O Trecheiro - Maio de 2012 #207

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IMPRESSO 20 anos de comunicação da rua Rede Rua de Comunicação - Rua Sampaio Moreira, 110 – Casa 9 – Brás – 03008–010 São Paulo SP – Fone - 3227-8683 - 3311-6642 - [email protected] Ano XX Maio de 2012 - Nº 207 Alderon Costa Fotos: Alderon Costa/Rede Rua L o u c o s , m a s l i v r e s ! ! ! Manifestação no MASP, organizada pela Frente Nacional da Luta Antimanicomial em defesa do Sistema Único de Saúde, da reforma psiquiátrica antimanicomial e de uma sociedade sem manicômios! Jorge Luis Custódio já foi do sistema penitenciário, pas- sou pelo bairro da Luz, onde fez uso de todo tipo de droga, ficou em uma casa de recupe- ração durante três anos e, hoje, frequenta o Centro Psicosso- cial de Álcool e Droga de São Bernardo do Campo. “Sou um dependente químico e com este protesto queremos fechar os manicômios. Meu tratamento está sendo pelo CAPS e com muita atenção dos psicólogos e dos oficineiros, a gente não pre- cisa ficar preso. Estou na frente de trabalho do governo de São Bernardo do Campo, sou cos- tureiro e produzo bolsas com material reciclado para super- mercados”. Como Jorge, vários grupos que compõem a Frente Esta- dual de Luta Antimanicomial participaram, no dia 18 de maio, de manifestações pelo Dia Nacional da Luta Antima- nicomial em diversas cidades brasileiras. Na cidade de São Paulo, 1.200 pessoas, apro- ximadamente, se reuniram no vão do MASP na Avenida Paulista e saíram em caminha- da em direção à Secretaria de Estado da Saúde, próxima ao Hospital das Clínicas. Segundo depoimento de Fa- bio Belloni, psicólogo e mili- tante da Frente Estadual, “faz 22 anos que estamos lutando por condições melhores para aque- les usuários ou pessoas com so- frimento psíquico”. Em 2001, segundo ele, foi constituída a lei 10.216/01 que defende que os manicômios devem ser fecha- dos e que os usuários devem ser tratados em centros de atenção psicossocial, em locais abertos e que eles possam se socializar, constituindo rede de amigos e de familiares. Para Belloni, a grande dificuldade é que no Brasil não se tem uma política de Estado, mas sim política de governo. Cada governante que entra, segundo ele, tem seu inte- resse particular e aquilo que deu certo é desmontado se não for de seu interesse. Nessa manifestação foi de- nunciado que funcionários do CAPS Itapeva expulsam os usuários por motivo de falta nas consultas, fato reafirmado por Maria Solange Machado que não pode mais usar esse servi- ço. “Estamos protestando con- tra as políticas segregativas do estado e do município de São Paulo, contra a truculência dos diretores da Associação Paulis- ta para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM) que dirigem o CAPS Itapeva. Ricardo Alberto Honorato, também foi expulso. “A pessoa precisa estar “docilizada” para que o atendimento dentro desses centros aconteça por- que eles não são mais públicos, são privados e estão nas mãos das organizações sociais”, lembra Belloni. Para Rafael Marmo, psicólogo sanitarista, a lei preconiza que a internação para desintoxicação seja ex- clusiva em enfermarias de hospitais públicos, próximos da comunidade. “As comunidades terapêuticas fazem o trabalho contrário ao da reforma psiquiátrica, pois eles querem interna- ção por tempo indefinido”. Para Elaine Dias Vasconcelos, da cooperativa Raul Seixas no CAPS Itaquera, é preciso criar mais serviços substitutivos, mais participação dos familiares e acabar com os hospitais psiquiátri- cos que ainda existem. Ao final da manifestação foi entregue um documento das prin- cipais reivindicações à secretaria. O grafiteiro paulista Mun- dano, que há alguns anos desenvolve o trabalho com grafite, denominado Cidades Recicláveis, pintando as car- roças de catadores em cidades da América Latina, concluiu uma campanha vitoriosa. O projeto “Pimp my Carroça” visava, inicialmente arrecadar Davi Amorim 38 mil reais, por meio de um site de financiamento coletivo, mas concluiu a campanha com 63 mil reais em doações para apoiar os catadores de mate- riais recicláveis no Brasil. O “Pimp my Carroça” é uma espécie de imitação de progra- mas na televisão americana que transformam “carros ve- lhos em máquinas potentes”. Em inglês pimp é uma gíria que quer dizer envenenar. A exemplo disso, esta pro- posta visa dar visibilidade ao trabalho precarizado dos catadores de mate- riais recicláveis que não têm o apoio necessário dos poderes públicos. Com a verba arrecada- da o projeto irá reformar carroças de catadores da cidade de São Pau- lo, pintando-as por re- nomados grafiteiros da cidade, além de equi- pá-las com retrovisores, faixas reflexivas, cordas, luvas e ou- tros equipamentos. Os catado- res participantes passarão com exames com médicos e espe- cialistas em álcool e drogas. “O Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Reci- cláveis (MNCR) entende essa ação como um protesto contra a repressão que os catadores vêm sofrendo na cidade de São Paulo. Sabemos que a carroça não é a melhor forma de traba- lhar, mas essa é uma forma de chamar atenção para as condi- ções em que vivem os catado- res de materiais recicláveis na cidade de São Paulo”, declarou Roberto Laureano, da Coorde- nação Nacional do MNCR. Para Mundano, o projeto foi uma forma bem humorada que abordar a questão dos carro- ceiros e exigir melhores con- dições de trabalho. As carro- ças com pintura e frases como “um catador faz mais que um ministro de meio ambiente” ou “devagar, agente ambiental trabalhando” circulam a cida- de e transmitem a mensagem em favor do respeito ao traba- lho dos catadores. No próximo dia 3 de junho du- rante a Virada Sustentável, que será promovida pela Prefeitura de São Paulo, cerca de 50 cata- dores participantes do “Pimp my Carroça”, catadores organizados no Comitê do MNCR na cidade de São Paulo, além de parceiros a doadores do projeto farão parte da Carroceata dos catadores que terá inicio no Vale do Anhanga- baú e promete percorrer as ruas do centro de São Paulo em um protesto com faixas e panelaço em favor da coleta seletiva com a inclusão dos catadores da cida- de de São Paulo. A intenção do artista grafi- teiro é realizar essa ação em todas as cidades-sede da Copa do Mundo 2014 e Olimpíadas 2016 e o MNCR está apoiando esta iniciativa por meio de uma rede de parceiros. Foto: Divulgação/Mundano

