Santoro, Fernando - Filósofos épicos I, Parmênides e Xenófanes

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BIBLIOTECA CLÁSSICA FILÓSOFOS ÉPICOS I PARMÊNIDES E XENÓFANES fragmentos Edição do texto grego, revisão e comentários Fernando Santoro Revisão Científica Néstor Cordero Rio de Janeiro, 2011 Fundação Biblioteca Nacional

Transcript of Santoro, Fernando - Filósofos épicos I, Parmênides e Xenófanes

  • BIBLIOTECA CLSSICA

    FILSOFOS PICOS I

    PARMNIDES E XENFANES

    fragmentos

    Edio do texto grego, reviso e comentrios

    Fernando Santoro

    Reviso Cientfica

    Nstor Cordero

    Rio de Janeiro, 2011

    Fundao Biblioteca Nacional

  • EXPEDIENTE

    Biblioteca Clssica Filsofos picos I Parmnides e Xenfanes Fragmentos

    Edio do texto grego, traduo e notas

    Fernando Santoro

    Reviso Cientfica

    nStor Cordero

    Chefia na Edio do livro Guilherme CeleStino

    Assistncia na Edio e Traduo eraCi de oliveira luan reboredo

    Reviso de Lngua Portuguesa

    luiza miriam ribeiro martinS

    Reviso de Lngua Grega

    ClariSSa marChelli

    Projeto Grfico

    Samuel tavareS Guilherme CeleStino

    Capa maria Fernanda moreira ali CeleStino

    REPBLICA FEDERATIVA DO BRASIL

    Presidenta da Repblica

    dilma vana rouSSeFF

    Ministra da Cultura

    ana de hollanda

    FUNDAO BIBLIOTECA NACIONAL

    Presidente

    Galeno amorim

    Diretoria Executiva

    Clia Portella

    Coodenao Geral de Pesquisa e Editorao

    oSCar m. C. GonalveS

    Hexis um selo editorial da

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    Rio de Janeiro, RJ CEP 20071-000

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    [email protected]

    P265fv.1

    Parmnides, Xenfanes Filsofos picos I : Parmnides e Xenfanes, fragmentos / edio

    do texto grego, traduo e comentrios Fernando Santoro ; reviso cientifica Nstor Cordero. - Rio de Janeiro : Hexis : Fundao Biblioteca Nacional, 2011.

    184p. (Biblioteca clssica ; v.1)

    Texto bilngue, portugus e grego Inclui bibliografia ISBN 978-85-62987-05-2

    1. Parmnides. 2. Xenfanes, ca. 570-ca. 478 a.C. 3. Filosofia antiga. 4. Poesia grega. I. Xenfanes, ca. 570-ca. 478 a.C. II. Santoro, Fernando, 1968-. III. Cordero, Nstor-Luis. IV. Biblio-teca Nacional (Brasil). V. Ttulo. VI. Ttulo: Parmnides e Xen-fanes, fragmentos. VII. Srie.

    11-1348. CDD: 182.3 CDU: 1(38)

    11.03.11 14.03.11 025006

    CIP-BRASIL. CATALOGAO NA FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVRO, RJ

  • COMISSO EDITORIAL

    Fernando Muniz, UFFFernando Santoro, UFRJHenrique Cairus, UFRJIzabela Bocayuva, UERJ

    Luis Felipe Belintani, UFF

    CONSELHO CONSULTIVO

    Marcos Martinho, USPBreno B. Sebastiani, USPGabriele Cornelli, UNB

    Emmanuel Carneiro Leo, UFRJMrcia Cavalcante Schuback, Sdertrns Hgskola

    Nstor Cordero, U. de RennesPierre Chiron, U. de Paris XII

    Helne Casanova-Robin, U. de Paris IVBrbara Cassin, CNRS

    David Konstan, U. of BrownLivio Rossetti, U. di Peruggia

    Giovanni Casertano, U. di Napoli

  • Volumes

    Este volume:Filsofos picos I Parmnides e Xenfanes, fragmentosEditor do texto grego: Fernando SantoroTradutor: Fernando SantoroRevisor: Nstor CorderoIntrodues, comentrios e notas: Fernando Santoro

    Prximos volumes:Filsofos picos II Parmnides e Xenfanes, testemunhos de vida e doutrinaFilsofos picos III Empdocles, fragmentosFilsofos picos IV Empdocles, testemunhos de vida e doutrina

  • BIBLIOTECA CLSSICA

    OBJETIVOS GERAISA BIBLIOTECA CLSSICA um programa editorial

    para publicao das obras clssicas da filosofia e da literatura antiga. O objetivo reunir em lngua portuguesa um acervo de edies bilngues com aparato de notas e comentrios, se-gundo o mais alto padro acadmico internacional.

    O projeto inclui um ncleo bsico de pesquisa, ava-liao e traduo composto de professores universitrios e pesquisadores de ps-graduao, coordenados pelas equipes dos Laboratrios integrantes do Polo de Estudos Clssicos do Estado do Rio de Janeiro PEC, vinculados UERJ, UFF e UFRJ, com apoio da Sociedade Brasileira de Estudos Cls-sicos SBEC e da Fundao Biblioteca Nacional. A Coleo realizada por um pool de editoras responsveis pela execuo grfica e pela distribuio.

    METODOLOGIAEdio dos textos gregos

    Para a composio dos textos gregos editados, reco-menda-se a consulta e crtica das principais edies crticas e tambm fac-smiles dos manuscritos, quando disponveis. Todavia a coleo no se prope a realizar o trabalho paleo-grfico e filolgico de uma edio crtica exaustiva. As edies devem apontar as variantes mais significativas em notas de p de pgina. No exigido repertoriar todas as variantes en-contradas nas edies crticas consultadas. As notas ao texto grego devem ser ao mesmo tempo sucintas e claras. Indica-se sempre a provenincia das variantes, de fontes e edies crti-cas. A pontuao moderna uma escolha do editor.

    repertoriada a lista completa de fontes e suas edi-es, segundo as edies crticas consultadas. Quando edi-es das fontes so diretamente tratadas, constam na biblio-grafia. Em geral, as referncias a manuscritos das fontes so indiretas, segundo as edies crticas; estas sero creditadas quando divergentes.

  • VI FILSOFOS PICOS I

    O texto grego pode seguir igualmente uma edio crti-ca previamente estabelecida, que esteja em domnio pblico ou cujos direitos sejam cedidos. Nestes casos, a autoria deve ser explicitamente creditada a quem estabeleceu o texto.

    Para facilitar o cotejo da traduo, o texto grego segue na pgina esquerda.

    A traduoEm toda traduo, o ponto de partida est em explicitar

    o sentido do texto. Mas, quando se percorre as to diversas tradues j editadas, em portugus, em francs, em alemo, em espanhol, em ingls..., percebe-se que j desde os manus-critos, h sculos, diversas manipulaes, correes, inver-ses, amputaes, intervenes, bem ou mal fundamentadas da parte dos copistas, dos editores, dos tradutores preceden-tes, alguns emritos helenistas, foram exercidas sobre o texto inicial, chegando s vezes a lhe tolher qualquer sentido1.

    O que Bollack diz acima a respeito de sua traduo dos manuscritos de Epicuro vale igualmente, ou ainda mais, para nossas tradues dos clssicos. preciso escolher a lio, com a vista calcada no sentido integral de cada obra, segundo o princpio bem assentado da arte da hermenutica, expresso por Schleiermacher; mas para escolher entre tantos sentidos integrais possveis e bem justificados, apontamos outro princ-pio, defendido pela escola filolgica de Lille: dar preferncia s lies dos manuscritos, ante tantas sugestes de correo, que se amontoam desde a antiguidade clssica. Contudo, tambm os manuscritos de que dispomos so provenientes de fontes indiretas, e sabe-se que na transmisso helenista no h muito pudor em intervir no texto citado, e tal interveno raramente assinalada. Assim, muitas vezes, h mais de uma variante de interesse para a compreenso integral das obras; nestes casos, se seguem os manuscritos mais fiveis (os que apresentam tre-chos maiores, os mais antigos, os melhor conservados), mas se assinalam as variantes e correes alternativas. Correes aos manuscritos devem ser assinaladas e creditadas ao seu autor.

    As Joias da Biblioteca NacionalO Projeto de editar os clssicos abrindo com os fil-

    sofos picos inclui tambm o destaque de sua recepo em

    1 Jean BOLLACK. Comentrio sobre sua traduo dos textos de Epicuro, disponvel em:

    .

  • VIIBIBLIOTECA CLSSICA

    lngua portuguesa, inclusive com a edio ou reedio de obras de significado especial para esta lngua. Tais obras so o que denominamos as Joias da Biblioteca, incluem desde manus-critos nunca antes editados do acervo da FBN (como a traduo dos Versos de Ouro de Pitgoras por Luiz Antonio de Azevedo Lis-bonnense, do sc XVIII, Manuscrito: Ref. I. 14,01,044 FBN), textos editados em diversos contextos, tal como traduo do Poema de Parmnides por Gerardo Mello Mouro, publicada em uma revista da prefeitura do Rio de Janeiro em 1986, ou As lgrimas de Herclito de Antnio Vieira (Ref. VI-308,1,29) do sc. XVII, que recebeu recente publicao bilngue. Para tanto, as sees de manuscritos e de obras raras, bem como a de peridi-cos da FBN esto sendo pesquisadas, em busca desses peque-nos tesouros ocultos ou esquecidos.

    Para cada volume, eventualmente para cada autor, pro-duziremos um apndice com um texto ou seleo de textos significativos para a literatura e a recepo da obra em lngua portuguesa. No caso de serem textos inditos, publicaremos o texto completo; no caso de j terem sido publicados em con-texto diferenciado, selecionaremos partes significativas ou fa-remos selees comparativas (por ex. as seis [ou mais] tradu-es brasileiras do frag. DK B11 das Stiras de Xenfanes).

    CONSELHO EDITORIALOs Ttulos da coleo devem ser indicados por algum

    membro do Conselho Editorial (composto pelos membros da Comisso Editorial e do Conselho Consultivo) e aceitos pela maioria simples da Comisso Editorial da Coleo BIBLIO-TECA CLSSICA, a qual pode solicitar pareceres de mem-bros do Conselho Consultivo.

    Os membros do Conselho Editorial so permanentes, podendo sair por vontade prpria. Somente em caso de sada de um membro da Comisso Editorial pode ser indicado novo membro, aceito por unanimidade da Comisso, para que esta mantenha o nmero de cinco membros. Pode ser indicado novo membro para a Comisso Consultiva, aceito por unani-midade da Comisso Editorial.

    A Comisso Editorial deve zelar pelo cumprimento das regras da coleo e encaminhar s editoras associadas os ma-nuscritos aprovados, de preferncia, com parecer cientfico anexado e reviso por autoridade cientfica no assunto. Nor-mas editoriais disponveis em .

  • VIII FILSOFOS PICOS I

    AGRADECIMENTOS

    Gostaria de agradecer a todos que contriburam para a realizao deste estudo, a comear por Marcelo Pimenta Marques, cuja leitura atenta de minha tese de doutorado, em 1998, abriu-me o acesso para temas e autores fundamentais nos estudos de Parmnides. Nunca poderei expressar tambm toda a gratido que tenho pelo Professor Emmanuel Carneiro Leo, a quem devo a iniciao e formao em filosofia e lngua gregas. Professora Barbara Cassin, devo muitas das lies de cuidado e amor aos textos, formadoras do que entendo hoje por rigor, perspiccia e honestidade filolgicos para com a filosofia.

