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FLAVIA KARLA RIBEIRO SANTOS
PAIXÕES, ACONTECIMENTOS E FORMAS DE VIDA EM CONTOS
DE MENALTON BRAFF. UMA ABORDAGEM SEMIÓTICA
Dissertação apresentada à Universidade de
Franca, como exigência parcial para a
obtenção de título de Mestre em Linguística.
Orientadora: Profa. Dra. Vera Lucia Rodella
Abriata.
FRANCA
2014
1
2
DEDICO esse trabalho a todos que, de alguma forma, dele
participaram.
3
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais, Maria e Wandercy, às minhas irmãs Paula e Jacqueline, aos
meus sobrinhos Gabriel, Ana Laura, Maria Clara e Pedro Henrique, e ao meu cunhado Suéber
pela compreensão por minha ausência, ora no dia-a-dia, ora nos finais de semana, inclusive
almoços de domingo, em prol da minha formação acadêmica;
ao Marcelo, meu marido, pelo companheirismo, pela paciência, pelo
encorajamento e por relevar a minha ausência em diversas ocasiões para que eu pudesse dar o
meu melhor neste trabalho;
à minha orientadora, Professora Doutora Vera Lucia Rodella Abriata, que me
aceitou como sua orientanda e que admiro desde o curso “O universo mitopoético de
Guimarães Rosa” – por ela ministrado durante o meu primeiro ano de graduação em Letras –,
pela amizade, pelo apoio, por ser paciente, acessível e pela oportunidade de tanto com ela
aprender, conhecer e crescer ao longo dessa caminhada;
aos amigos Fernanda Trevisani, Cidinha Morais, Márcio Nalini, Lucinéia
Sartori, Ana Maria Janeiro, Sílvia Orlando, Eliane Junqueira, entre outros, pelo incentivo a
minha formação acadêmica;
à querida Ana Cláudia Ferreira Silveira, pelas lisonjeiras palavras de apoio e
pela amizade;
à Adriana Montesanti e ao Thércius Tasso, que além da competência no
atendimento da Secretaria de Pós-Graduação, tornaram-se amigos muito queridos.
aos docentes do Programa de Mestrado pelas disciplinas ministradas, que me
ajudaram a adquirir conhecimento e a fazer as reflexões, necessários para essa pesquisa e para
a minha vida acadêmica;
ao Professor Doutor e amigo Matheus Nogueira Schwartzmann, pelas
inesquecíveis conversas, pelos conselhos e pelas dicas de língua francesa, que muito
contribuíram para o meu crescimento como pessoa e como pesquisadora;
à Professora Doutora Edna Maria Nascimento dos Santos por me apresentar à
teoria semiótica, ainda na graduação em Letras;
aos queridos amigos e companheiros de experiências semióticas Fabrício Flóro,
Renata Duarte, Jéssica Celestino, Luiz Henrique Pereira, Raíssa Médici, Cleides Prestes e
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Amanda Raiz.
à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Capes, pela
concessão da bolsa Prosup Institucional, que me propiciou cursar o Programa de Mestrado em
Linguística da Universidade de Franca e me dedicar exclusivamente à pesquisa;
ao Marcelo Facuri pelo apoio, sem o qual não conseguiria a licença sem
vencimentos para cursar o Mestrado em Linguística;
à coordenadora Lúcia Maria Guimarães Nassim e aos professores da graduação
em Letras, que sempre me incentivaram a prosseguir nos estudos acadêmicos, pelas
oportunidades de estágio, sem as quais não cumpriria com as exigências da bolsa Prosup
Institucional;
Enfim, agradeço a todos os amigos, que embora não citados nominalmente,
fizeram parte dessa jornada.
Meu sincero – e indelével –, obrigada!
5
E maior é sua cólera contra os amigos do que contra aqueles que não
lhes são caros, porque pensam ser mais pertinente receber dos
primeiros um bem do que disso serem privados.
ARISTÓTELES
6
RESUMO
SANTOS, Flavia Karla Ribeiro. Paixões, acontecimentos e formas de vida em contos de
Menalton Braff. Uma abordagem semiótica. 114 f. 2014. Dissertação (Mestrado em
Linguística) – Universidade de Franca.
Analisamos, neste trabalho, por meio do referencial teórico da semiótica francesa, sob as
perspectivas de Algirdas Julien Greimas, Jacques Fontanille e Claude Zilberberg, os contos
“O gorro do andarilho” e “O zelador”, que integram a obra A coleira do pescoço, de Menalton
Braff. No primeiro conto, um andarilho executa outro andarilho a fim de recuperar seu gorro,
objeto que o aquece nos dias frios. No segundo texto, um zelador de vilas, executa um cão,
seu companheiro e amigo, punindo-o por um roubo que o privaria de uma promoção.
Examinamos os percursos do fazer, os percursos passionais da cólera e da vingança dos
sujeitos protagonistas dos dois textos constituintes do corpus da pesquisa, assim como as
formas de vida que eles manifestam, associadas a acontecimentos que vivenciam. Assim,
aplicamos aos textos elementos da semiótica narrativa, da semiótica das paixões e da
semiótica tensiva. Nosso objetivo é verificar o modo como ocorre a tensivização das paixões
manifestadas nos textos e a forma como os acontecimentos irrompem no desenlace das
narrativas, relacionando-os às formas de vida de seus atores. Nessa perspectiva, associamos os
esquemas passionais a gráficos tensivos, a fim de demonstrar a gradação da tensão dos
sujeitos patemizados. Notamos que tais sujeitos, quando atingem o ápice das manifestações
patêmicas, podem assumir novas formas de vida. Analisamos também o diálogo que o
enunciador estabelece com elementos do discurso psicanalítico freudiano no texto “O
Zelador”, considerando a relevância desse interdiscurso na constituição da forma de vida do
ator-protagonista do conto no desfecho do texto. Observamos que há nos textos que são
objeto de análise a irrupção de acontecimentos, relacionados a formas de vida responsáveis
por desumanizar os atores-protagonistas. Nesse sentido, eles são acometidos por paixões de
malevolência. Assim, constatamos que a manifestação da paixão da cólera em ambos os
textos é desencadeada por acontecimentos que rompem a rotina dos sujeitos, levando-os, por
sua vez, à paixão da vingança. Esta, no auge do recrudescimento da carga tímica dos sujeitos,
resulta em novos acontecimentos.
Palavras-chave: Menalton Braff; contos; paixão; acontecimento; forma de vida.
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ABSTRACT
SANTOS, Flavia Karla Ribeiro. Passions, happenings and ways of life in short stories by
Menalton Braff. A semiotic approach. 114 f. 2014. Dissertation (Mastering in Linguistics) –
Universidade de Franca, Franca.
In this paper, we analyze through the theoretical framework of French Semiotics, under
Algirdas Julien Greimas, Jacques Fontanille and Claude Zilberberg's perspectives, the short
stories “O gorro do andarillho” and “O zelador”, which are part of the book “A coleira no
pescoço”, by Menalton Braff. In the first short story, a wanderer executed another wanderer in
order to get his beanie back, object which keeps him warm at cold days. In the second text, a
village janitor executed a dog, his partner and friend, punishing him for a robbery that would
deprive him of a promotion. We examined the processes of doing, the passionate processes of
fury and revenge of the protagonist subjects from both texts constituting the corpus of the
research, as well as the ways of life which they have manifested, associated with happenings
that they experience. Thus, we apply to the texts the elements of narrative semiotic, passion
semiotic and tensive semiotic. Our aim is verifying how the tensivization of the manifested
passions occurs and the way of the happenings erupt at the denouement of the stories, relating
them to the ways of life of their actors. In this perspective, we associated the passionate
scheme with tensive graphics, in order to demonstrate the gradation of tension from the
passional subjects. We have noted that these subjects, when achieved the apex of patemic
manifestation, they can assume new ways of life. We also analyzed the dialogue that the
enunciator establishes with the elements from Freudian psychoanalytic discourse at the text
“O Zelador”, considering the relevance from this interdiscourse in the constitution of the way
of life from the protagonist actor at the denouement of the story. We have observed that the
eruption of happenings, related to ways of life, is responsible for dehumanizing the
protagonist actors. From this perspective, they are taken by passions of malevolence. Thus,
we concluded that the manifestation of fury at both texts is caused by happenings which
rupture the routine of the subject and take them to the revenge. This passion at the top of the
recrudescence of the subjects' thymic load results in new happenings.
Key words: Menalton Braff; short stories; passion; happening; way of life.
8
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 – Exclusão social do ator Andarilho enquanto valor do absoluto
57
Figura 2 – Amplificação tensiva do percurso passional da cólera do sujeito
Andarilho
71
Figura 3 – Desdobramento da amplificação tensiva do percurso passional da
cólera do Andarilho na paixão da vingança
73
Figura 4 – Atenuação da carga tímica do Andarilho após execução da vingança
75
Figura 5 – Submissão do ator zelador enquanto valor do absoluto
83
Figura 6 – Amplificação tensiva do percurso passional da cólera do sujeito
zelador
96
Figura 7 – Desdobramento da amplificação tensiva do percurso passional da
cólera do zelador na paixão da vingança
99
Figura 8 – Atenuação da carga tímica do zelador após execução da vingança 100
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LISTA DE TABELAS
Tabela 1 – Isotopias figurativas das notações somáticas
68
Tabela 2 – Isotopias figurativas das subvalências tensivas
91
Tabela 3 – Isotopias figurativas das fases da cólera
105
Tabela 4 – Isotopias figurativas da paixão da vingança
106
Tabela 5 – Principais isotopias figurativas presentes nas análises
108
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SUMÁRIO
Conteúdo
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 12
1 PAIXÃO, FORMA DE VIDA E ACONTECIMENTO EM SEMIÓTICA ........... 16
1.1 DA SEMIÓTICA DA AÇÃO À SEMIÓTICA DAS PAIXÕES ................................. 16
1.1.1 A paixão e a semiótica tensiva ...................................................................................... 20
1.1.2 Os efeitos de sentido passionais ................................................................................... 22
1.1.3 A constituição das paixões complexas ......................................................................... 23
1.1.4 A cólera como paixão ................................................................................................... 25
1.1.5 A vingança: uma variante da paixão da cólera ............................................................. 29
1.2 A CONCEPÇÃO DE FORMA DE VIDA EM SEMIÓTICA ....................................... 32
1.2.1 Da imperfeição: a noção de estesia ................................................................................ 33
1.2.2 A contribuição de Wittgenstein ..................................................................................... 34
1.2.3 A construção do conceito .............................................................................................. 36
1.2.4 A práxis enunciativa da forma de vida ......................................................................... 40
1.3 NA IRRUPÇÃO DO INESPERADO, O ACONTECIMENTO .................................. 42
1.3.1 Os modos semióticos .................................................................................................... 44
1.3.1.1 Os modos de eficiência ................................................................................................ 45
1.3.1.2 Os modos de existência ............................................................................................... 46
1.3.1.3 Os modos de junção ...................................................................................................... 47
1.3.2 O ponto de vista figural do acontecimento .................................................................. 48
1.4 A INTERDISCURSIVIDADE EM SEMIÓTICA ....................................................... 49
2 O GORRO DO ANDARILHO: NO ACONTECIMENTO, A VINGANÇA ........ 53
2.1 A FORMA DE VIDA DA INDIGÊNCIA................................................................... 53
2.1.1 A assunção do papel temático de andarilho e da forma de vida da indigência ............ 53
2.1.2 A desumanização do Andarilho .................................................................................... 55
2.2 O ROUBO DO GORRO: UM ACONTECIMENTO ................................................... 60
2.3 A MANIFESTAÇÃO PASSIONAL DA CÓLERA E DA VINGANÇA................. ... 64
2.3.1 A sequência passional da cólera ................................................................................... 65
2.3.2 A vingança do Andarilho: o grande acontecimento ..................................................... 71
11
3 O ZELADOR: O ACONTECIMENTO, A VINGANÇA E A
TRANSFORMAÇÃO DA FORMA DE VIDA .................................................................... 76
3.1 NO PRIMEIRO RELATO: A SUBMISSÃO COMO FORMA DE VIDA ................. 76
3.1.1 A transformação da forma de vida ................................................................................ 84
3.2 NO SEGUNDO RELATO: DOIS ACONTECIMENTOS ........................................... 87
3.3 O PERCURSO PASSIONAL DO ZELADOR ............................................................ 92
3.3.1 O percurso da cólera ..................................................................................................... 92
3.3.2 A execução da vingança ............................................................................................... 97
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 102
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 110
ANEXOS ............................................................................................................................... 114
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INTRODUÇÃO
A prática literária, no dizer de Leyla Perrone-Moisés (1990, p. 100-110),
ocupa-se da “reconstrução do mundo pelas palavras”, apontando para o que falta no mundo e
em nós. Ricardo Piglia (2004, p. 87-114) afirma que a diferença entre a literatura e a vida está
na marca no tempo, na “linha incerta que sabemos existir no futuro como um sonho” – como
a narrativa de Borges, que “narra o fim como se o vivesse no presente: está além e é remoto,
mas já está aqui, inesquecível, despercebido”. Segundo Piglia (2004), somente sob a forma de
arte é possível perceber o sentido à medida que nos projetamos para além do fim.
Da perspectiva da semiótica francesa, teoria que segundo Denis Bertrand
(2003, p. 11-25), investiga o “parecer do sentido” manifestado nos discursos presentes em
diferentes formas de linguagem (verbais, não verbais ou sincréticas), a literatura exerce uma
função crítica sobre a língua, desaprumando-a em relação a si mesma em cada obra. É, pois, o
lugar onde a memória coletiva se cristaliza, espaço em que essa memória é elaborada,
arquivada, fixada e instituída como referência cultural. Pela literatura, são transmitidos
crenças e valores de uma comunidade, seus modos de ser e de fazer, a identidade do grupo.
Assim, para o autor de Caminhos da semiótica literária, os modelos de ação, de representação
e de liturgias passionais são depositados e transformados na literatura, capaz de impingir o
que Bertrand (2003, p. 25) chama de “formas de organização discursiva do sentido e dos
valores, interpretadas como hierarquias e exclusões (o ‘bom’ e o mau gosto...)”.
Diante desse panorama, que abarca o conceito de literatura do ponto de vista da
crítica literária e da teoria semiótica, tecemos algumas observações acerca da escolha dos
contos que constituem o corpus de nossa pesquisa. “O gorro do andarilho” e “O zelador”
integram a coletânea de contos, finalista do prêmio Jabuti-2007, A coleira no pescoço, de
Menalton Braff (2006). O autor, vencedor do prêmio Jabuti-2000, com o romance À sombra
do cipreste, destaca-se no panorama literário brasileiro contemporâneo, por meio da
focalização de temas como “a incomunicabilidade, a apatia, as inações, a pobreza, a luta de
classes e a exploração do trabalho”, segundo a pesquisadora Natalí Fabiana da Costa e Silva
(2011, p. 111-115). Ainda de acordo com a pesquisadora, “[...] as personagens braffianas
carregam, em alguma medida, o estigma de uma sociedade dilacerada. Ineficácia, falência,
13
insucesso e solidão são aspectos característicos às protagonistas”.
Nesse sentido, a literatura braffiana apresenta temas voltados a problemas
sociais da atualidade, o que pode ser observado nos contos que selecionamos para constituir o
corpus desta pesquisa, “O gorro do andarilho” e “O zelador”, cujos temas se relacionam à
violência e à desumanização de seus atores protagonistas.
Assim, em “O gorro do andarilho”, um andarilho mata o companheiro após
acordar da sesta e perceber que o gorro – proteção do frio e seu único bem – está na cabeça de
um outro, que reluta em devolvê-lo e ainda zomba do sujeito espoliado. Em “O zelador”, um
zelador de vilas mata o cão, seu amigo e companheiro, como punição por entrar na casa,
embora pertença ao lado de fora, e roubar a carne da geladeira, ação que privará o ator-
protagonista da promoção almejada.
Considerando, pois, a temática dos contos braffianos, nossa pesquisa de
mestrado, à luz da teoria semiótica francesa, aplica aspectos teóricos relativos aos estudos da
paixão, das formas de vida e do acontecimento em semiótica. Essa escolha teórica foi
determinada pelos próprios textos, pois no processo de análise da construção de seus atores
protagonistas, na medida em que analisávamos seus papéis temáticos e patêmicos,
observamos o modo como neles se manifestava a tensivização da paixão da cólera e sua
variante, a vingança. Assim, passamos a ter como um de nossos objetivos demonstrar como
ocorre a intensificação do sentir dos sujeitos das narrativas analisadas.
Justificamos a escolha de textos literários para a aplicação da teoria, tendo em
vista a relação da história da semiótica com a arte literária. Em outras palavras, a presença do
corpus literário é frequente nas pesquisas greimasianas, registradas desde Maupassant: La
sémiotique du texte, exercices pratiques até “Le beau geste”. Para Greimas (2002, p. 69-70), a
literatura, na medida em que cria simulacros de comportamentos humanos “vividos”, pode
externar informações sobre a condição humana.
Além disso, após Da imperfeição (2002), a preocupação com as vivências
humanas, escopo da literatura, se tornou fulcral nas pesquisas em Semiótica, o que nos
inspirou a associar os conceitos de acontecimento e de forma de vida à pesquisa, adotando a
perspectiva zilberbergiana sobre tensividade, pois observamos que as paixões, nos textos em
análise, irrompem dentro de uma forma de vida e em razão de um acontecimento.
Observamos, desse modo, a tensivização das paixões da cólera e da vingança
que se manifestam nos textos em análise, conforme Jacques Fontanille (2005), os
acontecimentos, como concebe a semiótica tensiva – que engloba em seu cerne as grandezas
de intensidade e de extensidade, e os modos semióticos –, e a desumanização imposta pelas
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formas de vida vivenciadas pelos atores-protagonistas.
Relacionando os conceitos semióticos já assinalados – paixão, acontecimento,
forma de vida – partimos da hipótese de que o acontecimento, ao provocar uma tensão na
relação dos atores-protagonistas com o Outro, um Outro que às vezes se confunde com a
alteridade do próprio sujeito, incita a manifestação patêmica da cólera com base na concessão
e na quebra do contrato fiduciário entre os sujeitos. A um só tempo, tanto esse acontecimento,
quanto a manifestação patêmica estão relacionados às formas de vida da submissão e da
indigência. Acreditamos ainda que o percurso passional da cólera, que é influenciado pelo
acontecimento, se transforma na paixão da vingança. Consequentemente, os sujeitos
patemizados, desumanizados pelas formas de vida, são violentos na aplicação de sanções
pragmáticas aos antissujeitos com que se deparam em seu percurso.
