O Processo de Implementação do Acordo TRIPS da OMC em ... · O presente trabalho tem como...

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FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA SÉRGIO AROUCA MESTRADO EM SAÚDE PÚBLICA SUB-ÁREA POLÍTICAS PÚBLICAS E SAÚDE O Processo de Implementação do Acordo TRIPS da OMC em países da América Latina e Caribe: análise das legislações de propriedade industrial sob a ótica da saúde pública DISSERTAÇÃO DE MESTRADO Aluna: Gabriela Costa Chaves Orientadora: Maria Auxiliadora Oliveira Junho, 2005

Transcript of O Processo de Implementação do Acordo TRIPS da OMC em ... · O presente trabalho tem como...

FUNDAO OSWALDO CRUZESCOLA NACIONAL DE SADE PBLICA SRGIO AROUCA

MESTRADO EM SADE PBLICASUB-REA POLTICAS PBLICAS E SADE

O Processo de Implementao do Acordo TRIPS da OMC em pases da Amrica Latina e Caribe: anlise das

legislaes de propriedade industrial sob a tica da sade pblica

DISSERTAO DE MESTRADO

Aluna: Gabriela Costa ChavesOrientadora: Maria Auxiliadora Oliveira

Junho, 2005

Dedico esta dissertao a minha me, por ter me dado asas e razes.

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Agradecimentos

A minha orientadora Dra. Maria Auxiliadora Oliveira, pelo aprendizado constante ao longo desses dois anos, pelos dias de muita troca e construo coletiva e por ter estado ao meu lado mesmo vivendo em outro pas.

Dra. Vera Lucia Luiza e Dra. Claudia Serpa Garcia Osrio-de-Castro por todo estmulo dado ao longo desses anos de convivncia, pelos eternos e constantes ensinamentos de vida.

Ao Dr. Jorge Antonio Zepeda Bermudez, pelas oportunidades profissionais que nos fazem crescer como ser humano e por ser um referencial de pessoa que defende, de forma bela e diplomtica, o interesse pblico.

A todos do Ncleo de Assistncia Farmacutica: ngela, Andr, Bethnia, Eglubia, Elaine, Isabel, Jussara, Laura, Luanda, Rogrio, Samara e Thiago. Pela troca de experincias de vida.

As minhas irms Andrea e Zaira por serem, acima de tudo, grandes amigas e companheiras e por terem pacincia com a minha rigidez e minhas histrias.

A minha sobrinha e afilhada Sofia, por ter trazido a alegria do nascimento que nos renova e transforma para uma forma mais leve de perceber a vida.

A minha grande amiga Adriana Mendoza Ruiz, pelo companheirismo e cuidado constantes.

Cntia Maria Gava, pela amizade, compreenso e pelas reflexes durante os momentos de produo.

Ao Vinicius Zepeda, pela lealdade e carisma nos momentos finais do trabalho.A minhas amigas especiais do mestrado Luciana, Marcelle e rsula, pela

convivncia afetuosa.Aos especialistas que participaram do consenso, por terem apontado novos

caminhos ao trabalho.

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Quando no pode a lei fazer justia, legal impedir que seja injusta.

(Shakespeare Vida e Morte do Rei Joo)

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Resumo

O Acordo TRIPS da OMC, em vigor desde janeiro de 1995, estabelece que todos pases Membros devem reconhecer patentes para todos campos tecnolgicos, incluindo patentes para produtos e processos farmacuticos. Diferentes atores do setor sade vm apontando as possveis implicaes negativas que o mesmo poder ter no acesso a medicamentos das populaes de pases em desenvolvimento e menos desenvolvidos. O presente trabalho tem como objetivo estudar o processo de implementao do Acordo TRIPS em pases em desenvolvimento. A primeira parte do estudo consistiu na contextualizao histrica, sendo dividida em (1) evoluo do sistema internacional de propriedade intelectual e (2) processo de entrada do tema de propriedade intelectual da agenda do setor sade e, por fim, (3) o processo de entrada do tema sobre acesso a medicamentos na agenda do comrcio internacional. Tendo como referencial terico o conceito de legislao de propriedade industrial sensvel sade, definido por Correa (2000), a segunda parte consistiu na elaborao, teste e aplicao de um instrumento para a anlise das legislaes de propriedade industrial de pases da Amrica Latina e do Caribe sob a tica da sade pblica. Os principais resultados evidenciam que, embora o tema da propriedade intelectual esteja na agenda do setor sade, os pases no esto incorporando todas as flexibilidades do Acordo TRIPS relacionadas ao acesso a medicamentos. Alm disso, esto negociando e assinando tratados de livre comrcio regionais e bilaterais que incluem dispositivos mais restritivos do que aqueles estabelecidos no Acordo TRIPS.

Palavras-chave: Acordo TRIPS, implementao, acesso a medicamentos

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Abstract

The WTO TRIPS Agreement, which has been in force since January 1995, establishes that all WTO Member countries must grant patents for all technological fields, including patents for products and processes of the pharmaceutical sector. Different actors in the health field have demonstrated that this Agreement can potentially have negative impacts on access to medicines in developing and least developed countries. This thesis aims to study the implementation process of the TRIPS Agreement in developing countries. The first part consists of a historical description, which includes: (1) the evolution of the international system of intellectual property rights (IPR) and (2) how IPR became part of the health sector agenda and (3) how the theme of access to medicines became part of the international trade agenda. Based on Correas definition of health-sensitive industrial property legislation (2000), the second part of this thesis consists of the elaboration, testing and application of an instrument to analyze industrial property legislation in Latin American and Caribbean countries through a public health perspective. The main results demonstrate that although the theme of IPR is part of the health sector agenda, countries are not incorporating all of the TRIPS flexibilities related to access to medicines. In addition, they are negotiating and signing free trade agreements with legal provisions that are even more restrictive than those previously established under the TRIPS Agreement.

Key-words: TRIPS Agreement, implementation, access to medicines

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Sumrio1. Situando o Problema ...................................................................................................... 1 2. Referenciais Terico e Metodolgico ......................................................................... 11 3. A Evoluo do Sistema Internacional de Propriedade Intelectual ............................... 30 4. A Propriedade Intelectual na Agenda da Sade e o Acesso a Medicamentos na Agenda do Comrcio Internacional ................................................................................. 38 5. Anlise das Legislaes de Propriedade Industrial: Resultados e Discusso .............. 53 6. Concluses ................................................................................................................... 76 7. Referncias Bibliogrficas ........................................................................................... 80 Anexo 1- Questionrio Pr-teste......................................................................................89Anexo 2- Questionrio 1..................................................................................................91Anexo 3 Carta Convite para Especialistas....................................................................94Anexo 4 Questionrio 2................................................................................................96Anexo 5 Resumo dos resultados do 1 Questionrio....................................................99Anexo 6 - Aspectos importantes da Deciso IP/C/W/405, de 30 de Agosto de 2003...104Anexo 7 - Partes das Legislaes Identificadas para Aplicao do Instrumento...........107

ndice de QuadrosQuadro 1. Principais caractersticas da licena compulsria (LC)................................. 17Quadro 2. Condies para a Concesso de Licenas Compulsrias................................18Quadro 3. Modalidades de patentes concedidas no setor farmacutico ........................20Quadro 4. Vantagens e desvantagens da aplicao do Mtodo Delfos. ..........................25Quadro 5. Freqncia de citao de elementos legais na 1 pergunta do 1 questionrio......................................................................................................................................... 27Quadro 6. Resolues aprovadas nas Assemblias Mundiais da Sade que incluram o tema de acordos comerciais e direitos de propriedade intelectual...................................51Quadro 7. Valores mdios atribudos para os dispositivos legais e respectivos desvios-padro ............................................................................................................................. 54Quadro 8. Legislaes selecionadas e analisadas por pas............................................. 55Quadro 9. Tratados de Livre Comrcio envolvendo Pases Selecionados.......................56Quadro 10. Anlise das legislaes de propriedade industrial dos pases selecionados. 57Quadro 11 . Condies para emisso de licena compulsria presentes nas legislaes selecionadas para o estudo...............................................................................................65

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ndice de FigurasFigura 1. Grau de Sensibilidade Sade das Legislaes de Propriedade Industrial. Amrica Latina e Caribe, 1996 a 2002............................................................................ 70Figura 2. Grau de Sensibilidade Sade da Legislao do Mxico: antes e depois da adeso ao NAFTA. Mxico, 1994 a 1999....................................................................... 71Figura 3. Grau de Sensibilidade Sade da Lei de Propriedade Industrial da Repblica Dominicana - antes e depois do D.R.-CAFTA. Repblica Dominicana, 2000 a 2004....72Figura 4. Grau de Sensibilidade Sade da Lei de Propriedade Industrial de Honduras - antes e depois do D.R.-CAFTA. Honduras, 1999 a 2004................................................72Figura 5. Grau de Sensibilidade Sade da Legislao de Propriedade Industrial da Guatemala - antes e depois do D.R.-CAFTA. Guatemala, 2000 a 2004......................... 73Figura 6. Grau de Sensibilidade Sade da Legislao de Propriedade Industrial da Costa Rica - antes e depois do D.R.-CAFTA. Costa Rica, 1999 a 2004.........................73Figura 7. Grau de Sensibilidade Sade da Legislao de Propriedade Industrial da Nicargua - antes e depois do D.R.- CAFTA. Nicargua, 2001 a 2004.......................... 74

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AbreviaturasAcordo TRIPS Acordo sobre Aspectos da Propriedade Intelectual Relacionadas ao Comrcio (Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights)ALCA - rea de Livre Comrcio das AmricasAMS - Assemblia Mundial de SadeANVISA - Agncia Nacional de Vigilncia SanitriaARIPO - Organizao de Propriedade Industrial da Regio Africana (African Region of Intellectual Property Organization)ARV AntiretroviralBM - Banco MundialBIRPI - Escritrio Unificado Internacional para a Proteo da Propriedade Intelectual Cptech - Consumer Project on TechnologyCIPIH - Comisso sobre Propriedade Intelectual, Inovao e Sade PblicaCUB - Conveno da Unio de Berna CUP Conveno da Unio de ParisDPI - Direitos de Propriedade Intelectual D.R.-CAFTA - Tratado de Livre Comrcio da Repblica Dominicana, Amrica Central e Estados UnidosFDA Food and Drug AdministrationFMI - Fundo Monetrio Internacional FTC Federal Trade ComissionGATS Acordo Geral sobre o Comrcio de ServiosGATT - Acordo Geral sobre Tarifas e ComrcioHAI - Health Action InternationalIMS International Market ServicesINPI Instituto Nacional de Propriedade IndustrialINVIMA Instituto de Vigilncia de Medicamentos e Alimentos LC licena compulsriaMSF - Mdicos Sem FronteirasNAFTA Tratado de Livre Comrcio da Amrica do NorteNIC Pases de Industrializao Recente (New Industrialized Countries)NIHCM - National Institute of Health Care and ManagementOAPI - Organizao Africana de Propriedade Intelectual OMC - Organizao Mundial do Comrcio OMPI Organizao Mundial de Propriedade IntelectualOMS - Organizao Mundial da SadeONG - Organizao No Governamental OSC rgo de Soluo de ControvrsiaP&D - Pesquisa e DesenvolvimentoPhRMA Pharmaceutical Research and Manufactures of America

