Odc Poderes Imateriais
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organizador de carne -
poderes imateriais na comunicação contemporânea
sheila canevacci ribeiro/dona orpheline
A idéia de usar o objeto que organiza filas em bancos, aeroportos e museus
para um projeto coreográfico tornou-se explícita para mim a partir de uma
experiência vivida no Departamento de Investigações Criminais (DEIC), em
São Paulo.
Minha irmã tinha sido convocada para reconhecer o homem que havia roubado
o seu carro. Eu a acompanhei. Em um determinado momento, tive que
atravessar, sozinha, um grande hall de entrada, cinza, com paredes e chão de
concreto, sem ninguém e sem móveis, completamente vazio, se não fosse a
ornamentação única de uma enorme fila de organizadores, em zig-zag.
(seria bom colocarmos uma imagem do organizador) anexada
Sem corresponder ao que propunha aquele agenciamento (percorrer trezentos
metros dentro daquele organizador), decidi espontaneamente passar por baixo
deles (percorrendo somente uma distância de trinta metros, mais ou menos).
Uma policial veio em minha direção, já no final de meu percurso e me
surpreendeu perguntando incisiva, insistente e repetidamente: “você é gente
ou animal?”. Obrigou-me, então, a retornar (por fora) ao meu ponto de partida
e a recomeçar o meu caminho, percorrendo os 300 metros de zig-zag, dentro
do organizador. Algumas pessoas perambulavam e outros policiais observavam
aquela cena, com um certo ar de público.
Na hora, não entendi nada muito bem. Depois entendi que aquele organizador
de filas era mais significativo do que eu tinha percebido até então. Ele era a
anima do contexto, sua motivação interna, e impunha valores de
condicionamento e de mobilidade.
Ainda perplexa, pareci entender o óbvio daquela pergunta, “gente ou animal?”:
o animal não entende aquela cognição, o ser humano sim. Agindo daquela
maneira (seguindo a lógica da policial do DEIC) eu teria um só possível status,
eu era um animal não humano, porque se humano fosse, estaria então
quebrando um poder, mesmo que espontaneamente. A incapacidade de leitura
simbólica estabelece ali uma condição pré-humana, o que esclarece a função
domesticadora e simbólica do organizador de fila.
Naquela ocasião, o organizador de filas representou um tipo de poder simbólico
contemporâneo, que é silencioso, presente, mas agenciado de maneira a ser
imperceptível e discreto, mesmo se fisicamente presente. Ele substitui o
trabalho da policial, como um facilitador do poder na contemporaneidade. Esse
evento tornou-se intuitivamente a semente de um novo projeto coreográfico.
O organizador de fila - que organiza as filas de bancos, aeroportos,
restaurantes, museus, parques de diversões - é o principal elemento cênico
explorado na instalação coreográfica organizador de carne (2007); seja
plasticamente, corporalmente e em sua metáfora, enfrentando assim um dos
ingredientes que constroem o “organizador de carne” contemporâneo: o poder
do alinhamento que educa em uma ordem não-animal.
O organizador de fila define e estabelece espaços - a arquitetura, o olhar, o
tipo de trânsito. Ele é uma pedagogia do tempo-espaço, do corpo e da lei,
incorporando elementos comportamentais que cruzam hierarquia animal,
status social e psicologia individual. É também um condicionador da ordem e
da disciplina, funcionando como bondagei ético, que integra a pessoa
unilateralmente além de treiná-la a um certo prazer de pertencer
simbolicamente a um trânsito único e à aglomeração persuasiva.
Portanto, o organizador de fila interfere, recria, estipula e desenvolve
especificidades eróticas, sinestésicas e comunicacionais, mutando elementos
constitutivos do corpoii (volume, foco, presença, grounding). Ele é corpo pós-
humanoiii, seu elástico é pele, suas estruturas de base, ossos; e com esse
objeto corpo-cadáver-fetiche-invisível, a coreografia iconiza os parâmetros em
jogo.