    Agradeo com entusiasmo a todos os amigos que discu-tiram comigo as decises de edio e traduo ao longo dos ltimos cinco anos. Devo um agradecimento especial aos que me transmitiram seus apontamentos precisos e teis, como Jean Bollack, Lambros Couloubaritsis, Giovanni Casertano, Chiara Robbiano, Jos Gabriel Trindade, Lvio Rossetti, Ta-tiana Ribeiro, Henrique Cairus, Gerard Journe, Leopoldo Iri-barren, Lucia Saudelli e Aude Engel.

    Agradeo especialmente a todos os participantes do Se-minrio de 2010/2011 sobre os pr-socrticos gregos/latinos do centro Lon Robin, e particularmente seus condutores Andr Laks e Carlos Levy; sem dvida me alargaram a viso, sobretudo quanto aos efeitos no texto da sua transmisso e recepo.

    Um agradecimento especial a Nstor Cordero que, alm de abrir-me as portas para o mundo eleata, aceitou a faina de ser o revisor oficial deste volume.

    Tambm devo agradecer aos meus orientandos e ex-orientandos, que suportaram alguns anos de discusses e experincias, nas aulas de graduao e ps-graduao, e nas jornadas de traduo do Laboratrio OUSIA de Estudos em Filosofia Clssica; alguns me ajudaram diretamente no pre-sente trabalho: Carlos Lemos, Felipe Gonalves, Daniel Ru-bio, Rafael Barbosa, Carolina Torres, Suzana Piscitello, Eraci de Oliveira, Luan Reboredo, Guilherme Celestino.

  • IXBIBLIOTECA CLSSICA

    Agradeo de corao ao Tunga e ao Embaixador Gona-lo Mouro a autorizao para republicar, na seo das Joias, a pica traduo do Poema de Parmnides realizada por seu pai Gerardo Mello Mouro.

    Por fim, agradeo s agncias brasileiras de fomento sem as quais tudo isso no seria alcanado: Fundao Bi-blioteca Nacional, pela bolsa de pesquisa (2007-2009) sobre Os Filsofos Poetas e seu apoio publicao deste primei-ro volume da Coleo Biblioteca Clssica; Fundao Capes, pela bolsa de pesquisa (2010-2011) e suporte institucional (acordo Capes/Cofecub) para o projeto de pesquisa sobre As origens da linguagem filosfica: estratgias retricas e poti-cas da sabedoria antiga e Faperj pelo apoio formao do Polo de Estudos Clssicos do Rio de Janeiro.

  • X FILSOFOS PICOS I

    ABREVIATURAS USUAIS

    abl. ablativoabrev. abreviatura, abreviadoac. acusativoapp. apndicecap. captulocom. comentriocf. confrontar / conferirdat. dativod.C. depois de Cristoed. editor, editores, edio,

    editoraex. exemplof. feminino, na forma

    femininaFBN Fundao Biblioteca

    Nacionalfr. fragmento, fragmentosg. gramagen. genitivointrod. introduoloc. locativom. masculino, na forma

    masculinan. nascido em / nota,

    notasnom. nominativoOl. Olimpadaorg. organizador,

    organizadoresp. pgina, pginaspl. pluralpub. publicado emref. referncia

    reimpr. reimpressorev. reviso de, revisado porsc. a sabersc. sculo(s)ser. srie, sriessg. singularsuppl. Suplementos.v. termo substantivotrad. traduo, traduzido porv. volume, volumes /

    verso, no versovoc. vocativovv. versos, nos versos

  • XIBIBLIOTECA CLSSICA

    SIGLAS E ABREVIATURAS NESTE VOLUME

    Ald. Aldo Manucio (editor da primeira tentativa de estabelecimento do texto de Parmnides, Veneza, 1526 chamada edio Aldina)

    CAG Commentaria in Aristotelem GraecaDK Diels, H. & Kranz, W., Die Fragmente der Vorsokratiker. 61951

    (2004)DK A seo de doxografias (vida e doutrina)DK B seo dos fragmentosE; L;N; F etc. manuscritos E; L; N; F etc. (discriminados na seo

    FONTES DOS FRAGMENTOS E SUAS EDIES)libri cdices, manuscritosmss. manuscritosreed. reeditadoSext. Sexto Emprico[ ] Somente no texto grego e na traduo, palavra entre

    colchetes significa presena nos manuscritos posta em suspeio pelos editores.

    < > Palavra interposta pelos editores ou pelo tradutor.

  • SUMRIO

    BIBLIOTECA CLSSICA ........................................................................................ V

    AGRADECIMENTOS .......................................................................................... VIII

    ABREVIATURAS USUAIS ...................................................................................... X

    SIGLAS E ABREVIATURAS NESTE VOLUME ..................................................XI

    PREFCIO .................................................................................................................1Os filsofos poetas ...............................................................................1A determinao como physiki e physilogoi ....................................2A discusso acerca do mtodo ..............................................................3Cosmologia, teologia e outras cincias .................................................3A forma pica ........................................................................................4

    XENFANES DE COLOFO ..................................................................................7INTRODUO AOS FRAGMENTOS .............................................................9

    Vida de Xenfanes ................................................................................9Edio do texto grego e traduo ........................................................9Os gneros e seus metros ...................................................................10O verso pico ......................................................................................11As Elegias ...........................................................................................11As Stiras (slloi) ................................................................................11Os temas filosficos. ...........................................................................12

    FRAGMENTOS .............................................................................................19Elegias.................................................................................................21Stiras .................................................................................................29Pardias ..............................................................................................37Da Natureza ........................................................................................39

    FRAGMENTOS DUVIDOSOS .......................................................................49

    PARMNIDES DE ELIA ......................................................................................53INTRODUO AOS FRAGMENTOS DO POEMA DE PARMNIDES .......55

    Vida de Parmnides ............................................................................55A reconstituio arqueolgica ............................................................57Edio do texto grego .........................................................................59Nossa traduo ...................................................................................60Os deuses-conceito .............................................................................62Os nomes dos deuses .........................................................................65O Poema e suas partes ....................................................................71

  • FRAGMENTOS ..............................................................................................77Da Natureza ........................................................................................79 Promio ..............................................................................................79 Programa 1 .........................................................................................85 Programa 2 .........................................................................................87 Os Caminhos 1 ...................................................................................89 Os Caminhos 2 ...................................................................................89 Os Caminhos 3 ...................................................................................91 O Caminho do que ...........................................................................93 O Caminho das Opinies 1 ..............................................................101 O Caminho das Opinies 2 ..............................................................105 O Caminho das Opinies 3 ..............................................................107 Cosmos 1 ..........................................................................................107 Cosmos 2 ..........................................................................................109Cosmos 3 ..........................................................................................111Cosmos 4 ..........................................................................................113Cosmos 5 ..........................................................................................113Cosmos 6 ..........................................................................................115Cosmos 7 ..........................................................................................117Cosmos 8 ..........................................................................................117Cosmos 9 ..........................................................................................117

    FRAGMENTOS DUVIDOSOS .....................................................................119TBUA DE CONCORDNCIA ...................................................................124

    FONTES DOS FRAGMENTOS E SUAS EDIES .......................................... 127

    JOIAS DA BIBLIOTECA NACIONAL .................................................................139

    NDICE ONOMSTICO .......................................................................................147

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ....................................................................151

  • para Antnio

  • PREFCIO

    Os filsofos poetasA filosofia surge, na Grcia, em meio a um fecundo di-

    logo e uma calorosa disputa entre valores e formas de conhe-cimento. Dilogo e disputa que so entretidos com as formas tradicionais de educar e conhecer, sobretudo a poesia pica, mas tambm a poesia lrica, a rfica, a trgica, as tradies oraculares e outras formas de expresso e de linguagem. Os primeiros filsofos nascem diretamente destas tradies dis-cursivas, e muitas vezes mantm elementos formais e tam-bm contedos similares a esta origem ao mesmo tempo em que frequentemente assumem uma posio de distancia-mento e confronto face s mesmas.

    Uma longa tradio, que j vem desde os comentadores alexandrinos, passando pela edio de Stephanus da Poiesis Philosophica (1573) at a grande compilao de filsofos ar-caicos de Friedrich Wilhelm August Mullach Fragmenta Philo-sophorum Graecorum (1860) seguida da coletnea de Hermann Diels Poetarum Philosophorum Fragmenta (1901), vinculou for-temente os primeiros filsofos a suas origens poticas, tan-to que os denominava Poetas Filsofos. Esta denominao tinha em geral, porm, uma conotao pejorativa, de vis positivista: tratavam-se ainda de protofilsofos, pensadores que falavam por meio de alegorias, porque no teriam ainda desenvolvido a linguagem madura da filosofia e da cincia. Somente com a obra maior de Hermann Diels, Die Fragmente der Vorsokratiker, a partir do incio do sc. XX com contnuas revises feitas por ele e Walter Kranz at 1952, estes filso-fos passaram a ser denominados canonicamente como fil-sofos pr-socrticos. Contudo, o tom de classific-los como aspirantes filosofia no se alterou, visto que ser anterior a Scrates ainda visto como anterior ao paradigma clssico da filosofia. Mas ressoa ainda, por todo o sc. XX, a relao que Nietzsche lhes imprimiu com a poesia trgica, desfazendo o preconceito positivista que v a cincia como uma supera-o dos mitos e da poesia. De fato, a filosofia dos primeiros filsofos faz parte de uma grande transformao criativa da

  • 2 FILSOFOS PICOS I

    linguagem, da cultura, das instituies que se interpenetram e influenciam. A filosofia no supera a poesia, mas concorre entre as diversas formas de pensamento e expresso para o diverso desempenho criador do conhecimento, da cultura e da civilizao.

    A relao da filosofia com a poesia, na Magna Grcia dos sc. VI e V a.C., no somente uma relao exterior, de recproca influncia e de emprstimos de recursos expressi-vos ou formatos discursivos. Com efeito, a filosofia surge ori-ginalmente, como um gnero de poesia sapiencial, e merece ser pensada neste limiar em que confluem literatura, retrica, pensamento e conhecimento. Com os filsofos picos explo-ramos as potencialidades criativas deste limiar, a partir da ecdtica dos textos gregos e das tradues, abrindo caminho para uma anlise discursiva de suas formas originais de ex-presso e, principalmente, para a discusso filosfica dos seus contedos e temas.

    Chamamos de picos, filsofos como Xenfanes, Par-mnides e Empdocles. Filsofos que compuseram, entre suas obras, poemas/tratados sobre a natureza (per phseos). So picos segundo uma abordagem que diz respeito ao esta-tuto das formas e contedos da filosofia em seus primrdios, face aos demais discursos sapienciais e formas de expresso coetneos, particularmente os poemas de tradio homrica.

    Destaquemos quatro aspectos dos Filsofos picos, es-boados aqui cada um em separado, como um programa de investigao. Cada um delimita um conjunto que aproxima de seus textos outros textos de formas afins dentro do campo da literatura sapiencial grega, criando zonas de fronteira que se cruzam sem se sobrepor.

    A determinao como physiki e physilogoiAristteles, no primeiro livro da Metafsica (982a), no-

    meia os seus predecessores, estes que trataram dos primeiros princpios e causas, simplesmente, de sophi ou philso-phoi, diferenciando-os dos poetas, que ele chama tambm de thelogoi. No primeiro livro de sua Fsica, Aristteles ocupa-se de discutir as principais teses ontolgicas dos eleatas, para estabelecer o seu prprio conceito de phsis (natureza) como princpio de movimento. Assim, o Estagirita estabelece a perspectiva para abordar Xenfanes e Parmnides como fil-sofos que tratam da natureza. O ttulo que seus tratados iro (posteriormente) receber: Acerca da Natureza (Per Phseos)

  • 3PREFCIO

    deve-se a esta perspectiva, a qual tambm vai dirigir a obra que, por muito tempo, foi o lugar de divulgao destes trata-dos: a compilao, empreendida por Teofrasto, das opinies dos filsofos da natureza Physikn Dxai. O problema aqui pode abrir-se por vrias portas: uma primeira em que me-dida a abordagem do tema dos princpios como um problema que diz respeito phsis um marco de origem da filosofia; outra acerca da determinao do prprio sentido de nature-za, e sua dependncia da perspectiva aristotlica.

