ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO E MEDIAÇÃO DO SOFRIMENTO DE PILOTOS METROVIÁRIOS

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Este estudo objetivou verificar quais estratégiaspilotos metroviários do Distrito Federal lançam mão paramediar o sofrimento no trabalho, utilizando como aporteteórico a psicodinâmica do trabalho. Os resultadosencontrados apontam rigidez na organização do trabalhoprescrito, dificuldade na gestão e relações de poder;sentimento de indignidade, inutilidade, desqualificação eindignação. Exige-se, assim, que os trabalhadores se utilizem da construção de um coletivo de regras eestratégias defensivas individuais como formas de lidar comas dificuldades descritas

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  • FACAS, E. P.; MENDES, A. M.; SANTOS JNIOR, A. V. dos; ANJOS, F. B. dos; LIMA, V. S. de. Organizao do trabalho e mediao do sofrimento de pilotos metrovirios. R. Laborativa. v. 2, n. 2, p. 1-20, out./2013. http://ojs.unesp.br/index. php/rlaborativa.

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    COSTSA/PRAd/Unesp

    ORGANIZAO DO TRABALHO E MEDIAO DO SOFRIMENTO DE PILOTOS METROVIRIOS*

    WORK ORGANIZATION AND SUFFERING

    MEDIATION ON SUBWAY PILOTS

    Emlio Peres Facas1

    Ana Magnlia Mendes2

    Adalberto Vital dos Santos Jnior3

    Felipe Burle dos Anjos4

    Vinicius Sena de Lima5

    1 Professor Assistente da Universidade Federal de Gois - Goinia/GO;

    Doutorando em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizaes da Universidade de Braslia. Contato: [email protected]

    2 Professora Adjunto da Universidade de Braslia - Braslia/DF; Ps-Doutora em

    Psicodinmica do Trabalho pelo Conservatoire National des Arts et Mtiers (CNAM) - Paris/Frana. 3 Psiclogo na Universidade Federal de Grande Dourados - Dourados/MS; Mestre em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizaes da Universidade de

    Braslia.

    4 Professor no Centro Universitrio de Braslia - Braslia/DF; Mestre em Psicologia

    Social, do Trabalho e das Organizaes da Universidade de Braslia. 5 Analista de Tecnologia da Informao da Empresa de Tecnologia e Informaes da Previdncia Social (DATAPREV) - Rio de Janeiro/RJ. Mestre em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizaes da Universidade de Braslia.

  • FACAS, E. P.; MENDES, A. M.; SANTOS JNIOR, A. V. dos; ANJOS, F. B. dos; LIMA, V. S. de. Organizao do trabalho e mediao do sofrimento de pilotos metrovirios. R. Laborativa. v. 2, n. 2, p. 1-20, out./2013. http://ojs.unesp.br/index. php/rlaborativa.

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    Resumo: Este estudo objetivou verificar quais estratgias pilotos metrovirios do Distrito Federal lanam mo para

    mediar o sofrimento no trabalho, utilizando como aporte terico a psicodinmica do trabalho. Os resultados encontrados apontam rigidez na organizao do trabalho

    prescrito, dificuldade na gesto e relaes de poder; sentimento de indignidade, inutilidade, desqualificao e

    indignao. Exige-se, assim, que os trabalhadores se utilizem da construo de um coletivo de regras e estratgias defensivas individuais como formas de lidar com

    as dificuldades descritas.

    Palavras-chave: Piloto Metrovirio; Psicodinmica do Trabalho; Prazer-Sofrimento; Estratgias de Mediao do Sofrimento.

    Abstract: This study aims to verify which strategies subway pilots in Distrito Federal use to mediate suffering at work,

    using the psychodynamic of work theory. It was found rigidity in the prescribed organization of work, difficulty in

    the work management and presence of power relations, feelings of worthlessness, helplessness, anger and disqualification. So, it is demanded that the workers

    construct a collective of rules and use individual defensive strategies as forms to deal with the described difficulties.

    Keywords: Subway Pilots; Psychodinamic of Work;

    Pleasure-Suffering; Suffering Mediation Strategies.

    1. Introduo

    O artigo trata de um estudo exploratrio cujo objetivo geral foi verificar as estratgias que os pilotos de trem de metr lanam mo para

    mediar o sofrimento frente organizao do trabalho. De maneira especfica, busca-se caracterizar a organizao do trabalho dos pilotos,

    investigar as vivncias de prazer-sofrimento e os mecanismos utilizados pelos trabalhadores para mediar o sofrimento. A escolha de tal categoria

    profissional se d frente o baixo nmero de estudos publicados no Brasil com esta categoria profissional no campo de sade e trabalho. Alm disso,

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    interessante pensar de que modo as operaes de um transporte que j foi considerado modelo de modernidade se do e, assim, qual a situao

    daqueles que l trabalham. Como base para a interpretao dos dados, foi utilizado a teoria Psicodinmica do Trabalho, privilegiando as dinmicas

    intra-subjetivas do trabalhador desveladas por meio de sua fala e investigando, assim, o modo como o piloto lida com o sofrimento em seu

    trabalho.

    1.1. O Trabalho no Transporte Metrovirio

    O metr pode ser definido como um sistema de transporte urbano de massa, que trafega em trilhos, propulsado eletricamente e no afetado

    por outros trfegos como o ferrovirio e se caracteriza por ser um servio de alta freqncia. O metr possui rotas fixas e, normalmente, h

    intervalos de tempo fixos entre uma prestao e outra de servio. Surgiu como uma opo de transporte rpido, confortvel e seguro,

    estabelecendo integrao com os outros meios: nibus, trens e veculos particulares. Devido as suas caractersticas de melhoria da mobilidade,

    indutor do crescimento, revitalizao, reestruturao e recuperao das reas urbanas (PICOLLO, SALUM e QUEIROZ, 2001).