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PNM - Poltica Nacional de MedicamentosRDS Estratgia Revisada de Medicamentos (Revised Drug Strategy)SATAC - South African Treatment Action Campaign TAC - Treatment Action CampaignUNAIDS - Programa Conjunto das Naes Unidas sobre HIV/AIDS UNDP - Programa Desenvolvimento Humano das Naes Unidas (United Nations Development Program)

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1. Situando o Problema

No s patentes; aos medicamentos caros! Sim aos genricos; aos medicamentos baratos! Sim vida!. Ns dizemos NO s emendas da lei de patentes da ndia. Ns dizemos SIM para o nosso senso de justia e humanidade desistam das emendas lei de patentes (GCAIPA, 2005)

Estas duas chamadas foram utilizadas por ativistas da Campanha Global Contra a Emenda da Lei de Patentes da ndia no incio de 2005. Segundo as regras do comrcio internacional, o pas teve, at este ano, o direito de no conceder patentes para produtos e processos farmacuticos, possibilitando a estruturao de um importante parque industrial de medicamentos genricos. Medicamentos estes que so exportados para diversos pases a preos muitos mais acessveis do que aqueles estabelecidos pelas empresas transnacionais, permitindo a sustentabilidade de programas nacionais de sade, dentre eles os de combate epidemia do HIV/AIDS (Bermudez et al., 2004a).

Em vigor desde 1995, o Acordo sobre os Aspectos da Propriedade Intelectual relacionados ao Comrcio (Acordo TRIPS) estabelece que, a partir de 2005, todos os pases em desenvolvimento devem garantir a proteo patentria para todos os campos tecnolgicos, incluindo proteo para produtos e processos farmacuticos. Isso significa, na prtica, que a comercializao de verses genricas de novos medicamentos ser retardada por um perodo mnimo de 20 anos e que as empresas detentoras das patentes podero aumentar os preos de seus produtos, como conseqncia do monoplio conferido pela patente. Para o setor sade, a proteo patentria pode ter algumas implicaes negativas, como, por exemplo, afetar a capacidade aquisitiva dos pases em garantir a sustentabilidade de programas que fornecem medicamentos para as suas populaes.

Por esta razo, imediatamente aps a entrada em vigor desse Acordo, comearam os questionamentos no mbito do setor sade relativos ao possvel impacto negativo que o mesmo poderia ter nas polticas de acesso a medicamentos nos pases em desenvolvimento e menos desenvolvidos. Na 49 Assemblia Mundial de Sade (AMS), ocorrida em 1996, essa questo foi discutida e includa na Resoluo sobre a Estratgia Revisada de Medicamentos (RDS), a qual incumbiu a Organizao Mundial de Sade (OMS) de fornecer informaes sobre o impacto do trabalho da OMC no que diz respeito s polticas nacionais de medicamentos e aos medicamentos essenciais (WHO, 1996).

No contexto do Acordo TRIPS, o conflito existente entre os direitos de propriedade intelectual e direito sade ganhou evidncia em uma dimenso global, trazendo ao debate atores do setor sade e do setor industrial. Qual a importncia da

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proteo patentria para o setor farmacutico? Por que ela pode ser negativa para a implementao de polticas de acesso a medicamentos?

1.1. Algumas Caractersticas do Setor Farmacutico

Breve Histrico

As empresas farmacuticas contemporneas comearam a surgir durantes as dcadas de 40 e 50, com o desenvolvimento, em escala industrial, de produtos quimicamente isolados. Como conseqncia da Segunda Guerra Mundial, pases com capacidade industrial encontravam-se completamente destrudos e os Estados Unidos garantiram a liderana de suas empresas no processo de criao de novos produtos farmacuticos. Essas empresas, por sua vez, encontraram amplo espao para atingir novos mercados no nvel internacional e foram se transformando em complexos industriais transnacionais (Rego, 2000).

A mesma autora acrescenta que o crescimento da indstria farmacutica estadunidense sofreu importante influncia de trs mudanas ocorridas no pas: (1) a introduo de novas tcnicas para isolar substncias com ao farmacolgica, (2) a possibilidade de obteno de patentes para os diferentes processos desenvolvidos para o isolamento e purificao da estreptomicina, estabelecida pelo Escritrio de Patentes, e (3) a possibilidade das empresas inovadoras controlarem a produo, distribuio e preos de seus produtos, mediante a obteno de patentes.

A partir da dcada de 60, em decorrncia do escndalo da talidomida, - no qual detectou-se o nascimento de milhares de crianas com malformaes congnitas devido ao consumo deste medicamento durante a gravidez -, o Estado passou a ter um maior rigor no processo de concesso de registro para comercializao. Para isso, passou a ser exigida a comprovao de segurana, eficcia e qualidade do medicamento, aumentando consideravelmente os gastos das empresas com P&D.

Durante a dcada de 70, o mercado farmacutico foi marcado pela entrada de empresas produtoras de medicamentos genricos, possibilitando a concorrncia dos produtos via preos. Por essa razo, as empresas inovadoras tiveram que fazer imensos esforos altos investimentos em P&D, minimizao de riscos e desenvolvimento de economias de escala - para se preservarem no mercado e restringirem a concorrncia (Rego, 2000). Esforos esses que fortaleceram os componentes que caracterizam o setor como um mercado imperfeito.

A principais falhas no mercado farmacutico

Das principais falhas existentes, pode-se destacar a formao de oligoplios e monoplios, causada pela segmentao do mercado por classes teraputicas. Como

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exemplo, tem-se o caso da Roche, que j dominou 34,8% do mercado de vitaminas, a Shering, que ocupou 44,2% do mercado de corticides, e a Johnson & Johnson, que possua 34,8% do mercado de anti-helmnticos. A associao dessas empresas lderes com outras que atuam no mesmo segmento de mercado de uma determinada classe teraputica chega a ser maior do que 50%, caracterizando a formao de oligoplios (Bermudez, 1992, Marin et al., 2003).

A proteo por patentes outra forma de garantir um outro tipo de monoplio e representa uma das formas de apropriao da tecnologia utilizada por empresas inovadoras (Pavitt, 1984). Os produtos qumico-farmacuticos podem ser facilmente copiados por empresas imitadoras, uma vez que a maioria dos mtodos de qumica orgnica extensamente difundida pela literatura. Essas empresas no despendem o mesmo tempo utilizado pela empresa inovadora para desenvolver o produto e ainda no precisam realizar todos ensaios clnicos de eficcia e segurana realizados pela ltima (Reis, 2004). Assim, a patente representa uma importante estratgia para obter o retorno financeiro do investimento feito em P&D, ao retardar a entrada de outros concorrentes no mercado e ao possibilitar o estabelecimento de preos extraordinrios aos produtos protegidos (Gontijo, 2003, Pavitt, 1984).

As atividades de propaganda e marketing so outros componentes que contribuem para a formao dos oligoplios, pois elas fortalecem a diferenciao de produtos ao valorizar de forma favorvel os atributos dos medicamentos, influenciando as percepes dos prescritores e consumidores (Hasenclever, 2002; Reis & Bermudez, 2004).

Outro tipo de falha de mercado existente a assimetria de informao. Esta ocorre porque quem consome o medicamento desconhece as informaes relativas qualidade, segurana e eficcia e, quem prescreve ou trabalha diretamente com ele, depende muitas vezes de informaes da empresa produtora, que muitas vezes as divulga de forma enviesada, favorecendo os efeitos benficos e omitindo os efeitos malficos (Rego, 2000; Reis, 2004).

A separao das decises sobre prescrio, consumo e financiamento tambm outro tipo de falha de mercado. Pelas caractersticas do medicamento, o consumidor no escolhe o tratamento e, quem escolhe o mdico no quem financia. Adicionalmente, quem financia quer ter o menor custo possvel. So interesses diferentes existentes em uma nica situao (Rego, 2000).

importante citar, tambm, a inelasticidade da demanda de medicamentos ao preo. Isso ocorre devido essencialidade deste tipo de insumo e baixa possibilidade de substituio (Hasenclever, 2002; Reis, 2004). No entanto, ainda que o medicamento seja um bem que, quando indicado, deve ser consumido independente do seu preo, o determinante real do consumo dado pelo nvel de renda da populao e sua distribuio (Hasenclever, 2002).

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Dados do International Market Service (IMS) (apud MSF, 2002) evidenciam que 80% do mercado farmacutico consumido por 20% da populao mundial que est localizada nos pases desenvolvidos. Adicionalmente, a relao entre possibilidade de consumo de medicamentos e renda tambm pode ser observada em mbito nacional, independente do nvel de desenvolvimento do pas. No Brasil, por exemplo, os 15% da populao que recebem acima de 10 salrios mnimos consomem 48% do mercado de medicamentos do pas, enquanto que os 51% da populao que vivem com menos de 4 salrios mnimos consomem apenas 16% deste mesmo mercado (Brasil, 1998).

A OMS vem divulgando em inmeras publicaes que mais de um tero da populao vive sem acesso a medicamentos considerados essenciais, sendo que esse quadro se agrava quando se trata de pases da frica e sia, onde mais da metade da populao no tem acesso aos mesmos (WHO, 1988; WHO, 2001; WHO, 2002; WHO, 2003; Marin et al., 2003).

Adicionalmente, a organizao humanitria Mdicos Sem Fronteiras (MSF) lanou um documento evidenciando que o mercado farmacutico no contempla todos os problemas de sade existentes no mundo e valoriza algumas reas especficas. Chamam de doenas globais aquelas que atingem todos pases, independente do nvel de desenvolvimento - cncer, doenas do aparelho cardiovascular, doenas mentais e alteraes neurolgicas - e que representam o principal alvo de investimento das empresas.