Com base na hipótese apresentada, nosso objetivo geral é verificar como ocorre
a tensivização das paixões manifestadas nos textos, paixões relacionadas à desumanização dos
atores e às formas de vida que eles manifestam. Temos também por objetivo observar de que
modo os grandes e últimos acontecimentos irrompem no desenlace das narrativas. Além
disso, também temos por propósito observar o modo como esses acontecimentos se
relacionam às formas de vida dos atores-protagonistas.
No primeiro capítulo – Paixão, forma de vida e acontecimento em Semiótica
– procedemos à contextualização teórica em que baseamos esse trabalho. Desse modo,
fazemos referência ao estudo das paixões em semiótica, às noções de formas de vida e de
acontecimento. Embora retomemos cada um desses conceitos separadamente, já que se
incorporaram à teoria em momentos históricos diferentes, motivo pelo qual adotamos essa
sequência – paixão, forma de vida, acontecimento –, procuramos associá-los uns aos outros. A
adoção de concepções da semiótica tensiva, relacionadas aos estudos das paixões e das formas
de vida, tem o intuito de proporcionar homogeneidade no desenvolvimento das análises dos
dois contos.
Ademais, também discorremos, no capítulo teórico, sobre o conceito de
interdiscursividade, com base na adaptação do conceito bakhtiniano para a teoria semiótica
francesa, operada por Fiorin (1994). Buscamos, nesse caso, justificar a pertinência da
utilização desse conceito, mediante estudos de Barros (2009) sobre a “exterioridade”
discursiva em semiótica. Utilizamo-nos ainda da pesquisa de Waldir Beividas (1996), para
exemplificar o modo como no conto “O zelador”, observamos o diálogo com conceitos da
obra de Sigmund Freud.
Nos capítulos subsequentes – O gorro do andarilho: no acontecimento, a
15
vingança e O zelador: o acontecimento, a vingança e a transformação da forma de vida
–, observamos, com base nas isotopias temático-figurativas e nos papéis temáticos dos atores
que se concretizam nos textos, um esquema de identificação de ocorrências de deformação
coerente da moral social, de recorrência e de manifestação de uma nova moral, no caso
individual, além de uma operação de triagem na constituição das formas de vida da
indigência, em “O gorro do Andarilho” e da submissão em “O Zelador”. Nesse último, ainda
identificamos uma relação interdiscursiva com a psicanálise freudiana dentro da forma de
vida da submissão.
Em seguida, procuramos descrever o acontecimento uma vez que os sujeitos
andarilho e zelador são surpreendidos pelo inesperado, ou seja, pelo roubo do gorro pelo
Gordo, no texto “O gorro do Andarilho” e da carne do zelador por Ego em “O Zelador”.
Como na potencialização dos acontecimentos há uma atualização dos desejos
dos sujeitos de novamente tornarem-se conjuntos dos objetos de valor, descrevemos o
percurso passional da cólera dos dois atores, andarilho e zelador, nos dois textos. Esse
percurso tem início na potencialização dos acontecimentos – roubo do gorro e roubo da carne
–, que caracteriza o sujeito operador. Dessa forma, demonstramos o desenvolvimento desse
percurso patêmico, mediante a crise de confiança provocada pelo rompimento do contrato
fiduciário, até desdobrar-se na vingança, seguindo o esquema tensivo de amplificação,
desenvolvido por Jacques Fontanille (2012).
Devemos ressaltar que os dois contos são analisados com a mesma sequência
metodológica, e, em ambos, aplicamos os mesmos conceitos teóricos. No entanto, para fins
didáticos, e para melhor entendimento do sentido dos textos à medida que são reconstruídos
neste trabalho, as análises são realizadas separadamente.
Nas Considerações Finais, cotejamos as análises a fim de observarmos a
gradação tensiva em relação às paixões, aos acontecimentos e às formas de vida manifestados
nas narrativas e em que medida a desumanização dos atores afeta suas relações afetivas e
sociais.
16
1 PAIXÃO, FORMA DE VIDA E ACONTECIMENTO EM SEMIÓTICA
1.1 DA SEMIÓTICA DA AÇÃO À SEMIÓTICA DAS PAIXÕES
Preocupada com o sentido, ou, mais precisamente, com o parecer do sentido, a
teoria semiótica francesa desenvolveu, entre os anos 1960-1980, um modelo de análise do
texto baseado em um percurso gerativo do sentido. No dizer de Denis Bertrand, trata-se de
“um percurso estratificado em camadas relativamente homogêneas, indo das formas concretas
e particulares, manifestadas na superfície do texto, às formas mais abstratas e gerais
subjacentes, dispostas em múltiplos níveis de profundidade” (BERTRAND, 2003, p. 49).
Esses níveis, segundo Bertrand (2003, p. 49), organizam-se e combinam-se por meio de regras
sintáxicas e semânticas. Assim, o percurso gerativo de sentido distingue as estruturas
profundas onde estão inscritos os valores nos quadrados semióticos, as estruturas
semionarrativas em que se encontram os dispositivos modais (manipulação pelo querer e pelo
dever, competência do poder e do saber), a sintaxe actancial e o esquema narrativo; das
estruturas discursivas que as concretizam por meio da enunciação, onde se manifestam a
tematização (revestida de isotopias figurativas), as figuras do (tempo, espaço e pessoa), os
atores, que criam o simulacro do mundo.
Consoante o semioticista, os sujeitos que agem nos enunciados são operadores.
Eles assumem posições actanciais que, embora variáveis, têm sempre uma visão
transformadora, um fazer (BERTRAND, 2003, p. 359). Daí o fato de, no início da construção
teórica, essa hipótese teórico-metodológica centrar-se na narratividade, nas relações entre o
sujeito e o objeto, a partir de um esquema narrativo, que manifesta a realização em discurso
da “transformação dos estados de coisas [...] por meio de uma sintaxe elementar de aquisição,
privação ou partilha dos valores inscritos nos objetos desejáveis [...]” – os chamados
enunciados de fazer, que asseguram a transformação de estado do sujeito nos enunciados de
junção com o objeto, de acordo com Bertrand (2003, p. 359). Nesse estágio, a teoria semiótica
17
é conhecida como Semiótica da Ação1.
A semiótica da ação, ligada à narratividade, conforme Bertrand (2003, p. 359),
faz das posições actanciais “lugares fixos que apesar de compostos por um feixe de
modalidades variáveis”, são considerados, no entanto, por sua “visão transformadora, seu
fazer” em que o actante é um mero operador, não considerando “a modulação dos estados do
sujeito” [...] “instável, flutuante em seu face a face com a ação”., enfim, os estados de alma do
sujeito. Esses estudos passam a ser sistematizados por Greimas e Fontanille (1993) na obra
Semiótica das paixões. Dos estados de coisa aos estados de alma
De acordo com Barros (2001, p. 60-62), as paixões são entendidas como
“efeitos de sentido de qualificações modais que modificam o sujeito do estado”.
Com o desenvolvimento do estudo sobre o ser do sujeito, percebe-se, segundo
Bertrand (2003, p. 360-372), que ao redor da junção há um desdobramento da modulação dos
estados, “como uma variação contínua” tanto antes quanto depois dela. Essa variação delineia
o espaço passional da narrativa. Assim, ao focalizar a “relação juntiva” no centro do programa
narrativo, o espaço passional se dilata, marcando “uma parada no desenvolvimento dos
programas de ação, mas depreendendo um novo universo de significações” até então
mascarado pela abordagem estritamente narrativa. Esse espaço passional, “feito de tensões e
aspectualizações”, é “da ordem do contínuo” e está disposto ao redor das transformações
narrativas do sujeito.
O pesquisador observa que a persistência e a modulação dos estados de alma
do sujeito ao longo das transformações, faz com que o estado passional desse sujeito – na
circulação dos objetos e dos valores considerados “desejáveis ou temíveis” –, dependa da
modalização investida nos objetos – /querer/, /dever/, /poder/, /saber/ –; da intensidade do
desejo de junção com o objeto-valor, no percurso do fazer e; do crivo moral imposto pelo
“Destinador coletivo”. Nessa perspectiva, a paixão corresponde à intensificação da carga
tímica do /ser/, seja do ponto de vista eufórico, seja do ponto de vista disfórico, em sua
relação com as modalidades /querer/, /dever/, /poder/, /saber/, tanto em uma dêixis positiva,
quanto em uma dêixis negativa. Assim, o /querer ser/ inscreve o desejo de conjunção,
enquanto o /não querer ser/ revela o não querer a conjunção, como assevera José Luiz Fiorin
(2007, p. 4).
Lembramos, porém, que os autores de Semiótica das paixões Greimas e
1 Embora os conceitos pertinentes à Semiótica da Ação sejam evocados nas análises, esse trabalho se volta à
aplicação de conceitos teóricos da Semiótica concebida a partir da década de 1980. Por esse motivo, não nos
deteremos na conceptualização de todos os seus elementos.
18
Fontanille (1993, p. 21) fazem uma ressalva no que concerne à relação do desenvolvimento
dos estados patêmicos com as transformações narrativas. Eles asseveram que, embora o
estudo sobre o percurso passional dos sujeitos possa se dispor em torno das transformações
narrativas, as paixões não se configuram como “propriedades exclusivas dos sujeitos” no
nível semionarrativo. As paixões são, na verdade, “propriedades do discurso inteiro e emanam
também das estruturas discursivas”, podendo se projetar sobre os sujeitos, ou sobre os objetos
ou sobre sua junção.
Essa observação ratifica a explicação de Greimas e Courtés (1986, p. 165) no
Dictionnaire raisonné de la théorie du langage, de que o sujeito de estado se transforma em
ator ao desempenhar, no nível discursivo, papéis patêmicos, à semelhança dos papéis
temáticos. O papel patêmico representa, por sua vez, “uma organização hierárquica modal,
que se manifesta sintagmaticamente, no nível discursivo, sob a forma de configurações
patêmicas”.
Devemos lembrar também que as paixões são obtidas por meio da
complexidade das “correlações entre dispositivos e dimensões provenientes de diversos níveis
do percurso gerativo” (FONTANILLE; ZILBERBERG, 2001, p. 298).
Já, segundo Bertrand (2003, p. 374-415), que se baseia em Semiótica das
paixões, o percurso passional é sistematizado em uma cadeia modal de sequências específicas
da crise passional, inscrita em uma coerência formal que, no esquema da ação, entrelaça o
percurso do fazer ao percurso do ser. Nesse esquema, o sujeito, disposto a acolher
determinado “efeito passional”, é sensibilizado. Por conseguinte, a emoção corresponde à
crise passional e prolonga e atualiza a sensibilização, cabendo à moralização sancionar o
percurso. Essa sequência canônica fica assim esquematizada:
disposição sensibilização emoção moralização
(cf. contrato competência ação sanção)
Nesse processo, as modalidades do /ser/, que podem se intensificar de acordo
com o universo axiológico do sujeito, podem ainda ser aspectualizadas conforme a percepção
temporal sobre o processo, isto é, podem ser acabadas, não acabadas, pontuais, iterativas ou
durativas, incoativas ou terminativas.
No dizer de Greimas e Fontanille (1993, p. 155-156, grifos do autor), como o
simulacro passional pressupõe a projeção da trajetória existencial do sujeito por ele mesmo,
19
esse sujeito pode não passar por todas as fases da sequência canônica, conforme sua
disposição modal. Ao mesmo tempo, a moralização, considerada uma etapa transitiva da
sequência e não pertencendo ao simulacro passional em si, pode se colocar em qualquer etapa
do percurso, estabelecendo o seu fim. Por esse motivo, assume os traços terminativo e
acabado, pois o julgamento ético, ou moral, pressupõe uma parada no desenvolvimento do
ator. Desse modo, à medida que a moralização reconhece os comportamentos observáveis,
convocados por uma disposição, esses comportamentos são apoderados pela moralização. Isso
acontece quando a moralização reconhece “uma intencionalidade da paixão, sob a forma de
uma imagem-fim e de um dispositivo de sensibilização”, possibilitando que o estudo do
discurso moral repouse no conhecimento dos universos passionais.
No âmbito da figurativização da dimensão passional do discurso, o que torna a
paixão nomeável, do ponto de vista de Bertrand (2003, p. 358), é o crivo de moralização. O
autor ressalta que o estudo das paixões em semiótica difere daquele estabelecido por outras
áreas do conhecimento, como a sociologia ou a psicologia, visto que, em semiótica, a paixão
não é considerada do ponto de vista do que “afeta o ser efetivo dos sujeitos ‘reais’”. A paixão,
em semiótica, é “efeito de sentido inscrito e codificado na linguagem”.
Fiorin (2008, p. 60-63), a esse respeito, afirma que como a paixão presente em
um texto é uma paixão representada, resultado de um arranjo de modalidades, é também
modulada, aspectualizada e envolvida pelo tempo. Pode aparecer mencionada no texto, por
meio de um lexema, ou representada na narrativa, criando o tom do texto. É chamada de
paixão de papel em semiótica, porque é lexicalizada, porque é representação do real no
discurso, assim como o sujeito. Fontanille (2012, p. 214) ainda acrescenta que as paixões são
designadas por lexemas nas línguas naturais. Esses lexemas podem ser nominais, como
“orgulho”; adjetivos, como “mesquinho”; adverbiais, como “orgulhosamente”; ou verbais,
como “inquietar-se”. Nas palavras do autor,
Esses lexemas são signos e, enquanto tais, são resultados de um uso. Como
todos os vocábulos de uma língua, eles são depositários (e tributários) de
uma história e de uma cultura. Nosso projeto como um todo é o de uma
semiótica do discurso, e não do signo, e, consequentemente, ele nos impele a
ultrapassar também a expressão lexical da paixão. Essa “fossilização”
histórica e cultural dos efeitos passionais é, em si, um [...] fenômeno
limitado e que depende da capacidade mais geral do discurso de produzir
efeitos passionais (FONTANILLE, 2012, p. 214).
Assim, a paixão só pode ser reconhecida dentro de uma história e de uma
cultura – como também observa Greimas (1983, p. 225), onde o crivo moral pode distinguir
20
uma paixão de outra e classificá-la como positiva ou negativa, vício ou virtude. Uma ressalva,
porém, deve ser feita. Para ser reconhecida, não basta à paixão ser lexicalizada e estar inserida
em uma cultura, pois cada discurso apresenta características próprias, que podem tornar as
paixões irreconhecíveis. Considerando essa perspectiva, “cada efeito passional deve ser
relacionado à sintaxe de que depende e que lhe fornece seu contexto”, motivo pelo qual cada
paixão-lexema comporta um programa, que permite reconhecê-la a partir de um percurso
figurativo associado ao nome da paixão (FONTANILLE, 2012, p. 214-216).
Na opinião de Beyaert-Geslin (2009a, p. 55), o estudo das paixões, iniciado em
Du sens II, em 1983, e sacramentado em Semiótica das paixões, em 1991, inaugurou linhas de
pesquisa que até hoje conduzem à reflexão semiótica. Por isso, estabelecido o panorama dos
primeiros anos de estudo das paixões pela semiótica, apresentamos as contribuições da
semiótica tensiva de Jacques Fontanille e Claude Zilberberg (2001) a essa investigação, e as
manifestações passionais da cólera e da vingança, tendo como referências, os estudos
preliminares de Greimas (1983) e os estudos ulteriores, desenvolvidos por Fontanille (2005)
acerca dessas paixões.
1.1.1 A paixão e a semiótica tensiva
Após a publicação de Da Imperfeição2 (2002) e com a o advento da semiótica
tensiva3, o estudo das paixões volta-se cada vez mais para as manifestações passionais
relacionadas ao “vivenciado”. Para Fontanille e Zilberberg (2001, p. 297-299), “vivenciar
uma paixão seria mesmo conformar-se a uma identidade cultural e buscar a significação de
nossas emoções e afetos na sua maior ou menor conformidade às taxionomias acumuladas em
nossa própria cultura”. Os semioticistas ainda acrescentam que é a sanção intersubjetiva e
social da práxis enunciativa que determina o que é uma paixão. Desse modo, a manifestação
passional é reconhecida, identificada, partilhada e denominada, transformando-se em um
estereótipo cultural da afetividade.
Fontanille (2012, p. 130-204) considera que se “a paixão em discurso remete
2 Trataremos dessa obra greimasiana detalhadamente ao introduzirmos os estudos sobre formas de vida.
3 Conhecida como Semiótica pós-passional, um prolongamento lógico da Semiótica das Paixões, a Semiótica
Tensiva é concebida como “uma semiótica do sensível, ou da presença, centrada em um sujeito cada vez mais
personificado”, nas palavras de Couégnas (2009, p. 67). Nessa perspectiva, segundo o autor, a Semiótica Tensiva
não se preocupa com o sujeito que age, mas como o sujeito sente e, principalmente, com a percepção do sujeito
sobre o mundo que o rodeia (COUÉGNAS, 2009, p. 67).
21
ao ‘vivido’, ao sentir”, a práxis enunciativa é que esquematiza tanto a dimensão passional,
quanto outras dimensões do discurso. Essa esquematização permite a inscrição da dimensão
passional em formas culturais – que lhe atribuem sentido – e a tornam inteligível. Assim,
estabelece uma sequência canônica que, submissa aos esquemas de tensão, possibilita o
reconhecimento de paixões “típicas” em uma dada cultura. Eis o esquema:
Com esse esquema, Fontanille não somente amplia o percurso passional
canônico, antes desenvolvido por Greimas, como também delineia uma nova abordagem no
estudo das paixões. Isso, porque, em sua concepção, assim como a ação – que transforma os
estados de coisas –, a paixão transforma o sujeito por ela afetado, porém dirigida por
modulações tensivas de intensidade e de extensidade. A paixão obedece, pois, aos esquemas
tensivos, além de sintetizar, organizar e solidarizar as tensões da presença, ao passo que “a
ação obedece aos esquemas narrativos canônicos”, e sintetiza os programas de junção.
Os esquemas tensivos são, para Fontanille (2012, p. 109-116), “esquemas
discursivos elementares, que regulam a interação do sensível e do inteligível, as tensões e os
relaxamentos que modulam essa interação”. Esses esquemas podem ser canônicos e, nesse
sentido, são “esquemas discursivos compostos, que conjugam e encadeiam vários esquemas
tensivos sob a forma cristalizada e imediatamente reconhecível em uma dada cultura”.