    A operao do sistema metrovirio baseada em um Centro de

    Controle Operacional (CCO), que centraliza informaes, superviso e

    controle. responsvel pela programao, autorizao e controle das atividades de implantao, operao e manuteno do sistema, bem como

    a circulao, alimentao e distribuio de energia dos trens. Todas informaes relativas ao estado de operao dos equipamentos so

    passadas ao CCO, que emite comandos para equipamentos e pessoas velocidade mxima, tempo de fechamento das portas, desligamento da

    energia no terceiro trilho, dentre outros (GUIMARES, 2005).

    Existem tre s modalidades de comando possvel para o trem: controle automtico que dispensa a presena do piloto; controle semi-automtico que precisa do piloto para conduzir, mas tm rotas e velocidade determinadas pelo CCO; e controle manual, no qual todas as

    funes dependem do operador. H hoje diversos locais onde o transporte metropolitano completamente automatizado, isto , no h necessidade

    de pilotos como Paris, Londres, Tkio, Detroit, dentre outros. No Brasil, cada trem ainda conduzido por um piloto (GUIMARES, 2005).

    Segundo a Classificao Brasileira de Ocupaes do Ministrio do Trabalho, a ocupao "Operador de Trem de Metr/Piloto de Trem de

    Metr" pertence famlia Operadores de veculos sobre trilhos e cabos areos. So reas de atividades:

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    1) conduzir o metr;

    2) operar telefrico;

    3) transportar passageiros;

    4) transportar cargas;

    5) inspecionar trem, bonde e metr;

    6) vistoriar telefrico;

    7) trabalhar com segurana;

    8) comunicar-se com o Centro de Controle Operacional (CCO);

    9) manobrar metr;

    10) demonstrar competncias pessoais.

    1.2. Estudos sobre Trabalho e Sade de Pilotos Metrovirios

    A categoria profissional escolhida foi pouco estudada sob o prisma da relao trabalho e sade no Brasil. Em levantamento de pesquisas

    empricas conduzido no Scielo, no portal BVS-PSI e nos bancos de teses e dissertaes nos portais eletrnicos da Coordenao de Aperfeioamento

    de Pessoal de Nvel Superior, Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertaes, da Universidade de So Paulo, da Universidade Federal de

    Minas Gerais, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Universidade Federal do Rio de Janeiro foram encontrados poucos estudos

    - todos com mais de 10 anos. Os pilotos de trem de metr foram estudados dentro deste tema por Itani (1997), cujos principais achados se

    referem, principalmente, s representaes do automatismo, construo

    das identidades profissionais e s percepes das condies de trabalho; por Jardim, Perecmanis e Silva Filho (1996ab), cujo objetivo era conhecer

    o processo de trabalho dos pilotos em suas intersees com o sofrimento psquico, no Rio de Janeiro; por Menezes e Merlo (1990), objetivando

    estudar os acidentes de trabalho dos metrovirios em relao a seu processo de trabalho e as condies em que ele realizado; por Fischer

    (1987), analisando os postos de trabalho de operadores, supervisores e inspetores de trem de metr; e por Seligmann-Silva, Delia e Sato (1986),

    em pesquisa para o DIESAT, que conduziram uma investigao intitulada Condies de trabalho e sade em funcionrios da OPM do metr de So

    Paulo.

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    1.3. O Referencial Terico da Psicodinmica do Trabalho

    O presente estudo se vale, na consecuo de seus objetivos, dos conceitos da abordagem psicodinmica do trabalho, que tem como seu

    campo o contedo, a significao e a forma do prazer-sofrimento, situando sua investigao no campo do infrapatolgico ou do pr-

    patolgico. Objetiva a anlise de estratgias de mediao do sofrimento, sejam estas individuais e/ou coletivas, utilizadas pelos trabalhadores em

    busca da sade, considerando a subjetividade no trabalho como resultante

    da interao entre o sujeito e as dimenses do contexto de produo de bens e servios. Para essa teoria, o importante a compreenso de como

    os trabalhadores mantm o equilbrio psquico mesmo quando submetidos a condies de trabalho desestruturantes (MERLO, 2006; FERREIRA &

    MENDES, 2003; DEJOURS, 1993).

    O sofrimento emerge justamente dos conflitos e contradies originados do confronto entre os desejos e necessidades do trabalhador e

    as caractersticas da gesto da organizao do trabalho, quando no h como negociar este confronto. Por outro lado, o prazer provm da

    satisfao dos desejos e necessidades quando do confronto bem-sucedido com os conflitos e contradies gerados pela gesto da organizao do

    trabalho. Para lidar com essa dupla possibilidade de vivncias, os trabalhadores constroem estratgias de mobilizao subjetiva e

    estratgias de defesas (Mendes, 2007, 2008).

    Segundo Dejours & Abdoucheli (1990), as estratgias defensivas so

    mecanismos utilizados para negar ou minimizar a percepo da realidade que faz sofrer. Mendes (2007) explica que defesas de proteo so modos

    de pensar e agir compensatrios, com vistas a racionalizar as situaes geradoras de sofrimento. Assim, evita o adoecimento se alienando de tais

    situaes. Essa forma de proteo, contudo, pode se esgotar, uma vez que no atua sobre a organizao do trabalho e, assim, no muda a fonte

    do sofrimento. Essas defesas se caracterizam principalmente pela negao e pela racionalizao do sofrimento. A negao se d pela naturalizao

    do sofrimento e das injustias, expressando-se por comportamentos de isolamento, desconfiana, individualismo e banalizao de riscos e

    adversidades. Por sua vez, as estratgias de racionalizao buscam a eufemizao da angstia, do medo e da insegurana vividos pelos

    trabalhadores, buscando justificativas socialmente aceitas para situaes

    que geram sofrimento e manifestando-se por comportamentos de apatia, resignao, indiferena, individualismo, passividade, dentre outros

    (ROSSI, 2008; MENDES et al., 2003; BARROS e MENDES, 2003, DEJOURS, 1992).