Outra rea altamente lucrativa a de tratamentos estticos, o que inclui tratamento de rugas, alopcia, emagracedores e outros. As enfermidades que atingem preferencialmente pases em desenvolvimento e menos desenvolvidos doena de Chagas, leishmaniose, malria, tuberculose e outras so chamadas de doenas negligenciadas. No recebem nenhum investimento por parte das empresas, pois as populaes acometidas no representam mercados importantes (MSF, 2002). Conforme ressaltam Luiza & Bermudez (2004), somente 10% das pesquisas globais em sade focalizam os problemas relacionados aos 90% da carga global de doenas.

Concluindo, o mercado farmacutico mundial apresenta uma srie de distores que o caracteriza como um mercado imperfeito, entre elas, a formao de oligoplios que dominam segmentos do mercado de uma determinada classe teraputica. Como parte da estratgia para retardar a entrada de novos concorrentes e garantir o retorno financeiro para o investimento realizado na pesquisa e desenvolvimento de novos produtos, torna-se essencial para a indstria farmacutica a proteo patentria de produtos e processos farmacuticos. No entanto, a proteo patentria, acompanhada da falta de explorao local da inveno, possibilita tanto o estabelecimento de altos preos de medicamentos, como podem aumentar a dependncia tecnolgica dos pases em desenvolvimentos (Jorge, 2004; Oliveira et al., 2004a).

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1.2. Acesso a Medicamentos

A busca pelo acesso a medicamentos tem sido alvo de diversas iniciativas, uma vez que representa, junto com os acessos aos servios, preveno e ao cuidado, um dos direitos humanos fundamentais - o direito sade (Luiza et al., 2002).

Os principais autores de referncia no tema tm afirmado (Pechansky & Thomas, 1981; Aday & Andersen, 1975) que a mera disponibilidade de servios e recursos insuficiente para garantir o acesso da populao aos mesmos.

Bermudez et al. (1999) (apud Oliveira et al., 2002:1432) definem acesso a medicamentos como a relao entre a necessidade de medicamentos e a oferta dos mesmos, na qual essa necessidade satisfeita no momento e no lugar requerido pelo paciente (consumidor), com a garantia de qualidade e a informao suficiente para o uso adequado. O estudo do acesso a medicamentos, por sua vez, deve incluir atributos das necessidades da populao e atributos de oferta a partir do provedor, devendo existir relaes que se apresentem em dimenses mensurveis.

As dimenses do acesso a servios de sade foram adaptadas, por WHO/MSH (2000) e por Luiza (2003), para estudar o acesso a medicamentos. O modelo terico proposto pelos autores composto por cinco dimenses:

1. Disponibilidade - relao entre quantidade ofertada de servio em relao necessidade real ou percebida dos usurios;

2. Capacidade Aquisitiva - relao da capacidade do usurio de pagar pelos servios ou produtos e o preo dos mesmos;

3. Acessibilidade geogrfica - relao entre a localizao da populao usuria dos servios de sade e o percurso que esta faz para atingir tais servios;

4. Aceitabilidade relao entre as caractersticas dos produtos e servios e as expectativas e necessidades dos usurios, bem como s normas tcnicas e legais de funcionamento (Luiza & Bermudez, 2004: 51);

5. Qualidade de produtos e servios - componente essencial do acesso que perpassa todas as dimenses anteriores.A proteo patentria pode ter impacto em trs destas dimenses: na

disponibilidade, na aceitabilidade e na capacidade aquisitiva. O estmulo criao de novos produtos afeta as dimenses disponibilidade e aceitabilidade, na medida em que esses produtos de fato representam ganhos teraputicos, seja por serem um novo medicamento, ou por serem uma nova formulao que facilite a adeso dos pacientes (Reis, 2004).

A capacidade aquisitiva a dimenso que merece maior detalhamento por ser, possivelmente, aquela mais afetada negativamente pela proteo patentria de produtos e processos farmacuticos.

Encontrar o ajuste adequado entre os preos dos medicamentos e a capacidade aquisitiva dos usurios para adquiri-los tem sido um desafio para governos de pases

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desenvolvidos e em desenvolvimento por diversas razes. Os gastos com sade esto crescendo em altas propores devido, principalmente, incorporao de novas tecnologias, das quais se incluem os medicamentos.

Gastos com medicamentos chegam a representar de 1020% dos gastos em sade de pases desenvolvidos e mais de 50% dos gastos em sade dos pases em desenvolvimento (MSH/WHO, 1997; NIHCM, 2002; HAI/WHO, 2003). Independente de ser o Estado ou as grandes seguradoras o provedor de medicamentos, a sustentabilidade do financiamento dessas novas tecnologias vem sendo discutida e questionada. Primeiro, porque os recursos so finitos em todos pases e no ser possvel prover tudo o que ofertado no mercado. Segundo, porque muitas das tecnologias ofertadas nem sempre so mais custo-efetivas que outras j existentes no mercado e vendidas a preos baixos.

Reis & Bermudez (2004) discutem a relao direta existente entre estabelecimento de alto preo e o alto grau de inovao de um medicamento. Um produto novo, que apresente um novo mecanismo de ao, poder ser lanado a um preo elevado. Se este novo mecanismo de ao representar um importante avano teraputico a demanda ao preo poder ser inelstica. Nestes casos a proteo patentria funciona como barreira a entrada de concorrentes, permitindo que a empresa consolide uma posio de mercado. Sendo assim, a patente representa importante instrumento para que as empresas retardem a entrada de outros concorrentes que desejem deslocar a concorrncia para o preo.

Adicionalmente, a indstria farmacutica tem lanado novos produtos para o tratamento de patologias, para as quais j existem medicamentos no patenteados, comprovadamente eficazes e seguros. A estratgia adotada difundir para os mdicos a idia de que o novo sempre melhor, induzindo-os a prescrever medicamentos mais novos, na maioria das vezes muito mais caros, e que nem sempre conferem uma vantagem teraputica em relao ao tratamento antigo (NIHCM, 2000). Isso se reverte da maior importncia no contexto atual, porque o Acordo TRIPS estabelece um perodo mnimo de vigncia das patentes de vinte anos, durante o qual o detentor da patente ter todas as condies de influenciar os padres prescritivos, que vo garantir sua posio no mercado mesmo aps a expirao da patente (Bermudez et al., 2004a).

Dessa forma, a proteo patentria no setor farmacutico envolve interesses distintos e contraditrios. Se por um lado o monoplio conferido pela patente representa para a indstria farmacutica uma importante forma de garantir o retorno do investimento feito em pesquisa e desenvolvimento, por outro ele tambm possibilita o estabelecimento de preos elevados, podendo comprometer a capacidade aquisitiva de governos em garantir que suas populaes tenham acesso regular aos medicamentos.

A busca por um equilbrio entre os direitos conferidos pela patente - claramente explicitados no Acordo TRIPS - e a proteo da sade pblica vem representando importante desafio para os governos. Desafio este que exige uma leitura do Acordo por

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profissionais da sade para melhor defender os interesses de seu setor. Por essa razo, torna-se essencial estudar o seu processo de implementao, permitindo identificar, at o presente momento, o quanto a reforma das legislaes de propriedade industrial est gerando legislaes potencialmente favorveis s polticas de acesso a medicamentos em cada pas.

1.3. A Implementao do Acordo TRIPS em Pases em Desenvolvimento

A incorporao do Acordo TRIPS nas legislaes dos pases em desenvolvimento acarretou, na maior parte das vezes, na reforma dos sistemas nacionais de propriedade intelectual. Isso vem representando imenso desafio para eles, medida que exige a identificao dos aspectos benficos do novo sistema para as polticas nacionais.

Sabe-se que reas como a de patentes vem se transformando constantemente segundo as estruturas produtivas e os nveis de desenvolvimento de cada pas (Correa, 2003; Bermudez et al, 2004b; Bermudez et al., 2000; Tachinardi, 1993). Pases desenvolvidos como Japo, Estados Unidos, Alemanha passaram a reconhecer patentes para determinados campos tecnolgicos quando suas indstrias nacionais se encontravam devidamente desenvolvidas e precisavam ser preservadas. Dessa forma, a obrigatoriedade do reconhecimento de patentes para todos os campos tecnolgicos em todos os pases Membros pode representar implicaes variadas para cada um deles.

Conforme discute Correa (2003), os pases em desenvolvimento devem buscar a integrao entre as polticas relativas aos direitos de propriedade intelectual e as polticas de desenvolvimento nacional, considerando reas como desenvolvimento industrial, sade pblica, segurana alimentar, educao e outras. No entanto, algumas autoridades dos setores envolvidos no participam dos processos decisrios sobre questes relativas aos direitos de propriedade intelectual e isso acaba comprometendo a adequada construo de um sistema que esteja tanto de acordo com as regras internacionais como com os interesses nacionais.

No caso da reforma do sistema de patentes, importante que os seguintes aspectos sejam considerados: (1) proteo do meio ambiente; (2) proteo da sade pblica; (3) promoo da competio; (4) promoo da transferncia de tecnologia; (5) proteo dos consumidores; (6) apoio aos pequenos produtores e, (7) respeito aos direitos do inventor de ser compensado por sua contribuio e pelo progresso cientfico.

O pas que considerar a proteo da sade pblica deve elaborar uma legislao de propriedade industrial sensvel sade. Isso significa incorporar todas as flexibilidades e salvaguardas que habilitem os governos a atuar de forma eficiente no campo da sade pblica e que lhes garanta uma abordagem industrial pr-competitiva (Correa, 2000).

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A literatura apresenta poucos estudos referentes primeira etapa do processo de implementao do Acordo TRIPS sob a tica da sade pblica, podendo destacar os trabalhos de Bermudez et al. (2000), Thorpe (2002), Keyla (2003), Oliveira et al (2004b), Chaves & Oliveira (2004), Oliveira et al. (2004c).

Bermudez et al. (2000) analisaram as mudanas ocorridas com a publicao da nova legislao brasileira de propriedade industrial (Lei 9.279/96). Alm de apresentar os novos mecanismos incorporados na legislao, os autores tambm avaliaram os depsitos de pedido de patentes no setor farmacutico, segundo tipo de pedido e pas de origem, nos dois anos aps a entrada em vigor da nova lei. Os resultados demonstraram que os principais beneficirios das novas modificaes foram as empresas farmacuticas transnacionais.

Thorpe (2002) fez um estudo descritivo de trs sistemas regionais de propriedade intelectual: a Organizao de Propriedade Industrial da Regio Africana (ARIPO), a Organizao Africana de Propriedade Intelectual (OAPI) e a Comunidade Andina. O autor ainda analisou as legislaes de setenta pases em desenvolvimento e menos desenvolvido, tendo como objetivo identificar a incorporao de algumas flexibilidades e salvaguardas do Acordo TRIPS.

