O s reflexoas do eu em mulher no espelho de helena parente cunha

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO CAMPUS XIV COLEGIADO DE LETRAS COM HABILITAÇÃO EM LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS LICENCIATURA SANDRA KELLY SOUZA SANTOS OS REFLEXOS DO EU EM MULHER NO ESPELHO DE HELENA PARENTE CUNHA Conceição do Coité 2012

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB

DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO – CAMPUS XIV COLEGIADO DE LETRAS COM HABILITAÇÃO EM LÍNGUA PORTUGUESA E

LITERATURAS – LICENCIATURA

SANDRA KELLY SOUZA SANTOS

OS REFLEXOS DO EU EM MULHER NO ESPELHO DE

HELENA PARENTE CUNHA

Conceição do Coité

2012

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SANDRA KELLY SOUZA SANTOS

OS REFLEXOS DO EU EM MULHER NO ESPELHO DE

HELENA PARENTE CUNHA

Monografia apresentada ao Departamento de

Educação, Campus XIV, Curso de Letras com

Habilitação em Língua Portuguesa e Literaturas

- Licenciatura, da Universidade do Estado da

Bahia (UNEB), como instrumento da avaliação

final do Componente Curricular Trabalho de

Conclusão de Curso (TCC) para obtenção do

grau de licenciada.

Orientadora: Profa. Dra. Itana Nogueira.

Conceição do Coité

2012

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A mente é tudo

A mente é a força mestra que modela e faz

E o homem é mente, e cada vez mais empunha

O instrumento do pensamento e, afeiçoando o que quer,

Produz mil alegrias, mil males _

Reflete em segredo e o que ele pensa acontece:

O ambiente nada mais é do que o seu espelho.

Anônimo

Espelho

Queria não ter tanto pra escrever, ser sempre leve.

Mas tudo pra mim é vidro...

Vejo tudo através dele,

Não apenas o que está ao alcance,

Mas o que nele está contido.

É quase um dom, mas às vezes não,

Às vezes é só delírio.

Pois a imagem, quando atravessa,

Nem sempre permanece o que era.

Quase sempre quem vê ao espelho,

Vê ao inverso, ou do avesso.

Às vezes o avesso é o que mais se aproxima da realidade.

Mas, na maioria das vezes, o avesso, é só o avesso.

Nada tem de verdade.

Súlzer Larissa Germano

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Dedico este trabalho primeiramente a minha família, por sempre estar

presente nos momentos difíceis, dando-me força para vencer as

batalhas que a vida oferece e nos momentos alegres, principalmente a

minha mãe, Iracema Carneiro que é um exemplo de vida. Dedico

também aos professores da faculdade principalmente a Itana Nogueira

e os professores das escolas onde estudei, pois contribuíram com seus

méritos de forma complacente no que sou hoje.

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AGRADECIMENTOS

A DEUS pela acolhida nas horas em que mais preciso, pela benção de nascer,

conhecer e viver com pessoas especiais. Pelas alegrias, pela força e coragem de

vencer os obstáculos e nunca desistir dos sonhos. Agradeço-o por oportunizar

diversas portas que se abrem na vida, que trazem um crescimento profissional e

principalmente pessoal.

A MINHA FAMÍLIA pelo apoio nas horas em que mais preciso: pais, primos, tios,

avós, especialmente a minha mãe, IRACEMA CARNEIRO DOS SANTOS, pessoa

mais importante que Deus colocou em minha vida. Obrigada mãe por me fazer

existir, permanecendo carregada pela força que vem de você. Como também, minha

avó, MARIA SOUZA SANTOS e minha tia IRACY CARNEIRO DOS SANTOS

MIRANDA.

A Orientadora Prof.ª Dr.ª ITANA NOGUEIRA NUNES, por sempre estar apoiando e

incentivando a construir. Uma pessoa coadjuvante, que compartilha seus saberes e

mostra que “nada se perde”. Obrigada por oportunizar o espaço de expor opiniões e

sentimentos. Como também aos professores DEIJAIR FERREIRA e SAYONARA

AMARAL pelas orientações de grande valia.

Aos colegas de classe, principalmente, MÔNICA DE OLIVEIRA SOUZA, ROSANA

CRISTINA LIMA DA SILVA E ELIANE LIMA DOS SANTOS. Obrigada por

compartilhar momentos difíceis e momentos alegres. Nossos momentos divertidos

ficarão para sempre. Momentos de risos deixarão saudade, porém a amizade será

eterna.

Às pessoas que de certa forma deixaram suas marcas, direta ou indiretamente. Às

pessoas que conheci através da graduação, aos colegas de trabalho, aos parceiros

do PIBID.

Enfim, agradeço a todos, que de fato contribuíram na construção da pessoa que sou

hoje.

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RESUMO

O presente trabalho analisa os reflexos do eu na obra Mulher no Espelho, da escritora Helena Parente Cunha, investigando a (des)construção da imagem feminina e seus conflitos identitários através dos espelhos. A obra é escrita em primeira pessoa, possibilitando a narradora construir um diálogo entre dois mundos, no qual a personagem apodera-se do inconsciente para liberar seus desejos e acaba constituída por múltiplas identidades refletidas no espelho. Para desenvolver o trabalho, utiliza-se a pesquisa bibliográfica embasando-se em Anthony Giddens (2002), David Zimerman (1999), Joel Dor (1989), Carl Jung (1995), Anthony Elliott (1996), Afrânio Coutinho (2004), Nelly Coelho (1999), Nicole Bravo (1998), Beth Brait (1985) e outros que, em suas obras retratam a literatura contemporânea, o espelho, o consciente e inconsciente, além da análise de romance. A partir dessa abordagem, foi possível constatar o jogo de manipulação utilizada no discurso da narrativa dentro do mundo fictício, proporcionando a revelação das múltiplas identidades da mulher através do espelho. Palavras- chaves: Literatura. Espelho. Mulher.

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ABSTRACT

This paper analyzes the reflections of the work The Woman in the Mirror, the writer Helena Parente Cunha, whose objective is to investigate the (de) construction of the female image and his identity conflicts through the mirrors. The work is written in first person, allowing the narrator to build a dialogue between two worlds, in which the character takes hold of the unconscious to release their desires and ends consisting of multiple identities reflected in the mirror. To develop the work, we use the literature basing on Anthony Giddens (2002), David Zimerman (1999), Joel Dor (1989), Carl Jung (1995), Anthony Elliott (1996), Afranio Coutinho (2004), Nelly Coelho (1999), Nicole Bravo (1998), Beth Brait (1985) and others who, in his works portray contemporary literature, the mirror, the conscious and unconscious, beyond the analysis of the novel. From this approach, we could see the game of manipulation used in the discourse of narrative within the fictional world, providing the revelation of the multiple identities of women through the mirror. Keywords: Literature. Mirror. Women.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO -----------------------------------------------------------------------------------------08

1 O ESPELHO DA MULHER ----------------------------------------------------------------------10

1.1 O jogo dos espelhos -----------------------------------------------------------------------------10

1.2 O limite entre o consciente e o inconsciente ----------------------------------------------15

1.3 Autoria feminina ----------------------------------------------------------------------------------19

2.1 Diálogos no espelho -----------------------------------------------------------------------------22

2.2 Imagens duplicadas e múltiplas identidades ----------------------------------------------26

CONSIDERAÇÕES FINAIS ------------------------------------------------------------------------34

REFERÊNCIAS

O CONFLITO DA PERSONAGEM NO ROMANCE MULHER NO ESPELHO DE

HELENA PARENTE CUNHA --------------------------------------------------------------------22

2

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INTRODUÇÃO

A Literatura Contemporânea possui um vasto grau de heterogeneidade,

caracterizada por mostrar uma diversidade de temáticas e estilos, a partir dos

conhecimentos estéticos de períodos passados e a continuidade através do caráter

renovador, ao fazer do velho um espaço de apoio para os novos talentos.

É por meio da cultura literária contemporânea que se destacam as relevantes

crises do eu feminino na obra Mulher no Espelho, da escritora baiana Helena

Parente Cunha, cuja narrativa traça a desconstrução da imagem feminina e seus

conflitos identitários através dos espelhos. A personagem apodera-se do

inconsciente para liberar seus desejos e acaba constituída por múltiplas identidades

que se refletem no espelho, utilizado na tentativa de autoanálise e liberdade interior.

