O vale da eternidade No Douro, o tempo descansa e as uvas ... · O vale da eternidade No Douro, o...

2
14 WWW.CARTACAPITAL.COM.BR Portuguesa O douro é o espelho, a colina é Narciso. Em companhia do céu ela se precipita sobre as águas como em um bungee jump até não ser mais possível definir o iní- cio e o fim. A van serpenteia a serra, en- tre vinhas e oliveiras, alecrins e lavan- das, e parece ser o único objeto ao redor em movimento. A impressão é de que o próprio tempo escolheu as margens do rio para repousar. “Aqui carregamos no DNA a virtude da paciência”, filosofa Ál- varo Lopes, enólogo da Real Companhia Velha, centenária fabricante de vinhos, intérprete nas horas vagas de tradicio- nais canções portuguesas. “Ao sermos confrontados diariamente com a eter- nidade, lidamos melhor com a finitude.” Produtores de vinho, em qualquer quadrante, têm por hábito e necessi- dade cultivar a paciência. As técnicas modernas de produção permitem evitar desastres, corrigir falhas, mas uma safra excepcional é resultado exclusivo dos caprichos da natureza, uma combinação única, nunca reproduzível, de sol, ventos e chuvas. Mas na região do Douro, norte de Portugal, as ideias de eternidade e de perfeição se realizam de forma plena. Alguns quilômetros adiante, no Vale do Côa, um sítio arqueológico com mais de 30 mil anos preserva intactas pintu- ras rupestres no exterior das cavernas. Em outros recantos da Europa, as in- tempéries apagaram a maior parte dos vestígios externos da comunicação de nossos ancestrais. No Douro, as mon- tanhas criaram, porém, uma barreira peculiar de proteção. Esse ambiente produz também um vi- nho único, espírito moldado em um solo íngreme e xistoso que exige um esforço incomum e até improvável. Entre as ra- chaduras do xisto, as raízes penetram quatro metros para encontrar água. O clima é de extremos: no inverno faz mui- to frio, no verão o calor é intenso. Vinhos excepcionais atravessam décadas. Os do Porto resistem aos séculos. “Outro dia provei uma garrafa de 1834. Divine!”, descreve George T. D. Sandeman, gi- gante inglês herdeiro de uma das marcas mais tradicionais do país. O primeiro Sandeman deixou a ponta norte da Escó- cia e chegou à cidade do Porto no século XVIII. Também se chamava George. Deve-se aos ingleses e escoceses a fa- ma mundial do vinho do Porto. E suas denominações tradicionais: Ruby, o mais avermelhado, e Tawny, em tons dourados. Winston Churchill os apre- ciava na companhia de um bom charu- to. O italiano Luigi Veronelli, filósofo de formação, imbatível enólogo morto em 2004, dono de uma adega escavada na rocha em Bérgamo com mais de 60 mil rótulos, escolheria um Porto das quin- tas caso Noé o convidasse a embarcar na arca e limitasse sua bagagem a uma única garrafa. “O Douro é uma área dra- mática. Sua geografia, sua gente. E a ex- pressão dessa dramaticidade é este vi- nho inigualável”, afirma Lopes. O enólogo é um raro personagem sem tradições ancestrais na cultura do vinho. É o primeiro da família a trabalhar no ramo e trata as uvas da Quinta das Car- valhas como seres humanos. A Rufete é “feminina”, “Chanel”. O Souzão é “forte”, “robusto”. Na infância, Lopes era fasci- nado pelo método de mister Bruce, inglês bonachão que guiava um Volvo azul até sua aldeia para comprar uvas. “Ele tinha mãos enormes e dava murros nos reser- vatórios. O ar saía, ele sentia o cheiro e VINHOS PORTUGUESES CONSUMO PER CAPITA: 43 LITROS EXPORTAÇÕES TOTAIS: 652 MILHÕES DE EUROS VINHO DO PORTO: 280 MILHÕES BRASIL: 4º MERCADO O vale da eternidade No Douro, o tempo descansa e as uvas produzem um néctar que atravessa os séculos POR SERGIO LIRIO* •CCPortuguesa708.indd 14 25/07/12 20:17

Transcript of O vale da eternidade No Douro, o tempo descansa e as uvas ... · O vale da eternidade No Douro, o...