    A discusso acerca do mtodoXenfanes, particularmente no fragmento DK 21 B 34,

    e Parmnides na primeira parte do poema (os fragmentos DK 28 B1 at B6, pelo menos) tm como objeto de reflexo o prprio conhecimento, seus caminhos, desvios e limitaes. Assim, seus tratados acerca da natureza englobam tambm o que poderamos considerar como discusses preliminares metodolgicas acerca do estatuto da verdade e das opinies. Talvez essa seja uma das principais caractersticas da nascen-te filosofia: no apenas buscar a expresso de verdades, mas refletir sobre a prpria condio da verdade. Isso os diferen-cia dos discursos sapienciais tradicionais, tais como na poe-sia pica de Hesodo e Homero, mesmo quando esta versa a respeito de sua inspirao pelas musas. A reflexo sobre o estatuto do conhecimento diferencia-os tambm dos con-textos rituais de revelao e interpretao, tal como os or-culos. Por outro lado, Parmnides e Xenfanes no opem ao verdadeiro o falso, mas as opinies. Isso aponta para uma diferena em relao s compreenses clssicas de verdade como adequao, que se vo consolidar em Plato e, princi-palmente, na discusso aristotlica sobre o discurso apofnti-co (declarativo, demonstrativo). Com relao ao estatuto do conhecimento, Xenfanes, Parmnides e Empdocles esto na fronteira de um mundo em transformao, e conservam de modo rico e refletido elementos das experincias tradicionais de inspirao e revelao ao mesmo tempo em que apresen-tam um mpeto de investigao da natureza e um cuidado de explicao dos fenmenos que j os projeta como homens de cincia e filosofia.

    Cosmologia, teologia e outras cinciasOs tratados acerca da natureza de Xenfanes e Par-

    mnides expem uma viso do cosmos com aspectos as-

  • 4 FILSOFOS PICOS I

    tronmicos, geogrficos, biolgicos etc. de particular in-teresse para a histria das cincias e para uma reflexo epistemolgica em geral2. A compreenso desta viso do cosmos tambm decisiva para a reflexo sobre o sentido da chamada segunda parte do Poema de Parmnides e para a considerao do estatuto do conhecimento humano e das opinies dos mortais3, Neste contexto, tambm significativo o problema do estatuto ontolgico dos deuses, seu lugar na cosmoviso dos poetas filsofos, e a crtica a como os homens os compreendem e se relacionam com eles que aparece no apenas nos fragmentos dos tratados acerca da natureza dos pr-socrticos em geral, mas tam-bm particularmente nos fragmentos satricos (Slloi) de Xenfanes. Convivem, mas no sem conflitos, discursos te-ognicos e cosmognicos. Ao mesmo tempo em que pode-mos vislumbrar catlogos de deuses, encontramos a crtica s concepes teolgicas tradicionais, sobretudo quanto ao seu antropomorfismo. Esta crtica est no corao das con-sideraes sobre a opinio, a nomeao, o engano e tudo o que se pode enquadrar dentro da perspectiva de uma ex-perincia humana repleta de limitaes. Neste sentido, os textos tambm so potencialmente ricos de uma antropo-logia filosfica.

    A forma picaEntre os diversos filsofos conhecidos que escreveram

    tratados acerca da natureza, alguns usaram em seus tratados a forma pica da versificao em hexmetros dactlicos4, entre os quais: Xenfanes, Parmnides e Empdocles. No se trata de uma simples continuao da tradio de poesia sapiencial homrica. A filosofia j havia experimentado a prosa nos tra-tados acerca da natureza em sua origem jnica. Xenfanes de Colofo provm diretamente dessa tradio naturalista jnica, mas era tambm um rapsodo, que recitava tanto poemas seus quanto do repertrio homrico, o qual tambm interpretava e criticava. E Parmnides, apesar de apresentar um tratado que dialoga e polemiza com as recentes filosofias jnicas, parece que decide muito propositalmente pela forma tradicional do verso homrico.

    2 Cf. PoPPer, Karl, The world of Parmenides. Essays on the Presocratic Enlightenment (1998).

    3 Cf. CaSertano, Giovanni, Parmenide il metodo la scienza lesperienza (1989).

    4 Cf. p. 10 (Os Gneros e Seus Metros).

  • 5PREFCIO

    Portanto, o uso do verso uma escolha deliberada e no uma inerte continuao da tradio. As referncias a Homero tambm se faz em aluses a expresses e a episdios da pi-ca, quer dizer: tambm aos contedos narrados nos poemas5. Por outro lado, h uma forte crtica acerca desses contedos, sobretudo no que se refere aos discursos acerca dos deuses.

    O problema est em como justificar a escolha do verso. Por que escrever filosofia em poemas metrificados como os de Homero? O mesmo Homero que muitas vezes o modelo de valores e de contedos a criticar. Talvez, seja justamente para concorrer pelo mesmo pblico, e pela mesma funo de educador dos homens civilizados. Talvez, mais do que nos contedos, se deva investigar o efeito pretendido por tais filsofos com suas obras poticas. Um efeito que se queria produzir por meio de uma performance tpica para um lar-go auditrio. Afinal, uma rcita pblica segundo a tradio dos rapsodos declamadores de cantos homricos, como Xe-nfanes, devia surtir um efeito bem mais amplo do que uma leitura de estudo privado. No se pode esquecer tampouco a funo mnemnica do hexmetro; a memria a base da conservao e da transmisso sapiencial para uma civilizao que ainda est em processo de alfabetizao. No por acaso que nas teogonias, Memria seja esposa do governante Zeus e me das Musas inspiradoras.

    O hexmetro dactlico escolhido pelos filsofos picos quando tratam da natureza, mas entre estes filsofos poetas inclumos tambm Xenfanes que faz poesia sapiencial tam-bm com outros metros. As stiras (slloi) incluem uma refle-xo sobre os limites e mtodos do conhecimento que no se deve excluir do gnero de poesia sapiencial; e mesmo as ele-gias de Xenfanes contm prescries e reflexes de ordem tica e poltica.

    5 Cf. CaSSin, Barbara. 1998. pp 48-64 e a referncia aos versos picos em Coxon, a. h., 22009.

  • XENFANES DE COLOFO

  • INTRODUO AOS FRAGMENTOS DOS POEMAS DE XENFANES

    Vida de XenfanesXenfanes nasceu na cidade de Colofo, na Jnia, em

    torno de 570 a.C. Foi contemporneo de Anaximandro, respi-rou os ares dos filsofos naturalistas da regio e, sobretudo, seu pendor pela agonstica em torno dos princpios. Com a invaso dos Persas, fugido ou banido, migrou em direo ao ocidente por volta de 545, passando por vrias cidades gregas, pela Siclia, pelo sul da Itlia, sempre realizando sua atividade de rapsodo. Como rapsodo, interpretava certamente Home-ro, Hesodo e tambm poemas de prpria autoria. Pelas suas consideraes crticas pica arcaica se pode imaginar que suas interpretaes no fossem somente rcitas inspiradas desprovidas de reflexo, tal como Plato caricaturou a ativida-de dos rapsodos no dilogo on. Esteve presente na fundao de Eleia em 540 e muito provavelmente ali manteve intensa atividade intelectual e letiva. Encontrou-se certamente com o jovem Parmnides, mas as notcias de que foi o fundador da Escola Eleata decerto decorrem do desejo de transformar al-gumas afinidades de prtica e doutrina em grandes encontros histricos. De toda forma, a recepo do poeta pe na conta de sua nova teologia, crtica do antropomorfismo de Homero e Hesodo, a ideia e teoria do Uno, assumida de diversas ma-neiras pelos filsofos que atuaram em Eleia. Alm dos poe-mas de que nos sobraram fragmentos, tambm se tem notcia de que escreveu outros poemas picos, como a Fundao de Colofo e a Fundao de Eleia. Xenfanes viveu mais de noventa anos, conforme seus prprios versos autobiogrficos.6

    Edio do texto grego e traduo Para o texto grego de Xenfanes, tomamos como ponto

    de partida a edio de domnio publico de Hermann Diels Poe-

    6 A maioria dos dados biogrficos de Xenfanes encontra-se em Digenes Larcio, Vitae philos-

    ophorum IX, 18-20 (DK 21 A 1).

  • 10 FILSOFOS PICOS I

    tarum Philosophorum Fragmenta (1901) digitalizada e disponvel na Internet. Utilizamos, por sua maleabilidade, a verso do stio mantido por Zdenk Kratochvl, montada a partir da An-thologia lyrica, ed. Hiller Crusius, Lipsiae, 1903 e da ltima edio de Hermann Diels e Walther Kranz, Die Fragmente der Vorsokratiker, Zrich, 1951. Cotejamos diretamente a edio Diels-Kranz (1951), usada para a referncia da notao, e as edies de J. H. Lesher (1992) e Jaap Mansfeld (1983).

    No grego, deixamos em minsculas todos os fragmen-tos atribudos, mas no alteramos as maisculas no texto das fontes. Na traduo, usamos maisculas nos nomes prprios e nos nomes de deuses; explicaremos o motivo adiante7.

    A recepo dos Fragmentos de Xenfanes em portu-gus produziu alguns excelentes trabalhos, entre os quais destacamos a experincia de traduo de inspirao concre-tista de Trajano Vieira8, que explora o potencial potico da forma fragmentada do legado pr-socrtico. Buscamos em nossas tradues a informao filolgica suficiente, a clareza filosfica e a ordenao potica, medida do possvel. Pro-curamos nos pr a caminho da excelncia literria de Anna Lia de Almeida Prado9 e Trajano Vieira. Nossa contribuio suplementar diz respeito apenas s informaes filolgicas e possibilidade de cotejo com o grego. Para se ter ideia da va-riao, brindamos o leitor, no anexo das Joias da Biblioteca Nacional, com algumas das tradues para o portugus do fragmento B11.

    Os gneros e seus metrosMesmo sendo autor de uma obra sobre a natureza e

    com suas observaes importantes sobre a limitao do co-nhecimento humano, no toa que Xenfanes seja muitas vezes mais lembrado como poeta do que filsofo. Isto se deve variedade de metros e gneros poticos em que escreveu. Mas, no foi menos filsofo em um gnero do que em outro, seus dsticos elegacos e seus iambos no sendo menos ricos de assertivas sapienciais.

    7 Cf. Os deuses-conceito p. 62.

    8 vieira, Trajano, Xenofanias. Campinas, Ed. Unicamp, 2006.

    9 Prado, Anna L. A. de A. Fragmentos de Xenfanes de Colofo, in: Os Pr-Socrticos, org. J. Cavalcante

    de Souza, So Paulo, Abril, 1973.

  • 11XENFANES

    O verso picoXenfanes usa o verso pico ou homrico, o hexmetro

    dactlico, no seu poema didtico Da Natureza, assim como o faro Parmnides e Empdocles10. O verso pico usado nos poemas que educam os gregos. Os jovens fazem a escanso do ritmo com os ps e cumprem exerccios fsicos enquanto recitam as palavras de Homero e Hesodo. Poderamos dizer que o hexmetro a pauta do caderno oral de aprendizagem. o suporte mnemnico da cultura grega arcaica. O dctilo ou compasso dactlico composto de uma slaba longa seguida de duas breves: .