Segundo o autor, existem quatro esquemas elementares de tensão que, combinados ou não,
“asseguram a solidariedade entre o sensível (a intensidade, o afeto, etc.) e o inteligível (o
desdobramento na extensão, o mensurável, a compreensão)”. Esses esquemas de tensão
representam as variações do equilíbrio entre as grandezas de intensidade e de extensidade.
Nesse sentido, gradativamente, as variações conduzem aumento da intensidade ao aumento da
tensão afetiva e o aumento da extensidade ao relaxamento cognitivo.
Fontanille (2012, p. 109-116) explica que no primeiro tipo de esquema, o
relaxamento cognitivo é produzido pela combinação entre a diminuição da intensidade e o
desdobramento da extensão. É chamado de esquema descendente ou esquema da decadência.
O semioticista francês descreve-o como cenário que “parte de um realce da intensidade, de
um choque emocional, para o relaxamento produzido pelo desenvolvimento, uma explicação
ou, ainda, uma reformulação em extensão”. O segundo tipo de esquema combina o aumento
da intensidade com a redução da extensão, produzindo uma tensão afetiva. É o esquema da
ascendência. Nesse caso, ao contrário do primeiro esquema, o realce de intensidade conduz a
22
uma tensão final. O terceiro esquema é o da amplificação. Ele produz tanto uma tensão
afetiva, quanto uma tensão cognitiva ao combinar o aumento da intensidade com o
desdobramento da extensão. Aqui, segue-se “um princípio de gradação geral que parte de um
mínimo de intensidade e de uma fraca extensão para desembocar em uma tensão máxima,
igualmente desdobrada na extensão”. Segundo o pesquisador, esse esquema está presente na
tragédia clássica, pois quando as tensões diminuem antes de ser encontrada uma solução para
o drama, propiciam que a crise irrompa com mais força e não encontre outra solução que não
seja a morte ou a desgraça. No último esquema, uma diminuição da intensidade é combinada
com uma redução da extensão, que produz um relaxamento geral. É chamado esquema de
atenuação. Nesse cenário ocorre o “declínio geral das tensões e dos desdobramentos”,
conduzindo a um relaxamento, que convoca uma reavaliação das forças no discurso. Nesse
esquema, as valências de intensidade e de extensidade estão em grau muito baixo, ou até sem
grau, à espera de uma amplificação da carga tímica.
Tendo esclarecido como funcionam os esquemas tensivos, elucidaremos como
a paixão é discursivizada no campo de presença do sujeito, ou seja, como os efeitos de sentido
passionais são produzidos, de acordo com a semiótica tensiva.
1.1.2 Os efeitos de sentido passionais
No dizer de Fontanille (2012, p. 205), a paixão discursiva é resultado de
determinações modais e tensivas. Nelas, as modulações da tensividade fórica são rearticuladas
descontinuamente sob a forma de modalizações do ser. Da perspectiva de Fontanille e
Zilberberg (2001, p. 297-302), a paixão é uma “configuração discursiva caracterizada por suas
propriedades sintáxicas – é um sintagma do discurso – e pela diversidade dos componentes
que reúne: modalidade, aspectualidade, temporalidade, etc.”. Nesse sentido, a manifestação
passional envolve: dimensões modais e fóricas; modalidades existenciais (/ser/) e de
competência (/querer/, /dever/, /poder/ e /saber/) e as grandezas de intensidade e de
extensidade e suas subvalências correlatas de andamento e tonicidade, tempo e espaço.
Os semioticistas franceses (2001, p.301) alegam, outrossim, que a definição da
paixão é determinada pelo valor a que essa paixão visa. Dessa forma, são identificados dois
tipos de valores: valores de absoluto, de caráter exclusivo e concentrado, e valores de
universo, de caráter participativo e extenso. Mas, o que define o tipo axiológico de paixão é a
23
correlação entre intensidade e extensidade afetivas investidas no objeto.
Como observa Fontanille (2012, p. 217-225), as formas e os esquemas
sintáticos produzem efeitos de sentido passionais à proporção que a paixão sentida é
identificada por códigos estabilizados na cultura. Esses códigos são figurativizados e,
conforme aparecem e desaparecem, trespassam o campo de presença. São eles: os códigos
modais, os códigos rítmicos, os códigos somáticos e os códigos perspectivos. As modalidades,
ao levarem em conta a correlação entre intensidade e extensidade, propiciam a uma paixão
suscitar outra, em dependência da “identidade modal do actante que a vivencia”. O ritmo
revela as tensões sentidas pelo corpo próprio do actante (abrandado, sincopado, agitado, etc.).
A expressão somática compreende as sensações que acompanham a paixão que anima o
actante (cor da pele, fisionomia, gesto, tremor, etc.). Intrinsecamente ligada a uma práxis
enunciativa, a expressão somática identifica uma paixão com base em uma dada cultura. A
cólera, por exemplo, se expressa de formas diferentes no Ocidente e no Oriente. O código
perspectivo, por fim, insere-se na tomada de posição no discurso por meio de escolhas
linguísticas como escolha entre o artigo definido e o artigo indefinido, ou entre a debreagem e
embreagem, dentre outras.
Voltando à questão das esquematizações, que inscrevem as manifestações
passionais em formas culturais, de acordo com o Dictionnaire Raisonne de la Theorie du
Langage II (GREIMAS; COURTÉS, 1986, p. 164-165), a intensidade passional, no aspecto
tensivo, distingue uma paixão de outra pela gradação de intensidade, ou seja, a paixão é
nomeada consoante a menor ou a maior intensidade da carga tímica dentro de um programa
de uso. Como a manifestação passional pode comportar tanto um, quanto vários estados
patêmicos, é pertinente que nos aprofundemos na distinção entre paixões simples e paixões
complexas, para, a posteriori, introduzirmos os conceitos concernentes à paixão da cólera.
1.1.3 A constituição das paixões complexas
Segundo Greimas (1983, p. 225), as paixões podem ser simples ou complexas.
As simples, que no dizer de Fiorin (2007, p. 5), resultam de uma única modalização do
sujeito, correspondem a um estado passional que não exige nenhum percurso modal anterior.
As complexas, por outro lado, “resultam do encadeamento de vários percursos”. Greimas
(1983, p. 227-230) esclarece que as paixões complexas, como a cólera, são fortemente
24
modalizadas por um estado inicial de espera, que pode ser simples ou fiduciária. Geralmente,
não se trata de contrato verdadeiro, mas de contrato de confiança, imaginário. Se o contrato é,
portanto, resultado da imaginação do sujeito de estado, simulacro construído por ele, o sujeito
do fazer, em quem foi depositada a confiança, não se sente obrigado a fazer. Por essa razão,
essa espera pode ter como contrapartida os estados patêmicos de satisfação e de confiança ou
de insatisfação e de decepção, decorrentes “da conjunção ou da disjunção do sujeito com o
objeto-valor desejado e da conservação ou da perda da confiança investida no contrato
simulado”, nas palavras de Barros (2001, p. 64).
Como Greimas (1983, p. 227-230) explicita em seus pressupostos, a espera,
estado tenso e disfórico de disjunção, ao resultar na realização de um /querer ser/, é distendida
em uma satisfação – estado relaxado e eufórico de conjunção. Quando ocorre o oposto e a
espera é “sobredeterminada pela categoria de intensidade, tornada excessiva, bem mais,
intolerável”, ao saber da não realização do programa narrativo do sujeito do fazer, um /saber
não ser conjunto/, esse estado patêmico inicial é conduzido à insatisfação e à decepção,
estados tensos e disfóricos.
Para o semioticista lituano (GREIMAS, 1983, p. 233-237), aspectualmente, a
intensidade da insatisfação e da decepção é determinada pela duração e está ligada a não
realização do que o sujeito esperava. Assim, a insatisfação é provocada pela interpretação de
que o sujeito do fazer teve um comportamento não conforme ao que dele era esperado e pela
conclusão de que essa espera é injustificada. A decepção resulta da crise de confiança, visto
que o sujeito do fazer não atendeu às expectativas do sujeito do /crer/ que, decepcionado, se
acusa de ter feito uma má aplicação de sua confiança. Por isso, provocadas pela frustração,
que pode significar “vivo descontentamento”, a insatisfação e/ou a decepção podem ser
conduzidas à cólera. Isso ocorre à medida que se prolongam e desencadeiam novos efeitos
passionais. A insatisfação, que pode ter um aspecto terminativo e colocar fim em um
programa narrativo, também pode ter um aspecto incoativo e iniciar um programa narrativo
de liquidação da falta. Nesse caso, dá início a um estado patêmico de descontentamento. Ao
mesmo tempo, o sujeito privado do objeto-valor e em crise de confiança, pode ser provocado
pelo destinador a desenvolver um programa narrativo de revolta e /querer fazer/ mal ao sujeito
que o decepcionou, ou pode considerar o sujeito que o decepcionou um antissujeito e
desenvolver um programa narrativo de vingança, como observaremos em tópico específico.
Sendo assim, conforme Barros (2001, p. 69), uma paixão complexa obedece a
critérios de organização modal em que são determinados os estados passionais do sujeito. Isso
significa que as variações tensivas que marcam o percurso podem graduar de um estado de
25
espera relaxada a uma falta tensa para, na sequência, a distensão da constituição da
competência convergir no relaxamento final do fazer.
Desse modo, considerando tanto os postulados aqui apresentados acerca da
constituição das paixões complexas, apresentamos, a seguir, o percurso passional da cólera,
desenvolvido, primeiramente, por Greimas, em Du sens II e, depois por Jacques Fontanille no
Dictionnaire des passions littéraires4.
1.1.4 A cólera como paixão
Ainda na antiguidade clássica, (ARISTÓTELES, 2000, p. 7), a cólera é
entendida como “[...] o desejo, acompanhado de tristeza, de vingar-se ostensivamente de um
manifesto desprezo por algo que diz respeito a determinada pessoa ou a algum dos seus,
quando esse desprezo não é merecido”. Para o filósofo grego, “o colérico se irrita sempre
contra um indivíduo em particular, [...] e isso porque ele fez ou ia fazer algo contra si ou
contra um dos seus, e porque a toda cólera se segue certo prazer, proveniente da esperança de
vingar-se [...]”.
No artigo denominado De la colère, Greimas (1983, p. 225-246) afirma que a
cólera é uma paixão complexa, ou seja, uma sequência discursiva constituída por uma
superposição de estados e de fazeres. Essa sequência divide-se em unidades sintagmáticas
autônomas que, reconhecidas, se refazem e se transformam em uma configuração passional.
É essa configuração passional que define a paixão da cólera: uma sucessão de etapas que
comporta, sucessivamente, uma frustração, um descontentamento e uma agressividade.
Entretanto, também pressupõe um estado inicial de não frustração, ou seja, de espera, que
pode ser simples ou fiduciária. Na espera simples, o sujeito deseja estar conjunto de seu
objeto-valor. Mas, enquanto a conjunção não se realiza, sendo um sujeito competente para
isso, é denominado sujeito atualizado. Na espera fiduciária, o sujeito é um sujeito de estado e
crê que outro sujeito deve ser responsável pela sua conjunção com o objeto-valor. Trata-se de
um contrato imaginário que, não se efetivando, conduz o sujeito decepcionado ao
descontentamento, que pode levá-lo a tornar-se agressivo contra o outro. Quanto à
agressividade, Greimas (1983) afirma que a agressão é suscetível de se transformar em
4 Todas as citações da obra Dictionnaire des passions littéraires (2005) são traduções nossas.
26
vingança. O seu estudo se conclui com a afirmação de que a cólera tem um caráter violento,
ou melhor, pressupõe uma decepção violenta e uma “reação imediata do sujeito
decepcionado”, mesmas características da vingança. No entanto, difere a cólera da vingança
pelo /poder-fazer/ exacerbado da cólera, que domina o sujeito de tal modo que ele perde a
capacidade de aplicar a “agressividade orientada (afirmação de si e destruição do outro)”,
característica da vingança.
Sendo assim, a sequência passional da cólera que se desenha em Du Sens II
(GREIMAS, 1983, p. 226-227) é a seguinte:
[Espera Fiduciária] → Frustração → Descontentamento → Agressividade
A “cólera literária” também é, para Fontanille (2005, p. 61-79), uma paixão
complexa, é uma paixão originada de outra paixão e por ela controlada, comportando
avaliações positivas ou negativas, que a transformam em comportamento moral. Esse
comportamento moral recobre e camufla o funcionamento propriamente passional, visto que o
discurso ético, ao revelar suas articulações principais, preocupa-se mais com a explosão
colérica, “com sua oportunidade, com seus efeitos e com sua ética”. Na visão do semioticista,
baseando-se em Aristóteles e Sêneca, essas avaliações morais são determinadas por um
momento histórico e por uma cultura, e podem considerar a patemização do sujeito justa ou
fraqueza de caráter.
Para Fontanille, no esquema desenvolvido por Greimas em Du Sens II não há
preocupação com o funcionamento textual e com o desenvolvimento discursivo da cólera.
Além disso, Greimas superpõe a espera e a confiança para caracterizar um tipo de espera que
não seria somente temporal. Todavia, seja a espera simples ou fiduciária, não pode ser
confundida com a confiança, que não se relaciona à cólera propriamente, já que a maior parte
da confiança depositada no outro não conduz à cólera. O mesmo ocorre na relação entre
espera e frustração, que também não desemboca na explosão da cólera. Algumas frustrações
levam ao desespero, outras, a simples e duráveis descontentamentos; outras, enfim, são
compensadas por contra estratégias, de vingança ou de represália. Quanto à explosão, essa
fase não pode ser confundida com a agressividade, pois diferentes derivados da cólera podem
se manifestar sem a explosão final, enquanto variações da agressividade. Desse modo, como
existem alternativas à explosão, parece-lhe útil inscrever a explosão no final da sequência
canônica em razão da sua função de “descarga” imediata e muito precoce da agressividade.
27
Por isso, o esquema greimasiano é complementado por Fontanille (2005, p. 63), como segue:
Confiança → Espera → Frustração → Descontentamento → Agressividade → Explosão
Ao explicar cada uma das fases da sequência canônica da cólera acima
ilustrada, Fontanille (2005, p. 63-79) assevera que:
A confiança “é uma relação entre ao menos dois sujeitos, e pode ser
formulada como um ‘crer em’ alguém” (FONTANILLE, 2005, p. 64). Para
ele, trata-se de um estado passional de crença em alguém no qual é
estabelecido um contrato fiduciário, explícito ou não, entre o sujeito
patemizado e um destinatário, sendo o último aquele em quem a confiança é
depositada. Dessa forma, a confiança pode, no mínimo, “afetar a
representação de um estado ou de um acontecimento” ao modalizar o sujeito
por um /dever ser/ (FONTANILLE, 2005, p. 64).
Na espera há uma relação entre o espaço de tempo em que o sujeito espera
pelo cumprimento do contrato fiduciário pelo destinatário e “a capacidade do
sujeito de suportar a demora de realização” (FONTANILLE, 2005, p. 64).
Como a espera “guarda a memória da confiança que a funda”, a junção
eufórica depende da ação de outro sujeito (ou outros sujeitos). Por isso, o
sujeito da espera não tem a certeza de que a junção desejada será realizada e
vê essa espera desdobrada em “um ‘crer em qualquer coisa’ (o estado
esperado) e um ‘crer em qualquer um’ (aquele que deve realizar essa qualquer
coisa)” (FONTANILLE, 2005, p. 64).
a frustração, segundo Fontanille (2005, p. 64), em sua definição narrativa
elementar “[...] concerne à relação entre sujeito e objeto” em um estado de
privação ou falta. Para o semioticista, “enquanto momento passional da
sequência, ela reatualiza a promessa de conjunção anterior, e a falta apenas se
prova, nesse caso, sobre o fundo da confiança e da espera decepcionadas”
(FONTANILLE, 2005, p. 64). Por esse motivo, essa configuração passional
ocorre na constatação da irrealização da junção, ou seja, na intensificação da
necessidade de cumprimento da promessa de junção. Nesse momento, o
sujeito da cólera percebe que será privado do objeto-valor e “seu corpo
sensível é tomado pela decepção”. Há, pois, nessa fase, uma reativação do
28
/querer/ do sujeito.
O descontentamento, de acordo com Fontanille (2005, p. 65), trata da relação
do sujeito consigo mesmo:
[...] decepcionado pela frustração, o sujeito confronta o que ele esperava e o
que ele obtém (o estado esperado e o estado realizado) e conclui por uma
situação insatisfatória, por uma inadequação entre o si projetado e o eu atual.
Mas, enquanto momento passional da cólera, o descontentamento é
igualmente direcionado a qualquer outro, qualquer um que se tinha engajado,
que antes talvez prometera, e que está ao menos implicado nessa
inadequação. Esse ‘qualquer outro’ talvez si mesmo, mas em um outro papel
actancial, um ‘si-mesmo’ com o qual se contava para a realização do
acontecimento esperado (FONTANILLE, 2005, p. 65)
Segundo o autor (2005, p. 65), quando há uma confrontação deceptiva entre os
dois estados, uma tensão é provocada entre o sujeito do querer (o Si projetado)
e o sujeito do saber (o “Eu” atual). Esse “actante clivado, dividido entre suas
modalizações que suporta dois estados contrários ou contraditórios”
(FONTANILLE, 2005, p. 65), torna-se instável (inquieto, agitado). Essa
instabilidade requer resolução. Por isso, num momento posterior às sequências,
esse actante deverá voltar a ser um actante inteiro.
a agressividade, conforme Fontanille (2005, p. 65), pode ser endereçada ao
outro sujeito, aquele “que não honrou a promessa”, ou aos objetos que
impediram a realização da junção com o objeto-valor. Nos dois casos, tanto o
sujeito, quanto os objetos se revelaram menos confiáveis que se imaginava.
Dessa forma, o sujeito da cólera afronta os actantes que considera antissujeitos.
Para o autor, “a agressividade pode ser descrita como um efeito da irrupção do
antissujeito no campo de presença do sujeito” (FONTANILLE, 2005, p. 65).
Significa “que o actante da cólera, revisou sua percepção do outro que ele
identifica como um antissujeito potencial” e, nesse momento, ela [a
agressividade] abre “uma sequência de afrontamento, uma prova: o actante se
prepara para a confrontação, e sua eventual agitação manifesta a emergência de
um /poder fazer/” (FONTANILLE, 2005, p. 65).