Este comportamento é indagado a partir de estudos da psicanálise, para discutir as

introspecções dos indivíduos. A dupla personalidade da mulher é movida pelos

devaneios de uma família tradicional, submissa ao pai, ao marido e aos filhos. O seu

inconsciente luta por seus sonhos reprimidos e por sua liberdade, uma imagem que

se apresenta através de um espelho e questiona a atitude da personagem real.

O desígnio é investigar o conflito e a fragmentação do sujeito contemporâneo,

representado pela duplicidade da personagem através de seu reflexo no espelho.

Para tanto, utiliza-se o princípio da argumentação como método básico para

justificar as discussões aqui propostas. A pesquisa utilizada é a bibliográfica, que

permite uma revisão alicerçada em fundamentações teóricas que apresentam

discussões sobre identidades relacionadas à figura da mulher na

contemporaneidade. Nessa perspectiva, algumas hipóteses podem ser levantadas

sobre a discussão pautada na figura feminina: o espelho pode ser o limite entre o

consciente e o inconsciente da personagem; pode ser também a única saída para a

personagem se debruçar e questionar-se buscando o reflexo como conforto.

Para o desenvolvimento do trabalho retoma-se as ideias de alguns

investigadores que dialogam com a temática em questão. Deste modo, encontram-

se aqui citações de autores como: Anthony Giddens (2002), Joel Dor (1989),

Anthony Elliott (1996), Carl Gustav Jung (1998), David E. Zimerman (1999), Alberto

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Tallaferro (2001), Zeferino Rocha (2008), Afrânio Coutinho (2004), Nelly Novaes

Coelho (1999), Nicole Fernandez Bravo (1998), Beth Brait (1985), entre outros com

a finalidade de empreender as teorias que baseiam os estudos literários. Além do

texto principal, o romance Mulher no Espelho, de Helena Parente Cunha, tem-se

também como base de sustentação para o objeto desse estudo, o conto O Espelho,

de Machado de Assis, a poesia Retrato, de Cecília Meireles e a tela Moça na frente

do espelho, de Pablo Picasso.

A monografia está estruturada em dois capítulos. No primeiro, há uma

explanação teórica sobre o termo espelho. Além de, uma investigação psicanalítica

preliminar, discutindo a formação e desconstrução identitária do indivíduo através do

espelho, que necessariamente estão pautadas na literatura contemporânea. O

segundo capítulo trata da análise da obra Mulher no Espelho. Os desfechos serão

apontados e justificados a partir das obras de criação, que seguem dialogando com

o objeto espelho no qual as personagens se buscam, refletindo seus inconscientes.

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1 O ESPELHO DA MULHER

A obra de Helena Parente Cunha, Mulher no Espelho, é o retrato de uma

personagem feminina, cuja identidade fragmentada pelas suas tentativas frustradas

de buscar a sua verdadeira personalidade, aparece em todo o corpo do romance

como uma figura atormentada a procura de respostas.

O seu descontentamento e insatisfação que estão refletidos nas suas ações

e pensamentos são as bases nas quais a autora empreende a sua discussão sobre

o eu feminino para abordar temas como: as múltiplas identidades; os limites entre o

consciente e o inconsciente; a realidade e a imaginação e finalmente os reflexos

obtidos como tais respostas através do espelho.

É nos textos literários que o espelho atua com maior intensidade nos

desenlaces das histórias das personagens que se autorefletem, na tentativa de

expor seus desejos e de refletirem sobre suas próprias vidas.

1.1 O jogo dos espelhos

Segundo Zimerman (1999) o espelho é um elemento que está

constantemente vinculado a áreas como a mitologia, a ciência, a religião e a

literatura. Tem sido considerado ao longo dos tempos como objeto causador de

tristezas, sofrimentos, mortes, mas também de alegrias, luzes, e outros símbolos

positivos, além de ser a chave do reconhecimento ou das fragmentações de um eu,

a depender da crença de cada indivíduo.

Desde muito tempo, o espelho é utilizado como objeto do reflexo. Antes

mesmo da utilização do vidro como espelho, a humanidade primitiva usava das

águas paradas como forma de refletir suas próprias imagens e constituir crendices

relacionadas ao espelhar do corpo e da alma.

As crendices populares estenderam-se até os dias atuais, e muitas pessoas

acreditam que o espelho pode ser um objeto que desperte o mal e o demônio.

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Segundo Zimerman (1999, p. 185), são crendices populares: “[...] ‘criança que se

olha no espelho custa a falar’; ‘espelho quebrado é sinal de morte’; olhar-se no

espelho a noite é perigoso: pode-se ver o diabo’ [...]”. O espelho tem a função de

refletir imagens através do olhar, e toda essa construção é fruto da imaginação e de

todos estes preconceitos estabelecidos.

Para Ferreira (1999, p. 814) “[...] os olhos são o espelho da alma [...]”. É

através do olhar que se visualiza a alma de um ser, seus pensamentos e suas

ações.

Também nas referências bíblicas, tem-se o olhar como possível causador

imparcial da destruição do sujeito, que, pela curiosidade e pela desobediência, pode

provocar um fim trágico. A história bíblica da esposa de Ló é um dos clássicos

exemplos, pois ela voltou-se para ver a destruição de Sodoma e Gomorra, onde

deixou suas jóias preciosas. Dessa maneira, verifica-se no evangélico de Lucas

(17:31-2) das escrituras sagradas: “Quem estiver no terraço e os bens dentro de

casa, não desça para apanhá-los. Também quem estiver no campo, não volte atrás.

Lembrai-vos da mulher de Ló”.

O olhar, nesse caso, é considerado pela religião como pecado. É a história

da mulher que foi castigada pela sua desobediência, tornando-se uma estátua de

sal.

Entretanto, o espelho é também o simbolizador da iluminação, da reflexão

solar, da sabedoria e do reconhecimento. Uma forma de expressão mais forte de um

ser, pois ele remete a claridade, a luz que ilumina a face de um indivíduo. É através

do espelho que as pessoas podem notar suas formas corporais e adentrar através

do próprio olhar na reflexão de seus pensamentos e atitudes. Nesse sentido Dijck

(2004), afirma que:

[...] a palavra ‘espelho’ (speculum= especulação) nomeia um dos artefatos mais antigos [...] tanto remete à observação dos corpos estelares, como lembra a verdade, a sinceridade, a pureza, o conteúdo do coração e da consciência [...] (Não paginado).

1

1 A citação foi extraída do texto Calidoscópio e Hipertexto de Sonia van Dijck (2004), porém, não se

encontra paginado. Disponível em: <http://www.soniavandijck.com/espelhos.htm>.

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O espelho leva o sujeito a observar os componentes do seu interior e do

mundo em que está inserido. Trazendo com os seus vários significados, desde as

reações mais angustiantes às mais fantásticas, transmitindo assim os sentimentos

de cada indivíduo.

A imagem do sujeito é capturada constantemente pelo espelho no momento

em que ele se posiciona na frente do objeto. Essa reflexão se desdobra em uma

dimensão que se pode constatar a imaginação de diversos rostos de um eu2. As

imagens especuladas são frutos da percepção do próprio indivíduo, quando sua

unidade corporal está em outra dimensão, causando-lhe um estranhamento e vários

questionamentos sobre as imagens projetadas diante do espelho. Segundo Sales

(2005), em função disso, há uma necessidade de representação do outro, ou seja, o

indivíduo vê sua imagem formada através da imagem que tem de outros sujeitos.

Assim, o autor (2005) estuda a formulação lacaniana se referido ao que ele chama

“estágio do espelho”. Segundo ele, Lacan usou experimentos comparativos entre o

mundo consciente e inconsciente através do espelhar. Daí parte-se do exemplo de

uma criança que se encontra hesitando entre a realidade e o espaço, ou seja, entre

as imaginações (inconsciente) e uma realidade física (consciente): “[...] o contato

com o espelho é uma experiência provocada pelo psicológico cujo objetivo é

investigar o modo como a criança atinge uma relação adulta normal com a realidade

[...]” (SALES, 2005, p. 118).

