterior verso 2 (e nem do seu correlativo verso 5) e portanto natildeo se pode esquecer que trata de um caminho ou seja de um elemento di-nacircmico No entanto a primeira coisa que salta aos olhos eacute que todas as noccedilotildees envolvidas satildeo estaacuteticas e natildeo haacute nenhum elemento dinacircmico ou sequencial ou de qualquer natureza minimamente motora O sentido desse ponto de vista eacute que o pensar o ldquoἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναιrdquo natildeo eacute o pensar de um momento mas um pensar que segue por um caminho Ou seja significa que no percurso seguido pelo pensar para que o inqueacuterito seja de verdadeira per-suasatildeo o ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι deve ser constante Essa noccedilatildeo eacute estrutural o caminho de inqueacuterito a pensar deve conter uma constante vaacutelida em qualquer momento e passagem do caminho O fato de ser a afirmaccedilatildeo de uma constante (estaacutetica) numa dimensatildeo de caminho (dinacircmica) reforccedila a ideia de algo externo e de natureza fixa a ser aplicado a algo de natureza pro-cessual ou seja eacute uma lei porque a noccedilatildeo de lei expressa tambeacutem as relaccedilotildees fixas entre as dinacircmicas de elementos de um ou mais processos

Vamos observar a estrutura sintaacutetica do verso mais de perto ἡ μὲν ὅπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι Depois da conjunccedilatildeo correlativa ἡ μὲν ndash que se coadunaraacute com o ἡ δὲ de 25 (ἡ δrsquo ὡς) ndash o verso eacute constituiacutedo de duas unidades sintaacuteticas autocircnomas mas subordinadas ao verso 2 pelos pronomes ὅπως e ὡς ademais as duas unidades estatildeo ligadas pela conjunccedilatildeo τε καὶ Vejamos a construccedilatildeo sintaacutetica sem entrar ainda na semacircntica ou seja sem traduzir os termos ἔστιν οὐκ ἔστι e μὴ εἶναι

por um lado (ἡ μὲν) que ldquoArdquo e tambeacutem (τε καὶ) que ldquoBrdquo

A conjunccedilatildeo τε καὶ (e tambeacutem que) indica que temos duas oraccedilotildees as quais pela estrutura de todo o fragmento devem ser completas Devem porque natildeo parece que o sejam vejamo-las separadamente e sem os pronomes

A ἔστιν

B οὐκ ἔστι μὴ εἶναι

A primeira oraccedilatildeo eacute sem sujeito e sem objeto sendo constituiacuteda somen-te pelo verbo a segunda eacute igualmente sem sujeito contudo tem um objeto

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direto A primeira eacute afirmativa enquanto a segunda eacute negativa entretanto a segunda nega uma segunda negaccedilatildeo contida no objeto eacute negaccedilatildeo de negaccedilatildeo

Conjunccedilatildeo correlativa

Pronome relativo sujeito verbo objeto

Verso 23 ἡ μὲνOraccedilatildeo 1 ὅπως mdash ἔστιν mdashOraccedilatildeo 2 ὡς mdash οὐκ ἔστι μὴ εἶναι

Posto que em grego antigo o sujeito ou eacute expliacutecito ou eacute subentendido o grande misteacuterio dessas palavras eacute exatamente que o sujeito natildeo aparece nem expliacutecito e nem subentendido constituindo uma autecircntica anomalia literaacuteria Natildeo conveacutem nesta ocasiatildeo reconstruir a discussatildeo dos vaacuterios estudiosos em relaccedilatildeo a essa falta de nosso lado enfrentaremos a questatildeo por outras provi-decircncias Por enquanto vamos apresentar o resumo das possibilidades de solu-ccedilatildeo reportadas por Cordero (2005) Para o estudioso haacute quatro possibilidades para explicar a anomalia a saber ldquoa) Trata-se de um erro de transmissatildeo de texto se assim for este deve ser corrigido introduzindo o sujeito ausente b) haacute um sujeito conceitual impliacutecito que deve ser buscado no resto do Poema c) natildeo haacute nenhum sujeito possiacutevel e d) o sujeito deve ser extraiacutedo do predicado isolado pois o eacutestin ldquoproduzrdquo o sujeito As quatro possibilidades encontraram defensoresrdquo (CORDERO 2005 p 63)

Natildeo penso que seja o caso de tomar partido agora faremos isso so-mente no fim da nossa anaacutelise por enquanto vamos prosseguir com as nos-sas consideraccedilotildees A primeira delas eacute que as duas oraccedilotildees natildeo satildeo simples-mente conjuntas elas satildeo mais que conjuntas porque reuacutenem uma uacutenica noccedilatildeo em trecircs variaccedilotildees ἔστιν οὐκ ἔστι e μὴ εἶναι satildeo variaccedilotildees do campo semacircntico de εἰμί o verbo ser Seriam simplesmente conjuntas se apresen-tassem verbos e objetos diretos diferentes Naturalmente uma construccedilatildeo desse tipo seria possiacutevel10 e apresentaria duas oraccedilotildees sintaticamente inde-pendentes e conjuntas Poreacutem no nosso caso a construccedilatildeo eacute feita com trecircs formas do mesmo verbo que muito dificilmente tecircm uma conexatildeo apenas conjuntiva Ademais a primeira oraccedilatildeo eacute afirmativa e a segunda duplamente negativa o que faz pensar na estrutura da citaccedilatildeo platocircnica (Soph 237a8 DK B 7 1) a qual natildeo eacute sintaticamente igual mas muito semelhante que nunca os natildeo entes sejam onde tambeacutem uma dupla negaccedilatildeo recusa existecircncia

10 Por exemplo ldquoos uacutenicos caminhos de inqueacuterito a pensar por um lado que examina e que natildeo pretende natildeo avaliarrdquo

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aos natildeo entes implicando apenas variaccedilotildees formais de εἶναι dessa vez com o particiacutepio no neutro plural τὰ ἐοντα que natildeo estaacute presente no fr 211 Esses elementos precisam ser investigados

Vamos comeccedilar pela conjunccedilatildeo12 τε καὶ em geral traduzida por sim-ples conjunccedilatildeo pelos criacuteticos assume aqui um valor mais forte O fato de que seja uma conjunccedilatildeo elimina de iniacutecio a interpretaccedilatildeo do verso 3 como uma disjunccedilatildeo13 Mais que uma conjunccedilatildeo as duas subordinadas satildeo ligadas por uma conexatildeo vital na qual o τε καὶ no sentido de ldquotambeacutemrdquo ou ateacute mesmo ldquoambosrdquo representa a conjunccedilatildeo de uma segunda parte reforccedilando a primeira natildeo porque explica mas simplesmente porque as duas fazem parte de um todo como dois lados de uma mesma moeda14

Vamos deixar de lado por enquanto o primeiro hemistiacutequio e con-siderar somente o segundo O segundo hemistiacutequio de 3 soa assim os uacutenicos caminhos de inqueacuterito a pensar satildeo por um lado que [ldquoArdquo] e tambeacutem que natildeo eacute natildeo-ser O fato singular eacute que aleacutem da repeticcedilatildeo da negaccedilatildeo (natildeohellip natildeo) tem-se tambeacutem a repeticcedilatildeo do verbo εἰμί (eacutehellip ser) Obviamente natildeo se tra-ta de uma ditografia e portanto teremos que diferenciar o primeiro negar (οὐκ ἔστι natildeo eacute) do segundo negar (μὴ εἶναι natildeo-ser) O primeiro negar eacute feito pela partiacutecula negativa οὐκ e o presente do indicativo ἔστι A traduccedilatildeo simples e direta soa natildeo eacute Natildeo parece haver dificuldade quanto agrave traduccedilatildeo em si restando apenas o problema da falta de sujeito Se ldquonatildeo eacuterdquo estaacute certo resta descobrir a que se refere essa negaccedilatildeo e natildeo haacute outro candidato que o seguinte μὴ εἶναι

11 Eacute possiacutevel mostrar (e o fazemos em sede apropriada) que a citaccedilatildeo platocircnica (v 7 2) tem a mesma estrutura do v 2 312 Humbert (1954 p 370) ldquoDrsquoailleurs drsquoune faccedilon geacuteneacuterale une certaine indeacutetermination inseacuteparable de la poeacutesie qui exprime moins qursquoelle ne suggegravere est peu favorable agrave un emploi rigoreux et preacutecis des particulesrdquo13 Alguns interpretam de fato como disjunccedilatildeo ex Mansfeld (1960) em Meijer (1997) p 100 et passim O argumento de Mansfeld parte da consideraccedilatildeo de que o silogismo disjuntivo natildeo precisa de sujeito (aqui o argumento de Parmecircnides natildeo precisaria de um sujeito para o esti) A (ἔστιν) ou B (οὐκ ἔστι μὴ εἶναι)14 Aparentemente (pelo que pude descobrir) natildeo haacute estudos atuais completos sobre as partiacuteculas em grego antigo e parece que o uacuteltimo foi de Denniston (1954) De laacute para caacute as partiacuteculas foram estudadas por trabalhos especiacuteficos e separadamente por aacutereas literaacuterias (eacutepica trageacutedia etc) deixando uma lacuna na poesia onde o uso eacute muito menos rigoroso e oferece maiores dificuldades de interpretaccedilatildeo Um status questionis da problemaacutetica de te kai possivelmente se encontra em um paper do qual por enquanto soacute consegui o abstract Bonifazi (2012)

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Natildeo parece haver atestaccedilatildeo de μὴ εἶναι na poesia eacutepica Pela pesquisa no TLG as primeiras atestaccedilotildees parecem ser da eacutepoca de Parmecircnides se natildeo sucessivas sendo que nesse caso pode ter sido ele o primeiro a usar tal expres-satildeo Mas aguardando resultados filoloacutegicos mais precisos podemos assegurar que a noccedilatildeo de εἶναι contida no segundo negar natildeo deve ser a mesma do primeiro sob pena de gerar uma contradiccedilatildeo de termos incompreensiacutevel mas que justamente nesse sentido aticcedilou a fantasia de muitos criacuteticos Penso por exemplo naqueles que quiseram ver as duas negaccedilotildees apenas no sentido gra-matical15 e acabaram achando o argumento de Parmecircnides fraco ou tautoloacutegi-co quando natildeo inconsistente No entanto o primeiro negar (οὐκ ἔστι) quer negar um outro negar (μὴ) especiacutefico aquele que nega εἶναι

Vou repetir a sequecircncia porque por um lado a accedilatildeo do primeiro negar eacute predicativa e por outro lado a noccedilatildeo predicada eacute maacutexima e acaba por gerar um pequeno desconforto argumentativo O primeiro negar nega um segundo negar aquele que nega εἶναι Ou seja o segundo negar eacute um ldquonegar algo espe-ciacutefico (εἶναι)rdquo O conceito se torna claro se se manteacutem presente o sentido psi-coloacutegico muito mais que o gnosioloacutegico da expressatildeo parmenidiana Negar algo eacute o que fazem ambas as expressotildees tanto do primeiro quanto do segundo negar Todavia o segundo negar eacute a accedilatildeo especiacutefica de negaccedilatildeo de εἶναι a qual eacute uma accedilatildeo da mente eacute um comportamento concreto o comportamento mental de negar εἶναι Parmecircnides argumenta que o caminho persuasivo eacute aquele que nega que se possa ter o comportamento mental especiacutefico de negar εἶναι natildeo eacute possiacutevel (ter o comportamento mental de) negar εἶναι

Esse eacute um ponto que gerou muita confusatildeo Parmecircnides natildeo nega que se possa negar como se ele proacuteprio ao afirmar que o natildeo-ser natildeo eacute estivesse cometendo o maior dos disparates autocontraditoacuterios Satildeo muitiacutessimos os que interpretam Parmecircnides dessa forma e que afinal acabam asseverando que Parmecircnides eacute o filosofo do ser (apenas) Parmecircnides usa gramaticalmente a negaccedilatildeo e tambeacutem a usa gnosiologicamente e epistemicamente Daacute para dizer mais daacute para dizer que ele usa a negaccedilatildeo de forma magistral como poucos souberam usar na histoacuteria da filosofia De fato o segundo hemistiacutequio asseve-ra que haacute um percurso mental que eacute persuasivo (v 4) quando natildeo segue μὴ εἶναι Mais uma vez o percurso mental de inqueacuterito eacute persuasivo quando natildeo

15 Por exemplo C Kahn cuja uacutenica conclusatildeo segundo sua leitura seria ldquoIf we restate Parmenidesrsquo claim in the modern formal mode it might run lsquom knows that prsquo entails lsquoprsquordquo (KAHN 2009 p 153-154)

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se comporta mentalmente negando εἶναι quando natildeo tem a atitude de negar εἶναι Resta descobrir o que eacute εἶναι

O termo εἶναι eacute um infinitivo Como se sabe o infinitivo eacute a expressatildeo verbal depauperada de todo sentido acessoacuterio a ponto que ldquo[c]rsquoest de cette fa-ccedilon neacutegative que lrsquoinfinitif a eacuteteacute deacutefini comme repreacutesentant lrsquoideacutee verbale nuerdquo (HUMBERT 1954 p 125) Os mais variados estudos natildeo conseguiram expli-car de forma convincente um sentido especiacutefico para o uso feito por Parmecircnides Por exemplo The verb ldquoberdquo in ancient Greek (KAHN 2003 passim) um dos estudos mais completos sobre o tema vecirc-se obrigado a atribuir a Parmecircnides um uso supostamente novo mas parece-me de forma improacutepria e desnecessaacuteria16 Eu penso que quando Parmecircnides quis utilizar um novo sentido inventou um novo termo como no caso de to eon (invenccedilatildeo na linha jaacute consolidada de subs-tantivar verbos no gecircnero neutro) Natildeo fez o mesmo com εἶναι e suas demais formas verbais razatildeo pela qual o sentido deve ser buscado nas acepccedilotildees tradicio-nais as quais satildeo muacuteltiplas e equiacutevocas como diraacute mais tarde Aristoacuteteles

No infinitivo εἶναι expressa a ideia geral do verbo num campo se-macircntico que vai desde ldquopresenccedilardquo ateacute a funccedilatildeo predicativa comum a muitas liacutenguas indo-europeias Creio que seja inuacutetil buscar um sentido preciso como ldquoexistirrdquo ou ldquoestar presente localmenterdquo ou outro εἶναι significa tudo isso principalmente porque eacute usado no infinitivo e como objeto Em portuguecircs a palavra que expressa com a mesma equivocidade a pluralidade de sentido numa riqueza proacutexima ao grego eacute o verbo ldquoserrdquo17 Parece-me portanto per-feitamente inuacutetil cercear o sentido a uma uacutenica acepccedilatildeo restriccedilatildeo que acaba gerando interpretaccedilotildees polecircmicas Ateacute mesmo para a acepccedilatildeo de ldquoexistirrdquo se construiacuteram criacuteticas a meu ver improacuteprias pelas quais se chega a discutir se Parmecircnides pensasse ou natildeo que seres natildeo existentes como quimeras e outros

16 Kahn extrai o sentido de εἶναι em Parmecircnides natildeo do uso que o eleata faz mas do contexto geral da mensagem parmenidiana Teoricamente seria um meacutetodo viaacutevel posto que se consiga entender corre-tamente a mensagem do filoacutesofo Na praacutetica no caso do poema de Parmecircnides que verte exatamente sobre εἶναι e seus derivados haacute um risco enorme ndash ao qual em minha visatildeo Kahn sucumbiu ndash de cair num petitio principii onde o sentido de εἶναι eacute extraiacutedo da mensagem filosoacutefica geral (Kahn o extrai de 129 que eacute o ldquoiacutendice parmenidianordquo e portanto poderia oferecer a ideia geral do poema) e por sua vez a mensagem filosoacutefica eacute obtida a partir do sentido de εἶναι Kahn acredita ter encontrado no sentido ldquoveritativordquo o novo uso que Parmecircnides faz de εἶναι17 Para εἰμί o Dicionaacuterio LSJ apresenta sete campos (de A a G) com 16 acepccedilotildees e mais vaacuterias suba-cepccedilotildees Para o verbo ldquoserrdquo o Dicionaacuterio Houaiss apresenta 19 acepccedilotildees das quais 14 verbais e 5 como substantivo as subacepccedilotildees satildeo exemplificadas mas natildeo classificadas

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seres mitoloacutegicos pudessem ser incluiacutedos na leitura predicamental18 Principal-mente eacute necessaacuterio manter a equivocidade do termo porque corresponde agrave forma mentis do autor e natildeo se devem exigir distinccedilotildees que natildeo eram processa-das por aquela cultura sob pena mais uma vez de atribuir aos antigos a nossa proacutepria forma mentis pecado fatal para um historiador da filosofia

Desse modo de iniacutecio a traduccedilatildeo de μὴ εἶναι com ldquonatildeo-serrdquo ateacute mes-mo por ser equiacutevoca (para a nossa sensibilidade) manteacutem a equivocidade proacute-pria da eacutepoca e da liacutengua da eacutepoca Posta entatildeo essa equivocidade precisamos saber se expressa um sentido filosoacutefico antes de tudo para a eacutepoca e depois para noacutes A comparaccedilatildeo de 23 οὐκ ἔστι μὴ εἶναι com 71 Οὐ δαμῇ εἶναι μὴ ἐόντα que eacute o testemunho de Platatildeo nos faz entender que nessas palavras natildeo soacute se encontra um sentido filosoacutefico mas ateacute mesmo o sentido principal da filosofia de Parmecircnides Retomando portanto a construccedilatildeo precisamos entender por que pensar o natildeo-ser (μὴ εἶναι) eacute algo que natildeo eacute possiacutevel ou que natildeo se deve fazer ou que simplesmente natildeo eacute (natildeo acontece) segundo a expressatildeo usada por Parmecircnides οὐκ ἔστι

Aleacutem da traduccedilatildeo simples e imediata haveria outras possibilidades de traduccedilatildeo19 essas variaccedilotildees podem ser interessantes para evidenciar nuances aqui e acolaacute contudo tendo a possibilidade de utilizar o verbo ldquoserrdquo num uso equiacutevoco proacuteximo do grego natildeo precisamos recorrer agrave circunlocuccedilotildees e pode-mos traduzir οὐκ ἔστι com ldquonatildeo eacuterdquo20 e μὴ εἶναι com ldquonatildeo-serrdquo Diz portanto o segundo hemistiacutequio

Os uacutenicos caminhos de inqueacuterito ao pensar satildeo

Por um lado [ldquoArdquo] e que natildeo eacute natildeo-ser

18 De novo Kahn (2009) que assinala ldquoTo take the philosophical objection first it is simply false to say that you cannot think or talk about (point out in speech phrazein) what does not exist And the falseness of this would be obvious to any Greek who reflected for a moment on the profusion of monsters and fantastic creatures in traditional poetry and myth from Pegasus to the children of Gaia with a hundred arms and fifty heads apiecerdquo (HESIOD THEOGONY 150 172) Mais agrave frente ressaltamos que exatamente na questatildeo filosoacutefica Kahn estaacute errado e Parmecircnides estaacute certo eacute impossiacutevel pensar e dizer o natildeo-ser19 Um outro caminho possiacutevel de traduccedilatildeo utilizado principalmente pelos autores de liacutengua inglesa por motivos idiossincraacutesicos da liacutengua eacute empregar uma expressatildeo cuja noccedilatildeo tambeacutem eacute ampliacutessima e equiacutevoca ldquocoisardquo Mas essa expressatildeo por ser um substantivo natildeo possui o aspecto dinacircmico que o verbo tem sendo assim necessaacuterio acrescentar o verbo ser portanto eacute possiacutevel traduzir com ldquoas coisas que satildeordquo Outra possibilidade eacute usar o pronome ldquoquerdquo em sentido predicativo em substituiccedilatildeo de coisa ou coisas Outra ainda eacute o pronome demonstrativo (aquilo isto) ou o indefinido (algo) com a mesma funccedilatildeo substitutiva de coisa(s) no sentido mais indefinido possiacutevel20 Laacute onde em inglecircs haacute obrigatoriedade de explicitar-se o sujeito ldquowhat is notrdquo

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Se tiveacutessemos seguido a ordem metodoloacutegica tradicional ao examinar 23 teriacuteamos analisado primeiro ἔστιν e depois οὐκ ἔστι μὴ εἶναι E se de-pois de estudar o segundo hemistiacutequio voltaacutessemos nossa atenccedilatildeo ao primeiro hemistiacutequio natildeo teriacuteamos ganho metodoloacutegico nenhum pois redundariacuteamos na leitura por pressupostos em que o sentido de ἔστιν eacute obtido pelo pressu-posto de que ἔστιν significa em grego ldquoeacuterdquo todavia dessa maneira se chegaria aos resultados jaacute conhecidos considerados natildeo totalmente satisfatoacuterios pelos proacuteprios autores de cada interpretaccedilatildeo O dado concreto eacute que o poema natildeo oferece nenhuma definiccedilatildeo direta ou indireta de ἔστιν embora apresente mui-tos σήματα de ἐὸν Em compensaccedilatildeo o poema trata amplamente de μὴ εἶναι E natildeo eacute preciso ir muito longe para encontrar referecircncias para a noccedilatildeo de μὴ εἶναι pois observamos muitos dados nos versos de 5 a 8 do nosso fragmento Iremos portanto ao verso 5 e subsequentes

33 OS VERSOS 5 A 8 he drsquoos ouk eacutestin te kaigrave os khreoacuten esti megrave eicircnai

tegraven deacute toi phraacutezo panapeutheacutea eacutemmen atarpoacuten

ouacutete gagraver agravev gnoiacutees toacute ge megrave eograven (ou gagraver anustoacuten)

ouacutete phraacutezais

o outro que natildeo eacute e portanto que eacute preciso natildeo ser

este entatildeo eu te digo eacute atalho de todo incriacutevel

pois nem conhecerias o que natildeo eacute (pois natildeo eacute exequiacutevel)

nem o dirias

Vamos relembrar a letra do verso 5 ἡ δrsquo ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι Haacute uma construccedilatildeo paralela ao verso 3 dois hemistiacutequios no segundo dos quais encontramos nosso μὴ εἶναι No verso seguinte o caminho eacute chamado de παναπευθέα termo que muito fez e faz sofrer os filoacutelogos O sentido geral poreacutem eacute claro quer se queira traduzir como ldquode todo incriacutevelrdquo (CAVALCANTE DE SOUZA 1978) quer como ldquocompletamente inconos-ciblerdquo (CORDERO 2005 p 219) ou ldquowholly without reportrdquo (COXON 2009 p 56) ou como outro Em suma a noccedilatildeo geral eacute de que haacute uma difi-culdade intransponiacutevel em seguir esse caminho e por que eacute explicado a seguir

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Assim como em certa metodologia de exposiccedilatildeo primeiro se enuncia a tese e depois se propotildee o argumento demonstrativo Parmecircnides primeiro enuncia (como conveacutem agrave expressatildeo de uma deusa) e depois diz por quecirc Ora a novida-de cultural eacute exatamente esse porquecirc onde as afirmaccedilotildees natildeo satildeo mais apenas impostas por sua forccedila hieraacutetica mas precisam de explicaccedilotildees21

O nosso primeiro problema eacute que os enunciados (no verso 3 antes no verso 5 agora) natildeo satildeo claros para noacutes Nesse sentido podemos pedir clareza aos argumentos Qual eacute o argumento Eis a resposta de Parmecircnides οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε μὴ ἐὸν (οὐ γὰρ ἀνυστόν) οὔτε φράσαις Aqui a traduccedilatildeo eacute mais clara e natildeo haacute muita divergecircncia entre os criacuteticos pois nem poderias co-nhecer o que natildeo eacute (pois eacute impossiacutevel) nem o dirias Haacute aqui um claro objeto do discurso τό μὴ ἐὸν o qual sem hesitaccedilatildeo desta vez podemos traduzir por ldquoo que natildeo eacuterdquo Sem hesitaccedilatildeo porque τὸ ἐὸν eacute uma expressatildeo desconhecida antes de Parmecircnides aparece com ele eacute estudada por seus disciacutepulos e pelos seus criacuteticos (de Melisso a Aristoacuteteles) e eacute reportada pela doxografia como invenccedilatildeo parmenidiana

A noccedilatildeo exposta por Parmecircnides eacute sequencial o caminho de inqueacuterito que pensa οὐκ ἔστιν aqui chamado de ἀταρπόν natildeo pode ser percorrido porque eacute impossiacutevel ldquoconhecerrdquo (γνοίης ndash segunda pessoa do optativo aoristo ativo de γιγνώσκω) o que natildeo eacute e vamos deixar para depois a questatildeo do di-zer (οὔτε φράσαις) Vamos concentrar nossa atenccedilatildeo sobre γνοίης Para noacutes eacute menos importante a traduccedilatildeo gramaticalmente e estilisticamente precisa e mais importante a precisatildeo da noccedilatildeo filosoacutefica exposta Em relaccedilatildeo a essa pa-lavra houve (e ainda haacute) uma discussatildeo acirrada Discute-se se traduzir por ldquoconhecerrdquo como fazem alguns (COXON 2009 p 56 GALLOP 1984 p 55 TARAacuteN 1965 p 32 e muitos outros) ou ldquoreconhecerrdquo como fazem outros (por exemplo BARNES 1982 p 124) e principalmente que sentido atribuir ao ldquoconhecerrdquo Eu penso que considerado o contexto natildeo se trata do conhecer epistecircmico mas do conhecer gnosioloacutegico ou seja da capacidade que a mente possui de estabelecer um processo de conhecimento E que se trate de processo eacute claro pela vaacuteria terminologia que Parmecircnides usa mas principalmente pela sua ὁδός que ficaraacute para sempre como metaacutefora perfeita dos procedimentos a serem tomados para realizar tarefas de qualquer natureza vindo a receber o nome de meacutetodo

21 Rossetti (2010) A necessidade de explicaccedilotildees natildeo eacute mais soacute dos autores mas tambeacutem da audiecircncia que agora requer argumentos

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Para o meacutetodo do pensar epistecircmico declara Parmecircnides natildeo eacute con-veniente seguir um certo percurso porque sobre ele haacute ao menos uma etapa onde se deve ldquoconhecerrdquo ndash ou seja onde se deve exercer a capacidade gnosioloacute-gica ndash o τό μὴ ἐὸν mas isso eacute impossiacutevel Na verdade tanto o termo ἀνυστόν (reportado por Simpliacutecio) quanto sua variante ἐφικτόν (reportada por Proclo) tecircm um sentido processual quero dizer que a tarefa de pensar o τό μὴ ἐὸν natildeo apresenta uma impossibilidade que se realiza imediatamente mas uma que implica um processo o qual eacute impossiacutevel em sua inteireza porque natildeo pode ser levado a termo De fato ἀνυστός significa ldquoser completadordquo ldquopraticaacutevelrdquo enquanto ἐφικτός significa ldquofaacutecil de alcanccedilarrdquo ldquoacessiacutevelrdquo Ambos os termos tecircm sentido dinacircmico e processual e a negaccedilatildeo que Parmecircnides faz significa que esse processo natildeo pode ser levado a termo

De que processo se trata Em minha visatildeo trata-se do processo concre-to de pensar a negaccedilatildeo do ser Parmecircnides eacute de aacuterea de formaccedilatildeo pitagoacuterica e os pitagoacutericos ndash como assinala Aristoacuteteles (Metaph 986a15-26) ndash naquela eacutepoca estudavam as oposiccedilotildees as mais abstratas tendo passado da oposiccedilatildeo mais antiga entre par e iacutempar correspondentes a limitado e ilimitado (πέρας e ἄπειρον) a um conjunto de dez oposiccedilotildees Nada desabona uma possiacutevel tentativa de Parmecircnides buscar uma oposiccedilatildeo (a qual era feita tambeacutem por negaccedilatildeo como nos evidencia a expressatildeo verbal da oposiccedilatildeo entre πέρας e ἄπειρον com o ldquoαrdquo privativo) para o ldquotodordquo aquele πάντα que encontramos no verso 128 do poema e que em breve transformar-se-ia em φύσις no curso da evoluccedilatildeo histoacuterica dos conceitos filosoacuteficos da antiga Greacutecia

A meditaccedilatildeo do ldquonatildeo-serrdquo eacute das mais interessantes a se fazer na filosofia Tentar ldquopensarrdquo o ldquonatildeo-serrdquo eacute uma experiecircncia profunda a qual leva a conside-raccedilotildees radicais natildeo soacute sobre a existecircncia humana mas sobre a existecircncia como um todo Que Parmecircnides tenha se dedicado a essa meditaccedilatildeo eacute seguro pois ele o diz indiretamente em 22 quando afirma que os uacutenicos caminhos ao pensar satildeo aquele que pensa ἔστιν e aquele que pensa οὐκ ἔστιν O que natildeo sa-bemos e natildeo podemos afirmar com certeza eacute que tipo de meditaccedilatildeo ele reali-zou Eis que os termos ἀνυστόν ou ἐφικτόν vecircm nos socorrer e nos informam que se trata de uma meditaccedilatildeo processual que natildeo acaba Descrevi esse proces-so detalhadamente em outro trabalho (GALGANO 2010) e o repetirei aqui brevemente Pensar o natildeo-ser significa pensar concretamente a negaccedilatildeo do ser concreto (do mundo sensiacutevel ou inteligiacutevel) de cada ser Para tornar mais claro o processo pode-se comeccedilar negando a existecircncia de um ente depois daquilo

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que o rodeia depois do planeta depois do universo (sensiacutevel e inteligiacutevel atual e possiacutevel) e depois do mundo como um todo enfim do todo

O problema principal dessa meditaccedilatildeo eacute exatamente pensar se o sujeito pertence ou natildeo ao todo Quando se pensa a negaccedilatildeo do todo permanece ainda o sujeito pensante que pensa o todo como se o olhasse de um ponto virtual externo a ele E quando se tenta incluir o sujeito pensante de duas uma 1) ou o sujeito acreditando pensar a si proacuteprio dentro do todo reapa-rece externamente22 ou 2) o sujeito cognitivo desaparece e com ele qualquer noccedilatildeo cognitiva de ldquonatildeo-serrdquo Podemos assegurar claramente que o processo de pensar o τό μὴ ἐὸν natildeo termina seja porque eacute impossiacutevel incluir o sujeito no todo pois ele sempre reaparece a cada tentativa seja porque o processo quan-do inclui o sujeito no todo interrompe-se sendo assim impossiacutevel completar a negaccedilatildeo do todo Natildeo podemos saber se o modelo meditativo de Parmecircnides foi exatamente este mas natildeo me parece haver nada em desabono23

Entretanto qual eacute a importacircncia de natildeo se poder pensar a negaccedilatildeo de tudo Seguindo o argumento parmenidiano o caminho (ἀταρπόν) cognitivo que pensa τό μὴ ἐὸν natildeo pode ser concluiacutedo Ora ἀταρπόν eacute um sinocircnimo que Parmecircnides usa para o ὁδός do verso 22 (ὁδοὶ) isso quer dizer que o segundo caminho de inqueacuterito pode ser iniciado mas natildeo pode ser levado a termo Poreacutem se natildeo pode ser levado a termo por que eacute identificado como caminho Por que natildeo eacute excluiacutedo jaacute de iniacutecio quando a deusa ao inveacutes de anunciar os uacutenicos (moucircnai plural) caminhos natildeo anuncia um uacutenico cami-nho A resposta a essa pergunta torna clara a estranha afirmaccedilatildeo de que o caminho do pensar do segundo hemistiacutequio do verso 5 eacute necessaacuterio que per-maneccedila natildeo ser (χρεών ἐστι μὴ εἶναι) Parmecircnides assevera que embora seja um caminho que jamais pode ser completado ele ao mesmo tempo natildeo pode ser eliminado continua a pertencer aos (dois) uacutenicos caminhos de inqueacuterito ele eacute necessaacuterio

22 Se penso na aniquilaccedilatildeo de tudo incluindo a mim mesmo terei que pensar a mim mesmo aniquilado contudo esse pensar gerando esse novo pensamento gera um novo sujeito cognitivo pensante se aniquilo esse novo pensamento terei um novo sujeito cognitivo que pensa essa nova aniquilaccedilatildeo e assim por diante ad infinitum23 Natildeo quero garantir que Parmecircnides estreie uma filosofia do sujeito embora isso natildeo possa ser excluiacutedo a priori jaacute que os embriotildees de uma tal filosofia apareceratildeo em breve com Soacutecrates Acredito que se deve pensar mais no sujeito como o atleta campeatildeo das Olimpiacuteadas ou seja aquele capaz de cumprir (ou natildeo) certas proezas como fica extraordinariamente evidenciado no paradoxo de Zenatildeo cuja metaacutefora da filosofia (e do filoacutesofo) como tartaruga mostra que o pensar filosoacutefico eacute capaz de proezas maiores do que as proezas do proacuteprio Aquiles tidas como insuperaacuteveis pela cultura da eacutepoca

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Vamos de novo reconstruir essa parte do argumento com esse novo elemento os uacutenicos caminhos de inqueacuteritos satildeo

1) por um lado o caminho ao pensar que [versos 3 e 4] e

2) por outro lado o caminho ao pensar que [ldquoCrdquo (verso 5 primeiro hemistiacute-quio)] e que eacute necessaacuterio (que seja) natildeo-ser

De fato esse segundo caminho (ἀταρπόν) eacute inviaacutevel porque ldquonatildeo se consegue levar a cabo a reflexatildeordquo (γνοίης) quando se pensa o τό μὴ ἐὸν Ou seja fica muito clara a equaccedilatildeo entre o segundo caminho (v 5) e a reflexatildeo sobre o natildeo ser (τό μὴ ἐὸν) Finalmente o segundo hemistiacutequio do v 5 diz que esse eacute o caminho ao pensar que eacute necessaacuterio que seja μὴ εἶναι o qual agora sabemos eacute o caminho que tenta pensar o natildeo-ser (τό μὴ ἐὸν) Sabe-mos agora o que Parmecircnides chama de μὴ εἶναι Para Parmecircnides μὴ εἶναι eacute a estrutura do pensamento quando tenta inexoraacutevel e malogradamente pensar o natildeo-ser (τό μὴ ἐὸν)

Temos portanto a semacircntica de μὴ εἶναι e sabemos que significa a impossibilidade de pensar o natildeo-ser Com esse dado podemos reconstruir o resto do argumento mas primeiro vamos abordar a questatildeo do οὔτε φράσαις A premissa principal eacute o pano de fundo da pesquisa parmenidiana a qual estaacute em busca do discurso confiaacutevel como a deusa diz claramente no encerramen-to do fragmento 8 (talvez ecoando simetricamente alguma parte perdida do poema)24 Pensar o τό μὴ ἐὸν natildeo eacute possiacutevel logo ele eacute indiziacutevel Ora isso significa nem mais nem menos que dizer que o que eacute impossiacutevel eacute contra o sentido do dizer Eacute indiziacutevel natildeo porque natildeo se sabe do que se trata como querem muitos autores que fazem a leitura meramente epistemoloacutegica25 Eacute indiziacutevel porque dizer o ldquonatildeo-serrdquo significa fazer uma promessa que jamais se cumpriraacute ao se dizer ldquonatildeo-serrdquo parece que a expressatildeo aponta algo possiacutevel ou seja a negaccedilatildeo do ser e de fato quem estaacute desavisado assim acredita Mas a expressatildeo ldquonatildeo-serrdquo quer referir-se a algo que jamais seraacute cumprido que o

24 850-2 ldquoἐν τῶι σοι παύω πιστὸν λόγον ἠδὲ νόημα ἀμφὶς ἀληθείης δόξας δrsquo ἀπὸ τοῦδε βροτείας μάνθανε κόσμον ἐμῶν ἐπέων ἀπατηλὸν ἀκούωνrdquo ldquoNeste ponto encerro fidedigna palavra e pensamento sobre a verdade e opiniotildees mortais a partir daqui aprende a ordem enganadora de minhas palavras ouvindordquo (CAVALCANTE DE SOUZA 1978)25 Trata-se da leitura epistemoloacutegico-predicamental se natildeo sei a cor de um objeto (porque a cor natildeo eacute natildeo estaacute acessiacutevel ao meu conhecimento) natildeo posso falar da cor do objeto

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O natildeo-ser em Parmecircnides de Eleia Artigos Articles

ser seja negado Esta eacute exatamente a noccedilatildeo expressa pelas palavras de Platatildeo jamais prevaleceraacute que natildeo entes sejam26

A expressatildeo μὴ εἶναι representa essa impossibilidade de pensamento e portanto eacute um dizer impossiacutevel o que se opotildee radicalmente agrave proacutepria noccedilatildeo de dizer a qualquer significar enquanto discurso confiaacutevel do mundo e da sua ordem Surge a pergunta mas se natildeo se pode dizer μὴ εἶναι se isso eacute impossiacute-vel natildeo haacute uma flagrante contradiccedilatildeo na deusa jaacute que ela proacutepria diz e cons-troacutei um argumento sobre o dizer μὴ εἶναι A objeccedilatildeo seria vaacutelida se a deusa dissesse o que eacute impossiacutevel de dizer ou seja se ela praticasse a impossibilidade Todavia a deusa natildeo diz o impossiacutevel a deusa aponta para o impossiacutevel indica o impossiacutevel pois ela diz que existem a ldquonoccedilatildeo de impossibilidade do pensarrdquo e a ldquonoccedilatildeo de impossibilidade do dizerrdquo Em outras palavras a deusa diz qual eacute o limite do pensar e qual eacute o limite do dizer Aleacutem desse limite o pensamento natildeo pode ir porque eacute impossiacutevel e tambeacutem o dizer natildeo pode ir porque eacute im-possiacutevel A impossiacutevel regiatildeo para aleacutem desse limite natildeo eacute admitida pelo dizer eacute contra o dizer eacute contraditoacuteria

A expressatildeo μὴ εἶναι em Parmecircnides eacute exatamente a palavra que ex-pressa o processo mental que noacutes chamamos contradiccedilatildeo e que ele primeiro assim chamou (οὔτε φράσαις natildeo diziacutevel) Eacute estranho que nenhum criacutetico te-nha percebido isso claramente Todos afirmam que o princiacutepio de natildeo contra-diccedilatildeo estaacute implicado em Parmecircnides assim como os outros princiacutepios loacutegicos pois os argumentos presentes no poema satildeo desenvolvidos segundo a natildeo con-tradiccedilatildeo poreacutem o princiacutepio natildeo eacute enunciado Alguns como Cordero veem justamente explicitado o princiacutepio do terceiro excluiacutedo (816 ἔστιν ἢ οὐκ ἔστιν) mas ningueacutem quis ver claramente que natildeo soacute a noccedilatildeo como tambeacutem a proacutepria palavra ldquocontradiccedilatildeordquo (οὔτε φράσαις natildeo diziacutevel contra o diziacutevel contra a dicccedilatildeo) estaacute explicitada no poema Penso que a razatildeo fundamental para que acontecesse esse lapsus tenha que ser procurada na grande atenccedilatildeo dada ao ldquoserrdquo e na pouca dada ao ldquonatildeo-serrdquo Como observaremos mais adiante por causa desse lapsus eu penso que natildeo se conseguiu entender plenamente a estrutura do fragmento 2 o qual simplesmente natildeo apresenta um silogismo disjuntivo nem nenhuma contradiccedilatildeo entre o caminho do ldquoserrdquo e o caminho do ldquonatildeo-serrdquo Parmecircnides assevera justamente que a expressatildeo ldquonatildeo-serrdquo eacute contraditoacuteria o ldquonatildeo-serrdquo natildeo pode ser dito porque ldquonatildeo-serrdquo eacute contraditoacute-

26 As duas expressotildees tecircm inversatildeo de predicado e negaccedilatildeo no entanto a noccedilatildeo permanece a mesma que os entes natildeo sejam (perecimento no fr 8) e que os natildeo entes sejam (nascimento no fr 8) A noccedilatildeo eacute o tracircnsito entre ser e natildeo ser

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GALGANO N S

rio e a expressatildeo ldquonatildeo-serrdquo indica tatildeo somente uma impossibilidade concreta aquela de que se realize o impossiacutevel

Vamos voltar ao nosso argumento e agrave questatildeo que deixamos em suspenso por que eacute necessaacuterio que μὴ εἶναι seja Sabemos que os versos 7 e 8 relatam um processo malogrado de pensar o natildeo ente (τό μὴ ἐὸν) Uso agora a palavra ente porque se justifica uma diferenciaccedilatildeo embora tanto ldquoenterdquo quanto ldquoserrdquo indiquem expressotildees gerais e natildeo individuais ldquoEnterdquo vem por conseguinte a significar o ente concreto aquele que eacute Parmecircnides sustenta que natildeo se pode pensar e dizer τό μὴ ἐὸν o ldquonatildeo enterdquo Esse processo recebe o nome de μὴ εἶναι ldquonatildeo-serrdquo a esse processo noacutes chamamos contradiccedilatildeo27 Entatildeo a indicaccedilatildeo eacute esta haacute um caminho ao pensar que pensa μὴ εἶναι (a contradiccedilatildeo) e eacute necessaacuterio que assim seja porque (vou repetir trecircs vezes de forma diferente28 para significar a mesma coisa)

1) se natildeo houvesse a contradiccedilatildeo

2) se natildeo se tem a noccedilatildeo de contradiccedilatildeo

3) se natildeo se sabe o que eacute contradiccedilatildeo

cai-se no discurso contraditoacuterio o que impede o inqueacuterito confiaacutevel Eacute ne-cessaacuterio saber que μὴ εἶναι (o processo de contradiccedilatildeo) eacute um caminho a ser evitado porque cria pensamentos e discursos contraditoacuterios

Vejamos de novo nosso fragmento com os elementos esclarecidos ateacute aqui

os uacutenicos caminhos de inqueacuterito a pensar satildeo

por um lado que [ versos 3 e 4]

e por outro lado que οὐκ ἔστιν e que eacute necessaacuterio que seja a contradiccedilatildeo (μὴ εἶναι)

a qual eacute um caminho natildeo criacutevel

pois eacute impossiacutevel pensar e dizer o natildeo ente (τό μὴ ἐὸν)

27 Mesmo para noacutes a contradiccedilatildeo eacute um processo porque indica a posiccedilatildeo de algo em contraposiccedilatildeo com mais algo isso significa que esses dois algos tecircm que ser relacionados para que haja contradiccedilatildeo do contraacuterio algo e mais algo podem conviver sem contraditoriedade Contudo esse assunto estaacute fora de tema e requer muitas outras providecircncias para o bom discernimento28 Repito buscando clareza pois nossas construccedilotildees comuns de linguagem nesses assuntos costumam ldquopatinarrdquo

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O natildeo-ser em Parmecircnides de Eleia Artigos Articles

Penso que o espaccedilo conceitual deixado por οὐκ ἔστιν agora se pre-encha quase que por si haacute um caminho de inqueacuterito ao pensar que ldquonatildeo eacuterdquo e que eacute necessaacuterio que se considere contraditoacuterio porque eacute caminho que natildeo leva a lugar nenhum

A expressatildeo οὐκ ἔστιν eacute a negaccedilatildeo da terceira pessoa do indicativo de εἰμί a expressatildeo em si natildeo tem nada de especial significa tatildeo somente ldquonatildeo eacuterdquo restando em aberto o problema da ausecircncia de sujeito Mas agora sabemos o argumento complexo que estaacute na raiz da expressatildeo e a meu ver natildeo faz muito sentido a questatildeo de buscar um sujeito ou um objeto para definir se eacute usado de forma transitiva ou intransitiva se expressa existecircncia ou predicaccedilatildeo e as muitas combinaccedilotildees que podem ser montadas a partir da equivocidade do uso de εἰμί No entanto o acircmbito semacircntico foi evidenciado e estaacute claro e aleacutem do mais tem o testemunho de Platatildeo a confirmar o campo semacircntico da negaccedilatildeo de εἰμί nas vaacuterias formas estaacute relacionado a uma reflexatildeo sobre a impossibili-dade dessa negaccedilatildeo Obviamente para dizer que algo eacute impossiacutevel de alguma forma tenho que indicar essa impossibilidade com alguma expressatildeo Assim se digo ldquotriacircngulo quadradordquo aponto para uma impossibilidade jaacute que por defi-niccedilatildeo a essecircncia do triacircngulo exclui a essecircncia do quadrado logo a expressatildeo ldquotriacircngulo quadradordquo natildeo significa aquilo que parece prometer ou seja natildeo significa uma figura geomeacutetrica especial que eacute ao mesmo tempo triacircngulo e quadrado dizer ldquotriacircngulo quadradordquo eacute dizer algo ldquoindiziacutevelrdquo ldquonatildeo diziacutevelrdquo (na medida em que o diziacutevel quer expressar sentido) ldquoque nega o diziacutevelrdquo ldquoque eacute contra o diziacutevelrdquo que eacute contraditoacuterio

A semacircntica do ldquonatildeo serrdquo eacute fortiacutessima e estaacute muito aleacutem das sutilezas gramaticais morfoloacutegicas e sintaacuteticas e estas simplesmente natildeo afetam aquela O assunto tratado eacute tatildeo forte que ultrapassa qualquer forma linguiacutestica a pon-to de que esse assunto a ordem do ser e do natildeo-ser no mundo eacute responsaacutevel pela determinaccedilatildeo da lei da linguagem e natildeo vice-versa como bem entendeu Platatildeo no Sofista onde a teoria da predicaccedilatildeo surge em funccedilatildeo de uma refle-xatildeo sobre a ordem das leis baacutesicas do mundo Com efeito o approach linguiacutes-tico ao poema pode proceder ateacute certo ponto dali em diante o poema eacute fran-camente filosoacutefico e a chave linguiacutestica natildeo eacute suficiente para o acesso Isso quer dizer que com a chave linguiacutestica natildeo se abre a porta da questatildeo filosoacutefica do poema Se a questatildeo eacute que ldquojamais o natildeo ser pode se tornar serrdquo como (apro-ximadamente com essas palavras) argumenta Platatildeo citando Parmecircnides en-tatildeo diante da semacircntica que οὐκ ἔστιν apresenta discutir o sujeito de οὐκ ἔστιν se torna tarefa menor Considerada a desproporccedilatildeo entre o conteuacutedo (a

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semacircntica) e o recipiente (a palavra) entre o significado e o significante natildeo eacute impossiacutevel que οὐκ ἔστιν seja tatildeo somente uma expressatildeo simplificada quem sabe ateacute mesmo uma simplificaccedilatildeo didaacutetica pois o conteuacutedo do conceito estaacute expresso e justificado depois nos versos 7 e 8

O caminho de pensar que natildeo eacute e de pensar que eacute necessaacuterio natildeo ser eacute o caminho que afirma a necessidade de que a noccedilatildeo de natildeo-ser permaneccedila estaacutevel A contradiccedilatildeo tem que permanecer e ser identificada como tal pois eacute a uacutenica maneira de evitar que ela entre no pensamento e no discurso Se o ldquonatildeo-serrdquo natildeo for considerado contraditoacuterio a contradiccedilatildeo invade e domina o caminho de inqueacuterito o qual deixa de possuir πίστις ἀληθής (130) Assim eacute preciso que esse caminho seja identificado como μὴ εἶναι por um lado o ldquonatildeo-serrdquo eacute incognosciacutevel (οὔτε γὰρ ἂν γνοίης) mas por outro lado eacute neces-saacuterio que se saiba que ele eacute incognosciacutevel Saber do incognosciacutevel garante o conhecimento29 pois de fato ao natildeo se identificar o ldquonatildeo-serrdquo cai-se no risco de pensar que ldquoserrdquo e ldquonatildeo-serrdquo satildeo o mesmo e natildeo o mesmo como Parmecircni-des afirma em DK 6 5-6 Necessariamente o caminho que pensa οὐκ ἔστιν leva ao processo de contradiccedilatildeo (μὴ εἶναι) e a natildeo conclusatildeo do caminho (ἀνυστόν) natildeo eacute evidente na expressatildeo pelo contraacuterio τό μὴ ἐὸν parece uma negaccedilatildeo comum como qualquer outra poreacutem natildeo o eacute por isso eacute um saber destinado ao saacutebio e natildeo aos mortais porque eacute um saber fruto de uma reflexatildeo

34 DE VOLTA AOS VERSOS 3 E 4

Penso que podemos agora voltar ao verso 23 ao nosso segundo he-mistiacutequio onde aparece a expressatildeo μὴ εἶναι da qual jaacute temos a semacircntica Podemos entatildeo reconstruir ldquoos uacutenicos caminhos de inqueacuterito a pensar satildeo

por um lado a pensar que [ldquoArdquo] e tambeacutem a pensar que οὐκ ἔστι μὴ εἶναι este eacute caminho de persuasatildeo pois verdade acompanha e

por outro lado a pensar que ldquonatildeo eacuterdquo e tambeacutem a pensar que eacute necessariamente um percurso de pensamento contraditoacuterio porque eacute um caminho ldquoimpossiacutevelrdquo (παναπευθέα) pois o pensamento do ldquonatildeo enterdquo natildeo pode ser completado

O οὐκ ἔστι do verso 3 parece ser diferente do οὐκ ἔστιν do verso 5 Enquanto no 5 ele eacute quase que o nome do caminho (talvez uma simplificaccedilatildeo didaacutetica) no 3 parece significar simplesmente ldquonatildeo eacuterdquo em sentido comum

29 Estaacute aqui uma semente do socratismo

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O natildeo-ser em Parmecircnides de Eleia Artigos Articles

predicativo De fato esse eacute o caminho da persuasatildeo e portanto eacute o caminho do pensamento natildeo-contraditoacuterio Ali a persuasatildeo era impossiacutevel pela con-tradiccedilatildeo aqui eacute possiacutevel pela natildeo-contradiccedilatildeo Sabemos que a expressatildeo μὴ εἶναι eacute a expressatildeo da contradiccedilatildeo suprema de sorte que a natildeo-contradiccedilatildeo eacute a negaccedilatildeo de μὴ εἶναι A traduccedilatildeo de οὐκ ἔστι fica faacutecil embora para a nossa sensibilidade possa parecer algo improacuteprio usar duas vezes οὐκ ἔστι de forma natildeo perfeitamente uniacutevoca a dois versos de distacircncia Logo para o segundo hemistiacutequio do v 3 mantenho esta traduccedilatildeo ldquonatildeo eacuterdquo em parte ambiacutegua para nossas exigecircncias mas que soa perfeitamente harmocircnica com o discurso par-menidiano [] ao pensar que [ldquoArdquo] e que natildeo eacute ldquocontradiccedilatildeordquo (μὴ εἶναι)

Acredito por fim que podemos abordar facilmente o ἔστιν do verso 3 que tanto fez e faz penar os estudiosos de Parmecircnides Aqui de novo a grandeza da questatildeo cosmoloacutegica envolvida ndash a coerecircncia eou a contradito-riedade do real ndash simplesmente torna tatildeo minuacutescula a questatildeo do sujeito de ἔστιν que ela quase desaparece Eu tenho a tendecircncia a pensar que a falta de sujeito seja uma simplificaccedilatildeo didaacutetica30 cuja irregularidade linguiacutestica ajuda na memorizaccedilatildeo31 Todavia afinal tomo partido e entro tambeacutem no quarto grupo daqueles listados por Cordero o sujeito deve ser extraiacutedo do predicado isolado pois ἔστιν produz o sujeito32 De qualquer forma o sentido filosoacutefico eacute preciso haacute um caminho de inqueacuterito ao pensar que eacute aquele que pensa o ldquoeacuterdquo esse mesmo caminho eacute aquele ao pensar que natildeo eacute (e natildeo pode ser33) ldquocon-tradiccedilatildeordquo Depois haacute um outro caminho aquele ao pensar que ldquonatildeo eacuterdquo que eacute o caminho ao pensar que leva necessariamente agrave contradiccedilatildeo O primeiro eacute o 30 Segundo o relato platocircnico no diaacutelogo Parmecircnides Zenatildeo acompanhado de seu mestre foi para as Panateneias com a finalidade de defender a filosofia de seu mestre esclarecendo com seu livro repleto de paradoxos as ideias parmenidianas Isso sugere que o poema natildeo expunha articuladamente a filosofia de Parmecircnides mas que constituiacutesse um proacute-memoacuteria com as ideias em sua forma essencial depois elaboradas nas aulas pessoais (KURFESS 2012)31 Eacute extraordinaacuterio como essa simplificaccedilatildeo didaacutetica continue ativa por um lado distorcendo entretanto por outro mantendo viva a mensagem parmenidiana em todas as escolas de ensino meacutedio onde se estuda filosofia vox populi Parmecircnides eacute o filoacutesofo que disse ldquoO que eacute eacute e o que natildeo eacute natildeo eacuterdquo Por outro lado o estrangeiro de Eleia no Sofista lembra outro verso e natildeo este32 Essa questatildeo natildeo aprofundada aqui natildeo possui relevacircncia filosoacutefica no argumento apresentado pode ter relevacircncia se se considera o tipo de reflexatildeo ou seja se se discute a ldquoexperiecircnciardquo do natildeo-ser e principalmente a experiecircncia concreta de Parmecircnides que talvez esteja ligada a praacuteticas de incubaccedilatildeo Nesse caso a dimensatildeo reflexiva adentra a dimensatildeo oniacuterica a qual possui outra sintaxe e onde um simples ἔστιν vale mais de mil articulaccedilotildees sintaacuteticas Natildeo sabemos com certeza dessas praacuteticas em Eleia contudo esse sentido preacute-sintaacutetico natildeo estaacute descartado inclusive alguns estudiosos entre os quais o proacuteprio Cordero atribuem ao ἔστιν o sentido de um grito como um Eureka Sugestotildees nesse sentido se encontram na minha dissertaccedilatildeo sobre Melisso (GALGANO 2010)33 A interpretaccedilatildeo modal eacute tambeacutem perfeitamente coerente aqui

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caminho que estabelece o discurso coerente (persuasivo) e o segundo natildeo leva a lugar nenhum e deve ser evitado Mas para que se saiba o que deve ser evi-tado eacute preciso que se conheccedila a impossibilidade do segundo caminho A fim de que se possa seguir o primeiro caminho eacute necessaacuterio saber que existe um outro sempre agrave espreita o qual parece oferecer a verdade mas que natildeo oferece uma verdade confiaacutevel que leva necessariamente agrave contradiccedilatildeo de pensamento e de expressatildeo linguiacutestica

4 O MEacuteTODO DA NAtildeO-CONTRADICcedilAtildeO

Parmecircnides provavelmente a partir de sugestotildees pitagoacutericas medita sobre a oposiccedilatildeo ao que existe e assim descobre o ldquonatildeo-serrdquo Descobre que ldquonatildeo serrdquo ou seja negar o ser negar o que haacute eacute de todo impossiacutevel (natildeo eacute possiacutevel completamente) Entende entatildeo que o ldquonatildeo-serrdquo essa impossibilidade eacute algo que a mente pensa julgando que esse pensamento leva por um caminho mas que na verdade ele descobre leva por outro caminho aquele que nunca che-ga a lugar nenhum Esse caminho que leva para lugar nenhum eacute o caminho dos mortais os quais confundem ser e natildeo ser No entanto o saacutebio deve saber distinguir por um lado o caminho do ldquoeacuterdquo que eacute o caminho do discurso natildeo contraditoacuterio e por outro lado o caminho do ldquonatildeo eacuterdquo que eacute o caminho do discurso que eacute tornado vatildeo pela contradiccedilatildeo

Parmecircnides descobre a contradiccedilatildeo (pela meditaccedilatildeo sobre o natildeo-ser) e percebe que ela eacute motivo de descaminho no discurso sobre o mundo Assim finalmente ele anuncia que a contradiccedilatildeo deve ser evitada A esse enunciado noacutes chamamos de princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo que aqui eacute aquele na versatildeo de Parmecircnides (depois a partir de Platatildeo e Aristoacuteteles haveraacute outras versotildees) Parmecircnides trabalha em acircmbito cosmoloacutegico e sua preocupaccedilatildeo ndash como os de seus colegas na eacutepoca ndash eacute com o mundo com a totalidade das coisas com os πάντα de seu proecircmio (128) Nesse acircmbito cosmoloacutegico descobre que haacute um princiacutepio do mundo pelo qual se daacute uma impossibilidade a contradiccedilatildeo A contradiccedilatildeo eacute um princiacutepio porque o que haacute (πάντα) enquanto todo escapa agrave negaccedilatildeo total Eis que a contradiccedilatildeo eacute princiacutepio tanto quanto a natildeo-contra-diccedilatildeo porque eacute a contradiccedilatildeo que permite a natildeo-contradiccedilatildeo Sem a noccedilatildeo de contradiccedilatildeo se anda com sentidos incertos como os mortais

O valor dessa afirmaccedilatildeo eacute historicamente inabalaacutevel porque Parmecircni-des partindo de um discurso sobre o mundo como que visto de fora por um observador (como Anaximandro via o mundo olhando seu pinax - cf ROS-

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SETTI 2013) alcanccedila um discurso que inclui o observador enquanto obser-vador estreando assim antes de tudo um discurso sobre os entes (ontologia) todos os entes incluindo os entes de pensamento (veja-se o famoso fragmento 3 onde se lecirc que pensar e ser satildeo o mesmo) Para ele o saacutebio natildeo eacute mais aquele que sabe soacute sobre as coisas externas ndash como o antigo xamatilde cuja figura indi-vidual se dissolve na mera intermediaccedilatildeo com o divino ndash poreacutem eacute tambeacutem aquele que consegue pensar sobre as coisas externas ou seja aquele que tem um domiacutenio cognitivo sobre os pensamentos de inqueacuterito e portanto sabe so-bre si mesmo Assim o saacutebio deve pensar por proacutepria conta e julgar pelo novo criteacuterio e natildeo pelo habitual discurso (κρῖναι δὲ λόγωι DK 75) ou seja natildeo deve julgar pelo discurso mas julgar o discurso porque agora o discurso enri-quecido de uma lei universal (a lei das αρχάι ἔστιν e οὐκ ἔστιν) possui uma medida de juiacutezo Parmecircnides amplia o mundo acrescentando ao mundo fiacutesico os mundos do pensamento e da linguagem Eis porque as αρχάι de Parmecircni-des sendo duas permanecem duas justamente eliminado uma delas deixando alguns criacuteticos enlouquecidos na discussatildeo sobre o monismo ou o dualismo de acordo com Parmecircnides o mundo eacute um todavia os sentidos nos enganam natildeo na pluralidade das coisas mas no argumento a respeito da pluralidade das coisas e principalmente ndash aspecto que ele discute explicitamente ndash a respeito do devir das coisas Haacute um princiacutepio que natildeo pode ser eliminado a contra-diccedilatildeo o qual eacute um princiacutepio de erro humano quando se elimina quando se desconsidera quando se faz de conta que natildeo existe a contradiccedilatildeo se instaura quando o princiacutepio eacute levado em conta a contradiccedilatildeo pode ser evitada

Eacute uma conceituaccedilatildeo esdruacutexula para noacutes tambeacutem porque temos que ter (a noccedilatildeo de) a contradiccedilatildeo para eliminar a contradiccedilatildeo temos que saber o que eacute contradiccedilatildeo para que possamos perceber quando o discurso eacute con-traditoacuterio Esses conceitos satildeo misteriosos ateacute agora e satildeo estranhas criaturas de nossas mentes Por exemplo a noccedilatildeo de ldquoimpossiacutevelrdquo obviamente (isto eacute para a nossa pragmaacutetica) natildeo se refere a nada de concreto no entanto temos essa noccedilatildeo e a usamos com o maacuteximo proveito outro exemplo a noccedilatildeo de ldquoinfinitordquo noccedilatildeo que natildeo se refere a algo pragmaticamente concreto mas que usamos igualmente com maacuteximo proveito O mesmo deve ser dito da noccedilatildeo de contradiccedilatildeo ou da noccedilatildeo de nada absoluto que usamos pragmaticamente com maior ou menor proveito

Parmecircnides encontra esse caminho e o expotildee Eacute um caminho assom-broso anti-intuitivo mas incontestaacutevel Dessa forma natildeo eacute de estranhar se a soluccedilatildeo platocircnica eacute a eliminaccedilatildeo fiacutesica da noccedilatildeo de nada absoluto (o par-

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GALGANO N S

riciacutedio) com sucessivo ldquoadeusrdquo34 achando de tecirc-lo ultrapassado Mas o nada absoluto enquanto noccedilatildeo contraditoacuteria permanece Assim como permane-ce a explicaccedilatildeo defeituosa do devir o qual assim como o conhecemos uma passagem do nada ao ser no nascimento e do ser ao nada no perecimento estaacute mal explicado Daqui por diante os comentaacuterios filosoacuteficos possiacuteveis satildeo inuacutemeros por conseguinte paro meu estudo neste ponto e proponho a versatildeo do fragmento 2 segundo a conceituaccedilatildeo apresentada ateacute aqui alterando de pouco a excelente versatildeo baacutesica de Cavalcante de Souza

Pois bem eu te direi e tu recebe a palavra que ouviste

os uacutenicos caminhos de inqueacuterito que satildeo a pensar

o primeiro que eacute e portanto que natildeo eacute (o caminho da) contradiccedilatildeo

de persuasatildeo eacute o caminho (pois agrave verdade acompanha)

o outro que natildeo eacute e portanto que eacute necessariamente (o caminho da) contradiccedilatildeo

este entatildeo eu te digo eacute atalho de todo incriacutevel

pois nem conhecerias o que natildeo eacute (pois natildeo eacute exequiacutevel)

nem o dirias

GALGANO N S Non-being in Parmenides of Elea Transformaccedilatildeo Mariacutelia v 41 n 2 p 9-36 AbrJun 2018

ABSTRACT In fragment DK 28 B 2 of his poem Parmenides presents his method for distinguishing true persuasion from the lack of true persuasion His famous proposal of these two ways of thinking form a complex statement of a system that intends to guarantee the veracity of statements in order to obtain reliable discourse the only discourse capable of true persuasion The present paper shows that the central role in Parmenidian argumentation is attributed to non-being a notion derived from a reflection on the impossibility of the negation of being Thus the whole fragment is interpreted in terms of this central notion We show that Parmenides discovered the impossibility of negation which we now call lsquocontradictionrsquo and that he articulated the means for avoiding contradiction in thought and discourse a rule which today we call the principle of non-contradiction The study presented here is a detailed investigation of the notion of non-being in the DK 28 B 2 fragment and includes a new translation of it

KEYWORDS Parmenides Non-being Non-contradiction Eleatism Parricide

34 Platatildeo Soph 258e7-259a1 ἡμεῖς γὰρ περὶ μὲν ἐναντίου τινὸς αὐτῷ χαίρειν πάλαι λέγομεν εἴτrsquo ἔστιν εἴτε μή λόγον ἔχον ἢ καὶ παντάπασιν ἄλογον

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O natildeo-ser em Parmecircnides de Eleia Artigos Articles

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dadeira mas aquele caminho enfim que anda com a verdade Vamos agora voltar ao verso 3

Natildeo se pode isolar o verso 3 ἡ μὲν ὅπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι do anterior verso 2 (e nem do seu correlativo verso 5) e portanto natildeo se pode esquecer que trata de um caminho ou seja de um elemento di-nacircmico No entanto a primeira coisa que salta aos olhos eacute que todas as noccedilotildees envolvidas satildeo estaacuteticas e natildeo haacute nenhum elemento dinacircmico ou sequencial ou de qualquer natureza minimamente motora O sentido desse ponto de vista eacute que o pensar o ldquoἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναιrdquo natildeo eacute o pensar de um momento mas um pensar que segue por um caminho Ou seja significa que no percurso seguido pelo pensar para que o inqueacuterito seja de verdadeira per-suasatildeo o ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι deve ser constante Essa noccedilatildeo eacute estrutural o caminho de inqueacuterito a pensar deve conter uma constante vaacutelida em qualquer momento e passagem do caminho O fato de ser a afirmaccedilatildeo de uma constante (estaacutetica) numa dimensatildeo de caminho (dinacircmica) reforccedila a ideia de algo externo e de natureza fixa a ser aplicado a algo de natureza pro-cessual ou seja eacute uma lei porque a noccedilatildeo de lei expressa tambeacutem as relaccedilotildees fixas entre as dinacircmicas de elementos de um ou mais processos

Vamos observar a estrutura sintaacutetica do verso mais de perto ἡ μὲν ὅπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι Depois da conjunccedilatildeo correlativa ἡ μὲν ndash que se coadunaraacute com o ἡ δὲ de 25 (ἡ δrsquo ὡς) ndash o verso eacute constituiacutedo de duas unidades sintaacuteticas autocircnomas mas subordinadas ao verso 2 pelos pronomes ὅπως e ὡς ademais as duas unidades estatildeo ligadas pela conjunccedilatildeo τε καὶ Vejamos a construccedilatildeo sintaacutetica sem entrar ainda na semacircntica ou seja sem traduzir os termos ἔστιν οὐκ ἔστι e μὴ εἶναι

por um lado (ἡ μὲν) que ldquoArdquo e tambeacutem (τε καὶ) que ldquoBrdquo

A conjunccedilatildeo τε καὶ (e tambeacutem que) indica que temos duas oraccedilotildees as quais pela estrutura de todo o fragmento devem ser completas Devem porque natildeo parece que o sejam vejamo-las separadamente e sem os pronomes

A ἔστιν

B οὐκ ἔστι μὴ εἶναι

A primeira oraccedilatildeo eacute sem sujeito e sem objeto sendo constituiacuteda somen-te pelo verbo a segunda eacute igualmente sem sujeito contudo tem um objeto

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direto A primeira eacute afirmativa enquanto a segunda eacute negativa entretanto a segunda nega uma segunda negaccedilatildeo contida no objeto eacute negaccedilatildeo de negaccedilatildeo

Conjunccedilatildeo correlativa

Pronome relativo sujeito verbo objeto

Verso 23 ἡ μὲνOraccedilatildeo 1 ὅπως mdash ἔστιν mdashOraccedilatildeo 2 ὡς mdash οὐκ ἔστι μὴ εἶναι

Posto que em grego antigo o sujeito ou eacute expliacutecito ou eacute subentendido o grande misteacuterio dessas palavras eacute exatamente que o sujeito natildeo aparece nem expliacutecito e nem subentendido constituindo uma autecircntica anomalia literaacuteria Natildeo conveacutem nesta ocasiatildeo reconstruir a discussatildeo dos vaacuterios estudiosos em relaccedilatildeo a essa falta de nosso lado enfrentaremos a questatildeo por outras provi-decircncias Por enquanto vamos apresentar o resumo das possibilidades de solu-ccedilatildeo reportadas por Cordero (2005) Para o estudioso haacute quatro possibilidades para explicar a anomalia a saber ldquoa) Trata-se de um erro de transmissatildeo de texto se assim for este deve ser corrigido introduzindo o sujeito ausente b) haacute um sujeito conceitual impliacutecito que deve ser buscado no resto do Poema c) natildeo haacute nenhum sujeito possiacutevel e d) o sujeito deve ser extraiacutedo do predicado isolado pois o eacutestin ldquoproduzrdquo o sujeito As quatro possibilidades encontraram defensoresrdquo (CORDERO 2005 p 63)

Natildeo penso que seja o caso de tomar partido agora faremos isso so-mente no fim da nossa anaacutelise por enquanto vamos prosseguir com as nos-sas consideraccedilotildees A primeira delas eacute que as duas oraccedilotildees natildeo satildeo simples-mente conjuntas elas satildeo mais que conjuntas porque reuacutenem uma uacutenica noccedilatildeo em trecircs variaccedilotildees ἔστιν οὐκ ἔστι e μὴ εἶναι satildeo variaccedilotildees do campo semacircntico de εἰμί o verbo ser Seriam simplesmente conjuntas se apresen-tassem verbos e objetos diretos diferentes Naturalmente uma construccedilatildeo desse tipo seria possiacutevel10 e apresentaria duas oraccedilotildees sintaticamente inde-pendentes e conjuntas Poreacutem no nosso caso a construccedilatildeo eacute feita com trecircs formas do mesmo verbo que muito dificilmente tecircm uma conexatildeo apenas conjuntiva Ademais a primeira oraccedilatildeo eacute afirmativa e a segunda duplamente negativa o que faz pensar na estrutura da citaccedilatildeo platocircnica (Soph 237a8 DK B 7 1) a qual natildeo eacute sintaticamente igual mas muito semelhante que nunca os natildeo entes sejam onde tambeacutem uma dupla negaccedilatildeo recusa existecircncia

10 Por exemplo ldquoos uacutenicos caminhos de inqueacuterito a pensar por um lado que examina e que natildeo pretende natildeo avaliarrdquo

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aos natildeo entes implicando apenas variaccedilotildees formais de εἶναι dessa vez com o particiacutepio no neutro plural τὰ ἐοντα que natildeo estaacute presente no fr 211 Esses elementos precisam ser investigados

Vamos comeccedilar pela conjunccedilatildeo12 τε καὶ em geral traduzida por sim-ples conjunccedilatildeo pelos criacuteticos assume aqui um valor mais forte O fato de que seja uma conjunccedilatildeo elimina de iniacutecio a interpretaccedilatildeo do verso 3 como uma disjunccedilatildeo13 Mais que uma conjunccedilatildeo as duas subordinadas satildeo ligadas por uma conexatildeo vital na qual o τε καὶ no sentido de ldquotambeacutemrdquo ou ateacute mesmo ldquoambosrdquo representa a conjunccedilatildeo de uma segunda parte reforccedilando a primeira natildeo porque explica mas simplesmente porque as duas fazem parte de um todo como dois lados de uma mesma moeda14

Vamos deixar de lado por enquanto o primeiro hemistiacutequio e con-siderar somente o segundo O segundo hemistiacutequio de 3 soa assim os uacutenicos caminhos de inqueacuterito a pensar satildeo por um lado que [ldquoArdquo] e tambeacutem que natildeo eacute natildeo-ser O fato singular eacute que aleacutem da repeticcedilatildeo da negaccedilatildeo (natildeohellip natildeo) tem-se tambeacutem a repeticcedilatildeo do verbo εἰμί (eacutehellip ser) Obviamente natildeo se tra-ta de uma ditografia e portanto teremos que diferenciar o primeiro negar (οὐκ ἔστι natildeo eacute) do segundo negar (μὴ εἶναι natildeo-ser) O primeiro negar eacute feito pela partiacutecula negativa οὐκ e o presente do indicativo ἔστι A traduccedilatildeo simples e direta soa natildeo eacute Natildeo parece haver dificuldade quanto agrave traduccedilatildeo em si restando apenas o problema da falta de sujeito Se ldquonatildeo eacuterdquo estaacute certo resta descobrir a que se refere essa negaccedilatildeo e natildeo haacute outro candidato que o seguinte μὴ εἶναι

11 Eacute possiacutevel mostrar (e o fazemos em sede apropriada) que a citaccedilatildeo platocircnica (v 7 2) tem a mesma estrutura do v 2 312 Humbert (1954 p 370) ldquoDrsquoailleurs drsquoune faccedilon geacuteneacuterale une certaine indeacutetermination inseacuteparable de la poeacutesie qui exprime moins qursquoelle ne suggegravere est peu favorable agrave un emploi rigoreux et preacutecis des particulesrdquo13 Alguns interpretam de fato como disjunccedilatildeo ex Mansfeld (1960) em Meijer (1997) p 100 et passim O argumento de Mansfeld parte da consideraccedilatildeo de que o silogismo disjuntivo natildeo precisa de sujeito (aqui o argumento de Parmecircnides natildeo precisaria de um sujeito para o esti) A (ἔστιν) ou B (οὐκ ἔστι μὴ εἶναι)14 Aparentemente (pelo que pude descobrir) natildeo haacute estudos atuais completos sobre as partiacuteculas em grego antigo e parece que o uacuteltimo foi de Denniston (1954) De laacute para caacute as partiacuteculas foram estudadas por trabalhos especiacuteficos e separadamente por aacutereas literaacuterias (eacutepica trageacutedia etc) deixando uma lacuna na poesia onde o uso eacute muito menos rigoroso e oferece maiores dificuldades de interpretaccedilatildeo Um status questionis da problemaacutetica de te kai possivelmente se encontra em um paper do qual por enquanto soacute consegui o abstract Bonifazi (2012)

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Natildeo parece haver atestaccedilatildeo de μὴ εἶναι na poesia eacutepica Pela pesquisa no TLG as primeiras atestaccedilotildees parecem ser da eacutepoca de Parmecircnides se natildeo sucessivas sendo que nesse caso pode ter sido ele o primeiro a usar tal expres-satildeo Mas aguardando resultados filoloacutegicos mais precisos podemos assegurar que a noccedilatildeo de εἶναι contida no segundo negar natildeo deve ser a mesma do primeiro sob pena de gerar uma contradiccedilatildeo de termos incompreensiacutevel mas que justamente nesse sentido aticcedilou a fantasia de muitos criacuteticos Penso por exemplo naqueles que quiseram ver as duas negaccedilotildees apenas no sentido gra-matical15 e acabaram achando o argumento de Parmecircnides fraco ou tautoloacutegi-co quando natildeo inconsistente No entanto o primeiro negar (οὐκ ἔστι) quer negar um outro negar (μὴ) especiacutefico aquele que nega εἶναι

Vou repetir a sequecircncia porque por um lado a accedilatildeo do primeiro negar eacute predicativa e por outro lado a noccedilatildeo predicada eacute maacutexima e acaba por gerar um pequeno desconforto argumentativo O primeiro negar nega um segundo negar aquele que nega εἶναι Ou seja o segundo negar eacute um ldquonegar algo espe-ciacutefico (εἶναι)rdquo O conceito se torna claro se se manteacutem presente o sentido psi-coloacutegico muito mais que o gnosioloacutegico da expressatildeo parmenidiana Negar algo eacute o que fazem ambas as expressotildees tanto do primeiro quanto do segundo negar Todavia o segundo negar eacute a accedilatildeo especiacutefica de negaccedilatildeo de εἶναι a qual eacute uma accedilatildeo da mente eacute um comportamento concreto o comportamento mental de negar εἶναι Parmecircnides argumenta que o caminho persuasivo eacute aquele que nega que se possa ter o comportamento mental especiacutefico de negar εἶναι natildeo eacute possiacutevel (ter o comportamento mental de) negar εἶναι

Esse eacute um ponto que gerou muita confusatildeo Parmecircnides natildeo nega que se possa negar como se ele proacuteprio ao afirmar que o natildeo-ser natildeo eacute estivesse cometendo o maior dos disparates autocontraditoacuterios Satildeo muitiacutessimos os que interpretam Parmecircnides dessa forma e que afinal acabam asseverando que Parmecircnides eacute o filosofo do ser (apenas) Parmecircnides usa gramaticalmente a negaccedilatildeo e tambeacutem a usa gnosiologicamente e epistemicamente Daacute para dizer mais daacute para dizer que ele usa a negaccedilatildeo de forma magistral como poucos souberam usar na histoacuteria da filosofia De fato o segundo hemistiacutequio asseve-ra que haacute um percurso mental que eacute persuasivo (v 4) quando natildeo segue μὴ εἶναι Mais uma vez o percurso mental de inqueacuterito eacute persuasivo quando natildeo

15 Por exemplo C Kahn cuja uacutenica conclusatildeo segundo sua leitura seria ldquoIf we restate Parmenidesrsquo claim in the modern formal mode it might run lsquom knows that prsquo entails lsquoprsquordquo (KAHN 2009 p 153-154)

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se comporta mentalmente negando εἶναι quando natildeo tem a atitude de negar εἶναι Resta descobrir o que eacute εἶναι

O termo εἶναι eacute um infinitivo Como se sabe o infinitivo eacute a expressatildeo verbal depauperada de todo sentido acessoacuterio a ponto que ldquo[c]rsquoest de cette fa-ccedilon neacutegative que lrsquoinfinitif a eacuteteacute deacutefini comme repreacutesentant lrsquoideacutee verbale nuerdquo (HUMBERT 1954 p 125) Os mais variados estudos natildeo conseguiram expli-car de forma convincente um sentido especiacutefico para o uso feito por Parmecircnides Por exemplo The verb ldquoberdquo in ancient Greek (KAHN 2003 passim) um dos estudos mais completos sobre o tema vecirc-se obrigado a atribuir a Parmecircnides um uso supostamente novo mas parece-me de forma improacutepria e desnecessaacuteria16 Eu penso que quando Parmecircnides quis utilizar um novo sentido inventou um novo termo como no caso de to eon (invenccedilatildeo na linha jaacute consolidada de subs-tantivar verbos no gecircnero neutro) Natildeo fez o mesmo com εἶναι e suas demais formas verbais razatildeo pela qual o sentido deve ser buscado nas acepccedilotildees tradicio-nais as quais satildeo muacuteltiplas e equiacutevocas como diraacute mais tarde Aristoacuteteles

No infinitivo εἶναι expressa a ideia geral do verbo num campo se-macircntico que vai desde ldquopresenccedilardquo ateacute a funccedilatildeo predicativa comum a muitas liacutenguas indo-europeias Creio que seja inuacutetil buscar um sentido preciso como ldquoexistirrdquo ou ldquoestar presente localmenterdquo ou outro εἶναι significa tudo isso principalmente porque eacute usado no infinitivo e como objeto Em portuguecircs a palavra que expressa com a mesma equivocidade a pluralidade de sentido numa riqueza proacutexima ao grego eacute o verbo ldquoserrdquo17 Parece-me portanto per-feitamente inuacutetil cercear o sentido a uma uacutenica acepccedilatildeo restriccedilatildeo que acaba gerando interpretaccedilotildees polecircmicas Ateacute mesmo para a acepccedilatildeo de ldquoexistirrdquo se construiacuteram criacuteticas a meu ver improacuteprias pelas quais se chega a discutir se Parmecircnides pensasse ou natildeo que seres natildeo existentes como quimeras e outros

16 Kahn extrai o sentido de εἶναι em Parmecircnides natildeo do uso que o eleata faz mas do contexto geral da mensagem parmenidiana Teoricamente seria um meacutetodo viaacutevel posto que se consiga entender corre-tamente a mensagem do filoacutesofo Na praacutetica no caso do poema de Parmecircnides que verte exatamente sobre εἶναι e seus derivados haacute um risco enorme ndash ao qual em minha visatildeo Kahn sucumbiu ndash de cair num petitio principii onde o sentido de εἶναι eacute extraiacutedo da mensagem filosoacutefica geral (Kahn o extrai de 129 que eacute o ldquoiacutendice parmenidianordquo e portanto poderia oferecer a ideia geral do poema) e por sua vez a mensagem filosoacutefica eacute obtida a partir do sentido de εἶναι Kahn acredita ter encontrado no sentido ldquoveritativordquo o novo uso que Parmecircnides faz de εἶναι17 Para εἰμί o Dicionaacuterio LSJ apresenta sete campos (de A a G) com 16 acepccedilotildees e mais vaacuterias suba-cepccedilotildees Para o verbo ldquoserrdquo o Dicionaacuterio Houaiss apresenta 19 acepccedilotildees das quais 14 verbais e 5 como substantivo as subacepccedilotildees satildeo exemplificadas mas natildeo classificadas

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seres mitoloacutegicos pudessem ser incluiacutedos na leitura predicamental18 Principal-mente eacute necessaacuterio manter a equivocidade do termo porque corresponde agrave forma mentis do autor e natildeo se devem exigir distinccedilotildees que natildeo eram processa-das por aquela cultura sob pena mais uma vez de atribuir aos antigos a nossa proacutepria forma mentis pecado fatal para um historiador da filosofia

Desse modo de iniacutecio a traduccedilatildeo de μὴ εἶναι com ldquonatildeo-serrdquo ateacute mes-mo por ser equiacutevoca (para a nossa sensibilidade) manteacutem a equivocidade proacute-pria da eacutepoca e da liacutengua da eacutepoca Posta entatildeo essa equivocidade precisamos saber se expressa um sentido filosoacutefico antes de tudo para a eacutepoca e depois para noacutes A comparaccedilatildeo de 23 οὐκ ἔστι μὴ εἶναι com 71 Οὐ δαμῇ εἶναι μὴ ἐόντα que eacute o testemunho de Platatildeo nos faz entender que nessas palavras natildeo soacute se encontra um sentido filosoacutefico mas ateacute mesmo o sentido principal da filosofia de Parmecircnides Retomando portanto a construccedilatildeo precisamos entender por que pensar o natildeo-ser (μὴ εἶναι) eacute algo que natildeo eacute possiacutevel ou que natildeo se deve fazer ou que simplesmente natildeo eacute (natildeo acontece) segundo a expressatildeo usada por Parmecircnides οὐκ ἔστι

Aleacutem da traduccedilatildeo simples e imediata haveria outras possibilidades de traduccedilatildeo19 essas variaccedilotildees podem ser interessantes para evidenciar nuances aqui e acolaacute contudo tendo a possibilidade de utilizar o verbo ldquoserrdquo num uso equiacutevoco proacuteximo do grego natildeo precisamos recorrer agrave circunlocuccedilotildees e pode-mos traduzir οὐκ ἔστι com ldquonatildeo eacuterdquo20 e μὴ εἶναι com ldquonatildeo-serrdquo Diz portanto o segundo hemistiacutequio

Os uacutenicos caminhos de inqueacuterito ao pensar satildeo

Por um lado [ldquoArdquo] e que natildeo eacute natildeo-ser

18 De novo Kahn (2009) que assinala ldquoTo take the philosophical objection first it is simply false to say that you cannot think or talk about (point out in speech phrazein) what does not exist And the falseness of this would be obvious to any Greek who reflected for a moment on the profusion of monsters and fantastic creatures in traditional poetry and myth from Pegasus to the children of Gaia with a hundred arms and fifty heads apiecerdquo (HESIOD THEOGONY 150 172) Mais agrave frente ressaltamos que exatamente na questatildeo filosoacutefica Kahn estaacute errado e Parmecircnides estaacute certo eacute impossiacutevel pensar e dizer o natildeo-ser19 Um outro caminho possiacutevel de traduccedilatildeo utilizado principalmente pelos autores de liacutengua inglesa por motivos idiossincraacutesicos da liacutengua eacute empregar uma expressatildeo cuja noccedilatildeo tambeacutem eacute ampliacutessima e equiacutevoca ldquocoisardquo Mas essa expressatildeo por ser um substantivo natildeo possui o aspecto dinacircmico que o verbo tem sendo assim necessaacuterio acrescentar o verbo ser portanto eacute possiacutevel traduzir com ldquoas coisas que satildeordquo Outra possibilidade eacute usar o pronome ldquoquerdquo em sentido predicativo em substituiccedilatildeo de coisa ou coisas Outra ainda eacute o pronome demonstrativo (aquilo isto) ou o indefinido (algo) com a mesma funccedilatildeo substitutiva de coisa(s) no sentido mais indefinido possiacutevel20 Laacute onde em inglecircs haacute obrigatoriedade de explicitar-se o sujeito ldquowhat is notrdquo

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Se tiveacutessemos seguido a ordem metodoloacutegica tradicional ao examinar 23 teriacuteamos analisado primeiro ἔστιν e depois οὐκ ἔστι μὴ εἶναι E se de-pois de estudar o segundo hemistiacutequio voltaacutessemos nossa atenccedilatildeo ao primeiro hemistiacutequio natildeo teriacuteamos ganho metodoloacutegico nenhum pois redundariacuteamos na leitura por pressupostos em que o sentido de ἔστιν eacute obtido pelo pressu-posto de que ἔστιν significa em grego ldquoeacuterdquo todavia dessa maneira se chegaria aos resultados jaacute conhecidos considerados natildeo totalmente satisfatoacuterios pelos proacuteprios autores de cada interpretaccedilatildeo O dado concreto eacute que o poema natildeo oferece nenhuma definiccedilatildeo direta ou indireta de ἔστιν embora apresente mui-tos σήματα de ἐὸν Em compensaccedilatildeo o poema trata amplamente de μὴ εἶναι E natildeo eacute preciso ir muito longe para encontrar referecircncias para a noccedilatildeo de μὴ εἶναι pois observamos muitos dados nos versos de 5 a 8 do nosso fragmento Iremos portanto ao verso 5 e subsequentes

33 OS VERSOS 5 A 8 he drsquoos ouk eacutestin te kaigrave os khreoacuten esti megrave eicircnai

tegraven deacute toi phraacutezo panapeutheacutea eacutemmen atarpoacuten

ouacutete gagraver agravev gnoiacutees toacute ge megrave eograven (ou gagraver anustoacuten)

ouacutete phraacutezais

o outro que natildeo eacute e portanto que eacute preciso natildeo ser

este entatildeo eu te digo eacute atalho de todo incriacutevel

pois nem conhecerias o que natildeo eacute (pois natildeo eacute exequiacutevel)

nem o dirias

Vamos relembrar a letra do verso 5 ἡ δrsquo ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι Haacute uma construccedilatildeo paralela ao verso 3 dois hemistiacutequios no segundo dos quais encontramos nosso μὴ εἶναι No verso seguinte o caminho eacute chamado de παναπευθέα termo que muito fez e faz sofrer os filoacutelogos O sentido geral poreacutem eacute claro quer se queira traduzir como ldquode todo incriacutevelrdquo (CAVALCANTE DE SOUZA 1978) quer como ldquocompletamente inconos-ciblerdquo (CORDERO 2005 p 219) ou ldquowholly without reportrdquo (COXON 2009 p 56) ou como outro Em suma a noccedilatildeo geral eacute de que haacute uma difi-culdade intransponiacutevel em seguir esse caminho e por que eacute explicado a seguir

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Assim como em certa metodologia de exposiccedilatildeo primeiro se enuncia a tese e depois se propotildee o argumento demonstrativo Parmecircnides primeiro enuncia (como conveacutem agrave expressatildeo de uma deusa) e depois diz por quecirc Ora a novida-de cultural eacute exatamente esse porquecirc onde as afirmaccedilotildees natildeo satildeo mais apenas impostas por sua forccedila hieraacutetica mas precisam de explicaccedilotildees21

O nosso primeiro problema eacute que os enunciados (no verso 3 antes no verso 5 agora) natildeo satildeo claros para noacutes Nesse sentido podemos pedir clareza aos argumentos Qual eacute o argumento Eis a resposta de Parmecircnides οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε μὴ ἐὸν (οὐ γὰρ ἀνυστόν) οὔτε φράσαις Aqui a traduccedilatildeo eacute mais clara e natildeo haacute muita divergecircncia entre os criacuteticos pois nem poderias co-nhecer o que natildeo eacute (pois eacute impossiacutevel) nem o dirias Haacute aqui um claro objeto do discurso τό μὴ ἐὸν o qual sem hesitaccedilatildeo desta vez podemos traduzir por ldquoo que natildeo eacuterdquo Sem hesitaccedilatildeo porque τὸ ἐὸν eacute uma expressatildeo desconhecida antes de Parmecircnides aparece com ele eacute estudada por seus disciacutepulos e pelos seus criacuteticos (de Melisso a Aristoacuteteles) e eacute reportada pela doxografia como invenccedilatildeo parmenidiana

A noccedilatildeo exposta por Parmecircnides eacute sequencial o caminho de inqueacuterito que pensa οὐκ ἔστιν aqui chamado de ἀταρπόν natildeo pode ser percorrido porque eacute impossiacutevel ldquoconhecerrdquo (γνοίης ndash segunda pessoa do optativo aoristo ativo de γιγνώσκω) o que natildeo eacute e vamos deixar para depois a questatildeo do di-zer (οὔτε φράσαις) Vamos concentrar nossa atenccedilatildeo sobre γνοίης Para noacutes eacute menos importante a traduccedilatildeo gramaticalmente e estilisticamente precisa e mais importante a precisatildeo da noccedilatildeo filosoacutefica exposta Em relaccedilatildeo a essa pa-lavra houve (e ainda haacute) uma discussatildeo acirrada Discute-se se traduzir por ldquoconhecerrdquo como fazem alguns (COXON 2009 p 56 GALLOP 1984 p 55 TARAacuteN 1965 p 32 e muitos outros) ou ldquoreconhecerrdquo como fazem outros (por exemplo BARNES 1982 p 124) e principalmente que sentido atribuir ao ldquoconhecerrdquo Eu penso que considerado o contexto natildeo se trata do conhecer epistecircmico mas do conhecer gnosioloacutegico ou seja da capacidade que a mente possui de estabelecer um processo de conhecimento E que se trate de processo eacute claro pela vaacuteria terminologia que Parmecircnides usa mas principalmente pela sua ὁδός que ficaraacute para sempre como metaacutefora perfeita dos procedimentos a serem tomados para realizar tarefas de qualquer natureza vindo a receber o nome de meacutetodo

21 Rossetti (2010) A necessidade de explicaccedilotildees natildeo eacute mais soacute dos autores mas tambeacutem da audiecircncia que agora requer argumentos

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Para o meacutetodo do pensar epistecircmico declara Parmecircnides natildeo eacute con-veniente seguir um certo percurso porque sobre ele haacute ao menos uma etapa onde se deve ldquoconhecerrdquo ndash ou seja onde se deve exercer a capacidade gnosioloacute-gica ndash o τό μὴ ἐὸν mas isso eacute impossiacutevel Na verdade tanto o termo ἀνυστόν (reportado por Simpliacutecio) quanto sua variante ἐφικτόν (reportada por Proclo) tecircm um sentido processual quero dizer que a tarefa de pensar o τό μὴ ἐὸν natildeo apresenta uma impossibilidade que se realiza imediatamente mas uma que implica um processo o qual eacute impossiacutevel em sua inteireza porque natildeo pode ser levado a termo De fato ἀνυστός significa ldquoser completadordquo ldquopraticaacutevelrdquo enquanto ἐφικτός significa ldquofaacutecil de alcanccedilarrdquo ldquoacessiacutevelrdquo Ambos os termos tecircm sentido dinacircmico e processual e a negaccedilatildeo que Parmecircnides faz significa que esse processo natildeo pode ser levado a termo