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Jornal o Trecheiros, associação rede rua de comunicação

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IMPRESSO

20 anos de comunicação da rua

Rede Rua de Comunicação - Rua Sampaio Moreira, 110 – Casa 9 – Brás – 03008–010 São Paulo SP – Fone - 3227-8683 - 3311-6642 - [email protected]

Ano XX Maio de 2012 - Nº 207

Alderon Costa

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a Loucos, mas livres!!!

Manifestação no MASP, organizada pela Frente Nacional da Luta Antimanicomial em defesa do Sistema Único de Saúde, da reforma psiquiátrica antimanicomial e de uma sociedade sem manicômios!

Jorge Luis Custódio já foi do sistema penitenciário, pas-sou pelo bairro da Luz, onde fez uso de todo tipo de droga, fi cou em uma casa de recupe-ração durante três anos e, hoje, frequenta o Centro Psicosso-cial de Álcool e Droga de São Bernardo do Campo. “Sou um dependente químico e com este protesto queremos fechar os manicômios. Meu tratamento está sendo pelo CAPS e com muita atenção dos psicólogos e dos ofi cineiros, a gente não pre-cisa fi car preso. Estou na frente de trabalho do governo de São Bernardo do Campo, sou cos-tureiro e produzo bolsas com material reciclado para super-mercados”.

Como Jorge, vários grupos que compõem a Frente Esta-dual de Luta Antimanicomial participaram, no dia 18 de

maio, de manifestações pelo Dia Nacional da Luta Antima-nicomial em diversas cidades brasileiras. Na cidade de São Paulo, 1.200 pessoas, apro-ximadamente, se reuniram no vão do MASP na Avenida Paulista e saíram em caminha-da em direção à Secretaria de Estado da Saúde, próxima ao Hospital das Clínicas.

Segundo depoimento de Fa-bio Belloni, psicólogo e mili-tante da Frente Estadual, “faz 22 anos que estamos lutando por condições melhores para aque-les usuários ou pessoas com so-frimento psíquico”. Em 2001, segundo ele, foi constituída a lei 10.216/01 que defende que os manicômios devem ser fecha-dos e que os usuários devem ser tratados em centros de atenção psicossocial, em locais abertos e que eles possam se socializar, constituindo rede de amigos

e de familiares. Para Belloni, a grande difi culdade é que no Brasil não se tem uma política de Estado, mas sim política de governo. Cada governante que entra, segundo ele, tem seu inte-resse particular e aquilo que deu certo é desmontado se não for de seu interesse.

Nessa manifestação foi de-nunciado que funcionários do CAPS Itapeva expulsam os usuários por motivo de falta nas consultas, fato reafi rmado por Maria Solange Machado que não pode mais usar esse servi-ço. “Estamos protestando con-tra as políticas segregativas do estado e do município de São Paulo, contra a truculência dos diretores da Associação Paulis-ta para o Desenvolvimento da

Medicina (SPDM) que dirigem o CAPS Itapeva. Ricardo Alberto Honorato, também foi expulso. “A pessoa precisa estar “docilizada” para que o

atendimento dentro desses centros aconteça por-que eles não são mais públicos, são privados e estão

nas mãos das organizações sociais”, lembra Belloni. Para Rafael Marmo, psicólogo sanitarista, a lei

preconiza que a internação para desintoxicação seja ex-clusiva em enfermarias de hospitais públicos, próximos da

comunidade. “As comunidades terapêuticas fazem o trabalho contrário ao da reforma psiquiátrica, pois eles querem interna-ção por tempo indefi nido”.

Para Elaine Dias Vasconcelos, da cooperativa Raul Seixas no CAPS Itaquera, é preciso criar mais serviços substitutivos, mais participação dos familiares e acabar com os hospitais psiquiátri-cos que ainda existem.

Ao fi nal da manifestação foi entregue um documento das prin-cipais reivindicações à secretaria.