    Esquema simples do hexmetro dactlico: | | | | |

    As ElegiasSo chamados de elegias os poemas de Xenfanes cons-

    trudos com o dstico elegaco, composto de um hexmetro dactlico e de um pentmetro dactlico alternados. Por con-ta da variao, transmite mais carga emotiva do que o me-tro pico, composto exclusivamente de hexmetros. H dois fragmentos maiores das elegias: um trata dos ritos de realiza-o de um banquete, com importante considerao sobre os deuses que inclui uma crtica velada a Homero e Hesodo; o outro um fragmento de ordem poltica sobre os valores pe-los quais os cidados honram seus heris, com uma crtica opinio comum dos homens. Dos demais fragmentos, alguns poderiam integrar esses primeiros poemas.

    Esquema simples do dstico elegaco: | | | | | | | | |

    As Stiras (slloi) Os slloi, stiras, so poemas curtos, compostos de iam-

    bos (que em grego significa invectiva) O metro imbico mais prximo da prosa quotidiana (ps alternando uma slaba breve e uma longa), por isso o trmetro imbico foi o verso usado na poesia dramtica antiga. O iambo satrico usado para lanar improprios ou para fazer crticas irnicas. Aris-

    10 Cf. A forma pica, p. 4.

  • 12 FILSOFOS PICOS I

    tteles considera o iambo e a poesia de invectiva a origem da comdia11. Sem dvidas, esta arte tambm est na origem da dialtica, principalmente a de verve socrtica.

    Esquema simples do trmetro imbico: | |

    Os temas filosficosAs questes filosficas que Xenfanes aborda variam e

    se acomodam confortavelmente nos modelos poticos em que ele exerce sua verve. Para a descrio csmica prpria de um discurso sobre a natureza, o filsofo toma a altivez do hex-metro pico. Para a crtica s opinies de autores tradicionais ou s do senso comum, usa a invectiva satrica. Para os prepa-rativos rituais de uma festa, declama uma elegia. Se, ao exa-minar os contedos, adotssemos uma perspectiva anacrnica moderna, que visa o objeto tratado e o mtodo de trat-lo, no veramos diferenas de gneros poticos, mas de campos do conhecimento e suas cincias. Chamaramos o primeiro de discurso cosmolgico, pois tem em vista a ordem dos elemen-tos e o mundo. O segundo poderamos chamar de discurso epistemolgico, porque trata dos limites do conhecimento e do modo como o senso comum e os antigos poetas projetam sua prpria imagem e opinio sobre os deuses. O terceiro seria difcil de enquadrar em uma cincia moderna, trata-se mais de um saber viver, um domnio dos costumes, que os anti-gos romanos chamavam de arte do convvio e que consti-tuiu uma literatura toda particular sobre os modos e discursos nos banquetes; Plato, Xenofonte, Plutarco, Ateneu foram alguns dos expoentes neste gnero e nesta arte. Assim, ainda que nos esforcemos para enquadr-lo em nossas temticas fi-losficas tradicionais, Xenfanes parece primeira vista mais um escritor bastante verstil do que um sbio ou um filso-fo propriamente dito, ou seja, um homem que escreve desde um ponto de vista universal do conhecimento, que tem uma unidade de pensamento e que poderamos descrever em seu carter filosfico prprio. Todavia, podemos reparar que h um mesmo motivo que perpassa tanto a sua pica, quanto as stiras e as elegias. este motivo que nos permite uma aproxi-mao mais significativa tanto do carter de Xenfanes quanto do seu significado para a histria da filosofia.

    11 ariStteleS. Potica, 1449a 4.

  • 13XENFANES

    A recepo tradicional da filosofia de Xenfanes apro-xima-se deste seu carter, por assim dizer nico, tambm de maneiras diferentes, segundo interesses tambm diversos. A primeira e talvez ainda mais pregnante das interpretaes de Xenfanes devedora de uma referncia feita no dilogo Sofista de Plato:

    [...] , , , . (242d)

    [fala o Estrangeiro de Eleia][...] mas a nossa tribo eletica, iniciada a partir de Xenfanes e mesmo ainda antes, transmitia com tais histrias que o que chamamos de todo um nico.

    Plato faz a escola eletica gravitar em torno da ideia do uno, que para ele o ncleo da concepo ontolgica de Parmnides e seus sucessores imediatos, tal como expe tam-bm no outro dilogo que versa sobre o mtodo da escola, justamente intitulado Parmnides. O uno tem para Plato im-portncia ontolgica e lgica capital na constituio de sua teoria das ideias, por isso ele mesmo faz questo de decla-rar-se da famlia, mesmo sua moda, como um filho rebelde que ousa refutar o pai. Os fragmentos de Xenfanes de que dispomos no falam propriamente nem de unidade concei-tual da ideia nem explicitamente de uma unidade csmica. Encontramos o uno ou nico atribudo a um deus, em B23 e encontramos referncias a uma totalidade das coisas em B24, B25, B27, B29 e principalmente em B34. Todos estes fragmentos, Hermann Diels os dispe dentro de um discurso csmico sobre a natureza, ao passo que, recentemente, Mans-feld (1983), adotando outra heurstica, prefere distribu-los por assunto: B27 e B29 sobre filosofia da natureza, B23, B24 e B25, sobre o novo deus e B34 sobre o conhecimento. Diels investe na proximidade com Parmnides, quando prope que Xenfanes teria escrito um poema em versos picos que trata, primeiro, da constituio de um deus nico que tudo pensa e, em segundo, da gerao csmica a partir dos elementos e, terceiro, tambm do mtodo e dos limites do conhecimento. Estes trs elementos, de certo modo, os encontraremos reu-nidos por Parmnides em um nico poema. No uma hip-tese ruim, mas Diels s vezes exagera para defend-la, como quando acrescenta nove palavras biografia de Xenfanes

  • 14 FILSOFOS PICOS I

    narrada por Digenes Larcio (DK 21 A1, 15-16), atestando que Xenfanes viveu e lecionou em Eleia!

    Muitos historiadores da filosofia e da religio apontam para a meno do deus nico de Xenfanes como signo de um monotesmo grego, muitas vezes associando tal postura ideia de uma evoluo cultural racionalista. Esta perspectiva chega a fazer com que o prprio fragmento B23, onde en-contramos a meno, receba interpretaes contorcidas para que o fundo politesta no aparea. Diz Xenfanes: , que traduzimos por: um nico deus, entre deuses e homens o maior. J o prprio Cle-mente, no por acaso um apologeta cristo, nos lega o verso dizendo que Xenfanes ensinava que o deus nico e incor-preo: , e fazia com que uma hierarquia entre os deuses passasse por uma anulao de sua multiplicidade. Diels refora a interpretao de Clemen-te quando a justifica dizendo que entre deuses e homens uma expresso polar (polarische Ausdrucksweise) usada para significar simplesmente que o deus nico absolutamente maior. Algumas tradues vo alm, neste mesmo sentido, como a de R. Sanesi12 C fra il mondo divino e quello umano um solo dio. E assim se foi constituindo uma segunda opinio constante sobre a filosofia e a teologia de Xenfanes.

    De fato, uma nova forma de falar dos deuses, uma nova teologia, o que vemos perpassar tanto as elegias, quanto os versos picos e os satricos. Mas antes de associar esta teo-logia a uma viso monoteista, tal como quiseram e fizeram os padres apologetas no apenas com Xenfanes mas tambm com toda filosofia que lhes desse margem a defender o cris-tianismo, e antes de dar outra opinio, vejamos um pouco mais de perto os textos de Xenfanes.

    Nas elegias, o filsofo poeta condena certas figuraes pueris dos deuses (B1):

    O homem de louvor, bebendo, revela nobrezas,como a memria e o empenho na virtude,no se pe a contar lutas de Tits, de Gigantesnem de Centauros, fices dos antigos,ou revoltas violentas, em que nada til;bom comprometer-se com os deuses sempre.

    12 In: GuarraCino, Vicenzo org. Lirici greci. 2 vol. milano, Bompiani, 2009. p. 239.

  • 15XENFANES

    A crtica dirige-se contra as monstruosas fices (pls-mata) de tits, gigantes e centauros e ao modo violento como, na viso dos antigos, tais deuses se comportam. Tais antigos so aqueles telogos picos cheios de imaginao, no cita-dos aqui, mas claramente insinuados: sobretudo Hesodo e Homero. Para Xenfanes, os homens devem valorizar a me-mria, a nobreza e a virtude. Mais do que tentar imaginar e figurar os deuses, devem comprometer-se com eles para bem agir. Nenhum trao de monoteismo, a crtica no multipli-cidade dos deuses mas postura dos homens para com eles. Este modelo de crtica figurao de deuses violentos ser retomado e desenvolvido por Scrates na Repblica de Plato. H indcios de que Parmnides tambm teria tocado nesse aspecto da monstruosidade dos deuses, mas so indcios in-diretos e ambguos13.

    No mais insinuada, mas declarada explicitamente, aparece esta mesma crtica nos poemas satricos (B11):

    Homero como Hesodo atriburam aos deuses tudoquanto entre os homens infmia e vergonharoubar, raptar e enganar mutuamente.

    Os poemas satricos tm essa caracterstica prpria do drama cmico de falar a lngua de todos os dias, de modo cla-ro e direto. E provocativo. Sem dvida, no apenas o tema da crtica teolgica o que influenciou os discursos de Scrates e Plato. Tambm as suas formas de exercer a crtica de modo performativo, dramtico e irnico remontam, nos dilogos, a uma origem que no pode distar da encenao das comdias e das declamaes de vituprios satricos que preenchiam os intervalos das rcitas de cantos picos14.

    A crtica das stiras se dirige aos poetas tradicionais, e tambm aos ritos e representaes dos deuses. Xenfanes, de modo irnico, desdenha do antropomorfismo e do etnomor-fismo das representaes que os povos fazem de seus deuses. Conquistou nas muitas viagens o distanciamento reflexivo pela extensa experincia com a diversidade dos povos e suas culturas (B15 e B16):

    13 Cf. CiCero, De natura deorum I, 28 (DK 28 A 37).

    14 Sobre a origem performativa e dramtica da dialtica Cf. roSSetti, Livio, El drama filosfico,

    invencin del s. V a. C. (Zenon y los Sofistas). Rev. Filosfica Univ. Costa Rica XLVI (117/118)

    (2008), p. 34.

  • 16 FILSOFOS PICOS I

    Mas se tivessem mos os bois, e os lees,quando pintassem com as mos e compuzessem obras como os ho-mens,cavalos como cavalos, bois semelhantes aos boispintariam a forma dos deuses e fariam corpostais como fosse o prprio aspecto .

    Os etopes so negros de nariz chatoos trcios de olhos verdes e ruivos.

    Todavia, suas asseres teolgicas no so apenas ne-gativas ou irnicas. Nos seus versos picos h lugar tambm para a proposio de um deus superior, sensvel a todas as coisas e que domina a totalidade do real por meio do pen-samento, permanecendo firme e imvel. So os fragmentos B23 a B26 que Justamente do embasamento recepo para constituir as duas tradicionais consideraes sobre Xenfa-nes: como av do uno eletico e defensor de uma concepo monotesta:

    Um nico deus, entre deuses e homens o maior, em nada semelhante aos mortais nem no corpo nem no pensamento.

    Inteiro v, inteiro pensa, inteiro tambm escuta.

    Mas sem esforo tudo vibra com o corao do pensamento.

    Sempre no mesmo permanece, no se move,nem lhe convm sair ali e acol.