    Existem, ainda, as defesas de explorao/adaptao, que exigem do

    trabalhador um investimento fsico e sociopsquico que vai alm de seu

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    desejo, e tm a negao do sofrimento e a submisso ao desejo da organizao do trabalho em suas bases. Assim, levam o trabalhador a

    manter a produo desejada pela organizao do trabalho, com vistas a atender ao desejo da excelncia. Nesta categoria de defesa, destaca-se a

    auto-acelerao, onde os trabalhadores aceleram as cadncias de seus movimentos para conseguir evitar o sofrimento decorrente das tarefas

    repetitivas e as demandas por produtividade, bem como diminuir o tempo de contato com a tarefa (ROSSI, 2008; MENDES, 2007).

    As estratgias defensivas podem ser individuais ou coletivas. As estratgias coletivas de defesa dependem de condies externas e surgem

    do consenso de um grupo de trabalhadores, o que envolve as relaes intersubjetivas no coletivo de trabalho. Assim, essas estratgias coletivas

    contribuem para a coeso do coletivo no enfrentamento do sofrimento causado pela organizao do trabalho, possibilitam a estabilizao

    psquica do trabalhador e contribuem para a construo do sentido do sofrimento no trabalho (ROSSI, 2008; DEJOURS, 2006, 2004, 1992).

    J as estratgias individuais se do frente a organizaes do

    trabalho para garantir a resistncia psquica frente s presses em organizaes onde predominam regras, modos operatrios, rigidez de

    tempo, separao entre as atividades intelectuais e de execuo e diviso do coletivo (ROSSI, 2008; DEJOURS, 1992).

    A utilizao destas estratgias defensivas pode ter uma funo positiva, uma vez que colabora para o equilbrio psquico e favorece a

    adaptao s situaes de desgaste emocional pelo confronto permanente do profissional com a morte. No entanto, pode mascarar o sofrimento

    psquico quando provoca estabilidade psquica artificial, adquirindo assim uma dimenso patolgica que interfere tanto no atendimento aos

    objetivos do trabalho, quanto na vida social dos profissionais.

    Nesta perspectiva, a pesquisa relata as estratgias defensivas individuais e coletivas utilizadas pelos pilotos, discutindo suas funes

    frente ressignificao do sofrimento, originado nas contradies da organizao do trabalho. Deste modo, os resultados contribuem para a

    discusso dos destinos do sofrimento dos pilotos de trem e aponta princpios gerais da organizao do trabalho, que se encontram na base

    do processo sade-adoecimento, confirmando e avanando os, ainda

    pouco, estudos realizados com esta categoria.

    2. Mtodo

    A seguir, sero apresentados a descrio do mtodo empregado

    para a coleta de dados, que se deu entre outubro e dezembro de 2008.

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    2.1. Participantes

    Foram entrevistados, no total, seis pilotos, sendo cinco homens e uma mulher, com idade variando entre 20 e 35 anos e escolaridade entre

    superior incompleto e superior completo. O critrio de escolha foi o interesse voluntrio dos trabalhadores em participar da pesquisa.

    2.2. Instrumento

    A fim de favorecer a livre expresso do trabalhador, foi elaborado

    um roteiro de entrevista/investigao formado por quatro questes estmulo, com base no referencial terico que norteia o estudo especialmente em Rossi (2008) e Mendes (2007). importante ressaltar que mais do que perguntas que devem ser necessariamente seguidas,

    essas questes indicam uma direo/sugesto para que o pesquisador comece a explorar os temas da pesquisa:

    1) Fale-me sobre o seu trabalho;

    2) O que voc sente sobre seu trabalho?;

    3) O que voc faz para lidar com as dificuldades em seu dia-a-dia de

    trabalho?;

    4) Voc acredita que o trabalho est afetando sua sade? De que maneira?

    2.3. Procedimentos

    O acesso aos trabalhadores se deu por meio do sindicato dos trabalhadores metrovirios do Distrito Federal. Os convites aos

    trabalhadores foram feitos pelo Sindicato ao longo de 20 dias. Era esclarecido para os trabalhadores que a participao era voluntria e que

    estavam sendo convidados e no convocados a colaborar com a pesquisa. Foram realizadas seis entrevistas individuais com duraes

    mdias de 1 hora e 40 minutos. Com a autorizao dos participantes, as

    entrevistas foram todas gravadas em meio digital e posteriormente transcritas em sua integra.

    2.4. Anlise dos Dados

    Os dados foram analisados por meio da tcnica da Anlise de Ncleo de Sentido (ANS) proposta por Mendes (2007). A partir dos temas

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    psicolgicos sobressalentes do discurso, desmembra-se o texto em ncleos de sentido, com a finalidade de agrupar o contedo latente e

    manifesto do texto, em definies que dem maior suporte s interpretaes. Os temas so categorizados pela semelhana de

    significado semntico, lgico e psicolgico (MENDES, 2007).

    Para este estudo, no foram definidas ncleos de sentido a priori, ou seja, priorizou-se a lgica dos entrevistados. Deu-se ento uma primeira

    leitura flutuante e foram identificados inicialmente os temas psicolgicos

    sobressalentes de cada entrevista. Esses temas foram discutidos com um juiz, e foram estabelecidos com base na teoria e nos contedos das

    entrevistas.