De que processo se trata Em minha visatildeo trata-se do processo concre-to de pensar a negaccedilatildeo do ser Parmecircnides eacute de aacuterea de formaccedilatildeo pitagoacuterica e os pitagoacutericos ndash como assinala Aristoacuteteles (Metaph 986a15-26) ndash naquela eacutepoca estudavam as oposiccedilotildees as mais abstratas tendo passado da oposiccedilatildeo mais antiga entre par e iacutempar correspondentes a limitado e ilimitado (πέρας e ἄπειρον) a um conjunto de dez oposiccedilotildees Nada desabona uma possiacutevel tentativa de Parmecircnides buscar uma oposiccedilatildeo (a qual era feita tambeacutem por negaccedilatildeo como nos evidencia a expressatildeo verbal da oposiccedilatildeo entre πέρας e ἄπειρον com o ldquoαrdquo privativo) para o ldquotodordquo aquele πάντα que encontramos no verso 128 do poema e que em breve transformar-se-ia em φύσις no curso da evoluccedilatildeo histoacuterica dos conceitos filosoacuteficos da antiga Greacutecia

A meditaccedilatildeo do ldquonatildeo-serrdquo eacute das mais interessantes a se fazer na filosofia Tentar ldquopensarrdquo o ldquonatildeo-serrdquo eacute uma experiecircncia profunda a qual leva a conside-raccedilotildees radicais natildeo soacute sobre a existecircncia humana mas sobre a existecircncia como um todo Que Parmecircnides tenha se dedicado a essa meditaccedilatildeo eacute seguro pois ele o diz indiretamente em 22 quando afirma que os uacutenicos caminhos ao pensar satildeo aquele que pensa ἔστιν e aquele que pensa οὐκ ἔστιν O que natildeo sa-bemos e natildeo podemos afirmar com certeza eacute que tipo de meditaccedilatildeo ele reali-zou Eis que os termos ἀνυστόν ou ἐφικτόν vecircm nos socorrer e nos informam que se trata de uma meditaccedilatildeo processual que natildeo acaba Descrevi esse proces-so detalhadamente em outro trabalho (GALGANO 2010) e o repetirei aqui brevemente Pensar o natildeo-ser significa pensar concretamente a negaccedilatildeo do ser concreto (do mundo sensiacutevel ou inteligiacutevel) de cada ser Para tornar mais claro o processo pode-se comeccedilar negando a existecircncia de um ente depois daquilo

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O natildeo-ser em Parmecircnides de Eleia Artigos Articles

que o rodeia depois do planeta depois do universo (sensiacutevel e inteligiacutevel atual e possiacutevel) e depois do mundo como um todo enfim do todo

O problema principal dessa meditaccedilatildeo eacute exatamente pensar se o sujeito pertence ou natildeo ao todo Quando se pensa a negaccedilatildeo do todo permanece ainda o sujeito pensante que pensa o todo como se o olhasse de um ponto virtual externo a ele E quando se tenta incluir o sujeito pensante de duas uma 1) ou o sujeito acreditando pensar a si proacuteprio dentro do todo reapa-rece externamente22 ou 2) o sujeito cognitivo desaparece e com ele qualquer noccedilatildeo cognitiva de ldquonatildeo-serrdquo Podemos assegurar claramente que o processo de pensar o τό μὴ ἐὸν natildeo termina seja porque eacute impossiacutevel incluir o sujeito no todo pois ele sempre reaparece a cada tentativa seja porque o processo quan-do inclui o sujeito no todo interrompe-se sendo assim impossiacutevel completar a negaccedilatildeo do todo Natildeo podemos saber se o modelo meditativo de Parmecircnides foi exatamente este mas natildeo me parece haver nada em desabono23

Entretanto qual eacute a importacircncia de natildeo se poder pensar a negaccedilatildeo de tudo Seguindo o argumento parmenidiano o caminho (ἀταρπόν) cognitivo que pensa τό μὴ ἐὸν natildeo pode ser concluiacutedo Ora ἀταρπόν eacute um sinocircnimo que Parmecircnides usa para o ὁδός do verso 22 (ὁδοὶ) isso quer dizer que o segundo caminho de inqueacuterito pode ser iniciado mas natildeo pode ser levado a termo Poreacutem se natildeo pode ser levado a termo por que eacute identificado como caminho Por que natildeo eacute excluiacutedo jaacute de iniacutecio quando a deusa ao inveacutes de anunciar os uacutenicos (moucircnai plural) caminhos natildeo anuncia um uacutenico cami-nho A resposta a essa pergunta torna clara a estranha afirmaccedilatildeo de que o caminho do pensar do segundo hemistiacutequio do verso 5 eacute necessaacuterio que per-maneccedila natildeo ser (χρεών ἐστι μὴ εἶναι) Parmecircnides assevera que embora seja um caminho que jamais pode ser completado ele ao mesmo tempo natildeo pode ser eliminado continua a pertencer aos (dois) uacutenicos caminhos de inqueacuterito ele eacute necessaacuterio

22 Se penso na aniquilaccedilatildeo de tudo incluindo a mim mesmo terei que pensar a mim mesmo aniquilado contudo esse pensar gerando esse novo pensamento gera um novo sujeito cognitivo pensante se aniquilo esse novo pensamento terei um novo sujeito cognitivo que pensa essa nova aniquilaccedilatildeo e assim por diante ad infinitum23 Natildeo quero garantir que Parmecircnides estreie uma filosofia do sujeito embora isso natildeo possa ser excluiacutedo a priori jaacute que os embriotildees de uma tal filosofia apareceratildeo em breve com Soacutecrates Acredito que se deve pensar mais no sujeito como o atleta campeatildeo das Olimpiacuteadas ou seja aquele capaz de cumprir (ou natildeo) certas proezas como fica extraordinariamente evidenciado no paradoxo de Zenatildeo cuja metaacutefora da filosofia (e do filoacutesofo) como tartaruga mostra que o pensar filosoacutefico eacute capaz de proezas maiores do que as proezas do proacuteprio Aquiles tidas como insuperaacuteveis pela cultura da eacutepoca

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Vamos de novo reconstruir essa parte do argumento com esse novo elemento os uacutenicos caminhos de inqueacuteritos satildeo

1) por um lado o caminho ao pensar que [versos 3 e 4] e

2) por outro lado o caminho ao pensar que [ldquoCrdquo (verso 5 primeiro hemistiacute-quio)] e que eacute necessaacuterio (que seja) natildeo-ser

De fato esse segundo caminho (ἀταρπόν) eacute inviaacutevel porque ldquonatildeo se consegue levar a cabo a reflexatildeordquo (γνοίης) quando se pensa o τό μὴ ἐὸν Ou seja fica muito clara a equaccedilatildeo entre o segundo caminho (v 5) e a reflexatildeo sobre o natildeo ser (τό μὴ ἐὸν) Finalmente o segundo hemistiacutequio do v 5 diz que esse eacute o caminho ao pensar que eacute necessaacuterio que seja μὴ εἶναι o qual agora sabemos eacute o caminho que tenta pensar o natildeo-ser (τό μὴ ἐὸν) Sabe-mos agora o que Parmecircnides chama de μὴ εἶναι Para Parmecircnides μὴ εἶναι eacute a estrutura do pensamento quando tenta inexoraacutevel e malogradamente pensar o natildeo-ser (τό μὴ ἐὸν)

Temos portanto a semacircntica de μὴ εἶναι e sabemos que significa a impossibilidade de pensar o natildeo-ser Com esse dado podemos reconstruir o resto do argumento mas primeiro vamos abordar a questatildeo do οὔτε φράσαις A premissa principal eacute o pano de fundo da pesquisa parmenidiana a qual estaacute em busca do discurso confiaacutevel como a deusa diz claramente no encerramen-to do fragmento 8 (talvez ecoando simetricamente alguma parte perdida do poema)24 Pensar o τό μὴ ἐὸν natildeo eacute possiacutevel logo ele eacute indiziacutevel Ora isso significa nem mais nem menos que dizer que o que eacute impossiacutevel eacute contra o sentido do dizer Eacute indiziacutevel natildeo porque natildeo se sabe do que se trata como querem muitos autores que fazem a leitura meramente epistemoloacutegica25 Eacute indiziacutevel porque dizer o ldquonatildeo-serrdquo significa fazer uma promessa que jamais se cumpriraacute ao se dizer ldquonatildeo-serrdquo parece que a expressatildeo aponta algo possiacutevel ou seja a negaccedilatildeo do ser e de fato quem estaacute desavisado assim acredita Mas a expressatildeo ldquonatildeo-serrdquo quer referir-se a algo que jamais seraacute cumprido que o

24 850-2 ldquoἐν τῶι σοι παύω πιστὸν λόγον ἠδὲ νόημα ἀμφὶς ἀληθείης δόξας δrsquo ἀπὸ τοῦδε βροτείας μάνθανε κόσμον ἐμῶν ἐπέων ἀπατηλὸν ἀκούωνrdquo ldquoNeste ponto encerro fidedigna palavra e pensamento sobre a verdade e opiniotildees mortais a partir daqui aprende a ordem enganadora de minhas palavras ouvindordquo (CAVALCANTE DE SOUZA 1978)25 Trata-se da leitura epistemoloacutegico-predicamental se natildeo sei a cor de um objeto (porque a cor natildeo eacute natildeo estaacute acessiacutevel ao meu conhecimento) natildeo posso falar da cor do objeto

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O natildeo-ser em Parmecircnides de Eleia Artigos Articles

ser seja negado Esta eacute exatamente a noccedilatildeo expressa pelas palavras de Platatildeo jamais prevaleceraacute que natildeo entes sejam26

A expressatildeo μὴ εἶναι representa essa impossibilidade de pensamento e portanto eacute um dizer impossiacutevel o que se opotildee radicalmente agrave proacutepria noccedilatildeo de dizer a qualquer significar enquanto discurso confiaacutevel do mundo e da sua ordem Surge a pergunta mas se natildeo se pode dizer μὴ εἶναι se isso eacute impossiacute-vel natildeo haacute uma flagrante contradiccedilatildeo na deusa jaacute que ela proacutepria diz e cons-troacutei um argumento sobre o dizer μὴ εἶναι A objeccedilatildeo seria vaacutelida se a deusa dissesse o que eacute impossiacutevel de dizer ou seja se ela praticasse a impossibilidade Todavia a deusa natildeo diz o impossiacutevel a deusa aponta para o impossiacutevel indica o impossiacutevel pois ela diz que existem a ldquonoccedilatildeo de impossibilidade do pensarrdquo e a ldquonoccedilatildeo de impossibilidade do dizerrdquo Em outras palavras a deusa diz qual eacute o limite do pensar e qual eacute o limite do dizer Aleacutem desse limite o pensamento natildeo pode ir porque eacute impossiacutevel e tambeacutem o dizer natildeo pode ir porque eacute im-possiacutevel A impossiacutevel regiatildeo para aleacutem desse limite natildeo eacute admitida pelo dizer eacute contra o dizer eacute contraditoacuteria

A expressatildeo μὴ εἶναι em Parmecircnides eacute exatamente a palavra que ex-pressa o processo mental que noacutes chamamos contradiccedilatildeo e que ele primeiro assim chamou (οὔτε φράσαις natildeo diziacutevel) Eacute estranho que nenhum criacutetico te-nha percebido isso claramente Todos afirmam que o princiacutepio de natildeo contra-diccedilatildeo estaacute implicado em Parmecircnides assim como os outros princiacutepios loacutegicos pois os argumentos presentes no poema satildeo desenvolvidos segundo a natildeo con-tradiccedilatildeo poreacutem o princiacutepio natildeo eacute enunciado Alguns como Cordero veem justamente explicitado o princiacutepio do terceiro excluiacutedo (816 ἔστιν ἢ οὐκ ἔστιν) mas ningueacutem quis ver claramente que natildeo soacute a noccedilatildeo como tambeacutem a proacutepria palavra ldquocontradiccedilatildeordquo (οὔτε φράσαις natildeo diziacutevel contra o diziacutevel contra a dicccedilatildeo) estaacute explicitada no poema Penso que a razatildeo fundamental para que acontecesse esse lapsus tenha que ser procurada na grande atenccedilatildeo dada ao ldquoserrdquo e na pouca dada ao ldquonatildeo-serrdquo Como observaremos mais adiante por causa desse lapsus eu penso que natildeo se conseguiu entender plenamente a estrutura do fragmento 2 o qual simplesmente natildeo apresenta um silogismo disjuntivo nem nenhuma contradiccedilatildeo entre o caminho do ldquoserrdquo e o caminho do ldquonatildeo-serrdquo Parmecircnides assevera justamente que a expressatildeo ldquonatildeo-serrdquo eacute contraditoacuteria o ldquonatildeo-serrdquo natildeo pode ser dito porque ldquonatildeo-serrdquo eacute contraditoacute-

26 As duas expressotildees tecircm inversatildeo de predicado e negaccedilatildeo no entanto a noccedilatildeo permanece a mesma que os entes natildeo sejam (perecimento no fr 8) e que os natildeo entes sejam (nascimento no fr 8) A noccedilatildeo eacute o tracircnsito entre ser e natildeo ser

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rio e a expressatildeo ldquonatildeo-serrdquo indica tatildeo somente uma impossibilidade concreta aquela de que se realize o impossiacutevel

Vamos voltar ao nosso argumento e agrave questatildeo que deixamos em suspenso por que eacute necessaacuterio que μὴ εἶναι seja Sabemos que os versos 7 e 8 relatam um processo malogrado de pensar o natildeo ente (τό μὴ ἐὸν) Uso agora a palavra ente porque se justifica uma diferenciaccedilatildeo embora tanto ldquoenterdquo quanto ldquoserrdquo indiquem expressotildees gerais e natildeo individuais ldquoEnterdquo vem por conseguinte a significar o ente concreto aquele que eacute Parmecircnides sustenta que natildeo se pode pensar e dizer τό μὴ ἐὸν o ldquonatildeo enterdquo Esse processo recebe o nome de μὴ εἶναι ldquonatildeo-serrdquo a esse processo noacutes chamamos contradiccedilatildeo27 Entatildeo a indicaccedilatildeo eacute esta haacute um caminho ao pensar que pensa μὴ εἶναι (a contradiccedilatildeo) e eacute necessaacuterio que assim seja porque (vou repetir trecircs vezes de forma diferente28 para significar a mesma coisa)

1) se natildeo houvesse a contradiccedilatildeo

2) se natildeo se tem a noccedilatildeo de contradiccedilatildeo

3) se natildeo se sabe o que eacute contradiccedilatildeo

cai-se no discurso contraditoacuterio o que impede o inqueacuterito confiaacutevel Eacute ne-cessaacuterio saber que μὴ εἶναι (o processo de contradiccedilatildeo) eacute um caminho a ser evitado porque cria pensamentos e discursos contraditoacuterios

Vejamos de novo nosso fragmento com os elementos esclarecidos ateacute aqui

os uacutenicos caminhos de inqueacuterito a pensar satildeo

por um lado que [ versos 3 e 4]

e por outro lado que οὐκ ἔστιν e que eacute necessaacuterio que seja a contradiccedilatildeo (μὴ εἶναι)

a qual eacute um caminho natildeo criacutevel

pois eacute impossiacutevel pensar e dizer o natildeo ente (τό μὴ ἐὸν)

27 Mesmo para noacutes a contradiccedilatildeo eacute um processo porque indica a posiccedilatildeo de algo em contraposiccedilatildeo com mais algo isso significa que esses dois algos tecircm que ser relacionados para que haja contradiccedilatildeo do contraacuterio algo e mais algo podem conviver sem contraditoriedade Contudo esse assunto estaacute fora de tema e requer muitas outras providecircncias para o bom discernimento28 Repito buscando clareza pois nossas construccedilotildees comuns de linguagem nesses assuntos costumam ldquopatinarrdquo

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Penso que o espaccedilo conceitual deixado por οὐκ ἔστιν agora se pre-encha quase que por si haacute um caminho de inqueacuterito ao pensar que ldquonatildeo eacuterdquo e que eacute necessaacuterio que se considere contraditoacuterio porque eacute caminho que natildeo leva a lugar nenhum

A expressatildeo οὐκ ἔστιν eacute a negaccedilatildeo da terceira pessoa do indicativo de εἰμί a expressatildeo em si natildeo tem nada de especial significa tatildeo somente ldquonatildeo eacuterdquo restando em aberto o problema da ausecircncia de sujeito Mas agora sabemos o argumento complexo que estaacute na raiz da expressatildeo e a meu ver natildeo faz muito sentido a questatildeo de buscar um sujeito ou um objeto para definir se eacute usado de forma transitiva ou intransitiva se expressa existecircncia ou predicaccedilatildeo e as muitas combinaccedilotildees que podem ser montadas a partir da equivocidade do uso de εἰμί No entanto o acircmbito semacircntico foi evidenciado e estaacute claro e aleacutem do mais tem o testemunho de Platatildeo a confirmar o campo semacircntico da negaccedilatildeo de εἰμί nas vaacuterias formas estaacute relacionado a uma reflexatildeo sobre a impossibili-dade dessa negaccedilatildeo Obviamente para dizer que algo eacute impossiacutevel de alguma forma tenho que indicar essa impossibilidade com alguma expressatildeo Assim se digo ldquotriacircngulo quadradordquo aponto para uma impossibilidade jaacute que por defi-niccedilatildeo a essecircncia do triacircngulo exclui a essecircncia do quadrado logo a expressatildeo ldquotriacircngulo quadradordquo natildeo significa aquilo que parece prometer ou seja natildeo significa uma figura geomeacutetrica especial que eacute ao mesmo tempo triacircngulo e quadrado dizer ldquotriacircngulo quadradordquo eacute dizer algo ldquoindiziacutevelrdquo ldquonatildeo diziacutevelrdquo (na medida em que o diziacutevel quer expressar sentido) ldquoque nega o diziacutevelrdquo ldquoque eacute contra o diziacutevelrdquo que eacute contraditoacuterio

A semacircntica do ldquonatildeo serrdquo eacute fortiacutessima e estaacute muito aleacutem das sutilezas gramaticais morfoloacutegicas e sintaacuteticas e estas simplesmente natildeo afetam aquela O assunto tratado eacute tatildeo forte que ultrapassa qualquer forma linguiacutestica a pon-to de que esse assunto a ordem do ser e do natildeo-ser no mundo eacute responsaacutevel pela determinaccedilatildeo da lei da linguagem e natildeo vice-versa como bem entendeu Platatildeo no Sofista onde a teoria da predicaccedilatildeo surge em funccedilatildeo de uma refle-xatildeo sobre a ordem das leis baacutesicas do mundo Com efeito o approach linguiacutes-tico ao poema pode proceder ateacute certo ponto dali em diante o poema eacute fran-camente filosoacutefico e a chave linguiacutestica natildeo eacute suficiente para o acesso Isso quer dizer que com a chave linguiacutestica natildeo se abre a porta da questatildeo filosoacutefica do poema Se a questatildeo eacute que ldquojamais o natildeo ser pode se tornar serrdquo como (apro-ximadamente com essas palavras) argumenta Platatildeo citando Parmecircnides en-tatildeo diante da semacircntica que οὐκ ἔστιν apresenta discutir o sujeito de οὐκ ἔστιν se torna tarefa menor Considerada a desproporccedilatildeo entre o conteuacutedo (a

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semacircntica) e o recipiente (a palavra) entre o significado e o significante natildeo eacute impossiacutevel que οὐκ ἔστιν seja tatildeo somente uma expressatildeo simplificada quem sabe ateacute mesmo uma simplificaccedilatildeo didaacutetica pois o conteuacutedo do conceito estaacute expresso e justificado depois nos versos 7 e 8

O caminho de pensar que natildeo eacute e de pensar que eacute necessaacuterio natildeo ser eacute o caminho que afirma a necessidade de que a noccedilatildeo de natildeo-ser permaneccedila estaacutevel A contradiccedilatildeo tem que permanecer e ser identificada como tal pois eacute a uacutenica maneira de evitar que ela entre no pensamento e no discurso Se o ldquonatildeo-serrdquo natildeo for considerado contraditoacuterio a contradiccedilatildeo invade e domina o caminho de inqueacuterito o qual deixa de possuir πίστις ἀληθής (130) Assim eacute preciso que esse caminho seja identificado como μὴ εἶναι por um lado o ldquonatildeo-serrdquo eacute incognosciacutevel (οὔτε γὰρ ἂν γνοίης) mas por outro lado eacute neces-saacuterio que se saiba que ele eacute incognosciacutevel Saber do incognosciacutevel garante o conhecimento29 pois de fato ao natildeo se identificar o ldquonatildeo-serrdquo cai-se no risco de pensar que ldquoserrdquo e ldquonatildeo-serrdquo satildeo o mesmo e natildeo o mesmo como Parmecircni-des afirma em DK 6 5-6 Necessariamente o caminho que pensa οὐκ ἔστιν leva ao processo de contradiccedilatildeo (μὴ εἶναι) e a natildeo conclusatildeo do caminho (ἀνυστόν) natildeo eacute evidente na expressatildeo pelo contraacuterio τό μὴ ἐὸν parece uma negaccedilatildeo comum como qualquer outra poreacutem natildeo o eacute por isso eacute um saber destinado ao saacutebio e natildeo aos mortais porque eacute um saber fruto de uma reflexatildeo

34 DE VOLTA AOS VERSOS 3 E 4

Penso que podemos agora voltar ao verso 23 ao nosso segundo he-mistiacutequio onde aparece a expressatildeo μὴ εἶναι da qual jaacute temos a semacircntica Podemos entatildeo reconstruir ldquoos uacutenicos caminhos de inqueacuterito a pensar satildeo

por um lado a pensar que [ldquoArdquo] e tambeacutem a pensar que οὐκ ἔστι μὴ εἶναι este eacute caminho de persuasatildeo pois verdade acompanha e

por outro lado a pensar que ldquonatildeo eacuterdquo e tambeacutem a pensar que eacute necessariamente um percurso de pensamento contraditoacuterio porque eacute um caminho ldquoimpossiacutevelrdquo (παναπευθέα) pois o pensamento do ldquonatildeo enterdquo natildeo pode ser completado

O οὐκ ἔστι do verso 3 parece ser diferente do οὐκ ἔστιν do verso 5 Enquanto no 5 ele eacute quase que o nome do caminho (talvez uma simplificaccedilatildeo didaacutetica) no 3 parece significar simplesmente ldquonatildeo eacuterdquo em sentido comum

29 Estaacute aqui uma semente do socratismo

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predicativo De fato esse eacute o caminho da persuasatildeo e portanto eacute o caminho do pensamento natildeo-contraditoacuterio Ali a persuasatildeo era impossiacutevel pela con-tradiccedilatildeo aqui eacute possiacutevel pela natildeo-contradiccedilatildeo Sabemos que a expressatildeo μὴ εἶναι eacute a expressatildeo da contradiccedilatildeo suprema de sorte que a natildeo-contradiccedilatildeo eacute a negaccedilatildeo de μὴ εἶναι A traduccedilatildeo de οὐκ ἔστι fica faacutecil embora para a nossa sensibilidade possa parecer algo improacuteprio usar duas vezes οὐκ ἔστι de forma natildeo perfeitamente uniacutevoca a dois versos de distacircncia Logo para o segundo hemistiacutequio do v 3 mantenho esta traduccedilatildeo ldquonatildeo eacuterdquo em parte ambiacutegua para nossas exigecircncias mas que soa perfeitamente harmocircnica com o discurso par-menidiano [] ao pensar que [ldquoArdquo] e que natildeo eacute ldquocontradiccedilatildeordquo (μὴ εἶναι)

Acredito por fim que podemos abordar facilmente o ἔστιν do verso 3 que tanto fez e faz penar os estudiosos de Parmecircnides Aqui de novo a grandeza da questatildeo cosmoloacutegica envolvida ndash a coerecircncia eou a contradito-riedade do real ndash simplesmente torna tatildeo minuacutescula a questatildeo do sujeito de ἔστιν que ela quase desaparece Eu tenho a tendecircncia a pensar que a falta de sujeito seja uma simplificaccedilatildeo didaacutetica30 cuja irregularidade linguiacutestica ajuda na memorizaccedilatildeo31 Todavia afinal tomo partido e entro tambeacutem no quarto grupo daqueles listados por Cordero o sujeito deve ser extraiacutedo do predicado isolado pois ἔστιν produz o sujeito32 De qualquer forma o sentido filosoacutefico eacute preciso haacute um caminho de inqueacuterito ao pensar que eacute aquele que pensa o ldquoeacuterdquo esse mesmo caminho eacute aquele ao pensar que natildeo eacute (e natildeo pode ser33) ldquocon-tradiccedilatildeordquo Depois haacute um outro caminho aquele ao pensar que ldquonatildeo eacuterdquo que eacute o caminho ao pensar que leva necessariamente agrave contradiccedilatildeo O primeiro eacute o 30 Segundo o relato platocircnico no diaacutelogo Parmecircnides Zenatildeo acompanhado de seu mestre foi para as Panateneias com a finalidade de defender a filosofia de seu mestre esclarecendo com seu livro repleto de paradoxos as ideias parmenidianas Isso sugere que o poema natildeo expunha articuladamente a filosofia de Parmecircnides mas que constituiacutesse um proacute-memoacuteria com as ideias em sua forma essencial depois elaboradas nas aulas pessoais (KURFESS 2012)31 Eacute extraordinaacuterio como essa simplificaccedilatildeo didaacutetica continue ativa por um lado distorcendo entretanto por outro mantendo viva a mensagem parmenidiana em todas as escolas de ensino meacutedio onde se estuda filosofia vox populi Parmecircnides eacute o filoacutesofo que disse ldquoO que eacute eacute e o que natildeo eacute natildeo eacuterdquo Por outro lado o estrangeiro de Eleia no Sofista lembra outro verso e natildeo este32 Essa questatildeo natildeo aprofundada aqui natildeo possui relevacircncia filosoacutefica no argumento apresentado pode ter relevacircncia se se considera o tipo de reflexatildeo ou seja se se discute a ldquoexperiecircnciardquo do natildeo-ser e principalmente a experiecircncia concreta de Parmecircnides que talvez esteja ligada a praacuteticas de incubaccedilatildeo Nesse caso a dimensatildeo reflexiva adentra a dimensatildeo oniacuterica a qual possui outra sintaxe e onde um simples ἔστιν vale mais de mil articulaccedilotildees sintaacuteticas Natildeo sabemos com certeza dessas praacuteticas em Eleia contudo esse sentido preacute-sintaacutetico natildeo estaacute descartado inclusive alguns estudiosos entre os quais o proacuteprio Cordero atribuem ao ἔστιν o sentido de um grito como um Eureka Sugestotildees nesse sentido se encontram na minha dissertaccedilatildeo sobre Melisso (GALGANO 2010)33 A interpretaccedilatildeo modal eacute tambeacutem perfeitamente coerente aqui

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caminho que estabelece o discurso coerente (persuasivo) e o segundo natildeo leva a lugar nenhum e deve ser evitado Mas para que se saiba o que deve ser evi-tado eacute preciso que se conheccedila a impossibilidade do segundo caminho A fim de que se possa seguir o primeiro caminho eacute necessaacuterio saber que existe um outro sempre agrave espreita o qual parece oferecer a verdade mas que natildeo oferece uma verdade confiaacutevel que leva necessariamente agrave contradiccedilatildeo de pensamento e de expressatildeo linguiacutestica

4 O MEacuteTODO DA NAtildeO-CONTRADICcedilAtildeO

Parmecircnides provavelmente a partir de sugestotildees pitagoacutericas medita sobre a oposiccedilatildeo ao que existe e assim descobre o ldquonatildeo-serrdquo Descobre que ldquonatildeo serrdquo ou seja negar o ser negar o que haacute eacute de todo impossiacutevel (natildeo eacute possiacutevel completamente) Entende entatildeo que o ldquonatildeo-serrdquo essa impossibilidade eacute algo que a mente pensa julgando que esse pensamento leva por um caminho mas que na verdade ele descobre leva por outro caminho aquele que nunca che-ga a lugar nenhum Esse caminho que leva para lugar nenhum eacute o caminho dos mortais os quais confundem ser e natildeo ser No entanto o saacutebio deve saber distinguir por um lado o caminho do ldquoeacuterdquo que eacute o caminho do discurso natildeo contraditoacuterio e por outro lado o caminho do ldquonatildeo eacuterdquo que eacute o caminho do discurso que eacute tornado vatildeo pela contradiccedilatildeo

Parmecircnides descobre a contradiccedilatildeo (pela meditaccedilatildeo sobre o natildeo-ser) e percebe que ela eacute motivo de descaminho no discurso sobre o mundo Assim finalmente ele anuncia que a contradiccedilatildeo deve ser evitada A esse enunciado noacutes chamamos de princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo que aqui eacute aquele na versatildeo de Parmecircnides (depois a partir de Platatildeo e Aristoacuteteles haveraacute outras versotildees) Parmecircnides trabalha em acircmbito cosmoloacutegico e sua preocupaccedilatildeo ndash como os de seus colegas na eacutepoca ndash eacute com o mundo com a totalidade das coisas com os πάντα de seu proecircmio (128) Nesse acircmbito cosmoloacutegico descobre que haacute um princiacutepio do mundo pelo qual se daacute uma impossibilidade a contradiccedilatildeo A contradiccedilatildeo eacute um princiacutepio porque o que haacute (πάντα) enquanto todo escapa agrave negaccedilatildeo total Eis que a contradiccedilatildeo eacute princiacutepio tanto quanto a natildeo-contra-diccedilatildeo porque eacute a contradiccedilatildeo que permite a natildeo-contradiccedilatildeo Sem a noccedilatildeo de contradiccedilatildeo se anda com sentidos incertos como os mortais

O valor dessa afirmaccedilatildeo eacute historicamente inabalaacutevel porque Parmecircni-des partindo de um discurso sobre o mundo como que visto de fora por um observador (como Anaximandro via o mundo olhando seu pinax - cf ROS-

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SETTI 2013) alcanccedila um discurso que inclui o observador enquanto obser-vador estreando assim antes de tudo um discurso sobre os entes (ontologia) todos os entes incluindo os entes de pensamento (veja-se o famoso fragmento 3 onde se lecirc que pensar e ser satildeo o mesmo) Para ele o saacutebio natildeo eacute mais aquele que sabe soacute sobre as coisas externas ndash como o antigo xamatilde cuja figura indi-vidual se dissolve na mera intermediaccedilatildeo com o divino ndash poreacutem eacute tambeacutem aquele que consegue pensar sobre as coisas externas ou seja aquele que tem um domiacutenio cognitivo sobre os pensamentos de inqueacuterito e portanto sabe so-bre si mesmo Assim o saacutebio deve pensar por proacutepria conta e julgar pelo novo criteacuterio e natildeo pelo habitual discurso (κρῖναι δὲ λόγωι DK 75) ou seja natildeo deve julgar pelo discurso mas julgar o discurso porque agora o discurso enri-quecido de uma lei universal (a lei das αρχάι ἔστιν e οὐκ ἔστιν) possui uma medida de juiacutezo Parmecircnides amplia o mundo acrescentando ao mundo fiacutesico os mundos do pensamento e da linguagem Eis porque as αρχάι de Parmecircni-des sendo duas permanecem duas justamente eliminado uma delas deixando alguns criacuteticos enlouquecidos na discussatildeo sobre o monismo ou o dualismo de acordo com Parmecircnides o mundo eacute um todavia os sentidos nos enganam natildeo na pluralidade das coisas mas no argumento a respeito da pluralidade das coisas e principalmente ndash aspecto que ele discute explicitamente ndash a respeito do devir das coisas Haacute um princiacutepio que natildeo pode ser eliminado a contra-diccedilatildeo o qual eacute um princiacutepio de erro humano quando se elimina quando se desconsidera quando se faz de conta que natildeo existe a contradiccedilatildeo se instaura quando o princiacutepio eacute levado em conta a contradiccedilatildeo pode ser evitada

Eacute uma conceituaccedilatildeo esdruacutexula para noacutes tambeacutem porque temos que ter (a noccedilatildeo de) a contradiccedilatildeo para eliminar a contradiccedilatildeo temos que saber o que eacute contradiccedilatildeo para que possamos perceber quando o discurso eacute con-traditoacuterio Esses conceitos satildeo misteriosos ateacute agora e satildeo estranhas criaturas de nossas mentes Por exemplo a noccedilatildeo de ldquoimpossiacutevelrdquo obviamente (isto eacute para a nossa pragmaacutetica) natildeo se refere a nada de concreto no entanto temos essa noccedilatildeo e a usamos com o maacuteximo proveito outro exemplo a noccedilatildeo de ldquoinfinitordquo noccedilatildeo que natildeo se refere a algo pragmaticamente concreto mas que usamos igualmente com maacuteximo proveito O mesmo deve ser dito da noccedilatildeo de contradiccedilatildeo ou da noccedilatildeo de nada absoluto que usamos pragmaticamente com maior ou menor proveito

Parmecircnides encontra esse caminho e o expotildee Eacute um caminho assom-broso anti-intuitivo mas incontestaacutevel Dessa forma natildeo eacute de estranhar se a soluccedilatildeo platocircnica eacute a eliminaccedilatildeo fiacutesica da noccedilatildeo de nada absoluto (o par-

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riciacutedio) com sucessivo ldquoadeusrdquo34 achando de tecirc-lo ultrapassado Mas o nada absoluto enquanto noccedilatildeo contraditoacuteria permanece Assim como permane-ce a explicaccedilatildeo defeituosa do devir o qual assim como o conhecemos uma passagem do nada ao ser no nascimento e do ser ao nada no perecimento estaacute mal explicado Daqui por diante os comentaacuterios filosoacuteficos possiacuteveis satildeo inuacutemeros por conseguinte paro meu estudo neste ponto e proponho a versatildeo do fragmento 2 segundo a conceituaccedilatildeo apresentada ateacute aqui alterando de pouco a excelente versatildeo baacutesica de Cavalcante de Souza

Pois bem eu te direi e tu recebe a palavra que ouviste

os uacutenicos caminhos de inqueacuterito que satildeo a pensar

o primeiro que eacute e portanto que natildeo eacute (o caminho da) contradiccedilatildeo

de persuasatildeo eacute o caminho (pois agrave verdade acompanha)

o outro que natildeo eacute e portanto que eacute necessariamente (o caminho da) contradiccedilatildeo

este entatildeo eu te digo eacute atalho de todo incriacutevel

pois nem conhecerias o que natildeo eacute (pois natildeo eacute exequiacutevel)

nem o dirias

GALGANO N S Non-being in Parmenides of Elea Transformaccedilatildeo Mariacutelia v 41 n 2 p 9-36 AbrJun 2018

ABSTRACT In fragment DK 28 B 2 of his poem Parmenides presents his method for distinguishing true persuasion from the lack of true persuasion His famous proposal of these two ways of thinking form a complex statement of a system that intends to guarantee the veracity of statements in order to obtain reliable discourse the only discourse capable of true persuasion The present paper shows that the central role in Parmenidian argumentation is attributed to non-being a notion derived from a reflection on the impossibility of the negation of being Thus the whole fragment is interpreted in terms of this central notion We show that Parmenides discovered the impossibility of negation which we now call lsquocontradictionrsquo and that he articulated the means for avoiding contradiction in thought and discourse a rule which today we call the principle of non-contradiction The study presented here is a detailed investigation of the notion of non-being in the DK 28 B 2 fragment and includes a new translation of it

KEYWORDS Parmenides Non-being Non-contradiction Eleatism Parricide

34 Platatildeo Soph 258e7-259a1 ἡμεῖς γὰρ περὶ μὲν ἐναντίου τινὸς αὐτῷ χαίρειν πάλαι λέγομεν εἴτrsquo ἔστιν εἴτε μή λόγον ἔχον ἢ καὶ παντάπασιν ἄλογον

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direto A primeira eacute afirmativa enquanto a segunda eacute negativa entretanto a segunda nega uma segunda negaccedilatildeo contida no objeto eacute negaccedilatildeo de negaccedilatildeo

Conjunccedilatildeo correlativa

Pronome relativo sujeito verbo objeto

Verso 23 ἡ μὲνOraccedilatildeo 1 ὅπως mdash ἔστιν mdashOraccedilatildeo 2 ὡς mdash οὐκ ἔστι μὴ εἶναι

Posto que em grego antigo o sujeito ou eacute expliacutecito ou eacute subentendido o grande misteacuterio dessas palavras eacute exatamente que o sujeito natildeo aparece nem expliacutecito e nem subentendido constituindo uma autecircntica anomalia literaacuteria Natildeo conveacutem nesta ocasiatildeo reconstruir a discussatildeo dos vaacuterios estudiosos em relaccedilatildeo a essa falta de nosso lado enfrentaremos a questatildeo por outras provi-decircncias Por enquanto vamos apresentar o resumo das possibilidades de solu-ccedilatildeo reportadas por Cordero (2005) Para o estudioso haacute quatro possibilidades para explicar a anomalia a saber ldquoa) Trata-se de um erro de transmissatildeo de texto se assim for este deve ser corrigido introduzindo o sujeito ausente b) haacute um sujeito conceitual impliacutecito que deve ser buscado no resto do Poema c) natildeo haacute nenhum sujeito possiacutevel e d) o sujeito deve ser extraiacutedo do predicado isolado pois o eacutestin ldquoproduzrdquo o sujeito As quatro possibilidades encontraram defensoresrdquo (CORDERO 2005 p 63)

Natildeo penso que seja o caso de tomar partido agora faremos isso so-mente no fim da nossa anaacutelise por enquanto vamos prosseguir com as nos-sas consideraccedilotildees A primeira delas eacute que as duas oraccedilotildees natildeo satildeo simples-mente conjuntas elas satildeo mais que conjuntas porque reuacutenem uma uacutenica noccedilatildeo em trecircs variaccedilotildees ἔστιν οὐκ ἔστι e μὴ εἶναι satildeo variaccedilotildees do campo semacircntico de εἰμί o verbo ser Seriam simplesmente conjuntas se apresen-tassem verbos e objetos diretos diferentes Naturalmente uma construccedilatildeo desse tipo seria possiacutevel10 e apresentaria duas oraccedilotildees sintaticamente inde-pendentes e conjuntas Poreacutem no nosso caso a construccedilatildeo eacute feita com trecircs formas do mesmo verbo que muito dificilmente tecircm uma conexatildeo apenas conjuntiva Ademais a primeira oraccedilatildeo eacute afirmativa e a segunda duplamente negativa o que faz pensar na estrutura da citaccedilatildeo platocircnica (Soph 237a8 DK B 7 1) a qual natildeo eacute sintaticamente igual mas muito semelhante que nunca os natildeo entes sejam onde tambeacutem uma dupla negaccedilatildeo recusa existecircncia

10 Por exemplo ldquoos uacutenicos caminhos de inqueacuterito a pensar por um lado que examina e que natildeo pretende natildeo avaliarrdquo

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aos natildeo entes implicando apenas variaccedilotildees formais de εἶναι dessa vez com o particiacutepio no neutro plural τὰ ἐοντα que natildeo estaacute presente no fr 211 Esses elementos precisam ser investigados

Vamos comeccedilar pela conjunccedilatildeo12 τε καὶ em geral traduzida por sim-ples conjunccedilatildeo pelos criacuteticos assume aqui um valor mais forte O fato de que seja uma conjunccedilatildeo elimina de iniacutecio a interpretaccedilatildeo do verso 3 como uma disjunccedilatildeo13 Mais que uma conjunccedilatildeo as duas subordinadas satildeo ligadas por uma conexatildeo vital na qual o τε καὶ no sentido de ldquotambeacutemrdquo ou ateacute mesmo ldquoambosrdquo representa a conjunccedilatildeo de uma segunda parte reforccedilando a primeira natildeo porque explica mas simplesmente porque as duas fazem parte de um todo como dois lados de uma mesma moeda14

Vamos deixar de lado por enquanto o primeiro hemistiacutequio e con-siderar somente o segundo O segundo hemistiacutequio de 3 soa assim os uacutenicos caminhos de inqueacuterito a pensar satildeo por um lado que [ldquoArdquo] e tambeacutem que natildeo eacute natildeo-ser O fato singular eacute que aleacutem da repeticcedilatildeo da negaccedilatildeo (natildeohellip natildeo) tem-se tambeacutem a repeticcedilatildeo do verbo εἰμί (eacutehellip ser) Obviamente natildeo se tra-ta de uma ditografia e portanto teremos que diferenciar o primeiro negar (οὐκ ἔστι natildeo eacute) do segundo negar (μὴ εἶναι natildeo-ser) O primeiro negar eacute feito pela partiacutecula negativa οὐκ e o presente do indicativo ἔστι A traduccedilatildeo simples e direta soa natildeo eacute Natildeo parece haver dificuldade quanto agrave traduccedilatildeo em si restando apenas o problema da falta de sujeito Se ldquonatildeo eacuterdquo estaacute certo resta descobrir a que se refere essa negaccedilatildeo e natildeo haacute outro candidato que o seguinte μὴ εἶναι

11 Eacute possiacutevel mostrar (e o fazemos em sede apropriada) que a citaccedilatildeo platocircnica (v 7 2) tem a mesma estrutura do v 2 312 Humbert (1954 p 370) ldquoDrsquoailleurs drsquoune faccedilon geacuteneacuterale une certaine indeacutetermination inseacuteparable de la poeacutesie qui exprime moins qursquoelle ne suggegravere est peu favorable agrave un emploi rigoreux et preacutecis des particulesrdquo13 Alguns interpretam de fato como disjunccedilatildeo ex Mansfeld (1960) em Meijer (1997) p 100 et passim O argumento de Mansfeld parte da consideraccedilatildeo de que o silogismo disjuntivo natildeo precisa de sujeito (aqui o argumento de Parmecircnides natildeo precisaria de um sujeito para o esti) A (ἔστιν) ou B (οὐκ ἔστι μὴ εἶναι)14 Aparentemente (pelo que pude descobrir) natildeo haacute estudos atuais completos sobre as partiacuteculas em grego antigo e parece que o uacuteltimo foi de Denniston (1954) De laacute para caacute as partiacuteculas foram estudadas por trabalhos especiacuteficos e separadamente por aacutereas literaacuterias (eacutepica trageacutedia etc) deixando uma lacuna na poesia onde o uso eacute muito menos rigoroso e oferece maiores dificuldades de interpretaccedilatildeo Um status questionis da problemaacutetica de te kai possivelmente se encontra em um paper do qual por enquanto soacute consegui o abstract Bonifazi (2012)

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Natildeo parece haver atestaccedilatildeo de μὴ εἶναι na poesia eacutepica Pela pesquisa no TLG as primeiras atestaccedilotildees parecem ser da eacutepoca de Parmecircnides se natildeo sucessivas sendo que nesse caso pode ter sido ele o primeiro a usar tal expres-satildeo Mas aguardando resultados filoloacutegicos mais precisos podemos assegurar que a noccedilatildeo de εἶναι contida no segundo negar natildeo deve ser a mesma do primeiro sob pena de gerar uma contradiccedilatildeo de termos incompreensiacutevel mas que justamente nesse sentido aticcedilou a fantasia de muitos criacuteticos Penso por exemplo naqueles que quiseram ver as duas negaccedilotildees apenas no sentido gra-matical15 e acabaram achando o argumento de Parmecircnides fraco ou tautoloacutegi-co quando natildeo inconsistente No entanto o primeiro negar (οὐκ ἔστι) quer negar um outro negar (μὴ) especiacutefico aquele que nega εἶναι

Vou repetir a sequecircncia porque por um lado a accedilatildeo do primeiro negar eacute predicativa e por outro lado a noccedilatildeo predicada eacute maacutexima e acaba por gerar um pequeno desconforto argumentativo O primeiro negar nega um segundo negar aquele que nega εἶναι Ou seja o segundo negar eacute um ldquonegar algo espe-ciacutefico (εἶναι)rdquo O conceito se torna claro se se manteacutem presente o sentido psi-coloacutegico muito mais que o gnosioloacutegico da expressatildeo parmenidiana Negar algo eacute o que fazem ambas as expressotildees tanto do primeiro quanto do segundo negar Todavia o segundo negar eacute a accedilatildeo especiacutefica de negaccedilatildeo de εἶναι a qual eacute uma accedilatildeo da mente eacute um comportamento concreto o comportamento mental de negar εἶναι Parmecircnides argumenta que o caminho persuasivo eacute aquele que nega que se possa ter o comportamento mental especiacutefico de negar εἶναι natildeo eacute possiacutevel (ter o comportamento mental de) negar εἶναι

Esse eacute um ponto que gerou muita confusatildeo Parmecircnides natildeo nega que se possa negar como se ele proacuteprio ao afirmar que o natildeo-ser natildeo eacute estivesse cometendo o maior dos disparates autocontraditoacuterios Satildeo muitiacutessimos os que interpretam Parmecircnides dessa forma e que afinal acabam asseverando que Parmecircnides eacute o filosofo do ser (apenas) Parmecircnides usa gramaticalmente a negaccedilatildeo e tambeacutem a usa gnosiologicamente e epistemicamente Daacute para dizer mais daacute para dizer que ele usa a negaccedilatildeo de forma magistral como poucos souberam usar na histoacuteria da filosofia De fato o segundo hemistiacutequio asseve-ra que haacute um percurso mental que eacute persuasivo (v 4) quando natildeo segue μὴ εἶναι Mais uma vez o percurso mental de inqueacuterito eacute persuasivo quando natildeo

15 Por exemplo C Kahn cuja uacutenica conclusatildeo segundo sua leitura seria ldquoIf we restate Parmenidesrsquo claim in the modern formal mode it might run lsquom knows that prsquo entails lsquoprsquordquo (KAHN 2009 p 153-154)

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se comporta mentalmente negando εἶναι quando natildeo tem a atitude de negar εἶναι Resta descobrir o que eacute εἶναι

O termo εἶναι eacute um infinitivo Como se sabe o infinitivo eacute a expressatildeo verbal depauperada de todo sentido acessoacuterio a ponto que ldquo[c]rsquoest de cette fa-ccedilon neacutegative que lrsquoinfinitif a eacuteteacute deacutefini comme repreacutesentant lrsquoideacutee verbale nuerdquo (HUMBERT 1954 p 125) Os mais variados estudos natildeo conseguiram expli-car de forma convincente um sentido especiacutefico para o uso feito por Parmecircnides Por exemplo The verb ldquoberdquo in ancient Greek (KAHN 2003 passim) um dos estudos mais completos sobre o tema vecirc-se obrigado a atribuir a Parmecircnides um uso supostamente novo mas parece-me de forma improacutepria e desnecessaacuteria16 Eu penso que quando Parmecircnides quis utilizar um novo sentido inventou um novo termo como no caso de to eon (invenccedilatildeo na linha jaacute consolidada de subs-tantivar verbos no gecircnero neutro) Natildeo fez o mesmo com εἶναι e suas demais formas verbais razatildeo pela qual o sentido deve ser buscado nas acepccedilotildees tradicio-nais as quais satildeo muacuteltiplas e equiacutevocas como diraacute mais tarde Aristoacuteteles

No infinitivo εἶναι expressa a ideia geral do verbo num campo se-macircntico que vai desde ldquopresenccedilardquo ateacute a funccedilatildeo predicativa comum a muitas liacutenguas indo-europeias Creio que seja inuacutetil buscar um sentido preciso como ldquoexistirrdquo ou ldquoestar presente localmenterdquo ou outro εἶναι significa tudo isso principalmente porque eacute usado no infinitivo e como objeto Em portuguecircs a palavra que expressa com a mesma equivocidade a pluralidade de sentido numa riqueza proacutexima ao grego eacute o verbo ldquoserrdquo17 Parece-me portanto per-feitamente inuacutetil cercear o sentido a uma uacutenica acepccedilatildeo restriccedilatildeo que acaba gerando interpretaccedilotildees polecircmicas Ateacute mesmo para a acepccedilatildeo de ldquoexistirrdquo se construiacuteram criacuteticas a meu ver improacuteprias pelas quais se chega a discutir se Parmecircnides pensasse ou natildeo que seres natildeo existentes como quimeras e outros

16 Kahn extrai o sentido de εἶναι em Parmecircnides natildeo do uso que o eleata faz mas do contexto geral da mensagem parmenidiana Teoricamente seria um meacutetodo viaacutevel posto que se consiga entender corre-tamente a mensagem do filoacutesofo Na praacutetica no caso do poema de Parmecircnides que verte exatamente sobre εἶναι e seus derivados haacute um risco enorme ndash ao qual em minha visatildeo Kahn sucumbiu ndash de cair num petitio principii onde o sentido de εἶναι eacute extraiacutedo da mensagem filosoacutefica geral (Kahn o extrai de 129 que eacute o ldquoiacutendice parmenidianordquo e portanto poderia oferecer a ideia geral do poema) e por sua vez a mensagem filosoacutefica eacute obtida a partir do sentido de εἶναι Kahn acredita ter encontrado no sentido ldquoveritativordquo o novo uso que Parmecircnides faz de εἶναι17 Para εἰμί o Dicionaacuterio LSJ apresenta sete campos (de A a G) com 16 acepccedilotildees e mais vaacuterias suba-cepccedilotildees Para o verbo ldquoserrdquo o Dicionaacuterio Houaiss apresenta 19 acepccedilotildees das quais 14 verbais e 5 como substantivo as subacepccedilotildees satildeo exemplificadas mas natildeo classificadas

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seres mitoloacutegicos pudessem ser incluiacutedos na leitura predicamental18 Principal-mente eacute necessaacuterio manter a equivocidade do termo porque corresponde agrave forma mentis do autor e natildeo se devem exigir distinccedilotildees que natildeo eram processa-das por aquela cultura sob pena mais uma vez de atribuir aos antigos a nossa proacutepria forma mentis pecado fatal para um historiador da filosofia

Desse modo de iniacutecio a traduccedilatildeo de μὴ εἶναι com ldquonatildeo-serrdquo ateacute mes-mo por ser equiacutevoca (para a nossa sensibilidade) manteacutem a equivocidade proacute-pria da eacutepoca e da liacutengua da eacutepoca Posta entatildeo essa equivocidade precisamos saber se expressa um sentido filosoacutefico antes de tudo para a eacutepoca e depois para noacutes A comparaccedilatildeo de 23 οὐκ ἔστι μὴ εἶναι com 71 Οὐ δαμῇ εἶναι μὴ ἐόντα que eacute o testemunho de Platatildeo nos faz entender que nessas palavras natildeo soacute se encontra um sentido filosoacutefico mas ateacute mesmo o sentido principal da filosofia de Parmecircnides Retomando portanto a construccedilatildeo precisamos entender por que pensar o natildeo-ser (μὴ εἶναι) eacute algo que natildeo eacute possiacutevel ou que natildeo se deve fazer ou que simplesmente natildeo eacute (natildeo acontece) segundo a expressatildeo usada por Parmecircnides οὐκ ἔστι

Aleacutem da traduccedilatildeo simples e imediata haveria outras possibilidades de traduccedilatildeo19 essas variaccedilotildees podem ser interessantes para evidenciar nuances aqui e acolaacute contudo tendo a possibilidade de utilizar o verbo ldquoserrdquo num uso equiacutevoco proacuteximo do grego natildeo precisamos recorrer agrave circunlocuccedilotildees e pode-mos traduzir οὐκ ἔστι com ldquonatildeo eacuterdquo20 e μὴ εἶναι com ldquonatildeo-serrdquo Diz portanto o segundo hemistiacutequio

Os uacutenicos caminhos de inqueacuterito ao pensar satildeo

Por um lado [ldquoArdquo] e que natildeo eacute natildeo-ser

18 De novo Kahn (2009) que assinala ldquoTo take the philosophical objection first it is simply false to say that you cannot think or talk about (point out in speech phrazein) what does not exist And the falseness of this would be obvious to any Greek who reflected for a moment on the profusion of monsters and fantastic creatures in traditional poetry and myth from Pegasus to the children of Gaia with a hundred arms and fifty heads apiecerdquo (HESIOD THEOGONY 150 172) Mais agrave frente ressaltamos que exatamente na questatildeo filosoacutefica Kahn estaacute errado e Parmecircnides estaacute certo eacute impossiacutevel pensar e dizer o natildeo-ser19 Um outro caminho possiacutevel de traduccedilatildeo utilizado principalmente pelos autores de liacutengua inglesa por motivos idiossincraacutesicos da liacutengua eacute empregar uma expressatildeo cuja noccedilatildeo tambeacutem eacute ampliacutessima e equiacutevoca ldquocoisardquo Mas essa expressatildeo por ser um substantivo natildeo possui o aspecto dinacircmico que o verbo tem sendo assim necessaacuterio acrescentar o verbo ser portanto eacute possiacutevel traduzir com ldquoas coisas que satildeordquo Outra possibilidade eacute usar o pronome ldquoquerdquo em sentido predicativo em substituiccedilatildeo de coisa ou coisas Outra ainda eacute o pronome demonstrativo (aquilo isto) ou o indefinido (algo) com a mesma funccedilatildeo substitutiva de coisa(s) no sentido mais indefinido possiacutevel20 Laacute onde em inglecircs haacute obrigatoriedade de explicitar-se o sujeito ldquowhat is notrdquo

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Se tiveacutessemos seguido a ordem metodoloacutegica tradicional ao examinar 23 teriacuteamos analisado primeiro ἔστιν e depois οὐκ ἔστι μὴ εἶναι E se de-pois de estudar o segundo hemistiacutequio voltaacutessemos nossa atenccedilatildeo ao primeiro hemistiacutequio natildeo teriacuteamos ganho metodoloacutegico nenhum pois redundariacuteamos na leitura por pressupostos em que o sentido de ἔστιν eacute obtido pelo pressu-posto de que ἔστιν significa em grego ldquoeacuterdquo todavia dessa maneira se chegaria aos resultados jaacute conhecidos considerados natildeo totalmente satisfatoacuterios pelos proacuteprios autores de cada interpretaccedilatildeo O dado concreto eacute que o poema natildeo oferece nenhuma definiccedilatildeo direta ou indireta de ἔστιν embora apresente mui-tos σήματα de ἐὸν Em compensaccedilatildeo o poema trata amplamente de μὴ εἶναι E natildeo eacute preciso ir muito longe para encontrar referecircncias para a noccedilatildeo de μὴ εἶναι pois observamos muitos dados nos versos de 5 a 8 do nosso fragmento Iremos portanto ao verso 5 e subsequentes

33 OS VERSOS 5 A 8 he drsquoos ouk eacutestin te kaigrave os khreoacuten esti megrave eicircnai

tegraven deacute toi phraacutezo panapeutheacutea eacutemmen atarpoacuten

ouacutete gagraver agravev gnoiacutees toacute ge megrave eograven (ou gagraver anustoacuten)

ouacutete phraacutezais

o outro que natildeo eacute e portanto que eacute preciso natildeo ser

este entatildeo eu te digo eacute atalho de todo incriacutevel

pois nem conhecerias o que natildeo eacute (pois natildeo eacute exequiacutevel)

nem o dirias

Vamos relembrar a letra do verso 5 ἡ δrsquo ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι Haacute uma construccedilatildeo paralela ao verso 3 dois hemistiacutequios no segundo dos quais encontramos nosso μὴ εἶναι No verso seguinte o caminho eacute chamado de παναπευθέα termo que muito fez e faz sofrer os filoacutelogos O sentido geral poreacutem eacute claro quer se queira traduzir como ldquode todo incriacutevelrdquo (CAVALCANTE DE SOUZA 1978) quer como ldquocompletamente inconos-ciblerdquo (CORDERO 2005 p 219) ou ldquowholly without reportrdquo (COXON 2009 p 56) ou como outro Em suma a noccedilatildeo geral eacute de que haacute uma difi-culdade intransponiacutevel em seguir esse caminho e por que eacute explicado a seguir

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Assim como em certa metodologia de exposiccedilatildeo primeiro se enuncia a tese e depois se propotildee o argumento demonstrativo Parmecircnides primeiro enuncia (como conveacutem agrave expressatildeo de uma deusa) e depois diz por quecirc Ora a novida-de cultural eacute exatamente esse porquecirc onde as afirmaccedilotildees natildeo satildeo mais apenas impostas por sua forccedila hieraacutetica mas precisam de explicaccedilotildees21

O nosso primeiro problema eacute que os enunciados (no verso 3 antes no verso 5 agora) natildeo satildeo claros para noacutes Nesse sentido podemos pedir clareza aos argumentos Qual eacute o argumento Eis a resposta de Parmecircnides οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε μὴ ἐὸν (οὐ γὰρ ἀνυστόν) οὔτε φράσαις Aqui a traduccedilatildeo eacute mais clara e natildeo haacute muita divergecircncia entre os criacuteticos pois nem poderias co-nhecer o que natildeo eacute (pois eacute impossiacutevel) nem o dirias Haacute aqui um claro objeto do discurso τό μὴ ἐὸν o qual sem hesitaccedilatildeo desta vez podemos traduzir por ldquoo que natildeo eacuterdquo Sem hesitaccedilatildeo porque τὸ ἐὸν eacute uma expressatildeo desconhecida antes de Parmecircnides aparece com ele eacute estudada por seus disciacutepulos e pelos seus criacuteticos (de Melisso a Aristoacuteteles) e eacute reportada pela doxografia como invenccedilatildeo parmenidiana

A noccedilatildeo exposta por Parmecircnides eacute sequencial o caminho de inqueacuterito que pensa οὐκ ἔστιν aqui chamado de ἀταρπόν natildeo pode ser percorrido porque eacute impossiacutevel ldquoconhecerrdquo (γνοίης ndash segunda pessoa do optativo aoristo ativo de γιγνώσκω) o que natildeo eacute e vamos deixar para depois a questatildeo do di-zer (οὔτε φράσαις) Vamos concentrar nossa atenccedilatildeo sobre γνοίης Para noacutes eacute menos importante a traduccedilatildeo gramaticalmente e estilisticamente precisa e mais importante a precisatildeo da noccedilatildeo filosoacutefica exposta Em relaccedilatildeo a essa pa-lavra houve (e ainda haacute) uma discussatildeo acirrada Discute-se se traduzir por ldquoconhecerrdquo como fazem alguns (COXON 2009 p 56 GALLOP 1984 p 55 TARAacuteN 1965 p 32 e muitos outros) ou ldquoreconhecerrdquo como fazem outros (por exemplo BARNES 1982 p 124) e principalmente que sentido atribuir ao ldquoconhecerrdquo Eu penso que considerado o contexto natildeo se trata do conhecer epistecircmico mas do conhecer gnosioloacutegico ou seja da capacidade que a mente possui de estabelecer um processo de conhecimento E que se trate de processo eacute claro pela vaacuteria terminologia que Parmecircnides usa mas principalmente pela sua ὁδός que ficaraacute para sempre como metaacutefora perfeita dos procedimentos a serem tomados para realizar tarefas de qualquer natureza vindo a receber o nome de meacutetodo

21 Rossetti (2010) A necessidade de explicaccedilotildees natildeo eacute mais soacute dos autores mas tambeacutem da audiecircncia que agora requer argumentos

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Para o meacutetodo do pensar epistecircmico declara Parmecircnides natildeo eacute con-veniente seguir um certo percurso porque sobre ele haacute ao menos uma etapa onde se deve ldquoconhecerrdquo ndash ou seja onde se deve exercer a capacidade gnosioloacute-gica ndash o τό μὴ ἐὸν mas isso eacute impossiacutevel Na verdade tanto o termo ἀνυστόν (reportado por Simpliacutecio) quanto sua variante ἐφικτόν (reportada por Proclo) tecircm um sentido processual quero dizer que a tarefa de pensar o τό μὴ ἐὸν natildeo apresenta uma impossibilidade que se realiza imediatamente mas uma que implica um processo o qual eacute impossiacutevel em sua inteireza porque natildeo pode ser levado a termo De fato ἀνυστός significa ldquoser completadordquo ldquopraticaacutevelrdquo enquanto ἐφικτός significa ldquofaacutecil de alcanccedilarrdquo ldquoacessiacutevelrdquo Ambos os termos tecircm sentido dinacircmico e processual e a negaccedilatildeo que Parmecircnides faz significa que esse processo natildeo pode ser levado a termo

De que processo se trata Em minha visatildeo trata-se do processo concre-to de pensar a negaccedilatildeo do ser Parmecircnides eacute de aacuterea de formaccedilatildeo pitagoacuterica e os pitagoacutericos ndash como assinala Aristoacuteteles (Metaph 986a15-26) ndash naquela eacutepoca estudavam as oposiccedilotildees as mais abstratas tendo passado da oposiccedilatildeo mais antiga entre par e iacutempar correspondentes a limitado e ilimitado (πέρας e ἄπειρον) a um conjunto de dez oposiccedilotildees Nada desabona uma possiacutevel tentativa de Parmecircnides buscar uma oposiccedilatildeo (a qual era feita tambeacutem por negaccedilatildeo como nos evidencia a expressatildeo verbal da oposiccedilatildeo entre πέρας e ἄπειρον com o ldquoαrdquo privativo) para o ldquotodordquo aquele πάντα que encontramos no verso 128 do poema e que em breve transformar-se-ia em φύσις no curso da evoluccedilatildeo histoacuterica dos conceitos filosoacuteficos da antiga Greacutecia

A meditaccedilatildeo do ldquonatildeo-serrdquo eacute das mais interessantes a se fazer na filosofia Tentar ldquopensarrdquo o ldquonatildeo-serrdquo eacute uma experiecircncia profunda a qual leva a conside-raccedilotildees radicais natildeo soacute sobre a existecircncia humana mas sobre a existecircncia como um todo Que Parmecircnides tenha se dedicado a essa meditaccedilatildeo eacute seguro pois ele o diz indiretamente em 22 quando afirma que os uacutenicos caminhos ao pensar satildeo aquele que pensa ἔστιν e aquele que pensa οὐκ ἔστιν O que natildeo sa-bemos e natildeo podemos afirmar com certeza eacute que tipo de meditaccedilatildeo ele reali-zou Eis que os termos ἀνυστόν ou ἐφικτόν vecircm nos socorrer e nos informam que se trata de uma meditaccedilatildeo processual que natildeo acaba Descrevi esse proces-so detalhadamente em outro trabalho (GALGANO 2010) e o repetirei aqui brevemente Pensar o natildeo-ser significa pensar concretamente a negaccedilatildeo do ser concreto (do mundo sensiacutevel ou inteligiacutevel) de cada ser Para tornar mais claro o processo pode-se comeccedilar negando a existecircncia de um ente depois daquilo

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O natildeo-ser em Parmecircnides de Eleia Artigos Articles

que o rodeia depois do planeta depois do universo (sensiacutevel e inteligiacutevel atual e possiacutevel) e depois do mundo como um todo enfim do todo

O problema principal dessa meditaccedilatildeo eacute exatamente pensar se o sujeito pertence ou natildeo ao todo Quando se pensa a negaccedilatildeo do todo permanece ainda o sujeito pensante que pensa o todo como se o olhasse de um ponto virtual externo a ele E quando se tenta incluir o sujeito pensante de duas uma 1) ou o sujeito acreditando pensar a si proacuteprio dentro do todo reapa-rece externamente22 ou 2) o sujeito cognitivo desaparece e com ele qualquer noccedilatildeo cognitiva de ldquonatildeo-serrdquo Podemos assegurar claramente que o processo de pensar o τό μὴ ἐὸν natildeo termina seja porque eacute impossiacutevel incluir o sujeito no todo pois ele sempre reaparece a cada tentativa seja porque o processo quan-do inclui o sujeito no todo interrompe-se sendo assim impossiacutevel completar a negaccedilatildeo do todo Natildeo podemos saber se o modelo meditativo de Parmecircnides foi exatamente este mas natildeo me parece haver nada em desabono23

Entretanto qual eacute a importacircncia de natildeo se poder pensar a negaccedilatildeo de tudo Seguindo o argumento parmenidiano o caminho (ἀταρπόν) cognitivo que pensa τό μὴ ἐὸν natildeo pode ser concluiacutedo Ora ἀταρπόν eacute um sinocircnimo que Parmecircnides usa para o ὁδός do verso 22 (ὁδοὶ) isso quer dizer que o segundo caminho de inqueacuterito pode ser iniciado mas natildeo pode ser levado a termo Poreacutem se natildeo pode ser levado a termo por que eacute identificado como caminho Por que natildeo eacute excluiacutedo jaacute de iniacutecio quando a deusa ao inveacutes de anunciar os uacutenicos (moucircnai plural) caminhos natildeo anuncia um uacutenico cami-nho A resposta a essa pergunta torna clara a estranha afirmaccedilatildeo de que o caminho do pensar do segundo hemistiacutequio do verso 5 eacute necessaacuterio que per-maneccedila natildeo ser (χρεών ἐστι μὴ εἶναι) Parmecircnides assevera que embora seja um caminho que jamais pode ser completado ele ao mesmo tempo natildeo pode ser eliminado continua a pertencer aos (dois) uacutenicos caminhos de inqueacuterito ele eacute necessaacuterio

22 Se penso na aniquilaccedilatildeo de tudo incluindo a mim mesmo terei que pensar a mim mesmo aniquilado contudo esse pensar gerando esse novo pensamento gera um novo sujeito cognitivo pensante se aniquilo esse novo pensamento terei um novo sujeito cognitivo que pensa essa nova aniquilaccedilatildeo e assim por diante ad infinitum23 Natildeo quero garantir que Parmecircnides estreie uma filosofia do sujeito embora isso natildeo possa ser excluiacutedo a priori jaacute que os embriotildees de uma tal filosofia apareceratildeo em breve com Soacutecrates Acredito que se deve pensar mais no sujeito como o atleta campeatildeo das Olimpiacuteadas ou seja aquele capaz de cumprir (ou natildeo) certas proezas como fica extraordinariamente evidenciado no paradoxo de Zenatildeo cuja metaacutefora da filosofia (e do filoacutesofo) como tartaruga mostra que o pensar filosoacutefico eacute capaz de proezas maiores do que as proezas do proacuteprio Aquiles tidas como insuperaacuteveis pela cultura da eacutepoca

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Vamos de novo reconstruir essa parte do argumento com esse novo elemento os uacutenicos caminhos de inqueacuteritos satildeo

1) por um lado o caminho ao pensar que [versos 3 e 4] e

2) por outro lado o caminho ao pensar que [ldquoCrdquo (verso 5 primeiro hemistiacute-quio)] e que eacute necessaacuterio (que seja) natildeo-ser

De fato esse segundo caminho (ἀταρπόν) eacute inviaacutevel porque ldquonatildeo se consegue levar a cabo a reflexatildeordquo (γνοίης) quando se pensa o τό μὴ ἐὸν Ou seja fica muito clara a equaccedilatildeo entre o segundo caminho (v 5) e a reflexatildeo sobre o natildeo ser (τό μὴ ἐὸν) Finalmente o segundo hemistiacutequio do v 5 diz que esse eacute o caminho ao pensar que eacute necessaacuterio que seja μὴ εἶναι o qual agora sabemos eacute o caminho que tenta pensar o natildeo-ser (τό μὴ ἐὸν) Sabe-mos agora o que Parmecircnides chama de μὴ εἶναι Para Parmecircnides μὴ εἶναι eacute a estrutura do pensamento quando tenta inexoraacutevel e malogradamente pensar o natildeo-ser (τό μὴ ἐὸν)

Temos portanto a semacircntica de μὴ εἶναι e sabemos que significa a impossibilidade de pensar o natildeo-ser Com esse dado podemos reconstruir o resto do argumento mas primeiro vamos abordar a questatildeo do οὔτε φράσαις A premissa principal eacute o pano de fundo da pesquisa parmenidiana a qual estaacute em busca do discurso confiaacutevel como a deusa diz claramente no encerramen-to do fragmento 8 (talvez ecoando simetricamente alguma parte perdida do poema)24 Pensar o τό μὴ ἐὸν natildeo eacute possiacutevel logo ele eacute indiziacutevel Ora isso significa nem mais nem menos que dizer que o que eacute impossiacutevel eacute contra o sentido do dizer Eacute indiziacutevel natildeo porque natildeo se sabe do que se trata como querem muitos autores que fazem a leitura meramente epistemoloacutegica25 Eacute indiziacutevel porque dizer o ldquonatildeo-serrdquo significa fazer uma promessa que jamais se cumpriraacute ao se dizer ldquonatildeo-serrdquo parece que a expressatildeo aponta algo possiacutevel ou seja a negaccedilatildeo do ser e de fato quem estaacute desavisado assim acredita Mas a expressatildeo ldquonatildeo-serrdquo quer referir-se a algo que jamais seraacute cumprido que o

24 850-2 ldquoἐν τῶι σοι παύω πιστὸν λόγον ἠδὲ νόημα ἀμφὶς ἀληθείης δόξας δrsquo ἀπὸ τοῦδε βροτείας μάνθανε κόσμον ἐμῶν ἐπέων ἀπατηλὸν ἀκούωνrdquo ldquoNeste ponto encerro fidedigna palavra e pensamento sobre a verdade e opiniotildees mortais a partir daqui aprende a ordem enganadora de minhas palavras ouvindordquo (CAVALCANTE DE SOUZA 1978)25 Trata-se da leitura epistemoloacutegico-predicamental se natildeo sei a cor de um objeto (porque a cor natildeo eacute natildeo estaacute acessiacutevel ao meu conhecimento) natildeo posso falar da cor do objeto

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ser seja negado Esta eacute exatamente a noccedilatildeo expressa pelas palavras de Platatildeo jamais prevaleceraacute que natildeo entes sejam26

A expressatildeo μὴ εἶναι representa essa impossibilidade de pensamento e portanto eacute um dizer impossiacutevel o que se opotildee radicalmente agrave proacutepria noccedilatildeo de dizer a qualquer significar enquanto discurso confiaacutevel do mundo e da sua ordem Surge a pergunta mas se natildeo se pode dizer μὴ εἶναι se isso eacute impossiacute-vel natildeo haacute uma flagrante contradiccedilatildeo na deusa jaacute que ela proacutepria diz e cons-troacutei um argumento sobre o dizer μὴ εἶναι A objeccedilatildeo seria vaacutelida se a deusa dissesse o que eacute impossiacutevel de dizer ou seja se ela praticasse a impossibilidade Todavia a deusa natildeo diz o impossiacutevel a deusa aponta para o impossiacutevel indica o impossiacutevel pois ela diz que existem a ldquonoccedilatildeo de impossibilidade do pensarrdquo e a ldquonoccedilatildeo de impossibilidade do dizerrdquo Em outras palavras a deusa diz qual eacute o limite do pensar e qual eacute o limite do dizer Aleacutem desse limite o pensamento natildeo pode ir porque eacute impossiacutevel e tambeacutem o dizer natildeo pode ir porque eacute im-possiacutevel A impossiacutevel regiatildeo para aleacutem desse limite natildeo eacute admitida pelo dizer eacute contra o dizer eacute contraditoacuteria

A expressatildeo μὴ εἶναι em Parmecircnides eacute exatamente a palavra que ex-pressa o processo mental que noacutes chamamos contradiccedilatildeo e que ele primeiro assim chamou (οὔτε φράσαις natildeo diziacutevel) Eacute estranho que nenhum criacutetico te-nha percebido isso claramente Todos afirmam que o princiacutepio de natildeo contra-diccedilatildeo estaacute implicado em Parmecircnides assim como os outros princiacutepios loacutegicos pois os argumentos presentes no poema satildeo desenvolvidos segundo a natildeo con-tradiccedilatildeo poreacutem o princiacutepio natildeo eacute enunciado Alguns como Cordero veem justamente explicitado o princiacutepio do terceiro excluiacutedo (816 ἔστιν ἢ οὐκ ἔστιν) mas ningueacutem quis ver claramente que natildeo soacute a noccedilatildeo como tambeacutem a proacutepria palavra ldquocontradiccedilatildeordquo (οὔτε φράσαις natildeo diziacutevel contra o diziacutevel contra a dicccedilatildeo) estaacute explicitada no poema Penso que a razatildeo fundamental para que acontecesse esse lapsus tenha que ser procurada na grande atenccedilatildeo dada ao ldquoserrdquo e na pouca dada ao ldquonatildeo-serrdquo Como observaremos mais adiante por causa desse lapsus eu penso que natildeo se conseguiu entender plenamente a estrutura do fragmento 2 o qual simplesmente natildeo apresenta um silogismo disjuntivo nem nenhuma contradiccedilatildeo entre o caminho do ldquoserrdquo e o caminho do ldquonatildeo-serrdquo Parmecircnides assevera justamente que a expressatildeo ldquonatildeo-serrdquo eacute contraditoacuteria o ldquonatildeo-serrdquo natildeo pode ser dito porque ldquonatildeo-serrdquo eacute contraditoacute-

26 As duas expressotildees tecircm inversatildeo de predicado e negaccedilatildeo no entanto a noccedilatildeo permanece a mesma que os entes natildeo sejam (perecimento no fr 8) e que os natildeo entes sejam (nascimento no fr 8) A noccedilatildeo eacute o tracircnsito entre ser e natildeo ser

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rio e a expressatildeo ldquonatildeo-serrdquo indica tatildeo somente uma impossibilidade concreta aquela de que se realize o impossiacutevel

Vamos voltar ao nosso argumento e agrave questatildeo que deixamos em suspenso por que eacute necessaacuterio que μὴ εἶναι seja Sabemos que os versos 7 e 8 relatam um processo malogrado de pensar o natildeo ente (τό μὴ ἐὸν) Uso agora a palavra ente porque se justifica uma diferenciaccedilatildeo embora tanto ldquoenterdquo quanto ldquoserrdquo indiquem expressotildees gerais e natildeo individuais ldquoEnterdquo vem por conseguinte a significar o ente concreto aquele que eacute Parmecircnides sustenta que natildeo se pode pensar e dizer τό μὴ ἐὸν o ldquonatildeo enterdquo Esse processo recebe o nome de μὴ εἶναι ldquonatildeo-serrdquo a esse processo noacutes chamamos contradiccedilatildeo27 Entatildeo a indicaccedilatildeo eacute esta haacute um caminho ao pensar que pensa μὴ εἶναι (a contradiccedilatildeo) e eacute necessaacuterio que assim seja porque (vou repetir trecircs vezes de forma diferente28 para significar a mesma coisa)

1) se natildeo houvesse a contradiccedilatildeo

2) se natildeo se tem a noccedilatildeo de contradiccedilatildeo

3) se natildeo se sabe o que eacute contradiccedilatildeo

cai-se no discurso contraditoacuterio o que impede o inqueacuterito confiaacutevel Eacute ne-cessaacuterio saber que μὴ εἶναι (o processo de contradiccedilatildeo) eacute um caminho a ser evitado porque cria pensamentos e discursos contraditoacuterios

Vejamos de novo nosso fragmento com os elementos esclarecidos ateacute aqui

os uacutenicos caminhos de inqueacuterito a pensar satildeo

por um lado que [ versos 3 e 4]

e por outro lado que οὐκ ἔστιν e que eacute necessaacuterio que seja a contradiccedilatildeo (μὴ εἶναι)

a qual eacute um caminho natildeo criacutevel

pois eacute impossiacutevel pensar e dizer o natildeo ente (τό μὴ ἐὸν)

27 Mesmo para noacutes a contradiccedilatildeo eacute um processo porque indica a posiccedilatildeo de algo em contraposiccedilatildeo com mais algo isso significa que esses dois algos tecircm que ser relacionados para que haja contradiccedilatildeo do contraacuterio algo e mais algo podem conviver sem contraditoriedade Contudo esse assunto estaacute fora de tema e requer muitas outras providecircncias para o bom discernimento28 Repito buscando clareza pois nossas construccedilotildees comuns de linguagem nesses assuntos costumam ldquopatinarrdquo

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Penso que o espaccedilo conceitual deixado por οὐκ ἔστιν agora se pre-encha quase que por si haacute um caminho de inqueacuterito ao pensar que ldquonatildeo eacuterdquo e que eacute necessaacuterio que se considere contraditoacuterio porque eacute caminho que natildeo leva a lugar nenhum

A expressatildeo οὐκ ἔστιν eacute a negaccedilatildeo da terceira pessoa do indicativo de εἰμί a expressatildeo em si natildeo tem nada de especial significa tatildeo somente ldquonatildeo eacuterdquo restando em aberto o problema da ausecircncia de sujeito Mas agora sabemos o argumento complexo que estaacute na raiz da expressatildeo e a meu ver natildeo faz muito sentido a questatildeo de buscar um sujeito ou um objeto para definir se eacute usado de forma transitiva ou intransitiva se expressa existecircncia ou predicaccedilatildeo e as muitas combinaccedilotildees que podem ser montadas a partir da equivocidade do uso de εἰμί No entanto o acircmbito semacircntico foi evidenciado e estaacute claro e aleacutem do mais tem o testemunho de Platatildeo a confirmar o campo semacircntico da negaccedilatildeo de εἰμί nas vaacuterias formas estaacute relacionado a uma reflexatildeo sobre a impossibili-dade dessa negaccedilatildeo Obviamente para dizer que algo eacute impossiacutevel de alguma forma tenho que indicar essa impossibilidade com alguma expressatildeo Assim se digo ldquotriacircngulo quadradordquo aponto para uma impossibilidade jaacute que por defi-niccedilatildeo a essecircncia do triacircngulo exclui a essecircncia do quadrado logo a expressatildeo ldquotriacircngulo quadradordquo natildeo significa aquilo que parece prometer ou seja natildeo significa uma figura geomeacutetrica especial que eacute ao mesmo tempo triacircngulo e quadrado dizer ldquotriacircngulo quadradordquo eacute dizer algo ldquoindiziacutevelrdquo ldquonatildeo diziacutevelrdquo (na medida em que o diziacutevel quer expressar sentido) ldquoque nega o diziacutevelrdquo ldquoque eacute contra o diziacutevelrdquo que eacute contraditoacuterio

A semacircntica do ldquonatildeo serrdquo eacute fortiacutessima e estaacute muito aleacutem das sutilezas gramaticais morfoloacutegicas e sintaacuteticas e estas simplesmente natildeo afetam aquela O assunto tratado eacute tatildeo forte que ultrapassa qualquer forma linguiacutestica a pon-to de que esse assunto a ordem do ser e do natildeo-ser no mundo eacute responsaacutevel pela determinaccedilatildeo da lei da linguagem e natildeo vice-versa como bem entendeu Platatildeo no Sofista onde a teoria da predicaccedilatildeo surge em funccedilatildeo de uma refle-xatildeo sobre a ordem das leis baacutesicas do mundo Com efeito o approach linguiacutes-tico ao poema pode proceder ateacute certo ponto dali em diante o poema eacute fran-camente filosoacutefico e a chave linguiacutestica natildeo eacute suficiente para o acesso Isso quer dizer que com a chave linguiacutestica natildeo se abre a porta da questatildeo filosoacutefica do poema Se a questatildeo eacute que ldquojamais o natildeo ser pode se tornar serrdquo como (apro-ximadamente com essas palavras) argumenta Platatildeo citando Parmecircnides en-tatildeo diante da semacircntica que οὐκ ἔστιν apresenta discutir o sujeito de οὐκ ἔστιν se torna tarefa menor Considerada a desproporccedilatildeo entre o conteuacutedo (a

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semacircntica) e o recipiente (a palavra) entre o significado e o significante natildeo eacute impossiacutevel que οὐκ ἔστιν seja tatildeo somente uma expressatildeo simplificada quem sabe ateacute mesmo uma simplificaccedilatildeo didaacutetica pois o conteuacutedo do conceito estaacute expresso e justificado depois nos versos 7 e 8

O caminho de pensar que natildeo eacute e de pensar que eacute necessaacuterio natildeo ser eacute o caminho que afirma a necessidade de que a noccedilatildeo de natildeo-ser permaneccedila estaacutevel A contradiccedilatildeo tem que permanecer e ser identificada como tal pois eacute a uacutenica maneira de evitar que ela entre no pensamento e no discurso Se o ldquonatildeo-serrdquo natildeo for considerado contraditoacuterio a contradiccedilatildeo invade e domina o caminho de inqueacuterito o qual deixa de possuir πίστις ἀληθής (130) Assim eacute preciso que esse caminho seja identificado como μὴ εἶναι por um lado o ldquonatildeo-serrdquo eacute incognosciacutevel (οὔτε γὰρ ἂν γνοίης) mas por outro lado eacute neces-saacuterio que se saiba que ele eacute incognosciacutevel Saber do incognosciacutevel garante o conhecimento29 pois de fato ao natildeo se identificar o ldquonatildeo-serrdquo cai-se no risco de pensar que ldquoserrdquo e ldquonatildeo-serrdquo satildeo o mesmo e natildeo o mesmo como Parmecircni-des afirma em DK 6 5-6 Necessariamente o caminho que pensa οὐκ ἔστιν leva ao processo de contradiccedilatildeo (μὴ εἶναι) e a natildeo conclusatildeo do caminho (ἀνυστόν) natildeo eacute evidente na expressatildeo pelo contraacuterio τό μὴ ἐὸν parece uma negaccedilatildeo comum como qualquer outra poreacutem natildeo o eacute por isso eacute um saber destinado ao saacutebio e natildeo aos mortais porque eacute um saber fruto de uma reflexatildeo

34 DE VOLTA AOS VERSOS 3 E 4

Penso que podemos agora voltar ao verso 23 ao nosso segundo he-mistiacutequio onde aparece a expressatildeo μὴ εἶναι da qual jaacute temos a semacircntica Podemos entatildeo reconstruir ldquoos uacutenicos caminhos de inqueacuterito a pensar satildeo

por um lado a pensar que [ldquoArdquo] e tambeacutem a pensar que οὐκ ἔστι μὴ εἶναι este eacute caminho de persuasatildeo pois verdade acompanha e

por outro lado a pensar que ldquonatildeo eacuterdquo e tambeacutem a pensar que eacute necessariamente um percurso de pensamento contraditoacuterio porque eacute um caminho ldquoimpossiacutevelrdquo (παναπευθέα) pois o pensamento do ldquonatildeo enterdquo natildeo pode ser completado

O οὐκ ἔστι do verso 3 parece ser diferente do οὐκ ἔστιν do verso 5 Enquanto no 5 ele eacute quase que o nome do caminho (talvez uma simplificaccedilatildeo didaacutetica) no 3 parece significar simplesmente ldquonatildeo eacuterdquo em sentido comum

29 Estaacute aqui uma semente do socratismo

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predicativo De fato esse eacute o caminho da persuasatildeo e portanto eacute o caminho do pensamento natildeo-contraditoacuterio Ali a persuasatildeo era impossiacutevel pela con-tradiccedilatildeo aqui eacute possiacutevel pela natildeo-contradiccedilatildeo Sabemos que a expressatildeo μὴ εἶναι eacute a expressatildeo da contradiccedilatildeo suprema de sorte que a natildeo-contradiccedilatildeo eacute a negaccedilatildeo de μὴ εἶναι A traduccedilatildeo de οὐκ ἔστι fica faacutecil embora para a nossa sensibilidade possa parecer algo improacuteprio usar duas vezes οὐκ ἔστι de forma natildeo perfeitamente uniacutevoca a dois versos de distacircncia Logo para o segundo hemistiacutequio do v 3 mantenho esta traduccedilatildeo ldquonatildeo eacuterdquo em parte ambiacutegua para nossas exigecircncias mas que soa perfeitamente harmocircnica com o discurso par-menidiano [] ao pensar que [ldquoArdquo] e que natildeo eacute ldquocontradiccedilatildeordquo (μὴ εἶναι)

Acredito por fim que podemos abordar facilmente o ἔστιν do verso 3 que tanto fez e faz penar os estudiosos de Parmecircnides Aqui de novo a grandeza da questatildeo cosmoloacutegica envolvida ndash a coerecircncia eou a contradito-riedade do real ndash simplesmente torna tatildeo minuacutescula a questatildeo do sujeito de ἔστιν que ela quase desaparece Eu tenho a tendecircncia a pensar que a falta de sujeito seja uma simplificaccedilatildeo didaacutetica30 cuja irregularidade linguiacutestica ajuda na memorizaccedilatildeo31 Todavia afinal tomo partido e entro tambeacutem no quarto grupo daqueles listados por Cordero o sujeito deve ser extraiacutedo do predicado isolado pois ἔστιν produz o sujeito32 De qualquer forma o sentido filosoacutefico eacute preciso haacute um caminho de inqueacuterito ao pensar que eacute aquele que pensa o ldquoeacuterdquo esse mesmo caminho eacute aquele ao pensar que natildeo eacute (e natildeo pode ser33) ldquocon-tradiccedilatildeordquo Depois haacute um outro caminho aquele ao pensar que ldquonatildeo eacuterdquo que eacute o caminho ao pensar que leva necessariamente agrave contradiccedilatildeo O primeiro eacute o 30 Segundo o relato platocircnico no diaacutelogo Parmecircnides Zenatildeo acompanhado de seu mestre foi para as Panateneias com a finalidade de defender a filosofia de seu mestre esclarecendo com seu livro repleto de paradoxos as ideias parmenidianas Isso sugere que o poema natildeo expunha articuladamente a filosofia de Parmecircnides mas que constituiacutesse um proacute-memoacuteria com as ideias em sua forma essencial depois elaboradas nas aulas pessoais (KURFESS 2012)31 Eacute extraordinaacuterio como essa simplificaccedilatildeo didaacutetica continue ativa por um lado distorcendo entretanto por outro mantendo viva a mensagem parmenidiana em todas as escolas de ensino meacutedio onde se estuda filosofia vox populi Parmecircnides eacute o filoacutesofo que disse ldquoO que eacute eacute e o que natildeo eacute natildeo eacuterdquo Por outro lado o estrangeiro de Eleia no Sofista lembra outro verso e natildeo este32 Essa questatildeo natildeo aprofundada aqui natildeo possui relevacircncia filosoacutefica no argumento apresentado pode ter relevacircncia se se considera o tipo de reflexatildeo ou seja se se discute a ldquoexperiecircnciardquo do natildeo-ser e principalmente a experiecircncia concreta de Parmecircnides que talvez esteja ligada a praacuteticas de incubaccedilatildeo Nesse caso a dimensatildeo reflexiva adentra a dimensatildeo oniacuterica a qual possui outra sintaxe e onde um simples ἔστιν vale mais de mil articulaccedilotildees sintaacuteticas Natildeo sabemos com certeza dessas praacuteticas em Eleia contudo esse sentido preacute-sintaacutetico natildeo estaacute descartado inclusive alguns estudiosos entre os quais o proacuteprio Cordero atribuem ao ἔστιν o sentido de um grito como um Eureka Sugestotildees nesse sentido se encontram na minha dissertaccedilatildeo sobre Melisso (GALGANO 2010)33 A interpretaccedilatildeo modal eacute tambeacutem perfeitamente coerente aqui

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caminho que estabelece o discurso coerente (persuasivo) e o segundo natildeo leva a lugar nenhum e deve ser evitado Mas para que se saiba o que deve ser evi-tado eacute preciso que se conheccedila a impossibilidade do segundo caminho A fim de que se possa seguir o primeiro caminho eacute necessaacuterio saber que existe um outro sempre agrave espreita o qual parece oferecer a verdade mas que natildeo oferece uma verdade confiaacutevel que leva necessariamente agrave contradiccedilatildeo de pensamento e de expressatildeo linguiacutestica

4 O MEacuteTODO DA NAtildeO-CONTRADICcedilAtildeO

Parmecircnides provavelmente a partir de sugestotildees pitagoacutericas medita sobre a oposiccedilatildeo ao que existe e assim descobre o ldquonatildeo-serrdquo Descobre que ldquonatildeo serrdquo ou seja negar o ser negar o que haacute eacute de todo impossiacutevel (natildeo eacute possiacutevel completamente) Entende entatildeo que o ldquonatildeo-serrdquo essa impossibilidade eacute algo que a mente pensa julgando que esse pensamento leva por um caminho mas que na verdade ele descobre leva por outro caminho aquele que nunca che-ga a lugar nenhum Esse caminho que leva para lugar nenhum eacute o caminho dos mortais os quais confundem ser e natildeo ser No entanto o saacutebio deve saber distinguir por um lado o caminho do ldquoeacuterdquo que eacute o caminho do discurso natildeo contraditoacuterio e por outro lado o caminho do ldquonatildeo eacuterdquo que eacute o caminho do discurso que eacute tornado vatildeo pela contradiccedilatildeo