A explosão, última fase da sequência, manifesta-se no momento em que “o
sujeito, face a face consigo mesmo, resolve brutalmente as tensões acumuladas,
sem nenhuma consideração pelos objetos perdidos, pelos antissujeitos
incriminados, ou pelos danos causados” (FONTANILLE, 2005, p. 65). De acordo
29
com o semioticista, a explosão cólera sempre resulta no mal do sujeito e
[...] reúne todas as identidades modais e afetivas surgidas no curso da
sequência em uma manifestação única, massiva e imediata: a resolução das
clivagens internas, a tensão versus um inteiro reencontrado torna-o violento
diante de possíveis afrontamentos. (FONTANILLE, 2005, p. 65)
Com base na explanação sobre cada fase da sequência canônica da cólera e no
fato de essa sequência nem sempre culminar na explosão de tal paixão, esta pode ser
considerada um “ramo” passional, ou seja, a versão sintáxica da “gama” passional
(FONTANILLE, 2005, p. 74). Esse ramo passional traça o seguinte esquema do percurso da
cólera, com suas variações:
Assim sendo, segundo Fontanille (2005, p. 78), a principal característica da
cólera é sua estrutura sequencial, composta de fases ordenadas e todas diferentes umas das
outras. Adotando um ponto de vista tensivo, Fontanille esclarece que essa paixão é regida pela
temporalidade do acontecimento, do programa narrativo, e das tensões apreendidas à altura da
percepção humana. Ela também opõe a relação entre a intensidade e a quantidade, que
equivale à noção de extensidade. Ademais, a cólera propicia a violência já que, ao se
manifestar, muitas vezes engendra o infortúnio e a destruição, tendo em vista ser a “reação à
ruptura unilateral do contrato fiduciário” (FONTANILLE, 2005, p. 78). Essa reação, por sua
vez, é intensa, pontual. Ao mesmo tempo, proporciona uma violência autorregulada, pois a
pontualidade da explosão limita a quantidade e a duração de seus efeitos.
Quando, porém, não há explosão da cólera, pode surgir a vingança, como
explicaremos a seguir.
1.1.5 A vingança: uma variante da paixão da cólera
Segundo Lombardo (2005, p. 279), enquanto reação a uma ação nociva ou
30
assim considerada, a vingança consiste na devolução do mal com o mal. Paixão antiga,
praticada desde a mitologia grega, pelos deuses, passa a ser considerada negativa no
cristianismo, que a opõe ao perdão. Na modernidade, com o advento das leis que organizam a
justiça, a “prática selvagem do castigo”, passa a ser condenada, e essa paixão deixou de existir
enquanto prática social. Contudo, a vingança é um “sentimento humano fundamental”,
presente no cotidiano, tanto nas relações familiares quanto nas relações profissionais.
A explicação de Lombardo pode ser ratificada em Greimas e Courtés (2011, p.
535). Para os pesquisadores, a vingança é praticada pelo destinador individual enquanto a
justiça é exercida por um destinador social, porém ambos são dotados de um /poder-fazer/
pragmático de resposta similar a uma ação negativa.
Nesse sentido, Greimas (1983, p. 241, grifos do autor) assevera que a vingança
pode ser definida tanto como necessidade ou desejo de se vingar, quanto como uma ação.
Desse modo, é possível considerá-la uma “compensação moral do ofendido por punição ao
ofensor”, ou uma “punição do ofensor que repara moralmente o ofendido”. A ação, por fim,
diz respeito a dois sujeitos com vistas a restabelecer o equilíbrio entre eles, uma vez que o
equilíbrio do sofrimento é considerado uma regulação social das paixões. Assim, um é
compensado moralmente, o outro é punido, e a falta é liquidada.
Fontanille (2005, p. 66-71), por sua vez, afirma que a vingança surge como
variante da agressividade e pode surgir tanto no lugar da explosão da cólera, quanto após essa
paixão. Tem como principal característica o reconhecimento do princípio de reciprocidade
dos danos e desenvolve-se a partir de um programa de retaliação contra o antissujeito.
Presumida na reparação do dano causado, a vingança só pode ser medida em relação a esse
dano, tendo em vista: a quantidade, a temática, a duração. Enquanto resultado da ruptura do
contrato fiduciário, essa paixão substitui as regras de boas condutas por regras de más
condutas, estabelecendo um diálogo interdiscursivo não só com Lombardo (2005, p. 279-281)
– que considera a vingança “uma reação a uma ação nociva ou assim considerada”, capaz de
expor a sua dimensão pessoal ao aplicar a justiça selvagem, ou seja, devolvendo o mal com o
mal –, mas também com Aristóteles (2000, p. 9) – que afirma em Retórica das paixões, que
quem paga na mesma moeda comete a vingança. Ao mesmo tempo, o semioticista francês
também assinala que a vingança não dura indefinidamente, pois comporta, impreterivelmente,
limites quantitativos e temporais, que especificam seu papel de compensação dos danos
causados (FONTANILLE, 2005, p. 71).
Quanto ao aspecto tensivo da vingança, à medida que essa paixão revela a
explosão agressiva da confiança, unilateralmente “desprezada/ridicularizada, mas
31
intensamente sentida/lastimada/deplorada”, realça “a estrutura temporal e tensiva da cólera”,
de acordo com Fontanille (2005, p. 74). Por esse motivo, quando ocorre a vingança,
[...] qualquer que seja a duração das etapas que a precedem, a última deve
ser breve, intensa, decadente, quer ela se instale no tempo e permaneça
átona, quer ela adote um perfil ascendente e progressivo; em todos os casos
ela faz com que se saia do campo passional da cólera no sentido estrito
(FONTANILLE, 2005, p. 74).
Muito pensada, “altamente cerebral”, e motivada por sentimentos e costumes
(LOMBARDO, 2005, p. 288), a vingança é composta de dois pontos de vista: da sanção
pragmática e da sanção cognitiva. Na sanção pragmática (GREIMAS, 1983, p. 241), um
programa de compensação é levado adiante pelo programa narrativo de vingança. Nele, é
conveniente para o sujeito S1, que sofre, infligir o castigo, ou seja, a punição e a dor ao mesmo
tempo, para que S2 sofra da mesma forma. A vingança é, em primeiro lugar, “um reequilíbrio de
sofrimentos entre sujeitos antagonistas”. Para o semioticista,
Tal equilíbrio de sofrimentos é um fenômeno intersubjetivo, uma regulação
social das paixões. O programa narrativo de vingança não se encontra ainda
esgotado desse feito. Com efeito, o sofrimento de S2 provoca o prazer de S1 –
uma satisfação que acompanha normalmente todo programa narrativo bem
sucedido – que, para dizer as coisas brutalmente, se deleita por ter feito sofrer
seu inimigo. A vingança é, por conseguinte, sobre o plano individual e não
mais social, um reequilíbrio dos desprazeres e dos prazeres (GREIMAS,
1983, p. 241, grifo do autor).
Diante dessa perspectiva, Greimas (1983, p. 244) conclui, consequentemente,
que na dimensão pragmática e enquanto atividade somática e gestual, a vingança é definida
pelos efeitos passionais dessa atividade e compreendida como “circulação de objetos
‘paixões’”. Ademais, compara o percurso dessa paixão ao esquema sintagmático do sádico:
O equilíbrio dos sofrimentos e dos prazeres possibilita a substituição da punição
somática através da privação dos bens, presumida na provocação do desprazer, ou da aquisição
dos bens, como reparação moral por meio de satisfações julgadas equivalentes. Dessa forma, o
/poder-fazer/ convocado pela vingança institui um destinador-julgador que transforma essa
32
manifestação passional em justiça5. Por conseguinte, a intelectualização da manifestação
passional (das dores e dos prazeres) conduz ao desapaixonar da vingança, ou seja, “conduz
progressivamente à dessemantização da estrutura da vingança e a seu enfraquecimento”.
A sanção cognitiva, para Greimas, está na reinstalação da linguagem da verdade.
Nela, as manifestações figurativas exploram os universos semânticos que comportam no embate
entre o herói e o traidor, “a afirmação de si e a destruição do outro”. Fontanille (2005, p. 71-76),
por outro lado, esclarece que apesar de a vingança substituir a explosão agressiva final da cólera
e, diferentemente das manifestações passionais do ressentimento e do ódio, não dura
indefinidamente. Contudo, sua eficácia está condicionada à identificação completa como dano,
de tal modo que o antissujeito reconheça o vínculo e a equivalência entre o erro sofrido e o dano
causado. É nesse sentido que o pesquisador considera a vingança cognitiva: “não somente o
outro sujeito deve provar um dano equivalente àquele que causou, mas, reconhecer essa
equivalência, e saber que se trata de uma medida de compensação; aquele que se vinga sem
poder fazer saber é privado de uma parte de sua vingança” (FONTANILLE, 2005, p. 72).
Para concluir, o semioticista francês ainda afirma que a vingança se distingue da
cólera porque aquele estado patêmico “implica um cálculo cognitivo, um cálculo das partes,
uma avaliação das quantidades e da duração”. Essa perspectiva é equivalente à conclusão de
Greimas (1983, p. 245-246), que concebe a vingança como uma agressividade orientada por um
programa de ação, que reúne um conjunto de competências modais do sujeito na emergência do
/poder-fazer/.
Apresentamos até aqui um panorama dos estudos das paixões – especialmente
das paixões da cólera e da vingança. Como a manifestação passional também se relaciona às
formas de vida manifestadas no corpus que constitui nossa pesquisa, faremos alusão a seguir, ao
conceito de forma de vida para a semiótica francesa.
1.2 A CONCEPÇÃO DE FORMA DE VIDA EM SEMIÓTICA
Um novo modelo de análise surge no Seminário de Semântica Geral de 1991-
1992, ocorrido na École des Hautes Études en Sciences Sociales, intitulado Estética da ética:
5 Para Greimas e Courtés (2011, p. 279, grifo do autor), a justiça designa “a competência do destinador social,
dotado da modalidade do poder-fazer absoluto”. Esse destinador é chamado de julgador, porque é encarregado
de aplicar a sanção.
33
moral e sensibilidade. Em 1993, como resultado desse evento, um dossiê, integralmente
dedicado à noção de forma de vida, é publicado sob a forma de revista: a Recherches
sémiotiques. Semiotic inquiry. Nesse periódico, Greimas (1993, p. 21-34)6 introduz o conceito
de forma de vida ao explicitar o interesse pela sequência de comportamentos individuais de um
sujeito frente à coletividade, que funda uma nova axiologia, própria e única, a partir da ruptura
com a moral coletiva.
Segundo Anne Beyaert-Geslin (2012), “desde sua primeira menção por Greimas
em 1991 às exemplificações de hoje, a noção de forma de vida acompanha a construção da
semiótica e concentra a interrogação sobre o ‘sentido da vida’”. Por isso, diante do legado
deixado pelo pai da Semiótica e dos atuais diálogos entre semioticistas acerca dessa herança,
parafraseando a semioticista, apresentamos os pressupostos teóricos diretamente ligados à
constituição dessa linha de investigação semiótica, como a noção de estética, em Greimas, e de
jogos de linguagem, em Wittgenstein. Em seguida, fazemos referência ao desenvolvimento do
conceito e da práxis enunciativa da forma de vida, prezando tanto o ponto de vista greimasiano,
quanto o ponto de vista tensivo, tão caro a alguns semioticistas da atualidade.
1.2.1 Da imperfeição:a noção de estesia
Com a publicação de Da imperfeição, Greimas (2002) inaugura uma nova
investigação semiótica. Segundo Oliveira (2002, p. 9-13), na introdução do livro, ao convidar o
semioticista a refletir “sobre o modo de presença da estética na vida humana, ou melhor, na
cotidianidade”, a obra propicia o interesse pelas práticas sociais, pelos objetos e pelos atos do
cotidiano tendo em vista “uma maior inteligibilidade de nossos comportamentos”. Além disso,
considerando “o papel da estesia na experiência humana”, a obra conduz o investigador “à
análise dos vários modos de recepção estética, de estruturação do gosto, das formas e estilos de
vida7 em nossa sociedade”.
As explanações de Oliveira dizem respeito à observação de Greimas (2002, p.
24-82) sobre as experiências estéticas vividas por seres do mundo real, sujeitos históricos
“reais”, que são estetizadas em apreensões “de papel” na arte literária. Por isso, esses
6 Todas as citações de textos publicados na revista Recherches sémiotiques. Semiotic inquiry (1993), como “Le
beau geste” e “Les formes de vie”, são traduções nossas. 7 Esclarecemos que, nesse contexto, a expressão “estilos de vida” não se refere à linha de investigação da
sociossemiótica.
34
simulacros podem, com base na análise de comportamentos humanos “vividos”, externar
informações sobre a condição humana. Diante disso, o semioticista expressa sua preocupação
com a apreensão estésica – enquanto descontinuidade no discurso pela ruptura de isotopia na
vida representada – e com a conversão da originalidade em “originalidade coletiva”, que leva o
investigador a uma reflexão sobre a ameaça da apatia, imposta pelo uso e pela usura, à estesia.
Para Greimas (2002, p. 75-76), a estesia está presente nos comportamentos
diários, ou seja, manifesta-se nas práticas cotidianas, que reclamam inteligência sintagmática.
Por isso, a continuidade da vida “vivida” exige escolhas sucessivas e ininterruptas na condução
da construção de um objeto de valor. Ao mesmo tempo, as práticas cotidianas manifestam
juízos de valor. Mas, esses juízos de valor, ou moralização, não pertencem à dimensão estética,
já que estão ligados ao saber viver, à boa educação. Pertencem; pois, à dimensão ética.
O semioticista (GREIMAS, 2002, p. 77-82) ainda considera que, na
cotidianidade, a classificação cultural das figuras exige conformidade com “as formas
elementares dos grandes estilos”. Assim, seu uso constitui o gosto, corroborando com o fato de,
desde o Iluminismo, o “estilo” ser considerado uma “dimensão social de avaliação”. Além
disso, lembra que é no Iluminismo que surge a ideia de “originalidade”8 que, conjuntamente à
noção de progresso, erige um conjunto de valores formador do estilo de vida. Contudo, o uso
banaliza os comportamentos cotidianos tidos como originais ao convertê-los em programas de
uso mais favoráveis aos ditames sociais. Ao mesmo tempo, a vida a ser “vivida” é corroída pela
usura, que a deixa redundante e sem conteúdo. Dessa forma, assim como a originalidade, as
tentativas de viver outra vida também são socializadas e socializáveis de tal modo que as
práticas cotidianas podem ser comparadas às paixões, que se fixam em papéis patêmicos, ou
melhor, em simulacros passionais representáveis, em razão da repetição.
Essa preocupação de Greimas com a estética da vida cotidiana relaciona-se,
como veremos, à elaboração da noção de forma de vida em semiótica a partir dos pressupostos
teóricos de Wittgenstein.
1.2.2 A contribuição de Wittgenstein
8 Greimas (2002, p. 89) também acredita que a concepção baudelariana de originalidade na vida cotidiana é mais
aceita pela semiótica do que a concepção do século das Luzes. Chamada meta-semiótica, propõe um novo
desregramento a partir da estética do gosto já integrado, reclamando a investidura do inesperado no além das
esperas esperadas.
35
Inicialmente, segundo Fontanille (1993, p. 7), parecia mais adequado escolher a
noção de “estilo de vida” para expressar a estetização da vida cotidiana, caracterizada pelo
“modo como indivíduos e grupos exprimiriam sua concepção existencial pela forma de fazer e
de ser, de consumar e arranjar seu meio”9. Contudo, Greimas prefere utilizar o termo formas de
vida – tomado de empréstimo das Investigações filosóficas de Wittgenstein –, visto que procura,
por um lado, marcar, de modo simbólico, “a linha divisória entre as preocupações antes
psicossociológicas e o domínio próprio da semiótica” – a relação entre o sensível e o inteligível
– e, por outro lado, ancorar as questões que nasciam na filosofia da linguagem – como a
inquietação em relação ao uso.
Em capítulo de Tensão e significação, dedicado exclusivamente ao estudo das
formas de vida, Fontanille e Zilberberg (2001, p. 203), esclarecem que em seu trabalho, ao se
preocupar com a pragmática dos “jogos de linguagem”, Wittgenstein concede primazia ao
cultural, à adaptabilidade dos usos linguísticos e semióticos, sobre o sistema e a estrutura. O
filósofo propõe um encadeamento conceitual em que “expressões” são estabelecidas pelo “uso”.
Este, por sua vez, pertence a um “jogo de linguagem”, inserido em uma “forma de vida”. Tal
encadeamento possibilita a substituição dos usos, considerados “em si mesmos lábeis,
imprevisíveis e insignificantes, por formas intencionais e/ou codificadas, capazes de ancorar em
cada expressão o sentido da práxis cotidiana”. Logo, como o próprio Fontanille (1993, p. 7)
assevera em Les formes de vie, sobre o trabalho de Wittgenstein, a significação das expressões
somente pode advir do uso, na forma de jogos de linguagem, surgidos nas formas de vida, ou
seja, a significação é descrita nas formas de vida e as formas de vida atualizam-na. Desse modo,
constantemente, novos jogos de linguagem podem ser inventados, assim como novos usos, para
novas formas de vida.
No que concerne à questão da imprevisibilidade dos usos, Fontanille e
Zilberberg (2001, p. 203) afirmam que os usos podem ser estabilizados pelos jogos de
linguagem na construção de uma forma de vida pela ação da condensação e da expansão. Por
meio desses procedimentos, os usos possibilitam às figuras – ou palavras –, serem articuladas e
se transformarem em formas de vida. Essas formas de vida, por conseguinte, subsumem e
fazem as figuras significarem, como esclarece o semioticista:
A relação de condensação/expansão entre a significação de uma figura e uma
forma de vida pode ser compreendida como uma relação de interpretação. A
“forma de vida” explicita a isotopia segundo a qual a figura e a estrutura
9 A perspectiva de Greimas sobre a noção de estilo de vida, enquanto prática cotidiana e parte da estética da vida
representada, encontra-se em Da imperfeição (2002, p. 77-78).
36
encatalisada devem ser lidas; essa seria, de qualquer modo, a
interpretabilidade da figura (sua inteligibilidade) a qual depende do
reconhecimento prévio da forma de vida correspondente (FONTANILLE,
1993, p. 8).
Nesse procedimento de condensação e expansão, enquanto manifestação de uma
forma de vida, a figura equivale ao condensado de uma forma de vida inteira, conforme
Fontanille e Zilberberg (2001, p. 204).