O indivíduo ao nascer está sempre em contato com imagens, que se

refletem e constroem a sua própria imagem. No momento em que a criança está

sendo amamentada, ela busca intensamente olhar para o rosto de sua mãe, para

assim estabelecer uma relação de sentido com o seu mundo. Quando a mãe

devolve esse olhar, a criança sente-se amada e acolhida e sua reação é ter a mãe

como próprio espelho. Segundo Joel Dor (1989, p. 81) “[...] a criança se mantém

junto à mãe, buscando identificar-se como o que supõe ser o objeto de seu desejo”.

Com o tempo, o indivíduo vai desenvolvendo-se por meio das sensações que seu

reflexo evidencia através de uma imagem, sucedendo o reconhecimento da

imaginação e do seu próprio corpo.

Como Sales e Joel Dor, Giddens (2002, p. 47) enfatiza:

2 Segundo Parot e Doron (2001), “[...] o ego / eu se baseia numa experiência subjetiva de

(consciência de si) [...] é, ao mesmo tempo, a instância integrada onde se forma as representações

conscientes, especialmente a representação de si [...] a sede da consciência [...]”.

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[...] que a sensação precoce de segurança da criança vem da criação que recebeu daqueles que cuidavam dela [...] a aprovação ou desaprovação paternos ou maternos. A ansiedade é sentida ─ real ou imaginariamente [...].

O sujeito sente a necessidade de encontrar no outro o apoio fundamental

para construir a autoestima. Quando não localiza essa fortaleza, passa por

provações de insegurança e não consegue sustentar uma atitude. O comportamento

descontrolado desse sujeito é o espelhar da sua infância, utilizando-se do afeto ou

não da familiaridade como seu próprio espelho para formar ou desconstruir uma

identidade.

Nos liames literários, os espelhos são elementos bastante recorrentes nos

desfechos das narrativas, especificamente, por serem os geradores das

introspecções das personagens. Dessa forma, são utilizados para viabilizar os

diálogos das personagens com seu interior, refletindo as frustrações e conflitos na

construção identitária. Segundo Silva (2007, p.59) “o espelho na narrativa de ficção

sempre foi um elemento que representou um meio pelo qual as personagens se

interiorizam e fazem uma investigação da alma [...]”. De tal modo, limita-se entre o

real e o imaginário e constrói a fragmentação da personagem, pois é um artifício

pelo qual a arte literária se configura. Contudo, há o conflito entre o consciente e o

inconsciente da personagem, ao investigar-se através do próprio reflexo no espelho,

se autoanalisando na busca da libertação.

Mulher no Espelho, de Helena Parente Cunha, publicado em 1985, retrata

uma personagem feminina que luta constantemente na busca obsessiva da própria

personalidade, refletida por um espelho, que, de certa forma, é o objeto de conflito

da sua identidade. Assim sendo, há uma tripartição dessa única mulher manifestada

em: eu (a real na obra, possivelmente passiva); ela (o reflexo desse eu,

necessariamente a do espelho, revoltosa) e uma terceira (autora – personagem, que

se manifesta nas leituras romanescas da personagem), porém as duas primeiras

dominam quase todo o enredo. São duas histórias de uma única personagem. Ela

tem quarenta e seis anos, personagem sem nome, oriunda de uma família burguesa,

vítima de um pai e de um marido autoritários, que aniquilaram sua liberdade,

impondo padrões, regras e comportamentos a serem seguidos.

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Na infância, a personagem viveu um drama ao ter um irmão mais novo, por

quem era responsável em tudo o que lhe pudesse acontecer. Para acalentar-se, a

personagem procurava o sótão, o quarto e demais lugares escuros e solitários,

como refúgio de um mundo onde ela não recebia carinho e atenção da própria

família. Na casa havia espelhos e, neles, a personagem adentrava-se, na tentativa

de acalentar seus medos e angústias. “[...] Na fluidez das linhas divisórias qual a

distância entre o rosto no espelho e o espelho ante o rosto? [...] E o meu rosto no

espelho? Quem é?” (CUNHA, 2001, p. 18).

No conto de Assis (1994) O Espelho, na poesia O Retrato, de Cecília

Meireles (2001) e na tela Moça na frente do espelho, de Pablo Picasso (1932), o

espelho é também um objeto que busca uma análise íntima dos sujeitos. Em O

Espelho, o personagem entra em conflito com a sua imagem quando está sozinho e

sente a necessidade de ser o que as pessoas o consideravam. Este vazio leva-o

para um mundo imaginário e conturbado, e a partir do momento em que o

personagem adormece, tomam conta de seu corpo os sonhos, suas imaginações,

seus desejos e sensações de acalento, na tentativa de realização.

Do mesmo modo, no poema Retrato, de Cecília Meireles, o eu lírico resgata

uma visão da sua própria vida e as modificações feitas pelo tempo. O espelho é o

espaço onde sua face está. É o objeto que conflita o passado e o presente do eu

lírico.

Já na tela Moça na frente do espelho, de Picasso, as imagens sinalizam

uma mulher dividida e amargurada se refletindo no espelho. Suas formas mostram

uma aparência conturbada e fragmentada nas imagens produzidas, como também

nas imagens que corresponde à figura real que se reflete.

Dessa forma, seja na literatura ou na linguagem pictórica, muitas das

tensões e dos conflitos retratam o universo das imagens dos sujeitos, que se

perpetuam diante dos espelhos, ou seja, é o limite, onde se autoanalisam,

conflitando seus sonhos e desejos reprimidos do inconsciente através da sua

consciência, buscando assim o real.

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1.2 O limite entre o consciente e o inconsciente

Alguns estudos psicanalíticos caracterizam-se como método de investigação

pela busca de significados dos sentimentos expressos pelo imaginário, através de

palavras e ações proferidas pelos delírios e sonhos do indivíduo.

Freud (apud ROCHA, 2008, p. 202) diz que, a partir de suas investigações

psicanalíticas, criou o sistema metapsicológico que apresenta o aparelho psíquico

do indivíduo, topograficamente dividido em inconsciente, pré-consciente e

consciente. Segundo o autor, o indivíduo pode mudar de estágios, transitando

ocasionalmente entre inconsciente e consciente. Assim o inconsciente, para

Stefanzweig (apud TALLAFERRO, 2001, p. 42), “[...] não é em absoluto o resíduo da

alma, mas pelo contrário, sua matéria prima, da qual só uma porção mínima alcança

a superfície iluminada da consciência [...]”. É nele, onde está o reprimido, o refúgio

de um mundo consciente.

Uma parte do inconsciente surge a partir de sonhos que afloram-se até o

consciente, supostamente é considerado como pré-consciente devido estar mais

perto do sentido consciente. Embora exista o inconsciente reprimido, a parte

abstrata nunca chegará ao consciente, encontrando-se no id3, instância regida pelo

sistema do inconsciente e que nunca pode mudar de estágio.

Segundo Sales (2005, p. 117), o conceito lacaniana oscila entre o eu

consciente e o eu inconsciente, utilizando a terminologia je para consciente e moi

para o inconsciente, partindo do que não é “verdade do sujeito”, ligado intimamente

a subjetividade, enquanto que o consciente é a unidade sistematizada de um eu.

Tais pensamentos podem ser verificados no seguinte trecho:

[...] ao moi o significado de uma instância imaginária sintomática e alarmante e ao je o estatuto de sujeito do inconsciente, lugar situado no simbólico e aparentemente a verdade do desejo [...] (SALES, 2005, p. 117).

3 Segundo Ferreira (1999) id é um “sistema básico da personalidade que possui um conteúdo

inconsciente, por um lado hereditário e inativo, e por outro, recalcado e adquirido, de acordo com a

segunda teoria freudiana do aparelho psíquico”.

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Para a formação mental de um indivíduo, é preciso passar por diversas

fases desde o nascimento. Quando ocorrem incoerências no desenvolvimento de

uma criança, aparecem os reflexos na formação adulta. O indivíduo passa a ter

conflitos entre os desejos retraídos e seus sentimentos, que não poderá ser

expressos em sua vida enquanto sujeitos de uma sociedade. A construção do eu

fica impossibilitado devido às reações provocadas pelo inconsciente e pelo

consciente, quando o indivíduo se encontra em situações que lhe provocam

constrangimentos e decepções, alarmando-se na formação da sua plena

consciência, quem realmente é esse eu.