    3. Resultados

    A anlise permitiu organizar os dados coletados em quatro ncleos

    de sentido, nomeados com falas dos prprios trabalhadores, a saber:

    3.1. Ento somos ns que controlamos isso no brao mesmo. [...] Fazemos tudo isso, acelera, freia, diminui

    A rotina de trabalho dos pilotos de trem de metr se divide

    basicamente entre duas atividades principais: fazer viagens e colocar/recolher os trens da via. Ao assumirem o trem, precisam verificar

    se a placa de destino est coincidente com seu destino, verificar se a tubulao de ar do trem est cheia e se o cdigo de velocidade est acima

    de zero, certificar-se de que a alavanca de comando est na posio correta, para ento iniciar a viagem. Ao longo desta, so responsveis por

    falar com o usurio o destino do trem, dar alguns informativos, orientaes, o nome da estao a seguir, abrir e fechar portas do trem.

    Devem controlar a velocidade para no ultrapassar a velocidade estabelecida, de modo a no gerar incmodos para o usurio. Caso

    acontea algum problema com o trem em seu percurso, o piloto responsvel por resolv-lo, at onde estiver a seu alcance. O piloto deve

    emitir relatrios das falhas que ocorrem. Existe um sistema de fila que indica quando o piloto vai dar sua volta e qual o destino. Quem organiza o

    sistema a chefia imediata. O critrio dessa fila, normalmente, horrio

    de sada. Alm disso, busca-se equilibrar o nmero de voltas entre os pilotos durante a semana, de forma a no sobrecarregar ningum.

    Quando organizam a fila desta maneira, tranquilo, o piloto j sabe o que esperar. Contudo, problemas excepcionais podem desorganizar a fila, tais como problemas no trem e falta de um piloto.

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    3.2. A filosofia do metr 'o piloto no pago para pensar, pago para executar' - quem vai pensar por voc o centro de

    controle.

    Os entrevistados reclamam que o treinamento para atuao como piloto dado no momento em que o trabalhador admitido na empresa e

    que no h reciclagem peridica. Relatam que essa falta de novos treinamentos no levada em considerao pela chefia. Em algumas

    situaes, como falhas que acarretam atrasos ou pessoas passando mal,

    precisam lidar com o nervosismo e estresse dos usurios chegando a casos de agresso. Reclamam da atitude do Centro de Comando frente a

    essas situaes, uma vez que este se preocupa apenas com a continuidade da viagem. A montagem da ordem de viagem dos pilotos se

    trata de um processo muito discricionrio do chefe imediato, o que pode sobrecarregar alguns pilotos. Os relatrios de falha podem ser usados

    contra o piloto, quando de uma atuao fora da prescrio. Quando enviam mais de um relatrio com o mesmo assunto, gera reclamao da

    chefia que, contraditoriamente, alega que as falhas s sero solucionadas quando houver muitos relatrios. Existe uma estrutura com

    muitos chefes, fragmentando o comando e as ordens. Contam que as reivindicaes que fazem so em geral ignoradas, uma vez que a chefia

    no d importncia aos relatrios e comunicaes de falhas que os pilotos fazem. Sentem que no so tratados como seres humanos, com respeito.

    Alguns chefes demonstram inflexibilidade e at invaso em assuntos da

    vida particular do piloto. A filosofia da empresa, em especial a necessidade de se manter estritamente s prescries, vista como algo

    que aproxima o sujeito da mecanizao dizem que a filosofia do metr a de que o piloto no pago para pensar, s para executar.

    3.3. As pessoas me olham como mais uma pea de um trem

    Os entrevistados contam que o trabalho muito automatizado, a ponto de se tornar um rob ou de serem considerados como mais uma pea de um trem. Assim, em alguns momentos d tilt ou d um branco. Alm disto, o trabalho mecnico considerado como um dos fatores de desmotivao, assim como a alta rotatividade e a impossibilidade de ascenso. Sentem-se frustrados por fazerem algo

    operacional, que no estimula o pensamento. A maioria tambm conta que pensa em um jeito de sair do metr, considerando-o como um meio de alcanar os objetivos, e no como um fim em si. Relatam se sentirem

    desgastados quando desprestigiados pela chefia. Sentem que carregam o metr nas costas e se consideram mquinas de ltima gerao operando um sistema arcaico. H relato de piloto que no consegue se lembrar do que fez durante o dia de trabalho. Apontam como pontos positivos do

    trabalho conhecer muita gente, ser um trabalho tranquilo, que voc

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    no leva para casa. Os entrevistados relatam cansao, dores no brao e estresse relacionados ao trabalho. A maioria tambm relata se sentir

    dispersa para realizar outras atividades no trabalho como estudar, por exemplo.

    3.4. Vai criando mecanismos de defesa, n?

    As relaes conflituosas com as chefias geram a vontade nos pilotos

    de no permanecerem na empresa. Relatam que todos estudam para passar em outro concurso pblico e que conversam sobre o assunto.

    Acreditam que a camaradagem e o bom ambiente entre os pilotos com brincadeiras e manifestaes de apoio evitam que a situao hierrquica se agrave, pois brincam com a desgraa. Quando surgem novas falhas, os pilotos trocam informaes uns com os outros, relatando as

    experincias e o modo como lidou com o problema. Alm disso, conversam sobre modos de burlar alguns dos procedimentos com os quais

    no concordam. Buscam pensar em outras coisas quando esto dentro da cabine pilotando, tais como: concursos, possibilidades de ir para outra

    empresa, trabalhos acadmicos. Quando pensam em assuntos relacionados ao trabalho, como desentendimentos com a chefia, no

    gostam. Outra estratgia tentar no pensar no trabalho quando saem de l, esquecer ao mximo. Outra alternativa encontrada por um piloto se

    manter afastado, ler livros para tirar do mundo aqui fora. Alm disso, o apoio da rede social cnjuge e amigos se mostra como um meio de lidar com as dificuldades encontradas no trabalho.

    4. Discusso

    A organizao do trabalho descrita pelos trabalhadores mostra uma srie de tarefas e procedimentos considerados automatizados/mecnicos.