Outra observação de Fontanille (1993, p. 9) sobre o trabalho de Wittgenstein
refere-se à estabilização dos usos, como produtos da história e da cultura. Quando isso ocorre, a
práxis enunciativa engendra protótipos e estereótipos à medida que ela reorganiza e completa,
incessantemente, as estruturas semionarrativas. Por esse motivo, fica difícil estabelecer uma
estrutura representativa da forma de vida, uma vez que os universos semióticos são, ao mesmo
tempo, heterogêneos – não afetam todos os níveis do percurso gerativo do sentido igualmente –
e coerentes – embora as distorções no uso sejam diferentes em cada caso, produzem o “mesmo
efeito de sentido e exprimem a mesma concepção da vida”. Sendo assim, nas palavras do
semioticista:
As formas de vida são enunciações na medida em que a manifestação de uma
entidade discursiva e figurativa qualquer, para parafrasear Wittgenstein,
convoca para sua interpretação e sua colocação em discurso, o conjunto de
adaptações e de seleções operadas no percurso gerativo pelo uso, em vista de
realizar uma forma de vida inteira; essa convocação passa por um ato de
linguagem e toma a forma de um sintagma enunciativo identificável
(FONTANILLE,1993, p. 9).
Portanto, considerando a necessidade de a semiótica examinar em que condições
os estereótipos e os protótipos são estabilizados e desestabilizados, inseridos novamente na
cultura e disponibilizados para convocações de novas formas de vida, é necessário determinar
como a práxis enunciativa se organiza para “modificar essas unidades tipos ou criar novas”
engendrando unidades discursivas e manipulando discursos realizados (FONTANILLE, 1993,
p. 9).
1.2.3 A construção do conceito
Em “Le beau geste”, após narrar minuciosamente como o belo gesto, enquanto
37
forma de vida, é construído e afirmado em uma cultura, mediante o rompimento com a moral
social, coletiva, e afirmação de uma moral individual do sujeito, Greimas concebe o conceito de
forma de vida em Semiótica. Segundo o autor, a ruptura com a moral social provoca uma
mudança radical de forma de vida, que inscreve o indivíduo na perspectiva de “uma nova
‘ideologia’, de uma ‘concepção de vida’, de uma ‘forma’ que é ao mesmo tempo uma filosofia
de vida, uma atitude do sujeito e um comportamento esquematizável” (GREIMAS, 1993, p.
32). Tal perspectiva é diferente da noção de “estilos de vida” de superfície, que estão mais
ligados às concepções da sociologia e, portanto, mais próximos dos estereótipos. Nesse sentido,
a forma de vida pode ser definida, concomitantemente, “por sua recorrência nos
comportamentos e no projeto de vida do sujeito [...] por sua permanência, [...] pela deformação
coerente que ela induz a todos os níveis dos percursos de individuação”: níveis sensível e
tensivo, passional, axiológico, discursivo e aspectual, etc. (GREIMAS, 1993, p. 33).
No artigo “Les formes de vie”, também publicado na Recherches sémiotiques.
Semiotic inquiry, Fontanille (1993, p. 5-6) define forma de vida como “configurações onde uma
‘filosofia de vida’ se expressaria por uma deformação coerente do conjunto de estruturas
definindo um projeto de vida”. Essa definição corrobora a afirmação de Greimas e ainda a
complementa ao considerar que a forma de vida tem origem em uma práxis enunciativa, que se
faz e se desfaz pelo uso, à medida que é inventada, praticada ou revelada por “instâncias
enunciantes”, coletivas ou individuais.
Quanto à pertinência dos estudos sobre forma de vida em Semiótica, e ainda
pensando na afirmação de Oliveira (2002, p. 13) sobre a investigação semiótica das práticas
sociais e dos atos do cotidiano, no dizer de Greimas (2002, p. 33), a sociedade poderia deixar de
ser dividida em grupos territoriais, em instituições e em classes sociais para ser “articulada e
compreendida como um conjunto dos ‘seres semióticos’” com existência própria, ou seja, a
sociedade poderia ser dividida de acordo com as “pessoas morais” e as formas de vida. Assim,
as formas de vida e as “pessoas morais” seriam moralizadas como os papéis patêmicos e os
papéis temáticos, podendo ser interpretadas “como um efeito da práxis enunciativa que, assim
como engendra e solidifica, depois convoca novamente papéis patêmicos e papéis temáticos; ela
criaria, fixaria, depois convocaria de novo ‘formas de vida’”. Desse modo, diferentes formas de
vida, já esquematizadas e estereotipadas (pela recorrência, pela permanência e pela deformação
coerente nos níveis dos percursos de individuação), podem ser objeto de análise da semiótica,
visto que são “papéis modificando as condutas, as relações com o outro, a percepção do mundo
e sua organização figurativa” que, posteriormente, fundam “uma nova sabedoria, uma filosofia
da vida, uma nova identidade modal, de novas relações humanas” (GREIMAS, 1993, p. 33).
38
Adotando a perspectiva da semiótica tensiva, os autores de Tensão e
significação, asseveram que:
O conceito de forma de vida pertence ao paradigma das esquematizações
semióticas. Mas ele teria, em princípio a peculiaridade de integrar as
esquematizações atualmente conhecidas: salvo melhor juízo, um esquema
discursivo, um esquema narrativo, um esquema modal, um esquema tensivo
e até mesmo, [...] um esquema relativo às estruturas elementares da
significação, em sua interpretação topológica. Porém, a particularidade dos
esquemas – a de encontrar-se dispostos ente o sistema, que sustentam, e o
uso, do qual se alimentam – incita a pô-los em relação com a problemática
dos modos de existência (FONTANILLE; ZILBERBERG, 2001, p. 207,
grifos dos autores).
Ao abarcar, ao mesmo tempo, os esquemas discursivo, narrativo, modal e
tensivo, Fontanille e Zilberberg (2001, p. 209) consideram a forma de vida um “esquema de
esquemas”, que responde “pela coerência e significação de todos os esquemas imanentes a um
conjunto discursivo vinculado à enunciação”. Essa definição parece manter os pressupostos
de Greimas (1993, p. 33), que considera a forma de vida, como já dissemos, uma deformação
coerente nos níveis dos percursos de individuação, sendo eles o sensível e o tensivo, o
passional, o axiológico, o discursivo e o aspectual, dentre outros. Por outro lado, ao
relacionarem os modos de existência à forma de vida, introduzidos como particularidade dos
esquemas que a compõem, os pesquisadores delineiam o lugar da forma de vida no espaço
tensivo. Este, assevera Zilberberg (2012, p. 1-4), funda-se na intersecção das grandezas de
intensidade (tensão entre fraco e forte) e de extensidade (tensão entre concentrado e difuso),
onde agem os modos semióticos, que se baseiam na relação do sujeito com o que o avizinha,
ou seja, com o campo de presença. Consequentemente, a forma de vida está intimamente
ligada à noção de acontecimento, noção sobre a qual discorreremos de forma mais
aprofundada posteriormente.
Além disso, a concepção de forma de vida relaciona-se ainda com os efeitos de
sentido passionais, porque, assim como as paixões, a forma de vida é composta de papéis
temáticos e arranjos modais estereotipados, que se associam a axiologias e a formas
aspectuais e tensivas. Diferem das paixões, todavia, pelo fato de que “as paixões infletem
apenas a dimensão tímica dos discursos, enquanto as formas de vida afetam as suas
componentes”. Pode-se considerar, inclusive, “que uma forma de vida se organiza em torno
de uma paixão prototípica, como, por exemplo, a busca a partir da espera” (FONTANILLE;
ZILBERBERG, 2001, p. 218-219).
Mais recentemente, no Vocabulaire des études sémiotiques et sémiologiques,
39
Beyaert-Geslin (2009b, p. 202) afirma, no verbete “forma de vida”, que esse conceito da
teoria semiótica “descreve um regime de presença do sujeito no mundo manifestado pelas
propriedades discursivas recorrentes (modais, aspectuais, etc.)”. Para a semioticista, à medida
que a forma de vida caracteriza o sujeito no discurso revela o sujeito passional.
Esse ponto de vista se coaduna com as perspectivas greimasiana e
zilberberguiana, que tanto em “Le beau geste”, quanto em Tensão e significação, enfatizam
que a forma de vida tem influência sobre as diferentes “propriedades discursivas” e se
relacionam intimamente com a esfera passional. Por esse motivo, Fossali (2012, p. 6),
parafraseando Fontanille, complementa que “a forma de vida somente pode ser um ‘modelo
cultural’”, mas fundado na deformação que “corre ao longo da articulação semiótica”.
Ademais, julga significativa a contribuição de Tensão e significação na elaboração de
critérios para identificação de uma forma de vida e define-a como “modalidade de seleção e
de gestão de valores elaborados [...] sustentada por cenarizações privilegiadas de confrontação
inter-actancial”, onde é preservada a narrativização identitária dentro de um percurso
existencial.
Essa definição também não se distancia dos ensinamentos de Fontanille e
Zilberberg (2001, p. 225-226), visto que a forma de vida pode ser apreendida em razão das
escolhas axiológicas próprias a um indivíduo ou a uma cultura, quando ligadas à globalidade
de uma prática significante. E, na qualidade de prática cotidiana, a forma de vida pode
aparecer ou desaparecer conforme os usos. Mas, o desaparecimento não é completo, pois
embora a dimensão estética desapareça, a dimensão ética10
permanece, pois é “imanente à
nostalgia que se concretiza” no sujeito, afirmam os semioticistas.
Em suma, ao longo dos vinte anos de existência do conceito de forma de vida
continuam relevantes as reflexões de Greimas sobre o conceito. Entretanto, novos conceitos,
como a noção de acontecimento, relacionado às grandezas tensivas, da perspectiva
zilberberguiana, passaram a ser vinculados à noção de forma de vida. Nesse sentido, parece-
nos pertinente a afirmação de Beyaert-Geslin (2012, p. 4) de que a forma de vida promove um
diálogo entre as gerações de semioticistas e as teorias em torno da herança greimasiana, como
essa pesquisa, em que adotamos o ponto de vista tensivo sobre as formas de vida.
10
Ou moralização, de acordo com Greimas (1993, p. 22-23).
40
1.2.4 A práxis enunciativa da forma de vida
Quando Fontanille (1993, p. 10-11) apresenta o conceito de forma de vida,
explicita a existência de alterações ou de seleções no que diz respeito às estruturas narrativas
modais ou actanciais, à percepção e à sensibilidade, à intensidade e à quantidade (ou
extensidade) e às formas passionais. Segundo o semioticista francês,
[...] grande parte da semiótica narrativa é construída ao redor de uma só
forma de vida, procedente de um só tipo de intencionalidade [...] No entanto,
com a teoria das modalidades e a das paixões, outros encaminhamentos
vieram à luz, outras maneiras de ‘dar sentido à vida’ emergiram.
(FONTANILLE, 1993, p. 12).
A semiótica tensiva, por sua vez, complementa essa introdução fontanilliana.
Em Tensão e significação, Fontanille e Zilberberg (2001, p. 211-221) explicam que se nos
voltarmos ao par coerência e congruência, a construção de dispositivos canônicos
reconhecíveis pelo uso e pelas culturas, por meio da esquematização, torna sensível a
coerência de uma forma de vida. À proporção que papéis modais, actanciais e patêmicos
medeiam o equilíbrio ou o desequilíbrio, internos à função semiótica, delineiam-se os actantes
coletivo e individual. Um regime é, então, selecionado e uma cadeia de seleções congruentes
opera nos demais níveis, tornando o conjunto coerente e a forma de vida identificável, e,
portanto, nomeável, como as paixões.
Nesse panorama, a práxis enunciativa também é carregada de tensões, surgidas
na integração das grandezas de intensidade e de extensidade, e dos modos semióticos11
, que
constituem o acontecimento. Como observa Zilberberg (2012, p. 7), o acontecimento e o
exercício constituem os horizontes das formas de vida, disponíveis a se oporem ou a se
designarem conforme o acontecimento ou o exercício chama um sujeito. Na relação das
formas de vida com os modos de existência, por exemplo, segundo Fontanille e Zilberberg
(2001, p. 211), a valência de extensidade convoca as triagens e as misturas, operadores
discursivos que se relacionam, ora com a intensidade, ora com a extensidade (ZILBERBERG,
2006, p. 192). Assim, as operações de triagem estão a serviço da pureza – comparada à pureza
do diamante – na presença de valores do absoluto, enquanto as operações de mistura estão a
serviço da difusão na presença de valores do universo (ZILBERBERG, 2006, p. 195). Nesse
11
Ver o conceito de modos semióticos às páginas 44-45.
41
sentido, como esses operadores discursivos estão amalgamados aos valores semióticos12
–
“[...] o sujeito semiótico não pode evitar de triar misturas, visando a um valor do absoluto, e
de misturar triagens, visando a um valor do universo” (ZILBERBERG, 2006, p. 193) – e não
poderão ser dissociados das análises, nesse trabalho, tratemos brevemente dessa questão.
De acordo com Fontanille e Zilberberg (2001, p. 45-52, grifos dos autores), as
grandezas comportam valores discursivos que se relacionam com os modos de existência.
Esses valores são nomeados valores de absoluto, quando há domínio do foco, e valores de
universo, quando impera a apreensão. Os valores de absoluto integram a grandeza de
intensidade, à medida que reconhecem o uno na intensidade sem extensidade. Em oposição,
os valores de universo integram a grandeza de extensidade e reconhecem na extensidade sem
intensidade o universal. Para que isso seja possível, os valores de absoluto recorrem às
operações de triagem e de fechamento – sendo beneficiados pela concentração –, e os valores
de universo lançam mão da abertura e da mistura, que os beneficiam com a expansão. Assim,
no “regime que visa aos valores de absoluto, o máximo de intensidade está associado à
unicidade”, à exclusão. A diminuição da intensidade implica a abertura, em que o aumento da
extensão conduz à universalização, à participação. Posteriormente, no artigo “Síntese da
gramática tensiva” o próprio Zilberberg assevera que
[...] A afirmação da superioridade intrínseca das operações de triagem sobre
as operações de mistura acaba por promover a reiteração da triagem, isto é,
por triar a triagem obtida, com vistas à pureza [...]; em todas as acepções do
termo, estamos em presença de valores de absoluto, concentrados e
reflexivos. A afirmação inversa, ao instalar a mistura muito acima da
triagem, ao misturar as misturas, admitindo a plausibilidade de uma classe
das classes resulta no elogio dos valores de universo, difusores e transitivos.
[...] Um mundo “jansenista”, em que os valores de absoluto não
concedessem qualquer lugar para os valores de universo seria um mundo de
excluídos; a configuração inversa, [...] seria um mundo de incluídos [...]
(ZILBERBERG, 2006, p. 195, grifos do autor)
Portanto, na interação dos operadores discursivos com os modos semióticos em
uma forma de vida,
[...] quando a triagem é adotada como ponto de vista pertinente, o ‘todo’ é
avaliado como mau, pois que comporta partes julgadas impuras [...]. Por
outro lado, quando prevalece a mistura, a direção se inverte: o ‘todo’ é
avaliado como bom se for completo, e mau, se apresentar
12
Já fizemos referência sucinta aos valores semióticos na página 22, quando tratamos das paixões.
42
faltas....(ZILBERBERG, 2006, p. 195)
Desse ponto de vista, a concatenação de seleções, operadas pelas triagens e
pelas misturas, nos diferentes níveis do percurso gerativo, configuram uma forma de vida,
como asseveram Fontanille e Zilberberg (2001, p. 213).
Quanto aos modos de junção, eles opõem a concessão à implicação. A
concessão, segundo Zilberberg (2012, p. 6-8), compõe a semiótica do acontecimento e, ao ser
convocada, permite reconhecer tanto os excessos da sintaxe intensiva, quanto “a legitimidade
das entradas e das saídas em que o campo de presença é o teatro”. Mas, se formulada como
implicação, o esquema narrativo deixa de ser exclusivo. Nesse campo de presença não
existem excessos e a forma de vida insere-se no exercício, em oposição ao acontecimento. No
que concerne à temporalidade e à espacialidade, consoante Fontanille e Zilberberg (2001, p.
222), a forma de vida pode apresentar uma aceleração lenta ou viva, uma tensão efêmera ou
durável – do lado da temporalidade –, e um campo de presença aberto ou fechado, próximo ou
distante – do lado da espacialidade.
De mais a mais, na apresentação do dossiê do número 115 da revista Nouveaux
actes sémiotiques, um compilado das novas teorizações sobre a forma de vida, Beyaert-Geslin
(2012, p. 3-5) afirma que “a exploração da noção de forma de vida acompanha a construção
do edifício conceitual da semiótica”. De acordo com a semioticista, a forma de vida é “a pedra
angular dos diferentes edifícios teóricos”, pois controla não somente a semiótica das práticas,
mas também a semiótica tensiva e a sociossemiótica. E é sob o ponto de vista da semiótica
tensiva de Claude Zilberberg, que analisaremos a constituição da forma de vida no corpus
desse trabalho. Antes disso, porém, tendo em vista a íntima relação entre as noções de forma
de vida, paixão e acontecimento, exploraremos, também, o conceito de acontecimento.
1.3 NA IRRUPÇÃO DO INESPERADO, O ACONTECIMENTO
Em Da imperfeição (GREIMAS, 2002, p. 25), a concepção de apreensão
estética está inserida na cotidianidade e leva em conta as articulações da sequência discursiva
na relação particular entre sujeito e objeto. Essas articulações discursivas são,
consequentemente, marcadas pela descontinuidade no discurso e pela ruptura na vida
representada, que podem ser criadas pela pontualidade imprevisível da suspensão do tempo e
43
da petrificação do espaço. O conceito de acontecimento, elaborado por Zilberberg à luz da
semiótica tensiva, pode começar a ser lido sob essa perspectiva.