Parmecircnides descobre a contradiccedilatildeo (pela meditaccedilatildeo sobre o natildeo-ser) e percebe que ela eacute motivo de descaminho no discurso sobre o mundo Assim finalmente ele anuncia que a contradiccedilatildeo deve ser evitada A esse enunciado noacutes chamamos de princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo que aqui eacute aquele na versatildeo de Parmecircnides (depois a partir de Platatildeo e Aristoacuteteles haveraacute outras versotildees) Parmecircnides trabalha em acircmbito cosmoloacutegico e sua preocupaccedilatildeo ndash como os de seus colegas na eacutepoca ndash eacute com o mundo com a totalidade das coisas com os πάντα de seu proecircmio (128) Nesse acircmbito cosmoloacutegico descobre que haacute um princiacutepio do mundo pelo qual se daacute uma impossibilidade a contradiccedilatildeo A contradiccedilatildeo eacute um princiacutepio porque o que haacute (πάντα) enquanto todo escapa agrave negaccedilatildeo total Eis que a contradiccedilatildeo eacute princiacutepio tanto quanto a natildeo-contra-diccedilatildeo porque eacute a contradiccedilatildeo que permite a natildeo-contradiccedilatildeo Sem a noccedilatildeo de contradiccedilatildeo se anda com sentidos incertos como os mortais

O valor dessa afirmaccedilatildeo eacute historicamente inabalaacutevel porque Parmecircni-des partindo de um discurso sobre o mundo como que visto de fora por um observador (como Anaximandro via o mundo olhando seu pinax - cf ROS-

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SETTI 2013) alcanccedila um discurso que inclui o observador enquanto obser-vador estreando assim antes de tudo um discurso sobre os entes (ontologia) todos os entes incluindo os entes de pensamento (veja-se o famoso fragmento 3 onde se lecirc que pensar e ser satildeo o mesmo) Para ele o saacutebio natildeo eacute mais aquele que sabe soacute sobre as coisas externas ndash como o antigo xamatilde cuja figura indi-vidual se dissolve na mera intermediaccedilatildeo com o divino ndash poreacutem eacute tambeacutem aquele que consegue pensar sobre as coisas externas ou seja aquele que tem um domiacutenio cognitivo sobre os pensamentos de inqueacuterito e portanto sabe so-bre si mesmo Assim o saacutebio deve pensar por proacutepria conta e julgar pelo novo criteacuterio e natildeo pelo habitual discurso (κρῖναι δὲ λόγωι DK 75) ou seja natildeo deve julgar pelo discurso mas julgar o discurso porque agora o discurso enri-quecido de uma lei universal (a lei das αρχάι ἔστιν e οὐκ ἔστιν) possui uma medida de juiacutezo Parmecircnides amplia o mundo acrescentando ao mundo fiacutesico os mundos do pensamento e da linguagem Eis porque as αρχάι de Parmecircni-des sendo duas permanecem duas justamente eliminado uma delas deixando alguns criacuteticos enlouquecidos na discussatildeo sobre o monismo ou o dualismo de acordo com Parmecircnides o mundo eacute um todavia os sentidos nos enganam natildeo na pluralidade das coisas mas no argumento a respeito da pluralidade das coisas e principalmente ndash aspecto que ele discute explicitamente ndash a respeito do devir das coisas Haacute um princiacutepio que natildeo pode ser eliminado a contra-diccedilatildeo o qual eacute um princiacutepio de erro humano quando se elimina quando se desconsidera quando se faz de conta que natildeo existe a contradiccedilatildeo se instaura quando o princiacutepio eacute levado em conta a contradiccedilatildeo pode ser evitada

Eacute uma conceituaccedilatildeo esdruacutexula para noacutes tambeacutem porque temos que ter (a noccedilatildeo de) a contradiccedilatildeo para eliminar a contradiccedilatildeo temos que saber o que eacute contradiccedilatildeo para que possamos perceber quando o discurso eacute con-traditoacuterio Esses conceitos satildeo misteriosos ateacute agora e satildeo estranhas criaturas de nossas mentes Por exemplo a noccedilatildeo de ldquoimpossiacutevelrdquo obviamente (isto eacute para a nossa pragmaacutetica) natildeo se refere a nada de concreto no entanto temos essa noccedilatildeo e a usamos com o maacuteximo proveito outro exemplo a noccedilatildeo de ldquoinfinitordquo noccedilatildeo que natildeo se refere a algo pragmaticamente concreto mas que usamos igualmente com maacuteximo proveito O mesmo deve ser dito da noccedilatildeo de contradiccedilatildeo ou da noccedilatildeo de nada absoluto que usamos pragmaticamente com maior ou menor proveito

Parmecircnides encontra esse caminho e o expotildee Eacute um caminho assom-broso anti-intuitivo mas incontestaacutevel Dessa forma natildeo eacute de estranhar se a soluccedilatildeo platocircnica eacute a eliminaccedilatildeo fiacutesica da noccedilatildeo de nada absoluto (o par-

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riciacutedio) com sucessivo ldquoadeusrdquo34 achando de tecirc-lo ultrapassado Mas o nada absoluto enquanto noccedilatildeo contraditoacuteria permanece Assim como permane-ce a explicaccedilatildeo defeituosa do devir o qual assim como o conhecemos uma passagem do nada ao ser no nascimento e do ser ao nada no perecimento estaacute mal explicado Daqui por diante os comentaacuterios filosoacuteficos possiacuteveis satildeo inuacutemeros por conseguinte paro meu estudo neste ponto e proponho a versatildeo do fragmento 2 segundo a conceituaccedilatildeo apresentada ateacute aqui alterando de pouco a excelente versatildeo baacutesica de Cavalcante de Souza

Pois bem eu te direi e tu recebe a palavra que ouviste

os uacutenicos caminhos de inqueacuterito que satildeo a pensar

o primeiro que eacute e portanto que natildeo eacute (o caminho da) contradiccedilatildeo

de persuasatildeo eacute o caminho (pois agrave verdade acompanha)

o outro que natildeo eacute e portanto que eacute necessariamente (o caminho da) contradiccedilatildeo

este entatildeo eu te digo eacute atalho de todo incriacutevel

pois nem conhecerias o que natildeo eacute (pois natildeo eacute exequiacutevel)

nem o dirias

GALGANO N S Non-being in Parmenides of Elea Transformaccedilatildeo Mariacutelia v 41 n 2 p 9-36 AbrJun 2018

ABSTRACT In fragment DK 28 B 2 of his poem Parmenides presents his method for distinguishing true persuasion from the lack of true persuasion His famous proposal of these two ways of thinking form a complex statement of a system that intends to guarantee the veracity of statements in order to obtain reliable discourse the only discourse capable of true persuasion The present paper shows that the central role in Parmenidian argumentation is attributed to non-being a notion derived from a reflection on the impossibility of the negation of being Thus the whole fragment is interpreted in terms of this central notion We show that Parmenides discovered the impossibility of negation which we now call lsquocontradictionrsquo and that he articulated the means for avoiding contradiction in thought and discourse a rule which today we call the principle of non-contradiction The study presented here is a detailed investigation of the notion of non-being in the DK 28 B 2 fragment and includes a new translation of it

KEYWORDS Parmenides Non-being Non-contradiction Eleatism Parricide

34 Platatildeo Soph 258e7-259a1 ἡμεῖς γὰρ περὶ μὲν ἐναντίου τινὸς αὐτῷ χαίρειν πάλαι λέγομεν εἴτrsquo ἔστιν εἴτε μή λόγον ἔχον ἢ καὶ παντάπασιν ἄλογον

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aos natildeo entes implicando apenas variaccedilotildees formais de εἶναι dessa vez com o particiacutepio no neutro plural τὰ ἐοντα que natildeo estaacute presente no fr 211 Esses elementos precisam ser investigados

Vamos comeccedilar pela conjunccedilatildeo12 τε καὶ em geral traduzida por sim-ples conjunccedilatildeo pelos criacuteticos assume aqui um valor mais forte O fato de que seja uma conjunccedilatildeo elimina de iniacutecio a interpretaccedilatildeo do verso 3 como uma disjunccedilatildeo13 Mais que uma conjunccedilatildeo as duas subordinadas satildeo ligadas por uma conexatildeo vital na qual o τε καὶ no sentido de ldquotambeacutemrdquo ou ateacute mesmo ldquoambosrdquo representa a conjunccedilatildeo de uma segunda parte reforccedilando a primeira natildeo porque explica mas simplesmente porque as duas fazem parte de um todo como dois lados de uma mesma moeda14

Vamos deixar de lado por enquanto o primeiro hemistiacutequio e con-siderar somente o segundo O segundo hemistiacutequio de 3 soa assim os uacutenicos caminhos de inqueacuterito a pensar satildeo por um lado que [ldquoArdquo] e tambeacutem que natildeo eacute natildeo-ser O fato singular eacute que aleacutem da repeticcedilatildeo da negaccedilatildeo (natildeohellip natildeo) tem-se tambeacutem a repeticcedilatildeo do verbo εἰμί (eacutehellip ser) Obviamente natildeo se tra-ta de uma ditografia e portanto teremos que diferenciar o primeiro negar (οὐκ ἔστι natildeo eacute) do segundo negar (μὴ εἶναι natildeo-ser) O primeiro negar eacute feito pela partiacutecula negativa οὐκ e o presente do indicativo ἔστι A traduccedilatildeo simples e direta soa natildeo eacute Natildeo parece haver dificuldade quanto agrave traduccedilatildeo em si restando apenas o problema da falta de sujeito Se ldquonatildeo eacuterdquo estaacute certo resta descobrir a que se refere essa negaccedilatildeo e natildeo haacute outro candidato que o seguinte μὴ εἶναι

11 Eacute possiacutevel mostrar (e o fazemos em sede apropriada) que a citaccedilatildeo platocircnica (v 7 2) tem a mesma estrutura do v 2 312 Humbert (1954 p 370) ldquoDrsquoailleurs drsquoune faccedilon geacuteneacuterale une certaine indeacutetermination inseacuteparable de la poeacutesie qui exprime moins qursquoelle ne suggegravere est peu favorable agrave un emploi rigoreux et preacutecis des particulesrdquo13 Alguns interpretam de fato como disjunccedilatildeo ex Mansfeld (1960) em Meijer (1997) p 100 et passim O argumento de Mansfeld parte da consideraccedilatildeo de que o silogismo disjuntivo natildeo precisa de sujeito (aqui o argumento de Parmecircnides natildeo precisaria de um sujeito para o esti) A (ἔστιν) ou B (οὐκ ἔστι μὴ εἶναι)14 Aparentemente (pelo que pude descobrir) natildeo haacute estudos atuais completos sobre as partiacuteculas em grego antigo e parece que o uacuteltimo foi de Denniston (1954) De laacute para caacute as partiacuteculas foram estudadas por trabalhos especiacuteficos e separadamente por aacutereas literaacuterias (eacutepica trageacutedia etc) deixando uma lacuna na poesia onde o uso eacute muito menos rigoroso e oferece maiores dificuldades de interpretaccedilatildeo Um status questionis da problemaacutetica de te kai possivelmente se encontra em um paper do qual por enquanto soacute consegui o abstract Bonifazi (2012)

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Natildeo parece haver atestaccedilatildeo de μὴ εἶναι na poesia eacutepica Pela pesquisa no TLG as primeiras atestaccedilotildees parecem ser da eacutepoca de Parmecircnides se natildeo sucessivas sendo que nesse caso pode ter sido ele o primeiro a usar tal expres-satildeo Mas aguardando resultados filoloacutegicos mais precisos podemos assegurar que a noccedilatildeo de εἶναι contida no segundo negar natildeo deve ser a mesma do primeiro sob pena de gerar uma contradiccedilatildeo de termos incompreensiacutevel mas que justamente nesse sentido aticcedilou a fantasia de muitos criacuteticos Penso por exemplo naqueles que quiseram ver as duas negaccedilotildees apenas no sentido gra-matical15 e acabaram achando o argumento de Parmecircnides fraco ou tautoloacutegi-co quando natildeo inconsistente No entanto o primeiro negar (οὐκ ἔστι) quer negar um outro negar (μὴ) especiacutefico aquele que nega εἶναι

Vou repetir a sequecircncia porque por um lado a accedilatildeo do primeiro negar eacute predicativa e por outro lado a noccedilatildeo predicada eacute maacutexima e acaba por gerar um pequeno desconforto argumentativo O primeiro negar nega um segundo negar aquele que nega εἶναι Ou seja o segundo negar eacute um ldquonegar algo espe-ciacutefico (εἶναι)rdquo O conceito se torna claro se se manteacutem presente o sentido psi-coloacutegico muito mais que o gnosioloacutegico da expressatildeo parmenidiana Negar algo eacute o que fazem ambas as expressotildees tanto do primeiro quanto do segundo negar Todavia o segundo negar eacute a accedilatildeo especiacutefica de negaccedilatildeo de εἶναι a qual eacute uma accedilatildeo da mente eacute um comportamento concreto o comportamento mental de negar εἶναι Parmecircnides argumenta que o caminho persuasivo eacute aquele que nega que se possa ter o comportamento mental especiacutefico de negar εἶναι natildeo eacute possiacutevel (ter o comportamento mental de) negar εἶναι

Esse eacute um ponto que gerou muita confusatildeo Parmecircnides natildeo nega que se possa negar como se ele proacuteprio ao afirmar que o natildeo-ser natildeo eacute estivesse cometendo o maior dos disparates autocontraditoacuterios Satildeo muitiacutessimos os que interpretam Parmecircnides dessa forma e que afinal acabam asseverando que Parmecircnides eacute o filosofo do ser (apenas) Parmecircnides usa gramaticalmente a negaccedilatildeo e tambeacutem a usa gnosiologicamente e epistemicamente Daacute para dizer mais daacute para dizer que ele usa a negaccedilatildeo de forma magistral como poucos souberam usar na histoacuteria da filosofia De fato o segundo hemistiacutequio asseve-ra que haacute um percurso mental que eacute persuasivo (v 4) quando natildeo segue μὴ εἶναι Mais uma vez o percurso mental de inqueacuterito eacute persuasivo quando natildeo

15 Por exemplo C Kahn cuja uacutenica conclusatildeo segundo sua leitura seria ldquoIf we restate Parmenidesrsquo claim in the modern formal mode it might run lsquom knows that prsquo entails lsquoprsquordquo (KAHN 2009 p 153-154)

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se comporta mentalmente negando εἶναι quando natildeo tem a atitude de negar εἶναι Resta descobrir o que eacute εἶναι

O termo εἶναι eacute um infinitivo Como se sabe o infinitivo eacute a expressatildeo verbal depauperada de todo sentido acessoacuterio a ponto que ldquo[c]rsquoest de cette fa-ccedilon neacutegative que lrsquoinfinitif a eacuteteacute deacutefini comme repreacutesentant lrsquoideacutee verbale nuerdquo (HUMBERT 1954 p 125) Os mais variados estudos natildeo conseguiram expli-car de forma convincente um sentido especiacutefico para o uso feito por Parmecircnides Por exemplo The verb ldquoberdquo in ancient Greek (KAHN 2003 passim) um dos estudos mais completos sobre o tema vecirc-se obrigado a atribuir a Parmecircnides um uso supostamente novo mas parece-me de forma improacutepria e desnecessaacuteria16 Eu penso que quando Parmecircnides quis utilizar um novo sentido inventou um novo termo como no caso de to eon (invenccedilatildeo na linha jaacute consolidada de subs-tantivar verbos no gecircnero neutro) Natildeo fez o mesmo com εἶναι e suas demais formas verbais razatildeo pela qual o sentido deve ser buscado nas acepccedilotildees tradicio-nais as quais satildeo muacuteltiplas e equiacutevocas como diraacute mais tarde Aristoacuteteles

No infinitivo εἶναι expressa a ideia geral do verbo num campo se-macircntico que vai desde ldquopresenccedilardquo ateacute a funccedilatildeo predicativa comum a muitas liacutenguas indo-europeias Creio que seja inuacutetil buscar um sentido preciso como ldquoexistirrdquo ou ldquoestar presente localmenterdquo ou outro εἶναι significa tudo isso principalmente porque eacute usado no infinitivo e como objeto Em portuguecircs a palavra que expressa com a mesma equivocidade a pluralidade de sentido numa riqueza proacutexima ao grego eacute o verbo ldquoserrdquo17 Parece-me portanto per-feitamente inuacutetil cercear o sentido a uma uacutenica acepccedilatildeo restriccedilatildeo que acaba gerando interpretaccedilotildees polecircmicas Ateacute mesmo para a acepccedilatildeo de ldquoexistirrdquo se construiacuteram criacuteticas a meu ver improacuteprias pelas quais se chega a discutir se Parmecircnides pensasse ou natildeo que seres natildeo existentes como quimeras e outros

16 Kahn extrai o sentido de εἶναι em Parmecircnides natildeo do uso que o eleata faz mas do contexto geral da mensagem parmenidiana Teoricamente seria um meacutetodo viaacutevel posto que se consiga entender corre-tamente a mensagem do filoacutesofo Na praacutetica no caso do poema de Parmecircnides que verte exatamente sobre εἶναι e seus derivados haacute um risco enorme ndash ao qual em minha visatildeo Kahn sucumbiu ndash de cair num petitio principii onde o sentido de εἶναι eacute extraiacutedo da mensagem filosoacutefica geral (Kahn o extrai de 129 que eacute o ldquoiacutendice parmenidianordquo e portanto poderia oferecer a ideia geral do poema) e por sua vez a mensagem filosoacutefica eacute obtida a partir do sentido de εἶναι Kahn acredita ter encontrado no sentido ldquoveritativordquo o novo uso que Parmecircnides faz de εἶναι17 Para εἰμί o Dicionaacuterio LSJ apresenta sete campos (de A a G) com 16 acepccedilotildees e mais vaacuterias suba-cepccedilotildees Para o verbo ldquoserrdquo o Dicionaacuterio Houaiss apresenta 19 acepccedilotildees das quais 14 verbais e 5 como substantivo as subacepccedilotildees satildeo exemplificadas mas natildeo classificadas

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seres mitoloacutegicos pudessem ser incluiacutedos na leitura predicamental18 Principal-mente eacute necessaacuterio manter a equivocidade do termo porque corresponde agrave forma mentis do autor e natildeo se devem exigir distinccedilotildees que natildeo eram processa-das por aquela cultura sob pena mais uma vez de atribuir aos antigos a nossa proacutepria forma mentis pecado fatal para um historiador da filosofia

Desse modo de iniacutecio a traduccedilatildeo de μὴ εἶναι com ldquonatildeo-serrdquo ateacute mes-mo por ser equiacutevoca (para a nossa sensibilidade) manteacutem a equivocidade proacute-pria da eacutepoca e da liacutengua da eacutepoca Posta entatildeo essa equivocidade precisamos saber se expressa um sentido filosoacutefico antes de tudo para a eacutepoca e depois para noacutes A comparaccedilatildeo de 23 οὐκ ἔστι μὴ εἶναι com 71 Οὐ δαμῇ εἶναι μὴ ἐόντα que eacute o testemunho de Platatildeo nos faz entender que nessas palavras natildeo soacute se encontra um sentido filosoacutefico mas ateacute mesmo o sentido principal da filosofia de Parmecircnides Retomando portanto a construccedilatildeo precisamos entender por que pensar o natildeo-ser (μὴ εἶναι) eacute algo que natildeo eacute possiacutevel ou que natildeo se deve fazer ou que simplesmente natildeo eacute (natildeo acontece) segundo a expressatildeo usada por Parmecircnides οὐκ ἔστι

Aleacutem da traduccedilatildeo simples e imediata haveria outras possibilidades de traduccedilatildeo19 essas variaccedilotildees podem ser interessantes para evidenciar nuances aqui e acolaacute contudo tendo a possibilidade de utilizar o verbo ldquoserrdquo num uso equiacutevoco proacuteximo do grego natildeo precisamos recorrer agrave circunlocuccedilotildees e pode-mos traduzir οὐκ ἔστι com ldquonatildeo eacuterdquo20 e μὴ εἶναι com ldquonatildeo-serrdquo Diz portanto o segundo hemistiacutequio

Os uacutenicos caminhos de inqueacuterito ao pensar satildeo

Por um lado [ldquoArdquo] e que natildeo eacute natildeo-ser

18 De novo Kahn (2009) que assinala ldquoTo take the philosophical objection first it is simply false to say that you cannot think or talk about (point out in speech phrazein) what does not exist And the falseness of this would be obvious to any Greek who reflected for a moment on the profusion of monsters and fantastic creatures in traditional poetry and myth from Pegasus to the children of Gaia with a hundred arms and fifty heads apiecerdquo (HESIOD THEOGONY 150 172) Mais agrave frente ressaltamos que exatamente na questatildeo filosoacutefica Kahn estaacute errado e Parmecircnides estaacute certo eacute impossiacutevel pensar e dizer o natildeo-ser19 Um outro caminho possiacutevel de traduccedilatildeo utilizado principalmente pelos autores de liacutengua inglesa por motivos idiossincraacutesicos da liacutengua eacute empregar uma expressatildeo cuja noccedilatildeo tambeacutem eacute ampliacutessima e equiacutevoca ldquocoisardquo Mas essa expressatildeo por ser um substantivo natildeo possui o aspecto dinacircmico que o verbo tem sendo assim necessaacuterio acrescentar o verbo ser portanto eacute possiacutevel traduzir com ldquoas coisas que satildeordquo Outra possibilidade eacute usar o pronome ldquoquerdquo em sentido predicativo em substituiccedilatildeo de coisa ou coisas Outra ainda eacute o pronome demonstrativo (aquilo isto) ou o indefinido (algo) com a mesma funccedilatildeo substitutiva de coisa(s) no sentido mais indefinido possiacutevel20 Laacute onde em inglecircs haacute obrigatoriedade de explicitar-se o sujeito ldquowhat is notrdquo

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Se tiveacutessemos seguido a ordem metodoloacutegica tradicional ao examinar 23 teriacuteamos analisado primeiro ἔστιν e depois οὐκ ἔστι μὴ εἶναι E se de-pois de estudar o segundo hemistiacutequio voltaacutessemos nossa atenccedilatildeo ao primeiro hemistiacutequio natildeo teriacuteamos ganho metodoloacutegico nenhum pois redundariacuteamos na leitura por pressupostos em que o sentido de ἔστιν eacute obtido pelo pressu-posto de que ἔστιν significa em grego ldquoeacuterdquo todavia dessa maneira se chegaria aos resultados jaacute conhecidos considerados natildeo totalmente satisfatoacuterios pelos proacuteprios autores de cada interpretaccedilatildeo O dado concreto eacute que o poema natildeo oferece nenhuma definiccedilatildeo direta ou indireta de ἔστιν embora apresente mui-tos σήματα de ἐὸν Em compensaccedilatildeo o poema trata amplamente de μὴ εἶναι E natildeo eacute preciso ir muito longe para encontrar referecircncias para a noccedilatildeo de μὴ εἶναι pois observamos muitos dados nos versos de 5 a 8 do nosso fragmento Iremos portanto ao verso 5 e subsequentes

33 OS VERSOS 5 A 8 he drsquoos ouk eacutestin te kaigrave os khreoacuten esti megrave eicircnai

tegraven deacute toi phraacutezo panapeutheacutea eacutemmen atarpoacuten

ouacutete gagraver agravev gnoiacutees toacute ge megrave eograven (ou gagraver anustoacuten)

ouacutete phraacutezais

o outro que natildeo eacute e portanto que eacute preciso natildeo ser

este entatildeo eu te digo eacute atalho de todo incriacutevel

pois nem conhecerias o que natildeo eacute (pois natildeo eacute exequiacutevel)

nem o dirias

Vamos relembrar a letra do verso 5 ἡ δrsquo ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι Haacute uma construccedilatildeo paralela ao verso 3 dois hemistiacutequios no segundo dos quais encontramos nosso μὴ εἶναι No verso seguinte o caminho eacute chamado de παναπευθέα termo que muito fez e faz sofrer os filoacutelogos O sentido geral poreacutem eacute claro quer se queira traduzir como ldquode todo incriacutevelrdquo (CAVALCANTE DE SOUZA 1978) quer como ldquocompletamente inconos-ciblerdquo (CORDERO 2005 p 219) ou ldquowholly without reportrdquo (COXON 2009 p 56) ou como outro Em suma a noccedilatildeo geral eacute de que haacute uma difi-culdade intransponiacutevel em seguir esse caminho e por que eacute explicado a seguir

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Assim como em certa metodologia de exposiccedilatildeo primeiro se enuncia a tese e depois se propotildee o argumento demonstrativo Parmecircnides primeiro enuncia (como conveacutem agrave expressatildeo de uma deusa) e depois diz por quecirc Ora a novida-de cultural eacute exatamente esse porquecirc onde as afirmaccedilotildees natildeo satildeo mais apenas impostas por sua forccedila hieraacutetica mas precisam de explicaccedilotildees21

O nosso primeiro problema eacute que os enunciados (no verso 3 antes no verso 5 agora) natildeo satildeo claros para noacutes Nesse sentido podemos pedir clareza aos argumentos Qual eacute o argumento Eis a resposta de Parmecircnides οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε μὴ ἐὸν (οὐ γὰρ ἀνυστόν) οὔτε φράσαις Aqui a traduccedilatildeo eacute mais clara e natildeo haacute muita divergecircncia entre os criacuteticos pois nem poderias co-nhecer o que natildeo eacute (pois eacute impossiacutevel) nem o dirias Haacute aqui um claro objeto do discurso τό μὴ ἐὸν o qual sem hesitaccedilatildeo desta vez podemos traduzir por ldquoo que natildeo eacuterdquo Sem hesitaccedilatildeo porque τὸ ἐὸν eacute uma expressatildeo desconhecida antes de Parmecircnides aparece com ele eacute estudada por seus disciacutepulos e pelos seus criacuteticos (de Melisso a Aristoacuteteles) e eacute reportada pela doxografia como invenccedilatildeo parmenidiana

A noccedilatildeo exposta por Parmecircnides eacute sequencial o caminho de inqueacuterito que pensa οὐκ ἔστιν aqui chamado de ἀταρπόν natildeo pode ser percorrido porque eacute impossiacutevel ldquoconhecerrdquo (γνοίης ndash segunda pessoa do optativo aoristo ativo de γιγνώσκω) o que natildeo eacute e vamos deixar para depois a questatildeo do di-zer (οὔτε φράσαις) Vamos concentrar nossa atenccedilatildeo sobre γνοίης Para noacutes eacute menos importante a traduccedilatildeo gramaticalmente e estilisticamente precisa e mais importante a precisatildeo da noccedilatildeo filosoacutefica exposta Em relaccedilatildeo a essa pa-lavra houve (e ainda haacute) uma discussatildeo acirrada Discute-se se traduzir por ldquoconhecerrdquo como fazem alguns (COXON 2009 p 56 GALLOP 1984 p 55 TARAacuteN 1965 p 32 e muitos outros) ou ldquoreconhecerrdquo como fazem outros (por exemplo BARNES 1982 p 124) e principalmente que sentido atribuir ao ldquoconhecerrdquo Eu penso que considerado o contexto natildeo se trata do conhecer epistecircmico mas do conhecer gnosioloacutegico ou seja da capacidade que a mente possui de estabelecer um processo de conhecimento E que se trate de processo eacute claro pela vaacuteria terminologia que Parmecircnides usa mas principalmente pela sua ὁδός que ficaraacute para sempre como metaacutefora perfeita dos procedimentos a serem tomados para realizar tarefas de qualquer natureza vindo a receber o nome de meacutetodo

21 Rossetti (2010) A necessidade de explicaccedilotildees natildeo eacute mais soacute dos autores mas tambeacutem da audiecircncia que agora requer argumentos

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Para o meacutetodo do pensar epistecircmico declara Parmecircnides natildeo eacute con-veniente seguir um certo percurso porque sobre ele haacute ao menos uma etapa onde se deve ldquoconhecerrdquo ndash ou seja onde se deve exercer a capacidade gnosioloacute-gica ndash o τό μὴ ἐὸν mas isso eacute impossiacutevel Na verdade tanto o termo ἀνυστόν (reportado por Simpliacutecio) quanto sua variante ἐφικτόν (reportada por Proclo) tecircm um sentido processual quero dizer que a tarefa de pensar o τό μὴ ἐὸν natildeo apresenta uma impossibilidade que se realiza imediatamente mas uma que implica um processo o qual eacute impossiacutevel em sua inteireza porque natildeo pode ser levado a termo De fato ἀνυστός significa ldquoser completadordquo ldquopraticaacutevelrdquo enquanto ἐφικτός significa ldquofaacutecil de alcanccedilarrdquo ldquoacessiacutevelrdquo Ambos os termos tecircm sentido dinacircmico e processual e a negaccedilatildeo que Parmecircnides faz significa que esse processo natildeo pode ser levado a termo

De que processo se trata Em minha visatildeo trata-se do processo concre-to de pensar a negaccedilatildeo do ser Parmecircnides eacute de aacuterea de formaccedilatildeo pitagoacuterica e os pitagoacutericos ndash como assinala Aristoacuteteles (Metaph 986a15-26) ndash naquela eacutepoca estudavam as oposiccedilotildees as mais abstratas tendo passado da oposiccedilatildeo mais antiga entre par e iacutempar correspondentes a limitado e ilimitado (πέρας e ἄπειρον) a um conjunto de dez oposiccedilotildees Nada desabona uma possiacutevel tentativa de Parmecircnides buscar uma oposiccedilatildeo (a qual era feita tambeacutem por negaccedilatildeo como nos evidencia a expressatildeo verbal da oposiccedilatildeo entre πέρας e ἄπειρον com o ldquoαrdquo privativo) para o ldquotodordquo aquele πάντα que encontramos no verso 128 do poema e que em breve transformar-se-ia em φύσις no curso da evoluccedilatildeo histoacuterica dos conceitos filosoacuteficos da antiga Greacutecia

A meditaccedilatildeo do ldquonatildeo-serrdquo eacute das mais interessantes a se fazer na filosofia Tentar ldquopensarrdquo o ldquonatildeo-serrdquo eacute uma experiecircncia profunda a qual leva a conside-raccedilotildees radicais natildeo soacute sobre a existecircncia humana mas sobre a existecircncia como um todo Que Parmecircnides tenha se dedicado a essa meditaccedilatildeo eacute seguro pois ele o diz indiretamente em 22 quando afirma que os uacutenicos caminhos ao pensar satildeo aquele que pensa ἔστιν e aquele que pensa οὐκ ἔστιν O que natildeo sa-bemos e natildeo podemos afirmar com certeza eacute que tipo de meditaccedilatildeo ele reali-zou Eis que os termos ἀνυστόν ou ἐφικτόν vecircm nos socorrer e nos informam que se trata de uma meditaccedilatildeo processual que natildeo acaba Descrevi esse proces-so detalhadamente em outro trabalho (GALGANO 2010) e o repetirei aqui brevemente Pensar o natildeo-ser significa pensar concretamente a negaccedilatildeo do ser concreto (do mundo sensiacutevel ou inteligiacutevel) de cada ser Para tornar mais claro o processo pode-se comeccedilar negando a existecircncia de um ente depois daquilo

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que o rodeia depois do planeta depois do universo (sensiacutevel e inteligiacutevel atual e possiacutevel) e depois do mundo como um todo enfim do todo

O problema principal dessa meditaccedilatildeo eacute exatamente pensar se o sujeito pertence ou natildeo ao todo Quando se pensa a negaccedilatildeo do todo permanece ainda o sujeito pensante que pensa o todo como se o olhasse de um ponto virtual externo a ele E quando se tenta incluir o sujeito pensante de duas uma 1) ou o sujeito acreditando pensar a si proacuteprio dentro do todo reapa-rece externamente22 ou 2) o sujeito cognitivo desaparece e com ele qualquer noccedilatildeo cognitiva de ldquonatildeo-serrdquo Podemos assegurar claramente que o processo de pensar o τό μὴ ἐὸν natildeo termina seja porque eacute impossiacutevel incluir o sujeito no todo pois ele sempre reaparece a cada tentativa seja porque o processo quan-do inclui o sujeito no todo interrompe-se sendo assim impossiacutevel completar a negaccedilatildeo do todo Natildeo podemos saber se o modelo meditativo de Parmecircnides foi exatamente este mas natildeo me parece haver nada em desabono23

Entretanto qual eacute a importacircncia de natildeo se poder pensar a negaccedilatildeo de tudo Seguindo o argumento parmenidiano o caminho (ἀταρπόν) cognitivo que pensa τό μὴ ἐὸν natildeo pode ser concluiacutedo Ora ἀταρπόν eacute um sinocircnimo que Parmecircnides usa para o ὁδός do verso 22 (ὁδοὶ) isso quer dizer que o segundo caminho de inqueacuterito pode ser iniciado mas natildeo pode ser levado a termo Poreacutem se natildeo pode ser levado a termo por que eacute identificado como caminho Por que natildeo eacute excluiacutedo jaacute de iniacutecio quando a deusa ao inveacutes de anunciar os uacutenicos (moucircnai plural) caminhos natildeo anuncia um uacutenico cami-nho A resposta a essa pergunta torna clara a estranha afirmaccedilatildeo de que o caminho do pensar do segundo hemistiacutequio do verso 5 eacute necessaacuterio que per-maneccedila natildeo ser (χρεών ἐστι μὴ εἶναι) Parmecircnides assevera que embora seja um caminho que jamais pode ser completado ele ao mesmo tempo natildeo pode ser eliminado continua a pertencer aos (dois) uacutenicos caminhos de inqueacuterito ele eacute necessaacuterio

22 Se penso na aniquilaccedilatildeo de tudo incluindo a mim mesmo terei que pensar a mim mesmo aniquilado contudo esse pensar gerando esse novo pensamento gera um novo sujeito cognitivo pensante se aniquilo esse novo pensamento terei um novo sujeito cognitivo que pensa essa nova aniquilaccedilatildeo e assim por diante ad infinitum23 Natildeo quero garantir que Parmecircnides estreie uma filosofia do sujeito embora isso natildeo possa ser excluiacutedo a priori jaacute que os embriotildees de uma tal filosofia apareceratildeo em breve com Soacutecrates Acredito que se deve pensar mais no sujeito como o atleta campeatildeo das Olimpiacuteadas ou seja aquele capaz de cumprir (ou natildeo) certas proezas como fica extraordinariamente evidenciado no paradoxo de Zenatildeo cuja metaacutefora da filosofia (e do filoacutesofo) como tartaruga mostra que o pensar filosoacutefico eacute capaz de proezas maiores do que as proezas do proacuteprio Aquiles tidas como insuperaacuteveis pela cultura da eacutepoca

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Vamos de novo reconstruir essa parte do argumento com esse novo elemento os uacutenicos caminhos de inqueacuteritos satildeo

1) por um lado o caminho ao pensar que [versos 3 e 4] e

2) por outro lado o caminho ao pensar que [ldquoCrdquo (verso 5 primeiro hemistiacute-quio)] e que eacute necessaacuterio (que seja) natildeo-ser

De fato esse segundo caminho (ἀταρπόν) eacute inviaacutevel porque ldquonatildeo se consegue levar a cabo a reflexatildeordquo (γνοίης) quando se pensa o τό μὴ ἐὸν Ou seja fica muito clara a equaccedilatildeo entre o segundo caminho (v 5) e a reflexatildeo sobre o natildeo ser (τό μὴ ἐὸν) Finalmente o segundo hemistiacutequio do v 5 diz que esse eacute o caminho ao pensar que eacute necessaacuterio que seja μὴ εἶναι o qual agora sabemos eacute o caminho que tenta pensar o natildeo-ser (τό μὴ ἐὸν) Sabe-mos agora o que Parmecircnides chama de μὴ εἶναι Para Parmecircnides μὴ εἶναι eacute a estrutura do pensamento quando tenta inexoraacutevel e malogradamente pensar o natildeo-ser (τό μὴ ἐὸν)

Temos portanto a semacircntica de μὴ εἶναι e sabemos que significa a impossibilidade de pensar o natildeo-ser Com esse dado podemos reconstruir o resto do argumento mas primeiro vamos abordar a questatildeo do οὔτε φράσαις A premissa principal eacute o pano de fundo da pesquisa parmenidiana a qual estaacute em busca do discurso confiaacutevel como a deusa diz claramente no encerramen-to do fragmento 8 (talvez ecoando simetricamente alguma parte perdida do poema)24 Pensar o τό μὴ ἐὸν natildeo eacute possiacutevel logo ele eacute indiziacutevel Ora isso significa nem mais nem menos que dizer que o que eacute impossiacutevel eacute contra o sentido do dizer Eacute indiziacutevel natildeo porque natildeo se sabe do que se trata como querem muitos autores que fazem a leitura meramente epistemoloacutegica25 Eacute indiziacutevel porque dizer o ldquonatildeo-serrdquo significa fazer uma promessa que jamais se cumpriraacute ao se dizer ldquonatildeo-serrdquo parece que a expressatildeo aponta algo possiacutevel ou seja a negaccedilatildeo do ser e de fato quem estaacute desavisado assim acredita Mas a expressatildeo ldquonatildeo-serrdquo quer referir-se a algo que jamais seraacute cumprido que o

24 850-2 ldquoἐν τῶι σοι παύω πιστὸν λόγον ἠδὲ νόημα ἀμφὶς ἀληθείης δόξας δrsquo ἀπὸ τοῦδε βροτείας μάνθανε κόσμον ἐμῶν ἐπέων ἀπατηλὸν ἀκούωνrdquo ldquoNeste ponto encerro fidedigna palavra e pensamento sobre a verdade e opiniotildees mortais a partir daqui aprende a ordem enganadora de minhas palavras ouvindordquo (CAVALCANTE DE SOUZA 1978)25 Trata-se da leitura epistemoloacutegico-predicamental se natildeo sei a cor de um objeto (porque a cor natildeo eacute natildeo estaacute acessiacutevel ao meu conhecimento) natildeo posso falar da cor do objeto

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ser seja negado Esta eacute exatamente a noccedilatildeo expressa pelas palavras de Platatildeo jamais prevaleceraacute que natildeo entes sejam26

A expressatildeo μὴ εἶναι representa essa impossibilidade de pensamento e portanto eacute um dizer impossiacutevel o que se opotildee radicalmente agrave proacutepria noccedilatildeo de dizer a qualquer significar enquanto discurso confiaacutevel do mundo e da sua ordem Surge a pergunta mas se natildeo se pode dizer μὴ εἶναι se isso eacute impossiacute-vel natildeo haacute uma flagrante contradiccedilatildeo na deusa jaacute que ela proacutepria diz e cons-troacutei um argumento sobre o dizer μὴ εἶναι A objeccedilatildeo seria vaacutelida se a deusa dissesse o que eacute impossiacutevel de dizer ou seja se ela praticasse a impossibilidade Todavia a deusa natildeo diz o impossiacutevel a deusa aponta para o impossiacutevel indica o impossiacutevel pois ela diz que existem a ldquonoccedilatildeo de impossibilidade do pensarrdquo e a ldquonoccedilatildeo de impossibilidade do dizerrdquo Em outras palavras a deusa diz qual eacute o limite do pensar e qual eacute o limite do dizer Aleacutem desse limite o pensamento natildeo pode ir porque eacute impossiacutevel e tambeacutem o dizer natildeo pode ir porque eacute im-possiacutevel A impossiacutevel regiatildeo para aleacutem desse limite natildeo eacute admitida pelo dizer eacute contra o dizer eacute contraditoacuteria

A expressatildeo μὴ εἶναι em Parmecircnides eacute exatamente a palavra que ex-pressa o processo mental que noacutes chamamos contradiccedilatildeo e que ele primeiro assim chamou (οὔτε φράσαις natildeo diziacutevel) Eacute estranho que nenhum criacutetico te-nha percebido isso claramente Todos afirmam que o princiacutepio de natildeo contra-diccedilatildeo estaacute implicado em Parmecircnides assim como os outros princiacutepios loacutegicos pois os argumentos presentes no poema satildeo desenvolvidos segundo a natildeo con-tradiccedilatildeo poreacutem o princiacutepio natildeo eacute enunciado Alguns como Cordero veem justamente explicitado o princiacutepio do terceiro excluiacutedo (816 ἔστιν ἢ οὐκ ἔστιν) mas ningueacutem quis ver claramente que natildeo soacute a noccedilatildeo como tambeacutem a proacutepria palavra ldquocontradiccedilatildeordquo (οὔτε φράσαις natildeo diziacutevel contra o diziacutevel contra a dicccedilatildeo) estaacute explicitada no poema Penso que a razatildeo fundamental para que acontecesse esse lapsus tenha que ser procurada na grande atenccedilatildeo dada ao ldquoserrdquo e na pouca dada ao ldquonatildeo-serrdquo Como observaremos mais adiante por causa desse lapsus eu penso que natildeo se conseguiu entender plenamente a estrutura do fragmento 2 o qual simplesmente natildeo apresenta um silogismo disjuntivo nem nenhuma contradiccedilatildeo entre o caminho do ldquoserrdquo e o caminho do ldquonatildeo-serrdquo Parmecircnides assevera justamente que a expressatildeo ldquonatildeo-serrdquo eacute contraditoacuteria o ldquonatildeo-serrdquo natildeo pode ser dito porque ldquonatildeo-serrdquo eacute contraditoacute-

26 As duas expressotildees tecircm inversatildeo de predicado e negaccedilatildeo no entanto a noccedilatildeo permanece a mesma que os entes natildeo sejam (perecimento no fr 8) e que os natildeo entes sejam (nascimento no fr 8) A noccedilatildeo eacute o tracircnsito entre ser e natildeo ser

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rio e a expressatildeo ldquonatildeo-serrdquo indica tatildeo somente uma impossibilidade concreta aquela de que se realize o impossiacutevel

Vamos voltar ao nosso argumento e agrave questatildeo que deixamos em suspenso por que eacute necessaacuterio que μὴ εἶναι seja Sabemos que os versos 7 e 8 relatam um processo malogrado de pensar o natildeo ente (τό μὴ ἐὸν) Uso agora a palavra ente porque se justifica uma diferenciaccedilatildeo embora tanto ldquoenterdquo quanto ldquoserrdquo indiquem expressotildees gerais e natildeo individuais ldquoEnterdquo vem por conseguinte a significar o ente concreto aquele que eacute Parmecircnides sustenta que natildeo se pode pensar e dizer τό μὴ ἐὸν o ldquonatildeo enterdquo Esse processo recebe o nome de μὴ εἶναι ldquonatildeo-serrdquo a esse processo noacutes chamamos contradiccedilatildeo27 Entatildeo a indicaccedilatildeo eacute esta haacute um caminho ao pensar que pensa μὴ εἶναι (a contradiccedilatildeo) e eacute necessaacuterio que assim seja porque (vou repetir trecircs vezes de forma diferente28 para significar a mesma coisa)

1) se natildeo houvesse a contradiccedilatildeo

2) se natildeo se tem a noccedilatildeo de contradiccedilatildeo

3) se natildeo se sabe o que eacute contradiccedilatildeo

cai-se no discurso contraditoacuterio o que impede o inqueacuterito confiaacutevel Eacute ne-cessaacuterio saber que μὴ εἶναι (o processo de contradiccedilatildeo) eacute um caminho a ser evitado porque cria pensamentos e discursos contraditoacuterios

Vejamos de novo nosso fragmento com os elementos esclarecidos ateacute aqui

os uacutenicos caminhos de inqueacuterito a pensar satildeo

por um lado que [ versos 3 e 4]

e por outro lado que οὐκ ἔστιν e que eacute necessaacuterio que seja a contradiccedilatildeo (μὴ εἶναι)

a qual eacute um caminho natildeo criacutevel

pois eacute impossiacutevel pensar e dizer o natildeo ente (τό μὴ ἐὸν)

27 Mesmo para noacutes a contradiccedilatildeo eacute um processo porque indica a posiccedilatildeo de algo em contraposiccedilatildeo com mais algo isso significa que esses dois algos tecircm que ser relacionados para que haja contradiccedilatildeo do contraacuterio algo e mais algo podem conviver sem contraditoriedade Contudo esse assunto estaacute fora de tema e requer muitas outras providecircncias para o bom discernimento28 Repito buscando clareza pois nossas construccedilotildees comuns de linguagem nesses assuntos costumam ldquopatinarrdquo

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Penso que o espaccedilo conceitual deixado por οὐκ ἔστιν agora se pre-encha quase que por si haacute um caminho de inqueacuterito ao pensar que ldquonatildeo eacuterdquo e que eacute necessaacuterio que se considere contraditoacuterio porque eacute caminho que natildeo leva a lugar nenhum

A expressatildeo οὐκ ἔστιν eacute a negaccedilatildeo da terceira pessoa do indicativo de εἰμί a expressatildeo em si natildeo tem nada de especial significa tatildeo somente ldquonatildeo eacuterdquo restando em aberto o problema da ausecircncia de sujeito Mas agora sabemos o argumento complexo que estaacute na raiz da expressatildeo e a meu ver natildeo faz muito sentido a questatildeo de buscar um sujeito ou um objeto para definir se eacute usado de forma transitiva ou intransitiva se expressa existecircncia ou predicaccedilatildeo e as muitas combinaccedilotildees que podem ser montadas a partir da equivocidade do uso de εἰμί No entanto o acircmbito semacircntico foi evidenciado e estaacute claro e aleacutem do mais tem o testemunho de Platatildeo a confirmar o campo semacircntico da negaccedilatildeo de εἰμί nas vaacuterias formas estaacute relacionado a uma reflexatildeo sobre a impossibili-dade dessa negaccedilatildeo Obviamente para dizer que algo eacute impossiacutevel de alguma forma tenho que indicar essa impossibilidade com alguma expressatildeo Assim se digo ldquotriacircngulo quadradordquo aponto para uma impossibilidade jaacute que por defi-niccedilatildeo a essecircncia do triacircngulo exclui a essecircncia do quadrado logo a expressatildeo ldquotriacircngulo quadradordquo natildeo significa aquilo que parece prometer ou seja natildeo significa uma figura geomeacutetrica especial que eacute ao mesmo tempo triacircngulo e quadrado dizer ldquotriacircngulo quadradordquo eacute dizer algo ldquoindiziacutevelrdquo ldquonatildeo diziacutevelrdquo (na medida em que o diziacutevel quer expressar sentido) ldquoque nega o diziacutevelrdquo ldquoque eacute contra o diziacutevelrdquo que eacute contraditoacuterio

A semacircntica do ldquonatildeo serrdquo eacute fortiacutessima e estaacute muito aleacutem das sutilezas gramaticais morfoloacutegicas e sintaacuteticas e estas simplesmente natildeo afetam aquela O assunto tratado eacute tatildeo forte que ultrapassa qualquer forma linguiacutestica a pon-to de que esse assunto a ordem do ser e do natildeo-ser no mundo eacute responsaacutevel pela determinaccedilatildeo da lei da linguagem e natildeo vice-versa como bem entendeu Platatildeo no Sofista onde a teoria da predicaccedilatildeo surge em funccedilatildeo de uma refle-xatildeo sobre a ordem das leis baacutesicas do mundo Com efeito o approach linguiacutes-tico ao poema pode proceder ateacute certo ponto dali em diante o poema eacute fran-camente filosoacutefico e a chave linguiacutestica natildeo eacute suficiente para o acesso Isso quer dizer que com a chave linguiacutestica natildeo se abre a porta da questatildeo filosoacutefica do poema Se a questatildeo eacute que ldquojamais o natildeo ser pode se tornar serrdquo como (apro-ximadamente com essas palavras) argumenta Platatildeo citando Parmecircnides en-tatildeo diante da semacircntica que οὐκ ἔστιν apresenta discutir o sujeito de οὐκ ἔστιν se torna tarefa menor Considerada a desproporccedilatildeo entre o conteuacutedo (a

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semacircntica) e o recipiente (a palavra) entre o significado e o significante natildeo eacute impossiacutevel que οὐκ ἔστιν seja tatildeo somente uma expressatildeo simplificada quem sabe ateacute mesmo uma simplificaccedilatildeo didaacutetica pois o conteuacutedo do conceito estaacute expresso e justificado depois nos versos 7 e 8

O caminho de pensar que natildeo eacute e de pensar que eacute necessaacuterio natildeo ser eacute o caminho que afirma a necessidade de que a noccedilatildeo de natildeo-ser permaneccedila estaacutevel A contradiccedilatildeo tem que permanecer e ser identificada como tal pois eacute a uacutenica maneira de evitar que ela entre no pensamento e no discurso Se o ldquonatildeo-serrdquo natildeo for considerado contraditoacuterio a contradiccedilatildeo invade e domina o caminho de inqueacuterito o qual deixa de possuir πίστις ἀληθής (130) Assim eacute preciso que esse caminho seja identificado como μὴ εἶναι por um lado o ldquonatildeo-serrdquo eacute incognosciacutevel (οὔτε γὰρ ἂν γνοίης) mas por outro lado eacute neces-saacuterio que se saiba que ele eacute incognosciacutevel Saber do incognosciacutevel garante o conhecimento29 pois de fato ao natildeo se identificar o ldquonatildeo-serrdquo cai-se no risco de pensar que ldquoserrdquo e ldquonatildeo-serrdquo satildeo o mesmo e natildeo o mesmo como Parmecircni-des afirma em DK 6 5-6 Necessariamente o caminho que pensa οὐκ ἔστιν leva ao processo de contradiccedilatildeo (μὴ εἶναι) e a natildeo conclusatildeo do caminho (ἀνυστόν) natildeo eacute evidente na expressatildeo pelo contraacuterio τό μὴ ἐὸν parece uma negaccedilatildeo comum como qualquer outra poreacutem natildeo o eacute por isso eacute um saber destinado ao saacutebio e natildeo aos mortais porque eacute um saber fruto de uma reflexatildeo

34 DE VOLTA AOS VERSOS 3 E 4

Penso que podemos agora voltar ao verso 23 ao nosso segundo he-mistiacutequio onde aparece a expressatildeo μὴ εἶναι da qual jaacute temos a semacircntica Podemos entatildeo reconstruir ldquoos uacutenicos caminhos de inqueacuterito a pensar satildeo

por um lado a pensar que [ldquoArdquo] e tambeacutem a pensar que οὐκ ἔστι μὴ εἶναι este eacute caminho de persuasatildeo pois verdade acompanha e

por outro lado a pensar que ldquonatildeo eacuterdquo e tambeacutem a pensar que eacute necessariamente um percurso de pensamento contraditoacuterio porque eacute um caminho ldquoimpossiacutevelrdquo (παναπευθέα) pois o pensamento do ldquonatildeo enterdquo natildeo pode ser completado

O οὐκ ἔστι do verso 3 parece ser diferente do οὐκ ἔστιν do verso 5 Enquanto no 5 ele eacute quase que o nome do caminho (talvez uma simplificaccedilatildeo didaacutetica) no 3 parece significar simplesmente ldquonatildeo eacuterdquo em sentido comum

29 Estaacute aqui uma semente do socratismo

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predicativo De fato esse eacute o caminho da persuasatildeo e portanto eacute o caminho do pensamento natildeo-contraditoacuterio Ali a persuasatildeo era impossiacutevel pela con-tradiccedilatildeo aqui eacute possiacutevel pela natildeo-contradiccedilatildeo Sabemos que a expressatildeo μὴ εἶναι eacute a expressatildeo da contradiccedilatildeo suprema de sorte que a natildeo-contradiccedilatildeo eacute a negaccedilatildeo de μὴ εἶναι A traduccedilatildeo de οὐκ ἔστι fica faacutecil embora para a nossa sensibilidade possa parecer algo improacuteprio usar duas vezes οὐκ ἔστι de forma natildeo perfeitamente uniacutevoca a dois versos de distacircncia Logo para o segundo hemistiacutequio do v 3 mantenho esta traduccedilatildeo ldquonatildeo eacuterdquo em parte ambiacutegua para nossas exigecircncias mas que soa perfeitamente harmocircnica com o discurso par-menidiano [] ao pensar que [ldquoArdquo] e que natildeo eacute ldquocontradiccedilatildeordquo (μὴ εἶναι)

Acredito por fim que podemos abordar facilmente o ἔστιν do verso 3 que tanto fez e faz penar os estudiosos de Parmecircnides Aqui de novo a grandeza da questatildeo cosmoloacutegica envolvida ndash a coerecircncia eou a contradito-riedade do real ndash simplesmente torna tatildeo minuacutescula a questatildeo do sujeito de ἔστιν que ela quase desaparece Eu tenho a tendecircncia a pensar que a falta de sujeito seja uma simplificaccedilatildeo didaacutetica30 cuja irregularidade linguiacutestica ajuda na memorizaccedilatildeo31 Todavia afinal tomo partido e entro tambeacutem no quarto grupo daqueles listados por Cordero o sujeito deve ser extraiacutedo do predicado isolado pois ἔστιν produz o sujeito32 De qualquer forma o sentido filosoacutefico eacute preciso haacute um caminho de inqueacuterito ao pensar que eacute aquele que pensa o ldquoeacuterdquo esse mesmo caminho eacute aquele ao pensar que natildeo eacute (e natildeo pode ser33) ldquocon-tradiccedilatildeordquo Depois haacute um outro caminho aquele ao pensar que ldquonatildeo eacuterdquo que eacute o caminho ao pensar que leva necessariamente agrave contradiccedilatildeo O primeiro eacute o 30 Segundo o relato platocircnico no diaacutelogo Parmecircnides Zenatildeo acompanhado de seu mestre foi para as Panateneias com a finalidade de defender a filosofia de seu mestre esclarecendo com seu livro repleto de paradoxos as ideias parmenidianas Isso sugere que o poema natildeo expunha articuladamente a filosofia de Parmecircnides mas que constituiacutesse um proacute-memoacuteria com as ideias em sua forma essencial depois elaboradas nas aulas pessoais (KURFESS 2012)31 Eacute extraordinaacuterio como essa simplificaccedilatildeo didaacutetica continue ativa por um lado distorcendo entretanto por outro mantendo viva a mensagem parmenidiana em todas as escolas de ensino meacutedio onde se estuda filosofia vox populi Parmecircnides eacute o filoacutesofo que disse ldquoO que eacute eacute e o que natildeo eacute natildeo eacuterdquo Por outro lado o estrangeiro de Eleia no Sofista lembra outro verso e natildeo este32 Essa questatildeo natildeo aprofundada aqui natildeo possui relevacircncia filosoacutefica no argumento apresentado pode ter relevacircncia se se considera o tipo de reflexatildeo ou seja se se discute a ldquoexperiecircnciardquo do natildeo-ser e principalmente a experiecircncia concreta de Parmecircnides que talvez esteja ligada a praacuteticas de incubaccedilatildeo Nesse caso a dimensatildeo reflexiva adentra a dimensatildeo oniacuterica a qual possui outra sintaxe e onde um simples ἔστιν vale mais de mil articulaccedilotildees sintaacuteticas Natildeo sabemos com certeza dessas praacuteticas em Eleia contudo esse sentido preacute-sintaacutetico natildeo estaacute descartado inclusive alguns estudiosos entre os quais o proacuteprio Cordero atribuem ao ἔστιν o sentido de um grito como um Eureka Sugestotildees nesse sentido se encontram na minha dissertaccedilatildeo sobre Melisso (GALGANO 2010)33 A interpretaccedilatildeo modal eacute tambeacutem perfeitamente coerente aqui

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caminho que estabelece o discurso coerente (persuasivo) e o segundo natildeo leva a lugar nenhum e deve ser evitado Mas para que se saiba o que deve ser evi-tado eacute preciso que se conheccedila a impossibilidade do segundo caminho A fim de que se possa seguir o primeiro caminho eacute necessaacuterio saber que existe um outro sempre agrave espreita o qual parece oferecer a verdade mas que natildeo oferece uma verdade confiaacutevel que leva necessariamente agrave contradiccedilatildeo de pensamento e de expressatildeo linguiacutestica

4 O MEacuteTODO DA NAtildeO-CONTRADICcedilAtildeO

Parmecircnides provavelmente a partir de sugestotildees pitagoacutericas medita sobre a oposiccedilatildeo ao que existe e assim descobre o ldquonatildeo-serrdquo Descobre que ldquonatildeo serrdquo ou seja negar o ser negar o que haacute eacute de todo impossiacutevel (natildeo eacute possiacutevel completamente) Entende entatildeo que o ldquonatildeo-serrdquo essa impossibilidade eacute algo que a mente pensa julgando que esse pensamento leva por um caminho mas que na verdade ele descobre leva por outro caminho aquele que nunca che-ga a lugar nenhum Esse caminho que leva para lugar nenhum eacute o caminho dos mortais os quais confundem ser e natildeo ser No entanto o saacutebio deve saber distinguir por um lado o caminho do ldquoeacuterdquo que eacute o caminho do discurso natildeo contraditoacuterio e por outro lado o caminho do ldquonatildeo eacuterdquo que eacute o caminho do discurso que eacute tornado vatildeo pela contradiccedilatildeo

Parmecircnides descobre a contradiccedilatildeo (pela meditaccedilatildeo sobre o natildeo-ser) e percebe que ela eacute motivo de descaminho no discurso sobre o mundo Assim finalmente ele anuncia que a contradiccedilatildeo deve ser evitada A esse enunciado noacutes chamamos de princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo que aqui eacute aquele na versatildeo de Parmecircnides (depois a partir de Platatildeo e Aristoacuteteles haveraacute outras versotildees) Parmecircnides trabalha em acircmbito cosmoloacutegico e sua preocupaccedilatildeo ndash como os de seus colegas na eacutepoca ndash eacute com o mundo com a totalidade das coisas com os πάντα de seu proecircmio (128) Nesse acircmbito cosmoloacutegico descobre que haacute um princiacutepio do mundo pelo qual se daacute uma impossibilidade a contradiccedilatildeo A contradiccedilatildeo eacute um princiacutepio porque o que haacute (πάντα) enquanto todo escapa agrave negaccedilatildeo total Eis que a contradiccedilatildeo eacute princiacutepio tanto quanto a natildeo-contra-diccedilatildeo porque eacute a contradiccedilatildeo que permite a natildeo-contradiccedilatildeo Sem a noccedilatildeo de contradiccedilatildeo se anda com sentidos incertos como os mortais

O valor dessa afirmaccedilatildeo eacute historicamente inabalaacutevel porque Parmecircni-des partindo de um discurso sobre o mundo como que visto de fora por um observador (como Anaximandro via o mundo olhando seu pinax - cf ROS-

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SETTI 2013) alcanccedila um discurso que inclui o observador enquanto obser-vador estreando assim antes de tudo um discurso sobre os entes (ontologia) todos os entes incluindo os entes de pensamento (veja-se o famoso fragmento 3 onde se lecirc que pensar e ser satildeo o mesmo) Para ele o saacutebio natildeo eacute mais aquele que sabe soacute sobre as coisas externas ndash como o antigo xamatilde cuja figura indi-vidual se dissolve na mera intermediaccedilatildeo com o divino ndash poreacutem eacute tambeacutem aquele que consegue pensar sobre as coisas externas ou seja aquele que tem um domiacutenio cognitivo sobre os pensamentos de inqueacuterito e portanto sabe so-bre si mesmo Assim o saacutebio deve pensar por proacutepria conta e julgar pelo novo criteacuterio e natildeo pelo habitual discurso (κρῖναι δὲ λόγωι DK 75) ou seja natildeo deve julgar pelo discurso mas julgar o discurso porque agora o discurso enri-quecido de uma lei universal (a lei das αρχάι ἔστιν e οὐκ ἔστιν) possui uma medida de juiacutezo Parmecircnides amplia o mundo acrescentando ao mundo fiacutesico os mundos do pensamento e da linguagem Eis porque as αρχάι de Parmecircni-des sendo duas permanecem duas justamente eliminado uma delas deixando alguns criacuteticos enlouquecidos na discussatildeo sobre o monismo ou o dualismo de acordo com Parmecircnides o mundo eacute um todavia os sentidos nos enganam natildeo na pluralidade das coisas mas no argumento a respeito da pluralidade das coisas e principalmente ndash aspecto que ele discute explicitamente ndash a respeito do devir das coisas Haacute um princiacutepio que natildeo pode ser eliminado a contra-diccedilatildeo o qual eacute um princiacutepio de erro humano quando se elimina quando se desconsidera quando se faz de conta que natildeo existe a contradiccedilatildeo se instaura quando o princiacutepio eacute levado em conta a contradiccedilatildeo pode ser evitada

Eacute uma conceituaccedilatildeo esdruacutexula para noacutes tambeacutem porque temos que ter (a noccedilatildeo de) a contradiccedilatildeo para eliminar a contradiccedilatildeo temos que saber o que eacute contradiccedilatildeo para que possamos perceber quando o discurso eacute con-traditoacuterio Esses conceitos satildeo misteriosos ateacute agora e satildeo estranhas criaturas de nossas mentes Por exemplo a noccedilatildeo de ldquoimpossiacutevelrdquo obviamente (isto eacute para a nossa pragmaacutetica) natildeo se refere a nada de concreto no entanto temos essa noccedilatildeo e a usamos com o maacuteximo proveito outro exemplo a noccedilatildeo de ldquoinfinitordquo noccedilatildeo que natildeo se refere a algo pragmaticamente concreto mas que usamos igualmente com maacuteximo proveito O mesmo deve ser dito da noccedilatildeo de contradiccedilatildeo ou da noccedilatildeo de nada absoluto que usamos pragmaticamente com maior ou menor proveito

Parmecircnides encontra esse caminho e o expotildee Eacute um caminho assom-broso anti-intuitivo mas incontestaacutevel Dessa forma natildeo eacute de estranhar se a soluccedilatildeo platocircnica eacute a eliminaccedilatildeo fiacutesica da noccedilatildeo de nada absoluto (o par-

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riciacutedio) com sucessivo ldquoadeusrdquo34 achando de tecirc-lo ultrapassado Mas o nada absoluto enquanto noccedilatildeo contraditoacuteria permanece Assim como permane-ce a explicaccedilatildeo defeituosa do devir o qual assim como o conhecemos uma passagem do nada ao ser no nascimento e do ser ao nada no perecimento estaacute mal explicado Daqui por diante os comentaacuterios filosoacuteficos possiacuteveis satildeo inuacutemeros por conseguinte paro meu estudo neste ponto e proponho a versatildeo do fragmento 2 segundo a conceituaccedilatildeo apresentada ateacute aqui alterando de pouco a excelente versatildeo baacutesica de Cavalcante de Souza

Pois bem eu te direi e tu recebe a palavra que ouviste

os uacutenicos caminhos de inqueacuterito que satildeo a pensar

o primeiro que eacute e portanto que natildeo eacute (o caminho da) contradiccedilatildeo

de persuasatildeo eacute o caminho (pois agrave verdade acompanha)

o outro que natildeo eacute e portanto que eacute necessariamente (o caminho da) contradiccedilatildeo

este entatildeo eu te digo eacute atalho de todo incriacutevel

pois nem conhecerias o que natildeo eacute (pois natildeo eacute exequiacutevel)

nem o dirias

GALGANO N S Non-being in Parmenides of Elea Transformaccedilatildeo Mariacutelia v 41 n 2 p 9-36 AbrJun 2018

ABSTRACT In fragment DK 28 B 2 of his poem Parmenides presents his method for distinguishing true persuasion from the lack of true persuasion His famous proposal of these two ways of thinking form a complex statement of a system that intends to guarantee the veracity of statements in order to obtain reliable discourse the only discourse capable of true persuasion The present paper shows that the central role in Parmenidian argumentation is attributed to non-being a notion derived from a reflection on the impossibility of the negation of being Thus the whole fragment is interpreted in terms of this central notion We show that Parmenides discovered the impossibility of negation which we now call lsquocontradictionrsquo and that he articulated the means for avoiding contradiction in thought and discourse a rule which today we call the principle of non-contradiction The study presented here is a detailed investigation of the notion of non-being in the DK 28 B 2 fragment and includes a new translation of it

KEYWORDS Parmenides Non-being Non-contradiction Eleatism Parricide

34 Platatildeo Soph 258e7-259a1 ἡμεῖς γὰρ περὶ μὲν ἐναντίου τινὸς αὐτῷ χαίρειν πάλαι λέγομεν εἴτrsquo ἔστιν εἴτε μή λόγον ἔχον ἢ καὶ παντάπασιν ἄλογον

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Natildeo parece haver atestaccedilatildeo de μὴ εἶναι na poesia eacutepica Pela pesquisa no TLG as primeiras atestaccedilotildees parecem ser da eacutepoca de Parmecircnides se natildeo sucessivas sendo que nesse caso pode ter sido ele o primeiro a usar tal expres-satildeo Mas aguardando resultados filoloacutegicos mais precisos podemos assegurar que a noccedilatildeo de εἶναι contida no segundo negar natildeo deve ser a mesma do primeiro sob pena de gerar uma contradiccedilatildeo de termos incompreensiacutevel mas que justamente nesse sentido aticcedilou a fantasia de muitos criacuteticos Penso por exemplo naqueles que quiseram ver as duas negaccedilotildees apenas no sentido gra-matical15 e acabaram achando o argumento de Parmecircnides fraco ou tautoloacutegi-co quando natildeo inconsistente No entanto o primeiro negar (οὐκ ἔστι) quer negar um outro negar (μὴ) especiacutefico aquele que nega εἶναι

Vou repetir a sequecircncia porque por um lado a accedilatildeo do primeiro negar eacute predicativa e por outro lado a noccedilatildeo predicada eacute maacutexima e acaba por gerar um pequeno desconforto argumentativo O primeiro negar nega um segundo negar aquele que nega εἶναι Ou seja o segundo negar eacute um ldquonegar algo espe-ciacutefico (εἶναι)rdquo O conceito se torna claro se se manteacutem presente o sentido psi-coloacutegico muito mais que o gnosioloacutegico da expressatildeo parmenidiana Negar algo eacute o que fazem ambas as expressotildees tanto do primeiro quanto do segundo negar Todavia o segundo negar eacute a accedilatildeo especiacutefica de negaccedilatildeo de εἶναι a qual eacute uma accedilatildeo da mente eacute um comportamento concreto o comportamento mental de negar εἶναι Parmecircnides argumenta que o caminho persuasivo eacute aquele que nega que se possa ter o comportamento mental especiacutefico de negar εἶναι natildeo eacute possiacutevel (ter o comportamento mental de) negar εἶναι

Esse eacute um ponto que gerou muita confusatildeo Parmecircnides natildeo nega que se possa negar como se ele proacuteprio ao afirmar que o natildeo-ser natildeo eacute estivesse cometendo o maior dos disparates autocontraditoacuterios Satildeo muitiacutessimos os que interpretam Parmecircnides dessa forma e que afinal acabam asseverando que Parmecircnides eacute o filosofo do ser (apenas) Parmecircnides usa gramaticalmente a negaccedilatildeo e tambeacutem a usa gnosiologicamente e epistemicamente Daacute para dizer mais daacute para dizer que ele usa a negaccedilatildeo de forma magistral como poucos souberam usar na histoacuteria da filosofia De fato o segundo hemistiacutequio asseve-ra que haacute um percurso mental que eacute persuasivo (v 4) quando natildeo segue μὴ εἶναι Mais uma vez o percurso mental de inqueacuterito eacute persuasivo quando natildeo

15 Por exemplo C Kahn cuja uacutenica conclusatildeo segundo sua leitura seria ldquoIf we restate Parmenidesrsquo claim in the modern formal mode it might run lsquom knows that prsquo entails lsquoprsquordquo (KAHN 2009 p 153-154)

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se comporta mentalmente negando εἶναι quando natildeo tem a atitude de negar εἶναι Resta descobrir o que eacute εἶναι

O termo εἶναι eacute um infinitivo Como se sabe o infinitivo eacute a expressatildeo verbal depauperada de todo sentido acessoacuterio a ponto que ldquo[c]rsquoest de cette fa-ccedilon neacutegative que lrsquoinfinitif a eacuteteacute deacutefini comme repreacutesentant lrsquoideacutee verbale nuerdquo (HUMBERT 1954 p 125) Os mais variados estudos natildeo conseguiram expli-car de forma convincente um sentido especiacutefico para o uso feito por Parmecircnides Por exemplo The verb ldquoberdquo in ancient Greek (KAHN 2003 passim) um dos estudos mais completos sobre o tema vecirc-se obrigado a atribuir a Parmecircnides um uso supostamente novo mas parece-me de forma improacutepria e desnecessaacuteria16 Eu penso que quando Parmecircnides quis utilizar um novo sentido inventou um novo termo como no caso de to eon (invenccedilatildeo na linha jaacute consolidada de subs-tantivar verbos no gecircnero neutro) Natildeo fez o mesmo com εἶναι e suas demais formas verbais razatildeo pela qual o sentido deve ser buscado nas acepccedilotildees tradicio-nais as quais satildeo muacuteltiplas e equiacutevocas como diraacute mais tarde Aristoacuteteles

No infinitivo εἶναι expressa a ideia geral do verbo num campo se-macircntico que vai desde ldquopresenccedilardquo ateacute a funccedilatildeo predicativa comum a muitas liacutenguas indo-europeias Creio que seja inuacutetil buscar um sentido preciso como ldquoexistirrdquo ou ldquoestar presente localmenterdquo ou outro εἶναι significa tudo isso principalmente porque eacute usado no infinitivo e como objeto Em portuguecircs a palavra que expressa com a mesma equivocidade a pluralidade de sentido numa riqueza proacutexima ao grego eacute o verbo ldquoserrdquo17 Parece-me portanto per-feitamente inuacutetil cercear o sentido a uma uacutenica acepccedilatildeo restriccedilatildeo que acaba gerando interpretaccedilotildees polecircmicas Ateacute mesmo para a acepccedilatildeo de ldquoexistirrdquo se construiacuteram criacuteticas a meu ver improacuteprias pelas quais se chega a discutir se Parmecircnides pensasse ou natildeo que seres natildeo existentes como quimeras e outros

16 Kahn extrai o sentido de εἶναι em Parmecircnides natildeo do uso que o eleata faz mas do contexto geral da mensagem parmenidiana Teoricamente seria um meacutetodo viaacutevel posto que se consiga entender corre-tamente a mensagem do filoacutesofo Na praacutetica no caso do poema de Parmecircnides que verte exatamente sobre εἶναι e seus derivados haacute um risco enorme ndash ao qual em minha visatildeo Kahn sucumbiu ndash de cair num petitio principii onde o sentido de εἶναι eacute extraiacutedo da mensagem filosoacutefica geral (Kahn o extrai de 129 que eacute o ldquoiacutendice parmenidianordquo e portanto poderia oferecer a ideia geral do poema) e por sua vez a mensagem filosoacutefica eacute obtida a partir do sentido de εἶναι Kahn acredita ter encontrado no sentido ldquoveritativordquo o novo uso que Parmecircnides faz de εἶναι17 Para εἰμί o Dicionaacuterio LSJ apresenta sete campos (de A a G) com 16 acepccedilotildees e mais vaacuterias suba-cepccedilotildees Para o verbo ldquoserrdquo o Dicionaacuterio Houaiss apresenta 19 acepccedilotildees das quais 14 verbais e 5 como substantivo as subacepccedilotildees satildeo exemplificadas mas natildeo classificadas

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seres mitoloacutegicos pudessem ser incluiacutedos na leitura predicamental18 Principal-mente eacute necessaacuterio manter a equivocidade do termo porque corresponde agrave forma mentis do autor e natildeo se devem exigir distinccedilotildees que natildeo eram processa-das por aquela cultura sob pena mais uma vez de atribuir aos antigos a nossa proacutepria forma mentis pecado fatal para um historiador da filosofia

Desse modo de iniacutecio a traduccedilatildeo de μὴ εἶναι com ldquonatildeo-serrdquo ateacute mes-mo por ser equiacutevoca (para a nossa sensibilidade) manteacutem a equivocidade proacute-pria da eacutepoca e da liacutengua da eacutepoca Posta entatildeo essa equivocidade precisamos saber se expressa um sentido filosoacutefico antes de tudo para a eacutepoca e depois para noacutes A comparaccedilatildeo de 23 οὐκ ἔστι μὴ εἶναι com 71 Οὐ δαμῇ εἶναι μὴ ἐόντα que eacute o testemunho de Platatildeo nos faz entender que nessas palavras natildeo soacute se encontra um sentido filosoacutefico mas ateacute mesmo o sentido principal da filosofia de Parmecircnides Retomando portanto a construccedilatildeo precisamos entender por que pensar o natildeo-ser (μὴ εἶναι) eacute algo que natildeo eacute possiacutevel ou que natildeo se deve fazer ou que simplesmente natildeo eacute (natildeo acontece) segundo a expressatildeo usada por Parmecircnides οὐκ ἔστι

Aleacutem da traduccedilatildeo simples e imediata haveria outras possibilidades de traduccedilatildeo19 essas variaccedilotildees podem ser interessantes para evidenciar nuances aqui e acolaacute contudo tendo a possibilidade de utilizar o verbo ldquoserrdquo num uso equiacutevoco proacuteximo do grego natildeo precisamos recorrer agrave circunlocuccedilotildees e pode-mos traduzir οὐκ ἔστι com ldquonatildeo eacuterdquo20 e μὴ εἶναι com ldquonatildeo-serrdquo Diz portanto o segundo hemistiacutequio

Os uacutenicos caminhos de inqueacuterito ao pensar satildeo

Por um lado [ldquoArdquo] e que natildeo eacute natildeo-ser

18 De novo Kahn (2009) que assinala ldquoTo take the philosophical objection first it is simply false to say that you cannot think or talk about (point out in speech phrazein) what does not exist And the falseness of this would be obvious to any Greek who reflected for a moment on the profusion of monsters and fantastic creatures in traditional poetry and myth from Pegasus to the children of Gaia with a hundred arms and fifty heads apiecerdquo (HESIOD THEOGONY 150 172) Mais agrave frente ressaltamos que exatamente na questatildeo filosoacutefica Kahn estaacute errado e Parmecircnides estaacute certo eacute impossiacutevel pensar e dizer o natildeo-ser19 Um outro caminho possiacutevel de traduccedilatildeo utilizado principalmente pelos autores de liacutengua inglesa por motivos idiossincraacutesicos da liacutengua eacute empregar uma expressatildeo cuja noccedilatildeo tambeacutem eacute ampliacutessima e equiacutevoca ldquocoisardquo Mas essa expressatildeo por ser um substantivo natildeo possui o aspecto dinacircmico que o verbo tem sendo assim necessaacuterio acrescentar o verbo ser portanto eacute possiacutevel traduzir com ldquoas coisas que satildeordquo Outra possibilidade eacute usar o pronome ldquoquerdquo em sentido predicativo em substituiccedilatildeo de coisa ou coisas Outra ainda eacute o pronome demonstrativo (aquilo isto) ou o indefinido (algo) com a mesma funccedilatildeo substitutiva de coisa(s) no sentido mais indefinido possiacutevel20 Laacute onde em inglecircs haacute obrigatoriedade de explicitar-se o sujeito ldquowhat is notrdquo

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Se tiveacutessemos seguido a ordem metodoloacutegica tradicional ao examinar 23 teriacuteamos analisado primeiro ἔστιν e depois οὐκ ἔστι μὴ εἶναι E se de-pois de estudar o segundo hemistiacutequio voltaacutessemos nossa atenccedilatildeo ao primeiro hemistiacutequio natildeo teriacuteamos ganho metodoloacutegico nenhum pois redundariacuteamos na leitura por pressupostos em que o sentido de ἔστιν eacute obtido pelo pressu-posto de que ἔστιν significa em grego ldquoeacuterdquo todavia dessa maneira se chegaria aos resultados jaacute conhecidos considerados natildeo totalmente satisfatoacuterios pelos proacuteprios autores de cada interpretaccedilatildeo O dado concreto eacute que o poema natildeo oferece nenhuma definiccedilatildeo direta ou indireta de ἔστιν embora apresente mui-tos σήματα de ἐὸν Em compensaccedilatildeo o poema trata amplamente de μὴ εἶναι E natildeo eacute preciso ir muito longe para encontrar referecircncias para a noccedilatildeo de μὴ εἶναι pois observamos muitos dados nos versos de 5 a 8 do nosso fragmento Iremos portanto ao verso 5 e subsequentes

33 OS VERSOS 5 A 8 he drsquoos ouk eacutestin te kaigrave os khreoacuten esti megrave eicircnai

tegraven deacute toi phraacutezo panapeutheacutea eacutemmen atarpoacuten

ouacutete gagraver agravev gnoiacutees toacute ge megrave eograven (ou gagraver anustoacuten)

ouacutete phraacutezais

o outro que natildeo eacute e portanto que eacute preciso natildeo ser

este entatildeo eu te digo eacute atalho de todo incriacutevel

pois nem conhecerias o que natildeo eacute (pois natildeo eacute exequiacutevel)

nem o dirias

Vamos relembrar a letra do verso 5 ἡ δrsquo ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι Haacute uma construccedilatildeo paralela ao verso 3 dois hemistiacutequios no segundo dos quais encontramos nosso μὴ εἶναι No verso seguinte o caminho eacute chamado de παναπευθέα termo que muito fez e faz sofrer os filoacutelogos O sentido geral poreacutem eacute claro quer se queira traduzir como ldquode todo incriacutevelrdquo (CAVALCANTE DE SOUZA 1978) quer como ldquocompletamente inconos-ciblerdquo (CORDERO 2005 p 219) ou ldquowholly without reportrdquo (COXON 2009 p 56) ou como outro Em suma a noccedilatildeo geral eacute de que haacute uma difi-culdade intransponiacutevel em seguir esse caminho e por que eacute explicado a seguir

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Assim como em certa metodologia de exposiccedilatildeo primeiro se enuncia a tese e depois se propotildee o argumento demonstrativo Parmecircnides primeiro enuncia (como conveacutem agrave expressatildeo de uma deusa) e depois diz por quecirc Ora a novida-de cultural eacute exatamente esse porquecirc onde as afirmaccedilotildees natildeo satildeo mais apenas impostas por sua forccedila hieraacutetica mas precisam de explicaccedilotildees21

O nosso primeiro problema eacute que os enunciados (no verso 3 antes no verso 5 agora) natildeo satildeo claros para noacutes Nesse sentido podemos pedir clareza aos argumentos Qual eacute o argumento Eis a resposta de Parmecircnides οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε μὴ ἐὸν (οὐ γὰρ ἀνυστόν) οὔτε φράσαις Aqui a traduccedilatildeo eacute mais clara e natildeo haacute muita divergecircncia entre os criacuteticos pois nem poderias co-nhecer o que natildeo eacute (pois eacute impossiacutevel) nem o dirias Haacute aqui um claro objeto do discurso τό μὴ ἐὸν o qual sem hesitaccedilatildeo desta vez podemos traduzir por ldquoo que natildeo eacuterdquo Sem hesitaccedilatildeo porque τὸ ἐὸν eacute uma expressatildeo desconhecida antes de Parmecircnides aparece com ele eacute estudada por seus disciacutepulos e pelos seus criacuteticos (de Melisso a Aristoacuteteles) e eacute reportada pela doxografia como invenccedilatildeo parmenidiana

A noccedilatildeo exposta por Parmecircnides eacute sequencial o caminho de inqueacuterito que pensa οὐκ ἔστιν aqui chamado de ἀταρπόν natildeo pode ser percorrido porque eacute impossiacutevel ldquoconhecerrdquo (γνοίης ndash segunda pessoa do optativo aoristo ativo de γιγνώσκω) o que natildeo eacute e vamos deixar para depois a questatildeo do di-zer (οὔτε φράσαις) Vamos concentrar nossa atenccedilatildeo sobre γνοίης Para noacutes eacute menos importante a traduccedilatildeo gramaticalmente e estilisticamente precisa e mais importante a precisatildeo da noccedilatildeo filosoacutefica exposta Em relaccedilatildeo a essa pa-lavra houve (e ainda haacute) uma discussatildeo acirrada Discute-se se traduzir por ldquoconhecerrdquo como fazem alguns (COXON 2009 p 56 GALLOP 1984 p 55 TARAacuteN 1965 p 32 e muitos outros) ou ldquoreconhecerrdquo como fazem outros (por exemplo BARNES 1982 p 124) e principalmente que sentido atribuir ao ldquoconhecerrdquo Eu penso que considerado o contexto natildeo se trata do conhecer epistecircmico mas do conhecer gnosioloacutegico ou seja da capacidade que a mente possui de estabelecer um processo de conhecimento E que se trate de processo eacute claro pela vaacuteria terminologia que Parmecircnides usa mas principalmente pela sua ὁδός que ficaraacute para sempre como metaacutefora perfeita dos procedimentos a serem tomados para realizar tarefas de qualquer natureza vindo a receber o nome de meacutetodo

21 Rossetti (2010) A necessidade de explicaccedilotildees natildeo eacute mais soacute dos autores mas tambeacutem da audiecircncia que agora requer argumentos

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Para o meacutetodo do pensar epistecircmico declara Parmecircnides natildeo eacute con-veniente seguir um certo percurso porque sobre ele haacute ao menos uma etapa onde se deve ldquoconhecerrdquo ndash ou seja onde se deve exercer a capacidade gnosioloacute-gica ndash o τό μὴ ἐὸν mas isso eacute impossiacutevel Na verdade tanto o termo ἀνυστόν (reportado por Simpliacutecio) quanto sua variante ἐφικτόν (reportada por Proclo) tecircm um sentido processual quero dizer que a tarefa de pensar o τό μὴ ἐὸν natildeo apresenta uma impossibilidade que se realiza imediatamente mas uma que implica um processo o qual eacute impossiacutevel em sua inteireza porque natildeo pode ser levado a termo De fato ἀνυστός significa ldquoser completadordquo ldquopraticaacutevelrdquo enquanto ἐφικτός significa ldquofaacutecil de alcanccedilarrdquo ldquoacessiacutevelrdquo Ambos os termos tecircm sentido dinacircmico e processual e a negaccedilatildeo que Parmecircnides faz significa que esse processo natildeo pode ser levado a termo

De que processo se trata Em minha visatildeo trata-se do processo concre-to de pensar a negaccedilatildeo do ser Parmecircnides eacute de aacuterea de formaccedilatildeo pitagoacuterica e os pitagoacutericos ndash como assinala Aristoacuteteles (Metaph 986a15-26) ndash naquela eacutepoca estudavam as oposiccedilotildees as mais abstratas tendo passado da oposiccedilatildeo mais antiga entre par e iacutempar correspondentes a limitado e ilimitado (πέρας e ἄπειρον) a um conjunto de dez oposiccedilotildees Nada desabona uma possiacutevel tentativa de Parmecircnides buscar uma oposiccedilatildeo (a qual era feita tambeacutem por negaccedilatildeo como nos evidencia a expressatildeo verbal da oposiccedilatildeo entre πέρας e ἄπειρον com o ldquoαrdquo privativo) para o ldquotodordquo aquele πάντα que encontramos no verso 128 do poema e que em breve transformar-se-ia em φύσις no curso da evoluccedilatildeo histoacuterica dos conceitos filosoacuteficos da antiga Greacutecia

A meditaccedilatildeo do ldquonatildeo-serrdquo eacute das mais interessantes a se fazer na filosofia Tentar ldquopensarrdquo o ldquonatildeo-serrdquo eacute uma experiecircncia profunda a qual leva a conside-raccedilotildees radicais natildeo soacute sobre a existecircncia humana mas sobre a existecircncia como um todo Que Parmecircnides tenha se dedicado a essa meditaccedilatildeo eacute seguro pois ele o diz indiretamente em 22 quando afirma que os uacutenicos caminhos ao pensar satildeo aquele que pensa ἔστιν e aquele que pensa οὐκ ἔστιν O que natildeo sa-bemos e natildeo podemos afirmar com certeza eacute que tipo de meditaccedilatildeo ele reali-zou Eis que os termos ἀνυστόν ou ἐφικτόν vecircm nos socorrer e nos informam que se trata de uma meditaccedilatildeo processual que natildeo acaba Descrevi esse proces-so detalhadamente em outro trabalho (GALGANO 2010) e o repetirei aqui brevemente Pensar o natildeo-ser significa pensar concretamente a negaccedilatildeo do ser concreto (do mundo sensiacutevel ou inteligiacutevel) de cada ser Para tornar mais claro o processo pode-se comeccedilar negando a existecircncia de um ente depois daquilo

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que o rodeia depois do planeta depois do universo (sensiacutevel e inteligiacutevel atual e possiacutevel) e depois do mundo como um todo enfim do todo

O problema principal dessa meditaccedilatildeo eacute exatamente pensar se o sujeito pertence ou natildeo ao todo Quando se pensa a negaccedilatildeo do todo permanece ainda o sujeito pensante que pensa o todo como se o olhasse de um ponto virtual externo a ele E quando se tenta incluir o sujeito pensante de duas uma 1) ou o sujeito acreditando pensar a si proacuteprio dentro do todo reapa-rece externamente22 ou 2) o sujeito cognitivo desaparece e com ele qualquer noccedilatildeo cognitiva de ldquonatildeo-serrdquo Podemos assegurar claramente que o processo de pensar o τό μὴ ἐὸν natildeo termina seja porque eacute impossiacutevel incluir o sujeito no todo pois ele sempre reaparece a cada tentativa seja porque o processo quan-do inclui o sujeito no todo interrompe-se sendo assim impossiacutevel completar a negaccedilatildeo do todo Natildeo podemos saber se o modelo meditativo de Parmecircnides foi exatamente este mas natildeo me parece haver nada em desabono23

Entretanto qual eacute a importacircncia de natildeo se poder pensar a negaccedilatildeo de tudo Seguindo o argumento parmenidiano o caminho (ἀταρπόν) cognitivo que pensa τό μὴ ἐὸν natildeo pode ser concluiacutedo Ora ἀταρπόν eacute um sinocircnimo que Parmecircnides usa para o ὁδός do verso 22 (ὁδοὶ) isso quer dizer que o segundo caminho de inqueacuterito pode ser iniciado mas natildeo pode ser levado a termo Poreacutem se natildeo pode ser levado a termo por que eacute identificado como caminho Por que natildeo eacute excluiacutedo jaacute de iniacutecio quando a deusa ao inveacutes de anunciar os uacutenicos (moucircnai plural) caminhos natildeo anuncia um uacutenico cami-nho A resposta a essa pergunta torna clara a estranha afirmaccedilatildeo de que o caminho do pensar do segundo hemistiacutequio do verso 5 eacute necessaacuterio que per-maneccedila natildeo ser (χρεών ἐστι μὴ εἶναι) Parmecircnides assevera que embora seja um caminho que jamais pode ser completado ele ao mesmo tempo natildeo pode ser eliminado continua a pertencer aos (dois) uacutenicos caminhos de inqueacuterito ele eacute necessaacuterio

22 Se penso na aniquilaccedilatildeo de tudo incluindo a mim mesmo terei que pensar a mim mesmo aniquilado contudo esse pensar gerando esse novo pensamento gera um novo sujeito cognitivo pensante se aniquilo esse novo pensamento terei um novo sujeito cognitivo que pensa essa nova aniquilaccedilatildeo e assim por diante ad infinitum23 Natildeo quero garantir que Parmecircnides estreie uma filosofia do sujeito embora isso natildeo possa ser excluiacutedo a priori jaacute que os embriotildees de uma tal filosofia apareceratildeo em breve com Soacutecrates Acredito que se deve pensar mais no sujeito como o atleta campeatildeo das Olimpiacuteadas ou seja aquele capaz de cumprir (ou natildeo) certas proezas como fica extraordinariamente evidenciado no paradoxo de Zenatildeo cuja metaacutefora da filosofia (e do filoacutesofo) como tartaruga mostra que o pensar filosoacutefico eacute capaz de proezas maiores do que as proezas do proacuteprio Aquiles tidas como insuperaacuteveis pela cultura da eacutepoca

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Vamos de novo reconstruir essa parte do argumento com esse novo elemento os uacutenicos caminhos de inqueacuteritos satildeo

1) por um lado o caminho ao pensar que [versos 3 e 4] e

2) por outro lado o caminho ao pensar que [ldquoCrdquo (verso 5 primeiro hemistiacute-quio)] e que eacute necessaacuterio (que seja) natildeo-ser

De fato esse segundo caminho (ἀταρπόν) eacute inviaacutevel porque ldquonatildeo se consegue levar a cabo a reflexatildeordquo (γνοίης) quando se pensa o τό μὴ ἐὸν Ou seja fica muito clara a equaccedilatildeo entre o segundo caminho (v 5) e a reflexatildeo sobre o natildeo ser (τό μὴ ἐὸν) Finalmente o segundo hemistiacutequio do v 5 diz que esse eacute o caminho ao pensar que eacute necessaacuterio que seja μὴ εἶναι o qual agora sabemos eacute o caminho que tenta pensar o natildeo-ser (τό μὴ ἐὸν) Sabe-mos agora o que Parmecircnides chama de μὴ εἶναι Para Parmecircnides μὴ εἶναι eacute a estrutura do pensamento quando tenta inexoraacutevel e malogradamente pensar o natildeo-ser (τό μὴ ἐὸν)

Temos portanto a semacircntica de μὴ εἶναι e sabemos que significa a impossibilidade de pensar o natildeo-ser Com esse dado podemos reconstruir o resto do argumento mas primeiro vamos abordar a questatildeo do οὔτε φράσαις A premissa principal eacute o pano de fundo da pesquisa parmenidiana a qual estaacute em busca do discurso confiaacutevel como a deusa diz claramente no encerramen-to do fragmento 8 (talvez ecoando simetricamente alguma parte perdida do poema)24 Pensar o τό μὴ ἐὸν natildeo eacute possiacutevel logo ele eacute indiziacutevel Ora isso significa nem mais nem menos que dizer que o que eacute impossiacutevel eacute contra o sentido do dizer Eacute indiziacutevel natildeo porque natildeo se sabe do que se trata como querem muitos autores que fazem a leitura meramente epistemoloacutegica25 Eacute indiziacutevel porque dizer o ldquonatildeo-serrdquo significa fazer uma promessa que jamais se cumpriraacute ao se dizer ldquonatildeo-serrdquo parece que a expressatildeo aponta algo possiacutevel ou seja a negaccedilatildeo do ser e de fato quem estaacute desavisado assim acredita Mas a expressatildeo ldquonatildeo-serrdquo quer referir-se a algo que jamais seraacute cumprido que o