    Os procedimentos para conduzir o trem seguem uma seqncia que pouco espao d para ser mudada, uma vez que se d por meio do acionamento

    de alavancas e botes. Seguem scripts a partir do momento em que se encaminham para assumir o trem: verificar se a placa de destino est

    correta, assumir o controle, conferir se as cinco coisas impeditivas do trem funcionar esto em ordem, levantar e segurar a alavanca, virar e

    apertar botes.

    A mecanizao tambm se faz sentir quando precisam resolver os

    problemas do trem no tanto pelas falhas que se repetem, mas pela obrigatoriedade de se manter estritamente aos procedimentos prescritos,

    aprendidos poca que entraram na empresa por meio de um treinamento. Se no cumprirem esse prescrito, ainda que resolvam o

    problema sem prejuzos ao trem ou aos passageiros, recebem reclamao

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    para a empresa, errar no seguir o protocolo. Relatam que muitas vezes esses procedimentos no so a melhor forma de resolver o

    problema, e ainda assim precisam se manter a risca das prescries. Ao mesmo tempo, quando surgem falhas novas, o piloto precisa se virar, ser criativo, dar conta da situao, ir em tentativa e erro.

    Nessa situao, frente impossibilidade de lanar mo de seu saber-fazer para subverter o prescrito e dar conta do real, o trabalhador

    tem negados sua inteligncia e conhecimento sobre o prprio trabalho j que podem ser punidos. Ningum sabe melhor sobre o trabalho do que o prprio trabalhador, que est ali investido afetivamente naquilo que faz,

    que acumula conhecimento e alternativas ao vivenciar seu trabalho. no dia-a-dia, a cada nova situao, que o trabalhador conhece os caminhos

    para diminuir a discrepncia entre o prescrito e o real. O piloto que no se atm ao protocolo nada mais faz do que seguir seu conhecimento, sua

    inteligncia astuciosa.

    A organizao do trabalho tambm se caracteriza por um amplo leque de mecanismos de controle por parte das chefias, como nos critrios

    do sistema que indica quando o piloto vai dar sua volta e qual o destino.

    Outro exemplo desse controle o fato de, antes de tomar qualquer deciso frente a qualquer situao excepcional, precisam se reportar ao

    CCO, que passa o procedimento a ser seguido. A inteligncia prtica, que

    emerge frente ao inesperado, controlada por essa obrigatoriedade. O trabalhador no tem autonomia para fazer seu trabalho, preencher o

    prescrito e o real. O controle exercido pela organizao do trabalho se d sobre o trabalhador e sobre o prprio trabalhar.

    Os trabalhadores tambm so obrigados a fazerem relatrios para

    as ocorrncias falhas ou situaes excepcionais. Esses relatrios so usados como mais uma forma de garantir o controle, uma vez que:

    1) o que foi escrito pode ser usado contra o prprio piloto;

    2) no recebem respostas dos relatrios na maior parte das vezes;

    3) quando enviam mais de um relatrio com a mesma questo, gera

    reclamao da chefia;

    4) quando no enviam, a chefia argumenta que o problema s ser resolvido

    quando houver muitos relatrios.

    O piloto se v, ento, frente a uma questo contraditria. Muitas

    vezes, os trabalhadores escolhem no fazerem o relatrio e serem punidos, se desmobilizando frente a um jogo com regras pouco claras.

  • FACAS, E. P.; MENDES, A. M.; SANTOS JNIOR, A. V. dos; ANJOS, F. B. dos; LIMA, V. S. de. Organizao do trabalho e mediao do sofrimento de pilotos metrovirios. R. Laborativa. v. 2, n. 2, p. 1-20, out./2013. http://ojs.unesp.br/index. php/rlaborativa.

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    Na apresentao de um estudo com telefonista, Dejours (1992) fala da construo de um autocontrole, pois o medo de ser vigiado vigiar-se a si mesmo (p. 102). por meio do medo e da ansiedade que o controle causa que a organizao do trabalho consegue fazer com que os preceitos

    tcnicos e hierrquicos sejam respeitados. No caso dos pilotos, o trabalhador acaba muitas vezes por escolher o procedimento que no ir

    gerar a punio, ou seja, o prescrito, ainda que este no seja entendido como a coisa certa. Em uma organizao do trabalho onde as regras de controle so confusas e contraditrias, onde se vive simultaneamente o

    rigor e a falta de clareza, o trabalhador se encontra ainda mais em uma posio vulnervel e confusa.

    Esse controle faz parte das relaes hierrquicas de poder, que

    ficam claras nas falas dos pilotos, especialmente com chefias imediatas. Relatam que esse o ponto mais estressante do trabalho, pois no conseguem entender o que os chefes fazem. Tambm so parte dessas relaes as ofensas que os pilotos sofrem, a falta de respostas s

    solicitaes e as chantagens.

    Nesse sentido, h relato que as relaes na empresa so baseadas em um militarismo, que, segundo o trabalhador, expresso pela inflexibilidade, a falta de cordialidade no trato com os sujeitos e at mesmo invaso em assuntos da vida particular do piloto. Essa diferena

    hierrquica reforada no discurso dos chefes imediatos, fazendo com

    que os pilotos no se sintam respeitados. Isso acontece desde o momento em que entram na empresa, atravs do treinamento, quando so taxados

    por alguns instrutores como lixo, despesa e continua aps o treinamento, em especial com o reforo de que piloto no pensa, uma maquininha.