Zilberberg, ao desenvolver a noção de acontecimento no contexto da Semiótica
tensiva, insere-a em oposição ao fato e na figura do inesperado. Por isso, inicialmente,
atentemo-nos à relação de oposição entre acontecimento e fato:
[...] o fato tem por correlato intenso o acontecimento, o que equivale dizer: o
fato é o resultado do enfraquecimento das valências paroxísticas de
andamento e de tonicidade que são as marcas do acontecimento. Em outras
palavras, o acontecimento é o correlato hiperbólico do fato, do mesmo modo
que o fato se inscreve como diminutivo do acontecimento. Este último é
raro, tão raro quanto importante, pois aquele que afirma sua importância
eminente do ponto de vista intensivo afirma, de forma tácita ou explícita, sua
unicidade do ponto de vista extensivo, ao passo que o fato é numeroso. É
como se a transição, ou seja, o “caminho” que liga o fato ao acontecimento,
se apresentasse como uma divisão da carga tímica (no fato) que, no
acontecimento, está concentrada (ZILBERBERG, 2007, p. 16)
Isso quer dizer que quando a intensidade da carga tímica é fraca, temos o fato,
o que ocorre com mais frequência no cotidiano. Nesse caso, o andamento é desacelerado e a
tonicidade é átona na valência de intensidade, ao mesmo tempo em que, na valência de
extensidade, a temporalidade é prolongada e a espacialidade aberta, o que corresponderia à
“divisão da carga tímica” a que se refere o autor. Quando a carga tímica das valências tensivas
é recrudescida, o que é incomum, temos o acontecimento, ou seja, o andamento da valência de
intensidade é acelerado, e a tonicidade é tônica, acompanhados de uma temporalidade
momentânea em um espaço fechado na valência de extensidade, equivalendo à concentração
da carga tímica, como mencionado no excerto acima.
Zilberberg (2011, p. 164-169) alerta que a reflexão sobre o acontecimento é
anterior à linguística e à semiótica. Segundo ele, essa reflexão remonta aos estudos de
Descartes sobre a “admiração”. Tais estudos propiciam ao semioticista destacar a importância
do intervalo existente entre o esperado, que seria o foco e seu objeto, e o inesperado, isto é, a
apreensão e seu objeto, ou o sobrevir. Nessa perspectiva, opõe a “admiração” à percepção.
Considera que a primeira, enquanto “intensidade repentina e superior daquilo que sobrevém”,
é modalizada pelo sofrer até decair, ao passo que a segunda é o seu correlato, porém
“inacentuado ou desacentuado” e modalizada pelo agir.
Ademais, de acordo com o cientista da linguagem, em contraposição ao estado,
que é resolução dos sincretismos intensivo e extensivo projetados pelo discurso, o
acontecimento é a figura do inesperado, por isso não pode ser antecipado. É, portanto, “algo
44
afetante, perturbador, que suspende momentaneamente o curso do tempo”. Todavia, o tempo
não pode ser impedido de retomar o seu curso e o acontecimento esmaece de tal forma que se
potencializa, tornando-se legível e inteligível.
Além disso, a configuração do acontecimento, assim como a configuração do
exercício, não ocorre apenas na concentração ou na divisão da carga tímica do sujeito, pois a
relação entre o sujeito e o seu campo de presença, onde agem as grandezas tensivas, é
mediada pelos modos semióticos (ZILBERBERG, 2007, p. 16). Por esse motivo,
explicaremos, agora, o que são modos semióticos, como se constituem e de que forma
contribuem com o despontar do acontecimento.
1.3.1 Os modos semióticos
Como observa Zilberberg (2007, p. 16), a noção de modo está presente tanto na
linguística, quanto na semiótica.
Na linguística, relaciona-se com o verbo – modos do verbo. De acordo com o
dicionário de língua portuguesa, o modo integra a gramática, e é definido como “cada um dos
diferentes paradigmas que o verbo apresenta em algumas línguas, como as neolatinas, para
indicar a modalidade, a atitude (de certeza, dúvida, desejo etc.) da pessoa que fala em relação
ao fato que enuncia” (HOUAISS, 2009). Ainda de acordo com o Houaiss (2009), na língua
portuguesa, esses paradigmas modais são divididos em modos indicativo, subjuntivo e
imperativo. Já no dicionário francês Micro-Robert (2013), o modo é definido como “forma
particular sob a qual se apresenta um fato, se completa uma ação”, embora, para Zilberberg
(2007, p. 16), reúna ou confunda os dois aspectos.
Em semiótica, o conceito de modo é intrínseco à definição de modalidade e
relaciona-se com os estudos dos modos de existência, realizados por Greimas. No Dicionário
de semiótica, a modalidade é entendida como “a produção de um enunciado dito modal que
sobredetermina um enunciado descritivo” (GREIMAS; COURTÉS, 2011, p. 314). Esse
enunciado é considerado por Greimas e Courtés (2011, p. 314-315) transitivo, “suscetível de
atingir um outro enunciado como objeto”. Nesse sentido, à medida que os enunciados de fazer
e de estado se encontram na situação de enunciados descritivos ou de enunciados modais,
podem ser classificados como modalizações do fazer ou do ser. Simultaneamente, ao tratarem
da existência semiótica, Greimas e Courtés (2011, p. 195) não somente reconhecem no
45
trabalho de Saussure uma existência13
virtual no eixo paradigmático e uma existência atual no
eixo sintagmático – distinção baseada na dicotomia língua e fala –, como também identificam
uma existência realizada, tendo em vista a manifestação discursiva. Nesse sentido, conforme
os discursos descrevem simulacros de situações e ações “reais”, os modos de existência, ou de
realização, são, na perspectiva dos percursos do fazer, configurados como “modelo para uma
semiótica da ação e da manipulação”.
Assim, ao considerarem a realização em uma semiótica da ação, os autores do
Dicionário de Semiótica afirmam que em um discurso,
um sujeito semiótico não existe enquanto sujeito senão na medida em
que se lhe pode reconhecer pelo menos uma determinação, ou seja,
que ele está em relação com um objeto-valor qualquer. Da mesma
forma, um objeto [...] só o é enquanto esteja em relação com um
sujeito, enquanto é ‘visado’ por um sujeito. É a junção que é a
condição necessária tanto à existência do sujeito quanto à dos objetos.
(GREIMAS E COURTÉS, 2011, p. 195)
No que concerne à semiótica tensiva, Zilberberg (2011, p. 176) observa que as
questões referentes ao modo, em linguística, e à modalidade, embora não se sobreponham por
completo, são muito próximas entre si já que o modo avalia a eficiência suposta da
modalidade em discurso. Por isso, o conceito de modo é introduzido no estudo sobre o
acontecimento, em semiótica, tendo em vista explicitar e resolver o sincretismo existencial
entre fato e acontecimento, e ainda para determinar o “precipitado de sentido que constitui,
tanto coletiva quanto individualmente, o acontecimento” (ZILBERBERG, 2007, p. 16).
Do ponto de vista de Zilberberg (2012, p. 4), os modos semióticos visam,
portanto, à relação do sujeito com o que o avizinha, ou seja, com o campo de presença. Nessa
relação, ora o sujeito controla o campo de presença, ora dele escapa. Servindo de mediação
entre o esquema e o discurso, os modos se dividem em modos de eficiência, modos de
existência e modos de junção. Nesse sentido, os modos semióticos explicam como o sujeito se
relaciona com seu entorno.
1.3.1.1 Os modos de eficiência
13
Greimas e Courtés (2011, p. 195) entendem que existência semiótica é uma grandeza qualquer, “determinada
pela relação transitiva que, tomando-a como objeto de saber, a liga ao sujeito cognitivo”.
46
Os modos de eficiência representam a forma como as grandezas de intensidade
e de extensidade penetram no campo de presença do sujeito sob as condições do tempo. Tem-
se uma oposição entre o sobrevir e o conseguir. O sobrevir é entendido como negação do
prevenir, ou seja, aceitação do inesperado, que é o acontecimento. Porém, quando o sujeito
requisita a instalação das grandezas tensivas em seu campo de presença, tem-se o conseguir.
Tanto o sobrevir, quanto o conseguir são regidos pelas subvalências de
andamento e de temporalidade, cabendo ao sobrevir o andamento acelerado. Quanto à
extensão temporal, ao conseguir concerne o agir e a paciência, “que o agir racional supõe”, ao
sobrevir cabe a “brevidade, a do sofrer, que o inesperado, precipitadamente, impõe ao
sujeito”. (ZILBERBERG, 2007, p. 18-21). Assim, no sobrevir, as competências do sujeito são
excedidas de forma literal pelo tempo, ou seja, por uma “instantaneidade devastadora”,
enquanto a lentidão do conseguir respeita os limites de tempo que o sujeito reconhece
(ZILBERBERG, 2012, p. 4).
1.3.1.2 Os modos de existência
Sobre os modos de existência, o semioticista (ZILBERBERG, 2012, p. 5)
afirma que alongam “as consequências subjetais abertas pelo modo de eficiência”. A surpresa,
determinada pela modalidade do sobrevir, embaralha o jogo do antes e do depois, permitindo
que o sujeito passivo, “espectador de seu próprio conflito” seja apreendido. O sujeito se vê em
uma situação para a qual não está preparado, atualizado, pois não espera pela surpresa. Na
apreensão, também está presente a exclamação, associada às valências de tempo e de
tonicidade, instalada no campo de presença, assim como o sobrevir. O conseguir é
manifestado pelo foco e pela espera. Essa está sob o controle do tempo, assim como o modo
de eficiência. Ela se manifesta pela paciência e pela impaciência, que não são medidas pela
realização de um programa de junção: “o sujeito paciente julga a velocidade razoável e
suportável, enquanto o impaciente a considera insuportável”.
Sendo assim, como caracteriza Zilberberg (2007, p. 21-23), dos modos de
existência, que são dependentes dos modos de eficiência, fazem parte a focalização e a
apreensão. A focalização caracteriza o sujeito operador, que visa a algo e, por isso, “se
inscreve como mediação entre a atualização e a realização”, na medida em que a apreensão
caracteriza “o estado do sujeito de estado” atônito com algo que lhe aconteceu, ou seja,
47
corresponde à potencialização.
1.3.1.3 Os modos de junção
No Dicionário de Semiótica, Greimas e Courtés (2011, p. 279) descrevem o
termo junção como “a relação que une o sujeito ao objeto, isto é, a função constitutiva dos
enunciados de estado”. Essa relação a que se referem os pesquisadores pode ser de conjunção,
disjunção, não conjunção e não disjunção, consoante o quadrado semiótico. Na perspectiva
tensiva, (ZILBERBERG, 2007, p. 23) “o termo se refere à condição de coesão pela qual um
dado, sistemático ou não, é afirmado”. Para que essa coesão se estabeleça, os modos de
junção requerem a implicação e a concessão. Na implicação, há um respaldo mútuo entre o
direito e o fato que, representado pelo “porque”, corresponde à expressão “se a, então b”. Na
concessão, há uma discordância entre o direito e fato, representada pelo “embora” e pelo
“entretanto”, correspondendo à expressão “embora a, entretanto não b”. Logo,
A tensão própria à sintaxe juntiva opõe a concessão à implicação. Como
categoria, a concessão é emprestada à linguística que considera como
expressão de uma “causalidade inoperante”, ou seja, que o sujeito constata
que a causa que o solicita não produz a consequência esperada. A esse título,
a concessão é uma das vias de acesso à semiótica do acontecimento
(ZILBERBERG, 2012, p. 8).
Assim, o acontecimento é a essência do sistema que compõe o modo, “se for
concebido como sobrevir, isto é, realização do irrealizável”. Nesse sentido, esse sistema
[...] leva em conta a modalidade implicativa do realizável. Por sua vez, o
acontecimento dá como certa a modalidade concessiva que instaura um dado
programa como irrealizável e um contraprograma que, no entanto, levou a
cabo sua realização: “não era possível fazer isso e no entanto ele o fez!” (ZILBERBERG, 2011, p. 176-177)
Por isso, considerando a relação (tensiva ou não) entre o direito e o fato,
Zilberberg (2012, p. 5-6) conclui que a grandeza do sobrevir não faz parte da espera do
sujeito. Na espera, a relação no campo de presença é implicativa. No inesperado, é
concessiva. Assim, os enunciados implicativos são considerados normais, ordinários. Já os
enunciados concessivos são tônicos, motivo pelo qual, na concessão, o fazer prevalece sobre o
48
correto.
Em suma, no que se refere à noção de acontecimento, este comporta, ao mesmo
tempo, “o sobrevir para o modo de eficiência; a apreensão para o modo de existência; a
concessão para o modo de junção” (ZILBERBERG, 2007, p. 24-25). Outrossim, esclarece
Zilberberg (2007, p. 24-25), o modo de eficiência “conseguir”, o modo de existência
“focalização” e o modo de junção “implicação” complementam-se na constituição do
exercício (ou da rotina), termo mais próximo do agir.
1.3.2 O ponto de vista figural do acontecimento
Ao estabelecer uma abordagem figural14
do acontecimento, Zilberberg (2011,
p. 169-175) afirma que no espaço tensivo, é necessário verificar as dinâmicas intensivas, de
andamento e de tonicidade, e as dinâmicas extensivas, de temporalidade e de espacialidade,
produzidas pelo acontecimento. Na intensidade, segundo o autor, o andamento e a tonicidade
agem ao mesmo tempo e repentinamente, provocando desorientação modal no sujeito e falta
de atitude. A tonicidade afeta o sujeito integralmente de tal modo que o acontecimento,
quando pode ser assim denominado, “absorve todo o agir e de momento deixa ao sujeito
estupefato apenas o sofrer”.
Na extensidade, a temporalidade é “fulminada, aniquilada” e sua recomposição
“está condicionada à desaceleração e à atonização, ou seja, ao retorno àquela atitude que o
acontecimento suspendeu momentaneamente”. O sujeito deseja voltar a controlar e dominar a
duração para, de acordo com sua vontade, nas palavras do semioticista, “alongar o breve ou
abreviar o longo”. Na espacialidade, deixa de existir a escansão do aberto e do fechado uma
vez que o aberto se ausenta do campo de presença a fim de manter apenas o fechado. Desse
modo, o sujeito fica paralisado, estarrecido, como se o seu ambiente deixasse de existir.
No dizer do semioticista, o acontecimento tem uma “valência intensiva
complexa e compõe um andamento extremo, o da instantaneidade, e uma tonicidade superior,
sempre difícil de formular”, visto que é vivenciada. Por isso, é associada aos modos de
existência. Ainda, embora o que sobrevém não possa ser atualizado, pode “ser relembrado
enquanto permanecer vívida a subvalência de tonicidade”.
14
Segundo Fontanille e Zilberberg (2001, p. 45), o ponto de vista figural equivale à atestação simultânea das
categorias no plano do conteúdo e no plano da expressão.
49
Semanticamente, o produto do andamento e da tonicidade, na opinião do
pesquisador “seria a força que precipita o acontecimento em discurso”, entendendo como
andamento a velocidade de penetração, que é composta pela velocidade de desagregação e
pela velocidade de apassivação, ao mesmo tempo em que a tonicidade é metaforicamente
representada pelo lexema choque – lexema, frequente na maneira de falar contemporânea
configura a virtualização do estereótipo que geralmente o acompanha.
Resumindo, no acontecimento,
[...] o sujeito se vê em conjunção com um sobrevir que transtorna e por vezes
suprime a duração e a espacialidade. [...] O sobrevir do acontecimento vem
anular a própria textura do tempo, isto é, a “virtude” potencializante da
temporalidade.[...]
O acontecimento, na qualidade de grandeza tensiva, deve ser apreendido
como uma inversão das valências respectivas do sensível e do inteligível.
Marcado por um andamento rápido demais para o sujeito, o acontecimento
leva o sensível à incandescência e o inteligível à nulidade (ZILBERBERG,
2011, p. 189-190).
Desse modo, a temporalidade só recupera a memória suspensa pelo
acontecimento em um contraprograma de freagem específico, desenvolvido pelo discurso
conforme restaura a historicidade (ZILBERBERG, 2011, p. 189-190), ou seja, quanto se
transforma em exercício. É nesse sentido que, como caracteriza Zilberberg (2007, p. 25-26), o
exercício e o acontecimento se configuram como grandes orientações discursivas divididas
em discurso do exercício e discurso do acontecimento. O primeiro associado ao discurso
histórico, que se interessa pela “minúcia dos exercícios e dos funcionamentos”. O segundo
associado ao discurso mítico tendo em vista sua relação com a surpresa e com o que dela
resulta.
Concluídas as reflexões acerca da noção de acontecimento em semiótica,
dirigimos agora a nossa atenção à noção de interdiscursividade, conceito semiotizado por
Fiorin no artigo “Polifonia textual e discursiva” (1994), e necessário à análise do conto “O
zelador”, que compõe o corpus de nossa pesquisa.
1.4 A INTERDISCURSIVIDADE EM SEMIÓTICA
50
De acordo com Fiorin (1994, p. 29-30), no artigo “Polifonia15
textual e
discursiva”, a interdiscursividade e a intertextualidade são fenômenos discursivos e textuais
fundados no conceito bakhtiniano de dialogismo, que está associado à “presença de duas
vozes num mesmo segmento discursivo ou textual”.
No dizer do semioticista, ocorre a intertextualidade quando um texto é
incorporado por outro. Assim, ora esse processo reproduz o sentido incorporado, ora
transforma-o, podendo acontecer por meio da citação, da alusão e da estilização. A citação
confirma ou altera o sentido do texto citado. A alusão reproduz construções sintáticas,
substituindo certas figuras por outras, através de relações hiperonímicas com o mesmo
hiperônimo ou de figurativizações do mesmo tema. A estilização reproduz o estilo de outro
enunciado, ou seja, suas recorrências formais.
Em seus pressupostos, o autor também explicita que o processo em que ocorre
a incorporação de percursos temáticos e/ou figurativos, temas e/ou figuras de um discurso em
outro é chamado de interdiscursividade. Esse fenômeno é manifestado tanto pela citação,
quanto pela alusão. A primeira corresponde à repetição de percursos temáticos e/ou
figurativos, evidenciando: ora uma relação contratual com uma formação discursiva – seja
essa formação discursiva igual ou distinta da formação discursiva tematizada e/ou
figurativizada –, ora uma relação polêmica em que “cada tema e/ou figura de um discurso
nega tema e/ou figura correspondente de seu outro”. A segunda diz respeito ao processo
interdiscursivo em que a compreensão (o sentido) de um discurso depende de sua
contextualização por meio da incorporação de temas e/ou figuras de outro discurso, isto é, um
discurso serve de contexto para que se possa entender o sentido de outro discurso.
Fiorin ainda afirma, considerando o ponto de vista bakhtiniano, que conforme
textos e ou discursos ressoam outros textos e ou outros discursos, a interdiscursividade não
implica a intertextualidade, mas o contrário acontece, uma vez que “ao se referir a um texto, o
enunciador se refere, também, ao discurso que ele manifesta”. Ao mesmo tempo, um texto
pode não ser constituído pela intertextualidade, ao passo que a interdiscursividade “é inerente
à constituição de um discurso”, o que a torna social, pois inscreve a história.