24 850-2 ldquoἐν τῶι σοι παύω πιστὸν λόγον ἠδὲ νόημα ἀμφὶς ἀληθείης δόξας δrsquo ἀπὸ τοῦδε βροτείας μάνθανε κόσμον ἐμῶν ἐπέων ἀπατηλὸν ἀκούωνrdquo ldquoNeste ponto encerro fidedigna palavra e pensamento sobre a verdade e opiniotildees mortais a partir daqui aprende a ordem enganadora de minhas palavras ouvindordquo (CAVALCANTE DE SOUZA 1978)25 Trata-se da leitura epistemoloacutegico-predicamental se natildeo sei a cor de um objeto (porque a cor natildeo eacute natildeo estaacute acessiacutevel ao meu conhecimento) natildeo posso falar da cor do objeto

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O natildeo-ser em Parmecircnides de Eleia Artigos Articles

ser seja negado Esta eacute exatamente a noccedilatildeo expressa pelas palavras de Platatildeo jamais prevaleceraacute que natildeo entes sejam26

A expressatildeo μὴ εἶναι representa essa impossibilidade de pensamento e portanto eacute um dizer impossiacutevel o que se opotildee radicalmente agrave proacutepria noccedilatildeo de dizer a qualquer significar enquanto discurso confiaacutevel do mundo e da sua ordem Surge a pergunta mas se natildeo se pode dizer μὴ εἶναι se isso eacute impossiacute-vel natildeo haacute uma flagrante contradiccedilatildeo na deusa jaacute que ela proacutepria diz e cons-troacutei um argumento sobre o dizer μὴ εἶναι A objeccedilatildeo seria vaacutelida se a deusa dissesse o que eacute impossiacutevel de dizer ou seja se ela praticasse a impossibilidade Todavia a deusa natildeo diz o impossiacutevel a deusa aponta para o impossiacutevel indica o impossiacutevel pois ela diz que existem a ldquonoccedilatildeo de impossibilidade do pensarrdquo e a ldquonoccedilatildeo de impossibilidade do dizerrdquo Em outras palavras a deusa diz qual eacute o limite do pensar e qual eacute o limite do dizer Aleacutem desse limite o pensamento natildeo pode ir porque eacute impossiacutevel e tambeacutem o dizer natildeo pode ir porque eacute im-possiacutevel A impossiacutevel regiatildeo para aleacutem desse limite natildeo eacute admitida pelo dizer eacute contra o dizer eacute contraditoacuteria

A expressatildeo μὴ εἶναι em Parmecircnides eacute exatamente a palavra que ex-pressa o processo mental que noacutes chamamos contradiccedilatildeo e que ele primeiro assim chamou (οὔτε φράσαις natildeo diziacutevel) Eacute estranho que nenhum criacutetico te-nha percebido isso claramente Todos afirmam que o princiacutepio de natildeo contra-diccedilatildeo estaacute implicado em Parmecircnides assim como os outros princiacutepios loacutegicos pois os argumentos presentes no poema satildeo desenvolvidos segundo a natildeo con-tradiccedilatildeo poreacutem o princiacutepio natildeo eacute enunciado Alguns como Cordero veem justamente explicitado o princiacutepio do terceiro excluiacutedo (816 ἔστιν ἢ οὐκ ἔστιν) mas ningueacutem quis ver claramente que natildeo soacute a noccedilatildeo como tambeacutem a proacutepria palavra ldquocontradiccedilatildeordquo (οὔτε φράσαις natildeo diziacutevel contra o diziacutevel contra a dicccedilatildeo) estaacute explicitada no poema Penso que a razatildeo fundamental para que acontecesse esse lapsus tenha que ser procurada na grande atenccedilatildeo dada ao ldquoserrdquo e na pouca dada ao ldquonatildeo-serrdquo Como observaremos mais adiante por causa desse lapsus eu penso que natildeo se conseguiu entender plenamente a estrutura do fragmento 2 o qual simplesmente natildeo apresenta um silogismo disjuntivo nem nenhuma contradiccedilatildeo entre o caminho do ldquoserrdquo e o caminho do ldquonatildeo-serrdquo Parmecircnides assevera justamente que a expressatildeo ldquonatildeo-serrdquo eacute contraditoacuteria o ldquonatildeo-serrdquo natildeo pode ser dito porque ldquonatildeo-serrdquo eacute contraditoacute-

26 As duas expressotildees tecircm inversatildeo de predicado e negaccedilatildeo no entanto a noccedilatildeo permanece a mesma que os entes natildeo sejam (perecimento no fr 8) e que os natildeo entes sejam (nascimento no fr 8) A noccedilatildeo eacute o tracircnsito entre ser e natildeo ser

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rio e a expressatildeo ldquonatildeo-serrdquo indica tatildeo somente uma impossibilidade concreta aquela de que se realize o impossiacutevel

Vamos voltar ao nosso argumento e agrave questatildeo que deixamos em suspenso por que eacute necessaacuterio que μὴ εἶναι seja Sabemos que os versos 7 e 8 relatam um processo malogrado de pensar o natildeo ente (τό μὴ ἐὸν) Uso agora a palavra ente porque se justifica uma diferenciaccedilatildeo embora tanto ldquoenterdquo quanto ldquoserrdquo indiquem expressotildees gerais e natildeo individuais ldquoEnterdquo vem por conseguinte a significar o ente concreto aquele que eacute Parmecircnides sustenta que natildeo se pode pensar e dizer τό μὴ ἐὸν o ldquonatildeo enterdquo Esse processo recebe o nome de μὴ εἶναι ldquonatildeo-serrdquo a esse processo noacutes chamamos contradiccedilatildeo27 Entatildeo a indicaccedilatildeo eacute esta haacute um caminho ao pensar que pensa μὴ εἶναι (a contradiccedilatildeo) e eacute necessaacuterio que assim seja porque (vou repetir trecircs vezes de forma diferente28 para significar a mesma coisa)

1) se natildeo houvesse a contradiccedilatildeo

2) se natildeo se tem a noccedilatildeo de contradiccedilatildeo

3) se natildeo se sabe o que eacute contradiccedilatildeo

cai-se no discurso contraditoacuterio o que impede o inqueacuterito confiaacutevel Eacute ne-cessaacuterio saber que μὴ εἶναι (o processo de contradiccedilatildeo) eacute um caminho a ser evitado porque cria pensamentos e discursos contraditoacuterios

Vejamos de novo nosso fragmento com os elementos esclarecidos ateacute aqui

os uacutenicos caminhos de inqueacuterito a pensar satildeo

por um lado que [ versos 3 e 4]

e por outro lado que οὐκ ἔστιν e que eacute necessaacuterio que seja a contradiccedilatildeo (μὴ εἶναι)

a qual eacute um caminho natildeo criacutevel

pois eacute impossiacutevel pensar e dizer o natildeo ente (τό μὴ ἐὸν)

27 Mesmo para noacutes a contradiccedilatildeo eacute um processo porque indica a posiccedilatildeo de algo em contraposiccedilatildeo com mais algo isso significa que esses dois algos tecircm que ser relacionados para que haja contradiccedilatildeo do contraacuterio algo e mais algo podem conviver sem contraditoriedade Contudo esse assunto estaacute fora de tema e requer muitas outras providecircncias para o bom discernimento28 Repito buscando clareza pois nossas construccedilotildees comuns de linguagem nesses assuntos costumam ldquopatinarrdquo

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O natildeo-ser em Parmecircnides de Eleia Artigos Articles

Penso que o espaccedilo conceitual deixado por οὐκ ἔστιν agora se pre-encha quase que por si haacute um caminho de inqueacuterito ao pensar que ldquonatildeo eacuterdquo e que eacute necessaacuterio que se considere contraditoacuterio porque eacute caminho que natildeo leva a lugar nenhum

A expressatildeo οὐκ ἔστιν eacute a negaccedilatildeo da terceira pessoa do indicativo de εἰμί a expressatildeo em si natildeo tem nada de especial significa tatildeo somente ldquonatildeo eacuterdquo restando em aberto o problema da ausecircncia de sujeito Mas agora sabemos o argumento complexo que estaacute na raiz da expressatildeo e a meu ver natildeo faz muito sentido a questatildeo de buscar um sujeito ou um objeto para definir se eacute usado de forma transitiva ou intransitiva se expressa existecircncia ou predicaccedilatildeo e as muitas combinaccedilotildees que podem ser montadas a partir da equivocidade do uso de εἰμί No entanto o acircmbito semacircntico foi evidenciado e estaacute claro e aleacutem do mais tem o testemunho de Platatildeo a confirmar o campo semacircntico da negaccedilatildeo de εἰμί nas vaacuterias formas estaacute relacionado a uma reflexatildeo sobre a impossibili-dade dessa negaccedilatildeo Obviamente para dizer que algo eacute impossiacutevel de alguma forma tenho que indicar essa impossibilidade com alguma expressatildeo Assim se digo ldquotriacircngulo quadradordquo aponto para uma impossibilidade jaacute que por defi-niccedilatildeo a essecircncia do triacircngulo exclui a essecircncia do quadrado logo a expressatildeo ldquotriacircngulo quadradordquo natildeo significa aquilo que parece prometer ou seja natildeo significa uma figura geomeacutetrica especial que eacute ao mesmo tempo triacircngulo e quadrado dizer ldquotriacircngulo quadradordquo eacute dizer algo ldquoindiziacutevelrdquo ldquonatildeo diziacutevelrdquo (na medida em que o diziacutevel quer expressar sentido) ldquoque nega o diziacutevelrdquo ldquoque eacute contra o diziacutevelrdquo que eacute contraditoacuterio

A semacircntica do ldquonatildeo serrdquo eacute fortiacutessima e estaacute muito aleacutem das sutilezas gramaticais morfoloacutegicas e sintaacuteticas e estas simplesmente natildeo afetam aquela O assunto tratado eacute tatildeo forte que ultrapassa qualquer forma linguiacutestica a pon-to de que esse assunto a ordem do ser e do natildeo-ser no mundo eacute responsaacutevel pela determinaccedilatildeo da lei da linguagem e natildeo vice-versa como bem entendeu Platatildeo no Sofista onde a teoria da predicaccedilatildeo surge em funccedilatildeo de uma refle-xatildeo sobre a ordem das leis baacutesicas do mundo Com efeito o approach linguiacutes-tico ao poema pode proceder ateacute certo ponto dali em diante o poema eacute fran-camente filosoacutefico e a chave linguiacutestica natildeo eacute suficiente para o acesso Isso quer dizer que com a chave linguiacutestica natildeo se abre a porta da questatildeo filosoacutefica do poema Se a questatildeo eacute que ldquojamais o natildeo ser pode se tornar serrdquo como (apro-ximadamente com essas palavras) argumenta Platatildeo citando Parmecircnides en-tatildeo diante da semacircntica que οὐκ ἔστιν apresenta discutir o sujeito de οὐκ ἔστιν se torna tarefa menor Considerada a desproporccedilatildeo entre o conteuacutedo (a

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semacircntica) e o recipiente (a palavra) entre o significado e o significante natildeo eacute impossiacutevel que οὐκ ἔστιν seja tatildeo somente uma expressatildeo simplificada quem sabe ateacute mesmo uma simplificaccedilatildeo didaacutetica pois o conteuacutedo do conceito estaacute expresso e justificado depois nos versos 7 e 8

O caminho de pensar que natildeo eacute e de pensar que eacute necessaacuterio natildeo ser eacute o caminho que afirma a necessidade de que a noccedilatildeo de natildeo-ser permaneccedila estaacutevel A contradiccedilatildeo tem que permanecer e ser identificada como tal pois eacute a uacutenica maneira de evitar que ela entre no pensamento e no discurso Se o ldquonatildeo-serrdquo natildeo for considerado contraditoacuterio a contradiccedilatildeo invade e domina o caminho de inqueacuterito o qual deixa de possuir πίστις ἀληθής (130) Assim eacute preciso que esse caminho seja identificado como μὴ εἶναι por um lado o ldquonatildeo-serrdquo eacute incognosciacutevel (οὔτε γὰρ ἂν γνοίης) mas por outro lado eacute neces-saacuterio que se saiba que ele eacute incognosciacutevel Saber do incognosciacutevel garante o conhecimento29 pois de fato ao natildeo se identificar o ldquonatildeo-serrdquo cai-se no risco de pensar que ldquoserrdquo e ldquonatildeo-serrdquo satildeo o mesmo e natildeo o mesmo como Parmecircni-des afirma em DK 6 5-6 Necessariamente o caminho que pensa οὐκ ἔστιν leva ao processo de contradiccedilatildeo (μὴ εἶναι) e a natildeo conclusatildeo do caminho (ἀνυστόν) natildeo eacute evidente na expressatildeo pelo contraacuterio τό μὴ ἐὸν parece uma negaccedilatildeo comum como qualquer outra poreacutem natildeo o eacute por isso eacute um saber destinado ao saacutebio e natildeo aos mortais porque eacute um saber fruto de uma reflexatildeo

34 DE VOLTA AOS VERSOS 3 E 4

Penso que podemos agora voltar ao verso 23 ao nosso segundo he-mistiacutequio onde aparece a expressatildeo μὴ εἶναι da qual jaacute temos a semacircntica Podemos entatildeo reconstruir ldquoos uacutenicos caminhos de inqueacuterito a pensar satildeo

por um lado a pensar que [ldquoArdquo] e tambeacutem a pensar que οὐκ ἔστι μὴ εἶναι este eacute caminho de persuasatildeo pois verdade acompanha e

por outro lado a pensar que ldquonatildeo eacuterdquo e tambeacutem a pensar que eacute necessariamente um percurso de pensamento contraditoacuterio porque eacute um caminho ldquoimpossiacutevelrdquo (παναπευθέα) pois o pensamento do ldquonatildeo enterdquo natildeo pode ser completado

O οὐκ ἔστι do verso 3 parece ser diferente do οὐκ ἔστιν do verso 5 Enquanto no 5 ele eacute quase que o nome do caminho (talvez uma simplificaccedilatildeo didaacutetica) no 3 parece significar simplesmente ldquonatildeo eacuterdquo em sentido comum

29 Estaacute aqui uma semente do socratismo

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O natildeo-ser em Parmecircnides de Eleia Artigos Articles

predicativo De fato esse eacute o caminho da persuasatildeo e portanto eacute o caminho do pensamento natildeo-contraditoacuterio Ali a persuasatildeo era impossiacutevel pela con-tradiccedilatildeo aqui eacute possiacutevel pela natildeo-contradiccedilatildeo Sabemos que a expressatildeo μὴ εἶναι eacute a expressatildeo da contradiccedilatildeo suprema de sorte que a natildeo-contradiccedilatildeo eacute a negaccedilatildeo de μὴ εἶναι A traduccedilatildeo de οὐκ ἔστι fica faacutecil embora para a nossa sensibilidade possa parecer algo improacuteprio usar duas vezes οὐκ ἔστι de forma natildeo perfeitamente uniacutevoca a dois versos de distacircncia Logo para o segundo hemistiacutequio do v 3 mantenho esta traduccedilatildeo ldquonatildeo eacuterdquo em parte ambiacutegua para nossas exigecircncias mas que soa perfeitamente harmocircnica com o discurso par-menidiano [] ao pensar que [ldquoArdquo] e que natildeo eacute ldquocontradiccedilatildeordquo (μὴ εἶναι)

Acredito por fim que podemos abordar facilmente o ἔστιν do verso 3 que tanto fez e faz penar os estudiosos de Parmecircnides Aqui de novo a grandeza da questatildeo cosmoloacutegica envolvida ndash a coerecircncia eou a contradito-riedade do real ndash simplesmente torna tatildeo minuacutescula a questatildeo do sujeito de ἔστιν que ela quase desaparece Eu tenho a tendecircncia a pensar que a falta de sujeito seja uma simplificaccedilatildeo didaacutetica30 cuja irregularidade linguiacutestica ajuda na memorizaccedilatildeo31 Todavia afinal tomo partido e entro tambeacutem no quarto grupo daqueles listados por Cordero o sujeito deve ser extraiacutedo do predicado isolado pois ἔστιν produz o sujeito32 De qualquer forma o sentido filosoacutefico eacute preciso haacute um caminho de inqueacuterito ao pensar que eacute aquele que pensa o ldquoeacuterdquo esse mesmo caminho eacute aquele ao pensar que natildeo eacute (e natildeo pode ser33) ldquocon-tradiccedilatildeordquo Depois haacute um outro caminho aquele ao pensar que ldquonatildeo eacuterdquo que eacute o caminho ao pensar que leva necessariamente agrave contradiccedilatildeo O primeiro eacute o 30 Segundo o relato platocircnico no diaacutelogo Parmecircnides Zenatildeo acompanhado de seu mestre foi para as Panateneias com a finalidade de defender a filosofia de seu mestre esclarecendo com seu livro repleto de paradoxos as ideias parmenidianas Isso sugere que o poema natildeo expunha articuladamente a filosofia de Parmecircnides mas que constituiacutesse um proacute-memoacuteria com as ideias em sua forma essencial depois elaboradas nas aulas pessoais (KURFESS 2012)31 Eacute extraordinaacuterio como essa simplificaccedilatildeo didaacutetica continue ativa por um lado distorcendo entretanto por outro mantendo viva a mensagem parmenidiana em todas as escolas de ensino meacutedio onde se estuda filosofia vox populi Parmecircnides eacute o filoacutesofo que disse ldquoO que eacute eacute e o que natildeo eacute natildeo eacuterdquo Por outro lado o estrangeiro de Eleia no Sofista lembra outro verso e natildeo este32 Essa questatildeo natildeo aprofundada aqui natildeo possui relevacircncia filosoacutefica no argumento apresentado pode ter relevacircncia se se considera o tipo de reflexatildeo ou seja se se discute a ldquoexperiecircnciardquo do natildeo-ser e principalmente a experiecircncia concreta de Parmecircnides que talvez esteja ligada a praacuteticas de incubaccedilatildeo Nesse caso a dimensatildeo reflexiva adentra a dimensatildeo oniacuterica a qual possui outra sintaxe e onde um simples ἔστιν vale mais de mil articulaccedilotildees sintaacuteticas Natildeo sabemos com certeza dessas praacuteticas em Eleia contudo esse sentido preacute-sintaacutetico natildeo estaacute descartado inclusive alguns estudiosos entre os quais o proacuteprio Cordero atribuem ao ἔστιν o sentido de um grito como um Eureka Sugestotildees nesse sentido se encontram na minha dissertaccedilatildeo sobre Melisso (GALGANO 2010)33 A interpretaccedilatildeo modal eacute tambeacutem perfeitamente coerente aqui

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caminho que estabelece o discurso coerente (persuasivo) e o segundo natildeo leva a lugar nenhum e deve ser evitado Mas para que se saiba o que deve ser evi-tado eacute preciso que se conheccedila a impossibilidade do segundo caminho A fim de que se possa seguir o primeiro caminho eacute necessaacuterio saber que existe um outro sempre agrave espreita o qual parece oferecer a verdade mas que natildeo oferece uma verdade confiaacutevel que leva necessariamente agrave contradiccedilatildeo de pensamento e de expressatildeo linguiacutestica

4 O MEacuteTODO DA NAtildeO-CONTRADICcedilAtildeO

Parmecircnides provavelmente a partir de sugestotildees pitagoacutericas medita sobre a oposiccedilatildeo ao que existe e assim descobre o ldquonatildeo-serrdquo Descobre que ldquonatildeo serrdquo ou seja negar o ser negar o que haacute eacute de todo impossiacutevel (natildeo eacute possiacutevel completamente) Entende entatildeo que o ldquonatildeo-serrdquo essa impossibilidade eacute algo que a mente pensa julgando que esse pensamento leva por um caminho mas que na verdade ele descobre leva por outro caminho aquele que nunca che-ga a lugar nenhum Esse caminho que leva para lugar nenhum eacute o caminho dos mortais os quais confundem ser e natildeo ser No entanto o saacutebio deve saber distinguir por um lado o caminho do ldquoeacuterdquo que eacute o caminho do discurso natildeo contraditoacuterio e por outro lado o caminho do ldquonatildeo eacuterdquo que eacute o caminho do discurso que eacute tornado vatildeo pela contradiccedilatildeo

Parmecircnides descobre a contradiccedilatildeo (pela meditaccedilatildeo sobre o natildeo-ser) e percebe que ela eacute motivo de descaminho no discurso sobre o mundo Assim finalmente ele anuncia que a contradiccedilatildeo deve ser evitada A esse enunciado noacutes chamamos de princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo que aqui eacute aquele na versatildeo de Parmecircnides (depois a partir de Platatildeo e Aristoacuteteles haveraacute outras versotildees) Parmecircnides trabalha em acircmbito cosmoloacutegico e sua preocupaccedilatildeo ndash como os de seus colegas na eacutepoca ndash eacute com o mundo com a totalidade das coisas com os πάντα de seu proecircmio (128) Nesse acircmbito cosmoloacutegico descobre que haacute um princiacutepio do mundo pelo qual se daacute uma impossibilidade a contradiccedilatildeo A contradiccedilatildeo eacute um princiacutepio porque o que haacute (πάντα) enquanto todo escapa agrave negaccedilatildeo total Eis que a contradiccedilatildeo eacute princiacutepio tanto quanto a natildeo-contra-diccedilatildeo porque eacute a contradiccedilatildeo que permite a natildeo-contradiccedilatildeo Sem a noccedilatildeo de contradiccedilatildeo se anda com sentidos incertos como os mortais

O valor dessa afirmaccedilatildeo eacute historicamente inabalaacutevel porque Parmecircni-des partindo de um discurso sobre o mundo como que visto de fora por um observador (como Anaximandro via o mundo olhando seu pinax - cf ROS-

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O natildeo-ser em Parmecircnides de Eleia Artigos Articles

SETTI 2013) alcanccedila um discurso que inclui o observador enquanto obser-vador estreando assim antes de tudo um discurso sobre os entes (ontologia) todos os entes incluindo os entes de pensamento (veja-se o famoso fragmento 3 onde se lecirc que pensar e ser satildeo o mesmo) Para ele o saacutebio natildeo eacute mais aquele que sabe soacute sobre as coisas externas ndash como o antigo xamatilde cuja figura indi-vidual se dissolve na mera intermediaccedilatildeo com o divino ndash poreacutem eacute tambeacutem aquele que consegue pensar sobre as coisas externas ou seja aquele que tem um domiacutenio cognitivo sobre os pensamentos de inqueacuterito e portanto sabe so-bre si mesmo Assim o saacutebio deve pensar por proacutepria conta e julgar pelo novo criteacuterio e natildeo pelo habitual discurso (κρῖναι δὲ λόγωι DK 75) ou seja natildeo deve julgar pelo discurso mas julgar o discurso porque agora o discurso enri-quecido de uma lei universal (a lei das αρχάι ἔστιν e οὐκ ἔστιν) possui uma medida de juiacutezo Parmecircnides amplia o mundo acrescentando ao mundo fiacutesico os mundos do pensamento e da linguagem Eis porque as αρχάι de Parmecircni-des sendo duas permanecem duas justamente eliminado uma delas deixando alguns criacuteticos enlouquecidos na discussatildeo sobre o monismo ou o dualismo de acordo com Parmecircnides o mundo eacute um todavia os sentidos nos enganam natildeo na pluralidade das coisas mas no argumento a respeito da pluralidade das coisas e principalmente ndash aspecto que ele discute explicitamente ndash a respeito do devir das coisas Haacute um princiacutepio que natildeo pode ser eliminado a contra-diccedilatildeo o qual eacute um princiacutepio de erro humano quando se elimina quando se desconsidera quando se faz de conta que natildeo existe a contradiccedilatildeo se instaura quando o princiacutepio eacute levado em conta a contradiccedilatildeo pode ser evitada

Eacute uma conceituaccedilatildeo esdruacutexula para noacutes tambeacutem porque temos que ter (a noccedilatildeo de) a contradiccedilatildeo para eliminar a contradiccedilatildeo temos que saber o que eacute contradiccedilatildeo para que possamos perceber quando o discurso eacute con-traditoacuterio Esses conceitos satildeo misteriosos ateacute agora e satildeo estranhas criaturas de nossas mentes Por exemplo a noccedilatildeo de ldquoimpossiacutevelrdquo obviamente (isto eacute para a nossa pragmaacutetica) natildeo se refere a nada de concreto no entanto temos essa noccedilatildeo e a usamos com o maacuteximo proveito outro exemplo a noccedilatildeo de ldquoinfinitordquo noccedilatildeo que natildeo se refere a algo pragmaticamente concreto mas que usamos igualmente com maacuteximo proveito O mesmo deve ser dito da noccedilatildeo de contradiccedilatildeo ou da noccedilatildeo de nada absoluto que usamos pragmaticamente com maior ou menor proveito

Parmecircnides encontra esse caminho e o expotildee Eacute um caminho assom-broso anti-intuitivo mas incontestaacutevel Dessa forma natildeo eacute de estranhar se a soluccedilatildeo platocircnica eacute a eliminaccedilatildeo fiacutesica da noccedilatildeo de nada absoluto (o par-

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riciacutedio) com sucessivo ldquoadeusrdquo34 achando de tecirc-lo ultrapassado Mas o nada absoluto enquanto noccedilatildeo contraditoacuteria permanece Assim como permane-ce a explicaccedilatildeo defeituosa do devir o qual assim como o conhecemos uma passagem do nada ao ser no nascimento e do ser ao nada no perecimento estaacute mal explicado Daqui por diante os comentaacuterios filosoacuteficos possiacuteveis satildeo inuacutemeros por conseguinte paro meu estudo neste ponto e proponho a versatildeo do fragmento 2 segundo a conceituaccedilatildeo apresentada ateacute aqui alterando de pouco a excelente versatildeo baacutesica de Cavalcante de Souza

Pois bem eu te direi e tu recebe a palavra que ouviste

os uacutenicos caminhos de inqueacuterito que satildeo a pensar

o primeiro que eacute e portanto que natildeo eacute (o caminho da) contradiccedilatildeo

de persuasatildeo eacute o caminho (pois agrave verdade acompanha)

o outro que natildeo eacute e portanto que eacute necessariamente (o caminho da) contradiccedilatildeo

este entatildeo eu te digo eacute atalho de todo incriacutevel

pois nem conhecerias o que natildeo eacute (pois natildeo eacute exequiacutevel)

nem o dirias

GALGANO N S Non-being in Parmenides of Elea Transformaccedilatildeo Mariacutelia v 41 n 2 p 9-36 AbrJun 2018

ABSTRACT In fragment DK 28 B 2 of his poem Parmenides presents his method for distinguishing true persuasion from the lack of true persuasion His famous proposal of these two ways of thinking form a complex statement of a system that intends to guarantee the veracity of statements in order to obtain reliable discourse the only discourse capable of true persuasion The present paper shows that the central role in Parmenidian argumentation is attributed to non-being a notion derived from a reflection on the impossibility of the negation of being Thus the whole fragment is interpreted in terms of this central notion We show that Parmenides discovered the impossibility of negation which we now call lsquocontradictionrsquo and that he articulated the means for avoiding contradiction in thought and discourse a rule which today we call the principle of non-contradiction The study presented here is a detailed investigation of the notion of non-being in the DK 28 B 2 fragment and includes a new translation of it

KEYWORDS Parmenides Non-being Non-contradiction Eleatism Parricide

34 Platatildeo Soph 258e7-259a1 ἡμεῖς γὰρ περὶ μὲν ἐναντίου τινὸς αὐτῷ χαίρειν πάλαι λέγομεν εἴτrsquo ἔστιν εἴτε μή λόγον ἔχον ἢ καὶ παντάπασιν ἄλογον

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Page 12: O NÃO SER EM PARMÊNIDES ELEIA - SciELO · Trans/Form/Ação, Marília, v. 41, n. 2, p. 9-36, Abr./Jun., 2018 9 O não-ser em Parmênides de Eleia Artigos / Articles O NÃO-SER EM

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se comporta mentalmente negando εἶναι quando natildeo tem a atitude de negar εἶναι Resta descobrir o que eacute εἶναι

O termo εἶναι eacute um infinitivo Como se sabe o infinitivo eacute a expressatildeo verbal depauperada de todo sentido acessoacuterio a ponto que ldquo[c]rsquoest de cette fa-ccedilon neacutegative que lrsquoinfinitif a eacuteteacute deacutefini comme repreacutesentant lrsquoideacutee verbale nuerdquo (HUMBERT 1954 p 125) Os mais variados estudos natildeo conseguiram expli-car de forma convincente um sentido especiacutefico para o uso feito por Parmecircnides Por exemplo The verb ldquoberdquo in ancient Greek (KAHN 2003 passim) um dos estudos mais completos sobre o tema vecirc-se obrigado a atribuir a Parmecircnides um uso supostamente novo mas parece-me de forma improacutepria e desnecessaacuteria16 Eu penso que quando Parmecircnides quis utilizar um novo sentido inventou um novo termo como no caso de to eon (invenccedilatildeo na linha jaacute consolidada de subs-tantivar verbos no gecircnero neutro) Natildeo fez o mesmo com εἶναι e suas demais formas verbais razatildeo pela qual o sentido deve ser buscado nas acepccedilotildees tradicio-nais as quais satildeo muacuteltiplas e equiacutevocas como diraacute mais tarde Aristoacuteteles

No infinitivo εἶναι expressa a ideia geral do verbo num campo se-macircntico que vai desde ldquopresenccedilardquo ateacute a funccedilatildeo predicativa comum a muitas liacutenguas indo-europeias Creio que seja inuacutetil buscar um sentido preciso como ldquoexistirrdquo ou ldquoestar presente localmenterdquo ou outro εἶναι significa tudo isso principalmente porque eacute usado no infinitivo e como objeto Em portuguecircs a palavra que expressa com a mesma equivocidade a pluralidade de sentido numa riqueza proacutexima ao grego eacute o verbo ldquoserrdquo17 Parece-me portanto per-feitamente inuacutetil cercear o sentido a uma uacutenica acepccedilatildeo restriccedilatildeo que acaba gerando interpretaccedilotildees polecircmicas Ateacute mesmo para a acepccedilatildeo de ldquoexistirrdquo se construiacuteram criacuteticas a meu ver improacuteprias pelas quais se chega a discutir se Parmecircnides pensasse ou natildeo que seres natildeo existentes como quimeras e outros

16 Kahn extrai o sentido de εἶναι em Parmecircnides natildeo do uso que o eleata faz mas do contexto geral da mensagem parmenidiana Teoricamente seria um meacutetodo viaacutevel posto que se consiga entender corre-tamente a mensagem do filoacutesofo Na praacutetica no caso do poema de Parmecircnides que verte exatamente sobre εἶναι e seus derivados haacute um risco enorme ndash ao qual em minha visatildeo Kahn sucumbiu ndash de cair num petitio principii onde o sentido de εἶναι eacute extraiacutedo da mensagem filosoacutefica geral (Kahn o extrai de 129 que eacute o ldquoiacutendice parmenidianordquo e portanto poderia oferecer a ideia geral do poema) e por sua vez a mensagem filosoacutefica eacute obtida a partir do sentido de εἶναι Kahn acredita ter encontrado no sentido ldquoveritativordquo o novo uso que Parmecircnides faz de εἶναι17 Para εἰμί o Dicionaacuterio LSJ apresenta sete campos (de A a G) com 16 acepccedilotildees e mais vaacuterias suba-cepccedilotildees Para o verbo ldquoserrdquo o Dicionaacuterio Houaiss apresenta 19 acepccedilotildees das quais 14 verbais e 5 como substantivo as subacepccedilotildees satildeo exemplificadas mas natildeo classificadas

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seres mitoloacutegicos pudessem ser incluiacutedos na leitura predicamental18 Principal-mente eacute necessaacuterio manter a equivocidade do termo porque corresponde agrave forma mentis do autor e natildeo se devem exigir distinccedilotildees que natildeo eram processa-das por aquela cultura sob pena mais uma vez de atribuir aos antigos a nossa proacutepria forma mentis pecado fatal para um historiador da filosofia

Desse modo de iniacutecio a traduccedilatildeo de μὴ εἶναι com ldquonatildeo-serrdquo ateacute mes-mo por ser equiacutevoca (para a nossa sensibilidade) manteacutem a equivocidade proacute-pria da eacutepoca e da liacutengua da eacutepoca Posta entatildeo essa equivocidade precisamos saber se expressa um sentido filosoacutefico antes de tudo para a eacutepoca e depois para noacutes A comparaccedilatildeo de 23 οὐκ ἔστι μὴ εἶναι com 71 Οὐ δαμῇ εἶναι μὴ ἐόντα que eacute o testemunho de Platatildeo nos faz entender que nessas palavras natildeo soacute se encontra um sentido filosoacutefico mas ateacute mesmo o sentido principal da filosofia de Parmecircnides Retomando portanto a construccedilatildeo precisamos entender por que pensar o natildeo-ser (μὴ εἶναι) eacute algo que natildeo eacute possiacutevel ou que natildeo se deve fazer ou que simplesmente natildeo eacute (natildeo acontece) segundo a expressatildeo usada por Parmecircnides οὐκ ἔστι

Aleacutem da traduccedilatildeo simples e imediata haveria outras possibilidades de traduccedilatildeo19 essas variaccedilotildees podem ser interessantes para evidenciar nuances aqui e acolaacute contudo tendo a possibilidade de utilizar o verbo ldquoserrdquo num uso equiacutevoco proacuteximo do grego natildeo precisamos recorrer agrave circunlocuccedilotildees e pode-mos traduzir οὐκ ἔστι com ldquonatildeo eacuterdquo20 e μὴ εἶναι com ldquonatildeo-serrdquo Diz portanto o segundo hemistiacutequio

Os uacutenicos caminhos de inqueacuterito ao pensar satildeo

Por um lado [ldquoArdquo] e que natildeo eacute natildeo-ser

18 De novo Kahn (2009) que assinala ldquoTo take the philosophical objection first it is simply false to say that you cannot think or talk about (point out in speech phrazein) what does not exist And the falseness of this would be obvious to any Greek who reflected for a moment on the profusion of monsters and fantastic creatures in traditional poetry and myth from Pegasus to the children of Gaia with a hundred arms and fifty heads apiecerdquo (HESIOD THEOGONY 150 172) Mais agrave frente ressaltamos que exatamente na questatildeo filosoacutefica Kahn estaacute errado e Parmecircnides estaacute certo eacute impossiacutevel pensar e dizer o natildeo-ser19 Um outro caminho possiacutevel de traduccedilatildeo utilizado principalmente pelos autores de liacutengua inglesa por motivos idiossincraacutesicos da liacutengua eacute empregar uma expressatildeo cuja noccedilatildeo tambeacutem eacute ampliacutessima e equiacutevoca ldquocoisardquo Mas essa expressatildeo por ser um substantivo natildeo possui o aspecto dinacircmico que o verbo tem sendo assim necessaacuterio acrescentar o verbo ser portanto eacute possiacutevel traduzir com ldquoas coisas que satildeordquo Outra possibilidade eacute usar o pronome ldquoquerdquo em sentido predicativo em substituiccedilatildeo de coisa ou coisas Outra ainda eacute o pronome demonstrativo (aquilo isto) ou o indefinido (algo) com a mesma funccedilatildeo substitutiva de coisa(s) no sentido mais indefinido possiacutevel20 Laacute onde em inglecircs haacute obrigatoriedade de explicitar-se o sujeito ldquowhat is notrdquo

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Se tiveacutessemos seguido a ordem metodoloacutegica tradicional ao examinar 23 teriacuteamos analisado primeiro ἔστιν e depois οὐκ ἔστι μὴ εἶναι E se de-pois de estudar o segundo hemistiacutequio voltaacutessemos nossa atenccedilatildeo ao primeiro hemistiacutequio natildeo teriacuteamos ganho metodoloacutegico nenhum pois redundariacuteamos na leitura por pressupostos em que o sentido de ἔστιν eacute obtido pelo pressu-posto de que ἔστιν significa em grego ldquoeacuterdquo todavia dessa maneira se chegaria aos resultados jaacute conhecidos considerados natildeo totalmente satisfatoacuterios pelos proacuteprios autores de cada interpretaccedilatildeo O dado concreto eacute que o poema natildeo oferece nenhuma definiccedilatildeo direta ou indireta de ἔστιν embora apresente mui-tos σήματα de ἐὸν Em compensaccedilatildeo o poema trata amplamente de μὴ εἶναι E natildeo eacute preciso ir muito longe para encontrar referecircncias para a noccedilatildeo de μὴ εἶναι pois observamos muitos dados nos versos de 5 a 8 do nosso fragmento Iremos portanto ao verso 5 e subsequentes

33 OS VERSOS 5 A 8 he drsquoos ouk eacutestin te kaigrave os khreoacuten esti megrave eicircnai

tegraven deacute toi phraacutezo panapeutheacutea eacutemmen atarpoacuten

ouacutete gagraver agravev gnoiacutees toacute ge megrave eograven (ou gagraver anustoacuten)

ouacutete phraacutezais

o outro que natildeo eacute e portanto que eacute preciso natildeo ser

este entatildeo eu te digo eacute atalho de todo incriacutevel

pois nem conhecerias o que natildeo eacute (pois natildeo eacute exequiacutevel)

nem o dirias

Vamos relembrar a letra do verso 5 ἡ δrsquo ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι Haacute uma construccedilatildeo paralela ao verso 3 dois hemistiacutequios no segundo dos quais encontramos nosso μὴ εἶναι No verso seguinte o caminho eacute chamado de παναπευθέα termo que muito fez e faz sofrer os filoacutelogos O sentido geral poreacutem eacute claro quer se queira traduzir como ldquode todo incriacutevelrdquo (CAVALCANTE DE SOUZA 1978) quer como ldquocompletamente inconos-ciblerdquo (CORDERO 2005 p 219) ou ldquowholly without reportrdquo (COXON 2009 p 56) ou como outro Em suma a noccedilatildeo geral eacute de que haacute uma difi-culdade intransponiacutevel em seguir esse caminho e por que eacute explicado a seguir

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Assim como em certa metodologia de exposiccedilatildeo primeiro se enuncia a tese e depois se propotildee o argumento demonstrativo Parmecircnides primeiro enuncia (como conveacutem agrave expressatildeo de uma deusa) e depois diz por quecirc Ora a novida-de cultural eacute exatamente esse porquecirc onde as afirmaccedilotildees natildeo satildeo mais apenas impostas por sua forccedila hieraacutetica mas precisam de explicaccedilotildees21

O nosso primeiro problema eacute que os enunciados (no verso 3 antes no verso 5 agora) natildeo satildeo claros para noacutes Nesse sentido podemos pedir clareza aos argumentos Qual eacute o argumento Eis a resposta de Parmecircnides οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε μὴ ἐὸν (οὐ γὰρ ἀνυστόν) οὔτε φράσαις Aqui a traduccedilatildeo eacute mais clara e natildeo haacute muita divergecircncia entre os criacuteticos pois nem poderias co-nhecer o que natildeo eacute (pois eacute impossiacutevel) nem o dirias Haacute aqui um claro objeto do discurso τό μὴ ἐὸν o qual sem hesitaccedilatildeo desta vez podemos traduzir por ldquoo que natildeo eacuterdquo Sem hesitaccedilatildeo porque τὸ ἐὸν eacute uma expressatildeo desconhecida antes de Parmecircnides aparece com ele eacute estudada por seus disciacutepulos e pelos seus criacuteticos (de Melisso a Aristoacuteteles) e eacute reportada pela doxografia como invenccedilatildeo parmenidiana

A noccedilatildeo exposta por Parmecircnides eacute sequencial o caminho de inqueacuterito que pensa οὐκ ἔστιν aqui chamado de ἀταρπόν natildeo pode ser percorrido porque eacute impossiacutevel ldquoconhecerrdquo (γνοίης ndash segunda pessoa do optativo aoristo ativo de γιγνώσκω) o que natildeo eacute e vamos deixar para depois a questatildeo do di-zer (οὔτε φράσαις) Vamos concentrar nossa atenccedilatildeo sobre γνοίης Para noacutes eacute menos importante a traduccedilatildeo gramaticalmente e estilisticamente precisa e mais importante a precisatildeo da noccedilatildeo filosoacutefica exposta Em relaccedilatildeo a essa pa-lavra houve (e ainda haacute) uma discussatildeo acirrada Discute-se se traduzir por ldquoconhecerrdquo como fazem alguns (COXON 2009 p 56 GALLOP 1984 p 55 TARAacuteN 1965 p 32 e muitos outros) ou ldquoreconhecerrdquo como fazem outros (por exemplo BARNES 1982 p 124) e principalmente que sentido atribuir ao ldquoconhecerrdquo Eu penso que considerado o contexto natildeo se trata do conhecer epistecircmico mas do conhecer gnosioloacutegico ou seja da capacidade que a mente possui de estabelecer um processo de conhecimento E que se trate de processo eacute claro pela vaacuteria terminologia que Parmecircnides usa mas principalmente pela sua ὁδός que ficaraacute para sempre como metaacutefora perfeita dos procedimentos a serem tomados para realizar tarefas de qualquer natureza vindo a receber o nome de meacutetodo

21 Rossetti (2010) A necessidade de explicaccedilotildees natildeo eacute mais soacute dos autores mas tambeacutem da audiecircncia que agora requer argumentos

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Para o meacutetodo do pensar epistecircmico declara Parmecircnides natildeo eacute con-veniente seguir um certo percurso porque sobre ele haacute ao menos uma etapa onde se deve ldquoconhecerrdquo ndash ou seja onde se deve exercer a capacidade gnosioloacute-gica ndash o τό μὴ ἐὸν mas isso eacute impossiacutevel Na verdade tanto o termo ἀνυστόν (reportado por Simpliacutecio) quanto sua variante ἐφικτόν (reportada por Proclo) tecircm um sentido processual quero dizer que a tarefa de pensar o τό μὴ ἐὸν natildeo apresenta uma impossibilidade que se realiza imediatamente mas uma que implica um processo o qual eacute impossiacutevel em sua inteireza porque natildeo pode ser levado a termo De fato ἀνυστός significa ldquoser completadordquo ldquopraticaacutevelrdquo enquanto ἐφικτός significa ldquofaacutecil de alcanccedilarrdquo ldquoacessiacutevelrdquo Ambos os termos tecircm sentido dinacircmico e processual e a negaccedilatildeo que Parmecircnides faz significa que esse processo natildeo pode ser levado a termo

De que processo se trata Em minha visatildeo trata-se do processo concre-to de pensar a negaccedilatildeo do ser Parmecircnides eacute de aacuterea de formaccedilatildeo pitagoacuterica e os pitagoacutericos ndash como assinala Aristoacuteteles (Metaph 986a15-26) ndash naquela eacutepoca estudavam as oposiccedilotildees as mais abstratas tendo passado da oposiccedilatildeo mais antiga entre par e iacutempar correspondentes a limitado e ilimitado (πέρας e ἄπειρον) a um conjunto de dez oposiccedilotildees Nada desabona uma possiacutevel tentativa de Parmecircnides buscar uma oposiccedilatildeo (a qual era feita tambeacutem por negaccedilatildeo como nos evidencia a expressatildeo verbal da oposiccedilatildeo entre πέρας e ἄπειρον com o ldquoαrdquo privativo) para o ldquotodordquo aquele πάντα que encontramos no verso 128 do poema e que em breve transformar-se-ia em φύσις no curso da evoluccedilatildeo histoacuterica dos conceitos filosoacuteficos da antiga Greacutecia

A meditaccedilatildeo do ldquonatildeo-serrdquo eacute das mais interessantes a se fazer na filosofia Tentar ldquopensarrdquo o ldquonatildeo-serrdquo eacute uma experiecircncia profunda a qual leva a conside-raccedilotildees radicais natildeo soacute sobre a existecircncia humana mas sobre a existecircncia como um todo Que Parmecircnides tenha se dedicado a essa meditaccedilatildeo eacute seguro pois ele o diz indiretamente em 22 quando afirma que os uacutenicos caminhos ao pensar satildeo aquele que pensa ἔστιν e aquele que pensa οὐκ ἔστιν O que natildeo sa-bemos e natildeo podemos afirmar com certeza eacute que tipo de meditaccedilatildeo ele reali-zou Eis que os termos ἀνυστόν ou ἐφικτόν vecircm nos socorrer e nos informam que se trata de uma meditaccedilatildeo processual que natildeo acaba Descrevi esse proces-so detalhadamente em outro trabalho (GALGANO 2010) e o repetirei aqui brevemente Pensar o natildeo-ser significa pensar concretamente a negaccedilatildeo do ser concreto (do mundo sensiacutevel ou inteligiacutevel) de cada ser Para tornar mais claro o processo pode-se comeccedilar negando a existecircncia de um ente depois daquilo

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que o rodeia depois do planeta depois do universo (sensiacutevel e inteligiacutevel atual e possiacutevel) e depois do mundo como um todo enfim do todo

O problema principal dessa meditaccedilatildeo eacute exatamente pensar se o sujeito pertence ou natildeo ao todo Quando se pensa a negaccedilatildeo do todo permanece ainda o sujeito pensante que pensa o todo como se o olhasse de um ponto virtual externo a ele E quando se tenta incluir o sujeito pensante de duas uma 1) ou o sujeito acreditando pensar a si proacuteprio dentro do todo reapa-rece externamente22 ou 2) o sujeito cognitivo desaparece e com ele qualquer noccedilatildeo cognitiva de ldquonatildeo-serrdquo Podemos assegurar claramente que o processo de pensar o τό μὴ ἐὸν natildeo termina seja porque eacute impossiacutevel incluir o sujeito no todo pois ele sempre reaparece a cada tentativa seja porque o processo quan-do inclui o sujeito no todo interrompe-se sendo assim impossiacutevel completar a negaccedilatildeo do todo Natildeo podemos saber se o modelo meditativo de Parmecircnides foi exatamente este mas natildeo me parece haver nada em desabono23

Entretanto qual eacute a importacircncia de natildeo se poder pensar a negaccedilatildeo de tudo Seguindo o argumento parmenidiano o caminho (ἀταρπόν) cognitivo que pensa τό μὴ ἐὸν natildeo pode ser concluiacutedo Ora ἀταρπόν eacute um sinocircnimo que Parmecircnides usa para o ὁδός do verso 22 (ὁδοὶ) isso quer dizer que o segundo caminho de inqueacuterito pode ser iniciado mas natildeo pode ser levado a termo Poreacutem se natildeo pode ser levado a termo por que eacute identificado como caminho Por que natildeo eacute excluiacutedo jaacute de iniacutecio quando a deusa ao inveacutes de anunciar os uacutenicos (moucircnai plural) caminhos natildeo anuncia um uacutenico cami-nho A resposta a essa pergunta torna clara a estranha afirmaccedilatildeo de que o caminho do pensar do segundo hemistiacutequio do verso 5 eacute necessaacuterio que per-maneccedila natildeo ser (χρεών ἐστι μὴ εἶναι) Parmecircnides assevera que embora seja um caminho que jamais pode ser completado ele ao mesmo tempo natildeo pode ser eliminado continua a pertencer aos (dois) uacutenicos caminhos de inqueacuterito ele eacute necessaacuterio

22 Se penso na aniquilaccedilatildeo de tudo incluindo a mim mesmo terei que pensar a mim mesmo aniquilado contudo esse pensar gerando esse novo pensamento gera um novo sujeito cognitivo pensante se aniquilo esse novo pensamento terei um novo sujeito cognitivo que pensa essa nova aniquilaccedilatildeo e assim por diante ad infinitum23 Natildeo quero garantir que Parmecircnides estreie uma filosofia do sujeito embora isso natildeo possa ser excluiacutedo a priori jaacute que os embriotildees de uma tal filosofia apareceratildeo em breve com Soacutecrates Acredito que se deve pensar mais no sujeito como o atleta campeatildeo das Olimpiacuteadas ou seja aquele capaz de cumprir (ou natildeo) certas proezas como fica extraordinariamente evidenciado no paradoxo de Zenatildeo cuja metaacutefora da filosofia (e do filoacutesofo) como tartaruga mostra que o pensar filosoacutefico eacute capaz de proezas maiores do que as proezas do proacuteprio Aquiles tidas como insuperaacuteveis pela cultura da eacutepoca

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Vamos de novo reconstruir essa parte do argumento com esse novo elemento os uacutenicos caminhos de inqueacuteritos satildeo

1) por um lado o caminho ao pensar que [versos 3 e 4] e

2) por outro lado o caminho ao pensar que [ldquoCrdquo (verso 5 primeiro hemistiacute-quio)] e que eacute necessaacuterio (que seja) natildeo-ser

De fato esse segundo caminho (ἀταρπόν) eacute inviaacutevel porque ldquonatildeo se consegue levar a cabo a reflexatildeordquo (γνοίης) quando se pensa o τό μὴ ἐὸν Ou seja fica muito clara a equaccedilatildeo entre o segundo caminho (v 5) e a reflexatildeo sobre o natildeo ser (τό μὴ ἐὸν) Finalmente o segundo hemistiacutequio do v 5 diz que esse eacute o caminho ao pensar que eacute necessaacuterio que seja μὴ εἶναι o qual agora sabemos eacute o caminho que tenta pensar o natildeo-ser (τό μὴ ἐὸν) Sabe-mos agora o que Parmecircnides chama de μὴ εἶναι Para Parmecircnides μὴ εἶναι eacute a estrutura do pensamento quando tenta inexoraacutevel e malogradamente pensar o natildeo-ser (τό μὴ ἐὸν)

Temos portanto a semacircntica de μὴ εἶναι e sabemos que significa a impossibilidade de pensar o natildeo-ser Com esse dado podemos reconstruir o resto do argumento mas primeiro vamos abordar a questatildeo do οὔτε φράσαις A premissa principal eacute o pano de fundo da pesquisa parmenidiana a qual estaacute em busca do discurso confiaacutevel como a deusa diz claramente no encerramen-to do fragmento 8 (talvez ecoando simetricamente alguma parte perdida do poema)24 Pensar o τό μὴ ἐὸν natildeo eacute possiacutevel logo ele eacute indiziacutevel Ora isso significa nem mais nem menos que dizer que o que eacute impossiacutevel eacute contra o sentido do dizer Eacute indiziacutevel natildeo porque natildeo se sabe do que se trata como querem muitos autores que fazem a leitura meramente epistemoloacutegica25 Eacute indiziacutevel porque dizer o ldquonatildeo-serrdquo significa fazer uma promessa que jamais se cumpriraacute ao se dizer ldquonatildeo-serrdquo parece que a expressatildeo aponta algo possiacutevel ou seja a negaccedilatildeo do ser e de fato quem estaacute desavisado assim acredita Mas a expressatildeo ldquonatildeo-serrdquo quer referir-se a algo que jamais seraacute cumprido que o

24 850-2 ldquoἐν τῶι σοι παύω πιστὸν λόγον ἠδὲ νόημα ἀμφὶς ἀληθείης δόξας δrsquo ἀπὸ τοῦδε βροτείας μάνθανε κόσμον ἐμῶν ἐπέων ἀπατηλὸν ἀκούωνrdquo ldquoNeste ponto encerro fidedigna palavra e pensamento sobre a verdade e opiniotildees mortais a partir daqui aprende a ordem enganadora de minhas palavras ouvindordquo (CAVALCANTE DE SOUZA 1978)25 Trata-se da leitura epistemoloacutegico-predicamental se natildeo sei a cor de um objeto (porque a cor natildeo eacute natildeo estaacute acessiacutevel ao meu conhecimento) natildeo posso falar da cor do objeto

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ser seja negado Esta eacute exatamente a noccedilatildeo expressa pelas palavras de Platatildeo jamais prevaleceraacute que natildeo entes sejam26

A expressatildeo μὴ εἶναι representa essa impossibilidade de pensamento e portanto eacute um dizer impossiacutevel o que se opotildee radicalmente agrave proacutepria noccedilatildeo de dizer a qualquer significar enquanto discurso confiaacutevel do mundo e da sua ordem Surge a pergunta mas se natildeo se pode dizer μὴ εἶναι se isso eacute impossiacute-vel natildeo haacute uma flagrante contradiccedilatildeo na deusa jaacute que ela proacutepria diz e cons-troacutei um argumento sobre o dizer μὴ εἶναι A objeccedilatildeo seria vaacutelida se a deusa dissesse o que eacute impossiacutevel de dizer ou seja se ela praticasse a impossibilidade Todavia a deusa natildeo diz o impossiacutevel a deusa aponta para o impossiacutevel indica o impossiacutevel pois ela diz que existem a ldquonoccedilatildeo de impossibilidade do pensarrdquo e a ldquonoccedilatildeo de impossibilidade do dizerrdquo Em outras palavras a deusa diz qual eacute o limite do pensar e qual eacute o limite do dizer Aleacutem desse limite o pensamento natildeo pode ir porque eacute impossiacutevel e tambeacutem o dizer natildeo pode ir porque eacute im-possiacutevel A impossiacutevel regiatildeo para aleacutem desse limite natildeo eacute admitida pelo dizer eacute contra o dizer eacute contraditoacuteria

A expressatildeo μὴ εἶναι em Parmecircnides eacute exatamente a palavra que ex-pressa o processo mental que noacutes chamamos contradiccedilatildeo e que ele primeiro assim chamou (οὔτε φράσαις natildeo diziacutevel) Eacute estranho que nenhum criacutetico te-nha percebido isso claramente Todos afirmam que o princiacutepio de natildeo contra-diccedilatildeo estaacute implicado em Parmecircnides assim como os outros princiacutepios loacutegicos pois os argumentos presentes no poema satildeo desenvolvidos segundo a natildeo con-tradiccedilatildeo poreacutem o princiacutepio natildeo eacute enunciado Alguns como Cordero veem justamente explicitado o princiacutepio do terceiro excluiacutedo (816 ἔστιν ἢ οὐκ ἔστιν) mas ningueacutem quis ver claramente que natildeo soacute a noccedilatildeo como tambeacutem a proacutepria palavra ldquocontradiccedilatildeordquo (οὔτε φράσαις natildeo diziacutevel contra o diziacutevel contra a dicccedilatildeo) estaacute explicitada no poema Penso que a razatildeo fundamental para que acontecesse esse lapsus tenha que ser procurada na grande atenccedilatildeo dada ao ldquoserrdquo e na pouca dada ao ldquonatildeo-serrdquo Como observaremos mais adiante por causa desse lapsus eu penso que natildeo se conseguiu entender plenamente a estrutura do fragmento 2 o qual simplesmente natildeo apresenta um silogismo disjuntivo nem nenhuma contradiccedilatildeo entre o caminho do ldquoserrdquo e o caminho do ldquonatildeo-serrdquo Parmecircnides assevera justamente que a expressatildeo ldquonatildeo-serrdquo eacute contraditoacuteria o ldquonatildeo-serrdquo natildeo pode ser dito porque ldquonatildeo-serrdquo eacute contraditoacute-

26 As duas expressotildees tecircm inversatildeo de predicado e negaccedilatildeo no entanto a noccedilatildeo permanece a mesma que os entes natildeo sejam (perecimento no fr 8) e que os natildeo entes sejam (nascimento no fr 8) A noccedilatildeo eacute o tracircnsito entre ser e natildeo ser

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GALGANO N S

rio e a expressatildeo ldquonatildeo-serrdquo indica tatildeo somente uma impossibilidade concreta aquela de que se realize o impossiacutevel

Vamos voltar ao nosso argumento e agrave questatildeo que deixamos em suspenso por que eacute necessaacuterio que μὴ εἶναι seja Sabemos que os versos 7 e 8 relatam um processo malogrado de pensar o natildeo ente (τό μὴ ἐὸν) Uso agora a palavra ente porque se justifica uma diferenciaccedilatildeo embora tanto ldquoenterdquo quanto ldquoserrdquo indiquem expressotildees gerais e natildeo individuais ldquoEnterdquo vem por conseguinte a significar o ente concreto aquele que eacute Parmecircnides sustenta que natildeo se pode pensar e dizer τό μὴ ἐὸν o ldquonatildeo enterdquo Esse processo recebe o nome de μὴ εἶναι ldquonatildeo-serrdquo a esse processo noacutes chamamos contradiccedilatildeo27 Entatildeo a indicaccedilatildeo eacute esta haacute um caminho ao pensar que pensa μὴ εἶναι (a contradiccedilatildeo) e eacute necessaacuterio que assim seja porque (vou repetir trecircs vezes de forma diferente28 para significar a mesma coisa)

1) se natildeo houvesse a contradiccedilatildeo

2) se natildeo se tem a noccedilatildeo de contradiccedilatildeo

3) se natildeo se sabe o que eacute contradiccedilatildeo

cai-se no discurso contraditoacuterio o que impede o inqueacuterito confiaacutevel Eacute ne-cessaacuterio saber que μὴ εἶναι (o processo de contradiccedilatildeo) eacute um caminho a ser evitado porque cria pensamentos e discursos contraditoacuterios

Vejamos de novo nosso fragmento com os elementos esclarecidos ateacute aqui

os uacutenicos caminhos de inqueacuterito a pensar satildeo

por um lado que [ versos 3 e 4]

e por outro lado que οὐκ ἔστιν e que eacute necessaacuterio que seja a contradiccedilatildeo (μὴ εἶναι)

a qual eacute um caminho natildeo criacutevel

pois eacute impossiacutevel pensar e dizer o natildeo ente (τό μὴ ἐὸν)

27 Mesmo para noacutes a contradiccedilatildeo eacute um processo porque indica a posiccedilatildeo de algo em contraposiccedilatildeo com mais algo isso significa que esses dois algos tecircm que ser relacionados para que haja contradiccedilatildeo do contraacuterio algo e mais algo podem conviver sem contraditoriedade Contudo esse assunto estaacute fora de tema e requer muitas outras providecircncias para o bom discernimento28 Repito buscando clareza pois nossas construccedilotildees comuns de linguagem nesses assuntos costumam ldquopatinarrdquo

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O natildeo-ser em Parmecircnides de Eleia Artigos Articles

Penso que o espaccedilo conceitual deixado por οὐκ ἔστιν agora se pre-encha quase que por si haacute um caminho de inqueacuterito ao pensar que ldquonatildeo eacuterdquo e que eacute necessaacuterio que se considere contraditoacuterio porque eacute caminho que natildeo leva a lugar nenhum

A expressatildeo οὐκ ἔστιν eacute a negaccedilatildeo da terceira pessoa do indicativo de εἰμί a expressatildeo em si natildeo tem nada de especial significa tatildeo somente ldquonatildeo eacuterdquo restando em aberto o problema da ausecircncia de sujeito Mas agora sabemos o argumento complexo que estaacute na raiz da expressatildeo e a meu ver natildeo faz muito sentido a questatildeo de buscar um sujeito ou um objeto para definir se eacute usado de forma transitiva ou intransitiva se expressa existecircncia ou predicaccedilatildeo e as muitas combinaccedilotildees que podem ser montadas a partir da equivocidade do uso de εἰμί No entanto o acircmbito semacircntico foi evidenciado e estaacute claro e aleacutem do mais tem o testemunho de Platatildeo a confirmar o campo semacircntico da negaccedilatildeo de εἰμί nas vaacuterias formas estaacute relacionado a uma reflexatildeo sobre a impossibili-dade dessa negaccedilatildeo Obviamente para dizer que algo eacute impossiacutevel de alguma forma tenho que indicar essa impossibilidade com alguma expressatildeo Assim se digo ldquotriacircngulo quadradordquo aponto para uma impossibilidade jaacute que por defi-niccedilatildeo a essecircncia do triacircngulo exclui a essecircncia do quadrado logo a expressatildeo ldquotriacircngulo quadradordquo natildeo significa aquilo que parece prometer ou seja natildeo significa uma figura geomeacutetrica especial que eacute ao mesmo tempo triacircngulo e quadrado dizer ldquotriacircngulo quadradordquo eacute dizer algo ldquoindiziacutevelrdquo ldquonatildeo diziacutevelrdquo (na medida em que o diziacutevel quer expressar sentido) ldquoque nega o diziacutevelrdquo ldquoque eacute contra o diziacutevelrdquo que eacute contraditoacuterio

A semacircntica do ldquonatildeo serrdquo eacute fortiacutessima e estaacute muito aleacutem das sutilezas gramaticais morfoloacutegicas e sintaacuteticas e estas simplesmente natildeo afetam aquela O assunto tratado eacute tatildeo forte que ultrapassa qualquer forma linguiacutestica a pon-to de que esse assunto a ordem do ser e do natildeo-ser no mundo eacute responsaacutevel pela determinaccedilatildeo da lei da linguagem e natildeo vice-versa como bem entendeu Platatildeo no Sofista onde a teoria da predicaccedilatildeo surge em funccedilatildeo de uma refle-xatildeo sobre a ordem das leis baacutesicas do mundo Com efeito o approach linguiacutes-tico ao poema pode proceder ateacute certo ponto dali em diante o poema eacute fran-camente filosoacutefico e a chave linguiacutestica natildeo eacute suficiente para o acesso Isso quer dizer que com a chave linguiacutestica natildeo se abre a porta da questatildeo filosoacutefica do poema Se a questatildeo eacute que ldquojamais o natildeo ser pode se tornar serrdquo como (apro-ximadamente com essas palavras) argumenta Platatildeo citando Parmecircnides en-tatildeo diante da semacircntica que οὐκ ἔστιν apresenta discutir o sujeito de οὐκ ἔστιν se torna tarefa menor Considerada a desproporccedilatildeo entre o conteuacutedo (a

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semacircntica) e o recipiente (a palavra) entre o significado e o significante natildeo eacute impossiacutevel que οὐκ ἔστιν seja tatildeo somente uma expressatildeo simplificada quem sabe ateacute mesmo uma simplificaccedilatildeo didaacutetica pois o conteuacutedo do conceito estaacute expresso e justificado depois nos versos 7 e 8

O caminho de pensar que natildeo eacute e de pensar que eacute necessaacuterio natildeo ser eacute o caminho que afirma a necessidade de que a noccedilatildeo de natildeo-ser permaneccedila estaacutevel A contradiccedilatildeo tem que permanecer e ser identificada como tal pois eacute a uacutenica maneira de evitar que ela entre no pensamento e no discurso Se o ldquonatildeo-serrdquo natildeo for considerado contraditoacuterio a contradiccedilatildeo invade e domina o caminho de inqueacuterito o qual deixa de possuir πίστις ἀληθής (130) Assim eacute preciso que esse caminho seja identificado como μὴ εἶναι por um lado o ldquonatildeo-serrdquo eacute incognosciacutevel (οὔτε γὰρ ἂν γνοίης) mas por outro lado eacute neces-saacuterio que se saiba que ele eacute incognosciacutevel Saber do incognosciacutevel garante o conhecimento29 pois de fato ao natildeo se identificar o ldquonatildeo-serrdquo cai-se no risco de pensar que ldquoserrdquo e ldquonatildeo-serrdquo satildeo o mesmo e natildeo o mesmo como Parmecircni-des afirma em DK 6 5-6 Necessariamente o caminho que pensa οὐκ ἔστιν leva ao processo de contradiccedilatildeo (μὴ εἶναι) e a natildeo conclusatildeo do caminho (ἀνυστόν) natildeo eacute evidente na expressatildeo pelo contraacuterio τό μὴ ἐὸν parece uma negaccedilatildeo comum como qualquer outra poreacutem natildeo o eacute por isso eacute um saber destinado ao saacutebio e natildeo aos mortais porque eacute um saber fruto de uma reflexatildeo

34 DE VOLTA AOS VERSOS 3 E 4

Penso que podemos agora voltar ao verso 23 ao nosso segundo he-mistiacutequio onde aparece a expressatildeo μὴ εἶναι da qual jaacute temos a semacircntica Podemos entatildeo reconstruir ldquoos uacutenicos caminhos de inqueacuterito a pensar satildeo

por um lado a pensar que [ldquoArdquo] e tambeacutem a pensar que οὐκ ἔστι μὴ εἶναι este eacute caminho de persuasatildeo pois verdade acompanha e

por outro lado a pensar que ldquonatildeo eacuterdquo e tambeacutem a pensar que eacute necessariamente um percurso de pensamento contraditoacuterio porque eacute um caminho ldquoimpossiacutevelrdquo (παναπευθέα) pois o pensamento do ldquonatildeo enterdquo natildeo pode ser completado

O οὐκ ἔστι do verso 3 parece ser diferente do οὐκ ἔστιν do verso 5 Enquanto no 5 ele eacute quase que o nome do caminho (talvez uma simplificaccedilatildeo didaacutetica) no 3 parece significar simplesmente ldquonatildeo eacuterdquo em sentido comum

29 Estaacute aqui uma semente do socratismo

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O natildeo-ser em Parmecircnides de Eleia Artigos Articles

predicativo De fato esse eacute o caminho da persuasatildeo e portanto eacute o caminho do pensamento natildeo-contraditoacuterio Ali a persuasatildeo era impossiacutevel pela con-tradiccedilatildeo aqui eacute possiacutevel pela natildeo-contradiccedilatildeo Sabemos que a expressatildeo μὴ εἶναι eacute a expressatildeo da contradiccedilatildeo suprema de sorte que a natildeo-contradiccedilatildeo eacute a negaccedilatildeo de μὴ εἶναι A traduccedilatildeo de οὐκ ἔστι fica faacutecil embora para a nossa sensibilidade possa parecer algo improacuteprio usar duas vezes οὐκ ἔστι de forma natildeo perfeitamente uniacutevoca a dois versos de distacircncia Logo para o segundo hemistiacutequio do v 3 mantenho esta traduccedilatildeo ldquonatildeo eacuterdquo em parte ambiacutegua para nossas exigecircncias mas que soa perfeitamente harmocircnica com o discurso par-menidiano [] ao pensar que [ldquoArdquo] e que natildeo eacute ldquocontradiccedilatildeordquo (μὴ εἶναι)

Acredito por fim que podemos abordar facilmente o ἔστιν do verso 3 que tanto fez e faz penar os estudiosos de Parmecircnides Aqui de novo a grandeza da questatildeo cosmoloacutegica envolvida ndash a coerecircncia eou a contradito-riedade do real ndash simplesmente torna tatildeo minuacutescula a questatildeo do sujeito de ἔστιν que ela quase desaparece Eu tenho a tendecircncia a pensar que a falta de sujeito seja uma simplificaccedilatildeo didaacutetica30 cuja irregularidade linguiacutestica ajuda na memorizaccedilatildeo31 Todavia afinal tomo partido e entro tambeacutem no quarto grupo daqueles listados por Cordero o sujeito deve ser extraiacutedo do predicado isolado pois ἔστιν produz o sujeito32 De qualquer forma o sentido filosoacutefico eacute preciso haacute um caminho de inqueacuterito ao pensar que eacute aquele que pensa o ldquoeacuterdquo esse mesmo caminho eacute aquele ao pensar que natildeo eacute (e natildeo pode ser33) ldquocon-tradiccedilatildeordquo Depois haacute um outro caminho aquele ao pensar que ldquonatildeo eacuterdquo que eacute o caminho ao pensar que leva necessariamente agrave contradiccedilatildeo O primeiro eacute o 30 Segundo o relato platocircnico no diaacutelogo Parmecircnides Zenatildeo acompanhado de seu mestre foi para as Panateneias com a finalidade de defender a filosofia de seu mestre esclarecendo com seu livro repleto de paradoxos as ideias parmenidianas Isso sugere que o poema natildeo expunha articuladamente a filosofia de Parmecircnides mas que constituiacutesse um proacute-memoacuteria com as ideias em sua forma essencial depois elaboradas nas aulas pessoais (KURFESS 2012)31 Eacute extraordinaacuterio como essa simplificaccedilatildeo didaacutetica continue ativa por um lado distorcendo entretanto por outro mantendo viva a mensagem parmenidiana em todas as escolas de ensino meacutedio onde se estuda filosofia vox populi Parmecircnides eacute o filoacutesofo que disse ldquoO que eacute eacute e o que natildeo eacute natildeo eacuterdquo Por outro lado o estrangeiro de Eleia no Sofista lembra outro verso e natildeo este32 Essa questatildeo natildeo aprofundada aqui natildeo possui relevacircncia filosoacutefica no argumento apresentado pode ter relevacircncia se se considera o tipo de reflexatildeo ou seja se se discute a ldquoexperiecircnciardquo do natildeo-ser e principalmente a experiecircncia concreta de Parmecircnides que talvez esteja ligada a praacuteticas de incubaccedilatildeo Nesse caso a dimensatildeo reflexiva adentra a dimensatildeo oniacuterica a qual possui outra sintaxe e onde um simples ἔστιν vale mais de mil articulaccedilotildees sintaacuteticas Natildeo sabemos com certeza dessas praacuteticas em Eleia contudo esse sentido preacute-sintaacutetico natildeo estaacute descartado inclusive alguns estudiosos entre os quais o proacuteprio Cordero atribuem ao ἔστιν o sentido de um grito como um Eureka Sugestotildees nesse sentido se encontram na minha dissertaccedilatildeo sobre Melisso (GALGANO 2010)33 A interpretaccedilatildeo modal eacute tambeacutem perfeitamente coerente aqui

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caminho que estabelece o discurso coerente (persuasivo) e o segundo natildeo leva a lugar nenhum e deve ser evitado Mas para que se saiba o que deve ser evi-tado eacute preciso que se conheccedila a impossibilidade do segundo caminho A fim de que se possa seguir o primeiro caminho eacute necessaacuterio saber que existe um outro sempre agrave espreita o qual parece oferecer a verdade mas que natildeo oferece uma verdade confiaacutevel que leva necessariamente agrave contradiccedilatildeo de pensamento e de expressatildeo linguiacutestica

4 O MEacuteTODO DA NAtildeO-CONTRADICcedilAtildeO

Parmecircnides provavelmente a partir de sugestotildees pitagoacutericas medita sobre a oposiccedilatildeo ao que existe e assim descobre o ldquonatildeo-serrdquo Descobre que ldquonatildeo serrdquo ou seja negar o ser negar o que haacute eacute de todo impossiacutevel (natildeo eacute possiacutevel completamente) Entende entatildeo que o ldquonatildeo-serrdquo essa impossibilidade eacute algo que a mente pensa julgando que esse pensamento leva por um caminho mas que na verdade ele descobre leva por outro caminho aquele que nunca che-ga a lugar nenhum Esse caminho que leva para lugar nenhum eacute o caminho dos mortais os quais confundem ser e natildeo ser No entanto o saacutebio deve saber distinguir por um lado o caminho do ldquoeacuterdquo que eacute o caminho do discurso natildeo contraditoacuterio e por outro lado o caminho do ldquonatildeo eacuterdquo que eacute o caminho do discurso que eacute tornado vatildeo pela contradiccedilatildeo

Parmecircnides descobre a contradiccedilatildeo (pela meditaccedilatildeo sobre o natildeo-ser) e percebe que ela eacute motivo de descaminho no discurso sobre o mundo Assim finalmente ele anuncia que a contradiccedilatildeo deve ser evitada A esse enunciado noacutes chamamos de princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo que aqui eacute aquele na versatildeo de Parmecircnides (depois a partir de Platatildeo e Aristoacuteteles haveraacute outras versotildees) Parmecircnides trabalha em acircmbito cosmoloacutegico e sua preocupaccedilatildeo ndash como os de seus colegas na eacutepoca ndash eacute com o mundo com a totalidade das coisas com os πάντα de seu proecircmio (128) Nesse acircmbito cosmoloacutegico descobre que haacute um princiacutepio do mundo pelo qual se daacute uma impossibilidade a contradiccedilatildeo A contradiccedilatildeo eacute um princiacutepio porque o que haacute (πάντα) enquanto todo escapa agrave negaccedilatildeo total Eis que a contradiccedilatildeo eacute princiacutepio tanto quanto a natildeo-contra-diccedilatildeo porque eacute a contradiccedilatildeo que permite a natildeo-contradiccedilatildeo Sem a noccedilatildeo de contradiccedilatildeo se anda com sentidos incertos como os mortais

O valor dessa afirmaccedilatildeo eacute historicamente inabalaacutevel porque Parmecircni-des partindo de um discurso sobre o mundo como que visto de fora por um observador (como Anaximandro via o mundo olhando seu pinax - cf ROS-

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SETTI 2013) alcanccedila um discurso que inclui o observador enquanto obser-vador estreando assim antes de tudo um discurso sobre os entes (ontologia) todos os entes incluindo os entes de pensamento (veja-se o famoso fragmento 3 onde se lecirc que pensar e ser satildeo o mesmo) Para ele o saacutebio natildeo eacute mais aquele que sabe soacute sobre as coisas externas ndash como o antigo xamatilde cuja figura indi-vidual se dissolve na mera intermediaccedilatildeo com o divino ndash poreacutem eacute tambeacutem aquele que consegue pensar sobre as coisas externas ou seja aquele que tem um domiacutenio cognitivo sobre os pensamentos de inqueacuterito e portanto sabe so-bre si mesmo Assim o saacutebio deve pensar por proacutepria conta e julgar pelo novo criteacuterio e natildeo pelo habitual discurso (κρῖναι δὲ λόγωι DK 75) ou seja natildeo deve julgar pelo discurso mas julgar o discurso porque agora o discurso enri-quecido de uma lei universal (a lei das αρχάι ἔστιν e οὐκ ἔστιν) possui uma medida de juiacutezo Parmecircnides amplia o mundo acrescentando ao mundo fiacutesico os mundos do pensamento e da linguagem Eis porque as αρχάι de Parmecircni-des sendo duas permanecem duas justamente eliminado uma delas deixando alguns criacuteticos enlouquecidos na discussatildeo sobre o monismo ou o dualismo de acordo com Parmecircnides o mundo eacute um todavia os sentidos nos enganam natildeo na pluralidade das coisas mas no argumento a respeito da pluralidade das coisas e principalmente ndash aspecto que ele discute explicitamente ndash a respeito do devir das coisas Haacute um princiacutepio que natildeo pode ser eliminado a contra-diccedilatildeo o qual eacute um princiacutepio de erro humano quando se elimina quando se desconsidera quando se faz de conta que natildeo existe a contradiccedilatildeo se instaura quando o princiacutepio eacute levado em conta a contradiccedilatildeo pode ser evitada

Eacute uma conceituaccedilatildeo esdruacutexula para noacutes tambeacutem porque temos que ter (a noccedilatildeo de) a contradiccedilatildeo para eliminar a contradiccedilatildeo temos que saber o que eacute contradiccedilatildeo para que possamos perceber quando o discurso eacute con-traditoacuterio Esses conceitos satildeo misteriosos ateacute agora e satildeo estranhas criaturas de nossas mentes Por exemplo a noccedilatildeo de ldquoimpossiacutevelrdquo obviamente (isto eacute para a nossa pragmaacutetica) natildeo se refere a nada de concreto no entanto temos essa noccedilatildeo e a usamos com o maacuteximo proveito outro exemplo a noccedilatildeo de ldquoinfinitordquo noccedilatildeo que natildeo se refere a algo pragmaticamente concreto mas que usamos igualmente com maacuteximo proveito O mesmo deve ser dito da noccedilatildeo de contradiccedilatildeo ou da noccedilatildeo de nada absoluto que usamos pragmaticamente com maior ou menor proveito

Parmecircnides encontra esse caminho e o expotildee Eacute um caminho assom-broso anti-intuitivo mas incontestaacutevel Dessa forma natildeo eacute de estranhar se a soluccedilatildeo platocircnica eacute a eliminaccedilatildeo fiacutesica da noccedilatildeo de nada absoluto (o par-

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riciacutedio) com sucessivo ldquoadeusrdquo34 achando de tecirc-lo ultrapassado Mas o nada absoluto enquanto noccedilatildeo contraditoacuteria permanece Assim como permane-ce a explicaccedilatildeo defeituosa do devir o qual assim como o conhecemos uma passagem do nada ao ser no nascimento e do ser ao nada no perecimento estaacute mal explicado Daqui por diante os comentaacuterios filosoacuteficos possiacuteveis satildeo inuacutemeros por conseguinte paro meu estudo neste ponto e proponho a versatildeo do fragmento 2 segundo a conceituaccedilatildeo apresentada ateacute aqui alterando de pouco a excelente versatildeo baacutesica de Cavalcante de Souza

Pois bem eu te direi e tu recebe a palavra que ouviste

os uacutenicos caminhos de inqueacuterito que satildeo a pensar

o primeiro que eacute e portanto que natildeo eacute (o caminho da) contradiccedilatildeo

de persuasatildeo eacute o caminho (pois agrave verdade acompanha)

o outro que natildeo eacute e portanto que eacute necessariamente (o caminho da) contradiccedilatildeo

este entatildeo eu te digo eacute atalho de todo incriacutevel

pois nem conhecerias o que natildeo eacute (pois natildeo eacute exequiacutevel)

nem o dirias

GALGANO N S Non-being in Parmenides of Elea Transformaccedilatildeo Mariacutelia v 41 n 2 p 9-36 AbrJun 2018

ABSTRACT In fragment DK 28 B 2 of his poem Parmenides presents his method for distinguishing true persuasion from the lack of true persuasion His famous proposal of these two ways of thinking form a complex statement of a system that intends to guarantee the veracity of statements in order to obtain reliable discourse the only discourse capable of true persuasion The present paper shows that the central role in Parmenidian argumentation is attributed to non-being a notion derived from a reflection on the impossibility of the negation of being Thus the whole fragment is interpreted in terms of this central notion We show that Parmenides discovered the impossibility of negation which we now call lsquocontradictionrsquo and that he articulated the means for avoiding contradiction in thought and discourse a rule which today we call the principle of non-contradiction The study presented here is a detailed investigation of the notion of non-being in the DK 28 B 2 fragment and includes a new translation of it

KEYWORDS Parmenides Non-being Non-contradiction Eleatism Parricide

34 Platatildeo Soph 258e7-259a1 ἡμεῖς γὰρ περὶ μὲν ἐναντίου τινὸς αὐτῷ χαίρειν πάλαι λέγομεν εἴτrsquo ἔστιν εἴτε μή λόγον ἔχον ἢ καὶ παντάπασιν ἄλογον

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O natildeo-ser em Parmecircnides de Eleia Artigos Articles

seres mitoloacutegicos pudessem ser incluiacutedos na leitura predicamental18 Principal-mente eacute necessaacuterio manter a equivocidade do termo porque corresponde agrave forma mentis do autor e natildeo se devem exigir distinccedilotildees que natildeo eram processa-das por aquela cultura sob pena mais uma vez de atribuir aos antigos a nossa proacutepria forma mentis pecado fatal para um historiador da filosofia

Desse modo de iniacutecio a traduccedilatildeo de μὴ εἶναι com ldquonatildeo-serrdquo ateacute mes-mo por ser equiacutevoca (para a nossa sensibilidade) manteacutem a equivocidade proacute-pria da eacutepoca e da liacutengua da eacutepoca Posta entatildeo essa equivocidade precisamos saber se expressa um sentido filosoacutefico antes de tudo para a eacutepoca e depois para noacutes A comparaccedilatildeo de 23 οὐκ ἔστι μὴ εἶναι com 71 Οὐ δαμῇ εἶναι μὴ ἐόντα que eacute o testemunho de Platatildeo nos faz entender que nessas palavras natildeo soacute se encontra um sentido filosoacutefico mas ateacute mesmo o sentido principal da filosofia de Parmecircnides Retomando portanto a construccedilatildeo precisamos entender por que pensar o natildeo-ser (μὴ εἶναι) eacute algo que natildeo eacute possiacutevel ou que natildeo se deve fazer ou que simplesmente natildeo eacute (natildeo acontece) segundo a expressatildeo usada por Parmecircnides οὐκ ἔστι

Aleacutem da traduccedilatildeo simples e imediata haveria outras possibilidades de traduccedilatildeo19 essas variaccedilotildees podem ser interessantes para evidenciar nuances aqui e acolaacute contudo tendo a possibilidade de utilizar o verbo ldquoserrdquo num uso equiacutevoco proacuteximo do grego natildeo precisamos recorrer agrave circunlocuccedilotildees e pode-mos traduzir οὐκ ἔστι com ldquonatildeo eacuterdquo20 e μὴ εἶναι com ldquonatildeo-serrdquo Diz portanto o segundo hemistiacutequio

Os uacutenicos caminhos de inqueacuterito ao pensar satildeo

Por um lado [ldquoArdquo] e que natildeo eacute natildeo-ser

18 De novo Kahn (2009) que assinala ldquoTo take the philosophical objection first it is simply false to say that you cannot think or talk about (point out in speech phrazein) what does not exist And the falseness of this would be obvious to any Greek who reflected for a moment on the profusion of monsters and fantastic creatures in traditional poetry and myth from Pegasus to the children of Gaia with a hundred arms and fifty heads apiecerdquo (HESIOD THEOGONY 150 172) Mais agrave frente ressaltamos que exatamente na questatildeo filosoacutefica Kahn estaacute errado e Parmecircnides estaacute certo eacute impossiacutevel pensar e dizer o natildeo-ser19 Um outro caminho possiacutevel de traduccedilatildeo utilizado principalmente pelos autores de liacutengua inglesa por motivos idiossincraacutesicos da liacutengua eacute empregar uma expressatildeo cuja noccedilatildeo tambeacutem eacute ampliacutessima e equiacutevoca ldquocoisardquo Mas essa expressatildeo por ser um substantivo natildeo possui o aspecto dinacircmico que o verbo tem sendo assim necessaacuterio acrescentar o verbo ser portanto eacute possiacutevel traduzir com ldquoas coisas que satildeordquo Outra possibilidade eacute usar o pronome ldquoquerdquo em sentido predicativo em substituiccedilatildeo de coisa ou coisas Outra ainda eacute o pronome demonstrativo (aquilo isto) ou o indefinido (algo) com a mesma funccedilatildeo substitutiva de coisa(s) no sentido mais indefinido possiacutevel20 Laacute onde em inglecircs haacute obrigatoriedade de explicitar-se o sujeito ldquowhat is notrdquo

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Se tiveacutessemos seguido a ordem metodoloacutegica tradicional ao examinar 23 teriacuteamos analisado primeiro ἔστιν e depois οὐκ ἔστι μὴ εἶναι E se de-pois de estudar o segundo hemistiacutequio voltaacutessemos nossa atenccedilatildeo ao primeiro hemistiacutequio natildeo teriacuteamos ganho metodoloacutegico nenhum pois redundariacuteamos na leitura por pressupostos em que o sentido de ἔστιν eacute obtido pelo pressu-posto de que ἔστιν significa em grego ldquoeacuterdquo todavia dessa maneira se chegaria aos resultados jaacute conhecidos considerados natildeo totalmente satisfatoacuterios pelos proacuteprios autores de cada interpretaccedilatildeo O dado concreto eacute que o poema natildeo oferece nenhuma definiccedilatildeo direta ou indireta de ἔστιν embora apresente mui-tos σήματα de ἐὸν Em compensaccedilatildeo o poema trata amplamente de μὴ εἶναι E natildeo eacute preciso ir muito longe para encontrar referecircncias para a noccedilatildeo de μὴ εἶναι pois observamos muitos dados nos versos de 5 a 8 do nosso fragmento Iremos portanto ao verso 5 e subsequentes

33 OS VERSOS 5 A 8 he drsquoos ouk eacutestin te kaigrave os khreoacuten esti megrave eicircnai

tegraven deacute toi phraacutezo panapeutheacutea eacutemmen atarpoacuten

ouacutete gagraver agravev gnoiacutees toacute ge megrave eograven (ou gagraver anustoacuten)

ouacutete phraacutezais

o outro que natildeo eacute e portanto que eacute preciso natildeo ser

este entatildeo eu te digo eacute atalho de todo incriacutevel

pois nem conhecerias o que natildeo eacute (pois natildeo eacute exequiacutevel)

nem o dirias

Vamos relembrar a letra do verso 5 ἡ δrsquo ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι Haacute uma construccedilatildeo paralela ao verso 3 dois hemistiacutequios no segundo dos quais encontramos nosso μὴ εἶναι No verso seguinte o caminho eacute chamado de παναπευθέα termo que muito fez e faz sofrer os filoacutelogos O sentido geral poreacutem eacute claro quer se queira traduzir como ldquode todo incriacutevelrdquo (CAVALCANTE DE SOUZA 1978) quer como ldquocompletamente inconos-ciblerdquo (CORDERO 2005 p 219) ou ldquowholly without reportrdquo (COXON 2009 p 56) ou como outro Em suma a noccedilatildeo geral eacute de que haacute uma difi-culdade intransponiacutevel em seguir esse caminho e por que eacute explicado a seguir

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Assim como em certa metodologia de exposiccedilatildeo primeiro se enuncia a tese e depois se propotildee o argumento demonstrativo Parmecircnides primeiro enuncia (como conveacutem agrave expressatildeo de uma deusa) e depois diz por quecirc Ora a novida-de cultural eacute exatamente esse porquecirc onde as afirmaccedilotildees natildeo satildeo mais apenas impostas por sua forccedila hieraacutetica mas precisam de explicaccedilotildees21

O nosso primeiro problema eacute que os enunciados (no verso 3 antes no verso 5 agora) natildeo satildeo claros para noacutes Nesse sentido podemos pedir clareza aos argumentos Qual eacute o argumento Eis a resposta de Parmecircnides οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε μὴ ἐὸν (οὐ γὰρ ἀνυστόν) οὔτε φράσαις Aqui a traduccedilatildeo eacute mais clara e natildeo haacute muita divergecircncia entre os criacuteticos pois nem poderias co-nhecer o que natildeo eacute (pois eacute impossiacutevel) nem o dirias Haacute aqui um claro objeto do discurso τό μὴ ἐὸν o qual sem hesitaccedilatildeo desta vez podemos traduzir por ldquoo que natildeo eacuterdquo Sem hesitaccedilatildeo porque τὸ ἐὸν eacute uma expressatildeo desconhecida antes de Parmecircnides aparece com ele eacute estudada por seus disciacutepulos e pelos seus criacuteticos (de Melisso a Aristoacuteteles) e eacute reportada pela doxografia como invenccedilatildeo parmenidiana

A noccedilatildeo exposta por Parmecircnides eacute sequencial o caminho de inqueacuterito que pensa οὐκ ἔστιν aqui chamado de ἀταρπόν natildeo pode ser percorrido porque eacute impossiacutevel ldquoconhecerrdquo (γνοίης ndash segunda pessoa do optativo aoristo ativo de γιγνώσκω) o que natildeo eacute e vamos deixar para depois a questatildeo do di-zer (οὔτε φράσαις) Vamos concentrar nossa atenccedilatildeo sobre γνοίης Para noacutes eacute menos importante a traduccedilatildeo gramaticalmente e estilisticamente precisa e mais importante a precisatildeo da noccedilatildeo filosoacutefica exposta Em relaccedilatildeo a essa pa-lavra houve (e ainda haacute) uma discussatildeo acirrada Discute-se se traduzir por ldquoconhecerrdquo como fazem alguns (COXON 2009 p 56 GALLOP 1984 p 55 TARAacuteN 1965 p 32 e muitos outros) ou ldquoreconhecerrdquo como fazem outros (por exemplo BARNES 1982 p 124) e principalmente que sentido atribuir ao ldquoconhecerrdquo Eu penso que considerado o contexto natildeo se trata do conhecer epistecircmico mas do conhecer gnosioloacutegico ou seja da capacidade que a mente possui de estabelecer um processo de conhecimento E que se trate de processo eacute claro pela vaacuteria terminologia que Parmecircnides usa mas principalmente pela sua ὁδός que ficaraacute para sempre como metaacutefora perfeita dos procedimentos a serem tomados para realizar tarefas de qualquer natureza vindo a receber o nome de meacutetodo

21 Rossetti (2010) A necessidade de explicaccedilotildees natildeo eacute mais soacute dos autores mas tambeacutem da audiecircncia que agora requer argumentos

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Para o meacutetodo do pensar epistecircmico declara Parmecircnides natildeo eacute con-veniente seguir um certo percurso porque sobre ele haacute ao menos uma etapa onde se deve ldquoconhecerrdquo ndash ou seja onde se deve exercer a capacidade gnosioloacute-gica ndash o τό μὴ ἐὸν mas isso eacute impossiacutevel Na verdade tanto o termo ἀνυστόν (reportado por Simpliacutecio) quanto sua variante ἐφικτόν (reportada por Proclo) tecircm um sentido processual quero dizer que a tarefa de pensar o τό μὴ ἐὸν natildeo apresenta uma impossibilidade que se realiza imediatamente mas uma que implica um processo o qual eacute impossiacutevel em sua inteireza porque natildeo pode ser levado a termo De fato ἀνυστός significa ldquoser completadordquo ldquopraticaacutevelrdquo enquanto ἐφικτός significa ldquofaacutecil de alcanccedilarrdquo ldquoacessiacutevelrdquo Ambos os termos tecircm sentido dinacircmico e processual e a negaccedilatildeo que Parmecircnides faz significa que esse processo natildeo pode ser levado a termo