O desencontro do processo que limita o consciente do inconsciente resulta na

busca insensata da própria construção do sujeito. A imaginação é a via que leva o

indivíduo ao mundo irreal do seu próprio interior, tornado-se o espaço que liga os

sentimentos reprimidos até a consciência, enquanto o ser eu, revela seus aspectos

contraditórios. Segundo as ideias de Elliott (1996, p. 223), há “[...] uma reflexão

crítica nas modalidades centrais de sentimento [...]”, do indivíduo, ao perpassar pela

distância que se limita entre o inconsciente e o consciente. Este debate é o que

possibilita o conflito da sua construção identitária.

Quando o indivíduo se depara com duas personalidades, constata as

transposições entre o inconsciente e o consciente, os quais se alternam propagando

os desejos e as razões de um ser. Assim, Jung (1998, p.191) diz: “[...] tudo que é

inconsciente já foi ou será conteúdo do consciente [...]”. O inconsciente quando

refletido é considerado como se fosse parte do consciente, porque quando um eu se

atribui dos conteúdos do inconsciente tornando-se semelhantes ao consciente, o

indivíduo passa a ter perturbações na consciência e necessariamente a construção

da dupla personalidade.

Também no universo literário, algumas personagens se deparam em

situações de busca e conflito, quanto à formação da consciência e inevitavelmente

da própria personalidade. Em Mulher no Espelho, desde a sua infância, a

personagem central de Cunha (2001) não teve um firmamento estrutural da

consciência, ou seja, o eu não se concretizou durante toda a sua vida e chega a não

se reconhecer. Os conteúdos inconscientes refletem contrariamente ao consciente

dessa mulher. Suas ideias e suas atitudes de toda a vida são questionadas pelos

desejos e pelas indignações do inconsciente.

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Pelo fato de viver na infância passivamente, sempre atendendo as ordens de

outras pessoas e inevitavelmente privada da afetividade familiar, essa mulher

inacabada não se estruturou psicologicamente, o que lhe ocasionou

constrangimentos e perturbações. Como relata o filosofo Giddens (2002, p. 42):

Desde os primeiros dias de vida, o hábito e a rotina desempenham um papel fundamental na construção de relações no espaço potencial entre a criança e os que cuidam dela. Conexões centrais são estabelecidas entre a rotina, a reprodução de convenções coordenadas e os sentimentos de segurança antológica nas atividades posteriores do indivíduo.

Pode-se afirmar que quando o sujeito não tem uma boa convivência com a

família, ele passa a ter um desequilíbrio emocional. A falta de carinho e

sucessivamente a obrigação de seguir normas levou aquela mulher a viver dentro

dos padrões de uma sociedade tradicional, apenas para servir seus pais, movidos

pelo autoritarismo. Uma mulher reprimida que aprendeu a cuidar do irmão mais novo

e quando adulta foi submissa ao marido e aos filhos. Para ela, uma mulher recatada,

simples e dona de casa, deveria manter-se nesses patamares. “[...] Eu boa menina,

obediente, os amigos do meu pai me gabavam [...]” (CUNHA, 2001, p. 19); “[...] para

viver bem com meu pai que eu amava, aprendi a viver para amá-lo [...] não

levantava a cabeça para falar com ele [...]” (p. 25).

A personagem quando criança quebrou um brinquedo do irmão não se

conformando por ele ter destruído a sua boneca favorita. Por causa dessa atitude o

pai a colocou de castigo e não o irmão, ela ficou revoltada, entretanto se culpa pelo

ato. Foi questionada pelo seu inconsciente, dizendo que ela não tinha errado em

quebrar o brinquedo do irmão, ele substituiu seu espaço enquanto criança, de poder

brincar e ser bem amada.

Esse confronto viabiliza um diagnóstico de que, desde sua infância, aquela

mulher angustiada sempre esteve num abismo, sem ter a certeza do que estava

fazendo. Seus desejos e instintos eram vistos como errados por sua consciência,

enquanto um eu que deveria se comportar como criança bondosa e educada. Os

atos momentâneos eram sementes das conturbações da consciência do sujeito e

move toda a dualidade de uma única mulher. A personagem dialoga com a sua

imagem ao espelho:

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Você já falhou. Desde o começo, falhou com suas omissões. Suas manias de querer desculpar todos e tudo. E sua rotina de autocondenação e flagelação. (CUNHA, 2001, p. 41).

Dessa maneira a dualidade perpassa toda a narrativa, mesclando o

discurso do consciente e inconsciente, que se esquivam e se chocam num diálogo

de culpas e sentimentos. Uma vida de desastres em que a mulher se autocrítica,

negando-se e ao mesmo tempo fugindo dessa realidade.

O inconsciente que rompe o limite, surgindo como força de expressão,

inevitavelmente provoca o conflito da imaginação com os princípios da realidade.

Uma ruptura na formação da identidade de uma mulher procedente de uma família

tradicionalista, que agita a sua vida. A imaginação protesta contra suas atitudes

reais, projetando uma desconstrução mental da personagem e aflorando suas

vontades até então não assumidas.

Dessa forma, o indivíduo passa a ter perturbações e não forma uma

identidade própria. Há sempre um limite entre o seu estado consciente e o

inconsciente. Assim, a personagem da narrativa é vista através de um discurso

contrário ao estabelecido, como mais uma possibilidade, diante dos conflitos

existenciais do contemporâneo.

Como diz Giddens (2003, p.50), “a existência é um modo de estar-no-mundo

[...] aceitar e viver sua própria realidade”, porém o sujeito pós-moderno é construído

pelas fragmentações e certamente não tem a sua própria essência. O planejamento

da vida é a referência da personalidade de cada indivíduo, e quando esse projeto

não se constitui, o sujeito se perde entre tempo e espaço.

O autor ainda diz:

‘Isolamento existencial’ não é tanto uma separação do indivíduo dos outros, mas uma separação dos recursos morais necessários para viver uma existência plena e satisfatória (GIDDENS, 2003, p. 16).

Contudo, enquanto representação da realidade o sujeito depara-se com

hipóteses e ferramentas que, certamente, podem levá-lo a questionar-se sobre a sua

existência, desconstruindo assim a ideia de um mundo coerente, igual. E a

imaginação é uma forma para então reconstruí-la com base nessa nova realidade,

isto é, um universo fragmentado e heterogêneo.

Page 20: O s reflexoas do eu em mulher no espelho de helena parente cunha

19

1.3 Autoria feminina

A literatura contemporânea cada vez mais rica e heterogênea,

caracterizada por mostrar várias tendências temáticas e estéticas, continua seguindo

tanto as tendências passadas como as presentes, pois reconstrói obras de inegável

caráter inovador. Para Coutinho (2004, p.362) “[...] não houve uma ruptura radical

com o Modernismo, ao contrário, esta geração é uma continuação dele [...]”. As

tendências se aproximam principalmente pela engendra do fenômeno da

intertextualidade, como elemento das mais recentes teorizações da literatura,

marcadas pelos diálogos dos textos, ao permitir a disseminação, colagem, e mistura

das escritas. A obra literária recria uma imagem de estética e de valor dentro do

mundo ficcional.

Assim, a literatura brasileira se potencializou com a junção dos autores que

ligaram o velho e o novo, a partir dos conhecimentos estéticos de um período com a

estreia de um novo movimento, a contemporaneidade, que é caracterizada por

trazer obras com aspectos renovados. Uma tentativa de continuar com uma

linguagem original, ao fazer do velho um espaço de apoio para os novos talentos.

Diz ainda o autor:

[...] Ela está viva, atuante, com a sua linguagem própria, mas rica e mais variada do que a linguagem comum, cotidiana, embora o escritor possa fazer uso desta, na variada estilização de suas concepções da realidade (COUTINHO, 2004, p. 274).

E nesse espaço aparecem as obras de cunho feminino, já existentes, porém

não manifestadas. Desde a metade do século XX, a literatura de autoria feminina se

destacou ao proporcionar constantes reflexões acerca dessas diversidades, embora,

as autorias desempenhem uma representação do discurso feminino dentro da

sociedade, baseado na tentativa de assumir lugares e papeis sociais perante as

organizações. Nesse sentido, Xavier (1998) afirma que:

[...] A condição de mulher vivida e transfigurada esteticamente é um

elemento estruturante nesses textos; não se trata de um simples tema

literário, mas da substância mesma de se nutrir à narrativa (p. 11).