    Ainda na temtica das relaes socioprofissionais, importante caracterizar o modo como se d a relao entre o trabalhador (piloto) e o

    cliente da empresa (usurio). Em uma viagem sem incidentes/acidentes, o piloto do trem de metr um sujeito invisvel frente aos olhos do

    passageiro. A qualidade do servio, a rapidez, a tranqilidade, tudo crdito de um sistema automatizado e moderno, eficaz. Contudo, essa

    relao se modifica quando algo sai do planejado. O piloto, em meio viagem, o representante da empresa. Fica exposto ao usurio, que,

    insatisfeito com o servio que lhe prestado, adota uma postura

    agressiva. Muitas vezes, contudo, o piloto est apenas seguindo uma ordem que vai contra seu prprio julgamento de como seria melhor agir.

    Mais uma vez, tem que se colocar no lugar de uma mquina executora, impedido de tomar as decises que vo agir diretamente sobre suas

    tarefas.

  • FACAS, E. P.; MENDES, A. M.; SANTOS JNIOR, A. V. dos; ANJOS, F. B. dos; LIMA, V. S. de. Organizao do trabalho e mediao do sofrimento de pilotos metrovirios. R. Laborativa. v. 2, n. 2, p. 1-20, out./2013. http://ojs.unesp.br/index. php/rlaborativa.

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    Com relao aos sentimentos decorrentes da relao entre sujeito-trabalho, Dejours (1992) esclarece que quando o trabalho est

    rigidamente organizado, no h como adaptar o trabalho personalidade, gerando frustraes e grandes esforos de adaptao.

    Para o autor,

    o sofrimento comea quando a relao homem-organizao do trabalho est

    bloqueada; quando o trabalhador usou o mximo de suas faculdades

    intelectuais, psicoafetivas, de aprendizagem e de adaptao. Quando um

    trabalhador usou de tudo de que dispunha de saber e de poder na

    organizao do trabalho e quando ele no pode mais mudar de tarefa, isto ,

    quando foram esgotados os meios de defesa contra a exigncia fsica (p. 52).

    De maneira geral, podemos levantar quatro grandes indicadores do sofrimento:

    (1) a indignidade, que surge do contato com uma tarefa desinteressante e

    que traz sentimentos de vergonha por ser robotizado, mais um apndice da

    mquina;

    (2) a inutilidade, que diz respeito falta de qualificao e sentido do trabalho;

    (3) a desqualificao, que diz respeito imagem de si que repercute no

    trabalho, a admirao e respeito dos outros por seu trabalho; e

    (4) a vivncia depressiva, que encerra os trs indicadores anteriores, alm da

    sensao de adormecimento intelectual, da paralisia da imaginao

    (DEJOURS, 1992). Nos pilotos de trem de metr, esse sofrimento emerge por meio dos

    sentimentos de frustrao, desmotivao, nervosismo, angstia, indignao, desvalorizao, mal-estar, vergonha.

    A organizao do trabalho, em especial a diviso das tarefas, faz

    com que o prprio piloto se sinta um rob, uma mquina, j que no encontra espao para lanar mo de sua inteligncia e criatividade frente

    a uma tarefa que no o desafia. Este sentimento est sempre presente em seu trabalho e claramente expresso, por exemplo, quando um dos

    entrevistados est relatando um dos problemas que podem acontecer na abertura de porta abrir portas do lado oposto e diz que este ocorre porque:

    [...] to automatizado que voc no raciocina mais, voc s abre. [...] E

    tem algumas vezes que voc nem sabe por que abriu do lado errado. Voc

    no raciocinou, ou at mesmo o seu subconsciente que t trabalhando ali [...]

    Voc fica um rob.

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    A questo simples: como se sentir diferente de um rob quando seu trabalho no exige raciocnio? Contudo, o trabalhador jamais pode ser

    reduzido a uma mquina, porque pensa e sente mesmo frente a um trabalho automatizado. Como diz o prprio sujeito, o subconsciente est trabalhando ali afinal, segundo Dejours (2004), todo trabalho de concepo e humano.

    A diviso dos homens, por meio da falta de autonomia e de

    confiana no trabalho do piloto por parte da chefia, tambm apontada

    como algo que faz o sujeito se sentir robotizado. Tal como encontrado por Itani (1997), para os pilotos entrevistados, o automatismo no se

    distingue de condies fsicas ou organizacionais. Ele se constitui no conjunto de regras e normas a serem cumpridas, imbricadas no contedo

    o trabalho e no parte dele no sendo assim a simples execuo da atividade, mas a realizao da tarefa em condies que a cercam.

    Os resultados remetem indignidade da classe operria relatada por

    Dejours (1992) expressa por sentimentos de vergonha de ser um apndice da mquina, de no ter mais imaginao ou inteligncia, de

    estar despersonalizado, dentre outros, especialmente quando os pilotos estudados dizem que so tachados como mais uma pea de um trem e

    que se sentem frustrados e envergonhados por fazerem algo totalmente operacional, que no estimula o pensamento.

    Com relao ao sentimento de inutilidade, este se manifesta quando o piloto diz que no gosta de conversar sobre o trabalho e no se

    aprofunda em conhecimento do trabalho, por acreditar que, para trabalhar, basta saber botar o trem em movimento e lidar com o usurio.

    Uma fala de um dos pilotos tambm ajuda a entender como se d a

    falta de sentido e de qualificao desse trabalho: Nosso trabalho ali o que? Pilotar trem, fazer ele chegar, ir e voltar. Acabou, mais nada. Esse

    nosso trabalho.

    O sentimento de desqualificao surge especialmente frente ao no reconhecimento por parte da chefia da qualidade do trabalho e do

    conhecimento do piloto.

    O sentimento de indignao se d frente aos critrios injustos na

    gesto do trabalho, bem como os abusos nas relaes de poder. Se sentem desgastados e irritados com a falta de respeito que sofrem por

    parte de alguns chefes no trato pessoal. Se expressa por meio de revolta, desgaste, raiva. Esses sentimentos so acompanhados por uma

    desesperana em mudanas.