Os resultados da anlise mostraram que apenas trs dos trinta pases menos desenvolvidos da frica utilizaram o perodo de transio para o reconhecimento de patentes para o setor farmacutico, conforme estabelecido na Declarao Ministerial de Doha sobre TRIPS e Sade Pblica (WTO, 2001). Todos pases estudados incorporaram o dispositivo licena compulsria com o objetivo de prevenir abuso dos direitos do detentor da patente. Poucos pases incorporam outros tipos de flexibilidades.

Keyla (2003) analisou as legislaes de propriedade industrial da ndia, Indonsia, Sri Lanka e Tailndia, tendo como enfoque as principais flexibilidades que possibilitam que o governo possa tomar medidas para proteger a sade pblica. Adicionalmente, o autor fez uma descrio da situao de sade desses pases, assim como do contexto poltico e do perfil do setor farmacutico. Os resultados revelam uma srie de dificuldades em atender a todos os problemas de sade devido escassez de recursos, principalmente no contexto do Acordo TRIPS. Chama a ateno para a necessidade de utilizao da licena compulsria como forma de ampliar o acesso a medicamentos e ressalta a importncia de haver uma maior articulao entre as polticas de sade, polticas farmacuticas e a legislao de patentes.

Oliveira et al. (2004b) analisaram as legislaes de propriedade industrial de onze pases da Amrica Latina e Caribe Argentina, Brasil, Bolvia, Colmbia, Equador, Honduras, Mxico, Panam, Peru, Repblica Dominicana e Venezuela -, levando em considerao o conceito de legislao de propriedade industrial sensvel sade (Correa, 2000). Buscou-se identificar os requisitos de patenteabilidade, a vigncia das patentes, os perodos de transio, a inverso do nus da prova, exausto de direitos, licena compulsria e exceo Bolar. Foram tambm identificadas as condies para a

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emisso de uma licena compulsria. Os resultados evidenciaram que a maioria dos pases no incorporou plenamente todas as flexibilidades previstas pelo Acordo TRIPS que poderiam favorecer as polticas de sade.

A fim de ampliar o escopo de pases da Amrica Latina e Caribe e, seguindo a mesma metodologia supracitada, Chaves & Oliveira (2004) analisaram as legislaes dos seguintes pases: Barbados, Belize, Costa Rica, Guatemala, Nicargua, Paraguai, Trinidad e Tobago e Uruguai. Os resultados evidenciaram que Costa Rica, Uruguai e Paraguai incorporaram todas as flexibilidades previstas pelo Acordo TRIPS, assim como todas as condies para emisso de uma licena compulsria. No outro extremo, Trinidad e Tobago apenas incorporou o mecanismo de licena compulsria. As autoras ainda ressaltam a importncia de estudar a implementao de mecanismos mais restritivos que aqueles previstos pelo Acordo TRIPS.

Estudos que melhor caracterizem o processo de implementao do Acordo TRIPS, considerando os atores envolvidos no debate e o grau de incorporao das flexibilidades do Acordo TRIPS favorveis s polticas de acesso a medicamentos permanecem restritos. Por essa razo o presente trabalho visa responder s seguintes questes: Quais so os atores envolvidos no debate internacional sobre direitos de propriedade intelectual versus acesso a medicamentos? Como os pases em desenvolvimento e menos desenvolvidos esto implementando o Acordo TRIPS? Eles esto incorporando as flexibilidades relacionadas ao acesso a medicamentos? Eles esto formulando legislaes mais restritivas do que os padres mnimos estabelecidos pelo Acordo TRIPS? O quanto essas legislaes so favorveis s polticas de acesso a medicamentos?

1.4. Objetivo Geral e Objetivos Especficos

O presente trabalho tem como objetivo geral estudar o processo de implementao do Acordo TRIPS em pases em desenvolvimento focalizando aspectos da reforma das legislaes de propriedade industrial relacionados com as polticas de acesso a medicamentos.

So objetivos especficos deste trabalho:1) Descrever a evoluo histrica do sistema internacional de propriedade

intelectual;2) Descrever o processo de incorporao do tema da propriedade intelectual na

agenda do setor sade;3) Elaborar e validar um instrumento de anlise das legislaes de propriedade

industrial;4) Analisar as legislaes de propriedade industrial sob a tica da sade pblica.

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1.5. Pressuposto

Uma legislao de patentes sensvel sade pblica deve incluir todos as flexibilidades relacionadas ao acesso a medicamentos previstas no Acordo TRIPS.

1.6. Justificativa

O estudo a ser apresentado na presente dissertao foi escolhido porque o tema sobre direitos de propriedade intelectual relativamente novo no mbito do setor sade; h poucos estudos sobre o processo de implementao do Acordo TRIPS em pases em desenvolvimento e porque no h estudos que meam o grau de conformidade das legislaes dos pases Membros da OMC com as flexibilidades do Acordo TRIPS relacionadas ao acesso a medicamentos.

Considerou-se importante descrever tanto a evoluo do sistema internacional de propriedade intelectual como a entrada do tema na agenda da sade, uma vez que daro mais subsdios para a discusso dos resultados obtidos a partir da aplicao do instrumento de anlise das legislaes de propriedade industrial.

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2. Referenciais Terico e Metodolgico

2.1. Organizao do Estudo

O presente trabalho foi composto por duas partes: a primeira, que tinha um carter de contextualizao histrica do tema, descreveu a evoluo do sistema internacional de propriedade intelectual, assim como o processo de incorporao deste tema na agenda da sade e os principais atores-chave envolvidos. A segunda avaliou o grau de conformidade das legislaes de propriedade industrial dos pases selecionados com as flexibilidades do Acordo TRIPS relacionadas ao acesso medicamentos.

A primeira parte tinha um carter essencialmente qualitativo e foi elaborada tendo como base informaes coletadas em artigos cientficos, livros, documentos oficiais, relatrios tcnicos e entrevista com atores-chave: Dr. Jorge Antnio Zepeda Bermudez, representante da delegao do Brasil nas Assemblias Mundiais da Sade, e Dr. Germn Velsquez, Diretor do Programa de Ao para Acesso a Medicamentos, da OMS.

A segunda parte foi desenvolvida em duas etapas, que englobaram a elaborao e teste de um instrumento para a anlise das legislaes de propriedade intelectual, seguidos da aplicao nas legislaes de propriedade industrial de pases da Amrica Latina e do Caribe.

Tratou-se de uma pesquisa avaliativa, cuja estratgia de investigao foi uma anlise de interveno mediante estudo de casos mltiplos. Entendeu-se por interveno a incorporao de dispositivos previstos no Acordo TRIPS nas legislaes nacionais de propriedade industrial. Para sua execuo foram utilizados mtodos e tcnicas da pesquisa qualitativa (anlise de contedo, tcnicas de consenso) e quantitativa (medida do grau de conformidade). A sua realizao envolveu uma srie de etapas distintas que sero descritas nos tpicos subseqentes.

Antes de entrar na descrio da metodologia propriamente dita, nos tpicos 2.2, 2.3, 2.4, 2.5 e 2.6 sero apresentados os referenciais tericos que embasaram o desenvolvimento do estudo. Sero apresentados o conceito de direitos de propriedade intelectual, uma breve descrio do Acordo TRIPS, a definio de uma legislao sensvel sade, descrio das flexibilidades do Acordo TRIPS favorveis sade e dos dispositivos que tornam a legislao menos sensvel sade.

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2.2. Direitos de Propriedade Intelectual: Conceito

Segundo a Conveno da Organizao Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI), os direitos de propriedade intelectual (DPI) referem-se ao conjunto de direitos relativos s obras literrias, artsticas e cientficas, s interpretaes dos artistas intrpretes e s execues dos artistas executantes, aos fonogramas e s emisses de radiodifuso, s invenes em todos os domnios da atividade humana, s descobertas cientficas, aos desenhos e modelos industriais, comerciais e de servio, bem como s firmas comerciais e denominaes comerciais, proteo contra a concorrncia desleal e todos os outros direitos inerentes atividade intelectual nos domnios industrial, cientfico e literrio (Barbosa, 2003a:1). um direito que possibilita que um indivduo ou uma empresa se aproprie de suas criaes, obras e produes do intelecto (Bermudez et al., 2000).

O direito de propriedade tem como caractersticas bsicas o controle sobre a produo e comercializao de um determinado bem e a possibilidade de impedir sua explorao por terceiros. A propriedade intelectual surgiu durante o desenvolvimento da economia industrial como uma nova categoria do direito de propriedade. A existncia de tecnologias que possibilitavam a reproduo de produtos comercializveis acarretou na necessidade de se dar direitos exclusivos no somente aos produtos, mas tambm s idias de reproduo dos mesmos (Barbosa, 2003b). Ou seja, passou a ser necessria a garantia do direito exclusivo para explorao de bens considerados imateriais a fim de que o titular pudesse ter alguma vantagem de concorrncia ao inserir o objeto, fruto de sua criao e conhecimento acumulado, no mercado.

Os DPI podem ser divididos em duas grandes reas: o Direito do Autor e os Direitos de Propriedade Industrial. O primeiro, conhecido como copyright, refere-se proteo dos trabalhos literrios, artsticos, fotogrficos, cinematogrficos e aos softwares. O segundo, refere-se aos direitos relacionados atividades industriais ou comerciais, sendo, ainda, subdivididos em patentes de inveno, modelos de utilidades, modelos e desenhos industriais, indicaes geogrficas, topografias de circuitos integrados e represso da concorrncia desleal (Bermudez et al., 2000).

Patente pode ser definida como um ttulo de propriedade concedido pelo Estado, que assegura a seu titular exclusividade temporria para a explorao de uma determinada inveno. Em troca, todo o conhecimento envolvido no desenvolvimento e produo da mesma dever ser revelado para a sociedade (Barbosa, 2003b; Oliveira, 2000).

Uma inveno poder ser patenteada quando atender aos requisitos de novidade, atividade inventiva e aplicao industrial. A inveno considerada nova quando no for compreendida pelo estado da tcnica, o qual representa tudo aquilo que foi tornado pblico antes da data do depsito do pedido de patente. Ela ser dotada de atividade inventiva quando no for considerada bvia para um tcnico no assunto. A aplicao

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industrial de uma inveno ocorre quando a inveno pode ser utilizada em um processo industrial (Di Blasi et al., 2002).