Page 21: O s reflexoas do eu em mulher no espelho de helena parente cunha

20

Dessa forma, a literatura de autoria feminina perpassa de forma progressiva,

ao ter espaço para expressar suas artes literárias. Contudo, essa dimensão

proporciona a representação do sujeito feminino até os dias atuais, na

representação do mundo real.

Os textos literários seguiram novos rumos, em meio a novas indagações e

perplexidades instauradas pelo paradoxo pós-moderno. Assim, as produções

feministas são abordadas sob um enfoque distante do que era considerado como

hierarquia patriarcal, em que o homem era o centro das atenções e do poder,

questionando a sociedade tradicional às discriminações excludentes. Assim afirma

Coelho (1999, p.10) “[...] é principalmente no âmbito dessa literatura feminina,

reivindicante, que ressalta o poder da Literatura, como grande instrumento de

conscientização [...]”. A literatura foi uma das formas em que a escrita feminina teve

oportunidade de expressar uma conscientização e de fato questionar as atitudes de

uma sociedade prisioneira. A escrita ampliou os embates da mulher e a participação

nos meios sociais.

A escritora Helena Parente Cunha faz parte da geração de 60. Pertenceu a

uma época, em que se iniciava a luta pela inserção da fala e do jeito feminino na

literatura brasileira. Suas obras abordam temáticas da mulher na sua recriação e

redefinição identitária, ao constituir um espaço onde se torna possível um sujeito que

afirma sua subjetividade ao descrever a realidade interior conflituosa das

personagens na busca de sua identidade.

Assim descreve Coutinho, a autora:

[...] ensaísta, romancista, poeta e contista, transita com facilidade entre

poesia e prosa. [...] Sua ficção parte da observação da realidade mais

prosaica, para um conhecimento mais profundo do homem e da vida

coletiva dos fatos (2004, p. 273).

Foram as vivências revolucionárias, a transformação de perceber o mundo e

a vida, que permitiram a mulher contemporânea se apropriar das raízes, o que, no

passado, não era possível, para criar sua linguagem e atrair algumas adeptas

fervorosas do feminismo, reescrevendo principalmente a afirmação identitária da

mulher, para uma vivência da nova conscientização.

Page 22: O s reflexoas do eu em mulher no espelho de helena parente cunha

21

E neste viés, Mulher no Espelho, de Helena Parente Cunha, traça as

condições do sujeito contemporâneo na literatura através do diálogo intimista da

mulher em frente a sua imagem no espelho. Um desafio aos limites impostos ao

universo feminino diante de si mesmo e à sociedade. A narrativa perpassa os fluxos

da consciência, por meio de uma personagem condicionada à passividade e o seu

reflexo intricado a uma mulher que rompe com o convencional. Contudo é um sujeito

frustrado, e suas reflexões são os desejos que até então retidos no inconsciente.

Assim sendo, a obra de criação traça literariamente o sujeito contemporâneo

fragmentado e diversificado, na perspectiva de interiorização do eu. As vozes da

personagem revelam-se perturbadoras, pois em meios a uma vivência dramática, a

personagem se encontra dividida entre os mandatos patriarcais familiares e suas

percepções liberais, deixando vim à tona seus anseios reprimidos em sua

imaginação.

E é assim, que os escritos feministas encontram um posicionamento em

relação aos conceitos dirigidos a classe feminina, com o intuito de reverter os pontos

até então consagrados pela sociedade, na medida em que expressava suas

angústias e questionamentos através da escrita. O discurso da mulher passa a ser

sustentado por seus próprios pensamentos que se atualizam na produção literária.

Contudo, é por meio da literatura de cunho feminino que se discute o

comportamento da mulher dentro da ficção. E Helena Parente Cunha faz de sua

personagem instrumento de representação do mundo real, onde identidades não se

formam, gerando o descontentamento e perturbações do sujeito, que se multiplicam

pelo jogo dos espelhos. Assim, o espelho da mulher está diretamente ligado aos

múltiplos reflexos do seu interior, que será analisado no próximo capítulo.

Page 23: O s reflexoas do eu em mulher no espelho de helena parente cunha

22

2 O CONFLITO DA PERSONAGEM NO ROMANCE MULHER NO ESPELHO DE HELENA PARENTE CUNHA

O foco deste capítulo é analisar o diálogo entre a personagem e o seu

interior, consciente/inconsciente, através da imagem projetada pelo espelho. Assim,

a partir do espelhar, na tentativa de uma interiorização é que o indivíduo gera o

conflito da sua construção identitária. A personagem duplica sua imagem pelo

reflexo no espelho e se multiplica em diversos eu.

2.1 Diálogos no espelho

As personagens na literatura são construídas a partir dos registros da

narrativa, ao tecer o comportamento de agentes transitando pelo mundo literário.

Segundo Gancho (2002, p. 14), “[...] os personagens se definem no enredo pelo que

fazem ou dizem, e pelo julgamento que fazem dele, o narrador e os outros

personagens [...]”. Neste caso, a personagem é construída dentro da narrativa pelas

suas ações e pelo olhar do outro.

Mulher no Espelho é narrado em primeira pessoa a partir de uma

observação na perspectiva da própria personagem. Suas ações interferem a

atenção do leitor. Assim a narradora está dentro da história, necessariamente na

construção dos seres fictícios, através de um minucioso trabalho de linguagem até

chegar ao leitor a partir da personagem principal que relata à história do seu ponto

de vista. Para Brait (1985, p. 60), a narradora personagem é a própria “câmera”, que

define a construção adequada do enredo: “[...] produtos de um discurso narrativo

que aponta para a ironia de um observador empenhado em fazer da linguagem o

seu instrumento de impiedosa caracterização”.

E neste viés a obra de criação representa uma personagem que se depara

em uma condição real e imaginário, oscilando entre dois mundos, ao representar as

lutas e as frustrações da mulher dentro da sociedade, na tentativa de se esquivar

Page 24: O s reflexoas do eu em mulher no espelho de helena parente cunha

23

dos seus comportamentos. Uma mulher frustrada, sem nome definitivo, à procura de

sua existência, julgando sua própria realidade através dos jogos dos espelhos,

permitindo-lhes questionar suas novas inspirações e, as imagens, revelando quem a

personagem poderia ter sido e quem ela é.

A mulher divide-se psicologicamente, realizando um reflexo em torno de

si, isto é, uma troca de posicionamento ao fragmentar-se nas unidades (consciente/

inconsciente), até obter uma mudança comportamental:

Eu vou começar a minha estória. [...] no cruzamento do meu corpo com o

espaço de minhas imagens. [...] Só existo na minha imaginação e na

imaginação de quem me lê. E, naturalmente, para a mulher que me escreve

[...] (CUNHA, 2001, p. 17).

Um conflito existencial de uma mulher que ao se espelhar, dialoga com o

seu íntimo, na tentativa de obter uma identidade própria. O diálogo perpassa os

detalhes corporais, ao adentrar na mais profunda subversão de um indivíduo. Deste

modo, há uma afirmação do posicionamento da personagem, ao se tratar da sua

projeção nos espelhos e a rejeição constatada: “Não desejo narrar a mulher que me

escreve. Quero narrar a mim mesma somente [...]” (p. 27). A mulher em frente ao

espelho discorre com seus desejos sobrepujados no inconsciente.

E tudo pelas maneiras de dependência em que esse eu se permitia. Seu

horizonte deve limitar-se a satisfazer aos desejos do senhor seu pai. Como pode ser

observado neste trecho, em que a mulher refletida pelo espelho faz um

questionamento a atitude do pai e a aceitação da filha submissa:

[...] Seu pai pegou uma toalha de rosto que estava perto da cama, uma toalha felpuda e começou a esfregar na sua boca, esfregado, muito zangado, dizendo que filha dele não ia andar daquele jeito na rua, você não arredava o pé e ainda oferecia mais o rosto para ele maltratar [...] (p. 59).