    As quatro citaes so efetivamente fragmentrias, com suas frases descontextualizadas e incompletas, oriundas de trs fontes diferentes. As rene em semelhana o tom pico do verso, que justifica a hiptese de Diels para integr-las em um poema Da Natureza. H uma reconstituio crtica dos argumentos relativos aos predicados desse deus na escola pe-ripattica, o tratado sobre a ontologia eletica De Melisso Xeno-phane Gorgia. Nele, o deus aparece como nico por ser o que h de mais poderoso. Novamente temos o mesmo problema de interpretao: Xenfanes fala do nico deus que governa tudo ou de um deus mais poderoso que se sobrepe aos demais? Em vez de tomar partido por essa ou por aquela posio, uma no menos dogmtica do que a outra, preciso ouvir o que o

  • 17XENFANES

    prprio Xenfanes considera sobre aquilo que ele mesmo fala sobre os deuses e sobre o todo (B34):

    E ao certo nenhum homem sabe coisa algumanem h de saber algo sobre os deuses nem sobre o todo de que falo;pois se, na melhor das hipteses, ocorresse-lhe dizer algo perfeito,ele mesmo, no entanto, no saberia; opinio o que se cria sobre tudo.

    A lucidez destas palavras sobre os limites do conheci-mento humano espantosa. Tambm aqui se apresenta uma postura essencial do carter filosfico, que se tornar para-digmtica com a figura de Scrates. Abre-se aqui um efetivo abismo entre todo saber revelado e inspirado, por um lado, e a reflexo sobre o saber e os limites do saber, por outro. Que esta reflexo originria do modo filosfico de conhecer tenha surgido no interior mesmo da tradio declamatria pica e como que uma reao resultante de sua prpria exposio in-terpretativa no menos espantoso.

  • XENFANES DE COLOFO

    FrAgmENtA Dk 21 b

    FrAgmENtOS

  • 20 FILSOFOS PICOS I

    B 1 1

    , ,

    5 , ,

    10 , .

    15 1 . ,

    20 , , , , .

    Fonte de B1: Ateneu, Deipnosofistas XI, 7 Kaibel; p. 462c

    1 Ath.: verb. Musurus, Bergk 14; Diels.

  • 21XENFANES

    ELEGIAS

    B 1

    1 Agora sim, o cho est limpo e as mos de todose os clices. Um cinge de coroas tranadas, outro verte mirra perfumada no vaso; um ergue uma taa cheio de alegria

    5 outro diz que o vinho preparado nunca vai faltarsuave mel nas jarras, de aroma floral.Em meio, exala odor sagrado de incensoa gua est fresca, suave e pura;ao lado, h pes dourados sobre a mesa farta

    10 carregada de queijo e espesso mel;com todas as flores, ao centro, h uma altar recoberto,Msica domina a casa inteira e Festa2. preciso primeiro que homens alegres cantem ao deuscom benditas histrias e palavras puras;

    15 feitas libaes e preces pelo poder de agircom justia pois isto de praxe no beber alm de quanto aguentarpara voltar casa sem guia, a no ser pela idade.O homem de louvor, bebendo, revela nobrezas,

    20 como a memria e o empenho na virtude,no se pe a contar lutas de Tits, de Gigantesnem de Centauros, fices dos antigos,ou revoltas violentas, em que nada til;bom comprometer-se com os deuses sempre.

    2 Msica: Molp e Festa: Thala. Optamos por traduzir, sempre que possvel, os nomes dos

    deuses, pois so nominalizaes de substantivos comuns, deificando experincias que a sen-

    sibilidade grega toma por extraordinrias. As maisculas nos nomes dos deuses so efeito da

    traduo, para evidenciar que, embora portem nomes comuns, so, todavia, percebidos como

    divindades. Esta uma caracterstica importante dos filsofos picos. Contra o reputado

    monotesmo de Xenfanes, que no aconselharia tal procedimento, Cf. B 23.

  • 22 FILSOFOS PICOS I

    B 2

    1 , , ,

    5 ,

    10 , . . , .

    15 , , , .

    20 , .

    Fonte de B2: Ateneu, Deipnosofistas X, 6 Kaibel; p. 413s

    B 3

    1 , , , ,

    5 , , .

    Fonte de B3: Ateneu, Deipnosofistas XII, 31 Kaibel; p. 526a

  • 23XENFANES

    B 2

    1 Se levasse a vitria pela velocidade dos psou no pentatlo, l no templo de Zeus margem do rio Pisa em Olmpia, ou na lutaou ainda suportando a dor do pugilato,

    5 ou na ferina disputa chamada pancrcio,deslumbraria os cidados com tanta glriae alcanaria nos jogos a tribuna de honrae receberia sustento do errioda cidade, e um prmio que lhe fosse valioso;

    10 e at mesmo no hipismo, tudo isso lhe caberiasem valer como eu: pois melhor que o vigorde homens e cavalos nossa sabedoria.Quanta insensatez! E no justopreferir o vigor boa sabedoria.

    15 Pois nem se houvesse um bom pugilista entre o povonem um bom no pentatlo, tampouco na lutanem mesmo na velocidade dos ps, mais valorosado que a fora dos homens na peleja dos jogos,no alcanaria a cidade um governo melhor.

    20 Curta alegria gozaria a cidadese um atleta competindo, ganhasse s margens do Pisa:pois isso no enche os silos da cidade.

    B 3

    1 Tendo aprendido as sutilezas inteis dos Ldiosquando viviam sem a odiosa tirania,iam praa vestindo tnicas prpuras, no menos que mil ao todo,

    5 cheios de si, garbosos em seus cabelos bem cuidados,impregnados com perfumes de leos refinados.

  • 24 FILSOFOS PICOS I

    B 4

    3

    Fonte de B4: Pollux, Vocabulrio, IX, 83, 6-10 ( ) , , .

    Cf. Herdoto, Histrias I, 94: , .

    B 5

    , .

    Fonte de B5: Ateneu, Deipnosofistas XI, 18, 3 Kaibel; p. 782a

    B 6

    Fonte de B6: Ateneu, Deipnosofistas IX, 6, 20 Kaibel; p. 368e

    , , , .

    3 Parfrase.

  • 25XENFANES

    B 4

    Os ldios, primeiros a cunharem uma moeda. 4

    Fonte de B4 Pollux, Vocabulrio, IX, 83, 6-10Seja Fdon o argivo quem primeiro cunhou uma moeda, seja Demdica a cimeia que desposou Midas o frgio (e era filha de Agamemnon, rei dos cimeus) sejam os atenien-ses Erictnio e Lyco, ou ainda os ldios, como disse Xenfanes.

    Cf. Herdoto, Histrias I, 94:Pois, foram mesmo os ldios, pelo que sabemos, os primeiros dentre os homens a cunhar e manusear moedas de ouro e prata.

    B 5

    Ningum faria uma mistura na taa vertendo o vinhoprimeiro, mas gua e por cima o vinho.

    B 6

    Xenfanes de Colofo disse nas elegias5:

    Pois tendo enviado uma coxa de cabrito, recebeium pernil de touro cevado, digno de um varo,cuja glria alcanar toda a Grcia e no se apagarenquanto houver a estirpe de aedos helenos.

    4 Reconstruo hipottica a partir da citao de Pollux, segundo a formulao de Herdoto.

    5 Desta apresentao retemos o ttulo da coletnea, que denomina o gnero.

  • 26 FILSOFOS PICOS I

    B 7

    1 , .

    ,

    5 , .

    Fonte de B7: Digenes Larcio, Vidas dos filsofos VIII, 34

    [ sc. ] , (B7, 1) (B7, 2-5)

    B 8

    Fonte de B8: Digenes Larcio, Vidas dos filsofos IX, 18, 12

    ,

    , .

    B 9

    .

    Fonte de B9: Etimolgico Genuno, s. v.

  • 27XENFANES

    B 7

    1 E agora, de novo dirigir-me-ei a um outro discurso e apontarei [o caminho.

    Certa vez, ao presenciar um co ser enxotadodizem que apiedou-se e disse6 esta palavra:Para! No bata, pois de um homem amigo

    5 essa alma: reconheci o tom do ganido.

    Digenes Larcio, Vidas dos filsofos VIII, 34

    Acerca do fato de ele [sc. Pitgoras] ter nascido outro outrora, Xenfanes testemunha nas Elegias, comeando assim: (B7, 1) e acerca dele contou desse modo: (B7, 2-5)

    B 8

    Teve uma vida extremamente longa, como ele mesmo disse:

    Sessenta e sete anos j se passaramDebatendo-me com meu pensamento pela terra grega;do nascimento at ento conto mais vinte e cincose ainda sei eu falar disso com acerto.

    B 9

    Muito mais fraco do que um homem velho.

    6 Xenfanes refere-se a Pitgoras.

  • 28 FILSOFOS PICOS I

    B 10

    ...

    Fonte de B10: lio Herodiano, Dois Tempos; p. 296, 6 (Cr. An. Ox. III)

    B 11

    , , .

    Fonte de B11: Sexto Emprico, Contra os professores, IX, 193

    B 12

    Fonte de B12: Sexto Emprico, Contra os professores I, 289

    () , .

    B 13

    alii Homerum quam Hesiodum maiorem natu fuisse scripserunt, in quibus Philocho-rus et Xenophanes, alii minorem.

    Fonte de B13:

    Glio, Noites ticas III, 11

  • 29XENFANES

    STIRAS

    B 10

    Desde o princpio todos tm aprendido segundo Homero...

    B 11

    Homero como Hesodo atriburam aos deuses tudoquanto entre os homens infmia e vergonharoubar, raptar e enganar mutuamente.

    B 12

    Homero e Hesodo segundo Xenfanes de Colofo7:

    Tantas vezes alardeiam obras perversas dos deusesroubar, raptar e enganar mutuamente

    B 13

    Alguns escreveram que Homero era mais velho que Hesodo, entre os quais, Filocoro8 e Xenfanes, outros que era mais novo.

    7 Sexto Emprico, depois de citar Xenfanes, exemplifica e cita uma passagem da Ilada: Cro-

    nos, dizem, que na era em que se engendrava a vida feliz, castrou o pai e devorou a prole, e

    Zeus, o seu filho, destituidor do comando, lanou-o para baixo da terra (14, 204).

    8 Cf. fr. 54b; FHG I, 393.

  • 30 FILSOFOS PICOS I

    B 14

    , .

    Fonte de B14: Clemente de Alexandria, Miscelneas V, 109, 2 (seq. B 23)

    B 15

    1 9 , 10

    5 11.

    Fonte de B15: Clemente de Alexandria, Miscelneas V, 109, 3 (seq. B 14)

    B 16

    12.

    Fonte de B16: Clemente de Alexandria, Miscelneas VII, 22

    , , .

    9 add. Diels.

    10 DK: < > Sylburg.

    11 add. Herwerden.

    12 Parfrase de Diels.

  • 31XENFANES

    B 14

    Mas os mortais crem que os deuses so gerados,e que tm roupas como as suas, e tm voz e tm corpo.

    B 15

    1 Mas se tivessem mos os bois, 13 e os lees,quando pintassem com as mos e compuzessem obras como os [homens,cavalos como cavalos, bois semelhantes aos bois pintariam a forma dos deuses e fariam corpos

    5 tais como fosse o prprio aspecto 14.

    B 16

    Os etopes so negros de nariz chatoos trcios de olhos verdes e ruivos.15

    Clemente de Alexandria, Miscelneas VII, 22Os gregos supem que os deuses tm formas e sentimentos humanos, e cada um os representa segundo sua prpria forma, como diz Xenfanes: Etopes, negros de nariz chato, e trcios, ruivos de olhos verdes.

    13 add. Diels.

    14 add. Herwerden.