Diversas so as teorias que justificam a existncia de um sistema de patentes, dentre as quais destacam-se as seguintes (Oliveira, 2000): (1) teoria do direito natural; (2) teoria da recompensa; (3) teoria do contrato social; e (4) teoria do estmulo.

A teoria do direito natural reconhece que a novidade deve pertencer ao seu inventor, uma vez que, a inveno no existiria sem sua interveno. Assim, cabe sociedade reconhecer a proteo da propriedade industrial.

A teoria da recompensa garante ao inventor a exclusividade para a explorao do invento por um determinado perodo de tempo como uma recompensa soluo tcnica encontrada, que favorece a sociedade como um todo.

A teoria do contrato social leva em considerao o fato de que a inexistncia de alguma forma de proteo faria com o que inventor no tornasse pblica sua inveno. O contrato surge entre o Estado e o inventor; o primeiro garante o direito exclusivo de explorao por um determinado perodo de tempo, enquanto que o segundo torna pblico o procedimento para o desenvolvimento de sua inveno.

A teoria do estmulo reconhece ao inventor o direito exclusivo para explorao como forma de recuperar os investimentos feitos para o desenvolvimento da inveno, assim como para a obteno de lucros. Considera que a patente uma forma de estmulo ao desenvolvimento de inovaes.

Estas duas ltimas teorias abordam a patente sob uma perspectiva econmica e permitem compreender a crescente importncia dada ao sistema de patentes no contexto do desenvolvimento das economias de mercado que se basearam no desenvolvimento de novas tecnologias.

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2.3. O Acordo TRIPS da OMC uma breve descrio

O Acordo TRIPS composto por 73 artigos que se distribuem em 7 partes, e abrange as seguintes matrias: (1) direitos do autor e direitos conexos; (2) marcas; (3) indicaes geogrficas; (4) desenhos industriais; (5) patentes; (6) topografia de circuitos integrados; (7) proteo de informao confidencial; e, (8) controle de prticas de concorrncia desleal de licena (Bermudez et al., 2000).

O artigo 1 explicita os padres mnimos de direitos de propriedade intelectual que os pases Membros tero que incorporar em suas legislaes nacionais. Ressalta, ainda, a liberdade para os pases elaborarem legislaes mais restritivas que os padres mnimos definidos, desde que isso no contrarie as disposies do Acordo.

O artigo 7 apresenta os objetivos do Acordo, estabelecendo que os direitos de propriedade intelectual devem contribuir para a promoo da inovao tecnolgica e para a transferncia e disseminao de tecnologia, para a vantagem mtua dos produtores e usurios do conhecimento tecnolgico e de tal maneira que possa levar ao bem estar econmico e social e ao balano de direitos e obrigaes (WTO, 1994).

Os princpios do Acordo so estabelecidos no artigo 8 e garantem aos Estados Membros o direito de, ao reformularem suas legislaes de propriedade intelectual, (1) adotarem medidas necessrias para proteger a sade pblica e nutrio e para promover o interesse pblico em setores de vital importncia para o desenvolvimento scioeconmico e tecnolgico, desde que compatveis com o disposto no Acordo, e de (2) prevenirem-se contra o uso abusivo do direito de propriedade intelectual e de prticas restritivas a comrcio ou que sejam adversas transferncia de tecnologia.

Os artigos 30 e 31 apresentam, respectivamente, as excees aos direitos conferidos pela patente e outro uso sem autorizao do titular da patente, as quais prevem algumas flexibilidades e salvaguardas que os pases Membros podem implementar em suas legislaes nacionais. Esses artigos possibilitam ao pas incluir na legislao nacional alguma proteo contra os possveis abusos do direito de propriedade intelectual.

O artigo 68 cria o Conselho de TRIPS com o objetivo de supervisionar a aplicao e cumprimento do Acordo por parte dos pases Membros. Estes, por sua vez, passam a poder consultar o Conselho sobre questes relativas aos DPI.

O Anexo 2 apresenta uma srie artigos que estabelecem normas e procedimentos sobre a soluo de controvrsias. A partir dos mecanismos definidos, buscar-se- dar preferncia soluo que melhor atender s partes envolvidas. No caso de no haver uma soluo que todos estejam de acordo, a atitude ser de conseguir a supresso das medidas de que se trata, caso se verifique que estas so incompatveis com as

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disposies de qualquer dos acordos abrangidos (WTO, 1994). Outro recurso previsto para o caso de impasse o de suspender de maneira discriminatria contra o outro Membro, a aplicao de concesses ou o cumprimento de outras obrigaes no mbito dos acordos abrangidos, caso o rgo de Soluo de Controvrsias (OSC) autorize a adoo de tais medidas (WTO, 1994).

2.4. Legislao de Propriedade Industrial Sensvel Sade

Conforme anteriormente discutido, uma legislao de propriedade industrial sensvel sade aquela que incorpora todas as flexibilidades explcitas e implcitas no Acordo TRIPS que habilitem os governos atuarem de forma eficiente no campo da sade pblica e que lhes garanta uma abordagem industrial pr-competitiva (Correa, 2000).

2.5. As Principais Flexibilidades do Acordo TRIPS que podem favorecer as Polticas de Acesso a Medicamentos

No presente tpico apresentamos uma breve descrio e discusso das flexibilidades previstas no Acordo TRIPS que tm relao com as polticas de acesso a medicamentos, tais como: (1) perodos de transio, (2) exausto de direitos e importao paralela, (3) uso experimental, (4) exceo Bolar, (5) licena compulsria e (6) participao do setor sade no processo de anlise dos pedidos de patentes de produtos e processos farmacuticos.

Os artigos 65 e 66 do Acordo TRIPS estabelecem prazos para que cada pas Membro da OMC possa implementar as disposies nele presentes na legislao nacional. Os prazos variaram segundo o nvel de desenvolvimento de cada pas. Sendo assim, pases desenvolvidos tiveram at um ano (at 1996) para reformularem suas legislaes, enquanto que pases em desenvolvimento e menos desenvolvidos tiveram, respectivamente, at cinco anos (at 2000) e at onze anos (at 2006).

O artigo 65 ainda estabelece que os pases em desenvolvimento tero cinco anos adicionais, ou seja, at 2005, para conferir proteo da propriedade intelectual queles campos tecnolgicos no protegidos anteriormente.

Aos pases menos desenvolvidos, o tempo adicional a 2006 foi estabelecido durante a IV Conferncia Ministerial da OMC, ocorrida em 2001, em Doha, Qatar. A Declarao Ministerial sobre o Acordo TRIPS e Sade Pblica (WTO, 2001), conhecida como Declarao de Doha, estabeleceu em seu pargrafo 7 que pases menos desenvolvidos, que no reconheciam patentes para produtos e processos farmacuticos antes da entrada em vigor do Acordo TRIPS, teriam uma extenso do prazo para faz-lo at 2016.

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O artigo 6 do Acordo TRIPS diz que nada no Acordo ser utilizado para tratar da questo de exausto dos direitos de propriedade intelectual. Isto significa que os pases podero implementar a exausto internacional, regional ou nacional dos direitos.

O mecanismo de importao paralela refere-se exausto internacional de direitos. Neste caso, o pas pode fazer a importao de um produto patenteado, uma vez que ele j tenha sido colocado no mercado pelo detentor da patente ou por terceiros com seu consentimento. Segundo a doutrina da exausto, o detentor da patente j foi recompensado pela sua inveno ao colocar o produto no pas exportador, ou seja, ele j teve os seus direitos esgotados naquele pas (Correa, 2000, Bermudez et al., 2004a). A existncia deste mecanismo permite que o pas importe o medicamento do pas onde ele esteja sendo comercializado a um menor preo.

Os artigos 30 e 31 do Acordo TRIPS estabelecem, respectivamente, os limites aos direitos conferidos pela patente e outro uso sem autorizao do titular. onde podem ser contempladas as flexibilidades uso experimental, exceo Bolar e licena compulsria.

O uso experimental refere-se possibilidade de explorao do objeto patenteado para fins de investigao cientfica. Trata-se, na realidade, de uma flexibilidade que garante a possibilidade de aproveitamento da informao disponibilizada pelo detentor da patente para fins de pesquisa.

O mecanismo conhecido como exceo Bolar ou trabalho antecipado permite o uso da inveno para a realizao de testes para fins de aprovao do registro de comercializao em agncia reguladora, antes da expirao da patente. Isso possibilita a entrada de medicamento genrico imediatamente aps a expirao da patente.

Na realidade a exceo Bolar nada mais do que uma especificao do uso experimental. Se na legislao do pas estiver previsto o uso experimental e se for adotado o conceito da forma mais abrangente e irrestrita possvel, o pas poder, ento, realizar os testes para fins de aprovao de registro de comercializao (Barbosa, 2003b).

A licena compulsria considerada um elemento crucial em uma lei de propriedade industrial sensvel sade. Na realidade, este elemento serve para limitar os direitos conferidos pela patente quando impera um interesse coletivo (Barbosa, 2003b). A sua emisso representada por uma autorizao emitida pelo governo para a explorao do produto patenteado, sem o consentimento do titular da patente. O Quadro1 apresenta as principais caractersticas de uma licena compulsria (Zuccherino e Mitelman apud Barbosa, 2003: 501).

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Quadro 1. Principais caractersticas da licena compulsria (LC)

1. Todo pedido para obteno de uma LC ser considerado em funo de circunstncias prprias

2. Antes de se obter uma LC, dever-se- tentar obter uma licena voluntria em condies razoveis

3. A extenso e durao da licena devero limitar-se ao objetivo para a qual foi autorizada

4. A LC ser de carter no exclusivo e no transfervel5. O produto alvo de LC dever servir para o abastecimento do mercado interno6. A LC ser anulada caso deixe de existir as razes que levaram ao seu

consentimento7. O titular da patente receber uma remunerao adequada levando em conta o

valor econmico do outorgamento da licena em questoFonte: Adaptado Zuccherino e Mitelman apud Barbosa, 2003: 501.

Conforme destacado no primeiro item do Quadro 1, a licena compulsria somente poder ser emitida em circunstncias prprias, ou seja, mediante algumas condies. Por essa razo, Carlos Correa (2000) ressalta a importncia de o pas incorporar todas as condies possveis para a sua emisso, a fim de ampliar o espectro de possibilidades do governo utilizar esse instrumento como forma de melhor implementar polticas de acesso a medicamentos. O Quadro 2 apresenta algumas condies para a emisso de licena compulsria e suas definies.