  • FACAS, E. P.; MENDES, A. M.; SANTOS JNIOR, A. V. dos; ANJOS, F. B. dos; LIMA, V. S. de. Organizao do trabalho e mediao do sofrimento de pilotos metrovirios. R. Laborativa. v. 2, n. 2, p. 1-20, out./2013. http://ojs.unesp.br/index. php/rlaborativa.

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    Conceitualmente, o prazer se manifesta por meio de sentimentos de gratificao, realizao, reconhecimento, liberdade e valorizao do

    trabalho e est ligado realizao de atividades variadas, trabalho de boa qualidade, descentralizao do processo decisrio, hierarquia flexvel,

    autonomia sobre o processo produtivo, possibilidade de aprendizagem e crescimento profissional, participao coletiva e estmulo criatividade

    (SANTOS-JNIOR, 2009; ROSSI, 2008; FERREIRA e MENDES, 2003).

    Nesse sentido, apenas a possibilidade de troca de informaes sobre

    o trabalho com os colegas, subvertendo a alguns poucos procedimentos prescritos, pode ser apontado como positivo no trabalho do piloto de trem

    de metr, tendo em vista que esse espao de troca permite o reconhecimento de beleza do trabalho e abre a possibilidade da

    constituio da identidade do piloto.

    Para lidarem com as vivncias decorrentes do trabalho, os pilotos se valem tanto do coletivo de regras quanto estratgias de defesa,

    caracterizadas a seguir.

    O coletivo de regras, segundo Mendes et al. (2003), se caracteriza por organizar as relaes entre os trabalhadores e remete a uma

    dimenso tica do que justo e injusto. Reporta-se ao julgamento de beleza e esttica do trabalho. No caso dos pilotos, se d na tentativa de

    transformar a situao causadora de sofrimento contudo, diz respeito apenas s situaes que emergem da diviso das tarefas na organizao do trabalho. H um espao de troca de informaes acerca de novas

    falhas e a deliberao sobre novos procedimentos.

    Essa possibilidade de trocar experincias, julgar procedimentos, possibilita ao piloto, por meio da fala, dar sentido a algo que gera

    angstia justamente porque est fora de sua lgica do trabalho. Busca, nessas falas e trocas, dar vazo carga psquica que surge nos

    desencontros entre as tarefas e os seus desejos. Esse coletivo serve tambm como um espao de validao do saber, por meio da

    possibilidade de ter seu trabalho reconhecido, de ver sua soluo sendo aprovada e utilizada pelos pares. Assim, o sujeito tem a oportunidade de

    buscar e garantir sua integridade psquica, de se inscrever, de constituir sua identidade.

    Tem-se ento a confirmao dos dados encontrados por Itani (1997) em seu estudo com trabalhadores do transporte metropolitano de So

    Paulo, onde a produo do fazer sobretudo coletiva e o operatrio no se constitui seno pela unicidade dos atos coletivos.

    H, por meio do coletivo, mobilizao para tentar transformar as

    tarefas. Contudo, os pilotos pouco se articulam frente s dificuldades da

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    diviso dos homens da Organizao do Trabalho. Em geral, esses trabalhadores lanam mo de estratgias defensivas para lidar com o

    sofrimento que surge da gesto do trabalho e das relaes hierrquicas.

    O isolamento e individualizao, tambm caractersticos da negao, aparecem na fala de alguns entrevistados, quando, por exemplo, um

    piloto diz ser sua estratgia ir para uma sala e ficar lendo, para tirar do mundo aqui fora. Dessa maneira, conseguia que ningum falasse com ele. Para no entrar em contato com aquilo que o faz sofrer, o piloto

    simplesmente se isola do resto do grupo. Assume uma postura de sair do mundo, se individualiza, evita (se) colocar a prova seus modos de pensar e agir frente o contato com o outro, para garantir que esses continuem efetivos na evitao do sofrimento.

    Outra alternativa utilizada pelo sujeito na mediao de seu

    sofrimento , quando est pilotando, pensar em outras coisas: monografias, concursos, trabalhos acadmicos, dentre outros. Um dos

    entrevistados chega a dizer que ento na minha cabea eu no t na cabine realmente, eu t pensando nas minhas metas profissionais, remetendo s estratgias dos operrios terceirizados da construo civil, descritas por Barros e Mendes (2003), que pensam na famlia ou no futuro

    de modo a evitar o contato com o que causa o sofrimento.

    O sofrimento no trabalho s pode ser legvel por meio da

    investigao das estratgias de mediao dessa vivncia. Se o corpo est presente no trabalho, os pensamentos criadores de possibilidades novas esto fora da cabine. Aos constrangimentos gerados pela organizao do trabalho no deve haver desprendimento de energia, nem investimento

    fantasioso/criativo para resolver problemas. O desejo claramente est descolado do que o corpo est fazendo o corpo vai pilotando at a prxima estao, o sujeito vai ao encontro de sonhos de um novo trabalho.

    Por vezes, o sujeito dentro da cabine no consegue evitar pensar no

    trabalho, gerando mal-estar. Mostra-se a necessidade de falar sobre aquilo que causa sofrimento, elaborar a organizao do trabalho a que

    est submetido. O piloto vai, na cabine, remoendo o desprestigio que tem frente sua chefia. Fala que a rea de transporte um vcio, que no consegue ficar longe das notcias do transporte metrovirio quando

    est fora do expediente. Mas esse vcio nada mais do que a prpria necessidade de falar sobre seu trabalho.

    Falar e pensar sobre o trabalho remete aos sentimentos de

    inutilidade e indignidade, de se sentir como uma pea de mquina, de no ter seu desejo inscrito na Organizao do Trabalho, de no ser

    reconhecido por sua chefia e pelos usurios do sistema de transporte.