O grafi teiro paulista Mun-dano, que há alguns anos desenvolve o trabalho com grafi te, denominado Cidades Recicláveis, pintando as car-roças de catadores em cidades da América Latina, concluiu uma campanha vitoriosa. O projeto “Pimp my Carroça” visava, inicialmente arrecadar

Davi Amorim38 mil reais, por meio de um site de fi nanciamento coletivo, mas concluiu a campanha com 63 mil reais em doações para apoiar os catadores de mate-riais recicláveis no Brasil.

O “Pimp my Carroça” é uma espécie de imitação de progra-mas na televisão americana que transformam “carros ve-lhos em máquinas potentes”. Em inglês pimp é uma gíria que quer dizer envenenar. A

exemplo disso, esta pro-posta visa dar visibilidade ao trabalho precarizado dos catadores de mate-riais recicláveis que não têm o apoio necessário dos poderes públicos.

Com a verba arrecada-da o projeto irá reformar carroças de catadores da cidade de São Pau-lo, pintando-as por re-nomados grafi teiros da cidade, além de equi-

pá-las com retrovisores, faixas refl exivas, cordas, luvas e ou-tros equipamentos. Os catado-res participantes passarão com exames com médicos e espe-cialistas em álcool e drogas.

“O Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Reci-cláveis (MNCR) entende essa ação como um protesto contra a repressão que os catadores vêm sofrendo na cidade de São Paulo. Sabemos que a carroça não é a melhor forma de traba-

lhar, mas essa é uma forma de chamar atenção para as condi-ções em que vivem os catado-res de materiais recicláveis na cidade de São Paulo”, declarou Roberto Laureano, da Coorde-nação Nacional do MNCR.

Para Mundano, o projeto foi uma forma bem humorada que abordar a questão dos carro-ceiros e exigir melhores con-dições de trabalho. As carro-ças com pintura e frases como “um catador faz mais que um ministro de meio ambiente” ou “devagar, agente ambiental trabalhando” circulam a cida-de e transmitem a mensagem em favor do respeito ao traba-lho dos catadores.

No próximo dia 3 de junho du-rante a Virada Sustentável, que

será promovida pela Prefeitura de São Paulo, cerca de 50 cata-dores participantes do “Pimp my Carroça”, catadores organizados no Comitê do MNCR na cidade de São Paulo, além de parceiros a doadores do projeto farão parte da Carroceata dos catadores que terá inicio no Vale do Anhanga-baú e promete percorrer as ruas do centro de São Paulo em um protesto com faixas e panelaço em favor da coleta seletiva com a inclusão dos catadores da cida-de de São Paulo.

A intenção do artista grafi -teiro é realizar essa ação em todas as cidades-sede da Copa do Mundo 2014 e Olimpíadas 2016 e o MNCR está apoiando esta iniciativa por meio de uma rede de parceiros.

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O Trecheiro Notícias do Povo da Rua

Rua Sampaio Moreira,110 - Casa 9 - Brás - 03008-010 - São Paulo - SP - Fone: (11) 3227-8683 3311-6642 - Fax: 3313-5735 - www.rederua.org.br - E-mail: [email protected]

REDE RUA DE COMUNICAÇÃO

CONSELHO EDITORIAL:Arlindo Dias EDITORAlderon CostaMTB: 049861/0157

EQUIPE DE REDAÇÃO: Alderon CostaArlindo Dias Cleisa RosaDavi AmorimLea Tosold Maria Carolina FerroRenata BessiRose Barboza

REVISÃO Cleisa Rosa

FOTOGRAFIA: Alderon Costa DIAGRAMAÇÃO: Fabiano Viana

ApoioArgemiro AlmeidaFelipe MoraesJoão M. de Oliveira

IMPRESSÃO: Forma Certa5 mil exemplares

O Trecheiro pag 02 Maio de 2012

Apoio

Edi

tori

alPrivatização da Saúde e da Assistência SocialEstamos próximos de mais uma eleição municipal e

o pleito que vai acontecer no dia 7 de outubro ainda está indefi nido. Mesmo assim, é importante os pré--candidatos começarem a ouvir o que o povo espera da próxima gestão.

Vejam o caso da Frente Nacional da Luta Antimani-comial que organizou manifestação na Avenida Pau-lista, no dia 18 de maio, em que era visível a dife-rença na qualidade de participação e de organização dos municípios de São Bernardo e Embu das Artes. Segundo vários entrevistados, esses dois municípios estão sendo referência para a rede de atendimento, em particular, porque a rede substitutiva está sendo ampliada e o poder público é responsável pela ges-tão dos serviços. As críticas às organizações sociais que administram os serviços de saúde mental foram

contundentes na qualidade e gestão, e reivindicam a volta do princípio básico de gestão do SUS.

O desmonte do serviço público, o atendimento com qualidade e universal, a valorização do profi ssional e a equidade na pres-tação de serviço foram preocupações levantadas pelos mani-festantes e organizadores da Frente Antimanicomial. Lembrou--se de que as cidades de Santos e Santo André e, até mesmo, o CAPS Itapeva em São Paulo já foram, no passado próximo, referências importantes de avanços no atendimento. Todavia, com a mudança de gestão, a qualidade do serviço também caiu. O caso mais preocupante é a substituição da função do Estado por particulares, organizações não governamentais que reali-zam gestão, portanto há terceirização da Saúde.