O que chamei de “organizador de carne” é a educação, direta ou indireta; é a
socialização (linguagem, cognição, valores); e o condicionamento da pessoa
(relação ao espaço, aos outros, aos sentidos, ao corpo). Toda e qualquer
cultura humana tem o seu “organizador de carne”. Ele estabelece os
parâmetros de inclusão e exclusão, pertencimento e diálogo. Parâmetros esses
flutuantes, mutantes e complexamente dependentes dos contextos de domínio
e de recriação de si mesmo e da própria cultura.
O que diferencia o organizador de fila dos outros símbolos de condicionamento
é que ele encapsula o mais perverso e maior valor de domínio da
contemporaneidade: ele é ambiguamente explícito e invisível, material e
imaterial, justamente como a cultura digital. Pois mesmo que teatralize o
espaço, a arquitetura e as pessoas, constrói espontaneamente uma coreografia
que é a manifestação visível daquele poder.
2nd Life
“_ Olá.
_ Oi.
_ Tudo bem?
_ Tudo.
_ Quantas vezes vc já deu o cu?
_ Não gosto que falem assim comigo e estou no meu perfeito direito. Eu
também não falo assim com ninguém.
_ Ah, então várias...
_ Não, nenhuma.
_ Bom, vejo q tem rabo potencial pra dar.
_ Na verdade, foi uma.
_ Você sabe dançar? Não sei, sou novo aqui.
_ Burro não, sou um profissional!
_ Ô, pára de chorar!
_ Como faz sexo?
_ Tem que se teleportar, aperta com a direita e clica no sit here.
_ E como morre?
_ Não dá pra morrer aqui.
_ Vc é muito infantil.
_ Eu sou ciumento. Trago as fotos aqui pra mostrar o teor artístico e já vêm
dizendo que viram a rachaiv dela, não gostei.
_ Digamos que por mostrar-se assim proativo eu nem levantaria esta questão.
_ Acho que não entendo nenhuma expressão artística.
_ Eu caguei nas calças.
_ Que nojo, por quê?
_ Porque eu tomei laxante pra emagrecer.
_ Não tenho nem merda no cu pra cagar.
_ São recursos, né?
_ E como você começou na dança contemporânea?
_ Praticamente nasci dentro dela.
_ Uau! E como foi isso??
_ Isso o quê?
_ Bem que eu falei pro Edgar Morin que não era bem assim...
_ Errado? Como assim??
(...)
_ É, passarinho que come pedra sabe o cu que tem.
_ Pimenta no cu dos outros é refresco.
_ Não tem carne no cu que dê um pastel de cruzado.
_ É, merda cagada não volta ao cu.
_ Afinal, quem tá no cu do mundo?
_ Calma... não tô entendendo...
_ Hey, não fale assim! Eu sou um profissional!
_ E por que você matou, então?
_ Eu tava com raiva e decidi mudar.
_ Ah...”
É nesse clima que o projeto coreográfico organizador de carnev começa.
Dois avatares no 2nd Lifevi e eu, como performer. Eu estou vestida em shorts
camuflado de lycra, bem curtinho e grudado (no estilo “mulher com boa auto-
estima de classe popular em terra tropical”); uma camisa preta de manga
comprida, com bordados de lantejoulas e flores (no estilo “mulher aos trinta de
classe média profissional liberal”); em um sapato vermelho de salto prateado
(estilo “design interessante e caro”). Participamos de um diálogo a três, em
uma pseudo-informalidade que hospeda a autoria ambígua das frases.
Os avatares estão separados por uma mesa de escritório virtual, por sua vez
separados da performer que está no mundo concreto. O que une os três é o
diálogo. Os avatares digitam o texto. A performer o recita. Um triângulo
concreto-virtual traz um diálogo onde não se sabe quem fala o quê, nem quem
fala com quem.
É inviável responsabilizar a comunicação, o conteúdo, o fundo e a forma
quando não se sabe de onde vem a informação, quando os responsáveis são
inacessíveis. Essa é a beleza e o terror da cultura digital, que promove um tipo
de autonomia e ao mesmo tempo, e paradoxalmente, destrói a noção de
autoria e de autor, transformando os parâmetros da política.