De que processo se trata Em minha visatildeo trata-se do processo concre-to de pensar a negaccedilatildeo do ser Parmecircnides eacute de aacuterea de formaccedilatildeo pitagoacuterica e os pitagoacutericos ndash como assinala Aristoacuteteles (Metaph 986a15-26) ndash naquela eacutepoca estudavam as oposiccedilotildees as mais abstratas tendo passado da oposiccedilatildeo mais antiga entre par e iacutempar correspondentes a limitado e ilimitado (πέρας e ἄπειρον) a um conjunto de dez oposiccedilotildees Nada desabona uma possiacutevel tentativa de Parmecircnides buscar uma oposiccedilatildeo (a qual era feita tambeacutem por negaccedilatildeo como nos evidencia a expressatildeo verbal da oposiccedilatildeo entre πέρας e ἄπειρον com o ldquoαrdquo privativo) para o ldquotodordquo aquele πάντα que encontramos no verso 128 do poema e que em breve transformar-se-ia em φύσις no curso da evoluccedilatildeo histoacuterica dos conceitos filosoacuteficos da antiga Greacutecia

A meditaccedilatildeo do ldquonatildeo-serrdquo eacute das mais interessantes a se fazer na filosofia Tentar ldquopensarrdquo o ldquonatildeo-serrdquo eacute uma experiecircncia profunda a qual leva a conside-raccedilotildees radicais natildeo soacute sobre a existecircncia humana mas sobre a existecircncia como um todo Que Parmecircnides tenha se dedicado a essa meditaccedilatildeo eacute seguro pois ele o diz indiretamente em 22 quando afirma que os uacutenicos caminhos ao pensar satildeo aquele que pensa ἔστιν e aquele que pensa οὐκ ἔστιν O que natildeo sa-bemos e natildeo podemos afirmar com certeza eacute que tipo de meditaccedilatildeo ele reali-zou Eis que os termos ἀνυστόν ou ἐφικτόν vecircm nos socorrer e nos informam que se trata de uma meditaccedilatildeo processual que natildeo acaba Descrevi esse proces-so detalhadamente em outro trabalho (GALGANO 2010) e o repetirei aqui brevemente Pensar o natildeo-ser significa pensar concretamente a negaccedilatildeo do ser concreto (do mundo sensiacutevel ou inteligiacutevel) de cada ser Para tornar mais claro o processo pode-se comeccedilar negando a existecircncia de um ente depois daquilo

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que o rodeia depois do planeta depois do universo (sensiacutevel e inteligiacutevel atual e possiacutevel) e depois do mundo como um todo enfim do todo

O problema principal dessa meditaccedilatildeo eacute exatamente pensar se o sujeito pertence ou natildeo ao todo Quando se pensa a negaccedilatildeo do todo permanece ainda o sujeito pensante que pensa o todo como se o olhasse de um ponto virtual externo a ele E quando se tenta incluir o sujeito pensante de duas uma 1) ou o sujeito acreditando pensar a si proacuteprio dentro do todo reapa-rece externamente22 ou 2) o sujeito cognitivo desaparece e com ele qualquer noccedilatildeo cognitiva de ldquonatildeo-serrdquo Podemos assegurar claramente que o processo de pensar o τό μὴ ἐὸν natildeo termina seja porque eacute impossiacutevel incluir o sujeito no todo pois ele sempre reaparece a cada tentativa seja porque o processo quan-do inclui o sujeito no todo interrompe-se sendo assim impossiacutevel completar a negaccedilatildeo do todo Natildeo podemos saber se o modelo meditativo de Parmecircnides foi exatamente este mas natildeo me parece haver nada em desabono23

Entretanto qual eacute a importacircncia de natildeo se poder pensar a negaccedilatildeo de tudo Seguindo o argumento parmenidiano o caminho (ἀταρπόν) cognitivo que pensa τό μὴ ἐὸν natildeo pode ser concluiacutedo Ora ἀταρπόν eacute um sinocircnimo que Parmecircnides usa para o ὁδός do verso 22 (ὁδοὶ) isso quer dizer que o segundo caminho de inqueacuterito pode ser iniciado mas natildeo pode ser levado a termo Poreacutem se natildeo pode ser levado a termo por que eacute identificado como caminho Por que natildeo eacute excluiacutedo jaacute de iniacutecio quando a deusa ao inveacutes de anunciar os uacutenicos (moucircnai plural) caminhos natildeo anuncia um uacutenico cami-nho A resposta a essa pergunta torna clara a estranha afirmaccedilatildeo de que o caminho do pensar do segundo hemistiacutequio do verso 5 eacute necessaacuterio que per-maneccedila natildeo ser (χρεών ἐστι μὴ εἶναι) Parmecircnides assevera que embora seja um caminho que jamais pode ser completado ele ao mesmo tempo natildeo pode ser eliminado continua a pertencer aos (dois) uacutenicos caminhos de inqueacuterito ele eacute necessaacuterio

22 Se penso na aniquilaccedilatildeo de tudo incluindo a mim mesmo terei que pensar a mim mesmo aniquilado contudo esse pensar gerando esse novo pensamento gera um novo sujeito cognitivo pensante se aniquilo esse novo pensamento terei um novo sujeito cognitivo que pensa essa nova aniquilaccedilatildeo e assim por diante ad infinitum23 Natildeo quero garantir que Parmecircnides estreie uma filosofia do sujeito embora isso natildeo possa ser excluiacutedo a priori jaacute que os embriotildees de uma tal filosofia apareceratildeo em breve com Soacutecrates Acredito que se deve pensar mais no sujeito como o atleta campeatildeo das Olimpiacuteadas ou seja aquele capaz de cumprir (ou natildeo) certas proezas como fica extraordinariamente evidenciado no paradoxo de Zenatildeo cuja metaacutefora da filosofia (e do filoacutesofo) como tartaruga mostra que o pensar filosoacutefico eacute capaz de proezas maiores do que as proezas do proacuteprio Aquiles tidas como insuperaacuteveis pela cultura da eacutepoca

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Vamos de novo reconstruir essa parte do argumento com esse novo elemento os uacutenicos caminhos de inqueacuteritos satildeo

1) por um lado o caminho ao pensar que [versos 3 e 4] e

2) por outro lado o caminho ao pensar que [ldquoCrdquo (verso 5 primeiro hemistiacute-quio)] e que eacute necessaacuterio (que seja) natildeo-ser

De fato esse segundo caminho (ἀταρπόν) eacute inviaacutevel porque ldquonatildeo se consegue levar a cabo a reflexatildeordquo (γνοίης) quando se pensa o τό μὴ ἐὸν Ou seja fica muito clara a equaccedilatildeo entre o segundo caminho (v 5) e a reflexatildeo sobre o natildeo ser (τό μὴ ἐὸν) Finalmente o segundo hemistiacutequio do v 5 diz que esse eacute o caminho ao pensar que eacute necessaacuterio que seja μὴ εἶναι o qual agora sabemos eacute o caminho que tenta pensar o natildeo-ser (τό μὴ ἐὸν) Sabe-mos agora o que Parmecircnides chama de μὴ εἶναι Para Parmecircnides μὴ εἶναι eacute a estrutura do pensamento quando tenta inexoraacutevel e malogradamente pensar o natildeo-ser (τό μὴ ἐὸν)

Temos portanto a semacircntica de μὴ εἶναι e sabemos que significa a impossibilidade de pensar o natildeo-ser Com esse dado podemos reconstruir o resto do argumento mas primeiro vamos abordar a questatildeo do οὔτε φράσαις A premissa principal eacute o pano de fundo da pesquisa parmenidiana a qual estaacute em busca do discurso confiaacutevel como a deusa diz claramente no encerramen-to do fragmento 8 (talvez ecoando simetricamente alguma parte perdida do poema)24 Pensar o τό μὴ ἐὸν natildeo eacute possiacutevel logo ele eacute indiziacutevel Ora isso significa nem mais nem menos que dizer que o que eacute impossiacutevel eacute contra o sentido do dizer Eacute indiziacutevel natildeo porque natildeo se sabe do que se trata como querem muitos autores que fazem a leitura meramente epistemoloacutegica25 Eacute indiziacutevel porque dizer o ldquonatildeo-serrdquo significa fazer uma promessa que jamais se cumpriraacute ao se dizer ldquonatildeo-serrdquo parece que a expressatildeo aponta algo possiacutevel ou seja a negaccedilatildeo do ser e de fato quem estaacute desavisado assim acredita Mas a expressatildeo ldquonatildeo-serrdquo quer referir-se a algo que jamais seraacute cumprido que o

24 850-2 ldquoἐν τῶι σοι παύω πιστὸν λόγον ἠδὲ νόημα ἀμφὶς ἀληθείης δόξας δrsquo ἀπὸ τοῦδε βροτείας μάνθανε κόσμον ἐμῶν ἐπέων ἀπατηλὸν ἀκούωνrdquo ldquoNeste ponto encerro fidedigna palavra e pensamento sobre a verdade e opiniotildees mortais a partir daqui aprende a ordem enganadora de minhas palavras ouvindordquo (CAVALCANTE DE SOUZA 1978)25 Trata-se da leitura epistemoloacutegico-predicamental se natildeo sei a cor de um objeto (porque a cor natildeo eacute natildeo estaacute acessiacutevel ao meu conhecimento) natildeo posso falar da cor do objeto

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ser seja negado Esta eacute exatamente a noccedilatildeo expressa pelas palavras de Platatildeo jamais prevaleceraacute que natildeo entes sejam26

A expressatildeo μὴ εἶναι representa essa impossibilidade de pensamento e portanto eacute um dizer impossiacutevel o que se opotildee radicalmente agrave proacutepria noccedilatildeo de dizer a qualquer significar enquanto discurso confiaacutevel do mundo e da sua ordem Surge a pergunta mas se natildeo se pode dizer μὴ εἶναι se isso eacute impossiacute-vel natildeo haacute uma flagrante contradiccedilatildeo na deusa jaacute que ela proacutepria diz e cons-troacutei um argumento sobre o dizer μὴ εἶναι A objeccedilatildeo seria vaacutelida se a deusa dissesse o que eacute impossiacutevel de dizer ou seja se ela praticasse a impossibilidade Todavia a deusa natildeo diz o impossiacutevel a deusa aponta para o impossiacutevel indica o impossiacutevel pois ela diz que existem a ldquonoccedilatildeo de impossibilidade do pensarrdquo e a ldquonoccedilatildeo de impossibilidade do dizerrdquo Em outras palavras a deusa diz qual eacute o limite do pensar e qual eacute o limite do dizer Aleacutem desse limite o pensamento natildeo pode ir porque eacute impossiacutevel e tambeacutem o dizer natildeo pode ir porque eacute im-possiacutevel A impossiacutevel regiatildeo para aleacutem desse limite natildeo eacute admitida pelo dizer eacute contra o dizer eacute contraditoacuteria

A expressatildeo μὴ εἶναι em Parmecircnides eacute exatamente a palavra que ex-pressa o processo mental que noacutes chamamos contradiccedilatildeo e que ele primeiro assim chamou (οὔτε φράσαις natildeo diziacutevel) Eacute estranho que nenhum criacutetico te-nha percebido isso claramente Todos afirmam que o princiacutepio de natildeo contra-diccedilatildeo estaacute implicado em Parmecircnides assim como os outros princiacutepios loacutegicos pois os argumentos presentes no poema satildeo desenvolvidos segundo a natildeo con-tradiccedilatildeo poreacutem o princiacutepio natildeo eacute enunciado Alguns como Cordero veem justamente explicitado o princiacutepio do terceiro excluiacutedo (816 ἔστιν ἢ οὐκ ἔστιν) mas ningueacutem quis ver claramente que natildeo soacute a noccedilatildeo como tambeacutem a proacutepria palavra ldquocontradiccedilatildeordquo (οὔτε φράσαις natildeo diziacutevel contra o diziacutevel contra a dicccedilatildeo) estaacute explicitada no poema Penso que a razatildeo fundamental para que acontecesse esse lapsus tenha que ser procurada na grande atenccedilatildeo dada ao ldquoserrdquo e na pouca dada ao ldquonatildeo-serrdquo Como observaremos mais adiante por causa desse lapsus eu penso que natildeo se conseguiu entender plenamente a estrutura do fragmento 2 o qual simplesmente natildeo apresenta um silogismo disjuntivo nem nenhuma contradiccedilatildeo entre o caminho do ldquoserrdquo e o caminho do ldquonatildeo-serrdquo Parmecircnides assevera justamente que a expressatildeo ldquonatildeo-serrdquo eacute contraditoacuteria o ldquonatildeo-serrdquo natildeo pode ser dito porque ldquonatildeo-serrdquo eacute contraditoacute-

26 As duas expressotildees tecircm inversatildeo de predicado e negaccedilatildeo no entanto a noccedilatildeo permanece a mesma que os entes natildeo sejam (perecimento no fr 8) e que os natildeo entes sejam (nascimento no fr 8) A noccedilatildeo eacute o tracircnsito entre ser e natildeo ser

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rio e a expressatildeo ldquonatildeo-serrdquo indica tatildeo somente uma impossibilidade concreta aquela de que se realize o impossiacutevel

Vamos voltar ao nosso argumento e agrave questatildeo que deixamos em suspenso por que eacute necessaacuterio que μὴ εἶναι seja Sabemos que os versos 7 e 8 relatam um processo malogrado de pensar o natildeo ente (τό μὴ ἐὸν) Uso agora a palavra ente porque se justifica uma diferenciaccedilatildeo embora tanto ldquoenterdquo quanto ldquoserrdquo indiquem expressotildees gerais e natildeo individuais ldquoEnterdquo vem por conseguinte a significar o ente concreto aquele que eacute Parmecircnides sustenta que natildeo se pode pensar e dizer τό μὴ ἐὸν o ldquonatildeo enterdquo Esse processo recebe o nome de μὴ εἶναι ldquonatildeo-serrdquo a esse processo noacutes chamamos contradiccedilatildeo27 Entatildeo a indicaccedilatildeo eacute esta haacute um caminho ao pensar que pensa μὴ εἶναι (a contradiccedilatildeo) e eacute necessaacuterio que assim seja porque (vou repetir trecircs vezes de forma diferente28 para significar a mesma coisa)

1) se natildeo houvesse a contradiccedilatildeo

2) se natildeo se tem a noccedilatildeo de contradiccedilatildeo

3) se natildeo se sabe o que eacute contradiccedilatildeo

cai-se no discurso contraditoacuterio o que impede o inqueacuterito confiaacutevel Eacute ne-cessaacuterio saber que μὴ εἶναι (o processo de contradiccedilatildeo) eacute um caminho a ser evitado porque cria pensamentos e discursos contraditoacuterios

Vejamos de novo nosso fragmento com os elementos esclarecidos ateacute aqui

os uacutenicos caminhos de inqueacuterito a pensar satildeo

por um lado que [ versos 3 e 4]

e por outro lado que οὐκ ἔστιν e que eacute necessaacuterio que seja a contradiccedilatildeo (μὴ εἶναι)

a qual eacute um caminho natildeo criacutevel

pois eacute impossiacutevel pensar e dizer o natildeo ente (τό μὴ ἐὸν)

27 Mesmo para noacutes a contradiccedilatildeo eacute um processo porque indica a posiccedilatildeo de algo em contraposiccedilatildeo com mais algo isso significa que esses dois algos tecircm que ser relacionados para que haja contradiccedilatildeo do contraacuterio algo e mais algo podem conviver sem contraditoriedade Contudo esse assunto estaacute fora de tema e requer muitas outras providecircncias para o bom discernimento28 Repito buscando clareza pois nossas construccedilotildees comuns de linguagem nesses assuntos costumam ldquopatinarrdquo

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Penso que o espaccedilo conceitual deixado por οὐκ ἔστιν agora se pre-encha quase que por si haacute um caminho de inqueacuterito ao pensar que ldquonatildeo eacuterdquo e que eacute necessaacuterio que se considere contraditoacuterio porque eacute caminho que natildeo leva a lugar nenhum

A expressatildeo οὐκ ἔστιν eacute a negaccedilatildeo da terceira pessoa do indicativo de εἰμί a expressatildeo em si natildeo tem nada de especial significa tatildeo somente ldquonatildeo eacuterdquo restando em aberto o problema da ausecircncia de sujeito Mas agora sabemos o argumento complexo que estaacute na raiz da expressatildeo e a meu ver natildeo faz muito sentido a questatildeo de buscar um sujeito ou um objeto para definir se eacute usado de forma transitiva ou intransitiva se expressa existecircncia ou predicaccedilatildeo e as muitas combinaccedilotildees que podem ser montadas a partir da equivocidade do uso de εἰμί No entanto o acircmbito semacircntico foi evidenciado e estaacute claro e aleacutem do mais tem o testemunho de Platatildeo a confirmar o campo semacircntico da negaccedilatildeo de εἰμί nas vaacuterias formas estaacute relacionado a uma reflexatildeo sobre a impossibili-dade dessa negaccedilatildeo Obviamente para dizer que algo eacute impossiacutevel de alguma forma tenho que indicar essa impossibilidade com alguma expressatildeo Assim se digo ldquotriacircngulo quadradordquo aponto para uma impossibilidade jaacute que por defi-niccedilatildeo a essecircncia do triacircngulo exclui a essecircncia do quadrado logo a expressatildeo ldquotriacircngulo quadradordquo natildeo significa aquilo que parece prometer ou seja natildeo significa uma figura geomeacutetrica especial que eacute ao mesmo tempo triacircngulo e quadrado dizer ldquotriacircngulo quadradordquo eacute dizer algo ldquoindiziacutevelrdquo ldquonatildeo diziacutevelrdquo (na medida em que o diziacutevel quer expressar sentido) ldquoque nega o diziacutevelrdquo ldquoque eacute contra o diziacutevelrdquo que eacute contraditoacuterio

A semacircntica do ldquonatildeo serrdquo eacute fortiacutessima e estaacute muito aleacutem das sutilezas gramaticais morfoloacutegicas e sintaacuteticas e estas simplesmente natildeo afetam aquela O assunto tratado eacute tatildeo forte que ultrapassa qualquer forma linguiacutestica a pon-to de que esse assunto a ordem do ser e do natildeo-ser no mundo eacute responsaacutevel pela determinaccedilatildeo da lei da linguagem e natildeo vice-versa como bem entendeu Platatildeo no Sofista onde a teoria da predicaccedilatildeo surge em funccedilatildeo de uma refle-xatildeo sobre a ordem das leis baacutesicas do mundo Com efeito o approach linguiacutes-tico ao poema pode proceder ateacute certo ponto dali em diante o poema eacute fran-camente filosoacutefico e a chave linguiacutestica natildeo eacute suficiente para o acesso Isso quer dizer que com a chave linguiacutestica natildeo se abre a porta da questatildeo filosoacutefica do poema Se a questatildeo eacute que ldquojamais o natildeo ser pode se tornar serrdquo como (apro-ximadamente com essas palavras) argumenta Platatildeo citando Parmecircnides en-tatildeo diante da semacircntica que οὐκ ἔστιν apresenta discutir o sujeito de οὐκ ἔστιν se torna tarefa menor Considerada a desproporccedilatildeo entre o conteuacutedo (a

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semacircntica) e o recipiente (a palavra) entre o significado e o significante natildeo eacute impossiacutevel que οὐκ ἔστιν seja tatildeo somente uma expressatildeo simplificada quem sabe ateacute mesmo uma simplificaccedilatildeo didaacutetica pois o conteuacutedo do conceito estaacute expresso e justificado depois nos versos 7 e 8

O caminho de pensar que natildeo eacute e de pensar que eacute necessaacuterio natildeo ser eacute o caminho que afirma a necessidade de que a noccedilatildeo de natildeo-ser permaneccedila estaacutevel A contradiccedilatildeo tem que permanecer e ser identificada como tal pois eacute a uacutenica maneira de evitar que ela entre no pensamento e no discurso Se o ldquonatildeo-serrdquo natildeo for considerado contraditoacuterio a contradiccedilatildeo invade e domina o caminho de inqueacuterito o qual deixa de possuir πίστις ἀληθής (130) Assim eacute preciso que esse caminho seja identificado como μὴ εἶναι por um lado o ldquonatildeo-serrdquo eacute incognosciacutevel (οὔτε γὰρ ἂν γνοίης) mas por outro lado eacute neces-saacuterio que se saiba que ele eacute incognosciacutevel Saber do incognosciacutevel garante o conhecimento29 pois de fato ao natildeo se identificar o ldquonatildeo-serrdquo cai-se no risco de pensar que ldquoserrdquo e ldquonatildeo-serrdquo satildeo o mesmo e natildeo o mesmo como Parmecircni-des afirma em DK 6 5-6 Necessariamente o caminho que pensa οὐκ ἔστιν leva ao processo de contradiccedilatildeo (μὴ εἶναι) e a natildeo conclusatildeo do caminho (ἀνυστόν) natildeo eacute evidente na expressatildeo pelo contraacuterio τό μὴ ἐὸν parece uma negaccedilatildeo comum como qualquer outra poreacutem natildeo o eacute por isso eacute um saber destinado ao saacutebio e natildeo aos mortais porque eacute um saber fruto de uma reflexatildeo

34 DE VOLTA AOS VERSOS 3 E 4

Penso que podemos agora voltar ao verso 23 ao nosso segundo he-mistiacutequio onde aparece a expressatildeo μὴ εἶναι da qual jaacute temos a semacircntica Podemos entatildeo reconstruir ldquoos uacutenicos caminhos de inqueacuterito a pensar satildeo

por um lado a pensar que [ldquoArdquo] e tambeacutem a pensar que οὐκ ἔστι μὴ εἶναι este eacute caminho de persuasatildeo pois verdade acompanha e

por outro lado a pensar que ldquonatildeo eacuterdquo e tambeacutem a pensar que eacute necessariamente um percurso de pensamento contraditoacuterio porque eacute um caminho ldquoimpossiacutevelrdquo (παναπευθέα) pois o pensamento do ldquonatildeo enterdquo natildeo pode ser completado

O οὐκ ἔστι do verso 3 parece ser diferente do οὐκ ἔστιν do verso 5 Enquanto no 5 ele eacute quase que o nome do caminho (talvez uma simplificaccedilatildeo didaacutetica) no 3 parece significar simplesmente ldquonatildeo eacuterdquo em sentido comum

29 Estaacute aqui uma semente do socratismo

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predicativo De fato esse eacute o caminho da persuasatildeo e portanto eacute o caminho do pensamento natildeo-contraditoacuterio Ali a persuasatildeo era impossiacutevel pela con-tradiccedilatildeo aqui eacute possiacutevel pela natildeo-contradiccedilatildeo Sabemos que a expressatildeo μὴ εἶναι eacute a expressatildeo da contradiccedilatildeo suprema de sorte que a natildeo-contradiccedilatildeo eacute a negaccedilatildeo de μὴ εἶναι A traduccedilatildeo de οὐκ ἔστι fica faacutecil embora para a nossa sensibilidade possa parecer algo improacuteprio usar duas vezes οὐκ ἔστι de forma natildeo perfeitamente uniacutevoca a dois versos de distacircncia Logo para o segundo hemistiacutequio do v 3 mantenho esta traduccedilatildeo ldquonatildeo eacuterdquo em parte ambiacutegua para nossas exigecircncias mas que soa perfeitamente harmocircnica com o discurso par-menidiano [] ao pensar que [ldquoArdquo] e que natildeo eacute ldquocontradiccedilatildeordquo (μὴ εἶναι)

Acredito por fim que podemos abordar facilmente o ἔστιν do verso 3 que tanto fez e faz penar os estudiosos de Parmecircnides Aqui de novo a grandeza da questatildeo cosmoloacutegica envolvida ndash a coerecircncia eou a contradito-riedade do real ndash simplesmente torna tatildeo minuacutescula a questatildeo do sujeito de ἔστιν que ela quase desaparece Eu tenho a tendecircncia a pensar que a falta de sujeito seja uma simplificaccedilatildeo didaacutetica30 cuja irregularidade linguiacutestica ajuda na memorizaccedilatildeo31 Todavia afinal tomo partido e entro tambeacutem no quarto grupo daqueles listados por Cordero o sujeito deve ser extraiacutedo do predicado isolado pois ἔστιν produz o sujeito32 De qualquer forma o sentido filosoacutefico eacute preciso haacute um caminho de inqueacuterito ao pensar que eacute aquele que pensa o ldquoeacuterdquo esse mesmo caminho eacute aquele ao pensar que natildeo eacute (e natildeo pode ser33) ldquocon-tradiccedilatildeordquo Depois haacute um outro caminho aquele ao pensar que ldquonatildeo eacuterdquo que eacute o caminho ao pensar que leva necessariamente agrave contradiccedilatildeo O primeiro eacute o 30 Segundo o relato platocircnico no diaacutelogo Parmecircnides Zenatildeo acompanhado de seu mestre foi para as Panateneias com a finalidade de defender a filosofia de seu mestre esclarecendo com seu livro repleto de paradoxos as ideias parmenidianas Isso sugere que o poema natildeo expunha articuladamente a filosofia de Parmecircnides mas que constituiacutesse um proacute-memoacuteria com as ideias em sua forma essencial depois elaboradas nas aulas pessoais (KURFESS 2012)31 Eacute extraordinaacuterio como essa simplificaccedilatildeo didaacutetica continue ativa por um lado distorcendo entretanto por outro mantendo viva a mensagem parmenidiana em todas as escolas de ensino meacutedio onde se estuda filosofia vox populi Parmecircnides eacute o filoacutesofo que disse ldquoO que eacute eacute e o que natildeo eacute natildeo eacuterdquo Por outro lado o estrangeiro de Eleia no Sofista lembra outro verso e natildeo este32 Essa questatildeo natildeo aprofundada aqui natildeo possui relevacircncia filosoacutefica no argumento apresentado pode ter relevacircncia se se considera o tipo de reflexatildeo ou seja se se discute a ldquoexperiecircnciardquo do natildeo-ser e principalmente a experiecircncia concreta de Parmecircnides que talvez esteja ligada a praacuteticas de incubaccedilatildeo Nesse caso a dimensatildeo reflexiva adentra a dimensatildeo oniacuterica a qual possui outra sintaxe e onde um simples ἔστιν vale mais de mil articulaccedilotildees sintaacuteticas Natildeo sabemos com certeza dessas praacuteticas em Eleia contudo esse sentido preacute-sintaacutetico natildeo estaacute descartado inclusive alguns estudiosos entre os quais o proacuteprio Cordero atribuem ao ἔστιν o sentido de um grito como um Eureka Sugestotildees nesse sentido se encontram na minha dissertaccedilatildeo sobre Melisso (GALGANO 2010)33 A interpretaccedilatildeo modal eacute tambeacutem perfeitamente coerente aqui

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caminho que estabelece o discurso coerente (persuasivo) e o segundo natildeo leva a lugar nenhum e deve ser evitado Mas para que se saiba o que deve ser evi-tado eacute preciso que se conheccedila a impossibilidade do segundo caminho A fim de que se possa seguir o primeiro caminho eacute necessaacuterio saber que existe um outro sempre agrave espreita o qual parece oferecer a verdade mas que natildeo oferece uma verdade confiaacutevel que leva necessariamente agrave contradiccedilatildeo de pensamento e de expressatildeo linguiacutestica

4 O MEacuteTODO DA NAtildeO-CONTRADICcedilAtildeO

Parmecircnides provavelmente a partir de sugestotildees pitagoacutericas medita sobre a oposiccedilatildeo ao que existe e assim descobre o ldquonatildeo-serrdquo Descobre que ldquonatildeo serrdquo ou seja negar o ser negar o que haacute eacute de todo impossiacutevel (natildeo eacute possiacutevel completamente) Entende entatildeo que o ldquonatildeo-serrdquo essa impossibilidade eacute algo que a mente pensa julgando que esse pensamento leva por um caminho mas que na verdade ele descobre leva por outro caminho aquele que nunca che-ga a lugar nenhum Esse caminho que leva para lugar nenhum eacute o caminho dos mortais os quais confundem ser e natildeo ser No entanto o saacutebio deve saber distinguir por um lado o caminho do ldquoeacuterdquo que eacute o caminho do discurso natildeo contraditoacuterio e por outro lado o caminho do ldquonatildeo eacuterdquo que eacute o caminho do discurso que eacute tornado vatildeo pela contradiccedilatildeo

Parmecircnides descobre a contradiccedilatildeo (pela meditaccedilatildeo sobre o natildeo-ser) e percebe que ela eacute motivo de descaminho no discurso sobre o mundo Assim finalmente ele anuncia que a contradiccedilatildeo deve ser evitada A esse enunciado noacutes chamamos de princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo que aqui eacute aquele na versatildeo de Parmecircnides (depois a partir de Platatildeo e Aristoacuteteles haveraacute outras versotildees) Parmecircnides trabalha em acircmbito cosmoloacutegico e sua preocupaccedilatildeo ndash como os de seus colegas na eacutepoca ndash eacute com o mundo com a totalidade das coisas com os πάντα de seu proecircmio (128) Nesse acircmbito cosmoloacutegico descobre que haacute um princiacutepio do mundo pelo qual se daacute uma impossibilidade a contradiccedilatildeo A contradiccedilatildeo eacute um princiacutepio porque o que haacute (πάντα) enquanto todo escapa agrave negaccedilatildeo total Eis que a contradiccedilatildeo eacute princiacutepio tanto quanto a natildeo-contra-diccedilatildeo porque eacute a contradiccedilatildeo que permite a natildeo-contradiccedilatildeo Sem a noccedilatildeo de contradiccedilatildeo se anda com sentidos incertos como os mortais

O valor dessa afirmaccedilatildeo eacute historicamente inabalaacutevel porque Parmecircni-des partindo de um discurso sobre o mundo como que visto de fora por um observador (como Anaximandro via o mundo olhando seu pinax - cf ROS-

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SETTI 2013) alcanccedila um discurso que inclui o observador enquanto obser-vador estreando assim antes de tudo um discurso sobre os entes (ontologia) todos os entes incluindo os entes de pensamento (veja-se o famoso fragmento 3 onde se lecirc que pensar e ser satildeo o mesmo) Para ele o saacutebio natildeo eacute mais aquele que sabe soacute sobre as coisas externas ndash como o antigo xamatilde cuja figura indi-vidual se dissolve na mera intermediaccedilatildeo com o divino ndash poreacutem eacute tambeacutem aquele que consegue pensar sobre as coisas externas ou seja aquele que tem um domiacutenio cognitivo sobre os pensamentos de inqueacuterito e portanto sabe so-bre si mesmo Assim o saacutebio deve pensar por proacutepria conta e julgar pelo novo criteacuterio e natildeo pelo habitual discurso (κρῖναι δὲ λόγωι DK 75) ou seja natildeo deve julgar pelo discurso mas julgar o discurso porque agora o discurso enri-quecido de uma lei universal (a lei das αρχάι ἔστιν e οὐκ ἔστιν) possui uma medida de juiacutezo Parmecircnides amplia o mundo acrescentando ao mundo fiacutesico os mundos do pensamento e da linguagem Eis porque as αρχάι de Parmecircni-des sendo duas permanecem duas justamente eliminado uma delas deixando alguns criacuteticos enlouquecidos na discussatildeo sobre o monismo ou o dualismo de acordo com Parmecircnides o mundo eacute um todavia os sentidos nos enganam natildeo na pluralidade das coisas mas no argumento a respeito da pluralidade das coisas e principalmente ndash aspecto que ele discute explicitamente ndash a respeito do devir das coisas Haacute um princiacutepio que natildeo pode ser eliminado a contra-diccedilatildeo o qual eacute um princiacutepio de erro humano quando se elimina quando se desconsidera quando se faz de conta que natildeo existe a contradiccedilatildeo se instaura quando o princiacutepio eacute levado em conta a contradiccedilatildeo pode ser evitada

Eacute uma conceituaccedilatildeo esdruacutexula para noacutes tambeacutem porque temos que ter (a noccedilatildeo de) a contradiccedilatildeo para eliminar a contradiccedilatildeo temos que saber o que eacute contradiccedilatildeo para que possamos perceber quando o discurso eacute con-traditoacuterio Esses conceitos satildeo misteriosos ateacute agora e satildeo estranhas criaturas de nossas mentes Por exemplo a noccedilatildeo de ldquoimpossiacutevelrdquo obviamente (isto eacute para a nossa pragmaacutetica) natildeo se refere a nada de concreto no entanto temos essa noccedilatildeo e a usamos com o maacuteximo proveito outro exemplo a noccedilatildeo de ldquoinfinitordquo noccedilatildeo que natildeo se refere a algo pragmaticamente concreto mas que usamos igualmente com maacuteximo proveito O mesmo deve ser dito da noccedilatildeo de contradiccedilatildeo ou da noccedilatildeo de nada absoluto que usamos pragmaticamente com maior ou menor proveito

Parmecircnides encontra esse caminho e o expotildee Eacute um caminho assom-broso anti-intuitivo mas incontestaacutevel Dessa forma natildeo eacute de estranhar se a soluccedilatildeo platocircnica eacute a eliminaccedilatildeo fiacutesica da noccedilatildeo de nada absoluto (o par-

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riciacutedio) com sucessivo ldquoadeusrdquo34 achando de tecirc-lo ultrapassado Mas o nada absoluto enquanto noccedilatildeo contraditoacuteria permanece Assim como permane-ce a explicaccedilatildeo defeituosa do devir o qual assim como o conhecemos uma passagem do nada ao ser no nascimento e do ser ao nada no perecimento estaacute mal explicado Daqui por diante os comentaacuterios filosoacuteficos possiacuteveis satildeo inuacutemeros por conseguinte paro meu estudo neste ponto e proponho a versatildeo do fragmento 2 segundo a conceituaccedilatildeo apresentada ateacute aqui alterando de pouco a excelente versatildeo baacutesica de Cavalcante de Souza

Pois bem eu te direi e tu recebe a palavra que ouviste

os uacutenicos caminhos de inqueacuterito que satildeo a pensar

o primeiro que eacute e portanto que natildeo eacute (o caminho da) contradiccedilatildeo

de persuasatildeo eacute o caminho (pois agrave verdade acompanha)

o outro que natildeo eacute e portanto que eacute necessariamente (o caminho da) contradiccedilatildeo

este entatildeo eu te digo eacute atalho de todo incriacutevel

pois nem conhecerias o que natildeo eacute (pois natildeo eacute exequiacutevel)

nem o dirias

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ABSTRACT In fragment DK 28 B 2 of his poem Parmenides presents his method for distinguishing true persuasion from the lack of true persuasion His famous proposal of these two ways of thinking form a complex statement of a system that intends to guarantee the veracity of statements in order to obtain reliable discourse the only discourse capable of true persuasion The present paper shows that the central role in Parmenidian argumentation is attributed to non-being a notion derived from a reflection on the impossibility of the negation of being Thus the whole fragment is interpreted in terms of this central notion We show that Parmenides discovered the impossibility of negation which we now call lsquocontradictionrsquo and that he articulated the means for avoiding contradiction in thought and discourse a rule which today we call the principle of non-contradiction The study presented here is a detailed investigation of the notion of non-being in the DK 28 B 2 fragment and includes a new translation of it

KEYWORDS Parmenides Non-being Non-contradiction Eleatism Parricide

34 Platatildeo Soph 258e7-259a1 ἡμεῖς γὰρ περὶ μὲν ἐναντίου τινὸς αὐτῷ χαίρειν πάλαι λέγομεν εἴτrsquo ἔστιν εἴτε μή λόγον ἔχον ἢ καὶ παντάπασιν ἄλογον

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O natildeo-ser em Parmecircnides de Eleia Artigos Articles

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Se tiveacutessemos seguido a ordem metodoloacutegica tradicional ao examinar 23 teriacuteamos analisado primeiro ἔστιν e depois οὐκ ἔστι μὴ εἶναι E se de-pois de estudar o segundo hemistiacutequio voltaacutessemos nossa atenccedilatildeo ao primeiro hemistiacutequio natildeo teriacuteamos ganho metodoloacutegico nenhum pois redundariacuteamos na leitura por pressupostos em que o sentido de ἔστιν eacute obtido pelo pressu-posto de que ἔστιν significa em grego ldquoeacuterdquo todavia dessa maneira se chegaria aos resultados jaacute conhecidos considerados natildeo totalmente satisfatoacuterios pelos proacuteprios autores de cada interpretaccedilatildeo O dado concreto eacute que o poema natildeo oferece nenhuma definiccedilatildeo direta ou indireta de ἔστιν embora apresente mui-tos σήματα de ἐὸν Em compensaccedilatildeo o poema trata amplamente de μὴ εἶναι E natildeo eacute preciso ir muito longe para encontrar referecircncias para a noccedilatildeo de μὴ εἶναι pois observamos muitos dados nos versos de 5 a 8 do nosso fragmento Iremos portanto ao verso 5 e subsequentes

33 OS VERSOS 5 A 8 he drsquoos ouk eacutestin te kaigrave os khreoacuten esti megrave eicircnai

tegraven deacute toi phraacutezo panapeutheacutea eacutemmen atarpoacuten

ouacutete gagraver agravev gnoiacutees toacute ge megrave eograven (ou gagraver anustoacuten)

ouacutete phraacutezais

o outro que natildeo eacute e portanto que eacute preciso natildeo ser

este entatildeo eu te digo eacute atalho de todo incriacutevel

pois nem conhecerias o que natildeo eacute (pois natildeo eacute exequiacutevel)

nem o dirias

Vamos relembrar a letra do verso 5 ἡ δrsquo ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι Haacute uma construccedilatildeo paralela ao verso 3 dois hemistiacutequios no segundo dos quais encontramos nosso μὴ εἶναι No verso seguinte o caminho eacute chamado de παναπευθέα termo que muito fez e faz sofrer os filoacutelogos O sentido geral poreacutem eacute claro quer se queira traduzir como ldquode todo incriacutevelrdquo (CAVALCANTE DE SOUZA 1978) quer como ldquocompletamente inconos-ciblerdquo (CORDERO 2005 p 219) ou ldquowholly without reportrdquo (COXON 2009 p 56) ou como outro Em suma a noccedilatildeo geral eacute de que haacute uma difi-culdade intransponiacutevel em seguir esse caminho e por que eacute explicado a seguir

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Assim como em certa metodologia de exposiccedilatildeo primeiro se enuncia a tese e depois se propotildee o argumento demonstrativo Parmecircnides primeiro enuncia (como conveacutem agrave expressatildeo de uma deusa) e depois diz por quecirc Ora a novida-de cultural eacute exatamente esse porquecirc onde as afirmaccedilotildees natildeo satildeo mais apenas impostas por sua forccedila hieraacutetica mas precisam de explicaccedilotildees21

O nosso primeiro problema eacute que os enunciados (no verso 3 antes no verso 5 agora) natildeo satildeo claros para noacutes Nesse sentido podemos pedir clareza aos argumentos Qual eacute o argumento Eis a resposta de Parmecircnides οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε μὴ ἐὸν (οὐ γὰρ ἀνυστόν) οὔτε φράσαις Aqui a traduccedilatildeo eacute mais clara e natildeo haacute muita divergecircncia entre os criacuteticos pois nem poderias co-nhecer o que natildeo eacute (pois eacute impossiacutevel) nem o dirias Haacute aqui um claro objeto do discurso τό μὴ ἐὸν o qual sem hesitaccedilatildeo desta vez podemos traduzir por ldquoo que natildeo eacuterdquo Sem hesitaccedilatildeo porque τὸ ἐὸν eacute uma expressatildeo desconhecida antes de Parmecircnides aparece com ele eacute estudada por seus disciacutepulos e pelos seus criacuteticos (de Melisso a Aristoacuteteles) e eacute reportada pela doxografia como invenccedilatildeo parmenidiana

A noccedilatildeo exposta por Parmecircnides eacute sequencial o caminho de inqueacuterito que pensa οὐκ ἔστιν aqui chamado de ἀταρπόν natildeo pode ser percorrido porque eacute impossiacutevel ldquoconhecerrdquo (γνοίης ndash segunda pessoa do optativo aoristo ativo de γιγνώσκω) o que natildeo eacute e vamos deixar para depois a questatildeo do di-zer (οὔτε φράσαις) Vamos concentrar nossa atenccedilatildeo sobre γνοίης Para noacutes eacute menos importante a traduccedilatildeo gramaticalmente e estilisticamente precisa e mais importante a precisatildeo da noccedilatildeo filosoacutefica exposta Em relaccedilatildeo a essa pa-lavra houve (e ainda haacute) uma discussatildeo acirrada Discute-se se traduzir por ldquoconhecerrdquo como fazem alguns (COXON 2009 p 56 GALLOP 1984 p 55 TARAacuteN 1965 p 32 e muitos outros) ou ldquoreconhecerrdquo como fazem outros (por exemplo BARNES 1982 p 124) e principalmente que sentido atribuir ao ldquoconhecerrdquo Eu penso que considerado o contexto natildeo se trata do conhecer epistecircmico mas do conhecer gnosioloacutegico ou seja da capacidade que a mente possui de estabelecer um processo de conhecimento E que se trate de processo eacute claro pela vaacuteria terminologia que Parmecircnides usa mas principalmente pela sua ὁδός que ficaraacute para sempre como metaacutefora perfeita dos procedimentos a serem tomados para realizar tarefas de qualquer natureza vindo a receber o nome de meacutetodo

21 Rossetti (2010) A necessidade de explicaccedilotildees natildeo eacute mais soacute dos autores mas tambeacutem da audiecircncia que agora requer argumentos

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Para o meacutetodo do pensar epistecircmico declara Parmecircnides natildeo eacute con-veniente seguir um certo percurso porque sobre ele haacute ao menos uma etapa onde se deve ldquoconhecerrdquo ndash ou seja onde se deve exercer a capacidade gnosioloacute-gica ndash o τό μὴ ἐὸν mas isso eacute impossiacutevel Na verdade tanto o termo ἀνυστόν (reportado por Simpliacutecio) quanto sua variante ἐφικτόν (reportada por Proclo) tecircm um sentido processual quero dizer que a tarefa de pensar o τό μὴ ἐὸν natildeo apresenta uma impossibilidade que se realiza imediatamente mas uma que implica um processo o qual eacute impossiacutevel em sua inteireza porque natildeo pode ser levado a termo De fato ἀνυστός significa ldquoser completadordquo ldquopraticaacutevelrdquo enquanto ἐφικτός significa ldquofaacutecil de alcanccedilarrdquo ldquoacessiacutevelrdquo Ambos os termos tecircm sentido dinacircmico e processual e a negaccedilatildeo que Parmecircnides faz significa que esse processo natildeo pode ser levado a termo

De que processo se trata Em minha visatildeo trata-se do processo concre-to de pensar a negaccedilatildeo do ser Parmecircnides eacute de aacuterea de formaccedilatildeo pitagoacuterica e os pitagoacutericos ndash como assinala Aristoacuteteles (Metaph 986a15-26) ndash naquela eacutepoca estudavam as oposiccedilotildees as mais abstratas tendo passado da oposiccedilatildeo mais antiga entre par e iacutempar correspondentes a limitado e ilimitado (πέρας e ἄπειρον) a um conjunto de dez oposiccedilotildees Nada desabona uma possiacutevel tentativa de Parmecircnides buscar uma oposiccedilatildeo (a qual era feita tambeacutem por negaccedilatildeo como nos evidencia a expressatildeo verbal da oposiccedilatildeo entre πέρας e ἄπειρον com o ldquoαrdquo privativo) para o ldquotodordquo aquele πάντα que encontramos no verso 128 do poema e que em breve transformar-se-ia em φύσις no curso da evoluccedilatildeo histoacuterica dos conceitos filosoacuteficos da antiga Greacutecia

A meditaccedilatildeo do ldquonatildeo-serrdquo eacute das mais interessantes a se fazer na filosofia Tentar ldquopensarrdquo o ldquonatildeo-serrdquo eacute uma experiecircncia profunda a qual leva a conside-raccedilotildees radicais natildeo soacute sobre a existecircncia humana mas sobre a existecircncia como um todo Que Parmecircnides tenha se dedicado a essa meditaccedilatildeo eacute seguro pois ele o diz indiretamente em 22 quando afirma que os uacutenicos caminhos ao pensar satildeo aquele que pensa ἔστιν e aquele que pensa οὐκ ἔστιν O que natildeo sa-bemos e natildeo podemos afirmar com certeza eacute que tipo de meditaccedilatildeo ele reali-zou Eis que os termos ἀνυστόν ou ἐφικτόν vecircm nos socorrer e nos informam que se trata de uma meditaccedilatildeo processual que natildeo acaba Descrevi esse proces-so detalhadamente em outro trabalho (GALGANO 2010) e o repetirei aqui brevemente Pensar o natildeo-ser significa pensar concretamente a negaccedilatildeo do ser concreto (do mundo sensiacutevel ou inteligiacutevel) de cada ser Para tornar mais claro o processo pode-se comeccedilar negando a existecircncia de um ente depois daquilo

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que o rodeia depois do planeta depois do universo (sensiacutevel e inteligiacutevel atual e possiacutevel) e depois do mundo como um todo enfim do todo

O problema principal dessa meditaccedilatildeo eacute exatamente pensar se o sujeito pertence ou natildeo ao todo Quando se pensa a negaccedilatildeo do todo permanece ainda o sujeito pensante que pensa o todo como se o olhasse de um ponto virtual externo a ele E quando se tenta incluir o sujeito pensante de duas uma 1) ou o sujeito acreditando pensar a si proacuteprio dentro do todo reapa-rece externamente22 ou 2) o sujeito cognitivo desaparece e com ele qualquer noccedilatildeo cognitiva de ldquonatildeo-serrdquo Podemos assegurar claramente que o processo de pensar o τό μὴ ἐὸν natildeo termina seja porque eacute impossiacutevel incluir o sujeito no todo pois ele sempre reaparece a cada tentativa seja porque o processo quan-do inclui o sujeito no todo interrompe-se sendo assim impossiacutevel completar a negaccedilatildeo do todo Natildeo podemos saber se o modelo meditativo de Parmecircnides foi exatamente este mas natildeo me parece haver nada em desabono23

Entretanto qual eacute a importacircncia de natildeo se poder pensar a negaccedilatildeo de tudo Seguindo o argumento parmenidiano o caminho (ἀταρπόν) cognitivo que pensa τό μὴ ἐὸν natildeo pode ser concluiacutedo Ora ἀταρπόν eacute um sinocircnimo que Parmecircnides usa para o ὁδός do verso 22 (ὁδοὶ) isso quer dizer que o segundo caminho de inqueacuterito pode ser iniciado mas natildeo pode ser levado a termo Poreacutem se natildeo pode ser levado a termo por que eacute identificado como caminho Por que natildeo eacute excluiacutedo jaacute de iniacutecio quando a deusa ao inveacutes de anunciar os uacutenicos (moucircnai plural) caminhos natildeo anuncia um uacutenico cami-nho A resposta a essa pergunta torna clara a estranha afirmaccedilatildeo de que o caminho do pensar do segundo hemistiacutequio do verso 5 eacute necessaacuterio que per-maneccedila natildeo ser (χρεών ἐστι μὴ εἶναι) Parmecircnides assevera que embora seja um caminho que jamais pode ser completado ele ao mesmo tempo natildeo pode ser eliminado continua a pertencer aos (dois) uacutenicos caminhos de inqueacuterito ele eacute necessaacuterio

22 Se penso na aniquilaccedilatildeo de tudo incluindo a mim mesmo terei que pensar a mim mesmo aniquilado contudo esse pensar gerando esse novo pensamento gera um novo sujeito cognitivo pensante se aniquilo esse novo pensamento terei um novo sujeito cognitivo que pensa essa nova aniquilaccedilatildeo e assim por diante ad infinitum23 Natildeo quero garantir que Parmecircnides estreie uma filosofia do sujeito embora isso natildeo possa ser excluiacutedo a priori jaacute que os embriotildees de uma tal filosofia apareceratildeo em breve com Soacutecrates Acredito que se deve pensar mais no sujeito como o atleta campeatildeo das Olimpiacuteadas ou seja aquele capaz de cumprir (ou natildeo) certas proezas como fica extraordinariamente evidenciado no paradoxo de Zenatildeo cuja metaacutefora da filosofia (e do filoacutesofo) como tartaruga mostra que o pensar filosoacutefico eacute capaz de proezas maiores do que as proezas do proacuteprio Aquiles tidas como insuperaacuteveis pela cultura da eacutepoca

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Vamos de novo reconstruir essa parte do argumento com esse novo elemento os uacutenicos caminhos de inqueacuteritos satildeo

1) por um lado o caminho ao pensar que [versos 3 e 4] e

2) por outro lado o caminho ao pensar que [ldquoCrdquo (verso 5 primeiro hemistiacute-quio)] e que eacute necessaacuterio (que seja) natildeo-ser

De fato esse segundo caminho (ἀταρπόν) eacute inviaacutevel porque ldquonatildeo se consegue levar a cabo a reflexatildeordquo (γνοίης) quando se pensa o τό μὴ ἐὸν Ou seja fica muito clara a equaccedilatildeo entre o segundo caminho (v 5) e a reflexatildeo sobre o natildeo ser (τό μὴ ἐὸν) Finalmente o segundo hemistiacutequio do v 5 diz que esse eacute o caminho ao pensar que eacute necessaacuterio que seja μὴ εἶναι o qual agora sabemos eacute o caminho que tenta pensar o natildeo-ser (τό μὴ ἐὸν) Sabe-mos agora o que Parmecircnides chama de μὴ εἶναι Para Parmecircnides μὴ εἶναι eacute a estrutura do pensamento quando tenta inexoraacutevel e malogradamente pensar o natildeo-ser (τό μὴ ἐὸν)

Temos portanto a semacircntica de μὴ εἶναι e sabemos que significa a impossibilidade de pensar o natildeo-ser Com esse dado podemos reconstruir o resto do argumento mas primeiro vamos abordar a questatildeo do οὔτε φράσαις A premissa principal eacute o pano de fundo da pesquisa parmenidiana a qual estaacute em busca do discurso confiaacutevel como a deusa diz claramente no encerramen-to do fragmento 8 (talvez ecoando simetricamente alguma parte perdida do poema)24 Pensar o τό μὴ ἐὸν natildeo eacute possiacutevel logo ele eacute indiziacutevel Ora isso significa nem mais nem menos que dizer que o que eacute impossiacutevel eacute contra o sentido do dizer Eacute indiziacutevel natildeo porque natildeo se sabe do que se trata como querem muitos autores que fazem a leitura meramente epistemoloacutegica25 Eacute indiziacutevel porque dizer o ldquonatildeo-serrdquo significa fazer uma promessa que jamais se cumpriraacute ao se dizer ldquonatildeo-serrdquo parece que a expressatildeo aponta algo possiacutevel ou seja a negaccedilatildeo do ser e de fato quem estaacute desavisado assim acredita Mas a expressatildeo ldquonatildeo-serrdquo quer referir-se a algo que jamais seraacute cumprido que o

24 850-2 ldquoἐν τῶι σοι παύω πιστὸν λόγον ἠδὲ νόημα ἀμφὶς ἀληθείης δόξας δrsquo ἀπὸ τοῦδε βροτείας μάνθανε κόσμον ἐμῶν ἐπέων ἀπατηλὸν ἀκούωνrdquo ldquoNeste ponto encerro fidedigna palavra e pensamento sobre a verdade e opiniotildees mortais a partir daqui aprende a ordem enganadora de minhas palavras ouvindordquo (CAVALCANTE DE SOUZA 1978)25 Trata-se da leitura epistemoloacutegico-predicamental se natildeo sei a cor de um objeto (porque a cor natildeo eacute natildeo estaacute acessiacutevel ao meu conhecimento) natildeo posso falar da cor do objeto

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O natildeo-ser em Parmecircnides de Eleia Artigos Articles

ser seja negado Esta eacute exatamente a noccedilatildeo expressa pelas palavras de Platatildeo jamais prevaleceraacute que natildeo entes sejam26

A expressatildeo μὴ εἶναι representa essa impossibilidade de pensamento e portanto eacute um dizer impossiacutevel o que se opotildee radicalmente agrave proacutepria noccedilatildeo de dizer a qualquer significar enquanto discurso confiaacutevel do mundo e da sua ordem Surge a pergunta mas se natildeo se pode dizer μὴ εἶναι se isso eacute impossiacute-vel natildeo haacute uma flagrante contradiccedilatildeo na deusa jaacute que ela proacutepria diz e cons-troacutei um argumento sobre o dizer μὴ εἶναι A objeccedilatildeo seria vaacutelida se a deusa dissesse o que eacute impossiacutevel de dizer ou seja se ela praticasse a impossibilidade Todavia a deusa natildeo diz o impossiacutevel a deusa aponta para o impossiacutevel indica o impossiacutevel pois ela diz que existem a ldquonoccedilatildeo de impossibilidade do pensarrdquo e a ldquonoccedilatildeo de impossibilidade do dizerrdquo Em outras palavras a deusa diz qual eacute o limite do pensar e qual eacute o limite do dizer Aleacutem desse limite o pensamento natildeo pode ir porque eacute impossiacutevel e tambeacutem o dizer natildeo pode ir porque eacute im-possiacutevel A impossiacutevel regiatildeo para aleacutem desse limite natildeo eacute admitida pelo dizer eacute contra o dizer eacute contraditoacuteria

A expressatildeo μὴ εἶναι em Parmecircnides eacute exatamente a palavra que ex-pressa o processo mental que noacutes chamamos contradiccedilatildeo e que ele primeiro assim chamou (οὔτε φράσαις natildeo diziacutevel) Eacute estranho que nenhum criacutetico te-nha percebido isso claramente Todos afirmam que o princiacutepio de natildeo contra-diccedilatildeo estaacute implicado em Parmecircnides assim como os outros princiacutepios loacutegicos pois os argumentos presentes no poema satildeo desenvolvidos segundo a natildeo con-tradiccedilatildeo poreacutem o princiacutepio natildeo eacute enunciado Alguns como Cordero veem justamente explicitado o princiacutepio do terceiro excluiacutedo (816 ἔστιν ἢ οὐκ ἔστιν) mas ningueacutem quis ver claramente que natildeo soacute a noccedilatildeo como tambeacutem a proacutepria palavra ldquocontradiccedilatildeordquo (οὔτε φράσαις natildeo diziacutevel contra o diziacutevel contra a dicccedilatildeo) estaacute explicitada no poema Penso que a razatildeo fundamental para que acontecesse esse lapsus tenha que ser procurada na grande atenccedilatildeo dada ao ldquoserrdquo e na pouca dada ao ldquonatildeo-serrdquo Como observaremos mais adiante por causa desse lapsus eu penso que natildeo se conseguiu entender plenamente a estrutura do fragmento 2 o qual simplesmente natildeo apresenta um silogismo disjuntivo nem nenhuma contradiccedilatildeo entre o caminho do ldquoserrdquo e o caminho do ldquonatildeo-serrdquo Parmecircnides assevera justamente que a expressatildeo ldquonatildeo-serrdquo eacute contraditoacuteria o ldquonatildeo-serrdquo natildeo pode ser dito porque ldquonatildeo-serrdquo eacute contraditoacute-

26 As duas expressotildees tecircm inversatildeo de predicado e negaccedilatildeo no entanto a noccedilatildeo permanece a mesma que os entes natildeo sejam (perecimento no fr 8) e que os natildeo entes sejam (nascimento no fr 8) A noccedilatildeo eacute o tracircnsito entre ser e natildeo ser

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rio e a expressatildeo ldquonatildeo-serrdquo indica tatildeo somente uma impossibilidade concreta aquela de que se realize o impossiacutevel

Vamos voltar ao nosso argumento e agrave questatildeo que deixamos em suspenso por que eacute necessaacuterio que μὴ εἶναι seja Sabemos que os versos 7 e 8 relatam um processo malogrado de pensar o natildeo ente (τό μὴ ἐὸν) Uso agora a palavra ente porque se justifica uma diferenciaccedilatildeo embora tanto ldquoenterdquo quanto ldquoserrdquo indiquem expressotildees gerais e natildeo individuais ldquoEnterdquo vem por conseguinte a significar o ente concreto aquele que eacute Parmecircnides sustenta que natildeo se pode pensar e dizer τό μὴ ἐὸν o ldquonatildeo enterdquo Esse processo recebe o nome de μὴ εἶναι ldquonatildeo-serrdquo a esse processo noacutes chamamos contradiccedilatildeo27 Entatildeo a indicaccedilatildeo eacute esta haacute um caminho ao pensar que pensa μὴ εἶναι (a contradiccedilatildeo) e eacute necessaacuterio que assim seja porque (vou repetir trecircs vezes de forma diferente28 para significar a mesma coisa)

1) se natildeo houvesse a contradiccedilatildeo

2) se natildeo se tem a noccedilatildeo de contradiccedilatildeo

3) se natildeo se sabe o que eacute contradiccedilatildeo

cai-se no discurso contraditoacuterio o que impede o inqueacuterito confiaacutevel Eacute ne-cessaacuterio saber que μὴ εἶναι (o processo de contradiccedilatildeo) eacute um caminho a ser evitado porque cria pensamentos e discursos contraditoacuterios

Vejamos de novo nosso fragmento com os elementos esclarecidos ateacute aqui

os uacutenicos caminhos de inqueacuterito a pensar satildeo

por um lado que [ versos 3 e 4]

e por outro lado que οὐκ ἔστιν e que eacute necessaacuterio que seja a contradiccedilatildeo (μὴ εἶναι)

a qual eacute um caminho natildeo criacutevel

pois eacute impossiacutevel pensar e dizer o natildeo ente (τό μὴ ἐὸν)

27 Mesmo para noacutes a contradiccedilatildeo eacute um processo porque indica a posiccedilatildeo de algo em contraposiccedilatildeo com mais algo isso significa que esses dois algos tecircm que ser relacionados para que haja contradiccedilatildeo do contraacuterio algo e mais algo podem conviver sem contraditoriedade Contudo esse assunto estaacute fora de tema e requer muitas outras providecircncias para o bom discernimento28 Repito buscando clareza pois nossas construccedilotildees comuns de linguagem nesses assuntos costumam ldquopatinarrdquo

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O natildeo-ser em Parmecircnides de Eleia Artigos Articles

Penso que o espaccedilo conceitual deixado por οὐκ ἔστιν agora se pre-encha quase que por si haacute um caminho de inqueacuterito ao pensar que ldquonatildeo eacuterdquo e que eacute necessaacuterio que se considere contraditoacuterio porque eacute caminho que natildeo leva a lugar nenhum

A expressatildeo οὐκ ἔστιν eacute a negaccedilatildeo da terceira pessoa do indicativo de εἰμί a expressatildeo em si natildeo tem nada de especial significa tatildeo somente ldquonatildeo eacuterdquo restando em aberto o problema da ausecircncia de sujeito Mas agora sabemos o argumento complexo que estaacute na raiz da expressatildeo e a meu ver natildeo faz muito sentido a questatildeo de buscar um sujeito ou um objeto para definir se eacute usado de forma transitiva ou intransitiva se expressa existecircncia ou predicaccedilatildeo e as muitas combinaccedilotildees que podem ser montadas a partir da equivocidade do uso de εἰμί No entanto o acircmbito semacircntico foi evidenciado e estaacute claro e aleacutem do mais tem o testemunho de Platatildeo a confirmar o campo semacircntico da negaccedilatildeo de εἰμί nas vaacuterias formas estaacute relacionado a uma reflexatildeo sobre a impossibili-dade dessa negaccedilatildeo Obviamente para dizer que algo eacute impossiacutevel de alguma forma tenho que indicar essa impossibilidade com alguma expressatildeo Assim se digo ldquotriacircngulo quadradordquo aponto para uma impossibilidade jaacute que por defi-niccedilatildeo a essecircncia do triacircngulo exclui a essecircncia do quadrado logo a expressatildeo ldquotriacircngulo quadradordquo natildeo significa aquilo que parece prometer ou seja natildeo significa uma figura geomeacutetrica especial que eacute ao mesmo tempo triacircngulo e quadrado dizer ldquotriacircngulo quadradordquo eacute dizer algo ldquoindiziacutevelrdquo ldquonatildeo diziacutevelrdquo (na medida em que o diziacutevel quer expressar sentido) ldquoque nega o diziacutevelrdquo ldquoque eacute contra o diziacutevelrdquo que eacute contraditoacuterio

A semacircntica do ldquonatildeo serrdquo eacute fortiacutessima e estaacute muito aleacutem das sutilezas gramaticais morfoloacutegicas e sintaacuteticas e estas simplesmente natildeo afetam aquela O assunto tratado eacute tatildeo forte que ultrapassa qualquer forma linguiacutestica a pon-to de que esse assunto a ordem do ser e do natildeo-ser no mundo eacute responsaacutevel pela determinaccedilatildeo da lei da linguagem e natildeo vice-versa como bem entendeu Platatildeo no Sofista onde a teoria da predicaccedilatildeo surge em funccedilatildeo de uma refle-xatildeo sobre a ordem das leis baacutesicas do mundo Com efeito o approach linguiacutes-tico ao poema pode proceder ateacute certo ponto dali em diante o poema eacute fran-camente filosoacutefico e a chave linguiacutestica natildeo eacute suficiente para o acesso Isso quer dizer que com a chave linguiacutestica natildeo se abre a porta da questatildeo filosoacutefica do poema Se a questatildeo eacute que ldquojamais o natildeo ser pode se tornar serrdquo como (apro-ximadamente com essas palavras) argumenta Platatildeo citando Parmecircnides en-tatildeo diante da semacircntica que οὐκ ἔστιν apresenta discutir o sujeito de οὐκ ἔστιν se torna tarefa menor Considerada a desproporccedilatildeo entre o conteuacutedo (a

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semacircntica) e o recipiente (a palavra) entre o significado e o significante natildeo eacute impossiacutevel que οὐκ ἔστιν seja tatildeo somente uma expressatildeo simplificada quem sabe ateacute mesmo uma simplificaccedilatildeo didaacutetica pois o conteuacutedo do conceito estaacute expresso e justificado depois nos versos 7 e 8

O caminho de pensar que natildeo eacute e de pensar que eacute necessaacuterio natildeo ser eacute o caminho que afirma a necessidade de que a noccedilatildeo de natildeo-ser permaneccedila estaacutevel A contradiccedilatildeo tem que permanecer e ser identificada como tal pois eacute a uacutenica maneira de evitar que ela entre no pensamento e no discurso Se o ldquonatildeo-serrdquo natildeo for considerado contraditoacuterio a contradiccedilatildeo invade e domina o caminho de inqueacuterito o qual deixa de possuir πίστις ἀληθής (130) Assim eacute preciso que esse caminho seja identificado como μὴ εἶναι por um lado o ldquonatildeo-serrdquo eacute incognosciacutevel (οὔτε γὰρ ἂν γνοίης) mas por outro lado eacute neces-saacuterio que se saiba que ele eacute incognosciacutevel Saber do incognosciacutevel garante o conhecimento29 pois de fato ao natildeo se identificar o ldquonatildeo-serrdquo cai-se no risco de pensar que ldquoserrdquo e ldquonatildeo-serrdquo satildeo o mesmo e natildeo o mesmo como Parmecircni-des afirma em DK 6 5-6 Necessariamente o caminho que pensa οὐκ ἔστιν leva ao processo de contradiccedilatildeo (μὴ εἶναι) e a natildeo conclusatildeo do caminho (ἀνυστόν) natildeo eacute evidente na expressatildeo pelo contraacuterio τό μὴ ἐὸν parece uma negaccedilatildeo comum como qualquer outra poreacutem natildeo o eacute por isso eacute um saber destinado ao saacutebio e natildeo aos mortais porque eacute um saber fruto de uma reflexatildeo

34 DE VOLTA AOS VERSOS 3 E 4

Penso que podemos agora voltar ao verso 23 ao nosso segundo he-mistiacutequio onde aparece a expressatildeo μὴ εἶναι da qual jaacute temos a semacircntica Podemos entatildeo reconstruir ldquoos uacutenicos caminhos de inqueacuterito a pensar satildeo

por um lado a pensar que [ldquoArdquo] e tambeacutem a pensar que οὐκ ἔστι μὴ εἶναι este eacute caminho de persuasatildeo pois verdade acompanha e

por outro lado a pensar que ldquonatildeo eacuterdquo e tambeacutem a pensar que eacute necessariamente um percurso de pensamento contraditoacuterio porque eacute um caminho ldquoimpossiacutevelrdquo (παναπευθέα) pois o pensamento do ldquonatildeo enterdquo natildeo pode ser completado

O οὐκ ἔστι do verso 3 parece ser diferente do οὐκ ἔστιν do verso 5 Enquanto no 5 ele eacute quase que o nome do caminho (talvez uma simplificaccedilatildeo didaacutetica) no 3 parece significar simplesmente ldquonatildeo eacuterdquo em sentido comum

29 Estaacute aqui uma semente do socratismo

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O natildeo-ser em Parmecircnides de Eleia Artigos Articles

predicativo De fato esse eacute o caminho da persuasatildeo e portanto eacute o caminho do pensamento natildeo-contraditoacuterio Ali a persuasatildeo era impossiacutevel pela con-tradiccedilatildeo aqui eacute possiacutevel pela natildeo-contradiccedilatildeo Sabemos que a expressatildeo μὴ εἶναι eacute a expressatildeo da contradiccedilatildeo suprema de sorte que a natildeo-contradiccedilatildeo eacute a negaccedilatildeo de μὴ εἶναι A traduccedilatildeo de οὐκ ἔστι fica faacutecil embora para a nossa sensibilidade possa parecer algo improacuteprio usar duas vezes οὐκ ἔστι de forma natildeo perfeitamente uniacutevoca a dois versos de distacircncia Logo para o segundo hemistiacutequio do v 3 mantenho esta traduccedilatildeo ldquonatildeo eacuterdquo em parte ambiacutegua para nossas exigecircncias mas que soa perfeitamente harmocircnica com o discurso par-menidiano [] ao pensar que [ldquoArdquo] e que natildeo eacute ldquocontradiccedilatildeordquo (μὴ εἶναι)

Acredito por fim que podemos abordar facilmente o ἔστιν do verso 3 que tanto fez e faz penar os estudiosos de Parmecircnides Aqui de novo a grandeza da questatildeo cosmoloacutegica envolvida ndash a coerecircncia eou a contradito-riedade do real ndash simplesmente torna tatildeo minuacutescula a questatildeo do sujeito de ἔστιν que ela quase desaparece Eu tenho a tendecircncia a pensar que a falta de sujeito seja uma simplificaccedilatildeo didaacutetica30 cuja irregularidade linguiacutestica ajuda na memorizaccedilatildeo31 Todavia afinal tomo partido e entro tambeacutem no quarto grupo daqueles listados por Cordero o sujeito deve ser extraiacutedo do predicado isolado pois ἔστιν produz o sujeito32 De qualquer forma o sentido filosoacutefico eacute preciso haacute um caminho de inqueacuterito ao pensar que eacute aquele que pensa o ldquoeacuterdquo esse mesmo caminho eacute aquele ao pensar que natildeo eacute (e natildeo pode ser33) ldquocon-tradiccedilatildeordquo Depois haacute um outro caminho aquele ao pensar que ldquonatildeo eacuterdquo que eacute o caminho ao pensar que leva necessariamente agrave contradiccedilatildeo O primeiro eacute o 30 Segundo o relato platocircnico no diaacutelogo Parmecircnides Zenatildeo acompanhado de seu mestre foi para as Panateneias com a finalidade de defender a filosofia de seu mestre esclarecendo com seu livro repleto de paradoxos as ideias parmenidianas Isso sugere que o poema natildeo expunha articuladamente a filosofia de Parmecircnides mas que constituiacutesse um proacute-memoacuteria com as ideias em sua forma essencial depois elaboradas nas aulas pessoais (KURFESS 2012)31 Eacute extraordinaacuterio como essa simplificaccedilatildeo didaacutetica continue ativa por um lado distorcendo entretanto por outro mantendo viva a mensagem parmenidiana em todas as escolas de ensino meacutedio onde se estuda filosofia vox populi Parmecircnides eacute o filoacutesofo que disse ldquoO que eacute eacute e o que natildeo eacute natildeo eacuterdquo Por outro lado o estrangeiro de Eleia no Sofista lembra outro verso e natildeo este32 Essa questatildeo natildeo aprofundada aqui natildeo possui relevacircncia filosoacutefica no argumento apresentado pode ter relevacircncia se se considera o tipo de reflexatildeo ou seja se se discute a ldquoexperiecircnciardquo do natildeo-ser e principalmente a experiecircncia concreta de Parmecircnides que talvez esteja ligada a praacuteticas de incubaccedilatildeo Nesse caso a dimensatildeo reflexiva adentra a dimensatildeo oniacuterica a qual possui outra sintaxe e onde um simples ἔστιν vale mais de mil articulaccedilotildees sintaacuteticas Natildeo sabemos com certeza dessas praacuteticas em Eleia contudo esse sentido preacute-sintaacutetico natildeo estaacute descartado inclusive alguns estudiosos entre os quais o proacuteprio Cordero atribuem ao ἔστιν o sentido de um grito como um Eureka Sugestotildees nesse sentido se encontram na minha dissertaccedilatildeo sobre Melisso (GALGANO 2010)33 A interpretaccedilatildeo modal eacute tambeacutem perfeitamente coerente aqui

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caminho que estabelece o discurso coerente (persuasivo) e o segundo natildeo leva a lugar nenhum e deve ser evitado Mas para que se saiba o que deve ser evi-tado eacute preciso que se conheccedila a impossibilidade do segundo caminho A fim de que se possa seguir o primeiro caminho eacute necessaacuterio saber que existe um outro sempre agrave espreita o qual parece oferecer a verdade mas que natildeo oferece uma verdade confiaacutevel que leva necessariamente agrave contradiccedilatildeo de pensamento e de expressatildeo linguiacutestica

4 O MEacuteTODO DA NAtildeO-CONTRADICcedilAtildeO

Parmecircnides provavelmente a partir de sugestotildees pitagoacutericas medita sobre a oposiccedilatildeo ao que existe e assim descobre o ldquonatildeo-serrdquo Descobre que ldquonatildeo serrdquo ou seja negar o ser negar o que haacute eacute de todo impossiacutevel (natildeo eacute possiacutevel completamente) Entende entatildeo que o ldquonatildeo-serrdquo essa impossibilidade eacute algo que a mente pensa julgando que esse pensamento leva por um caminho mas que na verdade ele descobre leva por outro caminho aquele que nunca che-ga a lugar nenhum Esse caminho que leva para lugar nenhum eacute o caminho dos mortais os quais confundem ser e natildeo ser No entanto o saacutebio deve saber distinguir por um lado o caminho do ldquoeacuterdquo que eacute o caminho do discurso natildeo contraditoacuterio e por outro lado o caminho do ldquonatildeo eacuterdquo que eacute o caminho do discurso que eacute tornado vatildeo pela contradiccedilatildeo

Parmecircnides descobre a contradiccedilatildeo (pela meditaccedilatildeo sobre o natildeo-ser) e percebe que ela eacute motivo de descaminho no discurso sobre o mundo Assim finalmente ele anuncia que a contradiccedilatildeo deve ser evitada A esse enunciado noacutes chamamos de princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo que aqui eacute aquele na versatildeo de Parmecircnides (depois a partir de Platatildeo e Aristoacuteteles haveraacute outras versotildees) Parmecircnides trabalha em acircmbito cosmoloacutegico e sua preocupaccedilatildeo ndash como os de seus colegas na eacutepoca ndash eacute com o mundo com a totalidade das coisas com os πάντα de seu proecircmio (128) Nesse acircmbito cosmoloacutegico descobre que haacute um princiacutepio do mundo pelo qual se daacute uma impossibilidade a contradiccedilatildeo A contradiccedilatildeo eacute um princiacutepio porque o que haacute (πάντα) enquanto todo escapa agrave negaccedilatildeo total Eis que a contradiccedilatildeo eacute princiacutepio tanto quanto a natildeo-contra-diccedilatildeo porque eacute a contradiccedilatildeo que permite a natildeo-contradiccedilatildeo Sem a noccedilatildeo de contradiccedilatildeo se anda com sentidos incertos como os mortais

O valor dessa afirmaccedilatildeo eacute historicamente inabalaacutevel porque Parmecircni-des partindo de um discurso sobre o mundo como que visto de fora por um observador (como Anaximandro via o mundo olhando seu pinax - cf ROS-

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O natildeo-ser em Parmecircnides de Eleia Artigos Articles

SETTI 2013) alcanccedila um discurso que inclui o observador enquanto obser-vador estreando assim antes de tudo um discurso sobre os entes (ontologia) todos os entes incluindo os entes de pensamento (veja-se o famoso fragmento 3 onde se lecirc que pensar e ser satildeo o mesmo) Para ele o saacutebio natildeo eacute mais aquele que sabe soacute sobre as coisas externas ndash como o antigo xamatilde cuja figura indi-vidual se dissolve na mera intermediaccedilatildeo com o divino ndash poreacutem eacute tambeacutem aquele que consegue pensar sobre as coisas externas ou seja aquele que tem um domiacutenio cognitivo sobre os pensamentos de inqueacuterito e portanto sabe so-bre si mesmo Assim o saacutebio deve pensar por proacutepria conta e julgar pelo novo criteacuterio e natildeo pelo habitual discurso (κρῖναι δὲ λόγωι DK 75) ou seja natildeo deve julgar pelo discurso mas julgar o discurso porque agora o discurso enri-quecido de uma lei universal (a lei das αρχάι ἔστιν e οὐκ ἔστιν) possui uma medida de juiacutezo Parmecircnides amplia o mundo acrescentando ao mundo fiacutesico os mundos do pensamento e da linguagem Eis porque as αρχάι de Parmecircni-des sendo duas permanecem duas justamente eliminado uma delas deixando alguns criacuteticos enlouquecidos na discussatildeo sobre o monismo ou o dualismo de acordo com Parmecircnides o mundo eacute um todavia os sentidos nos enganam natildeo na pluralidade das coisas mas no argumento a respeito da pluralidade das coisas e principalmente ndash aspecto que ele discute explicitamente ndash a respeito do devir das coisas Haacute um princiacutepio que natildeo pode ser eliminado a contra-diccedilatildeo o qual eacute um princiacutepio de erro humano quando se elimina quando se desconsidera quando se faz de conta que natildeo existe a contradiccedilatildeo se instaura quando o princiacutepio eacute levado em conta a contradiccedilatildeo pode ser evitada

Eacute uma conceituaccedilatildeo esdruacutexula para noacutes tambeacutem porque temos que ter (a noccedilatildeo de) a contradiccedilatildeo para eliminar a contradiccedilatildeo temos que saber o que eacute contradiccedilatildeo para que possamos perceber quando o discurso eacute con-traditoacuterio Esses conceitos satildeo misteriosos ateacute agora e satildeo estranhas criaturas de nossas mentes Por exemplo a noccedilatildeo de ldquoimpossiacutevelrdquo obviamente (isto eacute para a nossa pragmaacutetica) natildeo se refere a nada de concreto no entanto temos essa noccedilatildeo e a usamos com o maacuteximo proveito outro exemplo a noccedilatildeo de ldquoinfinitordquo noccedilatildeo que natildeo se refere a algo pragmaticamente concreto mas que usamos igualmente com maacuteximo proveito O mesmo deve ser dito da noccedilatildeo de contradiccedilatildeo ou da noccedilatildeo de nada absoluto que usamos pragmaticamente com maior ou menor proveito

Parmecircnides encontra esse caminho e o expotildee Eacute um caminho assom-broso anti-intuitivo mas incontestaacutevel Dessa forma natildeo eacute de estranhar se a soluccedilatildeo platocircnica eacute a eliminaccedilatildeo fiacutesica da noccedilatildeo de nada absoluto (o par-

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riciacutedio) com sucessivo ldquoadeusrdquo34 achando de tecirc-lo ultrapassado Mas o nada absoluto enquanto noccedilatildeo contraditoacuteria permanece Assim como permane-ce a explicaccedilatildeo defeituosa do devir o qual assim como o conhecemos uma passagem do nada ao ser no nascimento e do ser ao nada no perecimento estaacute mal explicado Daqui por diante os comentaacuterios filosoacuteficos possiacuteveis satildeo inuacutemeros por conseguinte paro meu estudo neste ponto e proponho a versatildeo do fragmento 2 segundo a conceituaccedilatildeo apresentada ateacute aqui alterando de pouco a excelente versatildeo baacutesica de Cavalcante de Souza

Pois bem eu te direi e tu recebe a palavra que ouviste

os uacutenicos caminhos de inqueacuterito que satildeo a pensar

o primeiro que eacute e portanto que natildeo eacute (o caminho da) contradiccedilatildeo

de persuasatildeo eacute o caminho (pois agrave verdade acompanha)

o outro que natildeo eacute e portanto que eacute necessariamente (o caminho da) contradiccedilatildeo

este entatildeo eu te digo eacute atalho de todo incriacutevel

pois nem conhecerias o que natildeo eacute (pois natildeo eacute exequiacutevel)

nem o dirias

GALGANO N S Non-being in Parmenides of Elea Transformaccedilatildeo Mariacutelia v 41 n 2 p 9-36 AbrJun 2018

ABSTRACT In fragment DK 28 B 2 of his poem Parmenides presents his method for distinguishing true persuasion from the lack of true persuasion His famous proposal of these two ways of thinking form a complex statement of a system that intends to guarantee the veracity of statements in order to obtain reliable discourse the only discourse capable of true persuasion The present paper shows that the central role in Parmenidian argumentation is attributed to non-being a notion derived from a reflection on the impossibility of the negation of being Thus the whole fragment is interpreted in terms of this central notion We show that Parmenides discovered the impossibility of negation which we now call lsquocontradictionrsquo and that he articulated the means for avoiding contradiction in thought and discourse a rule which today we call the principle of non-contradiction The study presented here is a detailed investigation of the notion of non-being in the DK 28 B 2 fragment and includes a new translation of it

KEYWORDS Parmenides Non-being Non-contradiction Eleatism Parricide

34 Platatildeo Soph 258e7-259a1 ἡμεῖς γὰρ περὶ μὲν ἐναντίου τινὸς αὐτῷ χαίρειν πάλαι λέγομεν εἴτrsquo ἔστιν εἴτε μή λόγον ἔχον ἢ καὶ παντάπασιν ἄλογον

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Page 15: O NÃO SER EM PARMÊNIDES ELEIA - SciELO · Trans/Form/Ação, Marília, v. 41, n. 2, p. 9-36, Abr./Jun., 2018 9 O não-ser em Parmênides de Eleia Artigos / Articles O NÃO-SER EM

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Assim como em certa metodologia de exposiccedilatildeo primeiro se enuncia a tese e depois se propotildee o argumento demonstrativo Parmecircnides primeiro enuncia (como conveacutem agrave expressatildeo de uma deusa) e depois diz por quecirc Ora a novida-de cultural eacute exatamente esse porquecirc onde as afirmaccedilotildees natildeo satildeo mais apenas impostas por sua forccedila hieraacutetica mas precisam de explicaccedilotildees21

O nosso primeiro problema eacute que os enunciados (no verso 3 antes no verso 5 agora) natildeo satildeo claros para noacutes Nesse sentido podemos pedir clareza aos argumentos Qual eacute o argumento Eis a resposta de Parmecircnides οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε μὴ ἐὸν (οὐ γὰρ ἀνυστόν) οὔτε φράσαις Aqui a traduccedilatildeo eacute mais clara e natildeo haacute muita divergecircncia entre os criacuteticos pois nem poderias co-nhecer o que natildeo eacute (pois eacute impossiacutevel) nem o dirias Haacute aqui um claro objeto do discurso τό μὴ ἐὸν o qual sem hesitaccedilatildeo desta vez podemos traduzir por ldquoo que natildeo eacuterdquo Sem hesitaccedilatildeo porque τὸ ἐὸν eacute uma expressatildeo desconhecida antes de Parmecircnides aparece com ele eacute estudada por seus disciacutepulos e pelos seus criacuteticos (de Melisso a Aristoacuteteles) e eacute reportada pela doxografia como invenccedilatildeo parmenidiana

A noccedilatildeo exposta por Parmecircnides eacute sequencial o caminho de inqueacuterito que pensa οὐκ ἔστιν aqui chamado de ἀταρπόν natildeo pode ser percorrido porque eacute impossiacutevel ldquoconhecerrdquo (γνοίης ndash segunda pessoa do optativo aoristo ativo de γιγνώσκω) o que natildeo eacute e vamos deixar para depois a questatildeo do di-zer (οὔτε φράσαις) Vamos concentrar nossa atenccedilatildeo sobre γνοίης Para noacutes eacute menos importante a traduccedilatildeo gramaticalmente e estilisticamente precisa e mais importante a precisatildeo da noccedilatildeo filosoacutefica exposta Em relaccedilatildeo a essa pa-lavra houve (e ainda haacute) uma discussatildeo acirrada Discute-se se traduzir por ldquoconhecerrdquo como fazem alguns (COXON 2009 p 56 GALLOP 1984 p 55 TARAacuteN 1965 p 32 e muitos outros) ou ldquoreconhecerrdquo como fazem outros (por exemplo BARNES 1982 p 124) e principalmente que sentido atribuir ao ldquoconhecerrdquo Eu penso que considerado o contexto natildeo se trata do conhecer epistecircmico mas do conhecer gnosioloacutegico ou seja da capacidade que a mente possui de estabelecer um processo de conhecimento E que se trate de processo eacute claro pela vaacuteria terminologia que Parmecircnides usa mas principalmente pela sua ὁδός que ficaraacute para sempre como metaacutefora perfeita dos procedimentos a serem tomados para realizar tarefas de qualquer natureza vindo a receber o nome de meacutetodo

21 Rossetti (2010) A necessidade de explicaccedilotildees natildeo eacute mais soacute dos autores mas tambeacutem da audiecircncia que agora requer argumentos

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Para o meacutetodo do pensar epistecircmico declara Parmecircnides natildeo eacute con-veniente seguir um certo percurso porque sobre ele haacute ao menos uma etapa onde se deve ldquoconhecerrdquo ndash ou seja onde se deve exercer a capacidade gnosioloacute-gica ndash o τό μὴ ἐὸν mas isso eacute impossiacutevel Na verdade tanto o termo ἀνυστόν (reportado por Simpliacutecio) quanto sua variante ἐφικτόν (reportada por Proclo) tecircm um sentido processual quero dizer que a tarefa de pensar o τό μὴ ἐὸν natildeo apresenta uma impossibilidade que se realiza imediatamente mas uma que implica um processo o qual eacute impossiacutevel em sua inteireza porque natildeo pode ser levado a termo De fato ἀνυστός significa ldquoser completadordquo ldquopraticaacutevelrdquo enquanto ἐφικτός significa ldquofaacutecil de alcanccedilarrdquo ldquoacessiacutevelrdquo Ambos os termos tecircm sentido dinacircmico e processual e a negaccedilatildeo que Parmecircnides faz significa que esse processo natildeo pode ser levado a termo

De que processo se trata Em minha visatildeo trata-se do processo concre-to de pensar a negaccedilatildeo do ser Parmecircnides eacute de aacuterea de formaccedilatildeo pitagoacuterica e os pitagoacutericos ndash como assinala Aristoacuteteles (Metaph 986a15-26) ndash naquela eacutepoca estudavam as oposiccedilotildees as mais abstratas tendo passado da oposiccedilatildeo mais antiga entre par e iacutempar correspondentes a limitado e ilimitado (πέρας e ἄπειρον) a um conjunto de dez oposiccedilotildees Nada desabona uma possiacutevel tentativa de Parmecircnides buscar uma oposiccedilatildeo (a qual era feita tambeacutem por negaccedilatildeo como nos evidencia a expressatildeo verbal da oposiccedilatildeo entre πέρας e ἄπειρον com o ldquoαrdquo privativo) para o ldquotodordquo aquele πάντα que encontramos no verso 128 do poema e que em breve transformar-se-ia em φύσις no curso da evoluccedilatildeo histoacuterica dos conceitos filosoacuteficos da antiga Greacutecia

A meditaccedilatildeo do ldquonatildeo-serrdquo eacute das mais interessantes a se fazer na filosofia Tentar ldquopensarrdquo o ldquonatildeo-serrdquo eacute uma experiecircncia profunda a qual leva a conside-raccedilotildees radicais natildeo soacute sobre a existecircncia humana mas sobre a existecircncia como um todo Que Parmecircnides tenha se dedicado a essa meditaccedilatildeo eacute seguro pois ele o diz indiretamente em 22 quando afirma que os uacutenicos caminhos ao pensar satildeo aquele que pensa ἔστιν e aquele que pensa οὐκ ἔστιν O que natildeo sa-bemos e natildeo podemos afirmar com certeza eacute que tipo de meditaccedilatildeo ele reali-zou Eis que os termos ἀνυστόν ou ἐφικτόν vecircm nos socorrer e nos informam que se trata de uma meditaccedilatildeo processual que natildeo acaba Descrevi esse proces-so detalhadamente em outro trabalho (GALGANO 2010) e o repetirei aqui brevemente Pensar o natildeo-ser significa pensar concretamente a negaccedilatildeo do ser concreto (do mundo sensiacutevel ou inteligiacutevel) de cada ser Para tornar mais claro o processo pode-se comeccedilar negando a existecircncia de um ente depois daquilo

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que o rodeia depois do planeta depois do universo (sensiacutevel e inteligiacutevel atual e possiacutevel) e depois do mundo como um todo enfim do todo

O problema principal dessa meditaccedilatildeo eacute exatamente pensar se o sujeito pertence ou natildeo ao todo Quando se pensa a negaccedilatildeo do todo permanece ainda o sujeito pensante que pensa o todo como se o olhasse de um ponto virtual externo a ele E quando se tenta incluir o sujeito pensante de duas uma 1) ou o sujeito acreditando pensar a si proacuteprio dentro do todo reapa-rece externamente22 ou 2) o sujeito cognitivo desaparece e com ele qualquer noccedilatildeo cognitiva de ldquonatildeo-serrdquo Podemos assegurar claramente que o processo de pensar o τό μὴ ἐὸν natildeo termina seja porque eacute impossiacutevel incluir o sujeito no todo pois ele sempre reaparece a cada tentativa seja porque o processo quan-do inclui o sujeito no todo interrompe-se sendo assim impossiacutevel completar a negaccedilatildeo do todo Natildeo podemos saber se o modelo meditativo de Parmecircnides foi exatamente este mas natildeo me parece haver nada em desabono23

Entretanto qual eacute a importacircncia de natildeo se poder pensar a negaccedilatildeo de tudo Seguindo o argumento parmenidiano o caminho (ἀταρπόν) cognitivo que pensa τό μὴ ἐὸν natildeo pode ser concluiacutedo Ora ἀταρπόν eacute um sinocircnimo que Parmecircnides usa para o ὁδός do verso 22 (ὁδοὶ) isso quer dizer que o segundo caminho de inqueacuterito pode ser iniciado mas natildeo pode ser levado a termo Poreacutem se natildeo pode ser levado a termo por que eacute identificado como caminho Por que natildeo eacute excluiacutedo jaacute de iniacutecio quando a deusa ao inveacutes de anunciar os uacutenicos (moucircnai plural) caminhos natildeo anuncia um uacutenico cami-nho A resposta a essa pergunta torna clara a estranha afirmaccedilatildeo de que o caminho do pensar do segundo hemistiacutequio do verso 5 eacute necessaacuterio que per-maneccedila natildeo ser (χρεών ἐστι μὴ εἶναι) Parmecircnides assevera que embora seja um caminho que jamais pode ser completado ele ao mesmo tempo natildeo pode ser eliminado continua a pertencer aos (dois) uacutenicos caminhos de inqueacuterito ele eacute necessaacuterio

22 Se penso na aniquilaccedilatildeo de tudo incluindo a mim mesmo terei que pensar a mim mesmo aniquilado contudo esse pensar gerando esse novo pensamento gera um novo sujeito cognitivo pensante se aniquilo esse novo pensamento terei um novo sujeito cognitivo que pensa essa nova aniquilaccedilatildeo e assim por diante ad infinitum23 Natildeo quero garantir que Parmecircnides estreie uma filosofia do sujeito embora isso natildeo possa ser excluiacutedo a priori jaacute que os embriotildees de uma tal filosofia apareceratildeo em breve com Soacutecrates Acredito que se deve pensar mais no sujeito como o atleta campeatildeo das Olimpiacuteadas ou seja aquele capaz de cumprir (ou natildeo) certas proezas como fica extraordinariamente evidenciado no paradoxo de Zenatildeo cuja metaacutefora da filosofia (e do filoacutesofo) como tartaruga mostra que o pensar filosoacutefico eacute capaz de proezas maiores do que as proezas do proacuteprio Aquiles tidas como insuperaacuteveis pela cultura da eacutepoca

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Vamos de novo reconstruir essa parte do argumento com esse novo elemento os uacutenicos caminhos de inqueacuteritos satildeo

1) por um lado o caminho ao pensar que [versos 3 e 4] e

2) por outro lado o caminho ao pensar que [ldquoCrdquo (verso 5 primeiro hemistiacute-quio)] e que eacute necessaacuterio (que seja) natildeo-ser