A mulher fora do espelho rejeita a posição de seu reflexo, na tentativa

de aceitar a vida que estava sobrevivendo. Assim ela responde aos seus desejos da

seguinte forma:

Meu marido acha que devo viver, exclusivamente, exaustivamente para ele. Isso me faz muito feliz. Na opinião de meus filhos, toda mãe tem obrigação

Page 25: O s reflexoas do eu em mulher no espelho de helena parente cunha

24

de se dedicar de modo absoluto a quem pôs no mundo. Esta é a razão da minha vida (CUNHA, 2001, p.26).

Com o diálogo através do espelho, o inconsciente desperta uma

manifestação, e o outro lado, o consciente, abriga uma permanência subentendido.

Dessa forma, o eu personagem, tinha sempre um olhar limitado, observe-a: “[...] O

pai autoritário que eu superamei e ela superodiou [...]” (p.24). Constata-se que a

personagem possui duas personalidades: uma que amava o pai e outra que o

odiava.

Uma mulher adulta reprimida, diligenciando contra o domínio da imaginação

que afloram sob seus pensamentos, acumulados durante anos. A realidade da

personagem era viver excepcionalmente para servir ao pai, ao marido e aos filhos,

impedida de viver a sua própria vontade. Seus desejos autênticos ficaram reprimidos

na imaginação.

A personagem é tratada como objeto do marido e dos filhos. Essa atitude faz

de seu interior, uma maneira de questioná-la. Desse modo, expressa as angústias

relevantes a condição de subordinação em que vive:

Você não pode continuar a alimentar esta atitude absurda. É preciso ter consciência dos seus próprios direitos, sobretudo nos dias de hoje, final da década de 70, numa cidade como Salvador. A mulher deve reagir, não se permitir levar pelos caprichos e exorbitâncias da família. Você não pode continuar a viver assim (p.26).

Aos poucos ela reage como se tudo fosse realmente parte dela. Que existe

uma necessidade de assumir uma atitude. Porém, o eu em frente ao espelho

assume um papel de resistência a um desejo que lhe consumia, mas não fora

crescendo com tanta exatidão: “[...] Por mais que tinha crescido a sua necessidade

de captar, não me alcança [...]” (p.34). Seus instintos de liberdade, de por em cena

os anseios acumulados durante anos, ainda encontra uma linha que promove uma

discussão dentro de um indivíduo: “Não gosto de admitir que todo meu sacrifício

tenha sido estéril” (p. 95).

Assim, a narrativa enfatiza um diálogo com seu alter-ego. A protagonista

questiona quem ela é e o que quer. “[...] não quero me influenciar pela mulher que

me escreve. Ela vê a minha vida pelo seu ângulo torto e vesgo [...]” (p. 96). Dividida

entre um sistema de normas tradicionais e seus desejos de emancipação ainda não

Page 26: O s reflexoas do eu em mulher no espelho de helena parente cunha

25

assumidos, e que só aos poucos ela se redime como necessidade da outra. “[...]

Está na hora de se conceder uma nova modalidade de vida [...]” (CUNHA, 2001, p.

99). Ela aceita que precisa mudar e para isto, precisa da outra:

[...] preciso dela e, no fundo, é bom que as coisas apareçam também sob os olhos dela, [...]. De qualquer forma, quer eu queira ou não, essas coisas pertencem a ela também [...]. Meus filhos de repente, são também filhos dela [...] (p. 37).

A imaginação questiona os modos da mulher que se diz real, impondo

limites à passividade: “[...] Você se mostra tão fraca e impotente [...]” (p.96). E num

instante, seus desejos são de livre arbítrio, de uma mulher independente, que não

tem medo de se expressar, diante de uma sociedade. O que era apenas imaginação

passa a ser uma realidade para a personagem. Assim pode ser notado na seguinte

expressão:

Posso gozar do meu ser livre. Que ninguém sabe nem suspeita, supondo

que a sujeição é o único gesto endossado. Quando estou só em casa, dou-

me o direito de me entregar à proibição. Canto minhas músicas, preferidas,

sem zombarias. Sinto-me livre, no gosto e na voz. E danço, invadida de

ritmo e balanço [...] (p. 45).

A mulher angustiada abre espaço para sua imaginação. Os sentimentos

liberais surgem sob o corpo da mulher real, uma mulher ardilosa, que se arrisca nos

desejos, e utiliza de um jogo de sedução para a conquista: “Eu vou virar a mesa. De

agora por diante estou livre de todos e qualquer preconceito [...]” (p. 117). E é o fluxo

do inconsciente e do consciente que promove as concepções do que é real e

imaginário. “[...] Quem conhece meu rosto atrás do meu rosto? Que rosto se

esconde atrás dos espelhos iluminados? Que rosto se perde aquém dos espelhos

apagados? [...]” (p. 107).

O discurso passa a inverter-se. A mulher real tem atitudes que seu

inconsciente passa agora a considerar anormal: “Você até hoje confunde a

necessidade de ser independente com invenções de fugir de casa e matar alguém

de desgosto [...]” (p. 126). E nesta oportunidade o eu se defende: “Eu me condenei,

eu me acusei, eu me culpei, eu vivi meu fracasso, dobra por dobra, até o

esgotamento final. Por isso estou poliedricamente livre [...]” (p. 126). A personagem

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26

necessita da constatação de fragmentar-se para liberar seus sentimentos, que

arrastam por discursos múltiplos de se mesma. Uma crise de identidade que gera

diálogos e perturbações de um único ser. Seus sentimentos misturam-se,

contorcendo a dor, o sofrimento, a solidão, e o desejo de liberdade. Absolutamente

sensações refletidas pelo espelho.

Giddens (2002, p. 61) afirma que, o indivíduo caracterizado pela falta de

conexão do pensamento e de atitudes padece de psicose, ou seja, “[...] se sente

distante do que o corpo está fazendo ou do que ele está sofrendo. A imagem

especular e o eu podem se tornar efetivamente invertidos em personalidades”.

Assim, pode-se constatar a condição daquela mulher que sofre de

insanidade. Em frente ao espelho, julga-se, invertendo corpo e sentimentos, ao

modo que se aceita e confronta-se, aniquilando sua própria essência.

Dessa maneira, a obra abordada traz o espelho como base de

sustentabilidade da formação da consciência do sujeito, mas também a

desconstrução de sua identidade. A personagem passa a ter atitudes diferentes e

afobações que abrangem o diálogo do inconsciente com o consciente, ou

simplesmente, na perspectiva de questionar atitudes e negar a si mesma. O discurso

se prolonga por toda a narrativa. As vozes da se intercalam, ora a sua imaginação,

ora sua própria realidade física. Assim, vai contradizendo os desejos do inconsciente

com sua consciência.

2.2 Imagens duplicadas e múltiplas identidades

Diante de uma figura atormentada, que se encarrega em conflitar seus

sentimentos e suas ações, pode-se designar um sujeito duplo. Para Bravo (1998, p.

263) “um conflito psíquico cria o duplo, projeção da desordem íntima [...]”. Assim

encontra-se explícito, um sujeito dividido em um mundo capaz de apontar o que está

no inconsciente e o que está conscientemente.

O indivíduo libera os anseios inconscientes para dialogar com sua realidade

física, criando a ideia de duplo. Ainda segundo autor, o ser duplo são pessoas que

“[...] se vêem a si mesmas [...]”, aquela que possui em si mesma o outro,

caminhando ao seu lado (BRAVO, 1998, p. 261; 262).

Page 28: O s reflexoas do eu em mulher no espelho de helena parente cunha

27

Com base no estudo de Kappler (1972 apud BRAVO, 1998, p. 263), o duplo

significa que o sujeito é “[...] ao mesmo tempo idêntico ao original e diferente - até

mesmo o oposto - [...]”. Assim, o indivíduo apresenta-se confuso com mais de uma

identidade, trazendo o imaginário para o real.

O mesmo ocorre em Mulher no Espelho. A personagem se desdobra com

diferentes personalidades. O duplo é uma ilusão do próprio sujeito, uma loucura que

consome e faz alucinar-se dentro de um mundo onde seus desejos são

manifestados. A busca da identidade profunda faz com que essa mulher tome

consciência de seu íntimo, através da sua duplicidade, sendo a forma pela qual o

indivíduo pode se encontrar literalmente ou fracassar.