Em um tom confessional típico daquele contexto, o diálogo propõe morte e
sexo através de diferentes estilos de linguagem. A coreografia enfrenta o sexo
em um enquadramento dualista, mórbido, orgânico e inorgânico dos corpos-
autômatos do 2nd Life; propõe a morte como relação fundamental com a vida,
também virtual, já que a publicidade (que organiza nossa carne) é a principal
inimiga da morte, segundo o publicitário paulistano Abel Reis. Essa relação
coreográfica de sexo e morte virtuais traz um outro ingrediente que “organiza
a carne”, propondo um entendimento da erótica profunda do corpo-cadávervii
virtual. A coreografia começa assim: morte, sexo, 2nd life, sob o olhar nublado
pelas alterações de percepção causadas pelos novos parâmetros da cultura
digital e suas éticas “em construção"viii.
No diálogo, o texto “revela” a “intimidade” dos três avatares. O que parece
informal e leve traz perversidades latentes. Em primeiro lugar, a reprodução
dualista da primeira vida. Em seguida, o dever implícito de correr atrás da vida
ou de uma nova vida (nesta segunda vida), de ser mais e/ou maior (duplos,
múltiplos), de não atrasar-se para o “novo”, para o “cool”, para o “pioneiro”.
Além das possibilidades de relação mecânica, sinestesia e estética
proporcionadas pela tecnologia, deve-se enfrentar o sentido da relação entre
arte e tecnologia além de seus impactos, dispositivos e política espacial,
observando-a enquanto objeto-fetiche de uma realidade outra, de um mercado
pluralizado, de um consumo glocalizado, interferindo diferentemente na
produção das artes.
Nas culturas onde a baixa auto-estima permeia a construção da pessoa, como
é o caso da brasileira, o deslumbramento pela tecnologia a promove mais
como um sujeito externo e representativo do que na sua efetiva existência ou
aplicação conceitual. O delírio do soundscape digital, a beleza do pixel, a
relação mecânica entre corpo/tecnologia transformam-se em um placebo
comunicacional.
O projeto busca entrar na contemporânea reversão estética, moral e psíquica
do que possa ser a tecnologia digital, além de sua poética social e não o
dispositivo em si. A minha perspectiva é a de penetrar a tecnologia - sob o
poder mercadológico do sistema corporativista - entrar em seus conceitos
explodindo-os, como um tipo de hacker. Penetrar os seus paradoxos, os quais
legitimam e prescrevem os condicionamentos invisíveis da comunicação
contemporânea, isto é, penetrar o “organizador digital de carne”, usufruindo a
cultura digital de maneira não dualista.
Nesse sentido, Orkut, MSN e 2nd life são dispositivos que "organizam a carne"
e que são também "carne". Esses elementos tecnológicos, integrados e
digeridos socialmente, são ferramentas que propõem novos paradigmas em
uma pseudo-descentralização centralizada. Promovem autonomia, reproduzido
dualismo, estabelecendo normalidades comunicacionais, (parâmetros de estilo,
de dress code, de beleza, de linguagem), propondo corpos e erótica, enfim
transformando as dinâmicas da comunicação contemporânea. Na coreografia,
esses elementos trazem uma estética caseira, além de um deslocamento do
que se normalizou.
Gente ou animal?
Escolhi apresentar o organizador de carne como um tipo de tratado de
etologiaix em uma maneira falso-didática. As diferenças e as semelhanças
entre o ser humano e o animal são exploradas ludicamente através de citações
de vários autores em múltiplas visões, sejam elas antigas, contemporâneas,
antiquadas, inovadoras, "orientais" ou "ocidentais". Parti do interesse pelo
absurdo, em um correr atrás do rabo metafórico. Depois entendi, que o
absurdo localizava-se em problemas contemporâneos tais quais indícios de
fundamentalismos que servem-se da biologia, da antropologia e da psicologia
para afirmarem-se. Ainda hoje, como na França, discute-se a diferença entre o
ser humano e o animal, chegando-se em conclusões sobre o ADN para que, em
seguida, decida-se sobre leis de imigração. Isto é o que organiza a carne
francesa, mas também a carne da imigração e da política de troca, de fronteira
e de limite, ou seja, a política contemporânea. Assim, na coreografia não
existe nem a pretensão, nem a intenção, muito menos o interesse em achar
respostas de quais seriam as partes “animais” dos humanos e nem aquelas
sociais. A reflexão e os conteúdos das citações são ignorados completamente,
servindo de elemento para evidenciar e tornar os parâmetros funcionais.