    15 O dstico uma reconstruo de Diels, parafraseando Clemente.

  • 32 FILSOFOS PICOS I

    B 17

    Fonte de B17:Esclios de Aristfanes, Cavaleiros 408 (cf. Hesychios, s. v. )

    ... , .

    16 .

    B 18

    17, .

    Fonte de B18: Estobeu, Eclogae I, 8, 2

    B 19

    Fonte de B19:Digenes Larcio, Vidas dos filsofos I, 23

    , , .

    16 DK : < > Wachsmuth.

    17 Flor. 29, 41 : Ecl. I, 8, 2.

  • 33XENFANES

    B 17

    Bacos: os ramos que os mistas carregam. Xenfanes lembra nas Stiras:

    Fincam 18 de pinho em torno da casa firme.

    B 18

    Os deuses de incio no mostram tudo aos mortais,mas os que investigam, com o tempo, descobrem o melhor.

    B 19

    Parece, segundo alguns, [que Tales] foi o primeiro a estudar os astros e predizer eclip-ses solares e solstcios, como disse Eudemo em seu tratado de investigaes astron-micas19, pelo que Xenfanes e Herdoto o admiravam.

    18 DK.

    19 Cf. fr. 94 Speng., cf. 11 A 5.

  • 34 FILSOFOS PICOS I

    B 20

    Fonte de B20:Digenes Larcio, Vidas dos filsofos I, 111

    , .

    B 21

    Fonte de B21: Esclios em Aristfanes, A Paz, 697

    .... ( ) .

    . (Cf. DK 21 A 22.)

    B 21a

    Fonte de B21a: Esclios em Homero, Oxyrh.1087, 40 (Ox. Pap. VIII, p. 103)

    .

  • 35XENFANES

    B 20

    Como Xenfanes de Colofo disse

    ter ouvido, cento e cinquenta e quatro20.

    B 21

    Simnides foi acusado de avarice... com muita graa (Aristfanes) o ridicularizou com as mesmas palavras (Livro II do Satrico) e lembra que era mesquinho. Por isso Xe-nfanes chamou-o de

    Mo-de-vaca.

    B 21a

    rico21,

    em Xenfanes, no livro V das Stiras.

    20 sc. anos que Epimnides viveu.

    21 De Eryx, rei mitolgico que deu nome a uma montanha na Siclia.

  • 36 FILSOFOS PICOS I

    B 22

    Fonte de B22: Ateneu, Eptome II, p. 54e

    , , , , , ,

  • 37XENFANES

    PARDIAS

    B 22

    Xenfanes de Colofo, nas Pardias22:

    Quando, junto lareira, num dia de inverno,Repousando em leito macio, estiveres satisfeito,Bebendo um vinho suave e petiscando gros de bico,Precisas dizer para ti mesmo:Quem s tu? De que estirpe de homens provns?Quantos anos tens? Que idade tinhas quando veio o Meda?

    22 As Pardias talvez fosse outra forma de se referir s Stiras.

  • 38 FILSOFOS PICOS I

    B 23

    , , .

    Fonte de B23: Clemente de Alexandria, Miscelneas V, 109, 1

    B 24

    , , .

    Fonte de B24: Sexto Emprico, Contra os professores IX, 144

    B 25

    .

    Fonte de B25: Simplcio, Com. Fsica de Aristteles 23, 20 (Cf. DK 21 A 31)

    B 26

    .

    Fonte de B26: Simplcio, Com. Fsica de Aristteles 23, 11 (Cf. DK 21 A 31)

  • 39XENFANES

    DA NATUREZA

    B 23

    Um nico deus, entre deuses e homens o maior, em nada semelhante aos mortais nem no corpo nem no [pensamento.23

    B 24

    Inteiro v, inteiro pensa, inteiro tambm escuta.24

    B 25

    Mas sem esforo tudo vibra com o corao do pensamento.

    B 26

    Sempre no mesmo permanece, no se move,nem lhe convm sair ali e acol.

    23 Cf. DK 21 A 30.

    24 Cf. DK 21 A 1.

  • 40 FILSOFOS PICOS I

    B 27

    .

    Fonte de B 27: Acio IV, 5

    B 28

    , .

    Fonte de B 28: Aquiles Tcio, trechos da Introduo ao Arato 4, 69; p. 34, 11 Maass

    B 29

    () .

    Fonte de B29: Filopo, Com. Fsica de Aristteles, 125, 27 , , (B29)

    Cf. Simplcio, Com. Fsica de Aristteles 188, 32 (Simplcio atribui por engano a citao a Anaxmenes, tambm via Porfrio)

  • 41XENFANES

    B 27

    pois da terra tudo se gera e na terra tudo se encerra.25

    B 28

    este limite da Terra para cima visto a nossos ps beirando o ar,para baixo atinge o ilimitado.26

    B 29

    Terra e gua tudo quanto surge e desabrocha.27

    Porfrio disse que Xenfanes considerava como princpios o seco e o mido, digo a terra e a gua, e citava um exemplo dele em que teria declarado o seguinte: (B29)

    25 Cf. DK 21 A 36.

    26 Cf. DK 21 A 32; A 33, 3.

    27 Cf. DK 21 A 29.

  • 42 FILSOFOS PICOS I

    B 30

    Fonte de B30: Acio III, 4, 4; Esclio Genovs Ilada, XXI,196

    () , < >28 29 , .

    B 31

    .

    Fonte de B31: Herclito Estoico, Alegorias de Homero c. 44 (Etimol., s. v. hyperon)

    B 32

    , , .

    Fonte de B32: Esclios BLT Eust. sobre Hom. Ilada 27

    28 DK :

    < > Edmonds : <

    > Diels : H. Weil : .

    Ludwich. Nicole : Genov.

    29 Verb. DK.

  • 43XENFANES

    B 30

    Xenfanes no Poema Acerca da Natureza:

    O mar fonte de gua, fonte de vento;pois em nuvem nem < >30 de dentro sem o mar imensonem correntes de rios, nem gua e de chuva;mas o grande mar genitor de nuvens, de ventos etambm de rios.31

    B 31

    O sol alando-se sobre a terra e aquecendo-a.

    B 32

    Aquela a quem chamam ris, tambm nuvem em sua natureza,deixa-se ver prpura, rubra e verde.

    30 O esclio foge mtrica como se faltasse uma parte, que os editores buscaram suprir: DK:

    pois nas nuvens nem sem partir do mar imenso. Ed-

    monds: pois nem sem o imenso mar. Esta conjectura de Edmonds mais

    coerente e econmica, no contedo e no verso. Foi adotada tambm por Lesher.

    31 Cf. DK 21 A 46.

  • 44 FILSOFOS PICOS I

    B 33

    .

    Fonte de B33: Sexto Emprico, Contra os professores X, 314

    B 34

    , .

    Fontes de B34: (1-4) Sexto Emprico, Contra os professores. VII, 49 (1-2) Plutarco, Do modo como os jovens deveriam ouvir os poetas 17e.

    B 35

    ...

    Fonte de B 35: Plutarco, No Banquete, 746b

    B 36

    ...

    Fonte de B 36: lio Herodiano, Dois Tempos. II, 16, 22

    B 37

    .

    Fonte de B 37:

    lio Herodiano, Das Elocues Singulares II, 936, 19

  • 45XENFANES

    B 33

    Pois todos nascemos de terra e de gua.

    B 34

    E ao certo nenhum homem sabe coisa algumanem h de saber algo sobre os deuses nem sobre o todo32 de que [falo;pois se, na melhor das hipteses, ocorresse-lhe dizer algo perfeito,ele mesmo, no entanto, no saberia; opinio o que se cria sobre [tudo.

    B 35

    Que tais coisas sejam consideradas semelhantes s reais...

    B 36

    Tudo quanto se manifesta aos mortais para ser contemplado...

    B 37

    gua tambm pinga em certas grutas.

    32 : acerca de tudo ou acerca de todas as coisas pode ter um sentido distribu-

    tivo: cada uma das coisas de que eu falo ou integrante: o que eu falo sobre a totalidade do

    universo. As duas acepes so possveis e Xenfanes parece usar ambas.

  • 46 FILSOFOS PICOS I

    B 38

    , .

    Fonte de B38: lio Herodiano, Das Elocues Singulares 946, 23

    B 39

    .

    Fonte de B39: Pollux, Vocabulrio VI, 46

    B 40

    ( ) .

    Fonte de B40: Etimolgico Genuno, s. v.

    B 41

    Fonte de B41: Tzetzs, sobre Dionsio Periegeta V, 940; p. 1010 Bernhardy

    () , , . .

  • 47XENFANES

    B 38

    Se um deus no fizesse brotar dourado mel,muito mais doce diriam ser o figo.

    B 39

    Cerejeira,

    a arvore encontrada no < poema> Da Natureza de Xenfanes.

    B 40

    Brotquio,

    como os jnios pronunciam batrquio (disse Aristfanes) e tambm segundo Xenfanes.

    B 41

    Acerca das regras sobre [a mtrica de] ros (sirs)Um certo poeta satrico escreve o si longo,Alongando-o, talvez, por causa do r, me parece.Agora, poeta satrico pode ser Xenfanes e Timo e outros.

  • XENFANES DE COLOFO

    FrAgmENtA Dk 21 b

    FrAgmENtOS DUVIDOSOS

  • 50 FILSOFOS PICOS I

    B 42

    Fonte de B42: lio Herodiano, Das Elocues Singulares 7, 11

    .

    B 45

    Fonte de B45: Esclios Hipocrticos, Epidemias I, 13, 3 (Nachmanson, Erotian. p. 102, 19)

    . ,

  • 51XENFANES

    B 42

    E em Xenfanes, no quarto livro das Stiras:

    como tambm um jovem desejaria uma jovem serva.

    B 45

    desassossego (blestrisms): agitao;como se porta um bacante: mas em alguns escritos encontramos dessossego (bletris-ms) sem o sa (s). De fato, significa agitao conforme disse Xenfanes de Colofo:

    J eu no sossegava, arrastando-me de cidade em cidade

    No sentido de que me agitava.

    Obs. B43 e B44 que constam na edio de Diels de 1901 foram retirados da edio DK (cf. p.138), ambos so atribudos nas prprias citaes a um certo Xenofonte (sem ser o Ateniense), ainda que esta atribuio tambm no parea fivel. G. Hermann sugere que o Xenofonte de B43 seja trocado por Xenfanes. Diels sugere que B44 refira-se a um Xenofonte de Lmpsaco, gegrafo. Em ambos os textos no h, propriamente, referncia a Xenfanes.

  • PArmNIDES DE ELIA

  • INTRODUO AOS FRAGMENTOS DO POEMA DE PARMNIDES

    Vida de ParmnidesParmnides nasceu em Eleia, uma cidade itlica

    fundada na segunda grande expanso colonial grega que levou a lngua e a cultura homricas para todo o Egeu e Mediterrneo Ocidental. O Filsofo viveu no fim do sexto sculo1 antes de Cristo. H notcias de que se encontrou e talvez tenha sido discpulo de Xenfanes de Colofo que, em seus poemas sapienciais, criticava o antropomorfis-mo dos deuses tal como apareciam nas poesias tradicio-nais, de Homero e Hesodo. Esta filiao escolar parece, no entanto, ser muito mais devida a uma proximidade doutrinal considerada e propagada pela Academia de Plato do que a fatos histricos. Parmnides vive ainda imerso na cultura pica e dela extrai, primeiro, a mtrica de seu poema, o hexmetro dactlico, o que mostra que o poema foi elaborado tendo em vista o desempenho de sua transmisso oral e em consonncia com tal tradio. Alm disso, tambm extrai conte dos dessa tradio pi-ca, como elementos de sua teologia. A deusa dke, a Justi-a com seu tom exortativo, e a imagem do portal da Noite e do Dia, por exemplo, j esto presentes nos poemas de Hesodo. Vrios deuses dos catlogos picos figuram no poema, e desempenham funes importantes. O Poema incorpora at mesmo passagens textuais mais extensas dessa tradio. Como no fragmento B8: os versos em que a Necessidade prende o ente em sua circunstncia so um verdadeiro palimpsesto2 dos versos homricos sobre as amarras que prendem Ulisses no mastro do navio a fim

    1 Digenes Larcio situa sua akm na sexagsima nona olimpada (504-501 a.C.).

    2 Sobre o palimpsesto homrico no Poema de Parmnides, cf. Cassin, B. Sur la Nature ou sur

    ltant, 1998, 48-64.