Um dos problemas graves registrados por nossa reportagem foi a interdição da entrada de alguns pacientes, principalmen-te, daqueles que ainda, apesar de “investidas contrárias”, mantêm autonomia e liberdade no pensar e no agir. A difi cul-dade de lidar com elas demonstra a fragilidade desse modelo, sem falar da falta de transparência e discrepância de salários. Infelizmente, esses “interditados” ou proibidos de entrar nos serviços precisam de atenção e acompanhamento. Casos de ex-pulsão dos usuários dos serviços mostram a incapacidade dos gestores gerenciarem as crises.

O mesmo não acontece com a privatização dos serviços para a população de rua?

Historicamente, na cidade de São Paulo, os serviços para a população em situação de rua são realizados por organizações sociais, uma espécie de privatização disfarçada, mas é priva-tização. Pior, fala-se numa precarizada terceirização, em que as organizações recebem um valor baseado numa tabela da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (Smads) que está sempre defasada de valor e de componentes necessários para se cumprir uma política de acordo com as novas normas do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e com as demandas da Política Nacional da População de Rua. Seria possível começar a pensar na transferência da prestação direta de serviços para o Município de São Paulo. Ele tem con-dições de assumir? Se não tem porque precariza e difi culta o trabalho das organizações sociais?

A depender da política da gestão atual da Smads, o municí-pio vai ser obrigado a assumir emergencialmente os serviços a partir de agosto (por motivos de coerência das organizações conveniadas) e isto signifi ca fazer concurso, capacitar os no-vos profi ssionais, equipar os serviços e efetuar uma operação de fi scalização e controle para que não haja abusos, corrupção e violência contra as pessoas que já vivem à beira da vida.

Senhores/as pré-candidatos/as, repensar a gestão dos ser-viços públicos da Saúde e da Assistência Social é urgente e repensar a relação com as organizações sociais não pode ser deixada para um momento de crise fi nanceira. Deve ser algo pensado, refl etido, conversado e pactuado com todos os atores da sociedade civil organizada.

VIDA NO TRECHO

O Trecheiro

Assim escreve Tula Pilar em seu livro Palavras Inacadêmicas, poema que poderia ser de Mara Lúcia Sobral Santos.

Mara quando criança sonhava ir para a escola, mas a vida dura dentro de casa a obrigava a sair em companhia da mãe Maria Conceição para a catação que garantia a sobrevivência da fa-mília. Aos nove anos de idade perdeu a mãe e seu destino foi o trabalho nas ruas.

Mara teve três fi lhos, é mãe de mais de uma dezena de adotivos e luta para que todos frequentem a escola. “Ser analfabeto é como ter uma doença contagiosa, to-dos te olham de forma diferente. Os jovens de hoje não valorizam o conhecimento e sim o diplo-ma”, afi rma Mara Lúcia.

Mara Lúcia, hoje presidente da Cooperativa de Catadores Granja Julieta Nossos Valores preocupa, particularmente, com os dependentes químicos e os orienta para que não fi quem nas ruas. Muitos jovens são esti-mulados por ela a estudar e ar-rumar um emprego de carteira assinada, para que possam ter os mesmos direitos que outros tra-balhadores.

A cooperativa é apenas uma porta de passagem para uma vida melhor. Mas, se diz triste, embora os jovens tenham hoje um diploma de segundo grau “eles sabem muito pouco, ape-nas assinam o nome, não com-preendem a leitura. Lutei tanto para que meus fi lhos estudas-sem, mas, eles sabem menos que eu. Precisamos mudar o en-sino público neste país”, fi naliza Mara Lúcia.

A fi lha mais velha Laíssa, cursa gestão ambiental na USP. Quando foi trabalhar com a mãe na cooperativa durante o dia e

Joelma Couto

Mãe catadora

estudar à noite, Laíssa tinha um sonho: ser juíza. Aos poucos ao entender o poder da comunica-ção, voltou-se para o jornalis-mo. Mas trabalhar com pessoas em situação de rua, jovens sem muita ou nenhuma expectativa, quase sem sonhos descobriu que sua vocação era como a da mãe, cuidar da natureza e de pessoas. Descobriu que não queria cola-borar com um sistema punitivo e discriminador, mas sim, “criar oportunidades de trabalho e vida para aqueles que como ela tinham uma avó catadora, uma mãe catadora e que só conse-guiria isso batalhando muito

para entrar em uma universidade pública”. O sonho se tornou realidade.

Mara Lúcia está feliz, todos os seus fi lhos estão na batalha por um mundo e uma escola melhor, engajados, produzindo o jornal da escola, fazendo parte de for-ma produtiva da sociedade em que vivem.

A mãe catadora, ex-menina de rua, hoje, por meio de sua fi lha tem os pés na universidade e ouve orgulhosa as palavras de Laíssa, que diz: “Quero empre-gar tudo que aprendo lá para mu-dar a vida das pessoas aqui”.

“Meu avô catava ferro, alumínio, aço, inox...Metais preciosos que viraram ouro no fim do diaQue traziam o pão à nossa mesaEm nossas vidas tanta, tanta alegria Meu avô catador....”

Carroceata dos catadores e panelaço em favor de sua inclusão na coleta seletivaDia: 3 de junho de 2012Horário: 9 horas Local: Vale do Anhangabaú seguido de percurso pelas ruas do Centro. 50 catadores participarão com suas car-roças grafi tadas. Informações na p. 4.