Em uma das cenas, estou em pé atrás de uma mesa rosco, e atrás de um
computador laptop PC, que manipulo. Presa na mesa rosco está uma tela de
madeira na qual projeta-se uma imagem em uma tela de madeira: uma avatar
feminino de textura fotográfica, de um programa de text-speach da marca
oddcast. O avatar tem cabeça e torsos bastante evidenciados, como se fosse
um jornalista, em um fundo vermelho do qual se vê, na parte lateral superior,
um logo do DEIC com uma águia. Eu manipulo o computador e uma voz em off
é ouvida. Novamente um jogo de ambigüidade e autoria, além do duplo
avatar-pessoa manifesta-se. Quem esta falando, eu ou o avatar? De quem é
aquela voz? Quem esta mandando a voz? A voz que sai do speaker é a do
computador?
“A diferença entre o ser humano e o animal é que o animal age por impulso,
já o ser humano tem a capacidade racional de escolher, decidir e controlar-se,
o que preserva sua integridade física e outras.”
“Chihuahuas nascem por cesariana. As cabeças desses cachorros são tão
grandes que tornam impossível o parto natural. Apesar de serem cabeçudos,
não possuem as cabeças chatas como as dos nordestinox. Já os pequineses
têm focinho diminuto como o de Janet Jackson. Os habitantes de Bombaim,
São Paulo e os Skinhead tem dificuldades respiratórias.”
Trabalhando na esfera da ilusão e da manipulação, apresento as coisas de
maneira hesitante e incerta confundindo o que é verdadeiro e falso - na base,
no tratamento e no conceito, revelando um tipo de absurdo da racionalidade
organizada. A etologia é um pretexto para enfrentar percepção e ética de
conceitos ligados à mentalidade colonial, já que o animal é considerado tão
primitivo, nativo, selvagem e inferior quanto o colonizado, ao mesmo tempo
em que, segundo o etólogo Steve Baker (2000), ambos desenvolvem-se na e
acompanham a contemporaneidade em suas natureza e cultura.
“Comer, beber, dormir, nascer, morrer etc são condicionamentos que
pertencem a todos, mas nem todos percebem isso.”
“O animal puxa carroça com ser humano. Já o ser humano pode puxar uma
carroça seja com outros seres humanos ou ainda puxar uma carroça com
papelões e recicláveis.”
“O ser humano é um bichinho muito querido. Quando morre, a tristeza pode
ser muito sentida. Ou não. Depende.”
“A cultura é uma herança contínua. Varia de país para país, de cidade para
cidade e existem várias culturas todas diferentes. Segundo o francês Lévi-
Strauss, algumas culturas são mais primitivas do que outras. Por exemplo, a
cultura dele não é. Já com Gilles Deleuze aprendemos que se você nasce
francês, o melhor mesmo é suicidar-se.”
MSN – um exemplo de comunicação contemporânea
Oi
Oi
Tudo bem?
Tudo
E vc?
Tudo
Onde vc tá?
SP
Ah...
E vc?
Eu tb
Ah...
Tá sozinha?
Nao
E vc?
Eu tb nao.
organizador de fila 2
Como que em um sistema de segurança de um aeroporto, no centro de arte
Georges Pompidou, no Museu d’Orsay e no Museu do Louvre, todos em Paris,
as pessoas esperam, em fila, para entrar e visitar as obras. Em julho de 2007
(quatro meses depois da criação do organizador de carne), eu e Laurent
Goldring (artista, escultor e fotógrafo francês) exploramos aqueles contextos.
Eu sirvo de modelo. Assimilo-me às pessoas da fila. Entro e saio muitas vezes,
umas cinqüenta, dos sistemas de segurança desses espaços de arte. Laurent
explicitamente filma.