A personagem não se reconhece ao espelhar-se. Uma imagem que tenta

dilacerar a inquietude da real, na tentativa de sustentar uma tomada de consciência

da sua própria identidade: “Os ratos só existem na sua imaginação [...]” (CUNHA,

2001, p. 21). Então a mulher dentro do espelho significava a mulher liberal: “[...] A

mulher que me escreve se julga sem preconceitos nem barreiras, dona e senhora de

suas guerras [...]” (p.44). Que tenta ressurgir na mulher passiva, que aceitava as

imposições a ela, e não reivindicava o seu desejo, não abria espaço para sustentar o

que estava por dentro.

Portanto, o eu personagem, abre espaço para seu inconsciente, o que

realmente deseja, os sentimentos liberais surgem sob o corpo da real, uma mulher

ardilosa, que se arrisca nos desejos, e utiliza de um jogo de sedução para a

conquista.

Nua diante dos espelhos [...] Para que meu corpo se encontre inteiro com meu corpo, viro a cabeça de lado e me coloco ao espelho [...] Uma sensação boa de liberdade percorre as minhas imagens [...] (p. 114).

Há um conflito na narrativa proporcionado pelo íntimo da personagem

narradora, e, sem dúvidas, o trágico destino explora uma densidade do próprio

inconsciente. Há também uma fragmentação na personalidade da protagonista

gerada pela rejeição e ódio de uma vida conturbada onde se depara com os desejos

do inconsciente, deixando-a dilacerada.

Para Bravo (1998), o sujeito ficcional aparece em linhas literárias formulado

nas ideias da dualidade da consciência, o que permite as múltiplas identidades de

Page 29: O s reflexoas do eu em mulher no espelho de helena parente cunha

28

uma única personagem. E essa duplicidade, deixa suceder a confusão na

construção da personalidade do indivíduo, conflitando os elementos reais e

imaginários, relativamente, a consciência e o inconsciente.

Essa crise existencial também pode ser discorrida em outras obras como

o conto O Espelho, de Machado de Assis, a poesia Retrato, de Cecília Meireles e a

tela Mulher no espelho de Pablo Picasso. O Espelho de Machado (1994) retrata a

história de um homem também com quarenta e seis anos de nome Jacobina, que

conta uma passagem de sua vida a quatro amigos. Uma história que despertou a

construção de duas almas de uma única personagem. Tudo aconteceu a partir do

momento em que fora nomeado alferes de Guarda Nacional, criticado por algumas

pessoas, porém elogiado por muitos, desde amigos e parentes, chamando-o de

Senhor Alferes. Em certo dia visitou a senhora sua tia, Marcolina, que o contemplava

dignamente. Com alguns dias, ela precisou ir ao encontro da filha que estava

enferma e o Jacobina, ficou tomando conta do Sítio.

Nesse período, Jacobina, sentiu-se sozinho e a solidão tomou conta de sua

vida e sua alma. “[...] Minha solidão tomou proporções enormes. Nunca os dias

formam mais compridos [...]” (ASSIS, 1994, p. 4). E o seu refúgio era o sono, quando

dormia sentia aliviado. Os louvores dirigidos a ele pelos amigos e familiares eram

perpassados pelos sonhos e as angústias tomavam seu corpo no momento em que

acordava. Sua solidão era ver que não tinha ninguém para lhe proclamar: “[...] um

silêncio vasto, enorme, infinito [...]” (p. 5).

Porém, toda agonia e sofrimentos instigados pela solidão, eram abrandados

pelo objeto que estava em seu quarto, o espelho, acessório decorativo da sala, que

a tia tinha cedido como forma de consagração a um alferes, depositando-o no

quarto. E a todo o momento a personagem se deparava no espelho para resgatar a

sua própria construção identitária. Sua alma exterior (alferes) estava presa ao

espelho, recolhida no momento em que a tia e os escravos saíram do Sítio e deixou-

o sozinho. A solidão rompeu a construção da figura de alferes, que estava

acostumado a ouvir chamá-lo desse título, e quando sozinho sentiu a necessidade

de ser exaltado, e seu eu foi reprimido no espelho.

Algo fez com que a personagem vestisse a farda de alferes, olhando-se para

o espelho, o que antes era confusa, vaga, incompleta, esfumada sem uma

construção própria, tornou-se clara e natural: “[...] o vidro reproduziu então a figura

integral; nenhuma linha a menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o

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29

alferes, que achava, enfim, a alma exterior [...] “(ASSIS, 1994, p.6)”. O espelho

gerou um pensamento que uniformizou sua imagem e amenizou a solidão. Assim

como em Mulher no Espelho sua imagem inicial também era incompleta. Quando

vestiu a farda em frente ao espelho a aflição e o desespero levou-o a uma

identidade integral, que seria pertencer à Guarda Nacional.

Assim, afirma Tanis (2003) sobre o conto O Espelho:

[...] adultos vestidos identidades fardadas, como forma de se defender de conflitos que se sentem incapazes de enfrentar ou, quando a angústia é maior, de um vazio que domina sua existência (p.81).

Certamente, este sujeito angustiado sente-se incapaz de ter sua

personalidade, e busca ano espelho um sentido de evasão do mundo em que se

encontra. A tristeza conduz-lhe para a reflexibilidade de si mesmo através dos

instintos inacabados, sustentando uma identidade através da sua farda.

Já na obra Retrato, de Cecília Meireles (2001), a solidão é anunciada, ao

comunicar a alma de um eu lírico desmaterializado que vaga em dimensões

espirituais. O texto é contaminado pelo sentimento da desilusão que leva o eu a

abismar-se entre um mundo através do espelho que retém sua própria realidade.

Retrato

Eu não tinha este rosto de hoje, assim calmo, assim triste, assim magro,

nem estes olhos tão vazios, nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,

tão paradas e frias e mortas; eu não tinha este coração

que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança, tão simples, tão certa, tão fácil: - Em que espelho ficou perdida

a minha face?

(Retrato, Viagem, MEIRELES, 2001)

Assim, o poema Retrato refere-se à velhice, onde o eu lírico compara o

rosto do presente com o rosto do passado, a partir do reconhecimento de tudo que

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30

lhe aconteceu. Uma imagem modificada pelo tempo, provocando um sentimento de

perplexidade: “[...] Eu não dei por esta mudança / tão simples, tão certa, tão fácil [...]”

(MEIRELES, 2001, p. 232). O desencanto pela vida, que se deu em um momento,

que estava claro durante anos e não tinha percebido.

Na primeira estrofe, o eu lírico descreve seu próprio rosto que não mais

reconhece como seu. A ideia se intensifica com a passagem da vida e a nostalgia do

eu, que perpassa-se quando reafirma essa constatação: “eu não tinha este rosto de

hoje,/ assim calmo, assim triste, assim magro,/ nem estes olhos tão vazios,/ nem o

lábio amargo [...]” (p. 232). Essa visão indica a mudança ocorrida no íntimo, na

personalidade e no físico devido aos sofrimentos em que viveu o eu lírico.

No último verso da última estrofe, há um questionamento com relação a sua

vida diante do espelho: “[...] em que espelho ficou perdida a minha face?”(p. 232),

numa indicação de que o espelho seria o lugar ou o momento de sua vida em que

ficou presa, havendo assim, uma transição, porém, sem o seu pleno conhecimento

desse fato. Sua face ficou imóvel no espelho, mas o tempo passou sem que se

percebesse as mudanças ocorridas.

Assim, afirma Bittencourt (2010, p.266) sobre a poesia Retrato:

[...] a dualidade passado/presente está presente nessa relação simbólica, mostrando as modificações apreendidas pelo indivíduo. No instante em que o homem se depara com um espelho e com um retrato, ele é forçado a refletir sobre a sua condição e sobre os seus anseios. É o encontro dos mundos problemáticos do sujeito: o interior e o exterior.

Portanto, no momento em que o indivíduo se olha, é obrigado a deparar-se

consigo mesmo, numa condição estabelecida pelo próprio tempo. O eu lírico

descobre seu lado inconsciente através da constatação de que tudo mudou, suas

formas e expressões foram alteradas e só neste momento teve a consciência de que

a crise de identidade foi aceita e internalizada por si próprio.