Celebração na rua Pastoral do Povo da Rua da Arquidiocese de São Paulo realizará todo 4º domingo do mês um encontro do Povo da RuaPróxima celebração:Dia: 27 de junho de 2012Local: Praça da Sé - 15 horas

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O Trecheiro pag 03 Maio 2012

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Cleisa Rosa com a colaboração de Davi Amorim e de Alderon Costa

DIRETO DA RUA A luta do Paraná

Leonildo Monteiro, coordenador do MNPR do Paraná

O Trecheiro

Léa Tosold e Rose Barboza

É fundamental que as pessoas com trajetória de rua possam ques-tionar elas mesmas o conhecimento produ-zido pela universidade e criar suas próprias formas de expressão.

O último censo realizado, em 2008, contou 2.776 pessoas em situação de rua na cidade de Curitiba, mas o município pos-sui apenas um albergue para 350 pessoas e mais cem vagas em convênio com entidades religio-sas para acolhimento nesse frio. Representantes do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR) já vêm trabalhando há algum tempo para que o municí-pio concretize uma política públi-ca para a população de rua.

Atualmente o MNPR do Paraná está em diálogo com o município de Curitiba para a criação do Co-mitê Intersetorial para que avan-cemos com um atendimento mais efetivo. Assim, realizamos neste mês de maio a primeira audiência no Paraná, com a participação da

população de rua; de apoiadores do movimento; do grupo de tra-balho da população de rua; de re-presentantes: das três esferas pú-blicas; do Ministério Público do Paraná; da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legis-lativa do Paraná e da Secretaria de Justiça. Por ser a primeira au-diência, tivemos bons resultados sobre a discussão das violações e violências sofridas pela popula-ção de rua do Paraná.

De concreto, tivemos a fala da Secretaria de Justiça do estado do Paraná, Maria Tereza, que nos informou sobre o espaço que será cedido para a construção do Cen-tro Estadual de Defesa de Direitos Humanos para População de Rua e Catadores e que vai colabo-

rar no fortalecimento da luta do MNPR e do Grupo de Trabalho da População de Rua do Paraná.

Com o Governo Federal repre-sentado pela Secretaria de Direi-tos Humanos foram relatadas as atividades desenvolvidas pelo Co-mitê Intersetorial de Acompanha-mento e Monitoramento da Políti-ca Nacional da População de Rua e suas ações. Em breve, chegará o relatório fi nal dessas atividades.

Além disso, o Ministério Desen-volvimento Social e Combate à Fome (MDS) falou sobre as propo-sições da Política Nacional para população de rua e o município de Curitiba informou que a popula-ção de rua terá acesso gratuito à alimentação no restaurante popu-lar. Além disso, houve exposições das nossas companheiras do Gru-po de Trabalho: Giovanna sobre a moradia e a Rhaine sobre a saúde.

Ao fi nal, após a fala das pes-soas em situação de rua sobre o sofrimento de estar nas ruas do Paraná, Tomás Melo, repre-sentante do Paraná no Centro Nacional de Defesa de Direitos Humanos da População de Rua e Catadores entregou um dossiê sobre as violações de direitos e as violências que a população de rua está sofrendo em várias cidades do estado.

Catadores na ÍndiaUma delegação brasileira participou no fi nal de abril de encontro na Índia, que reuniu catadores da Améri-ca Latina, África e Ásia para debater diferentes mo-delos de inclusão produtiva dos catadores na gestão municipal de resíduos. Nos diferentes continentes do mundo, é comum o relato sobre a incineração de lixo que vem ameaçando o trabalho dos catadores.

Catadores na Cúpula dos Povos/Rio+20

O MNCR terá um espaço exclusivo de 500 cata-dores de diferentes estados brasileiros e naciona-lidades para debater e trocar experiência durante a Cúpula dos Povos, evento paralelo da Rio+20, que acontecerá entre os dias 15 e 23 de junho no Rio de Janeiro.

Catadora de material reciclável entra na USP

Laíssa, 19 anos, trabalhava como catadora de mate-rial reciclável na cooperativa Granja Julieta, zona sul de São Paulo, da qual sua mãe é presidente. Ape-sar de pouco incentivo, estudou e entrou no curso de gestão ambiental da FMU em 2011. Com difi culdade fi nanceira de pagar este curso resolveu transferir-se para a USP. Sem dinheiro para comprar os livros, recebeu ajuda de uma amiga, que fez campanha num blog. Liv-ros começaram a chegar até mesmo via sedex. O resultado: ela foi aprovada no curso de gestão ambiental da USP Leste. Foto ao lado.

A cidade aguarda os resultados da pesquisa realizada no ano passado pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, contratada pela Secretaria de Assistência Social do Município de São Paulo conforme anúncio feito no dia 17 de outubro de 2011 na sede da Prefeitura, na presença de representantes do Ministério Público, dr. Eduardo Valério e da Arquidiocese de São Paulo, padre Júlio Lancellotti e de organizações sociais convidadas.

Lutar pelo acesso a uma edu-cação formal e de qualidade é uma das formas mais efeti-vas de enfrentar a condição de pobreza e de vulnerabilidade social extrema em que vivem mais de 16 milhões de brasilei-ros e brasileiras.