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Quadro 2. Condies para a Concesso de Licenas CompulsriasCondies para Concesso de Licena Compulsria

DEFINIO

Falta de Explorao da Patente

Caso a patente no tenha sido explorada localmente em um prazo de trs anos, a partir da data de sua concesso, poder-se- emitir uma LC.

Interesse Pblico A LC pode ser emitida por prevalecer o interesse pblico sobre o interesse individual do detentor da patente. O interesse pblico no precisa ser necessariamente nacional ou federal, pode partir de qualquer esfera do Poder Pblico. Essa condio est de acordo com o artigo 31 do Acordo TRIPS e pode ser aplicada em situaes que atendam os princpios previstos no Artigo 8 do mesmo Acordo .

Emergncia Nacional A LC pode ser emitida para atender uma situao de emergncia nacional, seja de interesse pblico, seja de interesse coletivo ou mesmo difuso.

Remediar Prticas anti-competitivas e concorrncia desleal

A LC pode ser emitida para corrigir preos excessivos e prticas comerciais abusivas.

Falha em obter licena voluntria em condies aceitveis

Uma LC pode ser concedida caso no se tenha conseguido obter o licenciamento voluntrio para explorao da patente.

Falta de produo local De acordo com o artigo 50 da Conveno da Unio de Paris, verso Estocolmo (1967), a falta de produo local pode ensejar uma LC.

Patentes Dependentes Possibilidade de emisso de uma LC para um produto patenteado que seja intermedirio de outro produto objeto de outra licena compulsria.

Fonte: Adaptado de Correa, 2000; Barbosa, 2003.

Da mesma forma que existem mecanismos legais compatveis com o Acordo TRIPS e que podem minimizar os direitos do detentor da patente, existem outros, que no infringem o Acordo e que podem fortalecer os direitos do detentor, tornando, s vezes, a legislao menos sensvel sade.

A figura da participao do setor sade nos processo de anlise dos pedidos de patentes para produtos e processos farmacuticos foi uma flexibilidade acrescentada no processo de elaborao do instrumento de anlise das legislaes e trata-se de uma inovao identificada na legislao do Brasil, conforme ser discutido posteriormente.

A teoria do estmulo justifica a importncia de um sistema de patentes atravs da troca que beneficia as partes envolvidas: o titular da inveno e a sociedade (Oliveira, 2000). O primeiro tem o direito de exclusivo para explorao da inveno como forma de recuperar os altos investimentos realizados para sua obteno, enquanto que o segundo se beneficia com a entrada de novas tecnologias no mercado.

Sendo assim, poder-se-ia imaginar que o nmero de patentes farmacuticas muito prximo do nmero de medicamentos existentes no mercado. No entanto, no

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exatamente isso o que acontece, pois existem inmeros tipos de patentes para um mesmo produto farmacutico (MSF, 2003b). Isso se d porque os escritrios de patentes, dos diferentes pases, concedem proteo patentria a dezenas de produtos e processos farmacuticos tendo como base critrios poucos rigorosos para a avaliao dos requisitos de novidade, atividade inventiva e aplicao industrial (Correa, 2001).

Se por um lado, argumenta-se que a vantagem de um sistema de patentes o incentivo inovao, por outro, diversos autores vm evidenciando uma enorme crise no setor farmacutico, caracterizada pela entrada de poucos medicamentos considerados inovadores no mercado.

Estudo realizado pelo National Institute of Health Care and Management (NIHCM) evidenciou que, dos 1.035 medicamentos aprovados pelo Food and Drug Administration (FDA) entre 1989 e 2000, 65% possuam princpios ativos j existentes no mercado e, apenas 35% incluam novos princpios ativos. Medicamentos que possuam novas entidades moleculares e apresentavam uma vantagem teraputica evidente representaram apenas 15% de todos produtos aprovados no perodo (NIHCM, 2002b).

Empresas farmacuticas vm se beneficiando do frgil sistema de patentes existente nos diferentes pases para obter a proteo patentria de invenes, cujo monoplio j foi concedido previamente ou que no atendem a um dos trs requisitos de patenteabilidade. Esse tipo de proteo inadequada garante s empresas uma vantagem competitiva, ao dificultar a entrada de concorrentes produtores de medicamentos genricos, para aqueles produtos que j tm mercados consolidados. Essa forma de usar o sistema de patentes pode estar contribuindo para o desestmulo ao desenvolvimento de inovaes por parte das empresas, que passam a focalizar os investimentos na obteno de produtos com pequenas modificaes, mas que podem gerar novas patentes (Correa, 2001). O Quadro 3 apresenta os tipos de patentes obtidas no setor farmacutico.

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Quadro 3. Modalidades de patentes concedidas no setor farmacutico TIPO DE PATENTE CONCEITO

Forma Farmacutica Protege formulaes de uso final contendo determinado produto ou combinaes de produtos. Pode ser a formulao de princpios ativos cujas patentes j expiraram.

Invenes de Seleo Quando um elemento qumico ou grupamento funcional j conhecido se seleciona com a finalidade de obter uma patente sobre a base, por exemplo, a parte de uma molcula no mencionada explicitamente na patente anterior.

Processos Anlogos Processos que no so novos, mas que permitem obter um produto com caractersticas novas.

Combinaes Combinaes de produtos conhecidosIsmeros pticos Aps o patenteamento do racemato (mistura dos dois compostos

qumicos enantimeros), solicita-se a patente para o ismero ativo ou de maior atividade.

Metablitos Ativos Patenteamento do metablito ativo que produz no organismo o efeito desejado de um determinado composto, que j pode ter sido patenteado.

Pr-drogas Composto que se transforma em uma substncia farmacologicamente ativa, quando metabolizado no organismo.

Novos sais Novos sais de compostos conhecidos.Procedimentos de Fabricao

Variantes de procedimentos de fabricao divulgados.

Segundo uso Novos usos de produtos conhecidosFonte: Adaptado Correa, 2001

Cabe citar, a ttulo de exemplo, o caso da paroxetina. Este medicamento, cuja ao antidepressiva, foi primeiramente patenteado em 1977 pela empresa S/A Ferrosan. A patente fazia uma referncia genrica forma bsica do composto e aos seus sais farmaceuticamente aceitveis.

Entre os anos de 1979 e 1985 diversos artigos cientficos evidenciaram que a forma cloridrato de paroxetina possua o melhor perfil farmacocintico. No intuito de prolongar o monoplio do princpio ativo, a ento empresa licenciada, Beechman, entrou com uma srie de pedidos de patentes no perodo de 1985 a 1998, entre os quais, um para o cloridrato de paroxetina hemihidratado, um para quatro formas diferentes de paroxetina, um para o cloridrato de paroxetina amorfo obtido segundo a tcnica de spray dried, um para paroxetina base em forma cristalina, um para sais de paroxetina com cidos selecionados. Muitos desses pedidos eram de patentes de processos que, segundo a literatura demonstra, so absolutamente triviais no mbito da qumica. Dessa forma, a Beechman, que atualmente a SmithKline Beechman, conseguiu estender o monoplio conferido pela patente do cloridrato de paroxetina at o ano de 2006. Ou seja, o produto que j deveria estar no domnio pblico em 1997 est protegido contra a entrada de novos concorrentes no mercado (Correa, 2001).

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Desta forma, importante que cada pas identifique a melhor poltica para conferir proteo patentria a invenes que caracterizem reais inovaes, descartando aquelas que tm como objetivo apenas bloquear a competio e cuja adequao aos requisitos de patenteabilidade questionvel (Correa, 2001).

Nesta perspectiva, com o intuito de prevenir a concesso de monoplios injustificveis que podem implicar no aumento do preo de medicamentos, o Brasil incluiu a Agncia Nacional de Vigilncia Sanitria (ANVISA) no processo de anlise dos pedidos de patentes para produtos e processos farmacuticos, estabelecendo o instituto da anuncia prvia, previsto no artigo 229-c da Lei 10.196/2001.

2.6. Os mecanismos que podem tornar a legislao de propriedade industrial menos sensvel sade pblica TRIPS-plus

O Acordo TRIPS estabelece padres mnimos sobre a proteo da propriedade intelectual e no impede que pases elaborem legislaes mais restritivas. Conforme explicita o artigo 1: Os Membros podero, mas no so obrigadas a prover, em sua legislao, protees mais amplas que a exigida neste Acordo, desde que tal proteo no contrarie as disposies deste Acordo no mbito de seus respectivos sistema e prtica jurdicos (WTO, 1994).

Os tratados de livre comrcio bilaterais e regionais que vm sendo negociados e assinados entre os Estados Unidos e pases em desenvolvimento e desenvolvidos esto incluindo um captulo sobre direitos de propriedade intelectual, o qual dispe sobre uma srie de dispositivos mais restritivos que aqueles previstos no Acordo TRIPS e, por isso, so denominados TRIPS-plus (Drahos, 2001).

Entre eles, podem ser destacados aqueles diretamente relacionados ao setor farmacutico e que podem ser menos favorveis ao setor sade, tais como: (a) vigncia das patentes acima de 20 anos, (b) linkage entre patentes e registro, (c) restries para o uso de licenas compulsrias, (d) proteo dos dados no divulgados para a obteno de registro sanitrio, (e) restries para a matria patentevel e (f) revogao das patentes (Jorge, 2004).

O mecanismo de linkage entre patentes e registro refere-se impossibilidade de produtores de verses genricas de medicamentos obterem a aprovao de um registro sanitrio para a comercializao de um produto quando este ainda estiver protegido por patente. Este mecanismo est previsto nos tratados de livre comrcio entre os EUA e Singapura, EUA e Chile e EUA e Amrica Central (Jorge, 2004).

O mecanismo de proteo dos dados no divulgados para a obteno de registro sanitrio, que ser chamado na presente dissertao de proteo dos dados, refere-se ao artigo 39 do Acordo TRIPS, que trata da proteo da informao confidencial, contra

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a competio desleal. O seu pargrafo 3 estabelece que Os Membros que exijam a apresentao de resultados de testes ou outros dados no divulgados, cuja elaborao envolva esforo considervel, como condio para aprovar a comercializao de produtos farmacuticos ou produtos agrcolas qumicos que utilizem novas entidades qumicas protegero esses dados contra seu uso comercial desleal. Ademais, os Membros adotaro providncias para impedir que esses dados sejam divulgados, exceto quando necessrios para proteger o pblico, ou quando tenham sido adotadas as medidas para assegurar que os dados sejam protegidos contra o uso comercial desleal (WTO, 1994).