Page 1: O vale da eternidade No Douro, o tempo descansa e as uvas ... · O vale da eternidade No Douro, o tempo descansa e as uvas produzem um néctar ... A ponte projetada por Eiffel e as

14 WWW.CartaCaPital.Com.Br

Portuguesa

Odouro é o espelho, a colina é Narciso. Em companhia do céu ela se precipita sobre as águas como em um bungee jump até não ser mais possível definir o iní-

cio e o fim. A van serpenteia a serra, en-tre vinhas e oliveiras, alecrins e lavan-das, e parece ser o único objeto ao redor em movimento. A impressão é de que o próprio tempo escolheu as margens do rio para repousar. “Aqui carregamos no DNA a virtude da paciência”, filosofa Ál-varo Lopes, enólogo da Real Companhia Velha, centenária fabricante de vinhos, intérprete nas horas vagas de tradicio-nais canções portuguesas. “Ao sermos confrontados diariamente com a eter-nidade, lidamos melhor com a finitude.”

Produtores de vinho, em qualquer quadrante, têm por hábito e necessi-dade cultivar a paciência. As técnicas modernas de produção permitem evitar desastres, corrigir falhas, mas uma safra excepcional é resultado exclusivo dos caprichos da natureza, uma combinação única, nunca reproduzível, de sol, ventos e chuvas. Mas na região do Douro, norte de Portugal, as ideias de eternidade e de perfeição se realizam de forma plena.

Alguns quilômetros adiante, no Vale do Côa, um sítio arqueológico com mais de 30 mil anos preserva intactas pintu-ras rupestres no exterior das cavernas. Em outros recantos da Europa, as in-tempéries apagaram a maior parte dos vestígios externos da comunicação de nossos ancestrais. No Douro, as mon-tanhas criaram, porém, uma barreira peculiar de proteção.

Esse ambiente produz também um vi-nho único, espírito moldado em um solo

íngreme e xistoso que exige um esforço incomum e até improvável. Entre as ra-chaduras do xisto, as raízes penetram quatro metros para encontrar água. O clima é de extremos: no inverno faz mui-to frio, no verão o calor é intenso. Vinhos excepcionais atravessam décadas. Os do Porto resistem aos séculos. “Outro dia provei uma garrafa de 1834. Divine!”, descreve George T. D. Sandeman, gi-gante inglês herdeiro de uma das marcas mais tradicionais do país. O primeiro Sandeman deixou a ponta norte da Escó-cia e chegou à cidade do Porto no século XVIII. Também se chamava George.

Deve-se aos ingleses e escoceses a fa-ma mundial do vinho do Porto. E suas denominações tradicionais: Ruby, o mais avermelhado, e Tawny, em tons dourados. Winston Churchill os apre-ciava na companhia de um bom charu-to. O italiano Luigi Veronelli, filósofo de formação, imbatível enólogo morto em 2004, dono de uma adega escavada na rocha em Bérgamo com mais de 60 mil rótulos, escolheria um Porto das quin-tas caso Noé o convidasse a embarcar na arca e limitasse sua bagagem a uma única garrafa. “O Douro é uma área dra-mática. Sua geografia, sua gente. E a ex-pressão dessa dramaticidade é este vi-nho inigualável”, afirma Lopes.

O enólogo é um raro personagem sem tradições ancestrais na cultura do vinho. É o primeiro da família a trabalhar no ramo e trata as uvas da Quinta das Car-valhas como seres humanos. A Rufete é “feminina”, “Chanel”. O Souzão é “forte”, “robusto”. Na infância, Lopes era fasci-nado pelo método de mister Bruce, inglês bonachão que guiava um Volvo azul até sua aldeia para comprar uvas. “Ele tinha mãos enormes e dava murros nos reser-vatórios. O ar saía, ele sentia o cheiro e

VINHOS PORTUGUESES

CONSUMO PER CAPITA: 43 LITROS

EXPORTAÇÕES TOTAIS: 652 MILHÕES DE EUROS

VINHO DO PORTO: 280 MILHÕES

BRASIL: 4º MERCADO

O vale da eternidade No Douro, o tempo descansa e as uvas produzem um néctar que atravessa os séculosPOR SERGIO LIRIO*

•CCPortuguesa708.indd 14 25/07/12 20:17

Page 2: O vale da eternidade No Douro, o tempo descansa e as uvas ... · O vale da eternidade No Douro, o tempo descansa e as uvas produzem um néctar ... A ponte projetada por Eiffel e as

cartacapital | 1º de agosto de 2012 15

definia de quem compraria e de quem não compraria. Assim, desta maneira rústica, se estabelecia a noção de terroir.”