De fato esse segundo caminho (ἀταρπόν) eacute inviaacutevel porque ldquonatildeo se consegue levar a cabo a reflexatildeordquo (γνοίης) quando se pensa o τό μὴ ἐὸν Ou seja fica muito clara a equaccedilatildeo entre o segundo caminho (v 5) e a reflexatildeo sobre o natildeo ser (τό μὴ ἐὸν) Finalmente o segundo hemistiacutequio do v 5 diz que esse eacute o caminho ao pensar que eacute necessaacuterio que seja μὴ εἶναι o qual agora sabemos eacute o caminho que tenta pensar o natildeo-ser (τό μὴ ἐὸν) Sabe-mos agora o que Parmecircnides chama de μὴ εἶναι Para Parmecircnides μὴ εἶναι eacute a estrutura do pensamento quando tenta inexoraacutevel e malogradamente pensar o natildeo-ser (τό μὴ ἐὸν)

Temos portanto a semacircntica de μὴ εἶναι e sabemos que significa a impossibilidade de pensar o natildeo-ser Com esse dado podemos reconstruir o resto do argumento mas primeiro vamos abordar a questatildeo do οὔτε φράσαις A premissa principal eacute o pano de fundo da pesquisa parmenidiana a qual estaacute em busca do discurso confiaacutevel como a deusa diz claramente no encerramen-to do fragmento 8 (talvez ecoando simetricamente alguma parte perdida do poema)24 Pensar o τό μὴ ἐὸν natildeo eacute possiacutevel logo ele eacute indiziacutevel Ora isso significa nem mais nem menos que dizer que o que eacute impossiacutevel eacute contra o sentido do dizer Eacute indiziacutevel natildeo porque natildeo se sabe do que se trata como querem muitos autores que fazem a leitura meramente epistemoloacutegica25 Eacute indiziacutevel porque dizer o ldquonatildeo-serrdquo significa fazer uma promessa que jamais se cumpriraacute ao se dizer ldquonatildeo-serrdquo parece que a expressatildeo aponta algo possiacutevel ou seja a negaccedilatildeo do ser e de fato quem estaacute desavisado assim acredita Mas a expressatildeo ldquonatildeo-serrdquo quer referir-se a algo que jamais seraacute cumprido que o

24 850-2 ldquoἐν τῶι σοι παύω πιστὸν λόγον ἠδὲ νόημα ἀμφὶς ἀληθείης δόξας δrsquo ἀπὸ τοῦδε βροτείας μάνθανε κόσμον ἐμῶν ἐπέων ἀπατηλὸν ἀκούωνrdquo ldquoNeste ponto encerro fidedigna palavra e pensamento sobre a verdade e opiniotildees mortais a partir daqui aprende a ordem enganadora de minhas palavras ouvindordquo (CAVALCANTE DE SOUZA 1978)25 Trata-se da leitura epistemoloacutegico-predicamental se natildeo sei a cor de um objeto (porque a cor natildeo eacute natildeo estaacute acessiacutevel ao meu conhecimento) natildeo posso falar da cor do objeto

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ser seja negado Esta eacute exatamente a noccedilatildeo expressa pelas palavras de Platatildeo jamais prevaleceraacute que natildeo entes sejam26

A expressatildeo μὴ εἶναι representa essa impossibilidade de pensamento e portanto eacute um dizer impossiacutevel o que se opotildee radicalmente agrave proacutepria noccedilatildeo de dizer a qualquer significar enquanto discurso confiaacutevel do mundo e da sua ordem Surge a pergunta mas se natildeo se pode dizer μὴ εἶναι se isso eacute impossiacute-vel natildeo haacute uma flagrante contradiccedilatildeo na deusa jaacute que ela proacutepria diz e cons-troacutei um argumento sobre o dizer μὴ εἶναι A objeccedilatildeo seria vaacutelida se a deusa dissesse o que eacute impossiacutevel de dizer ou seja se ela praticasse a impossibilidade Todavia a deusa natildeo diz o impossiacutevel a deusa aponta para o impossiacutevel indica o impossiacutevel pois ela diz que existem a ldquonoccedilatildeo de impossibilidade do pensarrdquo e a ldquonoccedilatildeo de impossibilidade do dizerrdquo Em outras palavras a deusa diz qual eacute o limite do pensar e qual eacute o limite do dizer Aleacutem desse limite o pensamento natildeo pode ir porque eacute impossiacutevel e tambeacutem o dizer natildeo pode ir porque eacute im-possiacutevel A impossiacutevel regiatildeo para aleacutem desse limite natildeo eacute admitida pelo dizer eacute contra o dizer eacute contraditoacuteria

A expressatildeo μὴ εἶναι em Parmecircnides eacute exatamente a palavra que ex-pressa o processo mental que noacutes chamamos contradiccedilatildeo e que ele primeiro assim chamou (οὔτε φράσαις natildeo diziacutevel) Eacute estranho que nenhum criacutetico te-nha percebido isso claramente Todos afirmam que o princiacutepio de natildeo contra-diccedilatildeo estaacute implicado em Parmecircnides assim como os outros princiacutepios loacutegicos pois os argumentos presentes no poema satildeo desenvolvidos segundo a natildeo con-tradiccedilatildeo poreacutem o princiacutepio natildeo eacute enunciado Alguns como Cordero veem justamente explicitado o princiacutepio do terceiro excluiacutedo (816 ἔστιν ἢ οὐκ ἔστιν) mas ningueacutem quis ver claramente que natildeo soacute a noccedilatildeo como tambeacutem a proacutepria palavra ldquocontradiccedilatildeordquo (οὔτε φράσαις natildeo diziacutevel contra o diziacutevel contra a dicccedilatildeo) estaacute explicitada no poema Penso que a razatildeo fundamental para que acontecesse esse lapsus tenha que ser procurada na grande atenccedilatildeo dada ao ldquoserrdquo e na pouca dada ao ldquonatildeo-serrdquo Como observaremos mais adiante por causa desse lapsus eu penso que natildeo se conseguiu entender plenamente a estrutura do fragmento 2 o qual simplesmente natildeo apresenta um silogismo disjuntivo nem nenhuma contradiccedilatildeo entre o caminho do ldquoserrdquo e o caminho do ldquonatildeo-serrdquo Parmecircnides assevera justamente que a expressatildeo ldquonatildeo-serrdquo eacute contraditoacuteria o ldquonatildeo-serrdquo natildeo pode ser dito porque ldquonatildeo-serrdquo eacute contraditoacute-

26 As duas expressotildees tecircm inversatildeo de predicado e negaccedilatildeo no entanto a noccedilatildeo permanece a mesma que os entes natildeo sejam (perecimento no fr 8) e que os natildeo entes sejam (nascimento no fr 8) A noccedilatildeo eacute o tracircnsito entre ser e natildeo ser

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rio e a expressatildeo ldquonatildeo-serrdquo indica tatildeo somente uma impossibilidade concreta aquela de que se realize o impossiacutevel

Vamos voltar ao nosso argumento e agrave questatildeo que deixamos em suspenso por que eacute necessaacuterio que μὴ εἶναι seja Sabemos que os versos 7 e 8 relatam um processo malogrado de pensar o natildeo ente (τό μὴ ἐὸν) Uso agora a palavra ente porque se justifica uma diferenciaccedilatildeo embora tanto ldquoenterdquo quanto ldquoserrdquo indiquem expressotildees gerais e natildeo individuais ldquoEnterdquo vem por conseguinte a significar o ente concreto aquele que eacute Parmecircnides sustenta que natildeo se pode pensar e dizer τό μὴ ἐὸν o ldquonatildeo enterdquo Esse processo recebe o nome de μὴ εἶναι ldquonatildeo-serrdquo a esse processo noacutes chamamos contradiccedilatildeo27 Entatildeo a indicaccedilatildeo eacute esta haacute um caminho ao pensar que pensa μὴ εἶναι (a contradiccedilatildeo) e eacute necessaacuterio que assim seja porque (vou repetir trecircs vezes de forma diferente28 para significar a mesma coisa)

1) se natildeo houvesse a contradiccedilatildeo

2) se natildeo se tem a noccedilatildeo de contradiccedilatildeo

3) se natildeo se sabe o que eacute contradiccedilatildeo

cai-se no discurso contraditoacuterio o que impede o inqueacuterito confiaacutevel Eacute ne-cessaacuterio saber que μὴ εἶναι (o processo de contradiccedilatildeo) eacute um caminho a ser evitado porque cria pensamentos e discursos contraditoacuterios

Vejamos de novo nosso fragmento com os elementos esclarecidos ateacute aqui

os uacutenicos caminhos de inqueacuterito a pensar satildeo

por um lado que [ versos 3 e 4]

e por outro lado que οὐκ ἔστιν e que eacute necessaacuterio que seja a contradiccedilatildeo (μὴ εἶναι)

a qual eacute um caminho natildeo criacutevel

pois eacute impossiacutevel pensar e dizer o natildeo ente (τό μὴ ἐὸν)

27 Mesmo para noacutes a contradiccedilatildeo eacute um processo porque indica a posiccedilatildeo de algo em contraposiccedilatildeo com mais algo isso significa que esses dois algos tecircm que ser relacionados para que haja contradiccedilatildeo do contraacuterio algo e mais algo podem conviver sem contraditoriedade Contudo esse assunto estaacute fora de tema e requer muitas outras providecircncias para o bom discernimento28 Repito buscando clareza pois nossas construccedilotildees comuns de linguagem nesses assuntos costumam ldquopatinarrdquo

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Penso que o espaccedilo conceitual deixado por οὐκ ἔστιν agora se pre-encha quase que por si haacute um caminho de inqueacuterito ao pensar que ldquonatildeo eacuterdquo e que eacute necessaacuterio que se considere contraditoacuterio porque eacute caminho que natildeo leva a lugar nenhum

A expressatildeo οὐκ ἔστιν eacute a negaccedilatildeo da terceira pessoa do indicativo de εἰμί a expressatildeo em si natildeo tem nada de especial significa tatildeo somente ldquonatildeo eacuterdquo restando em aberto o problema da ausecircncia de sujeito Mas agora sabemos o argumento complexo que estaacute na raiz da expressatildeo e a meu ver natildeo faz muito sentido a questatildeo de buscar um sujeito ou um objeto para definir se eacute usado de forma transitiva ou intransitiva se expressa existecircncia ou predicaccedilatildeo e as muitas combinaccedilotildees que podem ser montadas a partir da equivocidade do uso de εἰμί No entanto o acircmbito semacircntico foi evidenciado e estaacute claro e aleacutem do mais tem o testemunho de Platatildeo a confirmar o campo semacircntico da negaccedilatildeo de εἰμί nas vaacuterias formas estaacute relacionado a uma reflexatildeo sobre a impossibili-dade dessa negaccedilatildeo Obviamente para dizer que algo eacute impossiacutevel de alguma forma tenho que indicar essa impossibilidade com alguma expressatildeo Assim se digo ldquotriacircngulo quadradordquo aponto para uma impossibilidade jaacute que por defi-niccedilatildeo a essecircncia do triacircngulo exclui a essecircncia do quadrado logo a expressatildeo ldquotriacircngulo quadradordquo natildeo significa aquilo que parece prometer ou seja natildeo significa uma figura geomeacutetrica especial que eacute ao mesmo tempo triacircngulo e quadrado dizer ldquotriacircngulo quadradordquo eacute dizer algo ldquoindiziacutevelrdquo ldquonatildeo diziacutevelrdquo (na medida em que o diziacutevel quer expressar sentido) ldquoque nega o diziacutevelrdquo ldquoque eacute contra o diziacutevelrdquo que eacute contraditoacuterio

A semacircntica do ldquonatildeo serrdquo eacute fortiacutessima e estaacute muito aleacutem das sutilezas gramaticais morfoloacutegicas e sintaacuteticas e estas simplesmente natildeo afetam aquela O assunto tratado eacute tatildeo forte que ultrapassa qualquer forma linguiacutestica a pon-to de que esse assunto a ordem do ser e do natildeo-ser no mundo eacute responsaacutevel pela determinaccedilatildeo da lei da linguagem e natildeo vice-versa como bem entendeu Platatildeo no Sofista onde a teoria da predicaccedilatildeo surge em funccedilatildeo de uma refle-xatildeo sobre a ordem das leis baacutesicas do mundo Com efeito o approach linguiacutes-tico ao poema pode proceder ateacute certo ponto dali em diante o poema eacute fran-camente filosoacutefico e a chave linguiacutestica natildeo eacute suficiente para o acesso Isso quer dizer que com a chave linguiacutestica natildeo se abre a porta da questatildeo filosoacutefica do poema Se a questatildeo eacute que ldquojamais o natildeo ser pode se tornar serrdquo como (apro-ximadamente com essas palavras) argumenta Platatildeo citando Parmecircnides en-tatildeo diante da semacircntica que οὐκ ἔστιν apresenta discutir o sujeito de οὐκ ἔστιν se torna tarefa menor Considerada a desproporccedilatildeo entre o conteuacutedo (a

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semacircntica) e o recipiente (a palavra) entre o significado e o significante natildeo eacute impossiacutevel que οὐκ ἔστιν seja tatildeo somente uma expressatildeo simplificada quem sabe ateacute mesmo uma simplificaccedilatildeo didaacutetica pois o conteuacutedo do conceito estaacute expresso e justificado depois nos versos 7 e 8

O caminho de pensar que natildeo eacute e de pensar que eacute necessaacuterio natildeo ser eacute o caminho que afirma a necessidade de que a noccedilatildeo de natildeo-ser permaneccedila estaacutevel A contradiccedilatildeo tem que permanecer e ser identificada como tal pois eacute a uacutenica maneira de evitar que ela entre no pensamento e no discurso Se o ldquonatildeo-serrdquo natildeo for considerado contraditoacuterio a contradiccedilatildeo invade e domina o caminho de inqueacuterito o qual deixa de possuir πίστις ἀληθής (130) Assim eacute preciso que esse caminho seja identificado como μὴ εἶναι por um lado o ldquonatildeo-serrdquo eacute incognosciacutevel (οὔτε γὰρ ἂν γνοίης) mas por outro lado eacute neces-saacuterio que se saiba que ele eacute incognosciacutevel Saber do incognosciacutevel garante o conhecimento29 pois de fato ao natildeo se identificar o ldquonatildeo-serrdquo cai-se no risco de pensar que ldquoserrdquo e ldquonatildeo-serrdquo satildeo o mesmo e natildeo o mesmo como Parmecircni-des afirma em DK 6 5-6 Necessariamente o caminho que pensa οὐκ ἔστιν leva ao processo de contradiccedilatildeo (μὴ εἶναι) e a natildeo conclusatildeo do caminho (ἀνυστόν) natildeo eacute evidente na expressatildeo pelo contraacuterio τό μὴ ἐὸν parece uma negaccedilatildeo comum como qualquer outra poreacutem natildeo o eacute por isso eacute um saber destinado ao saacutebio e natildeo aos mortais porque eacute um saber fruto de uma reflexatildeo

34 DE VOLTA AOS VERSOS 3 E 4

Penso que podemos agora voltar ao verso 23 ao nosso segundo he-mistiacutequio onde aparece a expressatildeo μὴ εἶναι da qual jaacute temos a semacircntica Podemos entatildeo reconstruir ldquoos uacutenicos caminhos de inqueacuterito a pensar satildeo

por um lado a pensar que [ldquoArdquo] e tambeacutem a pensar que οὐκ ἔστι μὴ εἶναι este eacute caminho de persuasatildeo pois verdade acompanha e

por outro lado a pensar que ldquonatildeo eacuterdquo e tambeacutem a pensar que eacute necessariamente um percurso de pensamento contraditoacuterio porque eacute um caminho ldquoimpossiacutevelrdquo (παναπευθέα) pois o pensamento do ldquonatildeo enterdquo natildeo pode ser completado

O οὐκ ἔστι do verso 3 parece ser diferente do οὐκ ἔστιν do verso 5 Enquanto no 5 ele eacute quase que o nome do caminho (talvez uma simplificaccedilatildeo didaacutetica) no 3 parece significar simplesmente ldquonatildeo eacuterdquo em sentido comum

29 Estaacute aqui uma semente do socratismo

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predicativo De fato esse eacute o caminho da persuasatildeo e portanto eacute o caminho do pensamento natildeo-contraditoacuterio Ali a persuasatildeo era impossiacutevel pela con-tradiccedilatildeo aqui eacute possiacutevel pela natildeo-contradiccedilatildeo Sabemos que a expressatildeo μὴ εἶναι eacute a expressatildeo da contradiccedilatildeo suprema de sorte que a natildeo-contradiccedilatildeo eacute a negaccedilatildeo de μὴ εἶναι A traduccedilatildeo de οὐκ ἔστι fica faacutecil embora para a nossa sensibilidade possa parecer algo improacuteprio usar duas vezes οὐκ ἔστι de forma natildeo perfeitamente uniacutevoca a dois versos de distacircncia Logo para o segundo hemistiacutequio do v 3 mantenho esta traduccedilatildeo ldquonatildeo eacuterdquo em parte ambiacutegua para nossas exigecircncias mas que soa perfeitamente harmocircnica com o discurso par-menidiano [] ao pensar que [ldquoArdquo] e que natildeo eacute ldquocontradiccedilatildeordquo (μὴ εἶναι)

Acredito por fim que podemos abordar facilmente o ἔστιν do verso 3 que tanto fez e faz penar os estudiosos de Parmecircnides Aqui de novo a grandeza da questatildeo cosmoloacutegica envolvida ndash a coerecircncia eou a contradito-riedade do real ndash simplesmente torna tatildeo minuacutescula a questatildeo do sujeito de ἔστιν que ela quase desaparece Eu tenho a tendecircncia a pensar que a falta de sujeito seja uma simplificaccedilatildeo didaacutetica30 cuja irregularidade linguiacutestica ajuda na memorizaccedilatildeo31 Todavia afinal tomo partido e entro tambeacutem no quarto grupo daqueles listados por Cordero o sujeito deve ser extraiacutedo do predicado isolado pois ἔστιν produz o sujeito32 De qualquer forma o sentido filosoacutefico eacute preciso haacute um caminho de inqueacuterito ao pensar que eacute aquele que pensa o ldquoeacuterdquo esse mesmo caminho eacute aquele ao pensar que natildeo eacute (e natildeo pode ser33) ldquocon-tradiccedilatildeordquo Depois haacute um outro caminho aquele ao pensar que ldquonatildeo eacuterdquo que eacute o caminho ao pensar que leva necessariamente agrave contradiccedilatildeo O primeiro eacute o 30 Segundo o relato platocircnico no diaacutelogo Parmecircnides Zenatildeo acompanhado de seu mestre foi para as Panateneias com a finalidade de defender a filosofia de seu mestre esclarecendo com seu livro repleto de paradoxos as ideias parmenidianas Isso sugere que o poema natildeo expunha articuladamente a filosofia de Parmecircnides mas que constituiacutesse um proacute-memoacuteria com as ideias em sua forma essencial depois elaboradas nas aulas pessoais (KURFESS 2012)31 Eacute extraordinaacuterio como essa simplificaccedilatildeo didaacutetica continue ativa por um lado distorcendo entretanto por outro mantendo viva a mensagem parmenidiana em todas as escolas de ensino meacutedio onde se estuda filosofia vox populi Parmecircnides eacute o filoacutesofo que disse ldquoO que eacute eacute e o que natildeo eacute natildeo eacuterdquo Por outro lado o estrangeiro de Eleia no Sofista lembra outro verso e natildeo este32 Essa questatildeo natildeo aprofundada aqui natildeo possui relevacircncia filosoacutefica no argumento apresentado pode ter relevacircncia se se considera o tipo de reflexatildeo ou seja se se discute a ldquoexperiecircnciardquo do natildeo-ser e principalmente a experiecircncia concreta de Parmecircnides que talvez esteja ligada a praacuteticas de incubaccedilatildeo Nesse caso a dimensatildeo reflexiva adentra a dimensatildeo oniacuterica a qual possui outra sintaxe e onde um simples ἔστιν vale mais de mil articulaccedilotildees sintaacuteticas Natildeo sabemos com certeza dessas praacuteticas em Eleia contudo esse sentido preacute-sintaacutetico natildeo estaacute descartado inclusive alguns estudiosos entre os quais o proacuteprio Cordero atribuem ao ἔστιν o sentido de um grito como um Eureka Sugestotildees nesse sentido se encontram na minha dissertaccedilatildeo sobre Melisso (GALGANO 2010)33 A interpretaccedilatildeo modal eacute tambeacutem perfeitamente coerente aqui

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GALGANO N S

caminho que estabelece o discurso coerente (persuasivo) e o segundo natildeo leva a lugar nenhum e deve ser evitado Mas para que se saiba o que deve ser evi-tado eacute preciso que se conheccedila a impossibilidade do segundo caminho A fim de que se possa seguir o primeiro caminho eacute necessaacuterio saber que existe um outro sempre agrave espreita o qual parece oferecer a verdade mas que natildeo oferece uma verdade confiaacutevel que leva necessariamente agrave contradiccedilatildeo de pensamento e de expressatildeo linguiacutestica

4 O MEacuteTODO DA NAtildeO-CONTRADICcedilAtildeO

Parmecircnides provavelmente a partir de sugestotildees pitagoacutericas medita sobre a oposiccedilatildeo ao que existe e assim descobre o ldquonatildeo-serrdquo Descobre que ldquonatildeo serrdquo ou seja negar o ser negar o que haacute eacute de todo impossiacutevel (natildeo eacute possiacutevel completamente) Entende entatildeo que o ldquonatildeo-serrdquo essa impossibilidade eacute algo que a mente pensa julgando que esse pensamento leva por um caminho mas que na verdade ele descobre leva por outro caminho aquele que nunca che-ga a lugar nenhum Esse caminho que leva para lugar nenhum eacute o caminho dos mortais os quais confundem ser e natildeo ser No entanto o saacutebio deve saber distinguir por um lado o caminho do ldquoeacuterdquo que eacute o caminho do discurso natildeo contraditoacuterio e por outro lado o caminho do ldquonatildeo eacuterdquo que eacute o caminho do discurso que eacute tornado vatildeo pela contradiccedilatildeo

Parmecircnides descobre a contradiccedilatildeo (pela meditaccedilatildeo sobre o natildeo-ser) e percebe que ela eacute motivo de descaminho no discurso sobre o mundo Assim finalmente ele anuncia que a contradiccedilatildeo deve ser evitada A esse enunciado noacutes chamamos de princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo que aqui eacute aquele na versatildeo de Parmecircnides (depois a partir de Platatildeo e Aristoacuteteles haveraacute outras versotildees) Parmecircnides trabalha em acircmbito cosmoloacutegico e sua preocupaccedilatildeo ndash como os de seus colegas na eacutepoca ndash eacute com o mundo com a totalidade das coisas com os πάντα de seu proecircmio (128) Nesse acircmbito cosmoloacutegico descobre que haacute um princiacutepio do mundo pelo qual se daacute uma impossibilidade a contradiccedilatildeo A contradiccedilatildeo eacute um princiacutepio porque o que haacute (πάντα) enquanto todo escapa agrave negaccedilatildeo total Eis que a contradiccedilatildeo eacute princiacutepio tanto quanto a natildeo-contra-diccedilatildeo porque eacute a contradiccedilatildeo que permite a natildeo-contradiccedilatildeo Sem a noccedilatildeo de contradiccedilatildeo se anda com sentidos incertos como os mortais

O valor dessa afirmaccedilatildeo eacute historicamente inabalaacutevel porque Parmecircni-des partindo de um discurso sobre o mundo como que visto de fora por um observador (como Anaximandro via o mundo olhando seu pinax - cf ROS-

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SETTI 2013) alcanccedila um discurso que inclui o observador enquanto obser-vador estreando assim antes de tudo um discurso sobre os entes (ontologia) todos os entes incluindo os entes de pensamento (veja-se o famoso fragmento 3 onde se lecirc que pensar e ser satildeo o mesmo) Para ele o saacutebio natildeo eacute mais aquele que sabe soacute sobre as coisas externas ndash como o antigo xamatilde cuja figura indi-vidual se dissolve na mera intermediaccedilatildeo com o divino ndash poreacutem eacute tambeacutem aquele que consegue pensar sobre as coisas externas ou seja aquele que tem um domiacutenio cognitivo sobre os pensamentos de inqueacuterito e portanto sabe so-bre si mesmo Assim o saacutebio deve pensar por proacutepria conta e julgar pelo novo criteacuterio e natildeo pelo habitual discurso (κρῖναι δὲ λόγωι DK 75) ou seja natildeo deve julgar pelo discurso mas julgar o discurso porque agora o discurso enri-quecido de uma lei universal (a lei das αρχάι ἔστιν e οὐκ ἔστιν) possui uma medida de juiacutezo Parmecircnides amplia o mundo acrescentando ao mundo fiacutesico os mundos do pensamento e da linguagem Eis porque as αρχάι de Parmecircni-des sendo duas permanecem duas justamente eliminado uma delas deixando alguns criacuteticos enlouquecidos na discussatildeo sobre o monismo ou o dualismo de acordo com Parmecircnides o mundo eacute um todavia os sentidos nos enganam natildeo na pluralidade das coisas mas no argumento a respeito da pluralidade das coisas e principalmente ndash aspecto que ele discute explicitamente ndash a respeito do devir das coisas Haacute um princiacutepio que natildeo pode ser eliminado a contra-diccedilatildeo o qual eacute um princiacutepio de erro humano quando se elimina quando se desconsidera quando se faz de conta que natildeo existe a contradiccedilatildeo se instaura quando o princiacutepio eacute levado em conta a contradiccedilatildeo pode ser evitada

Eacute uma conceituaccedilatildeo esdruacutexula para noacutes tambeacutem porque temos que ter (a noccedilatildeo de) a contradiccedilatildeo para eliminar a contradiccedilatildeo temos que saber o que eacute contradiccedilatildeo para que possamos perceber quando o discurso eacute con-traditoacuterio Esses conceitos satildeo misteriosos ateacute agora e satildeo estranhas criaturas de nossas mentes Por exemplo a noccedilatildeo de ldquoimpossiacutevelrdquo obviamente (isto eacute para a nossa pragmaacutetica) natildeo se refere a nada de concreto no entanto temos essa noccedilatildeo e a usamos com o maacuteximo proveito outro exemplo a noccedilatildeo de ldquoinfinitordquo noccedilatildeo que natildeo se refere a algo pragmaticamente concreto mas que usamos igualmente com maacuteximo proveito O mesmo deve ser dito da noccedilatildeo de contradiccedilatildeo ou da noccedilatildeo de nada absoluto que usamos pragmaticamente com maior ou menor proveito

Parmecircnides encontra esse caminho e o expotildee Eacute um caminho assom-broso anti-intuitivo mas incontestaacutevel Dessa forma natildeo eacute de estranhar se a soluccedilatildeo platocircnica eacute a eliminaccedilatildeo fiacutesica da noccedilatildeo de nada absoluto (o par-

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riciacutedio) com sucessivo ldquoadeusrdquo34 achando de tecirc-lo ultrapassado Mas o nada absoluto enquanto noccedilatildeo contraditoacuteria permanece Assim como permane-ce a explicaccedilatildeo defeituosa do devir o qual assim como o conhecemos uma passagem do nada ao ser no nascimento e do ser ao nada no perecimento estaacute mal explicado Daqui por diante os comentaacuterios filosoacuteficos possiacuteveis satildeo inuacutemeros por conseguinte paro meu estudo neste ponto e proponho a versatildeo do fragmento 2 segundo a conceituaccedilatildeo apresentada ateacute aqui alterando de pouco a excelente versatildeo baacutesica de Cavalcante de Souza

Pois bem eu te direi e tu recebe a palavra que ouviste

os uacutenicos caminhos de inqueacuterito que satildeo a pensar

o primeiro que eacute e portanto que natildeo eacute (o caminho da) contradiccedilatildeo

de persuasatildeo eacute o caminho (pois agrave verdade acompanha)

o outro que natildeo eacute e portanto que eacute necessariamente (o caminho da) contradiccedilatildeo

este entatildeo eu te digo eacute atalho de todo incriacutevel

pois nem conhecerias o que natildeo eacute (pois natildeo eacute exequiacutevel)

nem o dirias

GALGANO N S Non-being in Parmenides of Elea Transformaccedilatildeo Mariacutelia v 41 n 2 p 9-36 AbrJun 2018

ABSTRACT In fragment DK 28 B 2 of his poem Parmenides presents his method for distinguishing true persuasion from the lack of true persuasion His famous proposal of these two ways of thinking form a complex statement of a system that intends to guarantee the veracity of statements in order to obtain reliable discourse the only discourse capable of true persuasion The present paper shows that the central role in Parmenidian argumentation is attributed to non-being a notion derived from a reflection on the impossibility of the negation of being Thus the whole fragment is interpreted in terms of this central notion We show that Parmenides discovered the impossibility of negation which we now call lsquocontradictionrsquo and that he articulated the means for avoiding contradiction in thought and discourse a rule which today we call the principle of non-contradiction The study presented here is a detailed investigation of the notion of non-being in the DK 28 B 2 fragment and includes a new translation of it

KEYWORDS Parmenides Non-being Non-contradiction Eleatism Parricide

34 Platatildeo Soph 258e7-259a1 ἡμεῖς γὰρ περὶ μὲν ἐναντίου τινὸς αὐτῷ χαίρειν πάλαι λέγομεν εἴτrsquo ἔστιν εἴτε μή λόγον ἔχον ἢ καὶ παντάπασιν ἄλογον

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Page 16: O NÃO SER EM PARMÊNIDES ELEIA - SciELO · Trans/Form/Ação, Marília, v. 41, n. 2, p. 9-36, Abr./Jun., 2018 9 O não-ser em Parmênides de Eleia Artigos / Articles O NÃO-SER EM

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Para o meacutetodo do pensar epistecircmico declara Parmecircnides natildeo eacute con-veniente seguir um certo percurso porque sobre ele haacute ao menos uma etapa onde se deve ldquoconhecerrdquo ndash ou seja onde se deve exercer a capacidade gnosioloacute-gica ndash o τό μὴ ἐὸν mas isso eacute impossiacutevel Na verdade tanto o termo ἀνυστόν (reportado por Simpliacutecio) quanto sua variante ἐφικτόν (reportada por Proclo) tecircm um sentido processual quero dizer que a tarefa de pensar o τό μὴ ἐὸν natildeo apresenta uma impossibilidade que se realiza imediatamente mas uma que implica um processo o qual eacute impossiacutevel em sua inteireza porque natildeo pode ser levado a termo De fato ἀνυστός significa ldquoser completadordquo ldquopraticaacutevelrdquo enquanto ἐφικτός significa ldquofaacutecil de alcanccedilarrdquo ldquoacessiacutevelrdquo Ambos os termos tecircm sentido dinacircmico e processual e a negaccedilatildeo que Parmecircnides faz significa que esse processo natildeo pode ser levado a termo

De que processo se trata Em minha visatildeo trata-se do processo concre-to de pensar a negaccedilatildeo do ser Parmecircnides eacute de aacuterea de formaccedilatildeo pitagoacuterica e os pitagoacutericos ndash como assinala Aristoacuteteles (Metaph 986a15-26) ndash naquela eacutepoca estudavam as oposiccedilotildees as mais abstratas tendo passado da oposiccedilatildeo mais antiga entre par e iacutempar correspondentes a limitado e ilimitado (πέρας e ἄπειρον) a um conjunto de dez oposiccedilotildees Nada desabona uma possiacutevel tentativa de Parmecircnides buscar uma oposiccedilatildeo (a qual era feita tambeacutem por negaccedilatildeo como nos evidencia a expressatildeo verbal da oposiccedilatildeo entre πέρας e ἄπειρον com o ldquoαrdquo privativo) para o ldquotodordquo aquele πάντα que encontramos no verso 128 do poema e que em breve transformar-se-ia em φύσις no curso da evoluccedilatildeo histoacuterica dos conceitos filosoacuteficos da antiga Greacutecia

A meditaccedilatildeo do ldquonatildeo-serrdquo eacute das mais interessantes a se fazer na filosofia Tentar ldquopensarrdquo o ldquonatildeo-serrdquo eacute uma experiecircncia profunda a qual leva a conside-raccedilotildees radicais natildeo soacute sobre a existecircncia humana mas sobre a existecircncia como um todo Que Parmecircnides tenha se dedicado a essa meditaccedilatildeo eacute seguro pois ele o diz indiretamente em 22 quando afirma que os uacutenicos caminhos ao pensar satildeo aquele que pensa ἔστιν e aquele que pensa οὐκ ἔστιν O que natildeo sa-bemos e natildeo podemos afirmar com certeza eacute que tipo de meditaccedilatildeo ele reali-zou Eis que os termos ἀνυστόν ou ἐφικτόν vecircm nos socorrer e nos informam que se trata de uma meditaccedilatildeo processual que natildeo acaba Descrevi esse proces-so detalhadamente em outro trabalho (GALGANO 2010) e o repetirei aqui brevemente Pensar o natildeo-ser significa pensar concretamente a negaccedilatildeo do ser concreto (do mundo sensiacutevel ou inteligiacutevel) de cada ser Para tornar mais claro o processo pode-se comeccedilar negando a existecircncia de um ente depois daquilo

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que o rodeia depois do planeta depois do universo (sensiacutevel e inteligiacutevel atual e possiacutevel) e depois do mundo como um todo enfim do todo

O problema principal dessa meditaccedilatildeo eacute exatamente pensar se o sujeito pertence ou natildeo ao todo Quando se pensa a negaccedilatildeo do todo permanece ainda o sujeito pensante que pensa o todo como se o olhasse de um ponto virtual externo a ele E quando se tenta incluir o sujeito pensante de duas uma 1) ou o sujeito acreditando pensar a si proacuteprio dentro do todo reapa-rece externamente22 ou 2) o sujeito cognitivo desaparece e com ele qualquer noccedilatildeo cognitiva de ldquonatildeo-serrdquo Podemos assegurar claramente que o processo de pensar o τό μὴ ἐὸν natildeo termina seja porque eacute impossiacutevel incluir o sujeito no todo pois ele sempre reaparece a cada tentativa seja porque o processo quan-do inclui o sujeito no todo interrompe-se sendo assim impossiacutevel completar a negaccedilatildeo do todo Natildeo podemos saber se o modelo meditativo de Parmecircnides foi exatamente este mas natildeo me parece haver nada em desabono23

Entretanto qual eacute a importacircncia de natildeo se poder pensar a negaccedilatildeo de tudo Seguindo o argumento parmenidiano o caminho (ἀταρπόν) cognitivo que pensa τό μὴ ἐὸν natildeo pode ser concluiacutedo Ora ἀταρπόν eacute um sinocircnimo que Parmecircnides usa para o ὁδός do verso 22 (ὁδοὶ) isso quer dizer que o segundo caminho de inqueacuterito pode ser iniciado mas natildeo pode ser levado a termo Poreacutem se natildeo pode ser levado a termo por que eacute identificado como caminho Por que natildeo eacute excluiacutedo jaacute de iniacutecio quando a deusa ao inveacutes de anunciar os uacutenicos (moucircnai plural) caminhos natildeo anuncia um uacutenico cami-nho A resposta a essa pergunta torna clara a estranha afirmaccedilatildeo de que o caminho do pensar do segundo hemistiacutequio do verso 5 eacute necessaacuterio que per-maneccedila natildeo ser (χρεών ἐστι μὴ εἶναι) Parmecircnides assevera que embora seja um caminho que jamais pode ser completado ele ao mesmo tempo natildeo pode ser eliminado continua a pertencer aos (dois) uacutenicos caminhos de inqueacuterito ele eacute necessaacuterio

22 Se penso na aniquilaccedilatildeo de tudo incluindo a mim mesmo terei que pensar a mim mesmo aniquilado contudo esse pensar gerando esse novo pensamento gera um novo sujeito cognitivo pensante se aniquilo esse novo pensamento terei um novo sujeito cognitivo que pensa essa nova aniquilaccedilatildeo e assim por diante ad infinitum23 Natildeo quero garantir que Parmecircnides estreie uma filosofia do sujeito embora isso natildeo possa ser excluiacutedo a priori jaacute que os embriotildees de uma tal filosofia apareceratildeo em breve com Soacutecrates Acredito que se deve pensar mais no sujeito como o atleta campeatildeo das Olimpiacuteadas ou seja aquele capaz de cumprir (ou natildeo) certas proezas como fica extraordinariamente evidenciado no paradoxo de Zenatildeo cuja metaacutefora da filosofia (e do filoacutesofo) como tartaruga mostra que o pensar filosoacutefico eacute capaz de proezas maiores do que as proezas do proacuteprio Aquiles tidas como insuperaacuteveis pela cultura da eacutepoca

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Vamos de novo reconstruir essa parte do argumento com esse novo elemento os uacutenicos caminhos de inqueacuteritos satildeo

1) por um lado o caminho ao pensar que [versos 3 e 4] e

2) por outro lado o caminho ao pensar que [ldquoCrdquo (verso 5 primeiro hemistiacute-quio)] e que eacute necessaacuterio (que seja) natildeo-ser

De fato esse segundo caminho (ἀταρπόν) eacute inviaacutevel porque ldquonatildeo se consegue levar a cabo a reflexatildeordquo (γνοίης) quando se pensa o τό μὴ ἐὸν Ou seja fica muito clara a equaccedilatildeo entre o segundo caminho (v 5) e a reflexatildeo sobre o natildeo ser (τό μὴ ἐὸν) Finalmente o segundo hemistiacutequio do v 5 diz que esse eacute o caminho ao pensar que eacute necessaacuterio que seja μὴ εἶναι o qual agora sabemos eacute o caminho que tenta pensar o natildeo-ser (τό μὴ ἐὸν) Sabe-mos agora o que Parmecircnides chama de μὴ εἶναι Para Parmecircnides μὴ εἶναι eacute a estrutura do pensamento quando tenta inexoraacutevel e malogradamente pensar o natildeo-ser (τό μὴ ἐὸν)

Temos portanto a semacircntica de μὴ εἶναι e sabemos que significa a impossibilidade de pensar o natildeo-ser Com esse dado podemos reconstruir o resto do argumento mas primeiro vamos abordar a questatildeo do οὔτε φράσαις A premissa principal eacute o pano de fundo da pesquisa parmenidiana a qual estaacute em busca do discurso confiaacutevel como a deusa diz claramente no encerramen-to do fragmento 8 (talvez ecoando simetricamente alguma parte perdida do poema)24 Pensar o τό μὴ ἐὸν natildeo eacute possiacutevel logo ele eacute indiziacutevel Ora isso significa nem mais nem menos que dizer que o que eacute impossiacutevel eacute contra o sentido do dizer Eacute indiziacutevel natildeo porque natildeo se sabe do que se trata como querem muitos autores que fazem a leitura meramente epistemoloacutegica25 Eacute indiziacutevel porque dizer o ldquonatildeo-serrdquo significa fazer uma promessa que jamais se cumpriraacute ao se dizer ldquonatildeo-serrdquo parece que a expressatildeo aponta algo possiacutevel ou seja a negaccedilatildeo do ser e de fato quem estaacute desavisado assim acredita Mas a expressatildeo ldquonatildeo-serrdquo quer referir-se a algo que jamais seraacute cumprido que o

24 850-2 ldquoἐν τῶι σοι παύω πιστὸν λόγον ἠδὲ νόημα ἀμφὶς ἀληθείης δόξας δrsquo ἀπὸ τοῦδε βροτείας μάνθανε κόσμον ἐμῶν ἐπέων ἀπατηλὸν ἀκούωνrdquo ldquoNeste ponto encerro fidedigna palavra e pensamento sobre a verdade e opiniotildees mortais a partir daqui aprende a ordem enganadora de minhas palavras ouvindordquo (CAVALCANTE DE SOUZA 1978)25 Trata-se da leitura epistemoloacutegico-predicamental se natildeo sei a cor de um objeto (porque a cor natildeo eacute natildeo estaacute acessiacutevel ao meu conhecimento) natildeo posso falar da cor do objeto

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ser seja negado Esta eacute exatamente a noccedilatildeo expressa pelas palavras de Platatildeo jamais prevaleceraacute que natildeo entes sejam26

A expressatildeo μὴ εἶναι representa essa impossibilidade de pensamento e portanto eacute um dizer impossiacutevel o que se opotildee radicalmente agrave proacutepria noccedilatildeo de dizer a qualquer significar enquanto discurso confiaacutevel do mundo e da sua ordem Surge a pergunta mas se natildeo se pode dizer μὴ εἶναι se isso eacute impossiacute-vel natildeo haacute uma flagrante contradiccedilatildeo na deusa jaacute que ela proacutepria diz e cons-troacutei um argumento sobre o dizer μὴ εἶναι A objeccedilatildeo seria vaacutelida se a deusa dissesse o que eacute impossiacutevel de dizer ou seja se ela praticasse a impossibilidade Todavia a deusa natildeo diz o impossiacutevel a deusa aponta para o impossiacutevel indica o impossiacutevel pois ela diz que existem a ldquonoccedilatildeo de impossibilidade do pensarrdquo e a ldquonoccedilatildeo de impossibilidade do dizerrdquo Em outras palavras a deusa diz qual eacute o limite do pensar e qual eacute o limite do dizer Aleacutem desse limite o pensamento natildeo pode ir porque eacute impossiacutevel e tambeacutem o dizer natildeo pode ir porque eacute im-possiacutevel A impossiacutevel regiatildeo para aleacutem desse limite natildeo eacute admitida pelo dizer eacute contra o dizer eacute contraditoacuteria

A expressatildeo μὴ εἶναι em Parmecircnides eacute exatamente a palavra que ex-pressa o processo mental que noacutes chamamos contradiccedilatildeo e que ele primeiro assim chamou (οὔτε φράσαις natildeo diziacutevel) Eacute estranho que nenhum criacutetico te-nha percebido isso claramente Todos afirmam que o princiacutepio de natildeo contra-diccedilatildeo estaacute implicado em Parmecircnides assim como os outros princiacutepios loacutegicos pois os argumentos presentes no poema satildeo desenvolvidos segundo a natildeo con-tradiccedilatildeo poreacutem o princiacutepio natildeo eacute enunciado Alguns como Cordero veem justamente explicitado o princiacutepio do terceiro excluiacutedo (816 ἔστιν ἢ οὐκ ἔστιν) mas ningueacutem quis ver claramente que natildeo soacute a noccedilatildeo como tambeacutem a proacutepria palavra ldquocontradiccedilatildeordquo (οὔτε φράσαις natildeo diziacutevel contra o diziacutevel contra a dicccedilatildeo) estaacute explicitada no poema Penso que a razatildeo fundamental para que acontecesse esse lapsus tenha que ser procurada na grande atenccedilatildeo dada ao ldquoserrdquo e na pouca dada ao ldquonatildeo-serrdquo Como observaremos mais adiante por causa desse lapsus eu penso que natildeo se conseguiu entender plenamente a estrutura do fragmento 2 o qual simplesmente natildeo apresenta um silogismo disjuntivo nem nenhuma contradiccedilatildeo entre o caminho do ldquoserrdquo e o caminho do ldquonatildeo-serrdquo Parmecircnides assevera justamente que a expressatildeo ldquonatildeo-serrdquo eacute contraditoacuteria o ldquonatildeo-serrdquo natildeo pode ser dito porque ldquonatildeo-serrdquo eacute contraditoacute-

26 As duas expressotildees tecircm inversatildeo de predicado e negaccedilatildeo no entanto a noccedilatildeo permanece a mesma que os entes natildeo sejam (perecimento no fr 8) e que os natildeo entes sejam (nascimento no fr 8) A noccedilatildeo eacute o tracircnsito entre ser e natildeo ser

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GALGANO N S

rio e a expressatildeo ldquonatildeo-serrdquo indica tatildeo somente uma impossibilidade concreta aquela de que se realize o impossiacutevel

Vamos voltar ao nosso argumento e agrave questatildeo que deixamos em suspenso por que eacute necessaacuterio que μὴ εἶναι seja Sabemos que os versos 7 e 8 relatam um processo malogrado de pensar o natildeo ente (τό μὴ ἐὸν) Uso agora a palavra ente porque se justifica uma diferenciaccedilatildeo embora tanto ldquoenterdquo quanto ldquoserrdquo indiquem expressotildees gerais e natildeo individuais ldquoEnterdquo vem por conseguinte a significar o ente concreto aquele que eacute Parmecircnides sustenta que natildeo se pode pensar e dizer τό μὴ ἐὸν o ldquonatildeo enterdquo Esse processo recebe o nome de μὴ εἶναι ldquonatildeo-serrdquo a esse processo noacutes chamamos contradiccedilatildeo27 Entatildeo a indicaccedilatildeo eacute esta haacute um caminho ao pensar que pensa μὴ εἶναι (a contradiccedilatildeo) e eacute necessaacuterio que assim seja porque (vou repetir trecircs vezes de forma diferente28 para significar a mesma coisa)

1) se natildeo houvesse a contradiccedilatildeo

2) se natildeo se tem a noccedilatildeo de contradiccedilatildeo

3) se natildeo se sabe o que eacute contradiccedilatildeo

cai-se no discurso contraditoacuterio o que impede o inqueacuterito confiaacutevel Eacute ne-cessaacuterio saber que μὴ εἶναι (o processo de contradiccedilatildeo) eacute um caminho a ser evitado porque cria pensamentos e discursos contraditoacuterios

Vejamos de novo nosso fragmento com os elementos esclarecidos ateacute aqui

os uacutenicos caminhos de inqueacuterito a pensar satildeo

por um lado que [ versos 3 e 4]

e por outro lado que οὐκ ἔστιν e que eacute necessaacuterio que seja a contradiccedilatildeo (μὴ εἶναι)

a qual eacute um caminho natildeo criacutevel

pois eacute impossiacutevel pensar e dizer o natildeo ente (τό μὴ ἐὸν)

27 Mesmo para noacutes a contradiccedilatildeo eacute um processo porque indica a posiccedilatildeo de algo em contraposiccedilatildeo com mais algo isso significa que esses dois algos tecircm que ser relacionados para que haja contradiccedilatildeo do contraacuterio algo e mais algo podem conviver sem contraditoriedade Contudo esse assunto estaacute fora de tema e requer muitas outras providecircncias para o bom discernimento28 Repito buscando clareza pois nossas construccedilotildees comuns de linguagem nesses assuntos costumam ldquopatinarrdquo

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O natildeo-ser em Parmecircnides de Eleia Artigos Articles

Penso que o espaccedilo conceitual deixado por οὐκ ἔστιν agora se pre-encha quase que por si haacute um caminho de inqueacuterito ao pensar que ldquonatildeo eacuterdquo e que eacute necessaacuterio que se considere contraditoacuterio porque eacute caminho que natildeo leva a lugar nenhum

A expressatildeo οὐκ ἔστιν eacute a negaccedilatildeo da terceira pessoa do indicativo de εἰμί a expressatildeo em si natildeo tem nada de especial significa tatildeo somente ldquonatildeo eacuterdquo restando em aberto o problema da ausecircncia de sujeito Mas agora sabemos o argumento complexo que estaacute na raiz da expressatildeo e a meu ver natildeo faz muito sentido a questatildeo de buscar um sujeito ou um objeto para definir se eacute usado de forma transitiva ou intransitiva se expressa existecircncia ou predicaccedilatildeo e as muitas combinaccedilotildees que podem ser montadas a partir da equivocidade do uso de εἰμί No entanto o acircmbito semacircntico foi evidenciado e estaacute claro e aleacutem do mais tem o testemunho de Platatildeo a confirmar o campo semacircntico da negaccedilatildeo de εἰμί nas vaacuterias formas estaacute relacionado a uma reflexatildeo sobre a impossibili-dade dessa negaccedilatildeo Obviamente para dizer que algo eacute impossiacutevel de alguma forma tenho que indicar essa impossibilidade com alguma expressatildeo Assim se digo ldquotriacircngulo quadradordquo aponto para uma impossibilidade jaacute que por defi-niccedilatildeo a essecircncia do triacircngulo exclui a essecircncia do quadrado logo a expressatildeo ldquotriacircngulo quadradordquo natildeo significa aquilo que parece prometer ou seja natildeo significa uma figura geomeacutetrica especial que eacute ao mesmo tempo triacircngulo e quadrado dizer ldquotriacircngulo quadradordquo eacute dizer algo ldquoindiziacutevelrdquo ldquonatildeo diziacutevelrdquo (na medida em que o diziacutevel quer expressar sentido) ldquoque nega o diziacutevelrdquo ldquoque eacute contra o diziacutevelrdquo que eacute contraditoacuterio

A semacircntica do ldquonatildeo serrdquo eacute fortiacutessima e estaacute muito aleacutem das sutilezas gramaticais morfoloacutegicas e sintaacuteticas e estas simplesmente natildeo afetam aquela O assunto tratado eacute tatildeo forte que ultrapassa qualquer forma linguiacutestica a pon-to de que esse assunto a ordem do ser e do natildeo-ser no mundo eacute responsaacutevel pela determinaccedilatildeo da lei da linguagem e natildeo vice-versa como bem entendeu Platatildeo no Sofista onde a teoria da predicaccedilatildeo surge em funccedilatildeo de uma refle-xatildeo sobre a ordem das leis baacutesicas do mundo Com efeito o approach linguiacutes-tico ao poema pode proceder ateacute certo ponto dali em diante o poema eacute fran-camente filosoacutefico e a chave linguiacutestica natildeo eacute suficiente para o acesso Isso quer dizer que com a chave linguiacutestica natildeo se abre a porta da questatildeo filosoacutefica do poema Se a questatildeo eacute que ldquojamais o natildeo ser pode se tornar serrdquo como (apro-ximadamente com essas palavras) argumenta Platatildeo citando Parmecircnides en-tatildeo diante da semacircntica que οὐκ ἔστιν apresenta discutir o sujeito de οὐκ ἔστιν se torna tarefa menor Considerada a desproporccedilatildeo entre o conteuacutedo (a

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semacircntica) e o recipiente (a palavra) entre o significado e o significante natildeo eacute impossiacutevel que οὐκ ἔστιν seja tatildeo somente uma expressatildeo simplificada quem sabe ateacute mesmo uma simplificaccedilatildeo didaacutetica pois o conteuacutedo do conceito estaacute expresso e justificado depois nos versos 7 e 8

O caminho de pensar que natildeo eacute e de pensar que eacute necessaacuterio natildeo ser eacute o caminho que afirma a necessidade de que a noccedilatildeo de natildeo-ser permaneccedila estaacutevel A contradiccedilatildeo tem que permanecer e ser identificada como tal pois eacute a uacutenica maneira de evitar que ela entre no pensamento e no discurso Se o ldquonatildeo-serrdquo natildeo for considerado contraditoacuterio a contradiccedilatildeo invade e domina o caminho de inqueacuterito o qual deixa de possuir πίστις ἀληθής (130) Assim eacute preciso que esse caminho seja identificado como μὴ εἶναι por um lado o ldquonatildeo-serrdquo eacute incognosciacutevel (οὔτε γὰρ ἂν γνοίης) mas por outro lado eacute neces-saacuterio que se saiba que ele eacute incognosciacutevel Saber do incognosciacutevel garante o conhecimento29 pois de fato ao natildeo se identificar o ldquonatildeo-serrdquo cai-se no risco de pensar que ldquoserrdquo e ldquonatildeo-serrdquo satildeo o mesmo e natildeo o mesmo como Parmecircni-des afirma em DK 6 5-6 Necessariamente o caminho que pensa οὐκ ἔστιν leva ao processo de contradiccedilatildeo (μὴ εἶναι) e a natildeo conclusatildeo do caminho (ἀνυστόν) natildeo eacute evidente na expressatildeo pelo contraacuterio τό μὴ ἐὸν parece uma negaccedilatildeo comum como qualquer outra poreacutem natildeo o eacute por isso eacute um saber destinado ao saacutebio e natildeo aos mortais porque eacute um saber fruto de uma reflexatildeo

34 DE VOLTA AOS VERSOS 3 E 4

Penso que podemos agora voltar ao verso 23 ao nosso segundo he-mistiacutequio onde aparece a expressatildeo μὴ εἶναι da qual jaacute temos a semacircntica Podemos entatildeo reconstruir ldquoos uacutenicos caminhos de inqueacuterito a pensar satildeo

por um lado a pensar que [ldquoArdquo] e tambeacutem a pensar que οὐκ ἔστι μὴ εἶναι este eacute caminho de persuasatildeo pois verdade acompanha e

por outro lado a pensar que ldquonatildeo eacuterdquo e tambeacutem a pensar que eacute necessariamente um percurso de pensamento contraditoacuterio porque eacute um caminho ldquoimpossiacutevelrdquo (παναπευθέα) pois o pensamento do ldquonatildeo enterdquo natildeo pode ser completado

O οὐκ ἔστι do verso 3 parece ser diferente do οὐκ ἔστιν do verso 5 Enquanto no 5 ele eacute quase que o nome do caminho (talvez uma simplificaccedilatildeo didaacutetica) no 3 parece significar simplesmente ldquonatildeo eacuterdquo em sentido comum

29 Estaacute aqui uma semente do socratismo

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predicativo De fato esse eacute o caminho da persuasatildeo e portanto eacute o caminho do pensamento natildeo-contraditoacuterio Ali a persuasatildeo era impossiacutevel pela con-tradiccedilatildeo aqui eacute possiacutevel pela natildeo-contradiccedilatildeo Sabemos que a expressatildeo μὴ εἶναι eacute a expressatildeo da contradiccedilatildeo suprema de sorte que a natildeo-contradiccedilatildeo eacute a negaccedilatildeo de μὴ εἶναι A traduccedilatildeo de οὐκ ἔστι fica faacutecil embora para a nossa sensibilidade possa parecer algo improacuteprio usar duas vezes οὐκ ἔστι de forma natildeo perfeitamente uniacutevoca a dois versos de distacircncia Logo para o segundo hemistiacutequio do v 3 mantenho esta traduccedilatildeo ldquonatildeo eacuterdquo em parte ambiacutegua para nossas exigecircncias mas que soa perfeitamente harmocircnica com o discurso par-menidiano [] ao pensar que [ldquoArdquo] e que natildeo eacute ldquocontradiccedilatildeordquo (μὴ εἶναι)

Acredito por fim que podemos abordar facilmente o ἔστιν do verso 3 que tanto fez e faz penar os estudiosos de Parmecircnides Aqui de novo a grandeza da questatildeo cosmoloacutegica envolvida ndash a coerecircncia eou a contradito-riedade do real ndash simplesmente torna tatildeo minuacutescula a questatildeo do sujeito de ἔστιν que ela quase desaparece Eu tenho a tendecircncia a pensar que a falta de sujeito seja uma simplificaccedilatildeo didaacutetica30 cuja irregularidade linguiacutestica ajuda na memorizaccedilatildeo31 Todavia afinal tomo partido e entro tambeacutem no quarto grupo daqueles listados por Cordero o sujeito deve ser extraiacutedo do predicado isolado pois ἔστιν produz o sujeito32 De qualquer forma o sentido filosoacutefico eacute preciso haacute um caminho de inqueacuterito ao pensar que eacute aquele que pensa o ldquoeacuterdquo esse mesmo caminho eacute aquele ao pensar que natildeo eacute (e natildeo pode ser33) ldquocon-tradiccedilatildeordquo Depois haacute um outro caminho aquele ao pensar que ldquonatildeo eacuterdquo que eacute o caminho ao pensar que leva necessariamente agrave contradiccedilatildeo O primeiro eacute o 30 Segundo o relato platocircnico no diaacutelogo Parmecircnides Zenatildeo acompanhado de seu mestre foi para as Panateneias com a finalidade de defender a filosofia de seu mestre esclarecendo com seu livro repleto de paradoxos as ideias parmenidianas Isso sugere que o poema natildeo expunha articuladamente a filosofia de Parmecircnides mas que constituiacutesse um proacute-memoacuteria com as ideias em sua forma essencial depois elaboradas nas aulas pessoais (KURFESS 2012)31 Eacute extraordinaacuterio como essa simplificaccedilatildeo didaacutetica continue ativa por um lado distorcendo entretanto por outro mantendo viva a mensagem parmenidiana em todas as escolas de ensino meacutedio onde se estuda filosofia vox populi Parmecircnides eacute o filoacutesofo que disse ldquoO que eacute eacute e o que natildeo eacute natildeo eacuterdquo Por outro lado o estrangeiro de Eleia no Sofista lembra outro verso e natildeo este32 Essa questatildeo natildeo aprofundada aqui natildeo possui relevacircncia filosoacutefica no argumento apresentado pode ter relevacircncia se se considera o tipo de reflexatildeo ou seja se se discute a ldquoexperiecircnciardquo do natildeo-ser e principalmente a experiecircncia concreta de Parmecircnides que talvez esteja ligada a praacuteticas de incubaccedilatildeo Nesse caso a dimensatildeo reflexiva adentra a dimensatildeo oniacuterica a qual possui outra sintaxe e onde um simples ἔστιν vale mais de mil articulaccedilotildees sintaacuteticas Natildeo sabemos com certeza dessas praacuteticas em Eleia contudo esse sentido preacute-sintaacutetico natildeo estaacute descartado inclusive alguns estudiosos entre os quais o proacuteprio Cordero atribuem ao ἔστιν o sentido de um grito como um Eureka Sugestotildees nesse sentido se encontram na minha dissertaccedilatildeo sobre Melisso (GALGANO 2010)33 A interpretaccedilatildeo modal eacute tambeacutem perfeitamente coerente aqui

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caminho que estabelece o discurso coerente (persuasivo) e o segundo natildeo leva a lugar nenhum e deve ser evitado Mas para que se saiba o que deve ser evi-tado eacute preciso que se conheccedila a impossibilidade do segundo caminho A fim de que se possa seguir o primeiro caminho eacute necessaacuterio saber que existe um outro sempre agrave espreita o qual parece oferecer a verdade mas que natildeo oferece uma verdade confiaacutevel que leva necessariamente agrave contradiccedilatildeo de pensamento e de expressatildeo linguiacutestica

4 O MEacuteTODO DA NAtildeO-CONTRADICcedilAtildeO

Parmecircnides provavelmente a partir de sugestotildees pitagoacutericas medita sobre a oposiccedilatildeo ao que existe e assim descobre o ldquonatildeo-serrdquo Descobre que ldquonatildeo serrdquo ou seja negar o ser negar o que haacute eacute de todo impossiacutevel (natildeo eacute possiacutevel completamente) Entende entatildeo que o ldquonatildeo-serrdquo essa impossibilidade eacute algo que a mente pensa julgando que esse pensamento leva por um caminho mas que na verdade ele descobre leva por outro caminho aquele que nunca che-ga a lugar nenhum Esse caminho que leva para lugar nenhum eacute o caminho dos mortais os quais confundem ser e natildeo ser No entanto o saacutebio deve saber distinguir por um lado o caminho do ldquoeacuterdquo que eacute o caminho do discurso natildeo contraditoacuterio e por outro lado o caminho do ldquonatildeo eacuterdquo que eacute o caminho do discurso que eacute tornado vatildeo pela contradiccedilatildeo

Parmecircnides descobre a contradiccedilatildeo (pela meditaccedilatildeo sobre o natildeo-ser) e percebe que ela eacute motivo de descaminho no discurso sobre o mundo Assim finalmente ele anuncia que a contradiccedilatildeo deve ser evitada A esse enunciado noacutes chamamos de princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo que aqui eacute aquele na versatildeo de Parmecircnides (depois a partir de Platatildeo e Aristoacuteteles haveraacute outras versotildees) Parmecircnides trabalha em acircmbito cosmoloacutegico e sua preocupaccedilatildeo ndash como os de seus colegas na eacutepoca ndash eacute com o mundo com a totalidade das coisas com os πάντα de seu proecircmio (128) Nesse acircmbito cosmoloacutegico descobre que haacute um princiacutepio do mundo pelo qual se daacute uma impossibilidade a contradiccedilatildeo A contradiccedilatildeo eacute um princiacutepio porque o que haacute (πάντα) enquanto todo escapa agrave negaccedilatildeo total Eis que a contradiccedilatildeo eacute princiacutepio tanto quanto a natildeo-contra-diccedilatildeo porque eacute a contradiccedilatildeo que permite a natildeo-contradiccedilatildeo Sem a noccedilatildeo de contradiccedilatildeo se anda com sentidos incertos como os mortais

O valor dessa afirmaccedilatildeo eacute historicamente inabalaacutevel porque Parmecircni-des partindo de um discurso sobre o mundo como que visto de fora por um observador (como Anaximandro via o mundo olhando seu pinax - cf ROS-

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SETTI 2013) alcanccedila um discurso que inclui o observador enquanto obser-vador estreando assim antes de tudo um discurso sobre os entes (ontologia) todos os entes incluindo os entes de pensamento (veja-se o famoso fragmento 3 onde se lecirc que pensar e ser satildeo o mesmo) Para ele o saacutebio natildeo eacute mais aquele que sabe soacute sobre as coisas externas ndash como o antigo xamatilde cuja figura indi-vidual se dissolve na mera intermediaccedilatildeo com o divino ndash poreacutem eacute tambeacutem aquele que consegue pensar sobre as coisas externas ou seja aquele que tem um domiacutenio cognitivo sobre os pensamentos de inqueacuterito e portanto sabe so-bre si mesmo Assim o saacutebio deve pensar por proacutepria conta e julgar pelo novo criteacuterio e natildeo pelo habitual discurso (κρῖναι δὲ λόγωι DK 75) ou seja natildeo deve julgar pelo discurso mas julgar o discurso porque agora o discurso enri-quecido de uma lei universal (a lei das αρχάι ἔστιν e οὐκ ἔστιν) possui uma medida de juiacutezo Parmecircnides amplia o mundo acrescentando ao mundo fiacutesico os mundos do pensamento e da linguagem Eis porque as αρχάι de Parmecircni-des sendo duas permanecem duas justamente eliminado uma delas deixando alguns criacuteticos enlouquecidos na discussatildeo sobre o monismo ou o dualismo de acordo com Parmecircnides o mundo eacute um todavia os sentidos nos enganam natildeo na pluralidade das coisas mas no argumento a respeito da pluralidade das coisas e principalmente ndash aspecto que ele discute explicitamente ndash a respeito do devir das coisas Haacute um princiacutepio que natildeo pode ser eliminado a contra-diccedilatildeo o qual eacute um princiacutepio de erro humano quando se elimina quando se desconsidera quando se faz de conta que natildeo existe a contradiccedilatildeo se instaura quando o princiacutepio eacute levado em conta a contradiccedilatildeo pode ser evitada

Eacute uma conceituaccedilatildeo esdruacutexula para noacutes tambeacutem porque temos que ter (a noccedilatildeo de) a contradiccedilatildeo para eliminar a contradiccedilatildeo temos que saber o que eacute contradiccedilatildeo para que possamos perceber quando o discurso eacute con-traditoacuterio Esses conceitos satildeo misteriosos ateacute agora e satildeo estranhas criaturas de nossas mentes Por exemplo a noccedilatildeo de ldquoimpossiacutevelrdquo obviamente (isto eacute para a nossa pragmaacutetica) natildeo se refere a nada de concreto no entanto temos essa noccedilatildeo e a usamos com o maacuteximo proveito outro exemplo a noccedilatildeo de ldquoinfinitordquo noccedilatildeo que natildeo se refere a algo pragmaticamente concreto mas que usamos igualmente com maacuteximo proveito O mesmo deve ser dito da noccedilatildeo de contradiccedilatildeo ou da noccedilatildeo de nada absoluto que usamos pragmaticamente com maior ou menor proveito

Parmecircnides encontra esse caminho e o expotildee Eacute um caminho assom-broso anti-intuitivo mas incontestaacutevel Dessa forma natildeo eacute de estranhar se a soluccedilatildeo platocircnica eacute a eliminaccedilatildeo fiacutesica da noccedilatildeo de nada absoluto (o par-

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riciacutedio) com sucessivo ldquoadeusrdquo34 achando de tecirc-lo ultrapassado Mas o nada absoluto enquanto noccedilatildeo contraditoacuteria permanece Assim como permane-ce a explicaccedilatildeo defeituosa do devir o qual assim como o conhecemos uma passagem do nada ao ser no nascimento e do ser ao nada no perecimento estaacute mal explicado Daqui por diante os comentaacuterios filosoacuteficos possiacuteveis satildeo inuacutemeros por conseguinte paro meu estudo neste ponto e proponho a versatildeo do fragmento 2 segundo a conceituaccedilatildeo apresentada ateacute aqui alterando de pouco a excelente versatildeo baacutesica de Cavalcante de Souza

Pois bem eu te direi e tu recebe a palavra que ouviste

os uacutenicos caminhos de inqueacuterito que satildeo a pensar

o primeiro que eacute e portanto que natildeo eacute (o caminho da) contradiccedilatildeo

de persuasatildeo eacute o caminho (pois agrave verdade acompanha)

o outro que natildeo eacute e portanto que eacute necessariamente (o caminho da) contradiccedilatildeo

este entatildeo eu te digo eacute atalho de todo incriacutevel

pois nem conhecerias o que natildeo eacute (pois natildeo eacute exequiacutevel)

nem o dirias

GALGANO N S Non-being in Parmenides of Elea Transformaccedilatildeo Mariacutelia v 41 n 2 p 9-36 AbrJun 2018

ABSTRACT In fragment DK 28 B 2 of his poem Parmenides presents his method for distinguishing true persuasion from the lack of true persuasion His famous proposal of these two ways of thinking form a complex statement of a system that intends to guarantee the veracity of statements in order to obtain reliable discourse the only discourse capable of true persuasion The present paper shows that the central role in Parmenidian argumentation is attributed to non-being a notion derived from a reflection on the impossibility of the negation of being Thus the whole fragment is interpreted in terms of this central notion We show that Parmenides discovered the impossibility of negation which we now call lsquocontradictionrsquo and that he articulated the means for avoiding contradiction in thought and discourse a rule which today we call the principle of non-contradiction The study presented here is a detailed investigation of the notion of non-being in the DK 28 B 2 fragment and includes a new translation of it

KEYWORDS Parmenides Non-being Non-contradiction Eleatism Parricide

34 Platatildeo Soph 258e7-259a1 ἡμεῖς γὰρ περὶ μὲν ἐναντίου τινὸς αὐτῷ χαίρειν πάλαι λέγομεν εἴτrsquo ἔστιν εἴτε μή λόγον ἔχον ἢ καὶ παντάπασιν ἄλογον

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que o rodeia depois do planeta depois do universo (sensiacutevel e inteligiacutevel atual e possiacutevel) e depois do mundo como um todo enfim do todo

O problema principal dessa meditaccedilatildeo eacute exatamente pensar se o sujeito pertence ou natildeo ao todo Quando se pensa a negaccedilatildeo do todo permanece ainda o sujeito pensante que pensa o todo como se o olhasse de um ponto virtual externo a ele E quando se tenta incluir o sujeito pensante de duas uma 1) ou o sujeito acreditando pensar a si proacuteprio dentro do todo reapa-rece externamente22 ou 2) o sujeito cognitivo desaparece e com ele qualquer noccedilatildeo cognitiva de ldquonatildeo-serrdquo Podemos assegurar claramente que o processo de pensar o τό μὴ ἐὸν natildeo termina seja porque eacute impossiacutevel incluir o sujeito no todo pois ele sempre reaparece a cada tentativa seja porque o processo quan-do inclui o sujeito no todo interrompe-se sendo assim impossiacutevel completar a negaccedilatildeo do todo Natildeo podemos saber se o modelo meditativo de Parmecircnides foi exatamente este mas natildeo me parece haver nada em desabono23

Entretanto qual eacute a importacircncia de natildeo se poder pensar a negaccedilatildeo de tudo Seguindo o argumento parmenidiano o caminho (ἀταρπόν) cognitivo que pensa τό μὴ ἐὸν natildeo pode ser concluiacutedo Ora ἀταρπόν eacute um sinocircnimo que Parmecircnides usa para o ὁδός do verso 22 (ὁδοὶ) isso quer dizer que o segundo caminho de inqueacuterito pode ser iniciado mas natildeo pode ser levado a termo Poreacutem se natildeo pode ser levado a termo por que eacute identificado como caminho Por que natildeo eacute excluiacutedo jaacute de iniacutecio quando a deusa ao inveacutes de anunciar os uacutenicos (moucircnai plural) caminhos natildeo anuncia um uacutenico cami-nho A resposta a essa pergunta torna clara a estranha afirmaccedilatildeo de que o caminho do pensar do segundo hemistiacutequio do verso 5 eacute necessaacuterio que per-maneccedila natildeo ser (χρεών ἐστι μὴ εἶναι) Parmecircnides assevera que embora seja um caminho que jamais pode ser completado ele ao mesmo tempo natildeo pode ser eliminado continua a pertencer aos (dois) uacutenicos caminhos de inqueacuterito ele eacute necessaacuterio

22 Se penso na aniquilaccedilatildeo de tudo incluindo a mim mesmo terei que pensar a mim mesmo aniquilado contudo esse pensar gerando esse novo pensamento gera um novo sujeito cognitivo pensante se aniquilo esse novo pensamento terei um novo sujeito cognitivo que pensa essa nova aniquilaccedilatildeo e assim por diante ad infinitum23 Natildeo quero garantir que Parmecircnides estreie uma filosofia do sujeito embora isso natildeo possa ser excluiacutedo a priori jaacute que os embriotildees de uma tal filosofia apareceratildeo em breve com Soacutecrates Acredito que se deve pensar mais no sujeito como o atleta campeatildeo das Olimpiacuteadas ou seja aquele capaz de cumprir (ou natildeo) certas proezas como fica extraordinariamente evidenciado no paradoxo de Zenatildeo cuja metaacutefora da filosofia (e do filoacutesofo) como tartaruga mostra que o pensar filosoacutefico eacute capaz de proezas maiores do que as proezas do proacuteprio Aquiles tidas como insuperaacuteveis pela cultura da eacutepoca

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Vamos de novo reconstruir essa parte do argumento com esse novo elemento os uacutenicos caminhos de inqueacuteritos satildeo

1) por um lado o caminho ao pensar que [versos 3 e 4] e

2) por outro lado o caminho ao pensar que [ldquoCrdquo (verso 5 primeiro hemistiacute-quio)] e que eacute necessaacuterio (que seja) natildeo-ser

De fato esse segundo caminho (ἀταρπόν) eacute inviaacutevel porque ldquonatildeo se consegue levar a cabo a reflexatildeordquo (γνοίης) quando se pensa o τό μὴ ἐὸν Ou seja fica muito clara a equaccedilatildeo entre o segundo caminho (v 5) e a reflexatildeo sobre o natildeo ser (τό μὴ ἐὸν) Finalmente o segundo hemistiacutequio do v 5 diz que esse eacute o caminho ao pensar que eacute necessaacuterio que seja μὴ εἶναι o qual agora sabemos eacute o caminho que tenta pensar o natildeo-ser (τό μὴ ἐὸν) Sabe-mos agora o que Parmecircnides chama de μὴ εἶναι Para Parmecircnides μὴ εἶναι eacute a estrutura do pensamento quando tenta inexoraacutevel e malogradamente pensar o natildeo-ser (τό μὴ ἐὸν)

Temos portanto a semacircntica de μὴ εἶναι e sabemos que significa a impossibilidade de pensar o natildeo-ser Com esse dado podemos reconstruir o resto do argumento mas primeiro vamos abordar a questatildeo do οὔτε φράσαις A premissa principal eacute o pano de fundo da pesquisa parmenidiana a qual estaacute em busca do discurso confiaacutevel como a deusa diz claramente no encerramen-to do fragmento 8 (talvez ecoando simetricamente alguma parte perdida do poema)24 Pensar o τό μὴ ἐὸν natildeo eacute possiacutevel logo ele eacute indiziacutevel Ora isso significa nem mais nem menos que dizer que o que eacute impossiacutevel eacute contra o sentido do dizer Eacute indiziacutevel natildeo porque natildeo se sabe do que se trata como querem muitos autores que fazem a leitura meramente epistemoloacutegica25 Eacute indiziacutevel porque dizer o ldquonatildeo-serrdquo significa fazer uma promessa que jamais se cumpriraacute ao se dizer ldquonatildeo-serrdquo parece que a expressatildeo aponta algo possiacutevel ou seja a negaccedilatildeo do ser e de fato quem estaacute desavisado assim acredita Mas a expressatildeo ldquonatildeo-serrdquo quer referir-se a algo que jamais seraacute cumprido que o

24 850-2 ldquoἐν τῶι σοι παύω πιστὸν λόγον ἠδὲ νόημα ἀμφὶς ἀληθείης δόξας δrsquo ἀπὸ τοῦδε βροτείας μάνθανε κόσμον ἐμῶν ἐπέων ἀπατηλὸν ἀκούωνrdquo ldquoNeste ponto encerro fidedigna palavra e pensamento sobre a verdade e opiniotildees mortais a partir daqui aprende a ordem enganadora de minhas palavras ouvindordquo (CAVALCANTE DE SOUZA 1978)25 Trata-se da leitura epistemoloacutegico-predicamental se natildeo sei a cor de um objeto (porque a cor natildeo eacute natildeo estaacute acessiacutevel ao meu conhecimento) natildeo posso falar da cor do objeto

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O natildeo-ser em Parmecircnides de Eleia Artigos Articles

ser seja negado Esta eacute exatamente a noccedilatildeo expressa pelas palavras de Platatildeo jamais prevaleceraacute que natildeo entes sejam26

A expressatildeo μὴ εἶναι representa essa impossibilidade de pensamento e portanto eacute um dizer impossiacutevel o que se opotildee radicalmente agrave proacutepria noccedilatildeo de dizer a qualquer significar enquanto discurso confiaacutevel do mundo e da sua ordem Surge a pergunta mas se natildeo se pode dizer μὴ εἶναι se isso eacute impossiacute-vel natildeo haacute uma flagrante contradiccedilatildeo na deusa jaacute que ela proacutepria diz e cons-troacutei um argumento sobre o dizer μὴ εἶναι A objeccedilatildeo seria vaacutelida se a deusa dissesse o que eacute impossiacutevel de dizer ou seja se ela praticasse a impossibilidade Todavia a deusa natildeo diz o impossiacutevel a deusa aponta para o impossiacutevel indica o impossiacutevel pois ela diz que existem a ldquonoccedilatildeo de impossibilidade do pensarrdquo e a ldquonoccedilatildeo de impossibilidade do dizerrdquo Em outras palavras a deusa diz qual eacute o limite do pensar e qual eacute o limite do dizer Aleacutem desse limite o pensamento natildeo pode ir porque eacute impossiacutevel e tambeacutem o dizer natildeo pode ir porque eacute im-possiacutevel A impossiacutevel regiatildeo para aleacutem desse limite natildeo eacute admitida pelo dizer eacute contra o dizer eacute contraditoacuteria

A expressatildeo μὴ εἶναι em Parmecircnides eacute exatamente a palavra que ex-pressa o processo mental que noacutes chamamos contradiccedilatildeo e que ele primeiro assim chamou (οὔτε φράσαις natildeo diziacutevel) Eacute estranho que nenhum criacutetico te-nha percebido isso claramente Todos afirmam que o princiacutepio de natildeo contra-diccedilatildeo estaacute implicado em Parmecircnides assim como os outros princiacutepios loacutegicos pois os argumentos presentes no poema satildeo desenvolvidos segundo a natildeo con-tradiccedilatildeo poreacutem o princiacutepio natildeo eacute enunciado Alguns como Cordero veem justamente explicitado o princiacutepio do terceiro excluiacutedo (816 ἔστιν ἢ οὐκ ἔστιν) mas ningueacutem quis ver claramente que natildeo soacute a noccedilatildeo como tambeacutem a proacutepria palavra ldquocontradiccedilatildeordquo (οὔτε φράσαις natildeo diziacutevel contra o diziacutevel contra a dicccedilatildeo) estaacute explicitada no poema Penso que a razatildeo fundamental para que acontecesse esse lapsus tenha que ser procurada na grande atenccedilatildeo dada ao ldquoserrdquo e na pouca dada ao ldquonatildeo-serrdquo Como observaremos mais adiante por causa desse lapsus eu penso que natildeo se conseguiu entender plenamente a estrutura do fragmento 2 o qual simplesmente natildeo apresenta um silogismo disjuntivo nem nenhuma contradiccedilatildeo entre o caminho do ldquoserrdquo e o caminho do ldquonatildeo-serrdquo Parmecircnides assevera justamente que a expressatildeo ldquonatildeo-serrdquo eacute contraditoacuteria o ldquonatildeo-serrdquo natildeo pode ser dito porque ldquonatildeo-serrdquo eacute contraditoacute-

26 As duas expressotildees tecircm inversatildeo de predicado e negaccedilatildeo no entanto a noccedilatildeo permanece a mesma que os entes natildeo sejam (perecimento no fr 8) e que os natildeo entes sejam (nascimento no fr 8) A noccedilatildeo eacute o tracircnsito entre ser e natildeo ser

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rio e a expressatildeo ldquonatildeo-serrdquo indica tatildeo somente uma impossibilidade concreta aquela de que se realize o impossiacutevel

Vamos voltar ao nosso argumento e agrave questatildeo que deixamos em suspenso por que eacute necessaacuterio que μὴ εἶναι seja Sabemos que os versos 7 e 8 relatam um processo malogrado de pensar o natildeo ente (τό μὴ ἐὸν) Uso agora a palavra ente porque se justifica uma diferenciaccedilatildeo embora tanto ldquoenterdquo quanto ldquoserrdquo indiquem expressotildees gerais e natildeo individuais ldquoEnterdquo vem por conseguinte a significar o ente concreto aquele que eacute Parmecircnides sustenta que natildeo se pode pensar e dizer τό μὴ ἐὸν o ldquonatildeo enterdquo Esse processo recebe o nome de μὴ εἶναι ldquonatildeo-serrdquo a esse processo noacutes chamamos contradiccedilatildeo27 Entatildeo a indicaccedilatildeo eacute esta haacute um caminho ao pensar que pensa μὴ εἶναι (a contradiccedilatildeo) e eacute necessaacuterio que assim seja porque (vou repetir trecircs vezes de forma diferente28 para significar a mesma coisa)

1) se natildeo houvesse a contradiccedilatildeo

2) se natildeo se tem a noccedilatildeo de contradiccedilatildeo

3) se natildeo se sabe o que eacute contradiccedilatildeo

cai-se no discurso contraditoacuterio o que impede o inqueacuterito confiaacutevel Eacute ne-cessaacuterio saber que μὴ εἶναι (o processo de contradiccedilatildeo) eacute um caminho a ser evitado porque cria pensamentos e discursos contraditoacuterios

Vejamos de novo nosso fragmento com os elementos esclarecidos ateacute aqui

os uacutenicos caminhos de inqueacuterito a pensar satildeo

por um lado que [ versos 3 e 4]

e por outro lado que οὐκ ἔστιν e que eacute necessaacuterio que seja a contradiccedilatildeo (μὴ εἶναι)

a qual eacute um caminho natildeo criacutevel

pois eacute impossiacutevel pensar e dizer o natildeo ente (τό μὴ ἐὸν)

27 Mesmo para noacutes a contradiccedilatildeo eacute um processo porque indica a posiccedilatildeo de algo em contraposiccedilatildeo com mais algo isso significa que esses dois algos tecircm que ser relacionados para que haja contradiccedilatildeo do contraacuterio algo e mais algo podem conviver sem contraditoriedade Contudo esse assunto estaacute fora de tema e requer muitas outras providecircncias para o bom discernimento28 Repito buscando clareza pois nossas construccedilotildees comuns de linguagem nesses assuntos costumam ldquopatinarrdquo

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O natildeo-ser em Parmecircnides de Eleia Artigos Articles

Penso que o espaccedilo conceitual deixado por οὐκ ἔστιν agora se pre-encha quase que por si haacute um caminho de inqueacuterito ao pensar que ldquonatildeo eacuterdquo e que eacute necessaacuterio que se considere contraditoacuterio porque eacute caminho que natildeo leva a lugar nenhum

A expressatildeo οὐκ ἔστιν eacute a negaccedilatildeo da terceira pessoa do indicativo de εἰμί a expressatildeo em si natildeo tem nada de especial significa tatildeo somente ldquonatildeo eacuterdquo restando em aberto o problema da ausecircncia de sujeito Mas agora sabemos o argumento complexo que estaacute na raiz da expressatildeo e a meu ver natildeo faz muito sentido a questatildeo de buscar um sujeito ou um objeto para definir se eacute usado de forma transitiva ou intransitiva se expressa existecircncia ou predicaccedilatildeo e as muitas combinaccedilotildees que podem ser montadas a partir da equivocidade do uso de εἰμί No entanto o acircmbito semacircntico foi evidenciado e estaacute claro e aleacutem do mais tem o testemunho de Platatildeo a confirmar o campo semacircntico da negaccedilatildeo de εἰμί nas vaacuterias formas estaacute relacionado a uma reflexatildeo sobre a impossibili-dade dessa negaccedilatildeo Obviamente para dizer que algo eacute impossiacutevel de alguma forma tenho que indicar essa impossibilidade com alguma expressatildeo Assim se digo ldquotriacircngulo quadradordquo aponto para uma impossibilidade jaacute que por defi-niccedilatildeo a essecircncia do triacircngulo exclui a essecircncia do quadrado logo a expressatildeo ldquotriacircngulo quadradordquo natildeo significa aquilo que parece prometer ou seja natildeo significa uma figura geomeacutetrica especial que eacute ao mesmo tempo triacircngulo e quadrado dizer ldquotriacircngulo quadradordquo eacute dizer algo ldquoindiziacutevelrdquo ldquonatildeo diziacutevelrdquo (na medida em que o diziacutevel quer expressar sentido) ldquoque nega o diziacutevelrdquo ldquoque eacute contra o diziacutevelrdquo que eacute contraditoacuterio

A semacircntica do ldquonatildeo serrdquo eacute fortiacutessima e estaacute muito aleacutem das sutilezas gramaticais morfoloacutegicas e sintaacuteticas e estas simplesmente natildeo afetam aquela O assunto tratado eacute tatildeo forte que ultrapassa qualquer forma linguiacutestica a pon-to de que esse assunto a ordem do ser e do natildeo-ser no mundo eacute responsaacutevel pela determinaccedilatildeo da lei da linguagem e natildeo vice-versa como bem entendeu Platatildeo no Sofista onde a teoria da predicaccedilatildeo surge em funccedilatildeo de uma refle-xatildeo sobre a ordem das leis baacutesicas do mundo Com efeito o approach linguiacutes-tico ao poema pode proceder ateacute certo ponto dali em diante o poema eacute fran-camente filosoacutefico e a chave linguiacutestica natildeo eacute suficiente para o acesso Isso quer dizer que com a chave linguiacutestica natildeo se abre a porta da questatildeo filosoacutefica do poema Se a questatildeo eacute que ldquojamais o natildeo ser pode se tornar serrdquo como (apro-ximadamente com essas palavras) argumenta Platatildeo citando Parmecircnides en-tatildeo diante da semacircntica que οὐκ ἔστιν apresenta discutir o sujeito de οὐκ ἔστιν se torna tarefa menor Considerada a desproporccedilatildeo entre o conteuacutedo (a

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semacircntica) e o recipiente (a palavra) entre o significado e o significante natildeo eacute impossiacutevel que οὐκ ἔστιν seja tatildeo somente uma expressatildeo simplificada quem sabe ateacute mesmo uma simplificaccedilatildeo didaacutetica pois o conteuacutedo do conceito estaacute expresso e justificado depois nos versos 7 e 8

O caminho de pensar que natildeo eacute e de pensar que eacute necessaacuterio natildeo ser eacute o caminho que afirma a necessidade de que a noccedilatildeo de natildeo-ser permaneccedila estaacutevel A contradiccedilatildeo tem que permanecer e ser identificada como tal pois eacute a uacutenica maneira de evitar que ela entre no pensamento e no discurso Se o ldquonatildeo-serrdquo natildeo for considerado contraditoacuterio a contradiccedilatildeo invade e domina o caminho de inqueacuterito o qual deixa de possuir πίστις ἀληθής (130) Assim eacute preciso que esse caminho seja identificado como μὴ εἶναι por um lado o ldquonatildeo-serrdquo eacute incognosciacutevel (οὔτε γὰρ ἂν γνοίης) mas por outro lado eacute neces-saacuterio que se saiba que ele eacute incognosciacutevel Saber do incognosciacutevel garante o conhecimento29 pois de fato ao natildeo se identificar o ldquonatildeo-serrdquo cai-se no risco de pensar que ldquoserrdquo e ldquonatildeo-serrdquo satildeo o mesmo e natildeo o mesmo como Parmecircni-des afirma em DK 6 5-6 Necessariamente o caminho que pensa οὐκ ἔστιν leva ao processo de contradiccedilatildeo (μὴ εἶναι) e a natildeo conclusatildeo do caminho (ἀνυστόν) natildeo eacute evidente na expressatildeo pelo contraacuterio τό μὴ ἐὸν parece uma negaccedilatildeo comum como qualquer outra poreacutem natildeo o eacute por isso eacute um saber destinado ao saacutebio e natildeo aos mortais porque eacute um saber fruto de uma reflexatildeo

34 DE VOLTA AOS VERSOS 3 E 4

Penso que podemos agora voltar ao verso 23 ao nosso segundo he-mistiacutequio onde aparece a expressatildeo μὴ εἶναι da qual jaacute temos a semacircntica Podemos entatildeo reconstruir ldquoos uacutenicos caminhos de inqueacuterito a pensar satildeo

por um lado a pensar que [ldquoArdquo] e tambeacutem a pensar que οὐκ ἔστι μὴ εἶναι este eacute caminho de persuasatildeo pois verdade acompanha e

por outro lado a pensar que ldquonatildeo eacuterdquo e tambeacutem a pensar que eacute necessariamente um percurso de pensamento contraditoacuterio porque eacute um caminho ldquoimpossiacutevelrdquo (παναπευθέα) pois o pensamento do ldquonatildeo enterdquo natildeo pode ser completado

O οὐκ ἔστι do verso 3 parece ser diferente do οὐκ ἔστιν do verso 5 Enquanto no 5 ele eacute quase que o nome do caminho (talvez uma simplificaccedilatildeo didaacutetica) no 3 parece significar simplesmente ldquonatildeo eacuterdquo em sentido comum

29 Estaacute aqui uma semente do socratismo

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O natildeo-ser em Parmecircnides de Eleia Artigos Articles

predicativo De fato esse eacute o caminho da persuasatildeo e portanto eacute o caminho do pensamento natildeo-contraditoacuterio Ali a persuasatildeo era impossiacutevel pela con-tradiccedilatildeo aqui eacute possiacutevel pela natildeo-contradiccedilatildeo Sabemos que a expressatildeo μὴ εἶναι eacute a expressatildeo da contradiccedilatildeo suprema de sorte que a natildeo-contradiccedilatildeo eacute a negaccedilatildeo de μὴ εἶναι A traduccedilatildeo de οὐκ ἔστι fica faacutecil embora para a nossa sensibilidade possa parecer algo improacuteprio usar duas vezes οὐκ ἔστι de forma natildeo perfeitamente uniacutevoca a dois versos de distacircncia Logo para o segundo hemistiacutequio do v 3 mantenho esta traduccedilatildeo ldquonatildeo eacuterdquo em parte ambiacutegua para nossas exigecircncias mas que soa perfeitamente harmocircnica com o discurso par-menidiano [] ao pensar que [ldquoArdquo] e que natildeo eacute ldquocontradiccedilatildeordquo (μὴ εἶναι)

Acredito por fim que podemos abordar facilmente o ἔστιν do verso 3 que tanto fez e faz penar os estudiosos de Parmecircnides Aqui de novo a grandeza da questatildeo cosmoloacutegica envolvida ndash a coerecircncia eou a contradito-riedade do real ndash simplesmente torna tatildeo minuacutescula a questatildeo do sujeito de ἔστιν que ela quase desaparece Eu tenho a tendecircncia a pensar que a falta de sujeito seja uma simplificaccedilatildeo didaacutetica30 cuja irregularidade linguiacutestica ajuda na memorizaccedilatildeo31 Todavia afinal tomo partido e entro tambeacutem no quarto grupo daqueles listados por Cordero o sujeito deve ser extraiacutedo do predicado isolado pois ἔστιν produz o sujeito32 De qualquer forma o sentido filosoacutefico eacute preciso haacute um caminho de inqueacuterito ao pensar que eacute aquele que pensa o ldquoeacuterdquo esse mesmo caminho eacute aquele ao pensar que natildeo eacute (e natildeo pode ser33) ldquocon-tradiccedilatildeordquo Depois haacute um outro caminho aquele ao pensar que ldquonatildeo eacuterdquo que eacute o caminho ao pensar que leva necessariamente agrave contradiccedilatildeo O primeiro eacute o 30 Segundo o relato platocircnico no diaacutelogo Parmecircnides Zenatildeo acompanhado de seu mestre foi para as Panateneias com a finalidade de defender a filosofia de seu mestre esclarecendo com seu livro repleto de paradoxos as ideias parmenidianas Isso sugere que o poema natildeo expunha articuladamente a filosofia de Parmecircnides mas que constituiacutesse um proacute-memoacuteria com as ideias em sua forma essencial depois elaboradas nas aulas pessoais (KURFESS 2012)31 Eacute extraordinaacuterio como essa simplificaccedilatildeo didaacutetica continue ativa por um lado distorcendo entretanto por outro mantendo viva a mensagem parmenidiana em todas as escolas de ensino meacutedio onde se estuda filosofia vox populi Parmecircnides eacute o filoacutesofo que disse ldquoO que eacute eacute e o que natildeo eacute natildeo eacuterdquo Por outro lado o estrangeiro de Eleia no Sofista lembra outro verso e natildeo este32 Essa questatildeo natildeo aprofundada aqui natildeo possui relevacircncia filosoacutefica no argumento apresentado pode ter relevacircncia se se considera o tipo de reflexatildeo ou seja se se discute a ldquoexperiecircnciardquo do natildeo-ser e principalmente a experiecircncia concreta de Parmecircnides que talvez esteja ligada a praacuteticas de incubaccedilatildeo Nesse caso a dimensatildeo reflexiva adentra a dimensatildeo oniacuterica a qual possui outra sintaxe e onde um simples ἔστιν vale mais de mil articulaccedilotildees sintaacuteticas Natildeo sabemos com certeza dessas praacuteticas em Eleia contudo esse sentido preacute-sintaacutetico natildeo estaacute descartado inclusive alguns estudiosos entre os quais o proacuteprio Cordero atribuem ao ἔστιν o sentido de um grito como um Eureka Sugestotildees nesse sentido se encontram na minha dissertaccedilatildeo sobre Melisso (GALGANO 2010)33 A interpretaccedilatildeo modal eacute tambeacutem perfeitamente coerente aqui