Ainda que, numa linguagem pictórica, a tela Moça na frente do espelho, de

Pablo Picasso (1932), exposta no Museu de Arte Moderna em Nova York com 162 x

130 cm, aproxima-se das obras de Helena, de Machado e de Cecília. Suas formas

são capazes de reproduzir o espelhar de um sujeito, aparentemente uma mulher, a

partir do movimento da imagem. Pode-se observar por meio das misturas de cores e

de formas a multiplicidade da construção de um ser através da seguinte tela:

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31

4

De tal modo, nota-se que a imagem real, fora do espelho, é construída por

dupla face que se reflete pelo espelhar, simbolizando um sujeito incompleto ou

simplesmente misturado. Picasso (1932) cria uma tela capaz de chocar as pessoas

e mostrar o sujeito além da realidade, fazendo do imaginário instrumento da

originalidade.

Para Meyer (2002, p. 47) há uma mudança estrutural do corpo externo e do

corpo interno através da “[...] imagem do corpo e esquema do corpo, e que é

constantemente remodelado e distorcido por diversas emoções, instabilidades ou

sofrimento do indivíduo”. Desse modo, a pintura traz mais um corpo contemplado no

espelho como forma de refletir o interior desta mulher.

4 Moça na frente do espelho (1932), de Pablo Picasso, exposta no Museu de Arte Moderna em Nova

York com 162 x 130 cm.

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32

O espelho traz o que pode-se chamar de verdade, mostrando os traços

marcantes do seu corpo através da imagem deformada e contornada por linhas que

juntam realidade e os seus reflexos. A figura de Picasso demonstra-se triste e

deprimida, refletindo os sentimentos de uma mulher infeliz, o que parece sugerir a

expressão de alguém que tem medo de aceitar quem realmente é.

Em Mulher no Espelho, de Cunha (2001) a personagem está em constante

confronto com o abismo, em um processo de autoafirmação e descoberta da própria

identidade, através da subserviência da mulher perante a sociedade em que está

inserida. O objeto questionador é sua própria imagem suprimida através de um

espelho, que tenta abrir caminhos para a libertação do seu verdadeiro sentimento

diante da sua condição de vida: “Abro os meus espelhos. Lá dentro, no fundo da

superfície fria, esgueira-se uma imagem [...]” (CUNHA, 2001, p. 113). Mas sua

identidade nunca se concretiza em presença de duas visões que circundam sua

própria existência. Segundo Bravo (1998, p. 282) “a literatura tem a vocação de pôr

em cena o duplo, invalidando o princípio de identidade: o que é uno é também

múltiplo, [...]”. Assim, quando uma está no corpo presente, a outra está refletida no

espelho para culpá-la das consequências de suas ações.

O fim dramático apodera-se de seu corpo. Não se move deitada no tapete

de pele, ouve seu filho chamar-lhe, e não consegue se levantar: “[...] alguém

tocando a companhia. [...] Meu cansaço me paralisa. Não mexo um músculo [...]”

(CUNHA, 2001, p. 172). E é através dos pedaços de espelhos que consegue ver as

inúmeras imagens produzidas pelo único rosto: “Os espelhos se multiplicam as

imagens até o infinito. Mas o nosso remorso nos une. [...] Meu rosto no espelho é o

dela. Ela sou eu. Eu sou ela. [...]” (p. 174). Dessa forma, necessariamente a

personagem se perde entre o espelhar do seu consciente, o que para Ferreira

(1999, p. 814) “[...] os olhos são o espelho da alma [...]”.

Em meios ao engendramento dos corpos duplicados, chega-se as mais

diversas possibilidades do eu, que se multiplica em diversos rostos, em várias almas

de um único ser. A imaginação viabiliza as mais distintas particularidades do interior

da personagem. Suas personalidades de submissão, de questionamentos, de

sensualidade, de fracasso, de sua alma, do seu corpo, de suas atitudes, capazes de

experimentar o mundo e seus desejos além de suas limitações. O duplo passa agora

a ser múltiplo. Sua fragmentação perpassa ao desdobramento e chega a mais

inusitada perspectiva: o encontro de si mesma.

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[...] Encontrei o meu rosto no canto do último espelho. Quero guardar intacto este sorriso novo, aberto no sulco da lágrima que houvera. O renascer dos frutos nas sombras mais profundas [...] ( CUNHA, 2001, p. 130).

A obra de Helena Parente Cunha representa uma história que desperta

vários temas da realidade. O leitor traça uma reflexão dos problemas humanos, ao

projetar o drama do mundo real. Todo conflito é consequência da culpa, das dúvidas

e contradições doutrinadas, em um incontrolável posicionamento do que é certo e do

que não é certo, transformado pelos sentimentos, no interior de cada pessoa.

Metaforicamente, a literatura promove o conflito do duplo, pois busca uma

representação e uma subjetividade encontradas no real, recriando sentidos e

apoderando-se das palavras que manipula através da escrita para dar vida a ficção.

Deste modo, Mulher no Espelho transmite a construção de uma figura complexa e

variável, de uma mulher sensível, expressando seus vários mundos, formas e

tempos a partir de seu reencontro, visando enriquecer a sua verdadeira identidade,

formada por muitos conceitos que se confrontam, se ajustam, se movem e se unem.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Partindo-se do princípio da investigação deste trabalho, pode-se constatar

que o espelho é aqui um elemento de observação e construção dos reflexos

humanos e ficcionais.

Através dele o sujeito busca a sua própria imagem como forma de

construção psíquica. Assim é na literatura. O espelho como elemento coadjuvante

na narrativa, revela o que as personagens buscam para refletir seus sentimentos.

Mulher no Espelho, de Helena Parente Cunha (2001), traz estas características a

partir do drama da personagem em frente ao espelho, no espaço mais escuro da

sua própria casa. E a partir dele, sua personalidade torna-se móvel oscilando entre

seu corpo real e tudo aquilo que ficou acumulado durante anos. Seus sonhos

reprimidos, suas desilusões e suas dores, ficaram boa parte da vida dentro do

espelho questionando-a e na tentativa de tomar posse de seu corpo, passando a

assumi-lo através da desconstrução mental, em que a imaginação assume lugar por

meio de alucinações da própria personagem.

De acordo com as ideias de Giddens (2002, p. 70), pode-se perguntar “O

que fazer? Como fazer? Quem ser?” em circunstâncias das questões existenciais

em que determinados indivíduos se encontram.

Portanto,

Possivelmente você está inquieto. Ou pode se sentir assoberbado pelas demandas da mulher, filhos, marido, ou do trabalho. Pode se sentir pouco apreciado pelas pessoas mais próximas. Talvez sinta raiva de que a vida está passando e você não conseguiu realizar as grandes coisas que pretendia. Parece que falta algo em sua vida [...] (RAINWATER, 1989, p.9 apud GIDDENS, 2002, p. 70).

O reflexo do eu se torna uma possível investigação da alma e os

comportamentos expostos pelo sujeito. A mulher atormentada da obra de criação

constitui uma significância negada pela solidão em que viveu durante anos. A

fragilidade limita a existência de uma pessoa confiante e determinada, constituindo

assim um eu sem identidade.

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A partir do momento em que o espelho se estilhaça ao chão, aquela mulher

atormentada, toma consciência de seu único rosto, formado através das múltiplas

imagens refletidas pelos espelhos quebrados, constatando finalmente que o sujeito é

constituído por muitos eus de várias personalidades. Pois é neste momento que

acontece a união dos conteúdos inconscientes e conscientes, auxiliando o indivíduo

a entender uma identidade marcada pela fragmentação.

Assim como nas obras de Machado de Assis, Cecília Meireles e Pablo

Picasso, o espelho também é o instrumento pelo qual o sujeito pode ver o seu

próprio reflexo e questioná-lo na tentativa de entender seu próprio ser. Há uma

interiorização que os multiplicam em diversos rostos, expressões e sentimentos. O

espelho é o espaço onde os indivíduos mesclam a consciência e a imaginação no

intuito de refletir e desconstruir a ideia de unidade do sujeito, tornando-o múltiplo e

variado.

Enfim, os sujeitos procuram através do espelhar, o sentido da vida e a

reflexão de sua existência, onde tudo se confunde e ao mesmo tempo fica claro.

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