Ao entrevistar Sérgio Reis Pe-reira – bolsista do programa de Ações Afi rmativas do curso de Pedagogia da Universidade de Brasília (UnB) e com trajetória de rua para a Vida no Trecho (nº 206) –, o jornal deparou-se com uma discussão fundamen-tal para informar o desenho das políticas públicas de acesso ao ensino superior.

Quem tem acesso à Univer-sidade? De pronto, a resposta seria: são certamente os jovens que tiveram oportunidade de estudar em boas escolas, de comprar livros e tempo sufi -ciente de se prepararem para os exames seletivos. A universi-dade estabelece no seu acesso, competição que privilegia os ricos e não os pobres.

Fazer uma faculdade não é apenas uma forma de melhorar o currículo ou de conseguir um

emprego melhor, mas de receber e ser infl uenciado por valores, códigos e visões de mundo que podem alteram nossa lingua-gem, nossa aparência, nossas relações e, consequentemente, nossa própria identidade. Fazer uma faculdade é enfrentar dia-riamente as limitações de um ambiente criado para manter in-tactas as relações que persistem desde a época colonial: a con-centração de capital fi nanceiro e cultural nas mãos de uma elite branca e “estudada”, que propa-ga o aprendizado da exploração fi nanceira, política e social.

É necessário desconstruir a ideia, amplamente difundida, do “quem quer, consegue”. Além de mentirosa, é uma ilu-são simplista que não considera a complexidade de fatores que

afastam da universidade muita gente que gostaria de estar lá.

Acabar com os privilégios Muitas pessoas não querem

abrir mão de seus privilégios. Para a população em situação de rua, estar na universidade é um caminho para alterar a com-posição desigual dessa insti-tuição, bem como questionar e desafi ar essas desigualdades a partir de suas próprias experi-ências. É fundamental que as pessoas com trajetória de rua possam questionar elas mesmas o conhecimento produzido pela universidade e criar suas pró-prias formas de expressão.

Ao falar sobre si mesmas e produzir conhecimentos que partem de suas próprias experi-ências, as pessoas com trajetó-ria de rua podem então desmis-tifi car lugares comuns e trazer vivências que enriquecem dis-cussões muitas vezes abstratas e sem sentido. Dessa forma, po-dem auxiliar a recriar o conhe-cimento científi co e colaborar na construção de uma universi-dade mais justa e democrática.

Acesso ao ensino superior

Onde está a pesquisa?

Mesa - Anúncio do início da pesquisa. Rodrigo Estramanho (Sociologia e Política), dr. Eduardo Valério (MP-SP), Alda Marco Antônio (Vice-prefeita), pa-dre Júlio Lancellotti (Pastoral do Povo da Rua) e Ângela Eliana de Marchi (Smads)

sul de São Paulo, da qual sua mãe é presidente. Ape-sar de pouco incentivo, estudou e entrou no curso de gestão ambiental da FMU em 2011. Com difi culdade fi nanceira de pagar este curso resolveu transferir-se para a USP. Sem dinheiro para comprar os livros, recebeu ajuda de uma amiga, que fez campanha num blog. Liv-ros começaram a chegar até mesmo via sedex. O resultado: ela foi aprovada no curso de gestão ambiental da USP Leste. Foto ao lado.

A cidade aguarda os resultados da pesquisa realizada no ano passado pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, contratada pela Secretaria de Assistência Social do Município de São Paulo conforme anúncio feito no dia 17 de outubro de 2011 na sede da Prefeitura, na presença de representantes do Ministério Público, dr. Eduardo Valério e da Arquidiocese de São Paulo, padre Júlio Lancellotti e de organizações sociais convidadas.

códigos e visões de mundo que podem alteram nossa lingua-gem, nossa aparência, nossas relações e, consequentemente, nossa própria identidade. Fazer uma faculdade é enfrentar dia-riamente as limitações de um ambiente criado para manter in-

Para a população em situação de rua, estar na universidade é um caminho para alterar a com-posição desigual dessa insti-tuição, bem como questionar e desafi ar essas desigualdades a partir de suas próprias experi-ências. É fundamental que as pessoas com trajetória de rua possam questionar elas mesmas o conhecimento produzido pela universidade e criar suas pró-prias formas de expressão.

Ao falar sobre si mesmas e

Leonildo Monteiro, coordenador do MNPR do Paraná

rar no fortalecimento da luta do MNPR e do Grupo de Trabalho da População de Rua do Paraná.

produzir conhecimentos que partem de suas próprias experi-ências, as pessoas com trajetó-ria de rua podem então desmis-tifi car lugares comuns e trazer vivências que enriquecem dis-cussões muitas vezes abstratas e sem sentido. Dessa forma, po-dem auxiliar a recriar o conhe-cimento científi co e colaborar na construção de uma universi-dade mais justa e democrática.

Onde está a pesquisa?