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caminho que estabelece o discurso coerente (persuasivo) e o segundo natildeo leva a lugar nenhum e deve ser evitado Mas para que se saiba o que deve ser evi-tado eacute preciso que se conheccedila a impossibilidade do segundo caminho A fim de que se possa seguir o primeiro caminho eacute necessaacuterio saber que existe um outro sempre agrave espreita o qual parece oferecer a verdade mas que natildeo oferece uma verdade confiaacutevel que leva necessariamente agrave contradiccedilatildeo de pensamento e de expressatildeo linguiacutestica

4 O MEacuteTODO DA NAtildeO-CONTRADICcedilAtildeO

Parmecircnides provavelmente a partir de sugestotildees pitagoacutericas medita sobre a oposiccedilatildeo ao que existe e assim descobre o ldquonatildeo-serrdquo Descobre que ldquonatildeo serrdquo ou seja negar o ser negar o que haacute eacute de todo impossiacutevel (natildeo eacute possiacutevel completamente) Entende entatildeo que o ldquonatildeo-serrdquo essa impossibilidade eacute algo que a mente pensa julgando que esse pensamento leva por um caminho mas que na verdade ele descobre leva por outro caminho aquele que nunca che-ga a lugar nenhum Esse caminho que leva para lugar nenhum eacute o caminho dos mortais os quais confundem ser e natildeo ser No entanto o saacutebio deve saber distinguir por um lado o caminho do ldquoeacuterdquo que eacute o caminho do discurso natildeo contraditoacuterio e por outro lado o caminho do ldquonatildeo eacuterdquo que eacute o caminho do discurso que eacute tornado vatildeo pela contradiccedilatildeo

Parmecircnides descobre a contradiccedilatildeo (pela meditaccedilatildeo sobre o natildeo-ser) e percebe que ela eacute motivo de descaminho no discurso sobre o mundo Assim finalmente ele anuncia que a contradiccedilatildeo deve ser evitada A esse enunciado noacutes chamamos de princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo que aqui eacute aquele na versatildeo de Parmecircnides (depois a partir de Platatildeo e Aristoacuteteles haveraacute outras versotildees) Parmecircnides trabalha em acircmbito cosmoloacutegico e sua preocupaccedilatildeo ndash como os de seus colegas na eacutepoca ndash eacute com o mundo com a totalidade das coisas com os πάντα de seu proecircmio (128) Nesse acircmbito cosmoloacutegico descobre que haacute um princiacutepio do mundo pelo qual se daacute uma impossibilidade a contradiccedilatildeo A contradiccedilatildeo eacute um princiacutepio porque o que haacute (πάντα) enquanto todo escapa agrave negaccedilatildeo total Eis que a contradiccedilatildeo eacute princiacutepio tanto quanto a natildeo-contra-diccedilatildeo porque eacute a contradiccedilatildeo que permite a natildeo-contradiccedilatildeo Sem a noccedilatildeo de contradiccedilatildeo se anda com sentidos incertos como os mortais

O valor dessa afirmaccedilatildeo eacute historicamente inabalaacutevel porque Parmecircni-des partindo de um discurso sobre o mundo como que visto de fora por um observador (como Anaximandro via o mundo olhando seu pinax - cf ROS-

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O natildeo-ser em Parmecircnides de Eleia Artigos Articles

SETTI 2013) alcanccedila um discurso que inclui o observador enquanto obser-vador estreando assim antes de tudo um discurso sobre os entes (ontologia) todos os entes incluindo os entes de pensamento (veja-se o famoso fragmento 3 onde se lecirc que pensar e ser satildeo o mesmo) Para ele o saacutebio natildeo eacute mais aquele que sabe soacute sobre as coisas externas ndash como o antigo xamatilde cuja figura indi-vidual se dissolve na mera intermediaccedilatildeo com o divino ndash poreacutem eacute tambeacutem aquele que consegue pensar sobre as coisas externas ou seja aquele que tem um domiacutenio cognitivo sobre os pensamentos de inqueacuterito e portanto sabe so-bre si mesmo Assim o saacutebio deve pensar por proacutepria conta e julgar pelo novo criteacuterio e natildeo pelo habitual discurso (κρῖναι δὲ λόγωι DK 75) ou seja natildeo deve julgar pelo discurso mas julgar o discurso porque agora o discurso enri-quecido de uma lei universal (a lei das αρχάι ἔστιν e οὐκ ἔστιν) possui uma medida de juiacutezo Parmecircnides amplia o mundo acrescentando ao mundo fiacutesico os mundos do pensamento e da linguagem Eis porque as αρχάι de Parmecircni-des sendo duas permanecem duas justamente eliminado uma delas deixando alguns criacuteticos enlouquecidos na discussatildeo sobre o monismo ou o dualismo de acordo com Parmecircnides o mundo eacute um todavia os sentidos nos enganam natildeo na pluralidade das coisas mas no argumento a respeito da pluralidade das coisas e principalmente ndash aspecto que ele discute explicitamente ndash a respeito do devir das coisas Haacute um princiacutepio que natildeo pode ser eliminado a contra-diccedilatildeo o qual eacute um princiacutepio de erro humano quando se elimina quando se desconsidera quando se faz de conta que natildeo existe a contradiccedilatildeo se instaura quando o princiacutepio eacute levado em conta a contradiccedilatildeo pode ser evitada

Eacute uma conceituaccedilatildeo esdruacutexula para noacutes tambeacutem porque temos que ter (a noccedilatildeo de) a contradiccedilatildeo para eliminar a contradiccedilatildeo temos que saber o que eacute contradiccedilatildeo para que possamos perceber quando o discurso eacute con-traditoacuterio Esses conceitos satildeo misteriosos ateacute agora e satildeo estranhas criaturas de nossas mentes Por exemplo a noccedilatildeo de ldquoimpossiacutevelrdquo obviamente (isto eacute para a nossa pragmaacutetica) natildeo se refere a nada de concreto no entanto temos essa noccedilatildeo e a usamos com o maacuteximo proveito outro exemplo a noccedilatildeo de ldquoinfinitordquo noccedilatildeo que natildeo se refere a algo pragmaticamente concreto mas que usamos igualmente com maacuteximo proveito O mesmo deve ser dito da noccedilatildeo de contradiccedilatildeo ou da noccedilatildeo de nada absoluto que usamos pragmaticamente com maior ou menor proveito

Parmecircnides encontra esse caminho e o expotildee Eacute um caminho assom-broso anti-intuitivo mas incontestaacutevel Dessa forma natildeo eacute de estranhar se a soluccedilatildeo platocircnica eacute a eliminaccedilatildeo fiacutesica da noccedilatildeo de nada absoluto (o par-

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riciacutedio) com sucessivo ldquoadeusrdquo34 achando de tecirc-lo ultrapassado Mas o nada absoluto enquanto noccedilatildeo contraditoacuteria permanece Assim como permane-ce a explicaccedilatildeo defeituosa do devir o qual assim como o conhecemos uma passagem do nada ao ser no nascimento e do ser ao nada no perecimento estaacute mal explicado Daqui por diante os comentaacuterios filosoacuteficos possiacuteveis satildeo inuacutemeros por conseguinte paro meu estudo neste ponto e proponho a versatildeo do fragmento 2 segundo a conceituaccedilatildeo apresentada ateacute aqui alterando de pouco a excelente versatildeo baacutesica de Cavalcante de Souza

Pois bem eu te direi e tu recebe a palavra que ouviste

os uacutenicos caminhos de inqueacuterito que satildeo a pensar

o primeiro que eacute e portanto que natildeo eacute (o caminho da) contradiccedilatildeo

de persuasatildeo eacute o caminho (pois agrave verdade acompanha)

o outro que natildeo eacute e portanto que eacute necessariamente (o caminho da) contradiccedilatildeo

este entatildeo eu te digo eacute atalho de todo incriacutevel

pois nem conhecerias o que natildeo eacute (pois natildeo eacute exequiacutevel)

nem o dirias

GALGANO N S Non-being in Parmenides of Elea Transformaccedilatildeo Mariacutelia v 41 n 2 p 9-36 AbrJun 2018

ABSTRACT In fragment DK 28 B 2 of his poem Parmenides presents his method for distinguishing true persuasion from the lack of true persuasion His famous proposal of these two ways of thinking form a complex statement of a system that intends to guarantee the veracity of statements in order to obtain reliable discourse the only discourse capable of true persuasion The present paper shows that the central role in Parmenidian argumentation is attributed to non-being a notion derived from a reflection on the impossibility of the negation of being Thus the whole fragment is interpreted in terms of this central notion We show that Parmenides discovered the impossibility of negation which we now call lsquocontradictionrsquo and that he articulated the means for avoiding contradiction in thought and discourse a rule which today we call the principle of non-contradiction The study presented here is a detailed investigation of the notion of non-being in the DK 28 B 2 fragment and includes a new translation of it

KEYWORDS Parmenides Non-being Non-contradiction Eleatism Parricide

34 Platatildeo Soph 258e7-259a1 ἡμεῖς γὰρ περὶ μὲν ἐναντίου τινὸς αὐτῷ χαίρειν πάλαι λέγομεν εἴτrsquo ἔστιν εἴτε μή λόγον ἔχον ἢ καὶ παντάπασιν ἄλογον

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O natildeo-ser em Parmecircnides de Eleia Artigos Articles

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Page 18: O NÃO SER EM PARMÊNIDES ELEIA - SciELO · Trans/Form/Ação, Marília, v. 41, n. 2, p. 9-36, Abr./Jun., 2018 9 O não-ser em Parmênides de Eleia Artigos / Articles O NÃO-SER EM

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Vamos de novo reconstruir essa parte do argumento com esse novo elemento os uacutenicos caminhos de inqueacuteritos satildeo

1) por um lado o caminho ao pensar que [versos 3 e 4] e

2) por outro lado o caminho ao pensar que [ldquoCrdquo (verso 5 primeiro hemistiacute-quio)] e que eacute necessaacuterio (que seja) natildeo-ser

De fato esse segundo caminho (ἀταρπόν) eacute inviaacutevel porque ldquonatildeo se consegue levar a cabo a reflexatildeordquo (γνοίης) quando se pensa o τό μὴ ἐὸν Ou seja fica muito clara a equaccedilatildeo entre o segundo caminho (v 5) e a reflexatildeo sobre o natildeo ser (τό μὴ ἐὸν) Finalmente o segundo hemistiacutequio do v 5 diz que esse eacute o caminho ao pensar que eacute necessaacuterio que seja μὴ εἶναι o qual agora sabemos eacute o caminho que tenta pensar o natildeo-ser (τό μὴ ἐὸν) Sabe-mos agora o que Parmecircnides chama de μὴ εἶναι Para Parmecircnides μὴ εἶναι eacute a estrutura do pensamento quando tenta inexoraacutevel e malogradamente pensar o natildeo-ser (τό μὴ ἐὸν)

Temos portanto a semacircntica de μὴ εἶναι e sabemos que significa a impossibilidade de pensar o natildeo-ser Com esse dado podemos reconstruir o resto do argumento mas primeiro vamos abordar a questatildeo do οὔτε φράσαις A premissa principal eacute o pano de fundo da pesquisa parmenidiana a qual estaacute em busca do discurso confiaacutevel como a deusa diz claramente no encerramen-to do fragmento 8 (talvez ecoando simetricamente alguma parte perdida do poema)24 Pensar o τό μὴ ἐὸν natildeo eacute possiacutevel logo ele eacute indiziacutevel Ora isso significa nem mais nem menos que dizer que o que eacute impossiacutevel eacute contra o sentido do dizer Eacute indiziacutevel natildeo porque natildeo se sabe do que se trata como querem muitos autores que fazem a leitura meramente epistemoloacutegica25 Eacute indiziacutevel porque dizer o ldquonatildeo-serrdquo significa fazer uma promessa que jamais se cumpriraacute ao se dizer ldquonatildeo-serrdquo parece que a expressatildeo aponta algo possiacutevel ou seja a negaccedilatildeo do ser e de fato quem estaacute desavisado assim acredita Mas a expressatildeo ldquonatildeo-serrdquo quer referir-se a algo que jamais seraacute cumprido que o

24 850-2 ldquoἐν τῶι σοι παύω πιστὸν λόγον ἠδὲ νόημα ἀμφὶς ἀληθείης δόξας δrsquo ἀπὸ τοῦδε βροτείας μάνθανε κόσμον ἐμῶν ἐπέων ἀπατηλὸν ἀκούωνrdquo ldquoNeste ponto encerro fidedigna palavra e pensamento sobre a verdade e opiniotildees mortais a partir daqui aprende a ordem enganadora de minhas palavras ouvindordquo (CAVALCANTE DE SOUZA 1978)25 Trata-se da leitura epistemoloacutegico-predicamental se natildeo sei a cor de um objeto (porque a cor natildeo eacute natildeo estaacute acessiacutevel ao meu conhecimento) natildeo posso falar da cor do objeto

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ser seja negado Esta eacute exatamente a noccedilatildeo expressa pelas palavras de Platatildeo jamais prevaleceraacute que natildeo entes sejam26

A expressatildeo μὴ εἶναι representa essa impossibilidade de pensamento e portanto eacute um dizer impossiacutevel o que se opotildee radicalmente agrave proacutepria noccedilatildeo de dizer a qualquer significar enquanto discurso confiaacutevel do mundo e da sua ordem Surge a pergunta mas se natildeo se pode dizer μὴ εἶναι se isso eacute impossiacute-vel natildeo haacute uma flagrante contradiccedilatildeo na deusa jaacute que ela proacutepria diz e cons-troacutei um argumento sobre o dizer μὴ εἶναι A objeccedilatildeo seria vaacutelida se a deusa dissesse o que eacute impossiacutevel de dizer ou seja se ela praticasse a impossibilidade Todavia a deusa natildeo diz o impossiacutevel a deusa aponta para o impossiacutevel indica o impossiacutevel pois ela diz que existem a ldquonoccedilatildeo de impossibilidade do pensarrdquo e a ldquonoccedilatildeo de impossibilidade do dizerrdquo Em outras palavras a deusa diz qual eacute o limite do pensar e qual eacute o limite do dizer Aleacutem desse limite o pensamento natildeo pode ir porque eacute impossiacutevel e tambeacutem o dizer natildeo pode ir porque eacute im-possiacutevel A impossiacutevel regiatildeo para aleacutem desse limite natildeo eacute admitida pelo dizer eacute contra o dizer eacute contraditoacuteria

A expressatildeo μὴ εἶναι em Parmecircnides eacute exatamente a palavra que ex-pressa o processo mental que noacutes chamamos contradiccedilatildeo e que ele primeiro assim chamou (οὔτε φράσαις natildeo diziacutevel) Eacute estranho que nenhum criacutetico te-nha percebido isso claramente Todos afirmam que o princiacutepio de natildeo contra-diccedilatildeo estaacute implicado em Parmecircnides assim como os outros princiacutepios loacutegicos pois os argumentos presentes no poema satildeo desenvolvidos segundo a natildeo con-tradiccedilatildeo poreacutem o princiacutepio natildeo eacute enunciado Alguns como Cordero veem justamente explicitado o princiacutepio do terceiro excluiacutedo (816 ἔστιν ἢ οὐκ ἔστιν) mas ningueacutem quis ver claramente que natildeo soacute a noccedilatildeo como tambeacutem a proacutepria palavra ldquocontradiccedilatildeordquo (οὔτε φράσαις natildeo diziacutevel contra o diziacutevel contra a dicccedilatildeo) estaacute explicitada no poema Penso que a razatildeo fundamental para que acontecesse esse lapsus tenha que ser procurada na grande atenccedilatildeo dada ao ldquoserrdquo e na pouca dada ao ldquonatildeo-serrdquo Como observaremos mais adiante por causa desse lapsus eu penso que natildeo se conseguiu entender plenamente a estrutura do fragmento 2 o qual simplesmente natildeo apresenta um silogismo disjuntivo nem nenhuma contradiccedilatildeo entre o caminho do ldquoserrdquo e o caminho do ldquonatildeo-serrdquo Parmecircnides assevera justamente que a expressatildeo ldquonatildeo-serrdquo eacute contraditoacuteria o ldquonatildeo-serrdquo natildeo pode ser dito porque ldquonatildeo-serrdquo eacute contraditoacute-

26 As duas expressotildees tecircm inversatildeo de predicado e negaccedilatildeo no entanto a noccedilatildeo permanece a mesma que os entes natildeo sejam (perecimento no fr 8) e que os natildeo entes sejam (nascimento no fr 8) A noccedilatildeo eacute o tracircnsito entre ser e natildeo ser

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rio e a expressatildeo ldquonatildeo-serrdquo indica tatildeo somente uma impossibilidade concreta aquela de que se realize o impossiacutevel

Vamos voltar ao nosso argumento e agrave questatildeo que deixamos em suspenso por que eacute necessaacuterio que μὴ εἶναι seja Sabemos que os versos 7 e 8 relatam um processo malogrado de pensar o natildeo ente (τό μὴ ἐὸν) Uso agora a palavra ente porque se justifica uma diferenciaccedilatildeo embora tanto ldquoenterdquo quanto ldquoserrdquo indiquem expressotildees gerais e natildeo individuais ldquoEnterdquo vem por conseguinte a significar o ente concreto aquele que eacute Parmecircnides sustenta que natildeo se pode pensar e dizer τό μὴ ἐὸν o ldquonatildeo enterdquo Esse processo recebe o nome de μὴ εἶναι ldquonatildeo-serrdquo a esse processo noacutes chamamos contradiccedilatildeo27 Entatildeo a indicaccedilatildeo eacute esta haacute um caminho ao pensar que pensa μὴ εἶναι (a contradiccedilatildeo) e eacute necessaacuterio que assim seja porque (vou repetir trecircs vezes de forma diferente28 para significar a mesma coisa)

1) se natildeo houvesse a contradiccedilatildeo

2) se natildeo se tem a noccedilatildeo de contradiccedilatildeo

3) se natildeo se sabe o que eacute contradiccedilatildeo

cai-se no discurso contraditoacuterio o que impede o inqueacuterito confiaacutevel Eacute ne-cessaacuterio saber que μὴ εἶναι (o processo de contradiccedilatildeo) eacute um caminho a ser evitado porque cria pensamentos e discursos contraditoacuterios

Vejamos de novo nosso fragmento com os elementos esclarecidos ateacute aqui

os uacutenicos caminhos de inqueacuterito a pensar satildeo

por um lado que [ versos 3 e 4]

e por outro lado que οὐκ ἔστιν e que eacute necessaacuterio que seja a contradiccedilatildeo (μὴ εἶναι)

a qual eacute um caminho natildeo criacutevel

pois eacute impossiacutevel pensar e dizer o natildeo ente (τό μὴ ἐὸν)

27 Mesmo para noacutes a contradiccedilatildeo eacute um processo porque indica a posiccedilatildeo de algo em contraposiccedilatildeo com mais algo isso significa que esses dois algos tecircm que ser relacionados para que haja contradiccedilatildeo do contraacuterio algo e mais algo podem conviver sem contraditoriedade Contudo esse assunto estaacute fora de tema e requer muitas outras providecircncias para o bom discernimento28 Repito buscando clareza pois nossas construccedilotildees comuns de linguagem nesses assuntos costumam ldquopatinarrdquo

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Penso que o espaccedilo conceitual deixado por οὐκ ἔστιν agora se pre-encha quase que por si haacute um caminho de inqueacuterito ao pensar que ldquonatildeo eacuterdquo e que eacute necessaacuterio que se considere contraditoacuterio porque eacute caminho que natildeo leva a lugar nenhum

A expressatildeo οὐκ ἔστιν eacute a negaccedilatildeo da terceira pessoa do indicativo de εἰμί a expressatildeo em si natildeo tem nada de especial significa tatildeo somente ldquonatildeo eacuterdquo restando em aberto o problema da ausecircncia de sujeito Mas agora sabemos o argumento complexo que estaacute na raiz da expressatildeo e a meu ver natildeo faz muito sentido a questatildeo de buscar um sujeito ou um objeto para definir se eacute usado de forma transitiva ou intransitiva se expressa existecircncia ou predicaccedilatildeo e as muitas combinaccedilotildees que podem ser montadas a partir da equivocidade do uso de εἰμί No entanto o acircmbito semacircntico foi evidenciado e estaacute claro e aleacutem do mais tem o testemunho de Platatildeo a confirmar o campo semacircntico da negaccedilatildeo de εἰμί nas vaacuterias formas estaacute relacionado a uma reflexatildeo sobre a impossibili-dade dessa negaccedilatildeo Obviamente para dizer que algo eacute impossiacutevel de alguma forma tenho que indicar essa impossibilidade com alguma expressatildeo Assim se digo ldquotriacircngulo quadradordquo aponto para uma impossibilidade jaacute que por defi-niccedilatildeo a essecircncia do triacircngulo exclui a essecircncia do quadrado logo a expressatildeo ldquotriacircngulo quadradordquo natildeo significa aquilo que parece prometer ou seja natildeo significa uma figura geomeacutetrica especial que eacute ao mesmo tempo triacircngulo e quadrado dizer ldquotriacircngulo quadradordquo eacute dizer algo ldquoindiziacutevelrdquo ldquonatildeo diziacutevelrdquo (na medida em que o diziacutevel quer expressar sentido) ldquoque nega o diziacutevelrdquo ldquoque eacute contra o diziacutevelrdquo que eacute contraditoacuterio

A semacircntica do ldquonatildeo serrdquo eacute fortiacutessima e estaacute muito aleacutem das sutilezas gramaticais morfoloacutegicas e sintaacuteticas e estas simplesmente natildeo afetam aquela O assunto tratado eacute tatildeo forte que ultrapassa qualquer forma linguiacutestica a pon-to de que esse assunto a ordem do ser e do natildeo-ser no mundo eacute responsaacutevel pela determinaccedilatildeo da lei da linguagem e natildeo vice-versa como bem entendeu Platatildeo no Sofista onde a teoria da predicaccedilatildeo surge em funccedilatildeo de uma refle-xatildeo sobre a ordem das leis baacutesicas do mundo Com efeito o approach linguiacutes-tico ao poema pode proceder ateacute certo ponto dali em diante o poema eacute fran-camente filosoacutefico e a chave linguiacutestica natildeo eacute suficiente para o acesso Isso quer dizer que com a chave linguiacutestica natildeo se abre a porta da questatildeo filosoacutefica do poema Se a questatildeo eacute que ldquojamais o natildeo ser pode se tornar serrdquo como (apro-ximadamente com essas palavras) argumenta Platatildeo citando Parmecircnides en-tatildeo diante da semacircntica que οὐκ ἔστιν apresenta discutir o sujeito de οὐκ ἔστιν se torna tarefa menor Considerada a desproporccedilatildeo entre o conteuacutedo (a

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semacircntica) e o recipiente (a palavra) entre o significado e o significante natildeo eacute impossiacutevel que οὐκ ἔστιν seja tatildeo somente uma expressatildeo simplificada quem sabe ateacute mesmo uma simplificaccedilatildeo didaacutetica pois o conteuacutedo do conceito estaacute expresso e justificado depois nos versos 7 e 8

O caminho de pensar que natildeo eacute e de pensar que eacute necessaacuterio natildeo ser eacute o caminho que afirma a necessidade de que a noccedilatildeo de natildeo-ser permaneccedila estaacutevel A contradiccedilatildeo tem que permanecer e ser identificada como tal pois eacute a uacutenica maneira de evitar que ela entre no pensamento e no discurso Se o ldquonatildeo-serrdquo natildeo for considerado contraditoacuterio a contradiccedilatildeo invade e domina o caminho de inqueacuterito o qual deixa de possuir πίστις ἀληθής (130) Assim eacute preciso que esse caminho seja identificado como μὴ εἶναι por um lado o ldquonatildeo-serrdquo eacute incognosciacutevel (οὔτε γὰρ ἂν γνοίης) mas por outro lado eacute neces-saacuterio que se saiba que ele eacute incognosciacutevel Saber do incognosciacutevel garante o conhecimento29 pois de fato ao natildeo se identificar o ldquonatildeo-serrdquo cai-se no risco de pensar que ldquoserrdquo e ldquonatildeo-serrdquo satildeo o mesmo e natildeo o mesmo como Parmecircni-des afirma em DK 6 5-6 Necessariamente o caminho que pensa οὐκ ἔστιν leva ao processo de contradiccedilatildeo (μὴ εἶναι) e a natildeo conclusatildeo do caminho (ἀνυστόν) natildeo eacute evidente na expressatildeo pelo contraacuterio τό μὴ ἐὸν parece uma negaccedilatildeo comum como qualquer outra poreacutem natildeo o eacute por isso eacute um saber destinado ao saacutebio e natildeo aos mortais porque eacute um saber fruto de uma reflexatildeo

34 DE VOLTA AOS VERSOS 3 E 4

Penso que podemos agora voltar ao verso 23 ao nosso segundo he-mistiacutequio onde aparece a expressatildeo μὴ εἶναι da qual jaacute temos a semacircntica Podemos entatildeo reconstruir ldquoos uacutenicos caminhos de inqueacuterito a pensar satildeo

por um lado a pensar que [ldquoArdquo] e tambeacutem a pensar que οὐκ ἔστι μὴ εἶναι este eacute caminho de persuasatildeo pois verdade acompanha e

por outro lado a pensar que ldquonatildeo eacuterdquo e tambeacutem a pensar que eacute necessariamente um percurso de pensamento contraditoacuterio porque eacute um caminho ldquoimpossiacutevelrdquo (παναπευθέα) pois o pensamento do ldquonatildeo enterdquo natildeo pode ser completado

O οὐκ ἔστι do verso 3 parece ser diferente do οὐκ ἔστιν do verso 5 Enquanto no 5 ele eacute quase que o nome do caminho (talvez uma simplificaccedilatildeo didaacutetica) no 3 parece significar simplesmente ldquonatildeo eacuterdquo em sentido comum

29 Estaacute aqui uma semente do socratismo

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predicativo De fato esse eacute o caminho da persuasatildeo e portanto eacute o caminho do pensamento natildeo-contraditoacuterio Ali a persuasatildeo era impossiacutevel pela con-tradiccedilatildeo aqui eacute possiacutevel pela natildeo-contradiccedilatildeo Sabemos que a expressatildeo μὴ εἶναι eacute a expressatildeo da contradiccedilatildeo suprema de sorte que a natildeo-contradiccedilatildeo eacute a negaccedilatildeo de μὴ εἶναι A traduccedilatildeo de οὐκ ἔστι fica faacutecil embora para a nossa sensibilidade possa parecer algo improacuteprio usar duas vezes οὐκ ἔστι de forma natildeo perfeitamente uniacutevoca a dois versos de distacircncia Logo para o segundo hemistiacutequio do v 3 mantenho esta traduccedilatildeo ldquonatildeo eacuterdquo em parte ambiacutegua para nossas exigecircncias mas que soa perfeitamente harmocircnica com o discurso par-menidiano [] ao pensar que [ldquoArdquo] e que natildeo eacute ldquocontradiccedilatildeordquo (μὴ εἶναι)

Acredito por fim que podemos abordar facilmente o ἔστιν do verso 3 que tanto fez e faz penar os estudiosos de Parmecircnides Aqui de novo a grandeza da questatildeo cosmoloacutegica envolvida ndash a coerecircncia eou a contradito-riedade do real ndash simplesmente torna tatildeo minuacutescula a questatildeo do sujeito de ἔστιν que ela quase desaparece Eu tenho a tendecircncia a pensar que a falta de sujeito seja uma simplificaccedilatildeo didaacutetica30 cuja irregularidade linguiacutestica ajuda na memorizaccedilatildeo31 Todavia afinal tomo partido e entro tambeacutem no quarto grupo daqueles listados por Cordero o sujeito deve ser extraiacutedo do predicado isolado pois ἔστιν produz o sujeito32 De qualquer forma o sentido filosoacutefico eacute preciso haacute um caminho de inqueacuterito ao pensar que eacute aquele que pensa o ldquoeacuterdquo esse mesmo caminho eacute aquele ao pensar que natildeo eacute (e natildeo pode ser33) ldquocon-tradiccedilatildeordquo Depois haacute um outro caminho aquele ao pensar que ldquonatildeo eacuterdquo que eacute o caminho ao pensar que leva necessariamente agrave contradiccedilatildeo O primeiro eacute o 30 Segundo o relato platocircnico no diaacutelogo Parmecircnides Zenatildeo acompanhado de seu mestre foi para as Panateneias com a finalidade de defender a filosofia de seu mestre esclarecendo com seu livro repleto de paradoxos as ideias parmenidianas Isso sugere que o poema natildeo expunha articuladamente a filosofia de Parmecircnides mas que constituiacutesse um proacute-memoacuteria com as ideias em sua forma essencial depois elaboradas nas aulas pessoais (KURFESS 2012)31 Eacute extraordinaacuterio como essa simplificaccedilatildeo didaacutetica continue ativa por um lado distorcendo entretanto por outro mantendo viva a mensagem parmenidiana em todas as escolas de ensino meacutedio onde se estuda filosofia vox populi Parmecircnides eacute o filoacutesofo que disse ldquoO que eacute eacute e o que natildeo eacute natildeo eacuterdquo Por outro lado o estrangeiro de Eleia no Sofista lembra outro verso e natildeo este32 Essa questatildeo natildeo aprofundada aqui natildeo possui relevacircncia filosoacutefica no argumento apresentado pode ter relevacircncia se se considera o tipo de reflexatildeo ou seja se se discute a ldquoexperiecircnciardquo do natildeo-ser e principalmente a experiecircncia concreta de Parmecircnides que talvez esteja ligada a praacuteticas de incubaccedilatildeo Nesse caso a dimensatildeo reflexiva adentra a dimensatildeo oniacuterica a qual possui outra sintaxe e onde um simples ἔστιν vale mais de mil articulaccedilotildees sintaacuteticas Natildeo sabemos com certeza dessas praacuteticas em Eleia contudo esse sentido preacute-sintaacutetico natildeo estaacute descartado inclusive alguns estudiosos entre os quais o proacuteprio Cordero atribuem ao ἔστιν o sentido de um grito como um Eureka Sugestotildees nesse sentido se encontram na minha dissertaccedilatildeo sobre Melisso (GALGANO 2010)33 A interpretaccedilatildeo modal eacute tambeacutem perfeitamente coerente aqui

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GALGANO N S

caminho que estabelece o discurso coerente (persuasivo) e o segundo natildeo leva a lugar nenhum e deve ser evitado Mas para que se saiba o que deve ser evi-tado eacute preciso que se conheccedila a impossibilidade do segundo caminho A fim de que se possa seguir o primeiro caminho eacute necessaacuterio saber que existe um outro sempre agrave espreita o qual parece oferecer a verdade mas que natildeo oferece uma verdade confiaacutevel que leva necessariamente agrave contradiccedilatildeo de pensamento e de expressatildeo linguiacutestica

4 O MEacuteTODO DA NAtildeO-CONTRADICcedilAtildeO

Parmecircnides provavelmente a partir de sugestotildees pitagoacutericas medita sobre a oposiccedilatildeo ao que existe e assim descobre o ldquonatildeo-serrdquo Descobre que ldquonatildeo serrdquo ou seja negar o ser negar o que haacute eacute de todo impossiacutevel (natildeo eacute possiacutevel completamente) Entende entatildeo que o ldquonatildeo-serrdquo essa impossibilidade eacute algo que a mente pensa julgando que esse pensamento leva por um caminho mas que na verdade ele descobre leva por outro caminho aquele que nunca che-ga a lugar nenhum Esse caminho que leva para lugar nenhum eacute o caminho dos mortais os quais confundem ser e natildeo ser No entanto o saacutebio deve saber distinguir por um lado o caminho do ldquoeacuterdquo que eacute o caminho do discurso natildeo contraditoacuterio e por outro lado o caminho do ldquonatildeo eacuterdquo que eacute o caminho do discurso que eacute tornado vatildeo pela contradiccedilatildeo

Parmecircnides descobre a contradiccedilatildeo (pela meditaccedilatildeo sobre o natildeo-ser) e percebe que ela eacute motivo de descaminho no discurso sobre o mundo Assim finalmente ele anuncia que a contradiccedilatildeo deve ser evitada A esse enunciado noacutes chamamos de princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo que aqui eacute aquele na versatildeo de Parmecircnides (depois a partir de Platatildeo e Aristoacuteteles haveraacute outras versotildees) Parmecircnides trabalha em acircmbito cosmoloacutegico e sua preocupaccedilatildeo ndash como os de seus colegas na eacutepoca ndash eacute com o mundo com a totalidade das coisas com os πάντα de seu proecircmio (128) Nesse acircmbito cosmoloacutegico descobre que haacute um princiacutepio do mundo pelo qual se daacute uma impossibilidade a contradiccedilatildeo A contradiccedilatildeo eacute um princiacutepio porque o que haacute (πάντα) enquanto todo escapa agrave negaccedilatildeo total Eis que a contradiccedilatildeo eacute princiacutepio tanto quanto a natildeo-contra-diccedilatildeo porque eacute a contradiccedilatildeo que permite a natildeo-contradiccedilatildeo Sem a noccedilatildeo de contradiccedilatildeo se anda com sentidos incertos como os mortais

O valor dessa afirmaccedilatildeo eacute historicamente inabalaacutevel porque Parmecircni-des partindo de um discurso sobre o mundo como que visto de fora por um observador (como Anaximandro via o mundo olhando seu pinax - cf ROS-

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SETTI 2013) alcanccedila um discurso que inclui o observador enquanto obser-vador estreando assim antes de tudo um discurso sobre os entes (ontologia) todos os entes incluindo os entes de pensamento (veja-se o famoso fragmento 3 onde se lecirc que pensar e ser satildeo o mesmo) Para ele o saacutebio natildeo eacute mais aquele que sabe soacute sobre as coisas externas ndash como o antigo xamatilde cuja figura indi-vidual se dissolve na mera intermediaccedilatildeo com o divino ndash poreacutem eacute tambeacutem aquele que consegue pensar sobre as coisas externas ou seja aquele que tem um domiacutenio cognitivo sobre os pensamentos de inqueacuterito e portanto sabe so-bre si mesmo Assim o saacutebio deve pensar por proacutepria conta e julgar pelo novo criteacuterio e natildeo pelo habitual discurso (κρῖναι δὲ λόγωι DK 75) ou seja natildeo deve julgar pelo discurso mas julgar o discurso porque agora o discurso enri-quecido de uma lei universal (a lei das αρχάι ἔστιν e οὐκ ἔστιν) possui uma medida de juiacutezo Parmecircnides amplia o mundo acrescentando ao mundo fiacutesico os mundos do pensamento e da linguagem Eis porque as αρχάι de Parmecircni-des sendo duas permanecem duas justamente eliminado uma delas deixando alguns criacuteticos enlouquecidos na discussatildeo sobre o monismo ou o dualismo de acordo com Parmecircnides o mundo eacute um todavia os sentidos nos enganam natildeo na pluralidade das coisas mas no argumento a respeito da pluralidade das coisas e principalmente ndash aspecto que ele discute explicitamente ndash a respeito do devir das coisas Haacute um princiacutepio que natildeo pode ser eliminado a contra-diccedilatildeo o qual eacute um princiacutepio de erro humano quando se elimina quando se desconsidera quando se faz de conta que natildeo existe a contradiccedilatildeo se instaura quando o princiacutepio eacute levado em conta a contradiccedilatildeo pode ser evitada

Eacute uma conceituaccedilatildeo esdruacutexula para noacutes tambeacutem porque temos que ter (a noccedilatildeo de) a contradiccedilatildeo para eliminar a contradiccedilatildeo temos que saber o que eacute contradiccedilatildeo para que possamos perceber quando o discurso eacute con-traditoacuterio Esses conceitos satildeo misteriosos ateacute agora e satildeo estranhas criaturas de nossas mentes Por exemplo a noccedilatildeo de ldquoimpossiacutevelrdquo obviamente (isto eacute para a nossa pragmaacutetica) natildeo se refere a nada de concreto no entanto temos essa noccedilatildeo e a usamos com o maacuteximo proveito outro exemplo a noccedilatildeo de ldquoinfinitordquo noccedilatildeo que natildeo se refere a algo pragmaticamente concreto mas que usamos igualmente com maacuteximo proveito O mesmo deve ser dito da noccedilatildeo de contradiccedilatildeo ou da noccedilatildeo de nada absoluto que usamos pragmaticamente com maior ou menor proveito

Parmecircnides encontra esse caminho e o expotildee Eacute um caminho assom-broso anti-intuitivo mas incontestaacutevel Dessa forma natildeo eacute de estranhar se a soluccedilatildeo platocircnica eacute a eliminaccedilatildeo fiacutesica da noccedilatildeo de nada absoluto (o par-

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riciacutedio) com sucessivo ldquoadeusrdquo34 achando de tecirc-lo ultrapassado Mas o nada absoluto enquanto noccedilatildeo contraditoacuteria permanece Assim como permane-ce a explicaccedilatildeo defeituosa do devir o qual assim como o conhecemos uma passagem do nada ao ser no nascimento e do ser ao nada no perecimento estaacute mal explicado Daqui por diante os comentaacuterios filosoacuteficos possiacuteveis satildeo inuacutemeros por conseguinte paro meu estudo neste ponto e proponho a versatildeo do fragmento 2 segundo a conceituaccedilatildeo apresentada ateacute aqui alterando de pouco a excelente versatildeo baacutesica de Cavalcante de Souza

Pois bem eu te direi e tu recebe a palavra que ouviste

os uacutenicos caminhos de inqueacuterito que satildeo a pensar

o primeiro que eacute e portanto que natildeo eacute (o caminho da) contradiccedilatildeo

de persuasatildeo eacute o caminho (pois agrave verdade acompanha)

o outro que natildeo eacute e portanto que eacute necessariamente (o caminho da) contradiccedilatildeo

este entatildeo eu te digo eacute atalho de todo incriacutevel

pois nem conhecerias o que natildeo eacute (pois natildeo eacute exequiacutevel)

nem o dirias

GALGANO N S Non-being in Parmenides of Elea Transformaccedilatildeo Mariacutelia v 41 n 2 p 9-36 AbrJun 2018

ABSTRACT In fragment DK 28 B 2 of his poem Parmenides presents his method for distinguishing true persuasion from the lack of true persuasion His famous proposal of these two ways of thinking form a complex statement of a system that intends to guarantee the veracity of statements in order to obtain reliable discourse the only discourse capable of true persuasion The present paper shows that the central role in Parmenidian argumentation is attributed to non-being a notion derived from a reflection on the impossibility of the negation of being Thus the whole fragment is interpreted in terms of this central notion We show that Parmenides discovered the impossibility of negation which we now call lsquocontradictionrsquo and that he articulated the means for avoiding contradiction in thought and discourse a rule which today we call the principle of non-contradiction The study presented here is a detailed investigation of the notion of non-being in the DK 28 B 2 fragment and includes a new translation of it

KEYWORDS Parmenides Non-being Non-contradiction Eleatism Parricide

34 Platatildeo Soph 258e7-259a1 ἡμεῖς γὰρ περὶ μὲν ἐναντίου τινὸς αὐτῷ χαίρειν πάλαι λέγομεν εἴτrsquo ἔστιν εἴτε μή λόγον ἔχον ἢ καὶ παντάπασιν ἄλογον

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ser seja negado Esta eacute exatamente a noccedilatildeo expressa pelas palavras de Platatildeo jamais prevaleceraacute que natildeo entes sejam26

A expressatildeo μὴ εἶναι representa essa impossibilidade de pensamento e portanto eacute um dizer impossiacutevel o que se opotildee radicalmente agrave proacutepria noccedilatildeo de dizer a qualquer significar enquanto discurso confiaacutevel do mundo e da sua ordem Surge a pergunta mas se natildeo se pode dizer μὴ εἶναι se isso eacute impossiacute-vel natildeo haacute uma flagrante contradiccedilatildeo na deusa jaacute que ela proacutepria diz e cons-troacutei um argumento sobre o dizer μὴ εἶναι A objeccedilatildeo seria vaacutelida se a deusa dissesse o que eacute impossiacutevel de dizer ou seja se ela praticasse a impossibilidade Todavia a deusa natildeo diz o impossiacutevel a deusa aponta para o impossiacutevel indica o impossiacutevel pois ela diz que existem a ldquonoccedilatildeo de impossibilidade do pensarrdquo e a ldquonoccedilatildeo de impossibilidade do dizerrdquo Em outras palavras a deusa diz qual eacute o limite do pensar e qual eacute o limite do dizer Aleacutem desse limite o pensamento natildeo pode ir porque eacute impossiacutevel e tambeacutem o dizer natildeo pode ir porque eacute im-possiacutevel A impossiacutevel regiatildeo para aleacutem desse limite natildeo eacute admitida pelo dizer eacute contra o dizer eacute contraditoacuteria

A expressatildeo μὴ εἶναι em Parmecircnides eacute exatamente a palavra que ex-pressa o processo mental que noacutes chamamos contradiccedilatildeo e que ele primeiro assim chamou (οὔτε φράσαις natildeo diziacutevel) Eacute estranho que nenhum criacutetico te-nha percebido isso claramente Todos afirmam que o princiacutepio de natildeo contra-diccedilatildeo estaacute implicado em Parmecircnides assim como os outros princiacutepios loacutegicos pois os argumentos presentes no poema satildeo desenvolvidos segundo a natildeo con-tradiccedilatildeo poreacutem o princiacutepio natildeo eacute enunciado Alguns como Cordero veem justamente explicitado o princiacutepio do terceiro excluiacutedo (816 ἔστιν ἢ οὐκ ἔστιν) mas ningueacutem quis ver claramente que natildeo soacute a noccedilatildeo como tambeacutem a proacutepria palavra ldquocontradiccedilatildeordquo (οὔτε φράσαις natildeo diziacutevel contra o diziacutevel contra a dicccedilatildeo) estaacute explicitada no poema Penso que a razatildeo fundamental para que acontecesse esse lapsus tenha que ser procurada na grande atenccedilatildeo dada ao ldquoserrdquo e na pouca dada ao ldquonatildeo-serrdquo Como observaremos mais adiante por causa desse lapsus eu penso que natildeo se conseguiu entender plenamente a estrutura do fragmento 2 o qual simplesmente natildeo apresenta um silogismo disjuntivo nem nenhuma contradiccedilatildeo entre o caminho do ldquoserrdquo e o caminho do ldquonatildeo-serrdquo Parmecircnides assevera justamente que a expressatildeo ldquonatildeo-serrdquo eacute contraditoacuteria o ldquonatildeo-serrdquo natildeo pode ser dito porque ldquonatildeo-serrdquo eacute contraditoacute-

26 As duas expressotildees tecircm inversatildeo de predicado e negaccedilatildeo no entanto a noccedilatildeo permanece a mesma que os entes natildeo sejam (perecimento no fr 8) e que os natildeo entes sejam (nascimento no fr 8) A noccedilatildeo eacute o tracircnsito entre ser e natildeo ser

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rio e a expressatildeo ldquonatildeo-serrdquo indica tatildeo somente uma impossibilidade concreta aquela de que se realize o impossiacutevel

Vamos voltar ao nosso argumento e agrave questatildeo que deixamos em suspenso por que eacute necessaacuterio que μὴ εἶναι seja Sabemos que os versos 7 e 8 relatam um processo malogrado de pensar o natildeo ente (τό μὴ ἐὸν) Uso agora a palavra ente porque se justifica uma diferenciaccedilatildeo embora tanto ldquoenterdquo quanto ldquoserrdquo indiquem expressotildees gerais e natildeo individuais ldquoEnterdquo vem por conseguinte a significar o ente concreto aquele que eacute Parmecircnides sustenta que natildeo se pode pensar e dizer τό μὴ ἐὸν o ldquonatildeo enterdquo Esse processo recebe o nome de μὴ εἶναι ldquonatildeo-serrdquo a esse processo noacutes chamamos contradiccedilatildeo27 Entatildeo a indicaccedilatildeo eacute esta haacute um caminho ao pensar que pensa μὴ εἶναι (a contradiccedilatildeo) e eacute necessaacuterio que assim seja porque (vou repetir trecircs vezes de forma diferente28 para significar a mesma coisa)

1) se natildeo houvesse a contradiccedilatildeo

2) se natildeo se tem a noccedilatildeo de contradiccedilatildeo

3) se natildeo se sabe o que eacute contradiccedilatildeo

cai-se no discurso contraditoacuterio o que impede o inqueacuterito confiaacutevel Eacute ne-cessaacuterio saber que μὴ εἶναι (o processo de contradiccedilatildeo) eacute um caminho a ser evitado porque cria pensamentos e discursos contraditoacuterios

Vejamos de novo nosso fragmento com os elementos esclarecidos ateacute aqui

os uacutenicos caminhos de inqueacuterito a pensar satildeo

por um lado que [ versos 3 e 4]

e por outro lado que οὐκ ἔστιν e que eacute necessaacuterio que seja a contradiccedilatildeo (μὴ εἶναι)

a qual eacute um caminho natildeo criacutevel

pois eacute impossiacutevel pensar e dizer o natildeo ente (τό μὴ ἐὸν)

27 Mesmo para noacutes a contradiccedilatildeo eacute um processo porque indica a posiccedilatildeo de algo em contraposiccedilatildeo com mais algo isso significa que esses dois algos tecircm que ser relacionados para que haja contradiccedilatildeo do contraacuterio algo e mais algo podem conviver sem contraditoriedade Contudo esse assunto estaacute fora de tema e requer muitas outras providecircncias para o bom discernimento28 Repito buscando clareza pois nossas construccedilotildees comuns de linguagem nesses assuntos costumam ldquopatinarrdquo

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Penso que o espaccedilo conceitual deixado por οὐκ ἔστιν agora se pre-encha quase que por si haacute um caminho de inqueacuterito ao pensar que ldquonatildeo eacuterdquo e que eacute necessaacuterio que se considere contraditoacuterio porque eacute caminho que natildeo leva a lugar nenhum

A expressatildeo οὐκ ἔστιν eacute a negaccedilatildeo da terceira pessoa do indicativo de εἰμί a expressatildeo em si natildeo tem nada de especial significa tatildeo somente ldquonatildeo eacuterdquo restando em aberto o problema da ausecircncia de sujeito Mas agora sabemos o argumento complexo que estaacute na raiz da expressatildeo e a meu ver natildeo faz muito sentido a questatildeo de buscar um sujeito ou um objeto para definir se eacute usado de forma transitiva ou intransitiva se expressa existecircncia ou predicaccedilatildeo e as muitas combinaccedilotildees que podem ser montadas a partir da equivocidade do uso de εἰμί No entanto o acircmbito semacircntico foi evidenciado e estaacute claro e aleacutem do mais tem o testemunho de Platatildeo a confirmar o campo semacircntico da negaccedilatildeo de εἰμί nas vaacuterias formas estaacute relacionado a uma reflexatildeo sobre a impossibili-dade dessa negaccedilatildeo Obviamente para dizer que algo eacute impossiacutevel de alguma forma tenho que indicar essa impossibilidade com alguma expressatildeo Assim se digo ldquotriacircngulo quadradordquo aponto para uma impossibilidade jaacute que por defi-niccedilatildeo a essecircncia do triacircngulo exclui a essecircncia do quadrado logo a expressatildeo ldquotriacircngulo quadradordquo natildeo significa aquilo que parece prometer ou seja natildeo significa uma figura geomeacutetrica especial que eacute ao mesmo tempo triacircngulo e quadrado dizer ldquotriacircngulo quadradordquo eacute dizer algo ldquoindiziacutevelrdquo ldquonatildeo diziacutevelrdquo (na medida em que o diziacutevel quer expressar sentido) ldquoque nega o diziacutevelrdquo ldquoque eacute contra o diziacutevelrdquo que eacute contraditoacuterio

A semacircntica do ldquonatildeo serrdquo eacute fortiacutessima e estaacute muito aleacutem das sutilezas gramaticais morfoloacutegicas e sintaacuteticas e estas simplesmente natildeo afetam aquela O assunto tratado eacute tatildeo forte que ultrapassa qualquer forma linguiacutestica a pon-to de que esse assunto a ordem do ser e do natildeo-ser no mundo eacute responsaacutevel pela determinaccedilatildeo da lei da linguagem e natildeo vice-versa como bem entendeu Platatildeo no Sofista onde a teoria da predicaccedilatildeo surge em funccedilatildeo de uma refle-xatildeo sobre a ordem das leis baacutesicas do mundo Com efeito o approach linguiacutes-tico ao poema pode proceder ateacute certo ponto dali em diante o poema eacute fran-camente filosoacutefico e a chave linguiacutestica natildeo eacute suficiente para o acesso Isso quer dizer que com a chave linguiacutestica natildeo se abre a porta da questatildeo filosoacutefica do poema Se a questatildeo eacute que ldquojamais o natildeo ser pode se tornar serrdquo como (apro-ximadamente com essas palavras) argumenta Platatildeo citando Parmecircnides en-tatildeo diante da semacircntica que οὐκ ἔστιν apresenta discutir o sujeito de οὐκ ἔστιν se torna tarefa menor Considerada a desproporccedilatildeo entre o conteuacutedo (a

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semacircntica) e o recipiente (a palavra) entre o significado e o significante natildeo eacute impossiacutevel que οὐκ ἔστιν seja tatildeo somente uma expressatildeo simplificada quem sabe ateacute mesmo uma simplificaccedilatildeo didaacutetica pois o conteuacutedo do conceito estaacute expresso e justificado depois nos versos 7 e 8

O caminho de pensar que natildeo eacute e de pensar que eacute necessaacuterio natildeo ser eacute o caminho que afirma a necessidade de que a noccedilatildeo de natildeo-ser permaneccedila estaacutevel A contradiccedilatildeo tem que permanecer e ser identificada como tal pois eacute a uacutenica maneira de evitar que ela entre no pensamento e no discurso Se o ldquonatildeo-serrdquo natildeo for considerado contraditoacuterio a contradiccedilatildeo invade e domina o caminho de inqueacuterito o qual deixa de possuir πίστις ἀληθής (130) Assim eacute preciso que esse caminho seja identificado como μὴ εἶναι por um lado o ldquonatildeo-serrdquo eacute incognosciacutevel (οὔτε γὰρ ἂν γνοίης) mas por outro lado eacute neces-saacuterio que se saiba que ele eacute incognosciacutevel Saber do incognosciacutevel garante o conhecimento29 pois de fato ao natildeo se identificar o ldquonatildeo-serrdquo cai-se no risco de pensar que ldquoserrdquo e ldquonatildeo-serrdquo satildeo o mesmo e natildeo o mesmo como Parmecircni-des afirma em DK 6 5-6 Necessariamente o caminho que pensa οὐκ ἔστιν leva ao processo de contradiccedilatildeo (μὴ εἶναι) e a natildeo conclusatildeo do caminho (ἀνυστόν) natildeo eacute evidente na expressatildeo pelo contraacuterio τό μὴ ἐὸν parece uma negaccedilatildeo comum como qualquer outra poreacutem natildeo o eacute por isso eacute um saber destinado ao saacutebio e natildeo aos mortais porque eacute um saber fruto de uma reflexatildeo

34 DE VOLTA AOS VERSOS 3 E 4

Penso que podemos agora voltar ao verso 23 ao nosso segundo he-mistiacutequio onde aparece a expressatildeo μὴ εἶναι da qual jaacute temos a semacircntica Podemos entatildeo reconstruir ldquoos uacutenicos caminhos de inqueacuterito a pensar satildeo

por um lado a pensar que [ldquoArdquo] e tambeacutem a pensar que οὐκ ἔστι μὴ εἶναι este eacute caminho de persuasatildeo pois verdade acompanha e

por outro lado a pensar que ldquonatildeo eacuterdquo e tambeacutem a pensar que eacute necessariamente um percurso de pensamento contraditoacuterio porque eacute um caminho ldquoimpossiacutevelrdquo (παναπευθέα) pois o pensamento do ldquonatildeo enterdquo natildeo pode ser completado

O οὐκ ἔστι do verso 3 parece ser diferente do οὐκ ἔστιν do verso 5 Enquanto no 5 ele eacute quase que o nome do caminho (talvez uma simplificaccedilatildeo didaacutetica) no 3 parece significar simplesmente ldquonatildeo eacuterdquo em sentido comum

29 Estaacute aqui uma semente do socratismo

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predicativo De fato esse eacute o caminho da persuasatildeo e portanto eacute o caminho do pensamento natildeo-contraditoacuterio Ali a persuasatildeo era impossiacutevel pela con-tradiccedilatildeo aqui eacute possiacutevel pela natildeo-contradiccedilatildeo Sabemos que a expressatildeo μὴ εἶναι eacute a expressatildeo da contradiccedilatildeo suprema de sorte que a natildeo-contradiccedilatildeo eacute a negaccedilatildeo de μὴ εἶναι A traduccedilatildeo de οὐκ ἔστι fica faacutecil embora para a nossa sensibilidade possa parecer algo improacuteprio usar duas vezes οὐκ ἔστι de forma natildeo perfeitamente uniacutevoca a dois versos de distacircncia Logo para o segundo hemistiacutequio do v 3 mantenho esta traduccedilatildeo ldquonatildeo eacuterdquo em parte ambiacutegua para nossas exigecircncias mas que soa perfeitamente harmocircnica com o discurso par-menidiano [] ao pensar que [ldquoArdquo] e que natildeo eacute ldquocontradiccedilatildeordquo (μὴ εἶναι)

Acredito por fim que podemos abordar facilmente o ἔστιν do verso 3 que tanto fez e faz penar os estudiosos de Parmecircnides Aqui de novo a grandeza da questatildeo cosmoloacutegica envolvida ndash a coerecircncia eou a contradito-riedade do real ndash simplesmente torna tatildeo minuacutescula a questatildeo do sujeito de ἔστιν que ela quase desaparece Eu tenho a tendecircncia a pensar que a falta de sujeito seja uma simplificaccedilatildeo didaacutetica30 cuja irregularidade linguiacutestica ajuda na memorizaccedilatildeo31 Todavia afinal tomo partido e entro tambeacutem no quarto grupo daqueles listados por Cordero o sujeito deve ser extraiacutedo do predicado isolado pois ἔστιν produz o sujeito32 De qualquer forma o sentido filosoacutefico eacute preciso haacute um caminho de inqueacuterito ao pensar que eacute aquele que pensa o ldquoeacuterdquo esse mesmo caminho eacute aquele ao pensar que natildeo eacute (e natildeo pode ser33) ldquocon-tradiccedilatildeordquo Depois haacute um outro caminho aquele ao pensar que ldquonatildeo eacuterdquo que eacute o caminho ao pensar que leva necessariamente agrave contradiccedilatildeo O primeiro eacute o 30 Segundo o relato platocircnico no diaacutelogo Parmecircnides Zenatildeo acompanhado de seu mestre foi para as Panateneias com a finalidade de defender a filosofia de seu mestre esclarecendo com seu livro repleto de paradoxos as ideias parmenidianas Isso sugere que o poema natildeo expunha articuladamente a filosofia de Parmecircnides mas que constituiacutesse um proacute-memoacuteria com as ideias em sua forma essencial depois elaboradas nas aulas pessoais (KURFESS 2012)31 Eacute extraordinaacuterio como essa simplificaccedilatildeo didaacutetica continue ativa por um lado distorcendo entretanto por outro mantendo viva a mensagem parmenidiana em todas as escolas de ensino meacutedio onde se estuda filosofia vox populi Parmecircnides eacute o filoacutesofo que disse ldquoO que eacute eacute e o que natildeo eacute natildeo eacuterdquo Por outro lado o estrangeiro de Eleia no Sofista lembra outro verso e natildeo este32 Essa questatildeo natildeo aprofundada aqui natildeo possui relevacircncia filosoacutefica no argumento apresentado pode ter relevacircncia se se considera o tipo de reflexatildeo ou seja se se discute a ldquoexperiecircnciardquo do natildeo-ser e principalmente a experiecircncia concreta de Parmecircnides que talvez esteja ligada a praacuteticas de incubaccedilatildeo Nesse caso a dimensatildeo reflexiva adentra a dimensatildeo oniacuterica a qual possui outra sintaxe e onde um simples ἔστιν vale mais de mil articulaccedilotildees sintaacuteticas Natildeo sabemos com certeza dessas praacuteticas em Eleia contudo esse sentido preacute-sintaacutetico natildeo estaacute descartado inclusive alguns estudiosos entre os quais o proacuteprio Cordero atribuem ao ἔστιν o sentido de um grito como um Eureka Sugestotildees nesse sentido se encontram na minha dissertaccedilatildeo sobre Melisso (GALGANO 2010)33 A interpretaccedilatildeo modal eacute tambeacutem perfeitamente coerente aqui

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caminho que estabelece o discurso coerente (persuasivo) e o segundo natildeo leva a lugar nenhum e deve ser evitado Mas para que se saiba o que deve ser evi-tado eacute preciso que se conheccedila a impossibilidade do segundo caminho A fim de que se possa seguir o primeiro caminho eacute necessaacuterio saber que existe um outro sempre agrave espreita o qual parece oferecer a verdade mas que natildeo oferece uma verdade confiaacutevel que leva necessariamente agrave contradiccedilatildeo de pensamento e de expressatildeo linguiacutestica

4 O MEacuteTODO DA NAtildeO-CONTRADICcedilAtildeO

Parmecircnides provavelmente a partir de sugestotildees pitagoacutericas medita sobre a oposiccedilatildeo ao que existe e assim descobre o ldquonatildeo-serrdquo Descobre que ldquonatildeo serrdquo ou seja negar o ser negar o que haacute eacute de todo impossiacutevel (natildeo eacute possiacutevel completamente) Entende entatildeo que o ldquonatildeo-serrdquo essa impossibilidade eacute algo que a mente pensa julgando que esse pensamento leva por um caminho mas que na verdade ele descobre leva por outro caminho aquele que nunca che-ga a lugar nenhum Esse caminho que leva para lugar nenhum eacute o caminho dos mortais os quais confundem ser e natildeo ser No entanto o saacutebio deve saber distinguir por um lado o caminho do ldquoeacuterdquo que eacute o caminho do discurso natildeo contraditoacuterio e por outro lado o caminho do ldquonatildeo eacuterdquo que eacute o caminho do discurso que eacute tornado vatildeo pela contradiccedilatildeo

Parmecircnides descobre a contradiccedilatildeo (pela meditaccedilatildeo sobre o natildeo-ser) e percebe que ela eacute motivo de descaminho no discurso sobre o mundo Assim finalmente ele anuncia que a contradiccedilatildeo deve ser evitada A esse enunciado noacutes chamamos de princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo que aqui eacute aquele na versatildeo de Parmecircnides (depois a partir de Platatildeo e Aristoacuteteles haveraacute outras versotildees) Parmecircnides trabalha em acircmbito cosmoloacutegico e sua preocupaccedilatildeo ndash como os de seus colegas na eacutepoca ndash eacute com o mundo com a totalidade das coisas com os πάντα de seu proecircmio (128) Nesse acircmbito cosmoloacutegico descobre que haacute um princiacutepio do mundo pelo qual se daacute uma impossibilidade a contradiccedilatildeo A contradiccedilatildeo eacute um princiacutepio porque o que haacute (πάντα) enquanto todo escapa agrave negaccedilatildeo total Eis que a contradiccedilatildeo eacute princiacutepio tanto quanto a natildeo-contra-diccedilatildeo porque eacute a contradiccedilatildeo que permite a natildeo-contradiccedilatildeo Sem a noccedilatildeo de contradiccedilatildeo se anda com sentidos incertos como os mortais

O valor dessa afirmaccedilatildeo eacute historicamente inabalaacutevel porque Parmecircni-des partindo de um discurso sobre o mundo como que visto de fora por um observador (como Anaximandro via o mundo olhando seu pinax - cf ROS-

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SETTI 2013) alcanccedila um discurso que inclui o observador enquanto obser-vador estreando assim antes de tudo um discurso sobre os entes (ontologia) todos os entes incluindo os entes de pensamento (veja-se o famoso fragmento 3 onde se lecirc que pensar e ser satildeo o mesmo) Para ele o saacutebio natildeo eacute mais aquele que sabe soacute sobre as coisas externas ndash como o antigo xamatilde cuja figura indi-vidual se dissolve na mera intermediaccedilatildeo com o divino ndash poreacutem eacute tambeacutem aquele que consegue pensar sobre as coisas externas ou seja aquele que tem um domiacutenio cognitivo sobre os pensamentos de inqueacuterito e portanto sabe so-bre si mesmo Assim o saacutebio deve pensar por proacutepria conta e julgar pelo novo criteacuterio e natildeo pelo habitual discurso (κρῖναι δὲ λόγωι DK 75) ou seja natildeo deve julgar pelo discurso mas julgar o discurso porque agora o discurso enri-quecido de uma lei universal (a lei das αρχάι ἔστιν e οὐκ ἔστιν) possui uma medida de juiacutezo Parmecircnides amplia o mundo acrescentando ao mundo fiacutesico os mundos do pensamento e da linguagem Eis porque as αρχάι de Parmecircni-des sendo duas permanecem duas justamente eliminado uma delas deixando alguns criacuteticos enlouquecidos na discussatildeo sobre o monismo ou o dualismo de acordo com Parmecircnides o mundo eacute um todavia os sentidos nos enganam natildeo na pluralidade das coisas mas no argumento a respeito da pluralidade das coisas e principalmente ndash aspecto que ele discute explicitamente ndash a respeito do devir das coisas Haacute um princiacutepio que natildeo pode ser eliminado a contra-diccedilatildeo o qual eacute um princiacutepio de erro humano quando se elimina quando se desconsidera quando se faz de conta que natildeo existe a contradiccedilatildeo se instaura quando o princiacutepio eacute levado em conta a contradiccedilatildeo pode ser evitada

Eacute uma conceituaccedilatildeo esdruacutexula para noacutes tambeacutem porque temos que ter (a noccedilatildeo de) a contradiccedilatildeo para eliminar a contradiccedilatildeo temos que saber o que eacute contradiccedilatildeo para que possamos perceber quando o discurso eacute con-traditoacuterio Esses conceitos satildeo misteriosos ateacute agora e satildeo estranhas criaturas de nossas mentes Por exemplo a noccedilatildeo de ldquoimpossiacutevelrdquo obviamente (isto eacute para a nossa pragmaacutetica) natildeo se refere a nada de concreto no entanto temos essa noccedilatildeo e a usamos com o maacuteximo proveito outro exemplo a noccedilatildeo de ldquoinfinitordquo noccedilatildeo que natildeo se refere a algo pragmaticamente concreto mas que usamos igualmente com maacuteximo proveito O mesmo deve ser dito da noccedilatildeo de contradiccedilatildeo ou da noccedilatildeo de nada absoluto que usamos pragmaticamente com maior ou menor proveito

Parmecircnides encontra esse caminho e o expotildee Eacute um caminho assom-broso anti-intuitivo mas incontestaacutevel Dessa forma natildeo eacute de estranhar se a soluccedilatildeo platocircnica eacute a eliminaccedilatildeo fiacutesica da noccedilatildeo de nada absoluto (o par-

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riciacutedio) com sucessivo ldquoadeusrdquo34 achando de tecirc-lo ultrapassado Mas o nada absoluto enquanto noccedilatildeo contraditoacuteria permanece Assim como permane-ce a explicaccedilatildeo defeituosa do devir o qual assim como o conhecemos uma passagem do nada ao ser no nascimento e do ser ao nada no perecimento estaacute mal explicado Daqui por diante os comentaacuterios filosoacuteficos possiacuteveis satildeo inuacutemeros por conseguinte paro meu estudo neste ponto e proponho a versatildeo do fragmento 2 segundo a conceituaccedilatildeo apresentada ateacute aqui alterando de pouco a excelente versatildeo baacutesica de Cavalcante de Souza

Pois bem eu te direi e tu recebe a palavra que ouviste

os uacutenicos caminhos de inqueacuterito que satildeo a pensar

o primeiro que eacute e portanto que natildeo eacute (o caminho da) contradiccedilatildeo

de persuasatildeo eacute o caminho (pois agrave verdade acompanha)

o outro que natildeo eacute e portanto que eacute necessariamente (o caminho da) contradiccedilatildeo

este entatildeo eu te digo eacute atalho de todo incriacutevel

pois nem conhecerias o que natildeo eacute (pois natildeo eacute exequiacutevel)

nem o dirias

GALGANO N S Non-being in Parmenides of Elea Transformaccedilatildeo Mariacutelia v 41 n 2 p 9-36 AbrJun 2018

ABSTRACT In fragment DK 28 B 2 of his poem Parmenides presents his method for distinguishing true persuasion from the lack of true persuasion His famous proposal of these two ways of thinking form a complex statement of a system that intends to guarantee the veracity of statements in order to obtain reliable discourse the only discourse capable of true persuasion The present paper shows that the central role in Parmenidian argumentation is attributed to non-being a notion derived from a reflection on the impossibility of the negation of being Thus the whole fragment is interpreted in terms of this central notion We show that Parmenides discovered the impossibility of negation which we now call lsquocontradictionrsquo and that he articulated the means for avoiding contradiction in thought and discourse a rule which today we call the principle of non-contradiction The study presented here is a detailed investigation of the notion of non-being in the DK 28 B 2 fragment and includes a new translation of it

KEYWORDS Parmenides Non-being Non-contradiction Eleatism Parricide

34 Platatildeo Soph 258e7-259a1 ἡμεῖς γὰρ περὶ μὲν ἐναντίου τινὸς αὐτῷ χαίρειν πάλαι λέγομεν εἴτrsquo ἔστιν εἴτε μή λόγον ἔχον ἢ καὶ παντάπασιν ἄλογον

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O natildeo-ser em Parmecircnides de Eleia Artigos Articles

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Page 20: O NÃO SER EM PARMÊNIDES ELEIA - SciELO · Trans/Form/Ação, Marília, v. 41, n. 2, p. 9-36, Abr./Jun., 2018 9 O não-ser em Parmênides de Eleia Artigos / Articles O NÃO-SER EM

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rio e a expressatildeo ldquonatildeo-serrdquo indica tatildeo somente uma impossibilidade concreta aquela de que se realize o impossiacutevel

Vamos voltar ao nosso argumento e agrave questatildeo que deixamos em suspenso por que eacute necessaacuterio que μὴ εἶναι seja Sabemos que os versos 7 e 8 relatam um processo malogrado de pensar o natildeo ente (τό μὴ ἐὸν) Uso agora a palavra ente porque se justifica uma diferenciaccedilatildeo embora tanto ldquoenterdquo quanto ldquoserrdquo indiquem expressotildees gerais e natildeo individuais ldquoEnterdquo vem por conseguinte a significar o ente concreto aquele que eacute Parmecircnides sustenta que natildeo se pode pensar e dizer τό μὴ ἐὸν o ldquonatildeo enterdquo Esse processo recebe o nome de μὴ εἶναι ldquonatildeo-serrdquo a esse processo noacutes chamamos contradiccedilatildeo27 Entatildeo a indicaccedilatildeo eacute esta haacute um caminho ao pensar que pensa μὴ εἶναι (a contradiccedilatildeo) e eacute necessaacuterio que assim seja porque (vou repetir trecircs vezes de forma diferente28 para significar a mesma coisa)

1) se natildeo houvesse a contradiccedilatildeo

2) se natildeo se tem a noccedilatildeo de contradiccedilatildeo

3) se natildeo se sabe o que eacute contradiccedilatildeo

cai-se no discurso contraditoacuterio o que impede o inqueacuterito confiaacutevel Eacute ne-cessaacuterio saber que μὴ εἶναι (o processo de contradiccedilatildeo) eacute um caminho a ser evitado porque cria pensamentos e discursos contraditoacuterios

Vejamos de novo nosso fragmento com os elementos esclarecidos ateacute aqui

os uacutenicos caminhos de inqueacuterito a pensar satildeo

por um lado que [ versos 3 e 4]

e por outro lado que οὐκ ἔστιν e que eacute necessaacuterio que seja a contradiccedilatildeo (μὴ εἶναι)

a qual eacute um caminho natildeo criacutevel

pois eacute impossiacutevel pensar e dizer o natildeo ente (τό μὴ ἐὸν)

27 Mesmo para noacutes a contradiccedilatildeo eacute um processo porque indica a posiccedilatildeo de algo em contraposiccedilatildeo com mais algo isso significa que esses dois algos tecircm que ser relacionados para que haja contradiccedilatildeo do contraacuterio algo e mais algo podem conviver sem contraditoriedade Contudo esse assunto estaacute fora de tema e requer muitas outras providecircncias para o bom discernimento28 Repito buscando clareza pois nossas construccedilotildees comuns de linguagem nesses assuntos costumam ldquopatinarrdquo

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Penso que o espaccedilo conceitual deixado por οὐκ ἔστιν agora se pre-encha quase que por si haacute um caminho de inqueacuterito ao pensar que ldquonatildeo eacuterdquo e que eacute necessaacuterio que se considere contraditoacuterio porque eacute caminho que natildeo leva a lugar nenhum

A expressatildeo οὐκ ἔστιν eacute a negaccedilatildeo da terceira pessoa do indicativo de εἰμί a expressatildeo em si natildeo tem nada de especial significa tatildeo somente ldquonatildeo eacuterdquo restando em aberto o problema da ausecircncia de sujeito Mas agora sabemos o argumento complexo que estaacute na raiz da expressatildeo e a meu ver natildeo faz muito sentido a questatildeo de buscar um sujeito ou um objeto para definir se eacute usado de forma transitiva ou intransitiva se expressa existecircncia ou predicaccedilatildeo e as muitas combinaccedilotildees que podem ser montadas a partir da equivocidade do uso de εἰμί No entanto o acircmbito semacircntico foi evidenciado e estaacute claro e aleacutem do mais tem o testemunho de Platatildeo a confirmar o campo semacircntico da negaccedilatildeo de εἰμί nas vaacuterias formas estaacute relacionado a uma reflexatildeo sobre a impossibili-dade dessa negaccedilatildeo Obviamente para dizer que algo eacute impossiacutevel de alguma forma tenho que indicar essa impossibilidade com alguma expressatildeo Assim se digo ldquotriacircngulo quadradordquo aponto para uma impossibilidade jaacute que por defi-niccedilatildeo a essecircncia do triacircngulo exclui a essecircncia do quadrado logo a expressatildeo ldquotriacircngulo quadradordquo natildeo significa aquilo que parece prometer ou seja natildeo significa uma figura geomeacutetrica especial que eacute ao mesmo tempo triacircngulo e quadrado dizer ldquotriacircngulo quadradordquo eacute dizer algo ldquoindiziacutevelrdquo ldquonatildeo diziacutevelrdquo (na medida em que o diziacutevel quer expressar sentido) ldquoque nega o diziacutevelrdquo ldquoque eacute contra o diziacutevelrdquo que eacute contraditoacuterio

A semacircntica do ldquonatildeo serrdquo eacute fortiacutessima e estaacute muito aleacutem das sutilezas gramaticais morfoloacutegicas e sintaacuteticas e estas simplesmente natildeo afetam aquela O assunto tratado eacute tatildeo forte que ultrapassa qualquer forma linguiacutestica a pon-to de que esse assunto a ordem do ser e do natildeo-ser no mundo eacute responsaacutevel pela determinaccedilatildeo da lei da linguagem e natildeo vice-versa como bem entendeu Platatildeo no Sofista onde a teoria da predicaccedilatildeo surge em funccedilatildeo de uma refle-xatildeo sobre a ordem das leis baacutesicas do mundo Com efeito o approach linguiacutes-tico ao poema pode proceder ateacute certo ponto dali em diante o poema eacute fran-camente filosoacutefico e a chave linguiacutestica natildeo eacute suficiente para o acesso Isso quer dizer que com a chave linguiacutestica natildeo se abre a porta da questatildeo filosoacutefica do poema Se a questatildeo eacute que ldquojamais o natildeo ser pode se tornar serrdquo como (apro-ximadamente com essas palavras) argumenta Platatildeo citando Parmecircnides en-tatildeo diante da semacircntica que οὐκ ἔστιν apresenta discutir o sujeito de οὐκ ἔστιν se torna tarefa menor Considerada a desproporccedilatildeo entre o conteuacutedo (a

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semacircntica) e o recipiente (a palavra) entre o significado e o significante natildeo eacute impossiacutevel que οὐκ ἔστιν seja tatildeo somente uma expressatildeo simplificada quem sabe ateacute mesmo uma simplificaccedilatildeo didaacutetica pois o conteuacutedo do conceito estaacute expresso e justificado depois nos versos 7 e 8

O caminho de pensar que natildeo eacute e de pensar que eacute necessaacuterio natildeo ser eacute o caminho que afirma a necessidade de que a noccedilatildeo de natildeo-ser permaneccedila estaacutevel A contradiccedilatildeo tem que permanecer e ser identificada como tal pois eacute a uacutenica maneira de evitar que ela entre no pensamento e no discurso Se o ldquonatildeo-serrdquo natildeo for considerado contraditoacuterio a contradiccedilatildeo invade e domina o caminho de inqueacuterito o qual deixa de possuir πίστις ἀληθής (130) Assim eacute preciso que esse caminho seja identificado como μὴ εἶναι por um lado o ldquonatildeo-serrdquo eacute incognosciacutevel (οὔτε γὰρ ἂν γνοίης) mas por outro lado eacute neces-saacuterio que se saiba que ele eacute incognosciacutevel Saber do incognosciacutevel garante o conhecimento29 pois de fato ao natildeo se identificar o ldquonatildeo-serrdquo cai-se no risco de pensar que ldquoserrdquo e ldquonatildeo-serrdquo satildeo o mesmo e natildeo o mesmo como Parmecircni-des afirma em DK 6 5-6 Necessariamente o caminho que pensa οὐκ ἔστιν leva ao processo de contradiccedilatildeo (μὴ εἶναι) e a natildeo conclusatildeo do caminho (ἀνυστόν) natildeo eacute evidente na expressatildeo pelo contraacuterio τό μὴ ἐὸν parece uma negaccedilatildeo comum como qualquer outra poreacutem natildeo o eacute por isso eacute um saber destinado ao saacutebio e natildeo aos mortais porque eacute um saber fruto de uma reflexatildeo

34 DE VOLTA AOS VERSOS 3 E 4

Penso que podemos agora voltar ao verso 23 ao nosso segundo he-mistiacutequio onde aparece a expressatildeo μὴ εἶναι da qual jaacute temos a semacircntica Podemos entatildeo reconstruir ldquoos uacutenicos caminhos de inqueacuterito a pensar satildeo

por um lado a pensar que [ldquoArdquo] e tambeacutem a pensar que οὐκ ἔστι μὴ εἶναι este eacute caminho de persuasatildeo pois verdade acompanha e

por outro lado a pensar que ldquonatildeo eacuterdquo e tambeacutem a pensar que eacute necessariamente um percurso de pensamento contraditoacuterio porque eacute um caminho ldquoimpossiacutevelrdquo (παναπευθέα) pois o pensamento do ldquonatildeo enterdquo natildeo pode ser completado

O οὐκ ἔστι do verso 3 parece ser diferente do οὐκ ἔστιν do verso 5 Enquanto no 5 ele eacute quase que o nome do caminho (talvez uma simplificaccedilatildeo didaacutetica) no 3 parece significar simplesmente ldquonatildeo eacuterdquo em sentido comum

29 Estaacute aqui uma semente do socratismo

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predicativo De fato esse eacute o caminho da persuasatildeo e portanto eacute o caminho do pensamento natildeo-contraditoacuterio Ali a persuasatildeo era impossiacutevel pela con-tradiccedilatildeo aqui eacute possiacutevel pela natildeo-contradiccedilatildeo Sabemos que a expressatildeo μὴ εἶναι eacute a expressatildeo da contradiccedilatildeo suprema de sorte que a natildeo-contradiccedilatildeo eacute a negaccedilatildeo de μὴ εἶναι A traduccedilatildeo de οὐκ ἔστι fica faacutecil embora para a nossa sensibilidade possa parecer algo improacuteprio usar duas vezes οὐκ ἔστι de forma natildeo perfeitamente uniacutevoca a dois versos de distacircncia Logo para o segundo hemistiacutequio do v 3 mantenho esta traduccedilatildeo ldquonatildeo eacuterdquo em parte ambiacutegua para nossas exigecircncias mas que soa perfeitamente harmocircnica com o discurso par-menidiano [] ao pensar que [ldquoArdquo] e que natildeo eacute ldquocontradiccedilatildeordquo (μὴ εἶναι)

Acredito por fim que podemos abordar facilmente o ἔστιν do verso 3 que tanto fez e faz penar os estudiosos de Parmecircnides Aqui de novo a grandeza da questatildeo cosmoloacutegica envolvida ndash a coerecircncia eou a contradito-riedade do real ndash simplesmente torna tatildeo minuacutescula a questatildeo do sujeito de ἔστιν que ela quase desaparece Eu tenho a tendecircncia a pensar que a falta de sujeito seja uma simplificaccedilatildeo didaacutetica30 cuja irregularidade linguiacutestica ajuda na memorizaccedilatildeo31 Todavia afinal tomo partido e entro tambeacutem no quarto grupo daqueles listados por Cordero o sujeito deve ser extraiacutedo do predicado isolado pois ἔστιν produz o sujeito32 De qualquer forma o sentido filosoacutefico eacute preciso haacute um caminho de inqueacuterito ao pensar que eacute aquele que pensa o ldquoeacuterdquo esse mesmo caminho eacute aquele ao pensar que natildeo eacute (e natildeo pode ser33) ldquocon-tradiccedilatildeordquo Depois haacute um outro caminho aquele ao pensar que ldquonatildeo eacuterdquo que eacute o caminho ao pensar que leva necessariamente agrave contradiccedilatildeo O primeiro eacute o 30 Segundo o relato platocircnico no diaacutelogo Parmecircnides Zenatildeo acompanhado de seu mestre foi para as Panateneias com a finalidade de defender a filosofia de seu mestre esclarecendo com seu livro repleto de paradoxos as ideias parmenidianas Isso sugere que o poema natildeo expunha articuladamente a filosofia de Parmecircnides mas que constituiacutesse um proacute-memoacuteria com as ideias em sua forma essencial depois elaboradas nas aulas pessoais (KURFESS 2012)31 Eacute extraordinaacuterio como essa simplificaccedilatildeo didaacutetica continue ativa por um lado distorcendo entretanto por outro mantendo viva a mensagem parmenidiana em todas as escolas de ensino meacutedio onde se estuda filosofia vox populi Parmecircnides eacute o filoacutesofo que disse ldquoO que eacute eacute e o que natildeo eacute natildeo eacuterdquo Por outro lado o estrangeiro de Eleia no Sofista lembra outro verso e natildeo este32 Essa questatildeo natildeo aprofundada aqui natildeo possui relevacircncia filosoacutefica no argumento apresentado pode ter relevacircncia se se considera o tipo de reflexatildeo ou seja se se discute a ldquoexperiecircnciardquo do natildeo-ser e principalmente a experiecircncia concreta de Parmecircnides que talvez esteja ligada a praacuteticas de incubaccedilatildeo Nesse caso a dimensatildeo reflexiva adentra a dimensatildeo oniacuterica a qual possui outra sintaxe e onde um simples ἔστιν vale mais de mil articulaccedilotildees sintaacuteticas Natildeo sabemos com certeza dessas praacuteticas em Eleia contudo esse sentido preacute-sintaacutetico natildeo estaacute descartado inclusive alguns estudiosos entre os quais o proacuteprio Cordero atribuem ao ἔστιν o sentido de um grito como um Eureka Sugestotildees nesse sentido se encontram na minha dissertaccedilatildeo sobre Melisso (GALGANO 2010)33 A interpretaccedilatildeo modal eacute tambeacutem perfeitamente coerente aqui

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caminho que estabelece o discurso coerente (persuasivo) e o segundo natildeo leva a lugar nenhum e deve ser evitado Mas para que se saiba o que deve ser evi-tado eacute preciso que se conheccedila a impossibilidade do segundo caminho A fim de que se possa seguir o primeiro caminho eacute necessaacuterio saber que existe um outro sempre agrave espreita o qual parece oferecer a verdade mas que natildeo oferece uma verdade confiaacutevel que leva necessariamente agrave contradiccedilatildeo de pensamento e de expressatildeo linguiacutestica

4 O MEacuteTODO DA NAtildeO-CONTRADICcedilAtildeO

Parmecircnides provavelmente a partir de sugestotildees pitagoacutericas medita sobre a oposiccedilatildeo ao que existe e assim descobre o ldquonatildeo-serrdquo Descobre que ldquonatildeo serrdquo ou seja negar o ser negar o que haacute eacute de todo impossiacutevel (natildeo eacute possiacutevel completamente) Entende entatildeo que o ldquonatildeo-serrdquo essa impossibilidade eacute algo que a mente pensa julgando que esse pensamento leva por um caminho mas que na verdade ele descobre leva por outro caminho aquele que nunca che-ga a lugar nenhum Esse caminho que leva para lugar nenhum eacute o caminho dos mortais os quais confundem ser e natildeo ser No entanto o saacutebio deve saber distinguir por um lado o caminho do ldquoeacuterdquo que eacute o caminho do discurso natildeo contraditoacuterio e por outro lado o caminho do ldquonatildeo eacuterdquo que eacute o caminho do discurso que eacute tornado vatildeo pela contradiccedilatildeo

Parmecircnides descobre a contradiccedilatildeo (pela meditaccedilatildeo sobre o natildeo-ser) e percebe que ela eacute motivo de descaminho no discurso sobre o mundo Assim finalmente ele anuncia que a contradiccedilatildeo deve ser evitada A esse enunciado noacutes chamamos de princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo que aqui eacute aquele na versatildeo de Parmecircnides (depois a partir de Platatildeo e Aristoacuteteles haveraacute outras versotildees) Parmecircnides trabalha em acircmbito cosmoloacutegico e sua preocupaccedilatildeo ndash como os de seus colegas na eacutepoca ndash eacute com o mundo com a totalidade das coisas com os πάντα de seu proecircmio (128) Nesse acircmbito cosmoloacutegico descobre que haacute um princiacutepio do mundo pelo qual se daacute uma impossibilidade a contradiccedilatildeo A contradiccedilatildeo eacute um princiacutepio porque o que haacute (πάντα) enquanto todo escapa agrave negaccedilatildeo total Eis que a contradiccedilatildeo eacute princiacutepio tanto quanto a natildeo-contra-diccedilatildeo porque eacute a contradiccedilatildeo que permite a natildeo-contradiccedilatildeo Sem a noccedilatildeo de contradiccedilatildeo se anda com sentidos incertos como os mortais

O valor dessa afirmaccedilatildeo eacute historicamente inabalaacutevel porque Parmecircni-des partindo de um discurso sobre o mundo como que visto de fora por um observador (como Anaximandro via o mundo olhando seu pinax - cf ROS-

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O natildeo-ser em Parmecircnides de Eleia Artigos Articles

SETTI 2013) alcanccedila um discurso que inclui o observador enquanto obser-vador estreando assim antes de tudo um discurso sobre os entes (ontologia) todos os entes incluindo os entes de pensamento (veja-se o famoso fragmento 3 onde se lecirc que pensar e ser satildeo o mesmo) Para ele o saacutebio natildeo eacute mais aquele que sabe soacute sobre as coisas externas ndash como o antigo xamatilde cuja figura indi-vidual se dissolve na mera intermediaccedilatildeo com o divino ndash poreacutem eacute tambeacutem aquele que consegue pensar sobre as coisas externas ou seja aquele que tem um domiacutenio cognitivo sobre os pensamentos de inqueacuterito e portanto sabe so-bre si mesmo Assim o saacutebio deve pensar por proacutepria conta e julgar pelo novo criteacuterio e natildeo pelo habitual discurso (κρῖναι δὲ λόγωι DK 75) ou seja natildeo deve julgar pelo discurso mas julgar o discurso porque agora o discurso enri-quecido de uma lei universal (a lei das αρχάι ἔστιν e οὐκ ἔστιν) possui uma medida de juiacutezo Parmecircnides amplia o mundo acrescentando ao mundo fiacutesico os mundos do pensamento e da linguagem Eis porque as αρχάι de Parmecircni-des sendo duas permanecem duas justamente eliminado uma delas deixando alguns criacuteticos enlouquecidos na discussatildeo sobre o monismo ou o dualismo de acordo com Parmecircnides o mundo eacute um todavia os sentidos nos enganam natildeo na pluralidade das coisas mas no argumento a respeito da pluralidade das coisas e principalmente ndash aspecto que ele discute explicitamente ndash a respeito do devir das coisas Haacute um princiacutepio que natildeo pode ser eliminado a contra-diccedilatildeo o qual eacute um princiacutepio de erro humano quando se elimina quando se desconsidera quando se faz de conta que natildeo existe a contradiccedilatildeo se instaura quando o princiacutepio eacute levado em conta a contradiccedilatildeo pode ser evitada

Eacute uma conceituaccedilatildeo esdruacutexula para noacutes tambeacutem porque temos que ter (a noccedilatildeo de) a contradiccedilatildeo para eliminar a contradiccedilatildeo temos que saber o que eacute contradiccedilatildeo para que possamos perceber quando o discurso eacute con-traditoacuterio Esses conceitos satildeo misteriosos ateacute agora e satildeo estranhas criaturas de nossas mentes Por exemplo a noccedilatildeo de ldquoimpossiacutevelrdquo obviamente (isto eacute para a nossa pragmaacutetica) natildeo se refere a nada de concreto no entanto temos essa noccedilatildeo e a usamos com o maacuteximo proveito outro exemplo a noccedilatildeo de ldquoinfinitordquo noccedilatildeo que natildeo se refere a algo pragmaticamente concreto mas que usamos igualmente com maacuteximo proveito O mesmo deve ser dito da noccedilatildeo de contradiccedilatildeo ou da noccedilatildeo de nada absoluto que usamos pragmaticamente com maior ou menor proveito

Parmecircnides encontra esse caminho e o expotildee Eacute um caminho assom-broso anti-intuitivo mas incontestaacutevel Dessa forma natildeo eacute de estranhar se a soluccedilatildeo platocircnica eacute a eliminaccedilatildeo fiacutesica da noccedilatildeo de nada absoluto (o par-

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riciacutedio) com sucessivo ldquoadeusrdquo34 achando de tecirc-lo ultrapassado Mas o nada absoluto enquanto noccedilatildeo contraditoacuteria permanece Assim como permane-ce a explicaccedilatildeo defeituosa do devir o qual assim como o conhecemos uma passagem do nada ao ser no nascimento e do ser ao nada no perecimento estaacute mal explicado Daqui por diante os comentaacuterios filosoacuteficos possiacuteveis satildeo inuacutemeros por conseguinte paro meu estudo neste ponto e proponho a versatildeo do fragmento 2 segundo a conceituaccedilatildeo apresentada ateacute aqui alterando de pouco a excelente versatildeo baacutesica de Cavalcante de Souza

Pois bem eu te direi e tu recebe a palavra que ouviste

os uacutenicos caminhos de inqueacuterito que satildeo a pensar

o primeiro que eacute e portanto que natildeo eacute (o caminho da) contradiccedilatildeo

de persuasatildeo eacute o caminho (pois agrave verdade acompanha)

o outro que natildeo eacute e portanto que eacute necessariamente (o caminho da) contradiccedilatildeo

este entatildeo eu te digo eacute atalho de todo incriacutevel

pois nem conhecerias o que natildeo eacute (pois natildeo eacute exequiacutevel)

nem o dirias

GALGANO N S Non-being in Parmenides of Elea Transformaccedilatildeo Mariacutelia v 41 n 2 p 9-36 AbrJun 2018

ABSTRACT In fragment DK 28 B 2 of his poem Parmenides presents his method for distinguishing true persuasion from the lack of true persuasion His famous proposal of these two ways of thinking form a complex statement of a system that intends to guarantee the veracity of statements in order to obtain reliable discourse the only discourse capable of true persuasion The present paper shows that the central role in Parmenidian argumentation is attributed to non-being a notion derived from a reflection on the impossibility of the negation of being Thus the whole fragment is interpreted in terms of this central notion We show that Parmenides discovered the impossibility of negation which we now call lsquocontradictionrsquo and that he articulated the means for avoiding contradiction in thought and discourse a rule which today we call the principle of non-contradiction The study presented here is a detailed investigation of the notion of non-being in the DK 28 B 2 fragment and includes a new translation of it