Ele filma a mim e as pessoas na fila, todas no mesmo organizador de fila que
foi objeto-fetiche da coreografia. As pessoas em estado de espera, com uma
mesma sintonia e em um estado de corpo de quem se prepara para não se
sabe bem o quê... estranho. A cada vez que eu abro a minha bolsa para os
seguranças, a cada vez que eu passo pela entrada, pergunto-me se eles estão
ou não entendendo aquela repetição. A ambigüidade é que não se sabe se eles
ignoram a minha ação. Coincidentemente, o centro Pompidou exibe o
documentário "Shoah", de Claude Lanzmannxi. Talvez por uma associação
casual da minha psicologia (será?), eu tive muito medo. Foi duro para mim e
acho importante sublinhar neste texto, que é principalmente um relato de
artista. Como artista da dança, incorporar essa esfera (e também o trauma?)
foi bastante estranho, complexo e exigente.
Nosso discurso artístico, meu e de Laurent Goldring, relaciona-se com o
absurdo, com a política do corpo, com o horror e de certa forma com o
trauma, neste caso específico, o de uma memória do presente e de um
testemunho corporal. Assimilando a manifestação da tendência
fundamentalista contemporânea, essa pesquisa que engloba também o projeto
“organizador de carne”, serve-se de um tipo de fazer-atitude-ação estruturada
pela arquitetura dos espaços, transformando-o em instalação, vídeo, fotografia
ou escultura. Penetramos nas arquiteturas e agenciamentos do corpo recriam
novos princípios e banalizam velhos motivos de tragédias.
Tudo no organizador de carne é descentralizado como na metrópole
comunicacionalxii. Mortos, Orkut, Josh S.xiii, 2nd life, Chapolin Colorado, Michael
Jackson, Helena Katzxiv, DEIC, microfone, CPFxv, Sheila Ribeiro, caixa de
guitarra, organizador de fila, tela de madeira, MSN, etc. Em termos semióticos,
todos os elementos do organizador de carne são, em permutação contínua,
carne, recipiente e organizador, ou seja, seus elementos ajudam a entender o
que é fundamentalmente a carne, o organizador e o recipiente dos dispositivos
de agenciamento humano.
“Em uma conferência publicada aqui em 2005, o filosófo italiano Giorgio Agamben ampliou a
noção de „dispositivo‟ do pensador francês Michel Foucault. Propôs que qualquer coisa com
capacidade de orientar, controlar, determinar, assegurar os gestos, as condutas e os discursos
dos seres viventes poderia ser entendida como um dispositivo... É com esse conceito ampliado de „dispositivo‟ é que se pode pensar o Organizador de carne.
Se o sujeito é o que resulta da relação entre os seres vivos e os dispositivos, como diz Agamben, a necessidade de identificar os dispositivos transforma-se em uma ação política, e dela o
organizador de carne se desincumbe muito bem. Nos faz ver, com as situações variadas que
apresenta, que o poder não se preocupa em esconder seus atos de exceção porque nos faz acreditar que eles são a norma (Katz, 2007).
Cu do mundo e cultura digital
Relacionar a expressão “cu do mundo” como referência e parâmetro de
localização psico-geográfica, a simbologia da bunda em toda a sua
complexidade da história cultural brasileira, valores institucionalizados e
publicidade é, para mim, bem mais possível e realizável na obra coreográfica
do que nesse texto. Nesse sentido, apresento essa parte procurando estimular
a reflexão dessa intersecção, sabendo da importância dessa abordagem e
esperando que alguém mais competente do que eu possa elaborar conceitos
pertinentes.
Decidi colocar a frase “O Edgar Morin é um filósofo francês bem aqui no meu
cu” na sinopse do projeto organizador de carne, pelo seu efeito publicitário:
neste caso, “Edgar Morin” é símbolo de poder legitimado e “cu” o de cultura
local. Foi uma brincadeira antropológica partindo das preocupações de “o um e
o outro”, auto e hetero, por ser importante, ao enfrentar questões de poder,
compreender o que é “cu” e o que é “Edgar Morin”, ou seja, o que é cultura
local e o que é a violência simbólica.