Os testes aos quais se refere o pargrafo so aqueles que provam a segurana e eficcia da nova entidade molecular. Inicialmente, so realizados os ensaios em animais para definir os perfis farmacocinticos, farmacodinmicos e toxicolgicos. Posteriormente, so realizados os ensaios clnicos de fase I, II, e III. A fase I envolve um pequeno nmero de pessoas saudveis (50 a 100) e busca evidncias sobre a farmacocintica, tolerncia e segurana dos medicamentos. A fase II, que j inclui pessoas doentes, envolve dois ou mais grupos (100 a 200 pessoas) e tem como objetivo principal evidenciar a eficcia e segurana do medicamento em grupos controlados. Os estudos de fase III, considerados os mais onerosos, so aqueles realizados em larga escala (1.000 a 3.000 pessoas) para evidenciar efeitos da exposio prolongada do medicamento. Em mdia, so consumidos cinco anos para a realizao destes trs ensaios, sem contar com o tempo levado para o desenvolvimento da nova entidade molecular e sua realizao dos ensaios pr-clnicos (Oliveira et al., 2001; Correa, 2002).

A apresentao das informaes referentes a esses ensaios condio obrigatria para solicitao de registro para comercializao de um produto composto por uma nova entidade molecular. Uma parte delas est no domnio pblico e no representa despesas para a empresa registrante. Outras informaes so realizadas pela prpria empresa e, por isso, so protegidas contra o uso comercial desleal (Barbosa, 2003b).

O Acordo TRIPS em nenhum momento estabelece a impossibilidade de produtores de medicamentos similares ou genricos registrarem seus produtos sem ter que apresentar os dados sobre segurana e eficcia realizados e apresentados pela empresa detentora do primeiro registro. A informao apresentada ao rgo sanitrio regulador no divulgada, mas sim aproveitada como referncia para a obteno de novos registros de produtos similares.

O que vem sendo proposto nos tratados de livre comrcio um prazo de cinco anos de exclusividade da informao no divulgada pelo primeiro registrante. Isso significa que o pedido de registro para produtos similares no poder ter como referncia essas informaes no divulgadas por um prazo de cinco anos. Conforme discute Jorge (2004), este mecanismo cria um tipo de monoplio mesmo quando o produto no mais protegido por patentes. Ou seja, mais uma forma de barreira para a entrada de concorrentes de medicamentos genricos no mercado.

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Os tratados de livre comrcio assinados entre EUA e Jordnia, EUA e Singapura, EUA e Chile o e Tratado de Livre Comrcio da Amrica do Norte (NAFTA), que envolve os EUA, Canad e Mxico, incluem essa proteo (Jorge, 2004).

2.7. Estudo de Caso e Anlise de Interveno

O estudo de caso realizado quando o objeto da pesquisa no pode ser dissociado de seu contexto. Esse o caso da incorporao do Acordo TRIPS nas legislaes nacionais, pois, a forma como a internalizao ocorreu, variou em funo do contexto poltico e social de cada pas. Por esta razo, a estratgia de investigao uma anlise de interveno, situada no campo da pesquisa avaliativa.

Segundo Hartz (1997), o ato de avaliar consiste em fazer o julgamento de valor de uma determinada interveno ou de alguns de seus componentes, a fim de orientar ou auxiliar a tomada de deciso. A avaliao pode ser de dois tipos, a Avaliao Normativa e a Pesquisa Avaliativa. Esta ltima pode ser definida como um procedimento que consiste em fazer julgamento ex-post de uma interveno usando mtodos cientficos (Hartz, 1997:37) e realizada quando o objetivo o de examinar, por um procedimento cientfico, as relaes existentes entre os diferentes componentes de uma interveno. A Pesquisa Avaliativa pode ser decomposta em seis tipos de anlises, sendo que a mais adequada ao presente estudo a Anlise de Interveno, cujo objetivo o de analisar a relao entre os objetivos da interveno e os meios empregados (Hartz, 1997: 38).

Por interveno entende-se o conjunto dos meios (fsicos, humanos, financeiros, simblicos) organizados em um contexto especfico, em um dado momento, para produzir bens e servios com o objetivo de modificar uma situao problemtica (Hartz, 1997:31). Neste estudo considera-se interveno a incorporao dos dispositivos previstos no Acordo TRIPS que tm relao com as polticas de acesso a medicamentos nas legislaes nacionais de propriedade industrial.

Os elementos legais que favorecem as polticas de acesso a medicamentos podem ser considerados como sendo os objetivos da interveno, ou seja, o que se espera que seja incorporado nas legislaes nacionais. O quanto os objetivos da interveno foram alcanados, ser observado atravs da anlise da legislao de propriedade industrial de cada pas, tendo como referncia o instrumento de anlise elaborado para este fim. Assim, espera-se que seja possvel, fazer o julgamento da legislao de cada pas.

A construo do instrumento para a anlise teve como base o conceito de legislao de propriedade industrial sensvel sade, definido por Carlos Correa (2000) em sua publicao Integrating public health concerns into patent legislation in developing countries. Para a sua elaborao utilizou-se uma tcnica de consenso de especialistas.

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2.8. Pases selecionados

Decidiu-se estudar pases da Amrica Latina e Caribe por este ser o escopo de pases abrangidos pelo Centro Colaborador da OPAS/OMS, onde a autora desenvolve suas atividades de pesquisa. Adotou-se os seguintes critrios para a seleo dos pases: (a) ter reformado a legislao de propriedade industrial aps a entrada em vigor do Acordo TRIPS (b) possuir a legislao disponvel em pginas eletrnicas;

Tambm foram coletadas, quando foi possvel encontrar em pginas eletrnicas, legislaes referentes proteo de informao confidencial e prpria regulamentao da legislao de propriedade industrial.

2.9. O instrumento de anlise das Legislaes de Propriedade Industrial

A construo do instrumento para a anlise das legislaes foi feita utilizando-se a tcnica de consenso de especialistas, o que incluiu a atribuio de escores a cada elemento legal. Espera-se que tal atribuio guarde relao direta com o grau de importncia do mesmo para a poltica de acesso a medicamentos.

H poucos especialistas que entendam tanto da dimenso propriedade intelectual como da dimenso acesso a medicamentos e, por essa razo, foi necessria a identificao de uma tcnica que no exigisse o encontro dos mesmos para a obteno do consenso. Dos diferentes mtodos existentes, o Mtodo Delfos foi o que melhor se aplicou a essa limitao do estudo (Souza et al., 2004), pois permitiu que os especialistas respondessem individualmente aos questionrios e os enviassem por correio eletrnico.

Delbecq (1995) apud Spnola (1997: 3) define Delfos como um mtodo para solicitao sistemtica de dados e atribuio de julgamentos a um determinado assunto, atravs de um conjunto seqencial de questionrios cuidadosamente construdos, intercalados com um sumrio de informaes e suprimento de opinies derivadas de respostas anteriores.

importante ressaltar que no h uma tcnica de consenso de especialistas que, ao mesmo tempo, estimule a busca de um consenso genuno, permita a ampla discusso entre os especialistas, preserve o anonimato dos participantes e seja de fcil realizao. Todas elas apresentam alguns destes aspectos bem desenvolvidos e, outros, pouco (Souza et al, 2003). Isso tambm acontece no caso do Mtodo Delfos, pois, embora ele seja ideal para a obteno de consenso nas circunstncias do presente estudo, apresenta algumas desvantagens, descritas no Quadro 4, as quais explicam algumas das limitaes apresentadas no desenvolvimento do presente trabalho.

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Quadro 4. Vantagens e desvantagens da aplicao do Mtodo Delfos.

MTODO DELFOSVANTAGENS DESVANTAGENS

Inexistncia de interferncia de personalidade (no h confronto pessoal, com influncias de prestgio, status, persuaso)

Dificuldade na caracterizao do especialista

O anonimato das respostas dos informantes favorece a emisso de opinies com maior franqueza, alm de encorajar a exteriorizao de opinies reais

Dificuldade na determinao do que ser consenso

Propicia uma atualizao entre os participantes, promovendo uma atualizao geral mtua atravs do retorno de informaes pelos questionrios

Pouco retorno dos questionrios

Impossibilidade de esclarecimentos ou discusso quanto s discrepncias

Fonte: Adaptado Spnola (1984), (1997).

2.10.Da elaborao e teste do questionrio construo do instrumento de anlise

Inicialmente foi elaborado um questionrio (Anexo 1) contendo trs perguntas, sendo duas abertas e uma fechada. O objetivo da primeira questo (aberta) era saber de cada especialista qual era a melhor forma para alcanar o equilbrio entre os direitos dos titulares das patentes de produtos e processos farmacuticos e a capacidade do Estado em garantir o acesso a medicamentos, no contexto do Acordo TRIPS da OMC. A segunda questo pedia que o especialista citasse as flexibilidades e salvaguardas que pudessem favorecer as polticas de acesso a medicamentos. A terceira pergunta pedia que fossem atribudos valores (zero a dez), a cada uma das flexibilidades citadas na segunda questo, definindo, assim, o grau de importncia de cada uma delas.

Foi realizado um pr-teste mediante aplicao do questionrio em cinco profissionais da rea de polticas farmacuticas, que tinham algum conhecimento sobre o tema de propriedade intelectual e acesso a medicamentos. O objetivo do teste foi averiguar se o mesmo era breve, conciso, se guardava relao direta com o assunto a ser estudado, se sua linguagem era simples e se as perguntas induziam as respostas dos especialistas (Spnola, 1984).

As respostas foram analisadas e os participantes foram perguntados quanto ao entendimento das perguntas, s dificuldades encontradas em responder, ao tempo levado para o preenchimento e a possveis sugestes. A primeira pergunta deu margem a diversos tipos de respostas e pode-se verificar que no estava adequadamente elaborada. Foi possvel atingir um certo grau de consenso com as respostas das segunda e terceira questes. O tempo gasto no preenchimento do questionrio variou entre quinze e vinte

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minutos. Foi sugerido que as segunda e terceira questes fossem condensadas em apenas uma.

No novo questionrio (Anexo 2) foram includas mais duas perguntas abertas e uma fechada. As duas abertas, tinham como objetivo ampliar o espao para que o especialista pudesse incluir aspectos por ele considerados importantes sobre a incorporao de flexibilidades do TRIPS nas legislaes nacionais, assim como, incluir mecanismos legais que pudessem tornar a legislao menos favorvel implementao de polticas de acesso a medicamentos. A pergunta fechada pretendia que o especialista ordenasse, por grau de importncia, as condies sob as quais uma licena compulsria deveria ser implementada. As questes anteriormente elaboradas foram modificadas para melhor entendimento do respondente. Ao invs de pedir que cada especialista enumerasse as flexibilidades importantes e, depois, atribusse notas, algumas foram listadas no questionrio, pedindo-se apenas que eles atribussem as notas. Para no limitar o escopo de possibilidades s flexibilidades apresentadas, foi permitido que o especialista incorporasse outras que julgasse importante. Caso no considerasse importante alguma das apresentadas, podia atribuir nota zero.