KEYWORDS Parmenides Non-being Non-contradiction Eleatism Parricide

34 Platatildeo Soph 258e7-259a1 ἡμεῖς γὰρ περὶ μὲν ἐναντίου τινὸς αὐτῷ χαίρειν πάλαι λέγομεν εἴτrsquo ἔστιν εἴτε μή λόγον ἔχον ἢ καὶ παντάπασιν ἄλογον

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 41 n 2 p 9-36 AbrJun 2018 35

O natildeo-ser em Parmecircnides de Eleia Artigos Articles

REFEREcircNCIAS

BARNES J The presocratic philosophers Londres Routledge 1982

BONIFAZI A Problematizing early IE syndetic coordination ancient Greek ldquoandrdquo from Homer to Thucydides In CONGRESSO ldquoSYNTATIC CHANGE AND SYNTACTIC RECONSTRUCTION NEW PERSPECTIVESrdquo Abstract de paper Zurich 2012

CAVALCANTE DE SOUZA J (Dir) Os preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1978

CORDERO N L La deacuteesse de Parmeacutenide maitresse de philosophie In MATTEacuteI J F (Eacuted) La naissance de la raison en Gregravece Paris PUF 1990 p 207-214

______ Siendo se es la tesis de Parmeacutenides Buenos Aires Biblos 2005

COXON A H The fragments of Parmenides Revised and expanded edition Las Vegas Parmenides Publishing 2009

DENNISTON J D The greek particle 2 ed Oxford OUP 1954

GALGANO N A transgressatildeo de Melisso 2010 180 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Filosofia) - FFLCH-USP Satildeo Paulo 2010

______ A verdade tem um coraccedilatildeo intreacutepido em Una mirada actual a filosofia griega Madrid SIFG 2012

______ Amēkhaniacuteē in Parmenides DK 28 B 65 Journal of Ancient Philosophy (Engl Ed) v 10 n 2 p1-12 2016 Disponiacutevel em wwwrevistasuspbrfilosofiaantiga Acesso em 10 mar 2018

______ Parmenides as psychologist ndash part I fragments DK 1 and 2 Archai n 19 janabr p 167-205 2017a

______ Parmenides as psychologist ndash part II fragments DK 6 and 7 Archai n 20 maioago p 39-76 2017b

______ I precetti della dea Non essere e contraddizione in Parmenide di Elea Bologna Diogenes Multimedia 2017c

GALLOP D Parmenides of Elea fragments Toronto University of Toronto Press 1984

HUMBERT J Syntaxe greque 2 ed Paris Klincksieck 1954

KAHN C H The verb lsquobersquo in ancient greek 2 ed Indianapolis Hackett Publishing 2003

______ Essays on Being Oxford OUP 2009

KURFESS C Restoring Parmenidesrsquo poem essays toward a new arrangement of the fragments based on a reassessment of the original sources 2012 Tese (Doutorado) - University of Pittsburg Pittsburg 2012

MANSFELD J Die Offenbarung des Parmenideliche Welt Assen Van Gorcum 1964

36 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 41 n 2 p 9-36 AbrJun 2018

GALGANO N S

MEIJER P A Parmenides beyond the gates Amsterdam J C Gieben 1997

ROSSETTI L La structure du poeacuteme de Parmeacutenide Philosophie Antique Paris n 10 p 187-226 2010

______ Lrsquoideazione del pinax ldquomedial innovationrdquo di Anassimandro In LEAtildeO D CORNELLI G PEIXOTO M C (Ed) Dos homens e suas ideias estudos sobre as Vidas de Dioacutegenes Laeacutercio Coimbra Imprensa da Universidade de Coimbra 2013 p 89-100

SMYTH H W Greek grammar Cambridge Harvard University Press 1956

TARAacuteN L Parmenides Princeton Princeton University Press 1965

Recebido 12112015Aprovado 20112016

Page 21: O NÃO SER EM PARMÊNIDES ELEIA - SciELO · Trans/Form/Ação, Marília, v. 41, n. 2, p. 9-36, Abr./Jun., 2018 9 O não-ser em Parmênides de Eleia Artigos / Articles O NÃO-SER EM

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 41 n 2 p 9-36 AbrJun 2018 29

O natildeo-ser em Parmecircnides de Eleia Artigos Articles

Penso que o espaccedilo conceitual deixado por οὐκ ἔστιν agora se pre-encha quase que por si haacute um caminho de inqueacuterito ao pensar que ldquonatildeo eacuterdquo e que eacute necessaacuterio que se considere contraditoacuterio porque eacute caminho que natildeo leva a lugar nenhum

A expressatildeo οὐκ ἔστιν eacute a negaccedilatildeo da terceira pessoa do indicativo de εἰμί a expressatildeo em si natildeo tem nada de especial significa tatildeo somente ldquonatildeo eacuterdquo restando em aberto o problema da ausecircncia de sujeito Mas agora sabemos o argumento complexo que estaacute na raiz da expressatildeo e a meu ver natildeo faz muito sentido a questatildeo de buscar um sujeito ou um objeto para definir se eacute usado de forma transitiva ou intransitiva se expressa existecircncia ou predicaccedilatildeo e as muitas combinaccedilotildees que podem ser montadas a partir da equivocidade do uso de εἰμί No entanto o acircmbito semacircntico foi evidenciado e estaacute claro e aleacutem do mais tem o testemunho de Platatildeo a confirmar o campo semacircntico da negaccedilatildeo de εἰμί nas vaacuterias formas estaacute relacionado a uma reflexatildeo sobre a impossibili-dade dessa negaccedilatildeo Obviamente para dizer que algo eacute impossiacutevel de alguma forma tenho que indicar essa impossibilidade com alguma expressatildeo Assim se digo ldquotriacircngulo quadradordquo aponto para uma impossibilidade jaacute que por defi-niccedilatildeo a essecircncia do triacircngulo exclui a essecircncia do quadrado logo a expressatildeo ldquotriacircngulo quadradordquo natildeo significa aquilo que parece prometer ou seja natildeo significa uma figura geomeacutetrica especial que eacute ao mesmo tempo triacircngulo e quadrado dizer ldquotriacircngulo quadradordquo eacute dizer algo ldquoindiziacutevelrdquo ldquonatildeo diziacutevelrdquo (na medida em que o diziacutevel quer expressar sentido) ldquoque nega o diziacutevelrdquo ldquoque eacute contra o diziacutevelrdquo que eacute contraditoacuterio

A semacircntica do ldquonatildeo serrdquo eacute fortiacutessima e estaacute muito aleacutem das sutilezas gramaticais morfoloacutegicas e sintaacuteticas e estas simplesmente natildeo afetam aquela O assunto tratado eacute tatildeo forte que ultrapassa qualquer forma linguiacutestica a pon-to de que esse assunto a ordem do ser e do natildeo-ser no mundo eacute responsaacutevel pela determinaccedilatildeo da lei da linguagem e natildeo vice-versa como bem entendeu Platatildeo no Sofista onde a teoria da predicaccedilatildeo surge em funccedilatildeo de uma refle-xatildeo sobre a ordem das leis baacutesicas do mundo Com efeito o approach linguiacutes-tico ao poema pode proceder ateacute certo ponto dali em diante o poema eacute fran-camente filosoacutefico e a chave linguiacutestica natildeo eacute suficiente para o acesso Isso quer dizer que com a chave linguiacutestica natildeo se abre a porta da questatildeo filosoacutefica do poema Se a questatildeo eacute que ldquojamais o natildeo ser pode se tornar serrdquo como (apro-ximadamente com essas palavras) argumenta Platatildeo citando Parmecircnides en-tatildeo diante da semacircntica que οὐκ ἔστιν apresenta discutir o sujeito de οὐκ ἔστιν se torna tarefa menor Considerada a desproporccedilatildeo entre o conteuacutedo (a

30 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 41 n 2 p 9-36 AbrJun 2018

GALGANO N S

semacircntica) e o recipiente (a palavra) entre o significado e o significante natildeo eacute impossiacutevel que οὐκ ἔστιν seja tatildeo somente uma expressatildeo simplificada quem sabe ateacute mesmo uma simplificaccedilatildeo didaacutetica pois o conteuacutedo do conceito estaacute expresso e justificado depois nos versos 7 e 8

O caminho de pensar que natildeo eacute e de pensar que eacute necessaacuterio natildeo ser eacute o caminho que afirma a necessidade de que a noccedilatildeo de natildeo-ser permaneccedila estaacutevel A contradiccedilatildeo tem que permanecer e ser identificada como tal pois eacute a uacutenica maneira de evitar que ela entre no pensamento e no discurso Se o ldquonatildeo-serrdquo natildeo for considerado contraditoacuterio a contradiccedilatildeo invade e domina o caminho de inqueacuterito o qual deixa de possuir πίστις ἀληθής (130) Assim eacute preciso que esse caminho seja identificado como μὴ εἶναι por um lado o ldquonatildeo-serrdquo eacute incognosciacutevel (οὔτε γὰρ ἂν γνοίης) mas por outro lado eacute neces-saacuterio que se saiba que ele eacute incognosciacutevel Saber do incognosciacutevel garante o conhecimento29 pois de fato ao natildeo se identificar o ldquonatildeo-serrdquo cai-se no risco de pensar que ldquoserrdquo e ldquonatildeo-serrdquo satildeo o mesmo e natildeo o mesmo como Parmecircni-des afirma em DK 6 5-6 Necessariamente o caminho que pensa οὐκ ἔστιν leva ao processo de contradiccedilatildeo (μὴ εἶναι) e a natildeo conclusatildeo do caminho (ἀνυστόν) natildeo eacute evidente na expressatildeo pelo contraacuterio τό μὴ ἐὸν parece uma negaccedilatildeo comum como qualquer outra poreacutem natildeo o eacute por isso eacute um saber destinado ao saacutebio e natildeo aos mortais porque eacute um saber fruto de uma reflexatildeo

34 DE VOLTA AOS VERSOS 3 E 4

Penso que podemos agora voltar ao verso 23 ao nosso segundo he-mistiacutequio onde aparece a expressatildeo μὴ εἶναι da qual jaacute temos a semacircntica Podemos entatildeo reconstruir ldquoos uacutenicos caminhos de inqueacuterito a pensar satildeo

por um lado a pensar que [ldquoArdquo] e tambeacutem a pensar que οὐκ ἔστι μὴ εἶναι este eacute caminho de persuasatildeo pois verdade acompanha e

por outro lado a pensar que ldquonatildeo eacuterdquo e tambeacutem a pensar que eacute necessariamente um percurso de pensamento contraditoacuterio porque eacute um caminho ldquoimpossiacutevelrdquo (παναπευθέα) pois o pensamento do ldquonatildeo enterdquo natildeo pode ser completado

O οὐκ ἔστι do verso 3 parece ser diferente do οὐκ ἔστιν do verso 5 Enquanto no 5 ele eacute quase que o nome do caminho (talvez uma simplificaccedilatildeo didaacutetica) no 3 parece significar simplesmente ldquonatildeo eacuterdquo em sentido comum

29 Estaacute aqui uma semente do socratismo

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O natildeo-ser em Parmecircnides de Eleia Artigos Articles

predicativo De fato esse eacute o caminho da persuasatildeo e portanto eacute o caminho do pensamento natildeo-contraditoacuterio Ali a persuasatildeo era impossiacutevel pela con-tradiccedilatildeo aqui eacute possiacutevel pela natildeo-contradiccedilatildeo Sabemos que a expressatildeo μὴ εἶναι eacute a expressatildeo da contradiccedilatildeo suprema de sorte que a natildeo-contradiccedilatildeo eacute a negaccedilatildeo de μὴ εἶναι A traduccedilatildeo de οὐκ ἔστι fica faacutecil embora para a nossa sensibilidade possa parecer algo improacuteprio usar duas vezes οὐκ ἔστι de forma natildeo perfeitamente uniacutevoca a dois versos de distacircncia Logo para o segundo hemistiacutequio do v 3 mantenho esta traduccedilatildeo ldquonatildeo eacuterdquo em parte ambiacutegua para nossas exigecircncias mas que soa perfeitamente harmocircnica com o discurso par-menidiano [] ao pensar que [ldquoArdquo] e que natildeo eacute ldquocontradiccedilatildeordquo (μὴ εἶναι)

Acredito por fim que podemos abordar facilmente o ἔστιν do verso 3 que tanto fez e faz penar os estudiosos de Parmecircnides Aqui de novo a grandeza da questatildeo cosmoloacutegica envolvida ndash a coerecircncia eou a contradito-riedade do real ndash simplesmente torna tatildeo minuacutescula a questatildeo do sujeito de ἔστιν que ela quase desaparece Eu tenho a tendecircncia a pensar que a falta de sujeito seja uma simplificaccedilatildeo didaacutetica30 cuja irregularidade linguiacutestica ajuda na memorizaccedilatildeo31 Todavia afinal tomo partido e entro tambeacutem no quarto grupo daqueles listados por Cordero o sujeito deve ser extraiacutedo do predicado isolado pois ἔστιν produz o sujeito32 De qualquer forma o sentido filosoacutefico eacute preciso haacute um caminho de inqueacuterito ao pensar que eacute aquele que pensa o ldquoeacuterdquo esse mesmo caminho eacute aquele ao pensar que natildeo eacute (e natildeo pode ser33) ldquocon-tradiccedilatildeordquo Depois haacute um outro caminho aquele ao pensar que ldquonatildeo eacuterdquo que eacute o caminho ao pensar que leva necessariamente agrave contradiccedilatildeo O primeiro eacute o 30 Segundo o relato platocircnico no diaacutelogo Parmecircnides Zenatildeo acompanhado de seu mestre foi para as Panateneias com a finalidade de defender a filosofia de seu mestre esclarecendo com seu livro repleto de paradoxos as ideias parmenidianas Isso sugere que o poema natildeo expunha articuladamente a filosofia de Parmecircnides mas que constituiacutesse um proacute-memoacuteria com as ideias em sua forma essencial depois elaboradas nas aulas pessoais (KURFESS 2012)31 Eacute extraordinaacuterio como essa simplificaccedilatildeo didaacutetica continue ativa por um lado distorcendo entretanto por outro mantendo viva a mensagem parmenidiana em todas as escolas de ensino meacutedio onde se estuda filosofia vox populi Parmecircnides eacute o filoacutesofo que disse ldquoO que eacute eacute e o que natildeo eacute natildeo eacuterdquo Por outro lado o estrangeiro de Eleia no Sofista lembra outro verso e natildeo este32 Essa questatildeo natildeo aprofundada aqui natildeo possui relevacircncia filosoacutefica no argumento apresentado pode ter relevacircncia se se considera o tipo de reflexatildeo ou seja se se discute a ldquoexperiecircnciardquo do natildeo-ser e principalmente a experiecircncia concreta de Parmecircnides que talvez esteja ligada a praacuteticas de incubaccedilatildeo Nesse caso a dimensatildeo reflexiva adentra a dimensatildeo oniacuterica a qual possui outra sintaxe e onde um simples ἔστιν vale mais de mil articulaccedilotildees sintaacuteticas Natildeo sabemos com certeza dessas praacuteticas em Eleia contudo esse sentido preacute-sintaacutetico natildeo estaacute descartado inclusive alguns estudiosos entre os quais o proacuteprio Cordero atribuem ao ἔστιν o sentido de um grito como um Eureka Sugestotildees nesse sentido se encontram na minha dissertaccedilatildeo sobre Melisso (GALGANO 2010)33 A interpretaccedilatildeo modal eacute tambeacutem perfeitamente coerente aqui

32 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 41 n 2 p 9-36 AbrJun 2018

GALGANO N S

caminho que estabelece o discurso coerente (persuasivo) e o segundo natildeo leva a lugar nenhum e deve ser evitado Mas para que se saiba o que deve ser evi-tado eacute preciso que se conheccedila a impossibilidade do segundo caminho A fim de que se possa seguir o primeiro caminho eacute necessaacuterio saber que existe um outro sempre agrave espreita o qual parece oferecer a verdade mas que natildeo oferece uma verdade confiaacutevel que leva necessariamente agrave contradiccedilatildeo de pensamento e de expressatildeo linguiacutestica

4 O MEacuteTODO DA NAtildeO-CONTRADICcedilAtildeO

Parmecircnides provavelmente a partir de sugestotildees pitagoacutericas medita sobre a oposiccedilatildeo ao que existe e assim descobre o ldquonatildeo-serrdquo Descobre que ldquonatildeo serrdquo ou seja negar o ser negar o que haacute eacute de todo impossiacutevel (natildeo eacute possiacutevel completamente) Entende entatildeo que o ldquonatildeo-serrdquo essa impossibilidade eacute algo que a mente pensa julgando que esse pensamento leva por um caminho mas que na verdade ele descobre leva por outro caminho aquele que nunca che-ga a lugar nenhum Esse caminho que leva para lugar nenhum eacute o caminho dos mortais os quais confundem ser e natildeo ser No entanto o saacutebio deve saber distinguir por um lado o caminho do ldquoeacuterdquo que eacute o caminho do discurso natildeo contraditoacuterio e por outro lado o caminho do ldquonatildeo eacuterdquo que eacute o caminho do discurso que eacute tornado vatildeo pela contradiccedilatildeo

Parmecircnides descobre a contradiccedilatildeo (pela meditaccedilatildeo sobre o natildeo-ser) e percebe que ela eacute motivo de descaminho no discurso sobre o mundo Assim finalmente ele anuncia que a contradiccedilatildeo deve ser evitada A esse enunciado noacutes chamamos de princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo que aqui eacute aquele na versatildeo de Parmecircnides (depois a partir de Platatildeo e Aristoacuteteles haveraacute outras versotildees) Parmecircnides trabalha em acircmbito cosmoloacutegico e sua preocupaccedilatildeo ndash como os de seus colegas na eacutepoca ndash eacute com o mundo com a totalidade das coisas com os πάντα de seu proecircmio (128) Nesse acircmbito cosmoloacutegico descobre que haacute um princiacutepio do mundo pelo qual se daacute uma impossibilidade a contradiccedilatildeo A contradiccedilatildeo eacute um princiacutepio porque o que haacute (πάντα) enquanto todo escapa agrave negaccedilatildeo total Eis que a contradiccedilatildeo eacute princiacutepio tanto quanto a natildeo-contra-diccedilatildeo porque eacute a contradiccedilatildeo que permite a natildeo-contradiccedilatildeo Sem a noccedilatildeo de contradiccedilatildeo se anda com sentidos incertos como os mortais

O valor dessa afirmaccedilatildeo eacute historicamente inabalaacutevel porque Parmecircni-des partindo de um discurso sobre o mundo como que visto de fora por um observador (como Anaximandro via o mundo olhando seu pinax - cf ROS-

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 41 n 2 p 9-36 AbrJun 2018 33

O natildeo-ser em Parmecircnides de Eleia Artigos Articles

SETTI 2013) alcanccedila um discurso que inclui o observador enquanto obser-vador estreando assim antes de tudo um discurso sobre os entes (ontologia) todos os entes incluindo os entes de pensamento (veja-se o famoso fragmento 3 onde se lecirc que pensar e ser satildeo o mesmo) Para ele o saacutebio natildeo eacute mais aquele que sabe soacute sobre as coisas externas ndash como o antigo xamatilde cuja figura indi-vidual se dissolve na mera intermediaccedilatildeo com o divino ndash poreacutem eacute tambeacutem aquele que consegue pensar sobre as coisas externas ou seja aquele que tem um domiacutenio cognitivo sobre os pensamentos de inqueacuterito e portanto sabe so-bre si mesmo Assim o saacutebio deve pensar por proacutepria conta e julgar pelo novo criteacuterio e natildeo pelo habitual discurso (κρῖναι δὲ λόγωι DK 75) ou seja natildeo deve julgar pelo discurso mas julgar o discurso porque agora o discurso enri-quecido de uma lei universal (a lei das αρχάι ἔστιν e οὐκ ἔστιν) possui uma medida de juiacutezo Parmecircnides amplia o mundo acrescentando ao mundo fiacutesico os mundos do pensamento e da linguagem Eis porque as αρχάι de Parmecircni-des sendo duas permanecem duas justamente eliminado uma delas deixando alguns criacuteticos enlouquecidos na discussatildeo sobre o monismo ou o dualismo de acordo com Parmecircnides o mundo eacute um todavia os sentidos nos enganam natildeo na pluralidade das coisas mas no argumento a respeito da pluralidade das coisas e principalmente ndash aspecto que ele discute explicitamente ndash a respeito do devir das coisas Haacute um princiacutepio que natildeo pode ser eliminado a contra-diccedilatildeo o qual eacute um princiacutepio de erro humano quando se elimina quando se desconsidera quando se faz de conta que natildeo existe a contradiccedilatildeo se instaura quando o princiacutepio eacute levado em conta a contradiccedilatildeo pode ser evitada

Eacute uma conceituaccedilatildeo esdruacutexula para noacutes tambeacutem porque temos que ter (a noccedilatildeo de) a contradiccedilatildeo para eliminar a contradiccedilatildeo temos que saber o que eacute contradiccedilatildeo para que possamos perceber quando o discurso eacute con-traditoacuterio Esses conceitos satildeo misteriosos ateacute agora e satildeo estranhas criaturas de nossas mentes Por exemplo a noccedilatildeo de ldquoimpossiacutevelrdquo obviamente (isto eacute para a nossa pragmaacutetica) natildeo se refere a nada de concreto no entanto temos essa noccedilatildeo e a usamos com o maacuteximo proveito outro exemplo a noccedilatildeo de ldquoinfinitordquo noccedilatildeo que natildeo se refere a algo pragmaticamente concreto mas que usamos igualmente com maacuteximo proveito O mesmo deve ser dito da noccedilatildeo de contradiccedilatildeo ou da noccedilatildeo de nada absoluto que usamos pragmaticamente com maior ou menor proveito

Parmecircnides encontra esse caminho e o expotildee Eacute um caminho assom-broso anti-intuitivo mas incontestaacutevel Dessa forma natildeo eacute de estranhar se a soluccedilatildeo platocircnica eacute a eliminaccedilatildeo fiacutesica da noccedilatildeo de nada absoluto (o par-

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GALGANO N S

riciacutedio) com sucessivo ldquoadeusrdquo34 achando de tecirc-lo ultrapassado Mas o nada absoluto enquanto noccedilatildeo contraditoacuteria permanece Assim como permane-ce a explicaccedilatildeo defeituosa do devir o qual assim como o conhecemos uma passagem do nada ao ser no nascimento e do ser ao nada no perecimento estaacute mal explicado Daqui por diante os comentaacuterios filosoacuteficos possiacuteveis satildeo inuacutemeros por conseguinte paro meu estudo neste ponto e proponho a versatildeo do fragmento 2 segundo a conceituaccedilatildeo apresentada ateacute aqui alterando de pouco a excelente versatildeo baacutesica de Cavalcante de Souza

Pois bem eu te direi e tu recebe a palavra que ouviste

os uacutenicos caminhos de inqueacuterito que satildeo a pensar

o primeiro que eacute e portanto que natildeo eacute (o caminho da) contradiccedilatildeo

de persuasatildeo eacute o caminho (pois agrave verdade acompanha)

o outro que natildeo eacute e portanto que eacute necessariamente (o caminho da) contradiccedilatildeo

este entatildeo eu te digo eacute atalho de todo incriacutevel

pois nem conhecerias o que natildeo eacute (pois natildeo eacute exequiacutevel)

nem o dirias

GALGANO N S Non-being in Parmenides of Elea Transformaccedilatildeo Mariacutelia v 41 n 2 p 9-36 AbrJun 2018

ABSTRACT In fragment DK 28 B 2 of his poem Parmenides presents his method for distinguishing true persuasion from the lack of true persuasion His famous proposal of these two ways of thinking form a complex statement of a system that intends to guarantee the veracity of statements in order to obtain reliable discourse the only discourse capable of true persuasion The present paper shows that the central role in Parmenidian argumentation is attributed to non-being a notion derived from a reflection on the impossibility of the negation of being Thus the whole fragment is interpreted in terms of this central notion We show that Parmenides discovered the impossibility of negation which we now call lsquocontradictionrsquo and that he articulated the means for avoiding contradiction in thought and discourse a rule which today we call the principle of non-contradiction The study presented here is a detailed investigation of the notion of non-being in the DK 28 B 2 fragment and includes a new translation of it

KEYWORDS Parmenides Non-being Non-contradiction Eleatism Parricide

34 Platatildeo Soph 258e7-259a1 ἡμεῖς γὰρ περὶ μὲν ἐναντίου τινὸς αὐτῷ χαίρειν πάλαι λέγομεν εἴτrsquo ἔστιν εἴτε μή λόγον ἔχον ἢ καὶ παντάπασιν ἄλογον

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O natildeo-ser em Parmecircnides de Eleia Artigos Articles

REFEREcircNCIAS

BARNES J The presocratic philosophers Londres Routledge 1982

BONIFAZI A Problematizing early IE syndetic coordination ancient Greek ldquoandrdquo from Homer to Thucydides In CONGRESSO ldquoSYNTATIC CHANGE AND SYNTACTIC RECONSTRUCTION NEW PERSPECTIVESrdquo Abstract de paper Zurich 2012

CAVALCANTE DE SOUZA J (Dir) Os preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1978

CORDERO N L La deacuteesse de Parmeacutenide maitresse de philosophie In MATTEacuteI J F (Eacuted) La naissance de la raison en Gregravece Paris PUF 1990 p 207-214

______ Siendo se es la tesis de Parmeacutenides Buenos Aires Biblos 2005

COXON A H The fragments of Parmenides Revised and expanded edition Las Vegas Parmenides Publishing 2009

DENNISTON J D The greek particle 2 ed Oxford OUP 1954

GALGANO N A transgressatildeo de Melisso 2010 180 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Filosofia) - FFLCH-USP Satildeo Paulo 2010

______ A verdade tem um coraccedilatildeo intreacutepido em Una mirada actual a filosofia griega Madrid SIFG 2012

______ Amēkhaniacuteē in Parmenides DK 28 B 65 Journal of Ancient Philosophy (Engl Ed) v 10 n 2 p1-12 2016 Disponiacutevel em wwwrevistasuspbrfilosofiaantiga Acesso em 10 mar 2018

______ Parmenides as psychologist ndash part I fragments DK 1 and 2 Archai n 19 janabr p 167-205 2017a

______ Parmenides as psychologist ndash part II fragments DK 6 and 7 Archai n 20 maioago p 39-76 2017b

______ I precetti della dea Non essere e contraddizione in Parmenide di Elea Bologna Diogenes Multimedia 2017c

GALLOP D Parmenides of Elea fragments Toronto University of Toronto Press 1984

HUMBERT J Syntaxe greque 2 ed Paris Klincksieck 1954

KAHN C H The verb lsquobersquo in ancient greek 2 ed Indianapolis Hackett Publishing 2003

______ Essays on Being Oxford OUP 2009

KURFESS C Restoring Parmenidesrsquo poem essays toward a new arrangement of the fragments based on a reassessment of the original sources 2012 Tese (Doutorado) - University of Pittsburg Pittsburg 2012

MANSFELD J Die Offenbarung des Parmenideliche Welt Assen Van Gorcum 1964

36 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 41 n 2 p 9-36 AbrJun 2018

GALGANO N S

MEIJER P A Parmenides beyond the gates Amsterdam J C Gieben 1997

ROSSETTI L La structure du poeacuteme de Parmeacutenide Philosophie Antique Paris n 10 p 187-226 2010

______ Lrsquoideazione del pinax ldquomedial innovationrdquo di Anassimandro In LEAtildeO D CORNELLI G PEIXOTO M C (Ed) Dos homens e suas ideias estudos sobre as Vidas de Dioacutegenes Laeacutercio Coimbra Imprensa da Universidade de Coimbra 2013 p 89-100

SMYTH H W Greek grammar Cambridge Harvard University Press 1956

TARAacuteN L Parmenides Princeton Princeton University Press 1965

Recebido 12112015Aprovado 20112016

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30 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 41 n 2 p 9-36 AbrJun 2018

GALGANO N S

semacircntica) e o recipiente (a palavra) entre o significado e o significante natildeo eacute impossiacutevel que οὐκ ἔστιν seja tatildeo somente uma expressatildeo simplificada quem sabe ateacute mesmo uma simplificaccedilatildeo didaacutetica pois o conteuacutedo do conceito estaacute expresso e justificado depois nos versos 7 e 8

O caminho de pensar que natildeo eacute e de pensar que eacute necessaacuterio natildeo ser eacute o caminho que afirma a necessidade de que a noccedilatildeo de natildeo-ser permaneccedila estaacutevel A contradiccedilatildeo tem que permanecer e ser identificada como tal pois eacute a uacutenica maneira de evitar que ela entre no pensamento e no discurso Se o ldquonatildeo-serrdquo natildeo for considerado contraditoacuterio a contradiccedilatildeo invade e domina o caminho de inqueacuterito o qual deixa de possuir πίστις ἀληθής (130) Assim eacute preciso que esse caminho seja identificado como μὴ εἶναι por um lado o ldquonatildeo-serrdquo eacute incognosciacutevel (οὔτε γὰρ ἂν γνοίης) mas por outro lado eacute neces-saacuterio que se saiba que ele eacute incognosciacutevel Saber do incognosciacutevel garante o conhecimento29 pois de fato ao natildeo se identificar o ldquonatildeo-serrdquo cai-se no risco de pensar que ldquoserrdquo e ldquonatildeo-serrdquo satildeo o mesmo e natildeo o mesmo como Parmecircni-des afirma em DK 6 5-6 Necessariamente o caminho que pensa οὐκ ἔστιν leva ao processo de contradiccedilatildeo (μὴ εἶναι) e a natildeo conclusatildeo do caminho (ἀνυστόν) natildeo eacute evidente na expressatildeo pelo contraacuterio τό μὴ ἐὸν parece uma negaccedilatildeo comum como qualquer outra poreacutem natildeo o eacute por isso eacute um saber destinado ao saacutebio e natildeo aos mortais porque eacute um saber fruto de uma reflexatildeo

34 DE VOLTA AOS VERSOS 3 E 4

Penso que podemos agora voltar ao verso 23 ao nosso segundo he-mistiacutequio onde aparece a expressatildeo μὴ εἶναι da qual jaacute temos a semacircntica Podemos entatildeo reconstruir ldquoos uacutenicos caminhos de inqueacuterito a pensar satildeo

por um lado a pensar que [ldquoArdquo] e tambeacutem a pensar que οὐκ ἔστι μὴ εἶναι este eacute caminho de persuasatildeo pois verdade acompanha e

por outro lado a pensar que ldquonatildeo eacuterdquo e tambeacutem a pensar que eacute necessariamente um percurso de pensamento contraditoacuterio porque eacute um caminho ldquoimpossiacutevelrdquo (παναπευθέα) pois o pensamento do ldquonatildeo enterdquo natildeo pode ser completado

O οὐκ ἔστι do verso 3 parece ser diferente do οὐκ ἔστιν do verso 5 Enquanto no 5 ele eacute quase que o nome do caminho (talvez uma simplificaccedilatildeo didaacutetica) no 3 parece significar simplesmente ldquonatildeo eacuterdquo em sentido comum

29 Estaacute aqui uma semente do socratismo

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O natildeo-ser em Parmecircnides de Eleia Artigos Articles

predicativo De fato esse eacute o caminho da persuasatildeo e portanto eacute o caminho do pensamento natildeo-contraditoacuterio Ali a persuasatildeo era impossiacutevel pela con-tradiccedilatildeo aqui eacute possiacutevel pela natildeo-contradiccedilatildeo Sabemos que a expressatildeo μὴ εἶναι eacute a expressatildeo da contradiccedilatildeo suprema de sorte que a natildeo-contradiccedilatildeo eacute a negaccedilatildeo de μὴ εἶναι A traduccedilatildeo de οὐκ ἔστι fica faacutecil embora para a nossa sensibilidade possa parecer algo improacuteprio usar duas vezes οὐκ ἔστι de forma natildeo perfeitamente uniacutevoca a dois versos de distacircncia Logo para o segundo hemistiacutequio do v 3 mantenho esta traduccedilatildeo ldquonatildeo eacuterdquo em parte ambiacutegua para nossas exigecircncias mas que soa perfeitamente harmocircnica com o discurso par-menidiano [] ao pensar que [ldquoArdquo] e que natildeo eacute ldquocontradiccedilatildeordquo (μὴ εἶναι)

Acredito por fim que podemos abordar facilmente o ἔστιν do verso 3 que tanto fez e faz penar os estudiosos de Parmecircnides Aqui de novo a grandeza da questatildeo cosmoloacutegica envolvida ndash a coerecircncia eou a contradito-riedade do real ndash simplesmente torna tatildeo minuacutescula a questatildeo do sujeito de ἔστιν que ela quase desaparece Eu tenho a tendecircncia a pensar que a falta de sujeito seja uma simplificaccedilatildeo didaacutetica30 cuja irregularidade linguiacutestica ajuda na memorizaccedilatildeo31 Todavia afinal tomo partido e entro tambeacutem no quarto grupo daqueles listados por Cordero o sujeito deve ser extraiacutedo do predicado isolado pois ἔστιν produz o sujeito32 De qualquer forma o sentido filosoacutefico eacute preciso haacute um caminho de inqueacuterito ao pensar que eacute aquele que pensa o ldquoeacuterdquo esse mesmo caminho eacute aquele ao pensar que natildeo eacute (e natildeo pode ser33) ldquocon-tradiccedilatildeordquo Depois haacute um outro caminho aquele ao pensar que ldquonatildeo eacuterdquo que eacute o caminho ao pensar que leva necessariamente agrave contradiccedilatildeo O primeiro eacute o 30 Segundo o relato platocircnico no diaacutelogo Parmecircnides Zenatildeo acompanhado de seu mestre foi para as Panateneias com a finalidade de defender a filosofia de seu mestre esclarecendo com seu livro repleto de paradoxos as ideias parmenidianas Isso sugere que o poema natildeo expunha articuladamente a filosofia de Parmecircnides mas que constituiacutesse um proacute-memoacuteria com as ideias em sua forma essencial depois elaboradas nas aulas pessoais (KURFESS 2012)31 Eacute extraordinaacuterio como essa simplificaccedilatildeo didaacutetica continue ativa por um lado distorcendo entretanto por outro mantendo viva a mensagem parmenidiana em todas as escolas de ensino meacutedio onde se estuda filosofia vox populi Parmecircnides eacute o filoacutesofo que disse ldquoO que eacute eacute e o que natildeo eacute natildeo eacuterdquo Por outro lado o estrangeiro de Eleia no Sofista lembra outro verso e natildeo este32 Essa questatildeo natildeo aprofundada aqui natildeo possui relevacircncia filosoacutefica no argumento apresentado pode ter relevacircncia se se considera o tipo de reflexatildeo ou seja se se discute a ldquoexperiecircnciardquo do natildeo-ser e principalmente a experiecircncia concreta de Parmecircnides que talvez esteja ligada a praacuteticas de incubaccedilatildeo Nesse caso a dimensatildeo reflexiva adentra a dimensatildeo oniacuterica a qual possui outra sintaxe e onde um simples ἔστιν vale mais de mil articulaccedilotildees sintaacuteticas Natildeo sabemos com certeza dessas praacuteticas em Eleia contudo esse sentido preacute-sintaacutetico natildeo estaacute descartado inclusive alguns estudiosos entre os quais o proacuteprio Cordero atribuem ao ἔστιν o sentido de um grito como um Eureka Sugestotildees nesse sentido se encontram na minha dissertaccedilatildeo sobre Melisso (GALGANO 2010)33 A interpretaccedilatildeo modal eacute tambeacutem perfeitamente coerente aqui

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GALGANO N S

caminho que estabelece o discurso coerente (persuasivo) e o segundo natildeo leva a lugar nenhum e deve ser evitado Mas para que se saiba o que deve ser evi-tado eacute preciso que se conheccedila a impossibilidade do segundo caminho A fim de que se possa seguir o primeiro caminho eacute necessaacuterio saber que existe um outro sempre agrave espreita o qual parece oferecer a verdade mas que natildeo oferece uma verdade confiaacutevel que leva necessariamente agrave contradiccedilatildeo de pensamento e de expressatildeo linguiacutestica

4 O MEacuteTODO DA NAtildeO-CONTRADICcedilAtildeO

Parmecircnides provavelmente a partir de sugestotildees pitagoacutericas medita sobre a oposiccedilatildeo ao que existe e assim descobre o ldquonatildeo-serrdquo Descobre que ldquonatildeo serrdquo ou seja negar o ser negar o que haacute eacute de todo impossiacutevel (natildeo eacute possiacutevel completamente) Entende entatildeo que o ldquonatildeo-serrdquo essa impossibilidade eacute algo que a mente pensa julgando que esse pensamento leva por um caminho mas que na verdade ele descobre leva por outro caminho aquele que nunca che-ga a lugar nenhum Esse caminho que leva para lugar nenhum eacute o caminho dos mortais os quais confundem ser e natildeo ser No entanto o saacutebio deve saber distinguir por um lado o caminho do ldquoeacuterdquo que eacute o caminho do discurso natildeo contraditoacuterio e por outro lado o caminho do ldquonatildeo eacuterdquo que eacute o caminho do discurso que eacute tornado vatildeo pela contradiccedilatildeo

Parmecircnides descobre a contradiccedilatildeo (pela meditaccedilatildeo sobre o natildeo-ser) e percebe que ela eacute motivo de descaminho no discurso sobre o mundo Assim finalmente ele anuncia que a contradiccedilatildeo deve ser evitada A esse enunciado noacutes chamamos de princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo que aqui eacute aquele na versatildeo de Parmecircnides (depois a partir de Platatildeo e Aristoacuteteles haveraacute outras versotildees) Parmecircnides trabalha em acircmbito cosmoloacutegico e sua preocupaccedilatildeo ndash como os de seus colegas na eacutepoca ndash eacute com o mundo com a totalidade das coisas com os πάντα de seu proecircmio (128) Nesse acircmbito cosmoloacutegico descobre que haacute um princiacutepio do mundo pelo qual se daacute uma impossibilidade a contradiccedilatildeo A contradiccedilatildeo eacute um princiacutepio porque o que haacute (πάντα) enquanto todo escapa agrave negaccedilatildeo total Eis que a contradiccedilatildeo eacute princiacutepio tanto quanto a natildeo-contra-diccedilatildeo porque eacute a contradiccedilatildeo que permite a natildeo-contradiccedilatildeo Sem a noccedilatildeo de contradiccedilatildeo se anda com sentidos incertos como os mortais

O valor dessa afirmaccedilatildeo eacute historicamente inabalaacutevel porque Parmecircni-des partindo de um discurso sobre o mundo como que visto de fora por um observador (como Anaximandro via o mundo olhando seu pinax - cf ROS-

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O natildeo-ser em Parmecircnides de Eleia Artigos Articles

SETTI 2013) alcanccedila um discurso que inclui o observador enquanto obser-vador estreando assim antes de tudo um discurso sobre os entes (ontologia) todos os entes incluindo os entes de pensamento (veja-se o famoso fragmento 3 onde se lecirc que pensar e ser satildeo o mesmo) Para ele o saacutebio natildeo eacute mais aquele que sabe soacute sobre as coisas externas ndash como o antigo xamatilde cuja figura indi-vidual se dissolve na mera intermediaccedilatildeo com o divino ndash poreacutem eacute tambeacutem aquele que consegue pensar sobre as coisas externas ou seja aquele que tem um domiacutenio cognitivo sobre os pensamentos de inqueacuterito e portanto sabe so-bre si mesmo Assim o saacutebio deve pensar por proacutepria conta e julgar pelo novo criteacuterio e natildeo pelo habitual discurso (κρῖναι δὲ λόγωι DK 75) ou seja natildeo deve julgar pelo discurso mas julgar o discurso porque agora o discurso enri-quecido de uma lei universal (a lei das αρχάι ἔστιν e οὐκ ἔστιν) possui uma medida de juiacutezo Parmecircnides amplia o mundo acrescentando ao mundo fiacutesico os mundos do pensamento e da linguagem Eis porque as αρχάι de Parmecircni-des sendo duas permanecem duas justamente eliminado uma delas deixando alguns criacuteticos enlouquecidos na discussatildeo sobre o monismo ou o dualismo de acordo com Parmecircnides o mundo eacute um todavia os sentidos nos enganam natildeo na pluralidade das coisas mas no argumento a respeito da pluralidade das coisas e principalmente ndash aspecto que ele discute explicitamente ndash a respeito do devir das coisas Haacute um princiacutepio que natildeo pode ser eliminado a contra-diccedilatildeo o qual eacute um princiacutepio de erro humano quando se elimina quando se desconsidera quando se faz de conta que natildeo existe a contradiccedilatildeo se instaura quando o princiacutepio eacute levado em conta a contradiccedilatildeo pode ser evitada

Eacute uma conceituaccedilatildeo esdruacutexula para noacutes tambeacutem porque temos que ter (a noccedilatildeo de) a contradiccedilatildeo para eliminar a contradiccedilatildeo temos que saber o que eacute contradiccedilatildeo para que possamos perceber quando o discurso eacute con-traditoacuterio Esses conceitos satildeo misteriosos ateacute agora e satildeo estranhas criaturas de nossas mentes Por exemplo a noccedilatildeo de ldquoimpossiacutevelrdquo obviamente (isto eacute para a nossa pragmaacutetica) natildeo se refere a nada de concreto no entanto temos essa noccedilatildeo e a usamos com o maacuteximo proveito outro exemplo a noccedilatildeo de ldquoinfinitordquo noccedilatildeo que natildeo se refere a algo pragmaticamente concreto mas que usamos igualmente com maacuteximo proveito O mesmo deve ser dito da noccedilatildeo de contradiccedilatildeo ou da noccedilatildeo de nada absoluto que usamos pragmaticamente com maior ou menor proveito

Parmecircnides encontra esse caminho e o expotildee Eacute um caminho assom-broso anti-intuitivo mas incontestaacutevel Dessa forma natildeo eacute de estranhar se a soluccedilatildeo platocircnica eacute a eliminaccedilatildeo fiacutesica da noccedilatildeo de nada absoluto (o par-

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GALGANO N S

riciacutedio) com sucessivo ldquoadeusrdquo34 achando de tecirc-lo ultrapassado Mas o nada absoluto enquanto noccedilatildeo contraditoacuteria permanece Assim como permane-ce a explicaccedilatildeo defeituosa do devir o qual assim como o conhecemos uma passagem do nada ao ser no nascimento e do ser ao nada no perecimento estaacute mal explicado Daqui por diante os comentaacuterios filosoacuteficos possiacuteveis satildeo inuacutemeros por conseguinte paro meu estudo neste ponto e proponho a versatildeo do fragmento 2 segundo a conceituaccedilatildeo apresentada ateacute aqui alterando de pouco a excelente versatildeo baacutesica de Cavalcante de Souza

Pois bem eu te direi e tu recebe a palavra que ouviste

os uacutenicos caminhos de inqueacuterito que satildeo a pensar

o primeiro que eacute e portanto que natildeo eacute (o caminho da) contradiccedilatildeo

de persuasatildeo eacute o caminho (pois agrave verdade acompanha)

o outro que natildeo eacute e portanto que eacute necessariamente (o caminho da) contradiccedilatildeo

este entatildeo eu te digo eacute atalho de todo incriacutevel

pois nem conhecerias o que natildeo eacute (pois natildeo eacute exequiacutevel)

nem o dirias

GALGANO N S Non-being in Parmenides of Elea Transformaccedilatildeo Mariacutelia v 41 n 2 p 9-36 AbrJun 2018

ABSTRACT In fragment DK 28 B 2 of his poem Parmenides presents his method for distinguishing true persuasion from the lack of true persuasion His famous proposal of these two ways of thinking form a complex statement of a system that intends to guarantee the veracity of statements in order to obtain reliable discourse the only discourse capable of true persuasion The present paper shows that the central role in Parmenidian argumentation is attributed to non-being a notion derived from a reflection on the impossibility of the negation of being Thus the whole fragment is interpreted in terms of this central notion We show that Parmenides discovered the impossibility of negation which we now call lsquocontradictionrsquo and that he articulated the means for avoiding contradiction in thought and discourse a rule which today we call the principle of non-contradiction The study presented here is a detailed investigation of the notion of non-being in the DK 28 B 2 fragment and includes a new translation of it

KEYWORDS Parmenides Non-being Non-contradiction Eleatism Parricide

34 Platatildeo Soph 258e7-259a1 ἡμεῖς γὰρ περὶ μὲν ἐναντίου τινὸς αὐτῷ χαίρειν πάλαι λέγομεν εἴτrsquo ἔστιν εἴτε μή λόγον ἔχον ἢ καὶ παντάπασιν ἄλογον

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O natildeo-ser em Parmecircnides de Eleia Artigos Articles

REFEREcircNCIAS

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Recebido 12112015Aprovado 20112016

Page 23: O NÃO SER EM PARMÊNIDES ELEIA - SciELO · Trans/Form/Ação, Marília, v. 41, n. 2, p. 9-36, Abr./Jun., 2018 9 O não-ser em Parmênides de Eleia Artigos / Articles O NÃO-SER EM

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predicativo De fato esse eacute o caminho da persuasatildeo e portanto eacute o caminho do pensamento natildeo-contraditoacuterio Ali a persuasatildeo era impossiacutevel pela con-tradiccedilatildeo aqui eacute possiacutevel pela natildeo-contradiccedilatildeo Sabemos que a expressatildeo μὴ εἶναι eacute a expressatildeo da contradiccedilatildeo suprema de sorte que a natildeo-contradiccedilatildeo eacute a negaccedilatildeo de μὴ εἶναι A traduccedilatildeo de οὐκ ἔστι fica faacutecil embora para a nossa sensibilidade possa parecer algo improacuteprio usar duas vezes οὐκ ἔστι de forma natildeo perfeitamente uniacutevoca a dois versos de distacircncia Logo para o segundo hemistiacutequio do v 3 mantenho esta traduccedilatildeo ldquonatildeo eacuterdquo em parte ambiacutegua para nossas exigecircncias mas que soa perfeitamente harmocircnica com o discurso par-menidiano [] ao pensar que [ldquoArdquo] e que natildeo eacute ldquocontradiccedilatildeordquo (μὴ εἶναι)

Acredito por fim que podemos abordar facilmente o ἔστιν do verso 3 que tanto fez e faz penar os estudiosos de Parmecircnides Aqui de novo a grandeza da questatildeo cosmoloacutegica envolvida ndash a coerecircncia eou a contradito-riedade do real ndash simplesmente torna tatildeo minuacutescula a questatildeo do sujeito de ἔστιν que ela quase desaparece Eu tenho a tendecircncia a pensar que a falta de sujeito seja uma simplificaccedilatildeo didaacutetica30 cuja irregularidade linguiacutestica ajuda na memorizaccedilatildeo31 Todavia afinal tomo partido e entro tambeacutem no quarto grupo daqueles listados por Cordero o sujeito deve ser extraiacutedo do predicado isolado pois ἔστιν produz o sujeito32 De qualquer forma o sentido filosoacutefico eacute preciso haacute um caminho de inqueacuterito ao pensar que eacute aquele que pensa o ldquoeacuterdquo esse mesmo caminho eacute aquele ao pensar que natildeo eacute (e natildeo pode ser33) ldquocon-tradiccedilatildeordquo Depois haacute um outro caminho aquele ao pensar que ldquonatildeo eacuterdquo que eacute o caminho ao pensar que leva necessariamente agrave contradiccedilatildeo O primeiro eacute o 30 Segundo o relato platocircnico no diaacutelogo Parmecircnides Zenatildeo acompanhado de seu mestre foi para as Panateneias com a finalidade de defender a filosofia de seu mestre esclarecendo com seu livro repleto de paradoxos as ideias parmenidianas Isso sugere que o poema natildeo expunha articuladamente a filosofia de Parmecircnides mas que constituiacutesse um proacute-memoacuteria com as ideias em sua forma essencial depois elaboradas nas aulas pessoais (KURFESS 2012)31 Eacute extraordinaacuterio como essa simplificaccedilatildeo didaacutetica continue ativa por um lado distorcendo entretanto por outro mantendo viva a mensagem parmenidiana em todas as escolas de ensino meacutedio onde se estuda filosofia vox populi Parmecircnides eacute o filoacutesofo que disse ldquoO que eacute eacute e o que natildeo eacute natildeo eacuterdquo Por outro lado o estrangeiro de Eleia no Sofista lembra outro verso e natildeo este32 Essa questatildeo natildeo aprofundada aqui natildeo possui relevacircncia filosoacutefica no argumento apresentado pode ter relevacircncia se se considera o tipo de reflexatildeo ou seja se se discute a ldquoexperiecircnciardquo do natildeo-ser e principalmente a experiecircncia concreta de Parmecircnides que talvez esteja ligada a praacuteticas de incubaccedilatildeo Nesse caso a dimensatildeo reflexiva adentra a dimensatildeo oniacuterica a qual possui outra sintaxe e onde um simples ἔστιν vale mais de mil articulaccedilotildees sintaacuteticas Natildeo sabemos com certeza dessas praacuteticas em Eleia contudo esse sentido preacute-sintaacutetico natildeo estaacute descartado inclusive alguns estudiosos entre os quais o proacuteprio Cordero atribuem ao ἔστιν o sentido de um grito como um Eureka Sugestotildees nesse sentido se encontram na minha dissertaccedilatildeo sobre Melisso (GALGANO 2010)33 A interpretaccedilatildeo modal eacute tambeacutem perfeitamente coerente aqui

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caminho que estabelece o discurso coerente (persuasivo) e o segundo natildeo leva a lugar nenhum e deve ser evitado Mas para que se saiba o que deve ser evi-tado eacute preciso que se conheccedila a impossibilidade do segundo caminho A fim de que se possa seguir o primeiro caminho eacute necessaacuterio saber que existe um outro sempre agrave espreita o qual parece oferecer a verdade mas que natildeo oferece uma verdade confiaacutevel que leva necessariamente agrave contradiccedilatildeo de pensamento e de expressatildeo linguiacutestica

4 O MEacuteTODO DA NAtildeO-CONTRADICcedilAtildeO

Parmecircnides provavelmente a partir de sugestotildees pitagoacutericas medita sobre a oposiccedilatildeo ao que existe e assim descobre o ldquonatildeo-serrdquo Descobre que ldquonatildeo serrdquo ou seja negar o ser negar o que haacute eacute de todo impossiacutevel (natildeo eacute possiacutevel completamente) Entende entatildeo que o ldquonatildeo-serrdquo essa impossibilidade eacute algo que a mente pensa julgando que esse pensamento leva por um caminho mas que na verdade ele descobre leva por outro caminho aquele que nunca che-ga a lugar nenhum Esse caminho que leva para lugar nenhum eacute o caminho dos mortais os quais confundem ser e natildeo ser No entanto o saacutebio deve saber distinguir por um lado o caminho do ldquoeacuterdquo que eacute o caminho do discurso natildeo contraditoacuterio e por outro lado o caminho do ldquonatildeo eacuterdquo que eacute o caminho do discurso que eacute tornado vatildeo pela contradiccedilatildeo

Parmecircnides descobre a contradiccedilatildeo (pela meditaccedilatildeo sobre o natildeo-ser) e percebe que ela eacute motivo de descaminho no discurso sobre o mundo Assim finalmente ele anuncia que a contradiccedilatildeo deve ser evitada A esse enunciado noacutes chamamos de princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo que aqui eacute aquele na versatildeo de Parmecircnides (depois a partir de Platatildeo e Aristoacuteteles haveraacute outras versotildees) Parmecircnides trabalha em acircmbito cosmoloacutegico e sua preocupaccedilatildeo ndash como os de seus colegas na eacutepoca ndash eacute com o mundo com a totalidade das coisas com os πάντα de seu proecircmio (128) Nesse acircmbito cosmoloacutegico descobre que haacute um princiacutepio do mundo pelo qual se daacute uma impossibilidade a contradiccedilatildeo A contradiccedilatildeo eacute um princiacutepio porque o que haacute (πάντα) enquanto todo escapa agrave negaccedilatildeo total Eis que a contradiccedilatildeo eacute princiacutepio tanto quanto a natildeo-contra-diccedilatildeo porque eacute a contradiccedilatildeo que permite a natildeo-contradiccedilatildeo Sem a noccedilatildeo de contradiccedilatildeo se anda com sentidos incertos como os mortais

O valor dessa afirmaccedilatildeo eacute historicamente inabalaacutevel porque Parmecircni-des partindo de um discurso sobre o mundo como que visto de fora por um observador (como Anaximandro via o mundo olhando seu pinax - cf ROS-

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SETTI 2013) alcanccedila um discurso que inclui o observador enquanto obser-vador estreando assim antes de tudo um discurso sobre os entes (ontologia) todos os entes incluindo os entes de pensamento (veja-se o famoso fragmento 3 onde se lecirc que pensar e ser satildeo o mesmo) Para ele o saacutebio natildeo eacute mais aquele que sabe soacute sobre as coisas externas ndash como o antigo xamatilde cuja figura indi-vidual se dissolve na mera intermediaccedilatildeo com o divino ndash poreacutem eacute tambeacutem aquele que consegue pensar sobre as coisas externas ou seja aquele que tem um domiacutenio cognitivo sobre os pensamentos de inqueacuterito e portanto sabe so-bre si mesmo Assim o saacutebio deve pensar por proacutepria conta e julgar pelo novo criteacuterio e natildeo pelo habitual discurso (κρῖναι δὲ λόγωι DK 75) ou seja natildeo deve julgar pelo discurso mas julgar o discurso porque agora o discurso enri-quecido de uma lei universal (a lei das αρχάι ἔστιν e οὐκ ἔστιν) possui uma medida de juiacutezo Parmecircnides amplia o mundo acrescentando ao mundo fiacutesico os mundos do pensamento e da linguagem Eis porque as αρχάι de Parmecircni-des sendo duas permanecem duas justamente eliminado uma delas deixando alguns criacuteticos enlouquecidos na discussatildeo sobre o monismo ou o dualismo de acordo com Parmecircnides o mundo eacute um todavia os sentidos nos enganam natildeo na pluralidade das coisas mas no argumento a respeito da pluralidade das coisas e principalmente ndash aspecto que ele discute explicitamente ndash a respeito do devir das coisas Haacute um princiacutepio que natildeo pode ser eliminado a contra-diccedilatildeo o qual eacute um princiacutepio de erro humano quando se elimina quando se desconsidera quando se faz de conta que natildeo existe a contradiccedilatildeo se instaura quando o princiacutepio eacute levado em conta a contradiccedilatildeo pode ser evitada

Eacute uma conceituaccedilatildeo esdruacutexula para noacutes tambeacutem porque temos que ter (a noccedilatildeo de) a contradiccedilatildeo para eliminar a contradiccedilatildeo temos que saber o que eacute contradiccedilatildeo para que possamos perceber quando o discurso eacute con-traditoacuterio Esses conceitos satildeo misteriosos ateacute agora e satildeo estranhas criaturas de nossas mentes Por exemplo a noccedilatildeo de ldquoimpossiacutevelrdquo obviamente (isto eacute para a nossa pragmaacutetica) natildeo se refere a nada de concreto no entanto temos essa noccedilatildeo e a usamos com o maacuteximo proveito outro exemplo a noccedilatildeo de ldquoinfinitordquo noccedilatildeo que natildeo se refere a algo pragmaticamente concreto mas que usamos igualmente com maacuteximo proveito O mesmo deve ser dito da noccedilatildeo de contradiccedilatildeo ou da noccedilatildeo de nada absoluto que usamos pragmaticamente com maior ou menor proveito

Parmecircnides encontra esse caminho e o expotildee Eacute um caminho assom-broso anti-intuitivo mas incontestaacutevel Dessa forma natildeo eacute de estranhar se a soluccedilatildeo platocircnica eacute a eliminaccedilatildeo fiacutesica da noccedilatildeo de nada absoluto (o par-

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riciacutedio) com sucessivo ldquoadeusrdquo34 achando de tecirc-lo ultrapassado Mas o nada absoluto enquanto noccedilatildeo contraditoacuteria permanece Assim como permane-ce a explicaccedilatildeo defeituosa do devir o qual assim como o conhecemos uma passagem do nada ao ser no nascimento e do ser ao nada no perecimento estaacute mal explicado Daqui por diante os comentaacuterios filosoacuteficos possiacuteveis satildeo inuacutemeros por conseguinte paro meu estudo neste ponto e proponho a versatildeo do fragmento 2 segundo a conceituaccedilatildeo apresentada ateacute aqui alterando de pouco a excelente versatildeo baacutesica de Cavalcante de Souza

Pois bem eu te direi e tu recebe a palavra que ouviste

os uacutenicos caminhos de inqueacuterito que satildeo a pensar

o primeiro que eacute e portanto que natildeo eacute (o caminho da) contradiccedilatildeo

de persuasatildeo eacute o caminho (pois agrave verdade acompanha)

o outro que natildeo eacute e portanto que eacute necessariamente (o caminho da) contradiccedilatildeo

este entatildeo eu te digo eacute atalho de todo incriacutevel

pois nem conhecerias o que natildeo eacute (pois natildeo eacute exequiacutevel)

nem o dirias

GALGANO N S Non-being in Parmenides of Elea Transformaccedilatildeo Mariacutelia v 41 n 2 p 9-36 AbrJun 2018

ABSTRACT In fragment DK 28 B 2 of his poem Parmenides presents his method for distinguishing true persuasion from the lack of true persuasion His famous proposal of these two ways of thinking form a complex statement of a system that intends to guarantee the veracity of statements in order to obtain reliable discourse the only discourse capable of true persuasion The present paper shows that the central role in Parmenidian argumentation is attributed to non-being a notion derived from a reflection on the impossibility of the negation of being Thus the whole fragment is interpreted in terms of this central notion We show that Parmenides discovered the impossibility of negation which we now call lsquocontradictionrsquo and that he articulated the means for avoiding contradiction in thought and discourse a rule which today we call the principle of non-contradiction The study presented here is a detailed investigation of the notion of non-being in the DK 28 B 2 fragment and includes a new translation of it

KEYWORDS Parmenides Non-being Non-contradiction Eleatism Parricide

34 Platatildeo Soph 258e7-259a1 ἡμεῖς γὰρ περὶ μὲν ἐναντίου τινὸς αὐτῷ χαίρειν πάλαι λέγομεν εἴτrsquo ἔστιν εἴτε μή λόγον ἔχον ἢ καὶ παντάπασιν ἄλογον

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 41 n 2 p 9-36 AbrJun 2018 35

O natildeo-ser em Parmecircnides de Eleia Artigos Articles

REFEREcircNCIAS

BARNES J The presocratic philosophers Londres Routledge 1982

BONIFAZI A Problematizing early IE syndetic coordination ancient Greek ldquoandrdquo from Homer to Thucydides In CONGRESSO ldquoSYNTATIC CHANGE AND SYNTACTIC RECONSTRUCTION NEW PERSPECTIVESrdquo Abstract de paper Zurich 2012

CAVALCANTE DE SOUZA J (Dir) Os preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1978

CORDERO N L La deacuteesse de Parmeacutenide maitresse de philosophie In MATTEacuteI J F (Eacuted) La naissance de la raison en Gregravece Paris PUF 1990 p 207-214

______ Siendo se es la tesis de Parmeacutenides Buenos Aires Biblos 2005

COXON A H The fragments of Parmenides Revised and expanded edition Las Vegas Parmenides Publishing 2009

DENNISTON J D The greek particle 2 ed Oxford OUP 1954

GALGANO N A transgressatildeo de Melisso 2010 180 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Filosofia) - FFLCH-USP Satildeo Paulo 2010

______ A verdade tem um coraccedilatildeo intreacutepido em Una mirada actual a filosofia griega Madrid SIFG 2012

______ Amēkhaniacuteē in Parmenides DK 28 B 65 Journal of Ancient Philosophy (Engl Ed) v 10 n 2 p1-12 2016 Disponiacutevel em wwwrevistasuspbrfilosofiaantiga Acesso em 10 mar 2018

______ Parmenides as psychologist ndash part I fragments DK 1 and 2 Archai n 19 janabr p 167-205 2017a

______ Parmenides as psychologist ndash part II fragments DK 6 and 7 Archai n 20 maioago p 39-76 2017b

______ I precetti della dea Non essere e contraddizione in Parmenide di Elea Bologna Diogenes Multimedia 2017c

GALLOP D Parmenides of Elea fragments Toronto University of Toronto Press 1984

HUMBERT J Syntaxe greque 2 ed Paris Klincksieck 1954

KAHN C H The verb lsquobersquo in ancient greek 2 ed Indianapolis Hackett Publishing 2003

______ Essays on Being Oxford OUP 2009

KURFESS C Restoring Parmenidesrsquo poem essays toward a new arrangement of the fragments based on a reassessment of the original sources 2012 Tese (Doutorado) - University of Pittsburg Pittsburg 2012

MANSFELD J Die Offenbarung des Parmenideliche Welt Assen Van Gorcum 1964

36 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 41 n 2 p 9-36 AbrJun 2018

GALGANO N S

MEIJER P A Parmenides beyond the gates Amsterdam J C Gieben 1997

ROSSETTI L La structure du poeacuteme de Parmeacutenide Philosophie Antique Paris n 10 p 187-226 2010

______ Lrsquoideazione del pinax ldquomedial innovationrdquo di Anassimandro In LEAtildeO D CORNELLI G PEIXOTO M C (Ed) Dos homens e suas ideias estudos sobre as Vidas de Dioacutegenes Laeacutercio Coimbra Imprensa da Universidade de Coimbra 2013 p 89-100

SMYTH H W Greek grammar Cambridge Harvard University Press 1956

TARAacuteN L Parmenides Princeton Princeton University Press 1965

Recebido 12112015Aprovado 20112016

Page 24: O NÃO SER EM PARMÊNIDES ELEIA - SciELO · Trans/Form/Ação, Marília, v. 41, n. 2, p. 9-36, Abr./Jun., 2018 9 O não-ser em Parmênides de Eleia Artigos / Articles O NÃO-SER EM

32 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 41 n 2 p 9-36 AbrJun 2018

GALGANO N S

caminho que estabelece o discurso coerente (persuasivo) e o segundo natildeo leva a lugar nenhum e deve ser evitado Mas para que se saiba o que deve ser evi-tado eacute preciso que se conheccedila a impossibilidade do segundo caminho A fim de que se possa seguir o primeiro caminho eacute necessaacuterio saber que existe um outro sempre agrave espreita o qual parece oferecer a verdade mas que natildeo oferece uma verdade confiaacutevel que leva necessariamente agrave contradiccedilatildeo de pensamento e de expressatildeo linguiacutestica

4 O MEacuteTODO DA NAtildeO-CONTRADICcedilAtildeO

Parmecircnides provavelmente a partir de sugestotildees pitagoacutericas medita sobre a oposiccedilatildeo ao que existe e assim descobre o ldquonatildeo-serrdquo Descobre que ldquonatildeo serrdquo ou seja negar o ser negar o que haacute eacute de todo impossiacutevel (natildeo eacute possiacutevel completamente) Entende entatildeo que o ldquonatildeo-serrdquo essa impossibilidade eacute algo que a mente pensa julgando que esse pensamento leva por um caminho mas que na verdade ele descobre leva por outro caminho aquele que nunca che-ga a lugar nenhum Esse caminho que leva para lugar nenhum eacute o caminho dos mortais os quais confundem ser e natildeo ser No entanto o saacutebio deve saber distinguir por um lado o caminho do ldquoeacuterdquo que eacute o caminho do discurso natildeo contraditoacuterio e por outro lado o caminho do ldquonatildeo eacuterdquo que eacute o caminho do discurso que eacute tornado vatildeo pela contradiccedilatildeo

Parmecircnides descobre a contradiccedilatildeo (pela meditaccedilatildeo sobre o natildeo-ser) e percebe que ela eacute motivo de descaminho no discurso sobre o mundo Assim finalmente ele anuncia que a contradiccedilatildeo deve ser evitada A esse enunciado noacutes chamamos de princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo que aqui eacute aquele na versatildeo de Parmecircnides (depois a partir de Platatildeo e Aristoacuteteles haveraacute outras versotildees) Parmecircnides trabalha em acircmbito cosmoloacutegico e sua preocupaccedilatildeo ndash como os de seus colegas na eacutepoca ndash eacute com o mundo com a totalidade das coisas com os πάντα de seu proecircmio (128) Nesse acircmbito cosmoloacutegico descobre que haacute um princiacutepio do mundo pelo qual se daacute uma impossibilidade a contradiccedilatildeo A contradiccedilatildeo eacute um princiacutepio porque o que haacute (πάντα) enquanto todo escapa agrave negaccedilatildeo total Eis que a contradiccedilatildeo eacute princiacutepio tanto quanto a natildeo-contra-diccedilatildeo porque eacute a contradiccedilatildeo que permite a natildeo-contradiccedilatildeo Sem a noccedilatildeo de contradiccedilatildeo se anda com sentidos incertos como os mortais

O valor dessa afirmaccedilatildeo eacute historicamente inabalaacutevel porque Parmecircni-des partindo de um discurso sobre o mundo como que visto de fora por um observador (como Anaximandro via o mundo olhando seu pinax - cf ROS-

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 41 n 2 p 9-36 AbrJun 2018 33

O natildeo-ser em Parmecircnides de Eleia Artigos Articles

SETTI 2013) alcanccedila um discurso que inclui o observador enquanto obser-vador estreando assim antes de tudo um discurso sobre os entes (ontologia) todos os entes incluindo os entes de pensamento (veja-se o famoso fragmento 3 onde se lecirc que pensar e ser satildeo o mesmo) Para ele o saacutebio natildeo eacute mais aquele que sabe soacute sobre as coisas externas ndash como o antigo xamatilde cuja figura indi-vidual se dissolve na mera intermediaccedilatildeo com o divino ndash poreacutem eacute tambeacutem aquele que consegue pensar sobre as coisas externas ou seja aquele que tem um domiacutenio cognitivo sobre os pensamentos de inqueacuterito e portanto sabe so-bre si mesmo Assim o saacutebio deve pensar por proacutepria conta e julgar pelo novo criteacuterio e natildeo pelo habitual discurso (κρῖναι δὲ λόγωι DK 75) ou seja natildeo deve julgar pelo discurso mas julgar o discurso porque agora o discurso enri-quecido de uma lei universal (a lei das αρχάι ἔστιν e οὐκ ἔστιν) possui uma medida de juiacutezo Parmecircnides amplia o mundo acrescentando ao mundo fiacutesico os mundos do pensamento e da linguagem Eis porque as αρχάι de Parmecircni-des sendo duas permanecem duas justamente eliminado uma delas deixando alguns criacuteticos enlouquecidos na discussatildeo sobre o monismo ou o dualismo de acordo com Parmecircnides o mundo eacute um todavia os sentidos nos enganam natildeo na pluralidade das coisas mas no argumento a respeito da pluralidade das coisas e principalmente ndash aspecto que ele discute explicitamente ndash a respeito do devir das coisas Haacute um princiacutepio que natildeo pode ser eliminado a contra-diccedilatildeo o qual eacute um princiacutepio de erro humano quando se elimina quando se desconsidera quando se faz de conta que natildeo existe a contradiccedilatildeo se instaura quando o princiacutepio eacute levado em conta a contradiccedilatildeo pode ser evitada

Eacute uma conceituaccedilatildeo esdruacutexula para noacutes tambeacutem porque temos que ter (a noccedilatildeo de) a contradiccedilatildeo para eliminar a contradiccedilatildeo temos que saber o que eacute contradiccedilatildeo para que possamos perceber quando o discurso eacute con-traditoacuterio Esses conceitos satildeo misteriosos ateacute agora e satildeo estranhas criaturas de nossas mentes Por exemplo a noccedilatildeo de ldquoimpossiacutevelrdquo obviamente (isto eacute para a nossa pragmaacutetica) natildeo se refere a nada de concreto no entanto temos essa noccedilatildeo e a usamos com o maacuteximo proveito outro exemplo a noccedilatildeo de ldquoinfinitordquo noccedilatildeo que natildeo se refere a algo pragmaticamente concreto mas que usamos igualmente com maacuteximo proveito O mesmo deve ser dito da noccedilatildeo de contradiccedilatildeo ou da noccedilatildeo de nada absoluto que usamos pragmaticamente com maior ou menor proveito

Parmecircnides encontra esse caminho e o expotildee Eacute um caminho assom-broso anti-intuitivo mas incontestaacutevel Dessa forma natildeo eacute de estranhar se a soluccedilatildeo platocircnica eacute a eliminaccedilatildeo fiacutesica da noccedilatildeo de nada absoluto (o par-

34 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 41 n 2 p 9-36 AbrJun 2018

GALGANO N S

riciacutedio) com sucessivo ldquoadeusrdquo34 achando de tecirc-lo ultrapassado Mas o nada absoluto enquanto noccedilatildeo contraditoacuteria permanece Assim como permane-ce a explicaccedilatildeo defeituosa do devir o qual assim como o conhecemos uma passagem do nada ao ser no nascimento e do ser ao nada no perecimento estaacute mal explicado Daqui por diante os comentaacuterios filosoacuteficos possiacuteveis satildeo inuacutemeros por conseguinte paro meu estudo neste ponto e proponho a versatildeo do fragmento 2 segundo a conceituaccedilatildeo apresentada ateacute aqui alterando de pouco a excelente versatildeo baacutesica de Cavalcante de Souza

Pois bem eu te direi e tu recebe a palavra que ouviste

os uacutenicos caminhos de inqueacuterito que satildeo a pensar

o primeiro que eacute e portanto que natildeo eacute (o caminho da) contradiccedilatildeo

de persuasatildeo eacute o caminho (pois agrave verdade acompanha)

o outro que natildeo eacute e portanto que eacute necessariamente (o caminho da) contradiccedilatildeo

este entatildeo eu te digo eacute atalho de todo incriacutevel

pois nem conhecerias o que natildeo eacute (pois natildeo eacute exequiacutevel)

nem o dirias

GALGANO N S Non-being in Parmenides of Elea Transformaccedilatildeo Mariacutelia v 41 n 2 p 9-36 AbrJun 2018

ABSTRACT In fragment DK 28 B 2 of his poem Parmenides presents his method for distinguishing true persuasion from the lack of true persuasion His famous proposal of these two ways of thinking form a complex statement of a system that intends to guarantee the veracity of statements in order to obtain reliable discourse the only discourse capable of true persuasion The present paper shows that the central role in Parmenidian argumentation is attributed to non-being a notion derived from a reflection on the impossibility of the negation of being Thus the whole fragment is interpreted in terms of this central notion We show that Parmenides discovered the impossibility of negation which we now call lsquocontradictionrsquo and that he articulated the means for avoiding contradiction in thought and discourse a rule which today we call the principle of non-contradiction The study presented here is a detailed investigation of the notion of non-being in the DK 28 B 2 fragment and includes a new translation of it

KEYWORDS Parmenides Non-being Non-contradiction Eleatism Parricide

34 Platatildeo Soph 258e7-259a1 ἡμεῖς γὰρ περὶ μὲν ἐναντίου τινὸς αὐτῷ χαίρειν πάλαι λέγομεν εἴτrsquo ἔστιν εἴτε μή λόγον ἔχον ἢ καὶ παντάπασιν ἄλογον

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BARNES J The presocratic philosophers Londres Routledge 1982

BONIFAZI A Problematizing early IE syndetic coordination ancient Greek ldquoandrdquo from Homer to Thucydides In CONGRESSO ldquoSYNTATIC CHANGE AND SYNTACTIC RECONSTRUCTION NEW PERSPECTIVESrdquo Abstract de paper Zurich 2012

CAVALCANTE DE SOUZA J (Dir) Os preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1978

CORDERO N L La deacuteesse de Parmeacutenide maitresse de philosophie In MATTEacuteI J F (Eacuted) La naissance de la raison en Gregravece Paris PUF 1990 p 207-214

______ Siendo se es la tesis de Parmeacutenides Buenos Aires Biblos 2005

COXON A H The fragments of Parmenides Revised and expanded edition Las Vegas Parmenides Publishing 2009

DENNISTON J D The greek particle 2 ed Oxford OUP 1954

GALGANO N A transgressatildeo de Melisso 2010 180 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Filosofia) - FFLCH-USP Satildeo Paulo 2010

______ A verdade tem um coraccedilatildeo intreacutepido em Una mirada actual a filosofia griega Madrid SIFG 2012

______ Amēkhaniacuteē in Parmenides DK 28 B 65 Journal of Ancient Philosophy (Engl Ed) v 10 n 2 p1-12 2016 Disponiacutevel em wwwrevistasuspbrfilosofiaantiga Acesso em 10 mar 2018

______ Parmenides as psychologist ndash part I fragments DK 1 and 2 Archai n 19 janabr p 167-205 2017a

______ Parmenides as psychologist ndash part II fragments DK 6 and 7 Archai n 20 maioago p 39-76 2017b

______ I precetti della dea Non essere e contraddizione in Parmenide di Elea Bologna Diogenes Multimedia 2017c

GALLOP D Parmenides of Elea fragments Toronto University of Toronto Press 1984

HUMBERT J Syntaxe greque 2 ed Paris Klincksieck 1954

KAHN C H The verb lsquobersquo in ancient greek 2 ed Indianapolis Hackett Publishing 2003

______ Essays on Being Oxford OUP 2009

KURFESS C Restoring Parmenidesrsquo poem essays toward a new arrangement of the fragments based on a reassessment of the original sources 2012 Tese (Doutorado) - University of Pittsburg Pittsburg 2012

MANSFELD J Die Offenbarung des Parmenideliche Welt Assen Van Gorcum 1964

36 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 41 n 2 p 9-36 AbrJun 2018

GALGANO N S

MEIJER P A Parmenides beyond the gates Amsterdam J C Gieben 1997

ROSSETTI L La structure du poeacuteme de Parmeacutenide Philosophie Antique Paris n 10 p 187-226 2010

______ Lrsquoideazione del pinax ldquomedial innovationrdquo di Anassimandro In LEAtildeO D CORNELLI G PEIXOTO M C (Ed) Dos homens e suas ideias estudos sobre as Vidas de Dioacutegenes Laeacutercio Coimbra Imprensa da Universidade de Coimbra 2013 p 89-100

SMYTH H W Greek grammar Cambridge Harvard University Press 1956

TARAacuteN L Parmenides Princeton Princeton University Press 1965

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O natildeo-ser em Parmecircnides de Eleia Artigos Articles

SETTI 2013) alcanccedila um discurso que inclui o observador enquanto obser-vador estreando assim antes de tudo um discurso sobre os entes (ontologia) todos os entes incluindo os entes de pensamento (veja-se o famoso fragmento 3 onde se lecirc que pensar e ser satildeo o mesmo) Para ele o saacutebio natildeo eacute mais aquele que sabe soacute sobre as coisas externas ndash como o antigo xamatilde cuja figura indi-vidual se dissolve na mera intermediaccedilatildeo com o divino ndash poreacutem eacute tambeacutem aquele que consegue pensar sobre as coisas externas ou seja aquele que tem um domiacutenio cognitivo sobre os pensamentos de inqueacuterito e portanto sabe so-bre si mesmo Assim o saacutebio deve pensar por proacutepria conta e julgar pelo novo criteacuterio e natildeo pelo habitual discurso (κρῖναι δὲ λόγωι DK 75) ou seja natildeo deve julgar pelo discurso mas julgar o discurso porque agora o discurso enri-quecido de uma lei universal (a lei das αρχάι ἔστιν e οὐκ ἔστιν) possui uma medida de juiacutezo Parmecircnides amplia o mundo acrescentando ao mundo fiacutesico os mundos do pensamento e da linguagem Eis porque as αρχάι de Parmecircni-des sendo duas permanecem duas justamente eliminado uma delas deixando alguns criacuteticos enlouquecidos na discussatildeo sobre o monismo ou o dualismo de acordo com Parmecircnides o mundo eacute um todavia os sentidos nos enganam natildeo na pluralidade das coisas mas no argumento a respeito da pluralidade das coisas e principalmente ndash aspecto que ele discute explicitamente ndash a respeito do devir das coisas Haacute um princiacutepio que natildeo pode ser eliminado a contra-diccedilatildeo o qual eacute um princiacutepio de erro humano quando se elimina quando se desconsidera quando se faz de conta que natildeo existe a contradiccedilatildeo se instaura quando o princiacutepio eacute levado em conta a contradiccedilatildeo pode ser evitada

Eacute uma conceituaccedilatildeo esdruacutexula para noacutes tambeacutem porque temos que ter (a noccedilatildeo de) a contradiccedilatildeo para eliminar a contradiccedilatildeo temos que saber o que eacute contradiccedilatildeo para que possamos perceber quando o discurso eacute con-traditoacuterio Esses conceitos satildeo misteriosos ateacute agora e satildeo estranhas criaturas de nossas mentes Por exemplo a noccedilatildeo de ldquoimpossiacutevelrdquo obviamente (isto eacute para a nossa pragmaacutetica) natildeo se refere a nada de concreto no entanto temos essa noccedilatildeo e a usamos com o maacuteximo proveito outro exemplo a noccedilatildeo de ldquoinfinitordquo noccedilatildeo que natildeo se refere a algo pragmaticamente concreto mas que usamos igualmente com maacuteximo proveito O mesmo deve ser dito da noccedilatildeo de contradiccedilatildeo ou da noccedilatildeo de nada absoluto que usamos pragmaticamente com maior ou menor proveito

Parmecircnides encontra esse caminho e o expotildee Eacute um caminho assom-broso anti-intuitivo mas incontestaacutevel Dessa forma natildeo eacute de estranhar se a soluccedilatildeo platocircnica eacute a eliminaccedilatildeo fiacutesica da noccedilatildeo de nada absoluto (o par-

34 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 41 n 2 p 9-36 AbrJun 2018

GALGANO N S

riciacutedio) com sucessivo ldquoadeusrdquo34 achando de tecirc-lo ultrapassado Mas o nada absoluto enquanto noccedilatildeo contraditoacuteria permanece Assim como permane-ce a explicaccedilatildeo defeituosa do devir o qual assim como o conhecemos uma passagem do nada ao ser no nascimento e do ser ao nada no perecimento estaacute mal explicado Daqui por diante os comentaacuterios filosoacuteficos possiacuteveis satildeo inuacutemeros por conseguinte paro meu estudo neste ponto e proponho a versatildeo do fragmento 2 segundo a conceituaccedilatildeo apresentada ateacute aqui alterando de pouco a excelente versatildeo baacutesica de Cavalcante de Souza

Pois bem eu te direi e tu recebe a palavra que ouviste

os uacutenicos caminhos de inqueacuterito que satildeo a pensar

o primeiro que eacute e portanto que natildeo eacute (o caminho da) contradiccedilatildeo

de persuasatildeo eacute o caminho (pois agrave verdade acompanha)

o outro que natildeo eacute e portanto que eacute necessariamente (o caminho da) contradiccedilatildeo

este entatildeo eu te digo eacute atalho de todo incriacutevel

pois nem conhecerias o que natildeo eacute (pois natildeo eacute exequiacutevel)

nem o dirias

GALGANO N S Non-being in Parmenides of Elea Transformaccedilatildeo Mariacutelia v 41 n 2 p 9-36 AbrJun 2018

ABSTRACT In fragment DK 28 B 2 of his poem Parmenides presents his method for distinguishing true persuasion from the lack of true persuasion His famous proposal of these two ways of thinking form a complex statement of a system that intends to guarantee the veracity of statements in order to obtain reliable discourse the only discourse capable of true persuasion The present paper shows that the central role in Parmenidian argumentation is attributed to non-being a notion derived from a reflection on the impossibility of the negation of being Thus the whole fragment is interpreted in terms of this central notion We show that Parmenides discovered the impossibility of negation which we now call lsquocontradictionrsquo and that he articulated the means for avoiding contradiction in thought and discourse a rule which today we call the principle of non-contradiction The study presented here is a detailed investigation of the notion of non-being in the DK 28 B 2 fragment and includes a new translation of it

KEYWORDS Parmenides Non-being Non-contradiction Eleatism Parricide

34 Platatildeo Soph 258e7-259a1 ἡμεῖς γὰρ περὶ μὲν ἐναντίου τινὸς αὐτῷ χαίρειν πάλαι λέγομεν εἴτrsquo ἔστιν εἴτε μή λόγον ἔχον ἢ καὶ παντάπασιν ἄλογον

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BARNES J The presocratic philosophers Londres Routledge 1982

BONIFAZI A Problematizing early IE syndetic coordination ancient Greek ldquoandrdquo from Homer to Thucydides In CONGRESSO ldquoSYNTATIC CHANGE AND SYNTACTIC RECONSTRUCTION NEW PERSPECTIVESrdquo Abstract de paper Zurich 2012

CAVALCANTE DE SOUZA J (Dir) Os preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1978

CORDERO N L La deacuteesse de Parmeacutenide maitresse de philosophie In MATTEacuteI J F (Eacuted) La naissance de la raison en Gregravece Paris PUF 1990 p 207-214

______ Siendo se es la tesis de Parmeacutenides Buenos Aires Biblos 2005

COXON A H The fragments of Parmenides Revised and expanded edition Las Vegas Parmenides Publishing 2009

DENNISTON J D The greek particle 2 ed Oxford OUP 1954

GALGANO N A transgressatildeo de Melisso 2010 180 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Filosofia) - FFLCH-USP Satildeo Paulo 2010

______ A verdade tem um coraccedilatildeo intreacutepido em Una mirada actual a filosofia griega Madrid SIFG 2012

______ Amēkhaniacuteē in Parmenides DK 28 B 65 Journal of Ancient Philosophy (Engl Ed) v 10 n 2 p1-12 2016 Disponiacutevel em wwwrevistasuspbrfilosofiaantiga Acesso em 10 mar 2018

______ Parmenides as psychologist ndash part I fragments DK 1 and 2 Archai n 19 janabr p 167-205 2017a

______ Parmenides as psychologist ndash part II fragments DK 6 and 7 Archai n 20 maioago p 39-76 2017b

______ I precetti della dea Non essere e contraddizione in Parmenide di Elea Bologna Diogenes Multimedia 2017c

GALLOP D Parmenides of Elea fragments Toronto University of Toronto Press 1984

HUMBERT J Syntaxe greque 2 ed Paris Klincksieck 1954

KAHN C H The verb lsquobersquo in ancient greek 2 ed Indianapolis Hackett Publishing 2003

______ Essays on Being Oxford OUP 2009

KURFESS C Restoring Parmenidesrsquo poem essays toward a new arrangement of the fragments based on a reassessment of the original sources 2012 Tese (Doutorado) - University of Pittsburg Pittsburg 2012

MANSFELD J Die Offenbarung des Parmenideliche Welt Assen Van Gorcum 1964

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GALGANO N S

MEIJER P A Parmenides beyond the gates Amsterdam J C Gieben 1997

ROSSETTI L La structure du poeacuteme de Parmeacutenide Philosophie Antique Paris n 10 p 187-226 2010

______ Lrsquoideazione del pinax ldquomedial innovationrdquo di Anassimandro In LEAtildeO D CORNELLI G PEIXOTO M C (Ed) Dos homens e suas ideias estudos sobre as Vidas de Dioacutegenes Laeacutercio Coimbra Imprensa da Universidade de Coimbra 2013 p 89-100

SMYTH H W Greek grammar Cambridge Harvard University Press 1956

TARAacuteN L Parmenides Princeton Princeton University Press 1965

Recebido 12112015Aprovado 20112016

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34 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 41 n 2 p 9-36 AbrJun 2018

GALGANO N S

riciacutedio) com sucessivo ldquoadeusrdquo34 achando de tecirc-lo ultrapassado Mas o nada absoluto enquanto noccedilatildeo contraditoacuteria permanece Assim como permane-ce a explicaccedilatildeo defeituosa do devir o qual assim como o conhecemos uma passagem do nada ao ser no nascimento e do ser ao nada no perecimento estaacute mal explicado Daqui por diante os comentaacuterios filosoacuteficos possiacuteveis satildeo inuacutemeros por conseguinte paro meu estudo neste ponto e proponho a versatildeo do fragmento 2 segundo a conceituaccedilatildeo apresentada ateacute aqui alterando de pouco a excelente versatildeo baacutesica de Cavalcante de Souza

Pois bem eu te direi e tu recebe a palavra que ouviste

os uacutenicos caminhos de inqueacuterito que satildeo a pensar

o primeiro que eacute e portanto que natildeo eacute (o caminho da) contradiccedilatildeo

de persuasatildeo eacute o caminho (pois agrave verdade acompanha)

o outro que natildeo eacute e portanto que eacute necessariamente (o caminho da) contradiccedilatildeo

este entatildeo eu te digo eacute atalho de todo incriacutevel

pois nem conhecerias o que natildeo eacute (pois natildeo eacute exequiacutevel)

nem o dirias

GALGANO N S Non-being in Parmenides of Elea Transformaccedilatildeo Mariacutelia v 41 n 2 p 9-36 AbrJun 2018

ABSTRACT In fragment DK 28 B 2 of his poem Parmenides presents his method for distinguishing true persuasion from the lack of true persuasion His famous proposal of these two ways of thinking form a complex statement of a system that intends to guarantee the veracity of statements in order to obtain reliable discourse the only discourse capable of true persuasion The present paper shows that the central role in Parmenidian argumentation is attributed to non-being a notion derived from a reflection on the impossibility of the negation of being Thus the whole fragment is interpreted in terms of this central notion We show that Parmenides discovered the impossibility of negation which we now call lsquocontradictionrsquo and that he articulated the means for avoiding contradiction in thought and discourse a rule which today we call the principle of non-contradiction The study presented here is a detailed investigation of the notion of non-being in the DK 28 B 2 fragment and includes a new translation of it

KEYWORDS Parmenides Non-being Non-contradiction Eleatism Parricide

34 Platatildeo Soph 258e7-259a1 ἡμεῖς γὰρ περὶ μὲν ἐναντίου τινὸς αὐτῷ χαίρειν πάλαι λέγομεν εἴτrsquo ἔστιν εἴτε μή λόγον ἔχον ἢ καὶ παντάπασιν ἄλογον

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O natildeo-ser em Parmecircnides de Eleia Artigos Articles

REFEREcircNCIAS

BARNES J The presocratic philosophers Londres Routledge 1982

BONIFAZI A Problematizing early IE syndetic coordination ancient Greek ldquoandrdquo from Homer to Thucydides In CONGRESSO ldquoSYNTATIC CHANGE AND SYNTACTIC RECONSTRUCTION NEW PERSPECTIVESrdquo Abstract de paper Zurich 2012

CAVALCANTE DE SOUZA J (Dir) Os preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1978

CORDERO N L La deacuteesse de Parmeacutenide maitresse de philosophie In MATTEacuteI J F (Eacuted) La naissance de la raison en Gregravece Paris PUF 1990 p 207-214

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COXON A H The fragments of Parmenides Revised and expanded edition Las Vegas Parmenides Publishing 2009

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GALGANO N A transgressatildeo de Melisso 2010 180 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Filosofia) - FFLCH-USP Satildeo Paulo 2010

______ A verdade tem um coraccedilatildeo intreacutepido em Una mirada actual a filosofia griega Madrid SIFG 2012

______ Amēkhaniacuteē in Parmenides DK 28 B 65 Journal of Ancient Philosophy (Engl Ed) v 10 n 2 p1-12 2016 Disponiacutevel em wwwrevistasuspbrfilosofiaantiga Acesso em 10 mar 2018

______ Parmenides as psychologist ndash part I fragments DK 1 and 2 Archai n 19 janabr p 167-205 2017a

______ Parmenides as psychologist ndash part II fragments DK 6 and 7 Archai n 20 maioago p 39-76 2017b

______ I precetti della dea Non essere e contraddizione in Parmenide di Elea Bologna Diogenes Multimedia 2017c

GALLOP D Parmenides of Elea fragments Toronto University of Toronto Press 1984

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KAHN C H The verb lsquobersquo in ancient greek 2 ed Indianapolis Hackett Publishing 2003

______ Essays on Being Oxford OUP 2009

KURFESS C Restoring Parmenidesrsquo poem essays toward a new arrangement of the fragments based on a reassessment of the original sources 2012 Tese (Doutorado) - University of Pittsburg Pittsburg 2012

MANSFELD J Die Offenbarung des Parmenideliche Welt Assen Van Gorcum 1964

36 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 41 n 2 p 9-36 AbrJun 2018

GALGANO N S

MEIJER P A Parmenides beyond the gates Amsterdam J C Gieben 1997

ROSSETTI L La structure du poeacuteme de Parmeacutenide Philosophie Antique Paris n 10 p 187-226 2010

______ Lrsquoideazione del pinax ldquomedial innovationrdquo di Anassimandro In LEAtildeO D CORNELLI G PEIXOTO M C (Ed) Dos homens e suas ideias estudos sobre as Vidas de Dioacutegenes Laeacutercio Coimbra Imprensa da Universidade de Coimbra 2013 p 89-100

SMYTH H W Greek grammar Cambridge Harvard University Press 1956

TARAacuteN L Parmenides Princeton Princeton University Press 1965

Recebido 12112015Aprovado 20112016

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O natildeo-ser em Parmecircnides de Eleia Artigos Articles

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