Classicamente e no Ocidente, o cu é desejo e obscuridade, começo e fim,
entrada e saída. Aqui, o cu é também localidade e borda, visto que o dualismo
não cabe mais nas análises da cultura. É localidade subjetiva e borda da
cultural local; é o coração das expressões popularesxvi, portadoras de
moralismo, doçura, fatalismo e “brasilianidade”. O cu é a porta de entrada
escondida, semi-impenetrável, deste tipo de visão de mundo. Edgar Morin, por
sua vez, funciona aqui como um ícone da legitimação institucional, de um tipo
de instituição acadêmica e do pensamento. Ele é um código autorizado, assim
como Deleuze, Derrida e Guattari. Neste sentido, tanto o cu quanto o Morin
não existem per sei. Suas cognições são deslocadas, assim como os valores da
contemporaneidade na qual todo mundo de fato existe, mas nem todas as
existências são legítimas. O que torna uma existência legítima é contextual.
O “cu do mundo” não é mais nem periferia, nem centro. É um local para o
“Edgar Morin”, para a instituição. O “cu do mundo” é considerado emergente e
é portanto a boca que fala e que beija o Edgar Morin. Seria a ameaça e o
desejo de um novo tipo de colonialismo? É no diálogo entre o poder legitimado
e a manifestação da localidade que encontram-se os interstícios das relações
de poder contemporâneas.
Quando um avatar entende e manifesta que “quem tem cu tem medo”, ele
quebra os parâmetros de controle dualista do próprio 2nd life, parâmetros da
1st life, pois penetra nos próprios sentidos profundos, de política e de erótica.
Dessa maneira o cu não é dissimulado em, por exemplo, “ânus”, impedindo o
desdobramento da violência simbólica e cortando da lógica da dominação.
Será que o contexto atual quer “comer o cu” rebatendo com um tipo de
antropofagia (ou continuando a mentalidade colonial) ao inventar o já
inventado, ou seja, as culturas híbridas, sincréticas e o direito à existência pela
auto-representação. O poder dominante, i.e. os vetores que legitimam a visão
de mundo dessa turma/espécie/gueto/raça/estilo “Morin”, quer agora integrar
o “cu do mundo”?
I had to cross it and I did it - parâmetros para éticas contemporâneas?
Quando se é estrangeiro, de “outra” classe, de “outro” gênero, pode-se não
entender ou mal-entender a linguagem. Por exemplo, ignora-se a linguagem
ao ser autônomo, politizado ou simplesmente por ser uma pessoa chata. Pode-
se desconsiderar estruturas comunicacionais por dicotomia, revolta ou por
estratégia. A composição, ou seja a “organização da carne”, é o trânsito do
hetero e do auto controle. É a composição que evita matar ao sentir ódio, fugir
ao sentir medo assim como fazer sexo, toda vez que o desejo se apresenta.
O que é ser elegante? Onde começa e onde acaba a inconveniência? E o
civismo? Participar dos dispositivos democratizados da nova tecnologia (my
space, 2nd Life, roupas com chip), importar-se com eventos claramente
políticos (imigração clandestina, comunidade européia) é elegante, é
inconveniente ou é ato civil? Como os dados dessas realidades coabitam? E o
que significam ao coabitarem?
Gonna kill and destroy, I am not an animal boy (Ramones)
A composição das linguagens contemporâneas cruza uma permutação de
status coabitante e de exclusão. As classes são flutuantes. Os grupos de
qualquer natureza já não impõem respeito. Os profissionais profissionalizam-
se. Os profissionais não-oficiais trabalham. A universidade e a pesquisa estão
em crise. A subjetividade é um valor discutível e dependente. A política
morreu. Bancários, padeiros e professores não acreditam no que fazem e só os
carroceiros de papelão, malabaristas de semáforos e vendedores de flor de
bar, sendo eles a curva do rio, mostram algum parâmetro concreto.