É nesse sentido que Barros (2009, p. 351-362)16
, no artigo “Uma reflexão
semiótica sobre a ‘exterioridade’ discursiva” assevera que a semiótica pode examinar as
15
Segundo Fiorin (1994, p. 29), o termo polifonia integra os estudos bakhtinianos sobre dialogismo, cuja
preocupação principal é “a de que o discurso não se constrói sobre o mesmo, mas se elabora em vista do outro”. 16
Nesse artigo Barros (2009, p. 351) busca desenvolver “uma reflexão mais sistematizada sobre a ‘exterioridade’
do discurso, no quadro teórico da semiótica discursiva de origem francesa”. Contudo, esclarece, primeiramente,
que o termo “exterioridade” não faz parte da metalinguagem semiótica. Pertence ao campo da Análise do
Discurso Francesa (AD).
51
relações histórico-sociais, presentes na construção dos sentidos dos textos. Contudo, atenta
para a necessidade de que sejam observadas: a organização linguístico-discursiva dos textos –
tendo em vista seus percursos temáticos e figurativos, que revelam as determinações
histórico-sociais inconscientes – e para as relações intertextuais e interdiscursivas mantidas
entre os textos e os discursos com que dialogam. Na organização linguístico-discursiva, a
semântica discursiva é constituída pelos conteúdos semânticos dos temas e pelo investimento
semântico-sensorial desses temas pelas figuras, pois os temas e as figuras asseguram o caráter
ideológico dos discursos de classes, grupos e camadas sociais, sócio-historicamente
determinados. Nas relações intertextuais e interdiscursivas, os textos dialogam com outros
textos, “seja no nível apenas dos conteúdos discursivos dos temas e figuras, seja no nível
propriamente textual”, possibilitando aproximações entre planos da expressão. Desse modo,
estando fortemente inserida no quadro das disciplinas humanas e sociais, a semiótica não
somente mantém relações estreitas com os estudos cognitivos, como também pode dialogar
teoricamente com a História, a Sociologia, a Antropologia e com outros estudos do discurso.
Considerando essa possibilidade de diálogo teórico da semiótica com outras
ciências, no artigo “Do sentido ao corpo: semiótica e metapsicologia” (1996), Waldir
Beividas (1996, p. 125-130, grifos do autor) apresenta hipóteses de trabalho que estabelecem
relação entre o sentido e o corpo17
sob um ponto de vista semiótico, amparando-se na
interdiscursividade com os pressupostos teóricos da psicanálise freudiana. Para Beividas, o
sentido e o corpo se constroem nos níveis: a) temático-figurativo, enquanto significação nos
discursos; b) semionarrativo, na estruturação sêmica, e “inconsciente”, assunção “patêmica”
dessa estruturação. Por isso, “O corpo e o sentido não interessam à Semiótica como realidades
ontológicas [...] mas como realidades semiotizadas, de efeitos de sentido situados à ‘escala
humana’”.
O corpo-que-sente, instituído pela semiótica como instância de mediação entre
o mundo e o sujeito, revela uma intensidade mínima da oscilação tensiva da tímia, do sentir.
Desse modo, o conceito freudiano de pulsão é indispensável na concepção do sentido já que o
corpo é o lugar das primeiras somações tímicas do sujeito. Diante disso, o semioticista propõe
semiotizar a pulsão, tendo em vista
[...] as coerções semióticas que se dão num “percurso gerativo da
subjetividade consciente” passível de ser construído no trajeto das pulsões
17
O corpo é aqui entendido como simulacro do corpo do sujeito projetado no texto. A representação do corpo é
instantaneamente perceptível pelo enunciatário/leitor devido aos simulacros presentes no “enunciado
enunciado”, como destaca Fiorin (1996, p. 85).
52
aos seus sentidos. A proposta visa também poder ampliar o campo de
atuação da semiótica das paixões, isto é, pleitear a contrapartida de uma
“sensibilização individual” para a sensibilização e moralização, concebidas
como operações de interpretação e regulação das configurações passionais
no “espaço comunitário” (BEIVIDAS, 1996, p. 130-131, grifos do autor).
Define, assim, a pulsão, sob o ponto de vista semiótico, como “o primeiro ‘ato
puro’ de somação tensiva com que o sujeito sente o corpo”, pois esse ato aciona o imaginário
humano para além dos instintos. As informações do corpo interior e do mundo são existências
semióticas emergidas na pulsão, e, portanto, “lugar da conversão semiótica do mundo
natural”. Nesse sentido, o universo passional é concebido como um “desdobramento
sequencial da tensividade pulsional”, ou seja, como “matriz da paixão”, que pode se converter
em configurações das paixões de papel já conhecidas, como a cólera, por exemplo
(BEIVIDAS,1996, p. 131-132).
Apresentamos aqui a noção de interdiscursividade sob uma perspectiva
semiótica, tendo em vista a possibilidade de diálogo da semiótica com outras teorias, como a
psicologia, por exemplo. Como em um dos contos a serem analisados observamos a relação
interdiscursiva com o conceito de ego, advindo da psicanálise freudiana, considerado
essencial para o desenvolvimento da análise – uma vez que esse interdiscurso, em particular,
perpassa todo o texto –, procuramos esclarecer, nesse tópico, questões importantes da
construção do sentido em semiótica na sua relação com a “exterioridade” discursiva e com a
psicanálise.
Em suma, com base nos conceitos teóricos expostos, passamos à análise dos
contos braffianos “O gorro do andarilho” e “O zelador”, que constituem o corpus deste
trabalho. Na análise, observamos a constituição das formas de vida manifestadas no texto e
dos acontecimentos, que afetam a relação dos atores-protagonistas com o Outro e consigo
mesmo, e desencadeiam percursos passionais de malevolência.
53
2 O GORRO DO ANDARILHO: NO ACONTECIMENTO, A VINGANÇA. NA
VINGANÇA, UMA NOVA FORMA DE VIDA
2.1 A FORMA DE VIDA DA INDIGÊNCIA
2.1.1 A assunção do papel temático de andarilho e da forma de vida da indigência
No conto “O gorro do andarilho”, tal sujeito deseja recuperar seu gorro, furtado
por outro companheiro, o Gordo. O andarilho é um homem solitário, que se encontra a
contragosto na companhia do Gordo. O gorro é o único bem do andarilho, protegendo-o
contra o frio que sente vivendo na rua, depois de ter sido privado do emprego e da família. Ao
acordar da sesta, o andarilho vê seu gorro na cabeça do Gordo, pede o objeto de volta várias
vezes, mas este, no papel de antissujeito, não o devolve, e ainda ri, incessantemente, do
proprietário do objeto. Crendo ter direito ao gorro e sentindo-se menosprezado pelo Outro, o
andarilho, utilizando uma pedra, golpeia o Gordo na cabeça e recupera o objeto-valor.
Tendo em vista o percurso narrativo do sujeito Andarilho, este se encontra, no
estado inicial do texto, dormindo na beira da estrada ou sob alguma ponte e sentindo muito
frio. No primeiro inverno nessa condição, o gorro é doado a ele por um transeunte,
metaforicamente figurativizado como um “anjo” – “Abriu bem os olhos, o mais que pôde,
pois queria ver a cara do anjo” (BRAFF, 2006, p. 128). Conjunto do gorro, o sujeito
acostuma-se ao calor proporcionado pelo objeto, sinônimo de conforto, que perdera quando
ficou desabrigado. Sete anos após ganhar o gorro, ao acordar da sesta do almoço e vê-lo na
cabeça do Gordo, o Andarilho percebe que está disjunto do objeto-valor. Ele volta a sentir o
frio de outrora e é modalizado pelo /querer/ entrar em conjunção com o objeto.
Atordoado pelo inesperado roubo, o Andarilho pede ao Gordo que lhe devolva
o gorro – “Me dá!” (BRAFF, 2006, p. 127) –, mas o Gordo revela-se um antissujeito ao
passar a desejar o mesmo objeto e a /não-querer/ devolvê-lo ao Andarilho – “Como resposta,
uma gargalhada sem dentes e de barba suja, desgrenhada” (BRAFF, 2006, p. 127). A não
devolução do gorro ao andarilho e o riso exacerbado do antissujeito, intensificam o /querer/
54
do Andarilho que deseja recuperar o objeto. À medida que o outro andarilho ri, como resposta
pelo pedido de devolução do gorro, o Andarilho é manipulado por provocação a recuperar o
objeto – “[...] e o Gordo se finava naquela gargalhada [...]” (BRAFF, 2006, p. 129). Nesse
momento, o Andarilho assume o papel actancial de sujeito do fazer e golpeia a cabeça do
antissujeito com uma pedra. Assim, o Andarilho volta a ficar conjunto do gorro, concluindo
com sucesso a performance de recuperação do objeto-valor – “O gorro, finalmente
recuperado” (BRAFF, 2006, p. 130).
Em termos de nível discursivo, observamos que o ator-protagonista da
narrativa assume o papel temático18
de andarilho. Investido desse papel temático, o ator
também manifesta a forma de vida da indigência.
De acordo com o Houaiss (2009), o lexema indigência, que nomeia a forma de
vida neste texto, tem as acepções “situação de extrema necessidade material, de penúria;
miséria, pobreza, inópia”, além de “o conjunto de pessoas que vivem nesta situação;
mendicidade”. Já o lexema “andarilho”, significa, no mesmo dicionário, “que ou aquele que
anda muito, percorre muitas terras ou anda de forma erradia” e está associado à isotopia
figurativa que constitui o papel temático do andarilho: “estrada”, “sem lugar onde dormir”,
“beira da estrada”, “debaixo de qualquer ponte, abrigado”, “E andava rápido [...] como se
tivesse onde chegar”, “inverno passado na estrada”, “pôs-se na estrada como se tivesse onde
chegar”, “acostamento”.
Outra isotopia figurativa associada à forma de vida da indigência refere-se à
prática da mendicância, empreendida pelo Andarilho e arraigada em seu comportamento. A
expressão “– Me dá!” é repetida quatro vezes, seguida do gesto de estender a mão, que o
narrador descreve como “gesto antigo, de sete anos, repetido desde a perda do emprego e da
família” (BRAFF, 2006, p. 127), quando se viu desabrigado. Essa recorrência no
comportamento e no projeto de vida do sujeito é evidenciada pelo narrador no excerto: “Pedia
muito mais com os olhos e as mãos, parados de tão duros, do que com as palavras, em cujo
manejo vinha destreinando nos acostamentos” (BRAFF, 2006, p. 128).
Ademais, a atividade de pedinte lhe garante a alimentação de que necessita
para viver, como se nota no trecho: “Atravessou a cerca que o separava do acostamento e
marchou seguro na direção do posto de gasolina, a pouco mais que dois quilômetros à frente,
onde sabia garantido o seu desjejum” (BRAFF, 2006, p. 129).
18
Em termos de nível discursivo, o papel temático é tido como o “papel assumido pelos actantes narrativos no
interior de um tema ou de um percurso temático, quando então os actantes se convertem em atores discursivos”
(BARROS, 2005, p. 84).
55
Tal comportamento parece pertinente com a forma de vida da indigência, uma
vez que o Andarilho não tem destino, não permanece em um determinado espaço geográfico –
é desempregado – “pois nunca tinha nada que pudesse fazer” (BRAFF, 2006, p. 128) – e,
consequentemente, não tem dinheiro para comprar comida, fato que o induz à mendicância.
Outro aspecto a ser observado, diz respeito à temporalidade e à espacialidade,
conforme Fontanille e Zilberberg (2001, p. 222). Do ponto de vista da temporalidade, tal
forma de vida apresenta uma aceleração lenta, visto que o Andarilho repete o ato de pedir,
“com a mão teimosa estendida”, como “gesto antigo, de sete anos” (BRAFF, 2006, p. 127). A
presença do lexema “teimosa”, definido como “que insiste, que não desiste facilmente [...]
que se prolonga, que não termina facilmente; insistente, prolongado” (HOUAISS, 2009),
complementada pelas expressões “gesto antigo” e “de sete anos” indica uma recorrência do
comportamento do pedinte e uma permanência desse comportamento, características da forma
de vida identificadas por Greimas (1993, p. 33). Quanto à espacialidade, o campo de presença
do Andarilho comporta um espaço aberto da estrada e da natureza. Esse espaço se concretiza
nas figuras “estrada”, “acostamento”, “posto de gasolina”, “gameleira”, “cigarra”, “pilhas de
pedras”, “sol”, que ancoram19
a vida errante do andarilho. Dessa maneira, a temporalidade e a
espacialidade parecem figurativizar uma extensidade difusa dessa forma de vida, revelando
uma tensão fraca e durável, do lado da temporalidade, e um campo de presença aberto, do
lado da espacialidade.
Assim, enquanto a isotopia figurativa da indigência demonstra que o Andarilho
vive na estrada, sem se fixar em um determinado espaço geográfico (comportamento
equivalente ao do nômade, do errante) a isotopia temático-figurativa da mendicância desvela
que essa forma de vida está associada à perda, seja da identidade coletiva do sujeito (ao viver
na estrada, nos acostamento e não estar inserido em um meio social), seja da capacidade de
prover o próprio sustento (ação de pedir), que o conduzem à desumanização, como
observaremos a seguir.
2.1.2 A desumanização do Andarilho
19
De acordo com Barros (1990. p. 58), à medida que os atores, os espaços e o tempo do discurso, através do
recurso semântico denominado ancoragem, são preenchidos com traços sensoriais, tornam-se mais concretos, ou
seja, são iconizados. A iconização corresponde, portanto, à transformação de atores, espaços e tempo do discurso
em “cópias da realidade”, ou melhor, em ilusão de realidade.
56
Notamos que o ator-protagonista, o Andarilho, sofre um processo de
desumanização no texto. Essa desumanização inicia-se com a degradação da condição social
desse ator e se intensifica quando é tomado pela paixão da cólera que culmina no
acontecimento que marca o desenlace da narrativa. Para demonstrarmos como esse processo
de desumanização se associa à forma de vida da indigência, relembremos que a partir do
instante em que o Andarilho perde o emprego e a família, ele passa a viver na “beira da
estrada”, nos “acostamentos” e a depender da ajuda alheia para viver, como evidencia o
excerto:
O sol batia-lhe no rosto só como iluminação porque era um sol imprestável
para aquecimento, quando percebeu subindo da terra um barulho de
botas. [...] Foi assim que viu pela primeira vez o gorro, jogado sobre seu
corpo, com barulho e susto. Abriu bem os olhos [...], pois queria ver a
cara do anjo” (BRAFF, 2006, p. 128, grifos nossos).
A isotopia temático-figurativa da mendicância – “Me dá”, “pediu”, “mão
teimosa estendida”, “os olhos e as mãos, parados de tão duros”, “mão aberta no braço
estendido” – e da desumanização do sujeito – “ninhos”, “modo remoto de continuar com a
humanidade”, “vivia por não saber outra coisa”, “olhos grisalhos, sem brilho” –, recobre o
tema da exclusão social. O mesmo ocorre com a pluri-isotopia engendrada pela
plurissignificação de figuras como “acostamento”, por exemplo. De acordo com o Houaiss
(2009), o lexema “acostamento” tem como acepção “margem da pista de rolamento de uma
estrada ou rodovia, destinada sobretudo a paradas de emergência de veículos”. Considerando
essa definição, à medida que o lexema “margem” – indissociável da constituição do
significado de “acostamento” – constitui a locução “deixar à margem”, cujo significado é “pôr
de lado; abandonar; desprezar”, no enunciado em exame, o lexema acostamento tanto pode
fazer referência à margem da estrada, quanto à marginalidade social, visto que o sujeito que
vivia à beira das estradas, era marginalizado do meio social. Por isso, o lexema “acostamento”
é um dado exteroceptivo, que integra um mundo construído pelo enunciador para criar o que
Barros (2005, p. 54) chama de “efeitos de realidade”, a fim de que o enunciatário reconheça
como verdadeiro o discurso enunciado, figurativizando de forma metafórica, a temática da
exclusão social do ator-protagonista.
Sob esse panorama, como se observa no texto, se o Andarilho já teve uma
família, emprego e onde dormir – “Era seu gesto antigo, desde a perda do emprego e da
família” (BRAFF, 2006, p. 127) –, fica pressuposto que o sujeito já integrou uma sociedade e,
portanto, já esteve subordinado às normatizações de uma moral coletiva. Entretanto, com a
57
perda da família e do emprego, o Andarilho, marginalizado, vive nos acostamentos, na beira
da estrada.
Podemos concluir, portanto, que o Andarilho passa por uma operação de
triagem, que desfaz uma mistura anterior – o Andarilho como membro da sociedade. Por esse
motivo a beira da estrada é o lugar daqueles que foram excluídos da sociedade, é o lugar do
sujeito que é desumanizado em razão da exclusão social, como observamos no gráfico: (ver
Figura 1)
Figura 1: Exclusão social do ator Andarilho enquanto valor do absoluto
Fonte: Zilberberg (2011, p. 90)
Assim, se na beira da estrada estão concentrados os sujeitos excluídos de um
meio social e se “a aspectualidade própria ao desenvolvimento de uma operação de triagem é
medida pelo progresso da homogeneidade”, conforme Zilberberg (2012, p. 9), o Andarilho,
excluído pela operação de triagem, ao apedrejar o Gordo inesperadamente, no ápice de sua
desumanização, representa um valor de absoluto. Por isso, o acostamento é o espaço do
sujeito desumanizado, segundo a operação de triagem, configurando a oposição à mistura, que
comportaria tanto o sujeito humanizado, quanto o desumanizado ao representar um valor de
universo.
Além disso, diante da falta de abrigo, o Andarilho vê-se obrigado a dormir nos
acostamentos. A figura “ninhos”, no excerto “[...] se viu sem lugar onde dormir, senão nos
ninhos que fazia com a noite escorregando do céu. Ali mesmo, na beira da estrada, ou
debaixo de qualquer ponte, abrigado” (BRAFF, 2006, p. 127, grifo nosso), pertence à isotopia
figurativa que caracteriza os animais irracionais. O sujeito também vai perdendo a
58
humanidade à medida que realiza o ato de pedir, como vemos no fragmento: “Pedia muito
mais com os olhos e as mãos, parados de tão duros, do que com as palavras, em cujo manejo
vinha destreinando nos acostamentos. Os olhos, principalmente, [...] eram tristes e úmidos,
um modo remoto de continuar com a humanidade” (BRAFF, 2006, p. 128, grifo nosso).