Mesa - Anúncio do início da pesquisa. Rodrigo Estramanho (Sociologia e Política), dr. Eduardo Valério (MP-SP), Alda Marco Antônio (Vice-prefeita), pa-dre Júlio Lancellotti (Pastoral do Povo da Rua) e Ângela Valério (MP-SP), Alda Marco Antônio (Vice-prefeita), pa-dre Júlio Lancellotti (Pastoral do Povo da Rua) e Ângela Valério (MP-SP), Alda Marco Antônio (Vice-prefeita), pa-

Eliana de Marchi (Smads)

Mesa - Anúncio do início da pesquisa. Rodrigo Estramanho (Sociologia e Política), dr. Eduardo Valério (MP-SP), Alda Marco Antônio (Vice-prefeita), pa-

A cidade aguarda os resultados da pesquisa realizada no ano

Valério (MP-SP), Alda Marco Antônio (Vice-prefeita), pa-dre Júlio Lancellotti (Pastoral do Povo da Rua) e Ângela Valério (MP-SP), Alda Marco Antônio (Vice-prefeita), pa-dre Júlio Lancellotti (Pastoral do Povo da Rua) e Ângela Valério (MP-SP), Alda Marco Antônio (Vice-prefeita), pa-

Eliana de Marchi (Smads)

A cidade aguarda os resultados da pesquisa realizada no ano

o conhecimento produzido pela universidade e criar suas pró-prias formas de expressão.

Ao falar sobre si mesmas e produzir conhecimentos que partem de suas próprias experi-ências, as pessoas com trajetó-ria de rua podem então desmis-

A cidade aguarda os resultados da pesquisa realizada no ano A cidade aguarda os resultados da pesquisa realizada no ano

Mesa - Anúncio do início da pesquisa. Rodrigo Estramanho (Sociologia e Política), dr. Eduardo Valério (MP-SP), Alda Marco Antônio (Vice-prefeita), pa-Valério (MP-SP), Alda Marco Antônio (Vice-prefeita), pa-dre Júlio Lancellotti (Pastoral do Povo da Rua) e Ângela Valério (MP-SP), Alda Marco Antônio (Vice-prefeita), pa-

Ao falar sobre si mesmas e produzir conhecimentos que partem de suas próprias experi-ências, as pessoas com trajetó-ria de rua podem então desmis-

Mesa - Anúncio do início da pesquisa. Rodrigo Estramanho (Sociologia e Política), dr. Eduardo

Cadê?

Pré - Cúpula dos Povos Seminário: A Política Nacional dos Resíduos

e Feira de Troca

Contra a Mercantilização da Vida Dia: 5 de junho - Dia Mundial do Meio Ambiente e da EcologiaLocal: Largo São Francisco - Centro de São Paulo Horário: das 10 às 16 horas Proposta: Intervenções, atividades lúdicas, ofi cinas, panfl eta-gem e divulgação sobre o processo de mercantilização da vida na Rio+20.

Proposta: Intervenções, atividades lúdicas, ofi cinas, panfl eta-gem e divulgação sobre o processo de mercantilização da vida

Simone Frangella*

O Trecheiro pag 04 Maio de 2012

A população de rua carrega no corpo a opressão e o sofrimento

O mundo das ruas nas ruas do mundo

Uma mineira entre os “barboni” de Roma!

Urci Ferrari, conhecida pelos “bar-boni” – um dos nomes dados às pesso-as em situação de rua na Itália –, como Maria Della Neve, nome que recebeu quando se consagrou religiosa, percor-reu longa trajetória desde sua saída da cidade mineira de Ubá até se instalar defi nitivamente em Roma. De pequena estatura costumava dizer com o sorriso

O estudo que desenvolvi com pessoas em situação de rua levou em conta que o corpo expressa essencialmente as ex-periências de rua, o sofrimento, a supe-rexposição, as reações frente às formas de opressão e à relação estabelecida en-tre quem está na rua e as pessoas que estão ao seu redor.

Uma questão essencial é que pela au-sência de abrigo, de casa, é por meio do corpo (e só dele) que as pessoas em si-tuação de rua tentam sobreviver e criar outras estratégias para viver, para resis-tir aos mecanismos que tendem sempre a comprimí-los.

Assim, para se compreender melhor o universo da rua, é preciso olhar para:

•O constante deslocamento dos habi-tantes das ruas pela cidade – muito im-portante para sua sobrevivência – seja para procurar recursos ou porque são obrigados a se deslocar. Os pés são a base dessa sobrevivência, e descrevo bastante o uso deles para as caminhadas longas e o efeito do cansaço e do peso que se carrega neles.

•As violências físicas sofridas, mui-tas vezes, por pessoas desconhecidas, quando estão dormindo nas ruas. É preciso olhar, também, para a violência que surge entre as pessoas em situação de rua, gerada pelo cansaço, pela frus-tração, pela falta de entendimento. O corpo de quem está na rua é muito vul-nerável e está sempre obrigado a fi car num espaço cada vez mais limitado.

•As soluções para resolver necessi-dades corporais, tais como a comida, o remédio, a cachaça, a segurança para dormir, o espaço de privacidade na rua devem ser aprofundadas. É preciso usar, com muita criatividade, os recursos li-mitados que conseguem e negociar com várias pessoas: donos de restaurantes, de lojas, assistentes sociais, agentes pú-blicos da limpeza e policiais, criando diferentes formas de diálogo e de inte-ração social. Como resultados, destaco:

•As marcas corporais, de envelheci-mento precoce, de sujeira, dos machu-cados, são muito evidentes neste corpo, resultados do ambiente de escassez da rua. Essas marcas criam uma imagem muito estigmatizada frente a outros se-tores da sociedade ou mesmo entre os habitantes das ruas.

•As relações com os materiais re-cicláveis são de extrema importância para quem está na rua, como forma de subsistência, como forma de proteção, ou como uma habitação improvisada, criando uma imagem de confusão entre roupas, plástico e papelão.