Projetando matéria bruta desejante, como insinuações de pequenos tabus, de
racismo e do politicamente correto, organizador de carne é um grande
“whatever”xvii. Tudo é descentralizado e dissimulado. Os mortos não são
mortos, são fotos de vários tipos de funerais e de mortos postadas no Orkut. O
2nd life perde sua função completa, já que vira vídeo editado, voltando à
cultura analógica. O herói falido da América Latina, Chapolim Colorado, é
também MSN. Michael Jackson é o seu cover no carnaval de Salvador. As
cenas são como as pesquisas do Google, onde uma palavra-chave traz várias
realidades associadas (ou não), os corpos criando assim vetores de tensão
entre si, cruzados e relacionados intimamente, como na internet.
Organizador de carne vive a hesitação e indaga as construção das novas
éticas contemporâneas, no tornar-se gente por autoria incerta. A reflexão
pertinente é aquela da flutuação, das entrelinhas, da sinergia hipnótica,
construída inclusive pela tecnologia e pela publicidade conseqüentes da cidade
- o arbítrio é virtual, a escolha é marketing dependendo sempre da composição
do imaterial. Portanto a dança na hesitação, o contexto-cadáver e o corpo-
Zumbi são camuflados e revertidos em um “fatalismo ativo”. Quem e o quê
organizam sua carne? O fatalismo ativo é aquele que apesar de tudo quer
viver, é o que transforma terror em possibilidade, é o deboche e a poesia doce
como em um tipo de samba urbano e digital. Será?
Em “organizador de carne” tudo é dissimulado em um agenciamento preciso e
meticuloso, é pseudo, falsamente acessível e falsamente inacessível. Nem as
coisas, nem o seu contrário podem ser. É a composição do deslocamento e da
ambigüidade suprema da contemporaneidade. As coisas são mesmo não
sendo: como na cultura digital, como na cultura mestiça.
O cruzamento é um dos problemas do poder contemporâneo e partir dele
pode-se escolher ficar onde se está, ultrapassar, cruzar, ignorar (como um
animal faria). O cruzamento é presente e os limites, fronteiras e espaços
comuns estão em trânsito. Quais seriam os parâmetros pertinentes para
enfrentarmos as influências de pensamento que abordam rizoma e “corpo sem
órgãos”?
Eu proponho a visão não cartográfica da “comida por quilo”. Como desenvolver
um método que enfrente a manifestação cultural espontânea da comida por
quilo, onde a mistura de estéticas, de códigos, histórias e poderes vivem
transformando-se continuamente e contextualmente? Como relacionar a
comida por quilo e a cultura digital? Esses desafio e ângulo seriam, para mim,
um cruzar necessário. Um cruzar que penetra, compõe e transforma o
“organizador de carne” em elemento vital.
I’ve been to the São Paulo Police Department and there was a hall much bigger
than this one here. Here at this place, Josh and I will try to reproduce the São
Paulo Police Department’s relationship to the line organizer. The purpose is
organizador de carne which has been chosen and produced by Rumos Itaú
Cultural Dança and presented here. We will care for the dynamics of the line
organizer.
I had to cross it.
I did it.
Check it out!
Por isso tive que cruzar.
Organizador de carne
Ficha técnica
Conceito e direção geral Sheila Ribeiro
Elenco Sheila Ribeiro e Josh S.
Som Josh S.
Assistência de direção Carolina Laranjeira
Produção executiva Olívia Pontes, Maria Isabel Ribeiro (dona orpheline)
Produção técnica Rafael Ortega
Pesquisa digital Daniel Corsi
organizador de carne foi viabilizado pelo Rumos Itaú Cultural Dança 2007
em São Paulo e no Teatro do Dirceu em Teresina (PI), sendo posteriormente
produzido na mostra Corpoinstalação do SESC Pompéia (SP) e na exposição de
arte e tecnologia Memória do Futuro do ITAÚ Cultural (SP).
Bibliografia
Bhabha, Homi K. 1998. O Local da Cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG.
Baker, Steve. 2000. The postmodern animal. London: Reaktion Books.
Canclini, Néstor G. 2002. Latinoamericanos buscando lugar en este siglo.
Buenos Aires: Paidós.
Canevacci-Ribeiro, Massimo. 2007. Una stupita Fatticità. Roma: Costa & Nolan.