O passo seguinte consistiu na elaborao de uma carta convite (Anexo 3) para os especialistas, que apresentava uma breve descrio dos objetivos do estudo. Todo o material foi submetido ao Comit de tica em Pesquisa da Escola Nacional de Sade Pblica Srgio Arouca/FIOCRUZ e traduzido para o ingls.

Os participantes potenciais e seus respectivos endereos eletrnicos foram identificados. O material foi enviado para onze pessoas. Foram obtidas sete respostas, sendo trs de participantes internacionais e quatro de participantes brasileiros. As respostas das perguntas abertas foram listadas e as das perguntas fechadas foram tabuladas em planilha Excel.

A primeira questo possibilitou que os especialistas citassem todas as flexibilidades e salvaguardas que deveriam ser incorporadas em uma legislao de propriedade industrial sensvel as polticas de acesso a medicamentos. O Quadro 5 apresenta os itens citados por mais de um especialista e por apenas um deles.

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Quadro 5. Freqncia de citao de elementos legais na 1 pergunta do 1 questionrio

A partir deste resultado foi elaborada a primeira questo do segundo questionrio

(Anexo 4), a qual solicitava que os especialistas marcassem, dentre os elementos citados, aqueles que considerassem importantes, possibilitando a concordncia ou no com questes que ele no havia citado previamente.

Em relao segunda questo, foram obtidas as mdias das notas dadas a cada uma das flexibilidades apresentadas. Por esses valores, foi possvel observar consenso quanto ao grau de importncia dado pelos participantes a cada uma delas. Alm disso, foram incorporados mais alguns itens como: (a) no incluso da proteo dos dados; (b) no incluso do linkage entre patentes e registro; (c) no incluso de vigncia das patentes maior que 20 anos; (d) incluir representantes do setor sade no processo de anlise dos pedidos de patentes farmacuticas.

A segunda questo do segundo questionrio incluiu estes quatro itens, alm daqueles j presentes no primeiro, para que os especialistas pudessem atribuir notas aos mesmos.

A terceira questo pretendia apenas dar um espao para o especialista apresentar algum outro ponto considerado relevante. Como resposta, foram sugeridas referncias relativas ao tema; ressaltou-se a necessidade de maior considerao das questes de sade no mbito das negociaes relativas ao comrcio e de maior sensibilizao dos poderes legislativos e judicirios para as questes relativas ao acesso a medicamentos. Nenhuma nova pergunta foi elaborada a partir dela, mas os resultados serviram para enriquecer a discusso dos resultados das anlises das legislaes.

Muitas respostas da quarta questo foram repetidas e no houve nenhum ponto absolutamente discrepante, o que evidencia um certo grau de consenso quanto aos possveis mecanismos que possam tornar uma legislao de propriedade industrial menos sensvel s polticas de acesso a medicamentos.

As respostas da quinta questo foram tabuladas em planilha Excel. Buscou-se identificar se houve consenso para cada um dos itens. Por exemplo, foi contado o nmero de vezes que o item interesse pblico foi considerado o mais importante, ou

Itens que foram citados por mais de um especilista

Itens citados apenas por um especialista

Licena Compulsria Implementao da Declarao de Doha na legislao Nacional

Importao Paralela Excluir a proteo dos dados na legislao nacionalImplementao na legislao nacional da Deciso da OMC de 30 de agosto sobre a implementao do pargrafo 6 de Doha

Perodo de transio

Exceo Bolar No patenteabilidade de mtodos, diagnsticos teraputicos e cirrgicos para o tratamento de seres humanos e animais

Uso experimental No privilegiabilidade de matria biolgica

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seja, o nmero de vezes que ele recebeu o ordenamento 1. De qualquer forma, no foi possvel encontrar consenso neste item. Por conta da limitao da tcnica de Delfos, no foi possvel esclarecer as diferenas das respostas e, assim, chegar a um consenso.

Os resultados obtidos foram compilados em uma carta-resumo (Anexo 5) para cada um dos respondentes, acompanhada do segundo questionrio. Este possua duas perguntas fechadas, conforme discutido anteriormente.

Os sete especialistas (100%) que receberam o segundo questionrio deram retorno. Foi obtido um altssimo grau de consenso na primeira pergunta. Os valores atribudos a cada um dos itens apresentados na segunda pergunta foram tabulados em planilha Excel. Em seguida, foram calculados os valores mdios atribudos a cada uma das flexibilidades apresentadas e os respectivos desvios-padro.

Alguns itens (no permitir linkage entre patentes e registro, no permitir que a vigncia das patentes seja maior que 20 anos, excluir a proteo dos dados e perodo de transio para o reconhecimento de patentes no setor farmacutico) foram includos no segundo questionrio conforme sugesto dos especialistas. Aos itens que tornam a legislao menos sensvel s polticas de acesso a medicamentos, foi atribudo nota inteira, quando no previstos na legislao e, nota zero, quando previstos.

Concluindo, para que cada legislao pudesse receber no mximo nota cem, o valor positivo era dado nos casos em que a lei previa os dispositivos favorveis sade e quando ela no previa os dispositivos TRIPS-plus.

2.11. Anlise das Legislaes de Propriedade Industrial

A anlise das legislaes selecionadas de cada pas foi feita mediante leitura e identificao de cada um dos mecanismos presentes no instrumento de anlise. Em seguida, os valores foram tabulados em planilha Excel.

A identificao do item perodo de transio para o reconhecimento de patentes no setor farmacutico apresentou duas limitaes. A primeira estava no fato de que, possivelmente, alguns pases j reconheciam patentes para o setor farmacutico no perodo anterior ao Acordo TRIPS e, para confirmar esta hiptese, dever-se-ia analisar cada uma das legislaes anteriores atual. No entanto, no foi possvel identificar todas essas legislaes em pginas eletrnicas. A segunda estava no fato de que o pas realmente no incluiu nenhum artigo referente a este perodo de transio e passou a reconhecer patentes para o referido setor a partir da entrada em vigncia da nova legislao.

Por essas razes e tambm pelo fato desse item ser considerado pelos especialistas como um item transitrio de importncia inferior aos demais, atribui-se nota zero em todos os casos como forma de padronizar os resultados. Ou seja, a nota mxima que cada pas poderia obter era de 94,7%. Foram discutidos isoladamente os pases que previram o perodo de transio em suas legislaes.

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O escopo de condies para emisso de licena compulsria foi identificado em cada legislao como forma de enriquecer o trabalho.

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3. A Evoluo do Sistema Internacional de Propriedade Intelectual

O presente captulo pretende descrever a evoluo do sistema internacional de propriedade intelectual, considerando trs momentos distintos: (1) o perodo da Conveno da Unio de Paris (CUP) e Conveno da Unio de Berna (CUB), (2) o perodo do Acordo TRIPS e (3) o perodo ps-TRIPS, caracterizado pela assinatura de acordos bilaterais e regionais.

A CUP e a CUB no deixaram de estar vigentes no perodo do Acordo TRIPS e ps-TRIPS, assim como o Acordo TRIPS no deixou de estar vigente no perodo ps-TRIPS. A presente diviso teve como objetivo melhor caracterizar os diferentes contextos apresentados, nos diferentes perodos, pelas transformaes do sistema internacional de propriedade intelectual.

Como a presente dissertao tem como objeto a anlise das legislaes de propriedade industrial, foi dada maior nfase esta rea dos DPI. A rea do Direito do Autor no foi aprofundada.

3.1. A Conveno da Unio de Paris e a Conveno da Unio de Berna

A primeira Lei de Patentes foi promulgada em 1474 no Estado de Veneza. Ela garantia aos inventores o direito exclusivo e temporrio de produzir sua inveno. Na prtica, isso lhes possibilitava o controle da produo de seus produtos. No entanto, tal controle era perdido no momento da comercializao. Ao chegar no mercado, os produtos recebiam marcas ou emblemas que os diferenciava, permitindo que a distribuio fosse, ento, controlada pelos comerciantes. A fim de controlar no somente a produo, mas tambm a distribuio de seus produtos, os produtores buscaram ser identificados nos bens disponibilizados no mercado. Dessa forma, a partir da necessidade de controlar a distribuio de produtos, surgiu o sistema de marcas (Bem-Ami, 1983, apud Bermudez, 2000).

A Propriedade Industrial nasceu no sculo XIX, aps a Revoluo Industrial, permitindo que industriais controlassem tanto sua produo, mediante a existncia do sistema de patentes, como a distribuio de suas invenes, com o uso do sistema de marcas. Naquela poca, no havia um sistema internacional de propriedade industrial. Cada pas tinha autonomia para definir sua legislao e, por isso, uma inveno sob proteo patentria em um pas podia ser apropriada por outro sem que isso caracterizasse uma infrao.

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Durante o sculo XIX, vrios pases elaboraram legislaes nacionais de propriedade intelectual. As diferenas existentes entre elas desencadearam conflitos decorrentes do fato de um pas conceder proteo para uma determinada rea que outro no concedia. Assim, este ltimo tinha vantagens na explorao do invento estrangeiro no protegido em seu pas.

Por essa razo, Barbosa (2003b) define que um sistema de propriedade de bens imateriais deve ser, necessariamente, de cunho internacional. A internacionalizao da propriedade industrial possibilitaria a insero de centros produtores em diversas regies do planeta, onde a nova tecnologia poderia ser explorada contando com uma mo-de-obra qualificada local e um melhor acesso matria-prima, viabilizando, assim, a obteno de produtos com qualidade e preos menores.

A primeira busca pela harmonizao dos direitos de propriedade industrial ocorreu em 1883 com a realizao da Conveno da Unio de Paris, que envolveu diversos pases. Constituiu-se Unio porque representava um espao comum de direito. Direito este baseado nos seguintes princpios: (1) Independncia das Patentes; (2) Tratamento Igual para Nacionais e Estrangeiros e (3) Direitos de Prioridade (Di Blasi et al., 2002).

A Independncia das Patentes significa que a patente concedida em um pas no tem relao alguma com a patente concedida em outro pas. Ou seja, a patente um ttulo cuja validade nacional.

O princpio de Tratamento Igual para Nacionais e Estrangeiros garante que todos os pases signatrios da Unio tenham as mesmas vantag