No fundo do vale avista-se a sede da Quinta do Bom Retiro. A van segue cui-dadosa para vencer as curvas à beira do precipício e o cheiro dos laranjais se har-moniza ao pôr do sol de um vermelho intenso. Jorge Rosas nos recebe com simpatia. O pai português conheceu a mãe brasileira durante uma viagem a Ilhabela, litoral de São Paulo, mas as li-gações da família com o país remontam à origem da Ramos Pinto. Adriano, tio-bi-savô de Rosas, foi o primeiro a engarra-far o vinho do Porto, por volta de 1880, sobretudo para o mercado do Brasil. An-tes dele, o vinho era vendido em barris.

Adriano era ousado e meticuloso. Comprava as garrafas na Alemanha, mandava produzir os rótulos na França. Para anunciar seus produtos, recorria a cartazes em estilo art nouveau repletos de erotismo. Em um deles, ainda do sé-culo XIX, enviado ao Brasil, uma mulher

branca vestida à moda das senhoras de engenho cai nos braços de um negro re-tinto de lábios grossos. Abaixo, a frase: “O vinho do Adriano Ramos Pinto é para a gente ficar tiririca”. Em outro, o beijo na boca de duas mulheres de smoking é impedido por um cálice. Em um tercei-ro, um padre segura uma garrafa e é ten-tado por belas fiéis. O principal slogan da empresa afirmava que os produtos da casa “dão alegria aos tristes e audácia aos tímidos”. No início do século XX no Rio de Janeiro, pedia-se não um copo do Porto, mas um Adrianinho.

Ao optar pela garrafa, Ramos Pinto deu outro status à bebida. Seus vinhos eram três ou quatro vezes mais caros, mas a certa altura a companhia chegou a domi-nar 50% do mercado da América do Sul. Em 1906, após vencer a resistência dos carolas da velha capital da República, escandalizados com a nudez das ninfas e do cupido, conseguiu ver inaugurada, nos Jardins da Glória, no Rio, a fonte pre-

senteada a Rodrigues Alves. Atualmente, o monumento restaurado enfeita o túnel que liga o centro a Copacabana.

Ramos Pinto também “causava”, co-mo se diz hoje, em sua terra natal. O Bom Retiro foi uma das primeiras quintas a possuir piscina. Arbustos plantados ao redor afastavam os curiosos. Segundo os comentários da época, Adriano tinha predileção por dançarinas do cancã e costumava levá-las de Paris para nadar nuas em sua propriedade no Douro.

Passado um século, Jorge Rosas ri das aventuras do tio-bisavô. Aos 45 anos, está, como os vinhedos da propriedade, impregnado pela tradição. Rosas repre-senta a quinta geração da família à frente dos negócios. E é bem provável que seus bisnetos, tataranetos, venham sentar-se na mesma cadeira na sala de estar, diver-tir-se com as mesmas histórias e beber o mesmo vinho servido nesta noite. •*O repórter viajou a convite da Vinhos de Portugal e da Aicep.

fo

to

s: s

er

gio

lir

iom

al

ta

Plenitude. A ponte projetada por Eiffel e as colinas que se lançam sobre o curso do rio. Nesse cenário, Jorge Rosas representa a quinta geração da família Ramos Pinto à frente dos negócios. A vinícola tem uma histórica ligação com o Brasil. Em 1906, Adriano, tio-bisavô de Rosas, presenteou o Rio de Janeiro com uma fonte. Instalada inicialmente na Glória, hoje enfeita o túnel entre o centro e Copacabana. Ainda no século XIX, Adriano tornou-se sinônimo de vinho do porto

•CCPortuguesa708.indd 15 25/07/12 20:17