  • 56 FILSOFOS PICOS I

    de suportar o canto de duas cabeas das sereias (Odisseia, XII, 158-164)3.

    Parmnides, segundo a inscrio em sua homenagem en-contrada sobre uma estela em Vlia (a cidade romana que se instaura em Eleia e subsiste at hoje), poderia ter sido de uma famlia ou de um cl de mdicos: filho do Curador (Apolo).

    [] PA[R]MENIDES FISICO FILHO DE PIRETO DA FAMILIA DO CURADOR

    Nesse contexto ainda forte da cultura tradicional hom-rica, surgem novos discursos sapienciais que buscam o conhe-cimento pela contemplao do procedimento autnomo das coisas naturais. So os primeiros filsofos, que Aristteles denominou physiki, porque tratavam Da Natureza, per ph seos. Parmnides insere-se, sem dvida, entre esses pensadores originrios, no s porque o ttulo de seu poema j o diz, mas sobretudo pela chamada segunda parte do poema, que trata da gerao das coisas vivas, dos astros celestes e coisas tais.

    Mas o discurso de Parmnides traz uma caracterstica radicalmente inaugural para a histria dos textos sapienciais: ele toma o ente t en como o tema central e universal para compreender a natureza do real. Ele instaura o tema primeiro da filosofia ocidental: a relao entre ser e pensar. O problema da verdade aparece no mais circunstancialmente na honesti-dade ou na venerabilidade do testemunho, mas na relao di-reta entre ser, pensar e dizer, eixo universal do conhecimento da realidade. Parmnides inaugura a filosofia como ontologia. Por isso, o filsofo que lana, em palavras e pensamentos, as bases que sempre voltaro a servir de questionamento ao longo de toda a metafsica ocidental.

    Assim, o Poema tanto uma fonte inesgotvel de pen-samento, como tambm a soleira monumental sempre firme e presente do edifcio filosfico de nossa civilizao.

    3 A Edio de Coxon inclui a preciosa referncia a passagens da pica anterior que ecoam nos

    versos de Parmnides. The evidence of the manuscripts, if combined with that of Parmen-

    des general dependence on Homer, amply justifies the restoration of epic and Ionic for tragic

    and Attic forms in the few places where the manuscripts present only the latter. Cf. The

    Fragments of Parmenides, pp. 9-18 (1986, 22009).

  • 57PARMNIDES

    A reconstituio arqueolgica4

    O Poema de Parmnides foi composto provavelmente no final do sculo sexto antes de Cristo. Desde ento, trata-se de uma obra conhecida e interpretada pelos principais fi-lsofos da Antiguidade. Os dialticos eleatas como Zeno e Melisso; os trgicos como Empdocles; os atomistas, como Leucipo e Demcrito; os mestres retricos como Grgias. To-dos eles vo trabalhar suas teses e suas frmulas diretamente, respondendo ou interpretando Parmnides. Plato vai dedicar ao Poema dois dos seus mais importantes dilogos, o Sofis-ta e Parmnides5, nos quais expe criticamente a sua teoria das Ideias; ainda cita-o em outros dois, o Banquete e o Teeteto. Aristteles, por sua vez, dedica discusso com o Eleata o primeiro livro de sua Fsica para ter condies de falar da na-tureza como princpio de movimento; tambm discutir suas palavras na demonstrao de teses metafsicas como o prin-cpio de no-contradio, e do terceiro excluso, entre outros. A escola peripattica interessar-se- particularmente por suas teorias astronmicas e biolgicas.

    O Poema, desde que foi composto, ganhou repercusso e foi amplamente citado. Certamente fez parte da compilao dos pensamentos dos filsofos da natureza (Physikn Dxai) de Teofrasto, discpulo de Aristteles. Mas esta coletnea dos primeiros filsofos no chegou at ns, tampouco qualquer outra verso completa do Poema. Na sua ntegra, o Poema no chegou at ns. Chegaram apenas citaes, de extenso varivel, em obras de autores posteriores, de Plato (sc. V a.C.) at Simplcio (sc. VI d.C.). Mais de quarenta autores antigos citaram Parmnides em mais de cinquenta diferentes obras.

    Os fragmentos mais extensos so os mais recentes, os de Sexto Emprico, em sua obra contra o dogmatismo (Adver-sus Mathematicos) e, sobretudo, de Simplcio, no seu comen-trio Fsica de Aristteles. Este explica que, devido rari-

    4 Para um estudo detalhado da histria do texto de Parmnides, cf. Cordero, Nstor Luis,

    LHistoire du texte de Parmnide, in: Aubenque (org.), tudes sur Parmnide, II, 1987, pp.3-24.

    5 No dilogo Parmnides, no h propriamente citaes do Poema, mas a dramatizao de um

    exerccio dialtico. Talvez, reproduzindo o que, no Sofista, chamado de ensinamento em

    prosa de Parmnides (237a).

  • 58 FILSOFOS PICOS I

    dade da obra em seu tempo, precisaria cit-la de forma mais extensa, para que seu comentrio fosse compreendido6. Por conta dessa cortesia, chegaram-nos mais de cem dos cento e sessenta versos do Poema, dos quais Simplcio a nica fonte de setenta e dois versos.

    Depois do sc. VI no nos chegou nenhuma outra ci-tao original do Poema; todas as citaes que aparecem so seguramente indiretas. De fato, o Poema Da Natureza de Par-mnides eclipsado por um bom tempo e s volta a ser citado por Bessarion, no sc. XV, em uma obra intitulada In calum-niatorem Platonis.

    No sc. XVI, um editor de Veneza, Aldo Manucio, empre-endeu imprimir a primeira coleo de textos clssicos, segundo o crescente interesse italiano pelo renascimento da cultura greco-latina. Data de 1526 a primeira publicao impressa do Poema Da Natureza. Supostamente, foi retraduzida a partir da verso latina de Guilherme de Moerbecke (sc. XIII). A primeira edio com preocupaes filolgicas data de 1573, empreendida por Henri Estienne (Stephanus), buscando recolher a obra dos primeiros filsofos: Poesis Philosophica; mas lhe faltam as importantes pas-sagens de Simplcio, entre outras. A reconstituio do Poema continuada por Joseph J. Scaliger, que, porm, no a publica seu texto foi encontrado por Nstor Cordero em 1980, na Bi-blioteca da Universidade de Leyden. Em 1812, Brandis publica uma verso j bastante prxima dos fragmentos conhecidos at hoje. Somente em 1835, temos a primeira reconstituio com os dezenove fragmentos considerados autnticos, feita por S. Karsten. O texto de Karsten foi utilizado por F.G.A. Mullach na sua edio do De Melisso, Xenophane, et Gorgia disputationes, de 1845, e posteriormente republicado na importante edio dos Fragmenta philosophorum graecorum, Paris, 1860.

    A obra de Karsten foi o ponto de partida para as verses publicadas por Hermann Diels, desde 1897 at a ltima edi-o dos Fragmente der Vorsokratiker, em 1951, sob os cuidados de Walter Kranz. Esta a verso considerada ortodoxa por todos os estudiosos e editores do Poema, desde o sc. XX.

    6 Simpl. Phys 144,25 ,

    .

  • 59PARMNIDES

    Desde ento, a maioria dos editores discute apenas as variantes propostas por Diels em seu aparato crtico. Coxon (1986) tambm teria reconstitudo o texto grego a partir da consulta de diversos manuscritos. Embora tenha recolhido e publicado um rico material em torno dos fragmentos, seu cui-dado filolgico bastante contestado.

    Por ltimo, o trabalho filolgico mais completo at en-to sobre os manuscritos e a tradio de reconstituio do poema vem luz em 1984, na edio crtica de Nstor Luis Cordero, Les deux chemins de Parmnide. Suas correes ao texto de Diels no so to numerosas, mas so de grande importn-cia, incidindo gravemente na interpretao de todo o Poema.

    Edio do texto gregoA ltima edio de Hermann Diels e Walther Kranz (6

    edio, de 1951, doravante DK) continua sendo a referncia principal para o estabelecimento do texto, por isso, mante-mos a sua numerao dos fragmentos, ainda que tenhamos modificado a sua ordem de apresentao. Levamos em conta importantes correes leitura dos manuscritos, tais como as trazidas por Nstor Cordero (1984) e por Coxon (1986, edio revista e ampliada em 22009), este particularmente interessante quanto ao aporte do contexto e dos testemu-nhos. Consultamos tambm a edio de Mullach (1860) e ainda outras edies crticas modernas7, disponveis hiper-textualmente no excelente site mantido por Gerard Journe .

    Foram importantes, tambm, para a escolha de varian-tes nos manuscritos, edies no estritamente paleogrficas, mas filosfica e filologicamente importantes tais como as de Denis OBrien e Jean Frre (1987), de Barbara Cassin (1998), de Jean Bollack (2006), de Lambros Couloubaritsis (1986,

    7 brandiS, Christian Auguste, Commentationum Eleaticarum, Altona, 1813.

    dielS, Hermann, Poetarum Philosophorum Fragmenta, Berlin, 1901.

    dielS, Hermann, Kranz, Walther, Die Fragmente der Vorsokratiker, Zrich, 1951.

    Flleborn, Georg Gustav, Beytrge zur Geschichte der Philosophie (VI), Zllichau und Freistadt, 1795.

    KarSten, Simon, Parmenidis Eleatae Carminis Reliquiae, Amsterdam, 1835.

    mullaCh, F.G.A., Aristotelis De Melisso, Xenophane et Gorgia Disputationes, Berlin, 1845.

    Stein, Heinrich, Die Fragmente des Parmenides , Leipzig, 1867.

  • 60 FILSOFOS PICOS I

    32008), de Giovanni Reale (2003), entre outras. Igualmente precioso, o acompanhamento dos trabalhos da futura edio de Andr Laks, no seu seminrio sobre os pr-socrticos, du-rante o ano acadmico de 2010-2011. O nosso texto grego segue o princpio dessas ltimas edies, buscando justificar a escolha das variantes com o uso do aparato disponibilizado pelas edies crticas acima citadas.

    Na maior parte das vezes, seguimos a edio Diels-Kranz, e apontamos em notas seja as diversas opes, quan-do as nossas diferem daquela, seja ainda outras variantes, quando nos apresentam algum interesse especial. No foi, de modo algum, nossa inteno repertoriar todas as variantes que encontramos nas edies crticas consultadas. Nossas no-tas ao texto grego procuram ser ao mesmo tempo sucintas e claras; todas as siglas e abreviaes so esclarecidas na tbua de abreviaes (p. X). Indicamos sempre a provenincia das variantes, de fontes e edies crticas. Como a pontuao mo-derna sempre uma escolha do editor, optamos por seguir os interesses de nossa interpretao.