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    Negar o prprio pensamento sobre o trabalho a estratgia para evitar o contato com aquilo que faz sofrer. Mas por vezes essa evitao falha. O

    sujeito comea a falar sobre o trabalho sem perceber e se fora a parar quando comea. Pode at no se falar sobre, mas impossvel apagar o

    que se sentiu e vivenciou enquanto estava trabalhando: o sujeito no uma mquina. De fato, o sujeito no quer ser considerado apenas um

    executante, condenado obedincia e passividade. Frente a esse cenrio automatizado, sem o reconhecimento de utilidade de seu trabalho,

    o sujeito se desmobiliza, perde o interesse em investir naquele trabalho

    por no ter um retorno abrindo, assim, a oportunidade do adoecimento se instalar.

    Retomando os conceitos apresentados anteriormente, percebe-se

    que os metrovirios se utilizam de estratgias defensivas de proteo. Percebe-se o uso da negao em comportamentos descritos pelos

    trabalhadores, como a naturalizao do sofrimento alheio, o isolamento e o individualismo, e da racionalizao, quando atribuem a causas externas

    a explicao do porqu se mantm no trabalho.

    A adaptao se d nos comportamentos automatizados que os trabalhadores lanam mo para lidar com a tarefa quando, por exemplo,

    estes relatam que no raciocinam mais, s fazem, indicando uma saturao do estado consciente que os impedem de pensar (ROSSI,

    2008).

    5. Consideraes Finais

    O estudo objetivou verificar quais estratgias os pilotos de trem de metr lanam mo para mediar o sofrimento frente ao trabalho

    automatizado. Conforme apresentado, essas estratgias se diversificam a depender do que se apresenta como causador do sofrimento. Na realidade

    estudada, no se pode limitar o entendimento de trabalho automatizado s tarefas sentir-se rob, como relatado por um dos trabalhadores, no meramente conseqncia destas. Muito alm do que apertar botes, a automatizao se faz presente no que os entrevistados chamam de

    filosofia da empresa, que se mostra principalmente por meio das relaes entre os diferentes nveis hierrquicos. O automatismo, nesse

    contexto, deve ser visto como tudo aquilo que nega ao sujeito a

    oportunidade de conceber e executar seu trabalho de acordo com sua inteligncia e saber em suma, o que faz o sujeito se sentir um mero executor.

    Frente a uma organizao do trabalho rgida, os pilotos se valem de um coletivo de regras e estratgias defensivas individuais. O primeiro

    surge para dar conta das discrepncias entre o trabalho prescrito e o real.

  • FACAS, E. P.; MENDES, A. M.; SANTOS JNIOR, A. V. dos; ANJOS, F. B. dos; LIMA, V. S. de. Organizao do trabalho e mediao do sofrimento de pilotos metrovirios. R. Laborativa. v. 2, n. 2, p. 1-20, out./2013. http://ojs.unesp.br/index. php/rlaborativa.

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    Contudo, se limita s tarefas que no podem ser controladas pelas chefias, ou seja, a uma minoria de atividades. Assim, os objetivos do

    coletivo ficam incompletos, incapazes de atingir a maior parte das situaes geradoras de sofrimento. Apesar disso, o espao de deliberao

    e escuta fundamental para que o sujeito possa elaborar seu trabalho, reconhecer o valor de seu conhecimento e buscar a possibilidade de

    inscrever sua subjetividade nas tarefas em que realiza afastando-se, ainda que de forma limitada, da mecanizao. Para dar conta do que o

    coletivo de regras no consegue mudar, os trabalhadores lanam mo de

    estratgias defensivas individuais, visando minimizar o sofrimento causado pelas relaes de poder, estrutura hierrquica rgida, alto nmero

    de chefes e a prpria natureza do trabalho automatizado dar voltas e ponto. Nota-se presena tanto de mecanismos de proteo - naturalizao do sofrimento alheio, isolamento, individualizao, evitao do pensamento no trabalho e a racionalizao quanto de adaptao, percebido nos comportamentos automticos na execuo das tarefas.

    Podem ser indicadas como contribuies do estudo as seguintes caractersticas: apresentar dados mais recentes, no contexto brasileiro,

    sobre a categoria profissional no campo de estudo escolhido; possibilitar que os trabalhadores possam falar do trabalho, do que trabalhar, da

    subjetivao alimentada por condies e relaes sociais de trabalho precrias, de uma organizao taylorizada e perversa. Como limitao,

    aponta-se o baixo nmero de participantes da pesquisa, tendo em vista o

    pouco tempo de divulgao para que pilotos se voluntariassem a participar.

    Prope-se como agenda de pesquisa o aprofundamento das

    estratgias de mediao relatadas pelos pilotos entrevistados, em especial o coletivo de regras, por meio de sesses coletivas com outros pilotos.

    Alm disso, sugere-se estudar organizaes de trabalho automatizadas com outras categorias profissionais, como operadores de mquinas,

    ascensoristas e costureiras.

    6. Referncias

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    7. Agradecimentos

    Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico - CNPq pelo apoio financeiro pesquisa.

    Ao Sindicato dos Metrovirios do Distrito Federal, pelo espao e apoio

    logstico na realizao da pesquisa.

    Nota

    * Artigo derivado de Dissertao de Mestrado intitulada: Estratgias de Mediao do Sofrimento no Trabalho Automatizado: Estudo Exploratrio com Pilotos de Trem de Metr

    do Distrito Federal, defendida em 08 de julho de 2009 no Programa de Ps-Graduao

    em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizaes da Universidade de Braslia.

    Pesquisa realizada com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e

    Tecnolgico - CNPq por meio de bolsa de mestrado (processo 134971/2007-8).

    Artigo apresentado em 12/07/2013 Aprovado em 14/08/2013 Verso final apresentada em 22/08/2013

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