•A relação com a comida, seja na bus-ca por alimentos em refeitórios e can-

...o constante movimento desta população mostra que estas pessoas estão à pro-cura de um direito humano básico: a de ocupar um lugar no espaço urbano e no mundo.

tinas, seja cozinhando na própria rua, envolve sempre um deslocamento cons-tante e uma organização dinâmica.

•As questões de gênero e de sexuali-dade estão presentes de formas diver-sas. O mundo da rua é muito masculi-nizado, e mulheres e homossexuais que estão nele fi cam ainda mais vulneráveis e discriminados. Para se adaptar, ou se submetem a regras de dependência, ou marcam sua vida de solidão. Há cons-tantes confl itos de gênero.

E a sua relação com o patrimônio ur-bano é quase sempre confl ituosa. As pessoas em situação de rua têm enfren-tado projetos urbanísticos que os proí-bem de fi car nos espaços, os ameaçam e muito frequentemente os retiram com violência. Estas situações reforçam a ideia de que elas são uma ameaça à so-ciedade.

O mais importante é o constante mo-vimento desta população mostra que estas pessoas estão à procura de um di-reito humano básico - o de ocupar um lugar no espaço urbano e no mundo.

Discutir a corporalidade que se cons-trói a partir da rua é essencial para criarmos políticas mais sensíveis e ade-quadas, que levem em conta que as ex-periências desse corpo não se apagam, e os hábitos e as aparências marcadas pela rua levam tempo para mudar. As-sim, como sugestão:

•As políticas ligadas ao direito devem tentar assegurar o direito de uma pessoa usar o espaço das ruas para sua vivência

quando necessário; e devem orientar as políticas de saúde pública nas questões sobre a corporalidade.

•As entidades assistenciais pode-riam criar eventos/ofi cinas terapêuti-cas levando em conta as difi culdades e limitações, mas também a criativi-dade do corpo na rua, quebrando um pouco o estigma em cima da popula-ção em situação de rua.

* Simone é antropóloga e publicou Corpos Urbanos Errantes – Uma etnografi a da cor-poralidade de moradores de rua em São Paulo (Editora Annablume, 2010).

brejeiro nos lábios: “As coisas peque-nas são as melhores, não é verdade”?

Na mocidade, migrou para o Rio de Ja-neiro, onde vivia com a tia. Tempos depois acabou deixando o emprego e foi se dedi-car a mulheres em situação de prostituição na região da Central do Brasil. “Era um trabalho bonito, mas exigia um amor sem preconceitos. Alguns vizinhos escreviam à

delegacia de policia para reclamar que eu estava com aquelas moças. Um dia meu pai veio à cidade e me disse ‘você é doi-da de fi car no meio dessa gente. Vou levar você de volta pra Ubá’. Ninguém me leva mais de volta”, respondeu. Foi mesmo um caminho sem retorno!

No ano de 1966, foi enviada à Itália e acabou se fazendo religiosa orionina. No inicio dos anos de 1990, encontrou Luigi di Liegro, padre diocesano que se sensi-bilizou pela situação dos empobrecidos de Roma. Na ocasião, pessoas de todo o mundo chegavam à cidade em busca de trabalho e acabavam por se somar aos ita-lianos que já viviam pelas ruas. “Fazia de tudo um pouco, cortava o cabelo, fazia a barba, limpeza nos pés das pessoas e era responsável pelo dormitório que acolhia 125 homens”, explicou.

Maria das Neves faleceu no dia 12 de abril deste ano aos 79 anos de idade. “Apesar de ter visto muita gente pobre no Brasil, não imaginava que as pessoas che-gassem ao estado de algumas que encon-trei: piolhos, corpo todo ferido e inchado, feridas infectadas por terem dormido no chão por anos seguidos. Sentia-me ferida

por dentro ao ver as pessoas perderem a dignidade. É duro ver gente sem casa, sem-trabalho, sem núcleo familiar. Eu recebi muito no albergue: a amizade, a confi ança, o amor que eles têm por mim. Eles nos falam de coisas profundas da vida deles”, afi rmou.

Cerca de 300 pessoas participaram da celebração de despedida que aconteceu no mesmo lugar onde cerca de 400 pessoas recebem a refeição diária. “A presença e a dedicação de Maria Della Neve huma-nizou o ambiente do albergue”, afi rmou Guerino Di Tora, bispo auxiliar de Roma e ex-diretor da Cáritas.

Renato Porcu, um dos usuários assim se expressou a respeito da religiosa: “Para todo o amor que você distribuiu não exis-te uma medida. O tempo construiu a tua imagem, agora queremos desfrutar do teu sorriso cotidiano”.

Bernadeth Oliveira, uma das compa-nheiras da comunidade e conselheira geral brasileira afi rmou que a presença de Maria Della Neve no albergue representou uma espécie de “mão quente e amiga estendida que soube acolher independentemente da raça, cor ou religião”.

Arlindo Dias

Fazendo a casa na rua (kombi) - desafi o à privacidade

Embates constantes - a limpeza urbana e os direitos de estar

Fotos: Alderon Costa/Rede Rua

Foto: Caritas/Roma

Expulsão cotidiana - O direito humano básico de ocupar um lugar no espaço urbano