    Junto a cada fragmento, apontamos as fontes. A lista completa de fontes e suas edies, segundo as edies crticas consultadas, encontra-se nas pginas 127 a 137. Algumas edi-es das fontes foram diretamente tratadas, e constam na bi-bliografia. A maioria de nossas referncias a manuscritos das fontes so indiretas, segundo as edies crticas, estas sero creditadas quando divergentes. Pudemos consultar alguns c-dices, como o de Sexto Emprico, mas nada foi usado que j no tivesse sido repertoriado em alguma edio moderna.

    Para facilitar o cotejo da traduo, mantivemos o texto grego na pgina esquerda.

    Nossa traduoSeguimos, medida do que nos foi possvel justificar,

    os princpios defendidos pela escola filolgica de Lille: dar preferncia s lies dos manuscritos, de modo a receber tam-bm o que nos pode soar inusitado primeira escuta. Sempre enfrentamos sugestes de correo, que se amontoam desde a Antiguidade Clssica, desde Melisso e sua reordenao dos argumentos do uno, ou Plato, com seu Estrangeiro parricida do dilogo Sofista, entre tantos. Contudo, sabemos que tam-

  • 61PARMNIDES

    bm os manuscritos de que dispomos so provenientes de fontes indiretas, e sabe-se que na transmisso helenista no h muito pudor em intervir no texto citado, e tal interveno raramente assinalada pelo prprio autor. Assim, muitas ve-zes, nos deparamo-nos com mais de uma variante de interes-se para a compreenso integral do Poema. Nestes casos segui-mos os manuscritos mais fiveis (os que apresentam trechos maiores do Poema, como os de Sexto e Simplcio e os mais antigos entre os conceitualmente bem conservados, como os de Aristteles), mas assinalamos as variantes e correes al-ternativas. Um exemplo destas opes a lacuna no terceiro verso do fragmento B6, preenchida de um modo, por Diels, e de outro modo, por Cordero. Assinalamos as duas correes e as consequncias interpretativas de cada uma, mas deixamos no corpo a lacuna dos manuscritos.

    De fato, preferimos algumas vezes deixar abertura para as diversas vias de interpretao do que construir para ns mesmos a iluso de que a nossa escolha restrita possa estar mais prxima de um suposto texto original. O texto original um objeto, para ns, to perdido quanto o paraso de Ado. Nada mais ilusrio do que acreditar que se possa estar, por qualquer motivo interpretativo, mais prximo do texto ori-ginal de Parmnides. Por que Parmnides deveria pensar do mesmo modo que qualquer das proposies dos seus traduto-res? Por que deveria ter a mesma coerncia imaginada por um professor de Oxford ou Berlim ou Rio? No compartilhamos a iluso da absoluta verdade interpretativa. Um texto como o de Parmnides j no pode aspirar a uma identidade ni-ca; antes um caminho constantemente retraado pelos que por ele passam; um palimpsesto sobre o qual se superpem quase trs milnios de pensamentos, intervindo efetivamente na materialidade da transmisso dos textos. A nossa tradu-o, antes de ser o que ela : mais uma traduo, quer deixar abertas algumas das tantas encruzilhadas da tradio textual do Poema. Por isso, tambm nos interessam os fragmentos duvidosos e falsos, para ver como frgil a composio dos fragmentos e como mais fcil verificar sua falsidade do que sua veracidade. E ainda os contextos de recepo, que inter-pretam o Poema para os mais diversos usos. Qual o texto verdadeiro deste pensamento originrio sobre a Verdade? Pa-

  • 62 FILSOFOS PICOS I

    rece uma armadilha armada propositalmente pela histria da filosofia. Uma armadilha em que no resta opo seno a de se deixar entrar e cair.

    Uma ltima observao sobre a nossa traduo: opta-mos por colocar maisculas nas iniciais dos nomes de deuses. Isto , sem dvida, uma interveno anacrnica, posto que no existiam maisculas em oposio a minsculas ao tempo de Parmnides. No se trata de uma deciso de edio, mas de traduo mesmo. As maisculas evidenciam um efeito de traduo, para marcar que so de deuses os nomes que nos poderiam passar despercebidos como tais. Esta deciso jus-tificada a seguir.

    Os deuses-conceitoA gnese dos nomes como conceitos pode ser acompa-

    nhada ao longo de textos que desempenharam, na linguagem, o papel de importantes etapas desta transformao. Estas so exemplarmente observadas nos nomes com que os gregos de-signavam seus deuses. Aristteles chamou os que primeiro se espantaram com o mundo de theolgoi, os que falam de deuses, em seguida, oriundos do mesmo espanto, o filsofo apresentou os physiolgoi, os que falam da natureza. Todos procura de conhecer os elementos que principiam e domi-nam a totalidade do mundo. Entre os gregos, os que falam dos deuses so os poetas, sobretudo os poetas picos, como Homero e Hesodo, mas tambm os trgicos, como squilo. Os que falam da natureza so os primeiros filsofos, como Herclito e Parmnides. Espantoso que, seja para falar dos deuses, seja para falar da natureza, os nomes escolhidos so ainda os mesmos ou quase os mesmos! A mudana aparece mais no tratamento e na reverncia, fato que em palavras se refletiria no uso de maisculas ou minsculas isso se ao tempo de Parmnides e Herclito existisse tal diferena gr-fica. Quem sabe no foi justamente para reforar suas inter-pretaes alegricas sobre a poesia que fala dos deuses que os gramticos alexandrinos inventaram essa distino entre minsculas e maisculas. De modo que cada deus (com nome iniciado por maiscula) seria a representao mitolgica de alguma realidade natural (com nome iniciado por minscu-la). Afinal, a frase j demarcada pelo ponto. Os nomes de

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    pessoas tm uma semntica bem distinta. S os nomes dos deuses que precisariam ser diferenciados dos nomes dos elementos da natureza e dos conceitos incorporais.

    Tal diferenciao, contudo, no algo requisitado ao tempo de Homero e da poesia pica arcaica em geral, mas algo que s aparece de fato com o advento da Filosofia e de sua crtica ao tratamento tradicional com que os poe-tas apresentavam os deuses. Pelo tratamento prximo, pela descrio antropomrfica, pela retratao dos crimes hu-manos nos deuses que os filsofos vo querer expulsar dos concursos e das cidades, a bastonadas, estes Homeros, e tambm Arqulocos e outros quantos. Mas o povo, ainda por muito tempo, iria tomar as dores dos poetas, mandando ao exlio e condenado cicuta aqueles novos porta-vozes da verdade. Para o povo e para as instituies tradicionais de saber, de cunho geralmente religioso, o que os filsofos chamam de princpios naturais so, efetivamente, os deuses. Aristfanes brinca com esses tempos de logomaquia, de luta com palavras pelas palavras, explorando as novas ambigui-dades que o estudo filosfico da natureza traz para com os nomes dos deuses. Na comdia As Nuvens, as personagens Scrates e Estrepsades conversam sobre os estudos empre-endidos no Pensatrio:

    Scrates: Eu salto pelo ar, e examino os contornos do sol. Estrepsades: Queres supervisionar os deuses a em cima no cesto, em vez de os reverenciar daqui do cho?8

    Esse Scrates dAs Nuvens j fala do sol como de um ente natural, assim como fala um fisilogo. No importa que o S-crates, personagem de Plato, venha a negar no tribunal esse interesse pela cincia da natureza9; pois a personagem de Aris-tfanes no o retrato fiel de um indivduo, mas a caricatura de um tipo esse novo homem que se empodera com a dial-tica: o sofista, o fisilogo, o filsofo. O Scrates dAs Nuvens a sntese cmica desses novos homens altivos e irreverentes tradio. O prenncio do livre pensador laico da modernidade.

    8 Nuvens 225-227.

    9 Apologia de Scrates, 26d.

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    J a outra personagem, Estrepsades, o rstico popular (a distino no social, mas cultural), apegado s tradies porque no pode superar o que apreendeu pelo hbito de toda uma vida. Mas, nesta cena, o homem rstico e ridculo faz s vezes de bufo e pe a plateia para rir do orgulho e da altivez, ou melhor, literalmente, das alturas do Scrates nefelibata. Isso, apenas com a revelao de um simples equvoco. Mas ser um equvoco: o sol, astro de fogo, o Sol, deus do panteo pr-olmpico?

    A perspiccia histrica do comedigrafo clebre; mes-mo Plato no conhecia melhor retratista da sociedade ate-niense, dos seus conflitos, de suas transformaes. Aristfa-nes percebe o declnio do Sol, a passagem de uma era em que os deuses dominavam o quotidiano dos homens e assumiam a imagem das foras constituidoras do real, para uma era em que o homem comea a erigir o discurso conceitual para falar tambm das foras do real como natureza autnoma.

    No Poema de Parmnides, estamos num desses lugares textuais, em que ganha clareza a transio da teogonia mtica para a ontologia filosfica; a transio da celebrao dos deu-ses em suas gestas para os conceitos em sua determinao. No Poema, esto presentes os nomes tradicionais de vrios deuses, ora em passagens narrativas, como um mito tradi-cional, ora j nas passagens mais densas de uma precursora analtica do ser, ora ainda numa efetiva cosmogonia natural.

    Esse lugar de transio nos pe, j na traduo, um di-lema: tero esses nomes o estatuto de conceitos abstratos ou lhes daremos as maisculas iniciais, com que caracterizamos hoje a condio personificada de deuses? Optamos, na tradu-o, pelas maisculas, mesmo anacrnicas, para realar estes nomes, e poder perceber como os deuses, to presentes na vida do pensamento grego, exprimem tambm essas ideias fundamentais com que os filsofos apreendem a realidade.

    Os deuses que aparecem no Poema so (pelo menos) os seguintes: as helades, Filhas do Sol; nx, a Noite, phos, a Luz, e mar, o Dia; dke, a Justia; thmis, a Norma; the, a Deusa (inominada); mora: a Partida; altheia, a Verdade; pstis, a F; annke, a Necessidade; ather, o ter; selne, a Lua; ourans, o Cu; gaa, a Terra; hlios, o Sol; gla, a via Lctea; lympos, o

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    Olimpo; ros, o Amor e aphrodtes, Afrodite10. Como se pode ver, no apenas demos maisculas aos nomes para mostrar que so deuses, mas tambm os traduzimos sempre que pos-svel para ver que tambm so termos da lida quotidiana. An-tes de serem nomes prprios, quase sempre so substantivos comuns. Nem sempre, porm, usamos as tradues ortodo-xas, como em nossa traduo de mora por Partida em vez de Destino, porque sempre buscamos um nome que expressas-se um sentido integrado a uma interpretao total do Poema princpio primeiro da arte hermenutica. A seguir, vamos tratar de cada um desses nomes e de como se situam na com-posio geral do texto de Parmnides.

    Os nomes dos deusesH famlias de deuses, distribudas e reunidas pelas di-

    ferentes partes do Poema.No Promio, o narrador da aventura e dela personagem,

    um viajante iluminado em busca do conhecimento verdadei-ro, conduzido em seu caminho por moas Filhas do Sol, as Helades. Hlios o sol no panteo arcaico, provedor de luz, em que vigem vida, conhecimento e beleza. As filhas de Hlios so equivalentes s musas consagradas de Apolo. Trata-se de divindades de intermediao, numes, damones, musas que os poetas costumam invocar no incio de seu canto, para chamar a inspirao e o flego do cantar. Parmnides tambm realiza este rito de iniciao e invocao potica, que ganha contor-nos tambm de um rito inicitico, uma ascese, para a conquis-ta do conhecimento. As Filhas do Sol, assim como as musas, trazem o canto luz, fazem com que, do antro da garganta, a voz traga a palavra ao espao pblico da comunicao.

    A Luz tambm tradicionalmente divinizada e, no Poema, desemp