Cobra, Coriolano N. 2005. Arquivos da polícia civil. Vol 48. São Paulo:
Acadepol.
Fouts, Roger; Mills, Stephen Tukel. c1997. Next of kin: what chimpanzees
have taught me about who we are. New York: William Morrow.
Gerosa, Mario. 2007. Second Life. Roma: Meltemi.
Glissant, Édouard. 1990. Poétique de la Relation. (Poétique III) Paris:
Gallimard.
Katz, Helena. 06/10/2007. Profanando as múltiplas vidas - Organizador de
Carne funciona como poderosa metáfora sobre o nosso comportamento
cotidiano. São Paulo: O Estado de São Paulo.
Kruuk, H (editor). 2002. Hunter and hunted: the relationship between
carnivores and people. New York: Cambridge University Press.
Macri, Teresa. 1996. Il corpo postorganico. Gênova: Costa & Nolan.
Marchesini, Roberto; Andersen, Karin. 2003. Animal Appeal – uno studio sul
teriomorfismo. Bolonha: Hybris.
Pievani, Telmo. 2002. Homo Sapiens e altre catastrofi. Roma: Meltemi.
Ryder, Richard D. 1989. Animal revolution : changing attitudes towards
speciesism. Cambridge, MA : B. Blackwell.
Saunders, Nicholas J (editor). 1998. Icons of power: feline symbolism in the
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Silva, Tomaz. T. (Org.). 2000. Antropologia do ciborgue. As vertigens do pós-
humano. Belo Horizonte: Autêntica.
Zuckerman, Solly. c1998. The ape in myth and art. S.l.: Verdigris Press.
Outras referências
Site: www.ctheory.net
Artista: Rabih Mroue
Programa televisivo: Cidade alerta
Musica: animal boy (ramones)
i Bondage é um tipo prática fetichista relacionada ao sadomasoquismo na qual o prazer consiste em
amarrar e imobilizar seu parceiro ou pessoa envolvida. ii O conceito de “corpo” é datado e contextual. Prefiro aqui falar de “pessoa” quando trata-se de ser-humano e de corpomídia (Katz) quando trata-se de elemento estético-político. iii O conceito de pós-humano foi elaborado por Jeffrey Deitch em 1992 ao ser
curador de exposições de arte chamando-as de "Post-Human: novas formas da figuração na arte comteporânea" em Torino e em Kassel. Para ele, este termo comporta
o cruzamento entre carne e tecnologia que transforma a identidade em
híbrida e mutante. iv Racha: gíria vulgar e popular, sinônimo de vagina. v O projeto organizador de carne pode ser visto no youtube.com ou ainda através do site
donaorpheline.com vi 2nd life é a forma slogan oficial de referir-se ao Second life. vii Bodycorpse, Canevacci, 2007. viii “under construction” conceito filosófico da cibernética. ix Etologia é a ciência que analisa os costumes e as tradições dos animais em seu ambiente natural. x Neste texto integrante da coreografia, as palavras “nordestino” e “Skinhead” não concordam com os
seus artigos em plural, fazendo alusão aos contextos paulistanos onde o artigo é pronunciando no plural
e o substantivo que o acompanha, no singular. xi Shoah (catástrofe), do jornalista e cineasta Claude Lanzmann, é um documentário feito a partir de
entrevistas aos sobreviventes dos campos de concentração, testemunhas passivas e antigos nazistas. xii “metropoli comunicazionale”, Canevacci, 2005. xiii Intérprete e compositor no projeto coreográfico. xiv Crítica de dança que figura entre as imagens exibidas em uma das cenas da coreografia. xv Cadastro de pessoas físicas. xvi Exemplos destas expressões populares: “Pimenta no cu dos outros é refresco”; “quem tem cu tem
medo”; “passarinho que come pedra sabe o cu que tem”; “não tem merda no cu pra cagar”; “tá com o cu
na mão”, “cu do mundo”, entre outras. xvii Decidi usar a palavra inglesa whatever por não existir uma justa expressão em português,
aproximando-se vagamente de uma mistura entre “deixa pra lá” e “não tem jeito”.