Nesse processo de desumanização, o sujeito para de praticar o ato da fala, como observamos
no excerto anterior, característica intrinsecamente humana e social.
O enunciado “modo remoto de continuar com a humanidade” em alusão à
tentativa de persistir humano, também desvela o distanciamento gradativo do sujeito em
relação à humanidade que tentou, mas não conseguiu manter. Ademais, após sete anos
vivendo nos acostamentos, inativo (desempregado), o Andarilho começa a apresentar, perda
de competência para viver em sociedade, que o faz sobreviver por instinto como se nota no
enunciado: “[...] nunca tinha nada que pudesse fazer. Tão-somente vivia por não saber outra
coisa” (BRAFF, 2006, p. 128). Por fim, o apedrejamento do companheiro Gordo, revela o
ponto mais intenso do processo de desumanização do Andarilho, aparentemente
despreocupado com sanções morais que poderiam lhe ser aplicadas pelo ato executado. Para
ele, o sangue notado em seu gorro após o apedrejamento do Gordo é, da sua perspectiva, uma
“pequena mancha escura”, e ele volta à estrada como se nada tivesse acontecido.
Apresentamos, assim, as figuras que representam a sequência discursiva da
desumanização do Andarilho:
Observamos, no esquema acima, a gradação da desumanização do Andarilho,
que quanto mais é excluído da sociedade, mais se aproxima da condição desumanizada, ou
seja, se transforma em animal irracional. A completa desumanização do ator-protagonista,
figurativizada pelo acontecimento principal ao final da manifestação passional – o
apedrejamento do Gordo – evidencia, por meio do elemento concessivo do acontecimento –
Perde emprego e
família
Vive na beira
da estrada
Pede esmolas
para viver
(mendicância)
Dorme em
ninhos
Vive “por não saber
outra coisa”
(BRAFF, 2006, p.
128), pois não tem
nada para fazer –
está desempregado.
Agride o
companheiro com
uma pedrada na
cabeça
59
não podia apedrejar um ser humano, mas apedrejou – o surgimento de uma nova forma de
vida.
A fim de concluirmos esse processo investigativo sobre a forma de vida da
indigência, em conformidade com os pressupostos teóricos já apresentados, reiteramos que a
recorrência do comportamento que caracteriza essa forma de vida está figurativizada pela
isotopia: “estrada”, “acostamento”, “beira da estrada”, “andava”, “inverno passado na
estrada”, “sem ter onde chegar”.
A permanência, outra característica inerente à constituição de uma forma de
vida, se evidencia por meio da ancoragem temporal “há sete anos”, fazendo remissão à
duração, que marca o tempo que o Andarilho habitou os acostamentos.
Já o enunciado final do conto “pôs-se na estrada como se tivesse onde chegar.
Mas não andava muito rápido, porque sua idéia de futuro era aquela sensação de que agora,
sim, agora poderia enfrentar as noites frias de inverno” (BRAFF, 2006, p. 130), indicia a
continuidade da ação de caminhar sem destino certo, dormindo em lugares abertos, ou seja, a
“filosofia de vida”, do andarilho. Ao mesmo tempo, marca uma ruptura com a moral social,
análoga ao “Le beau geste”, de Greimas (1993, p. 22), uma vez que o sujeito Andarilho
assume uma moral própria, contrária à moral da sociedade ocidental.
Nesse sentido, a manutenção da forma de vida da indigência ocorre na
implicação, ou seja, no respaldo mútuo entre o direito e o fato que, representado pelo
“porque”, corresponde à expressão “se a, então b” (ZILBERBERG, 2007, p. 23). Podemos,
portanto, identificar que se o Andarilho perdeu o emprego, a família e o “lugar onde dormir”,
é porque ele já vivenciou essas práticas cotidianas. Consequentemente, se ele está sempre na
estrada, nos acostamentos, onde também dorme, é porque ele não tem emprego e nem abrigo
onde dormir. Desse modo, ele não espera que algo lhe aconteça, nem tem ambições acerca do
futuro, já que caminha sem destino e, no papel temático de andarilho, só vê à sua frente “as
noites frias do inverno” (BRAFF, 2006, p. 130) que terá que enfrentar.
Todavia, a natureza concessiva do acontecimento que desencadeia a sequência
passional da cólera – embora não esperasse ter o gorro roubado pelo Gordo, o Gordo o roubou
–, conduz o Andarilho à paixão da vingança, que veremos adiante. A vingança do Andarilho,
configura, por sua vez, um novo acontecimento, talvez o principal acontecimento da narrativa,
já que, pelas leis da sociedade ocidental é considerada uma justiça selvagem, conforme
Lombardo (2005, p. 279). Nesse sentido, embora o Andarilho, socialmente excluído, não
pudesse punir o Gordo com selvageria, ele, que se desumanizara, o pune. A aparente
despreocupação do Andarilho com o dano causado ao Gordo, pois “[...] com seu gorro na
60
cabeça, pôs-se na estrada como se tivesse onde chegar” (BRAFF, 2006, p. 130), apenas faz
parecer que a forma de vida da indigência foi mantida. Assim, considerando que, no que
concerne à aplicação da lei, a agressão física como punição não integra a cultura ocidental
contemporânea, sendo punível com a prisão, um novo papel temático é assumido pelo ator-
protagonista: o papel temático do criminoso, cujo lexema “criminoso”, segundo o Houaiss
(2009), de acordo com a rubrica penal, significa “que ou aquele que infringiu por ação ou
omissão o código penal, cometendo crime”. Além disso, no apedrejamento do Gordo, fica
subentendida a morte do antissujeito, o que implica na assunção, também, do papel temático
de assassino pelo Andarilho, figurativizado pela isotopia “rachou a cabeça”, “silenciou todas
as histórias que ele contava”. Desse modo, investido desses papéis temáticos (agressor e
assassino), conforme a isotopia figurativa “rachou a cabeça”, “inocente dureza”, “finalmente
recuperado”, “pôs-se na estrada”, “não andava muito rápido”, o Andarilho rompe com a
forma de vida anterior, a da indigência (assim como em “Le beau geste”), e assume, por fim,
uma nova forma de vida, a da violência20
.
2.2 O ROUBO DO GORRO: UM ACONTECIMENTO
Considerando a forma de vida da indigência, o processo de desumanização do
Andarilho e os conceitos de rotina e acontecimento da perspectiva da semiótica tensiva de
Claude Zilberberg, atentemo-nos aos excertos do texto:
O primeiro inverno passado na estrada refluiu como sensação, aquele frio na
cabeça. O frio que então sentia machucava-lhe o corpo todo, mas de uma
forma tão aguda que o céu acabava distanciando-se muito, como uma coisa
inatingível (BRAFF, 2006, p. 128).
Quando acordou da sesta, as pálpebras desgrudando-se ainda com
dificuldade, a primeira coisa que viu foi seu gorro de lã, como um sol
colorido na cabeça do Gordo. Então sentiu frio na cabeça, um frio antigo, e
uma náusea gelada subiu-lhe do estômago cheio até inundar sua boca de um
gosto amargo: uma sensação de vida inútil (BRAFF, 2006, p. 129, grifo
nosso).
Convém observar que a sesta, no conto, é um fato, é algo corriqueiro, rotineiro
para o Andarilho e faz parte do “universo de excessivo entorpecimento, sem qualquer
20
No Houaiss (2009), o lexema “violência” tem as acepções “ação ou efeito de empregar força física ou
intimidação moral contra; ato violento”, “exercício injusto ou discricionário, geralmente ilegal, de força ou de
poder”.
61
expectativa de que algo novo irrompa na rotina em que o sujeito vive imerso” (MERÇON,
2009, p. 396).
Segundo o Houaiss (2009) o lexema “sesta” pode ser definido como “repouso
após o almoço”. Outro significado pode ser “ausência, cessação de movimento, de trabalho”.
Tais sentidos nos levam a observar que as valências de intensidade e de extensidade estão
enfraquecidas. Isso porque as subvalências de andamento e de tonicidade apresentam uma
desaceleração das atividades rotineiras do Andarilho e um relaxamento tensivo do sujeito
durante o repouso – ausência de movimento –, inerente à constituição dos lexemas sesta e
repouso. Da mesma forma, na valência extensiva, as subvalências de temporalidade e de
espacialidade evidenciam na sesta, enquanto extensão do almoço, uma duração relativamente
longa desse processo, como se pode notar no excerto: “[...] as pálpebras desgrudando-se ainda
com dificuldade [...]” (BRAFF, 2006, p. 129).
Essa dificuldade em acordar, evidenciada no desgrudar das pálpebras do
Andarilho, indica que o sujeito espera manter a rotina após o descanso. Além disso, o
andarilho encontra-se em um espaço aberto, ou seja, à sombra uma árvore, a gameleira
(BRAFF, 2006, p. 128). Isso se torna perceptível no trecho: “[...] sol que atravessava a copa
da árvore e vinha cair em feixes longos e delgados sobre os dois homens que digeriam o
almoço, sentados sobre pilhas de pedras” (BRAFF, 2006, p. 129).
Ao acordar da sesta, algo incomum acontece: o Andarilho vê seu gorro na
cabeça do companheiro de estrada, o Gordo. Dessa perspectiva podemos considerar que os
três modos que constituem o acontecimento se instalam na narrativa. O modo de eficiência do
conseguir, grandeza que caracteriza o esperado por parte do sujeito, parafraseando Zilberberg
(2007, p. 18), dá lugar ao sobrevir e o inesperado roubo do gorro se instala no campo de
presença do sujeito.
O Andarilho logo percebe que está desprovido do calor do objeto e,
consequentemente, do conforto e do poder que o gorro lhe proporciona: “Quando acordou da
sesta, [...] a primeira coisa que viu foi seu gorro de lã, como um sol colorido na cabeça do
Gordo. Então sentiu frio na cabeça” (BRAFF, 2006, p. 129). Estabelece-se, nesse instante,
uma tensão na narrativa. A carga tímica do sujeito é intensificada com base na fratura da
rotina de dormir e acordar aquecido com o gorro na cabeça, ou seja, no inesperado roubo
daquele objeto.
Arrebatado pelo sobrevir, que Zilberberg (2011, p. 170) caracteriza como
“andamento mais vivo que o homem, na condição de sujeito sensível, pode sofrer”, no
momento em que acorda e vê o gorro na cabeça do antissujeito, o Andarilho passa a ser
62
apreendido pelo sofrer: “[...] um frio antigo, e uma náusea gelada subiu-lhe do estômago
cheio até inundar sua boca de um gosto amargo: uma sensação de vida inútil” (BRAFF, 2006,
p. 129).
Como o modo de existência, depende do modo de eficiência, vemos que é
diante do sobrevir, ou seja, do roubo do gorro, que se revela a apreensão do Andarilho, como
demonstra o excerto “[...] uma sensação de vida inútil” (BRAFF, 2006, p. 129). Nesse
momento, o sujeito é reportado a um período específico de sua vida: o primeiro inverno
passado na estrada, época em que “Tão-somente vivia por não saber outra coisa” (BRAFF,
2006, p. 128), demonstrando a consternação do andarilho frente ao acontecimento.
Ao mesmo tempo, a isotopia figurativa “frio”, “náusea gelada”, “estômago
cheio”, “gosto amargo” revela notações somáticas que se associam às consequências do
acontecimento, ou seja, antecipam a manifestação passional – o percurso da cólera. Essas
notações somáticas reproduzem a relação sensorial entre o sujeito e o objeto – o Andarilho e o
gorro –, ou mais precisamente, as sensações provocadas pelo distanciamento do objeto
imposto ao sujeito subitamente. Desse modo, o sujeito, estupefato diante do acontecimento,
afetado, perturbado com o curso do tempo momentaneamente suspenso, como assevera
Zilberberg (2011, p. 169), percebendo a ausência do calor proporcionado pelo gorro,
rememora o primeiro inverno passado na estrada: “O primeiro inverno passado na estrada
refluiu como sensação” (BRAFF, 2006, p. 128).
Marcado pelo roubo do gorro, o Andarilho volta a sentir, na cabeça, a mesma
sensação de frio de outrora, que machucava todo seu corpo de forma aguda. Nessa nova
notação somática, figurativizada pelo lexema “inverno”, que remete à sensação de frio, o
lexema “refluir”, pode abarcar tanto o sentido do retrocesso, quanto da intensificação da
sensação de frio pelo sujeito. Temos, então, uma aceleração do andamento do discurso. Essa
aceleração está associada à acentuação do sofrer à medida que se invertem as sensações do
Andarilho, que volta a sentir um frio agudo ao deixar de ser aquecido pelo gorro – “Então
sentiu frio na cabeça, um frio antigo, e uma náusea gelada subiu-lhe do estômago cheio até
inundar sua boca de um gosto amargo: uma sensação de vida inútil” (BRAFF, 2006, p. 129).
É na sensorialidade observada primeiramente no desconforto anterior à
conjunção do Andarilho com o objeto gorro, na situação inicial da narrativa, e, depois, no
conforto proporcionado ao Andarilho pelo gorro quando ele ganha o objeto, e, novamente, no
desconforto resultante da posterior disjunção com o gorro, que se revela a amplitude da falta
desencadeada pelo roubo do objeto-valor. Três vezes, nas quatro páginas do conto,
especialmente quando o Andarilho é impactado pelo sobrevir do roubo, o gorro é comparado
63
ao sol devido ao calor que proporciona: “Seu gorro de lã, como um sol colorido na cabeça do
Gordo, foi a primeira coisa que viu quando acordou” (BRAFF, 2006, p. 127, grifo nosso). E
essa comparação chega a ser intensificada pelo acréscimo do atributo “quente” na
caracterização do lexema “sol” no auge da apreensão do sujeito: “como um sol colorido e
quente” (BRAFF, 2006, p. 128). Essa relação sinestésica, que segundo Greimas (2002, p. 35),
ocorre no estrato eidético, que é mais superficial, é representada pela figura “colorido do sol”,
que se opõe à ausência de cor, e, consequentemente, de calor, figurativizada pelos lexemas
“frio” e “inverno”. Conforme o cromatismo chega à luz, o que corresponderia ao calor
proporcionado pelo gorro, a visão e o tato se imbricam. O gorro é comparado ao sol, fonte de
calor e de vida, mas ao qualificar a figura do “sol” pelo atributo “quente”, o enunciador
sugere que o calor fornecido pelo objeto torna-se ainda mais intenso e, consequentemente,
mais necessário ao sujeito enquanto ser humano.
Assim, a importância superlativada do tato em sua relação com a visão, bem
explicita a intensidade do desejo do Andarilho de manter a conjunção com o gorro, já que, nas
palavras de Greimas (2002, p. 35-36), “o tato se situa entre as ordens sensoriais mais
profundas, ele exprime proxemicamente a intimidade optimal e manifesta, sobre o plano
cognitivo, a vontade de conjunção total”. Essa vontade de conjunção total, no conto, pode ser
exemplificada no fragmento: “Ao enfiá-lo [o gorro] na cabeça até cobrir as orelhas, olhou
longe, as distâncias, e contemplou a várzea que se estendia em sua frente, muito imperador
naquele conforto. [...] E aquele conforto descia-lhe da cabeça para o corpo, por isso pisava
tão firme o asfalto” (BRAFF, 2006, p. 129, grifos nossos).
Convém ressaltar que, segundo Greimas, (2002, p.85), a conjunção do sujeito
com o objeto pelo tato é, dentre as sensações de onde se desenvolvem as paixões do “corpo” e
da “alma”, a sensação mais profunda. Tamanha profundidade da sensação tátil do calor
proporcionado pelo gorro por parte do Andarilho se revela no enunciado – “E aquele conforto
descia-lhe da cabeça para o corpo [...]” (BRAFF, 2006, p. 129). Dessa perspectiva, o
rememorar o frio do inverno de outrora, quando disjunto do objeto, ilustra a tonificação21
cada
vez mais acentuada do sentimento de falta do gorro pelo Andarilho no eixo da intensidade.
Antes de possuir o gorro, o frio “[...] machucava-lhe o corpo todo, mas de uma forma tão
aguda que o céu acabava distanciando-se muito [...]” (BRAFF, 2006, p. 128), e o sol era
“imprestável para o aquecimento”. Contudo, quando o gorro está mais próximo do sujeito, o
calor por ele proporcionado é um calor acessível, por isso é comparado ao “sol colorido e
21
Quando falamos em tonificação referimo-nos ao aumento da tonicidade, assim como a atonização diz respeito
à diminuição da tonificação, respectivamente, como afirma Zilberberg (2011, p. 74-75).
64
quente”.
A percepção de que não possui mais a sua fonte de calor, e de vida, leva o
Andarilho a se lembrar do frio que sentira no passado, e a recordar-se do momento em que
ganhou o gorro. Podemos observar, nesse momento, a representação implicativa: se o gorro
fora jogado sobre seu peito, então lhe pertencia. Isso, porque, como explica Zilberberg (2007,
p. 23), no modo juntivo implicativo, “o direito e o fato se respaldam mutuamente”, ou seja, se
o gorro fora jogado sobre o peito do Andarilho, então o objeto é seu: “Foi assim que viu, pela
primeira vez o gorro, jogado sobre seu corpo [...] O gorro jazia imóvel sobre seu peito, feito
uma propriedade sua [...]” (BRAFF, 2006, p. 128).
Contudo, no momento em que acorda, o sujeito admirado se dá conta de que o
mesmo gorro, que há tanto tempo lhe pertencia, que era seu por direito, de repente está na
cabeça de outra pessoa, o Gordo. Tal constatação revela a natureza concessiva do
acontecimento, em que se dá a “realização do irrealizável” pelo sobrevir, consoante
Zilberberg (2011, p. 176-177), pois, embora não parecesse possível ter o gorro roubado pelo
Gordo, o companheiro roubou o objeto do Andarilho.
Enfim, a temporalidade até então aniquilada pelo sobrevir, abreviada pelo
andamento acelerado do sofrer do Andarilho, se recompõe quando ocorre a desaceleração e a
atonização do andamento e da tonicidade, respectivamente, ou seja, quando o sujeito retorna à
atitude momentaneamente suspensa pelo acontecimento (ZILBERBERG, 2011, p. 171) que
dará início à manifestação passional da cólera. A descontinuidade no discurso e a ruptura na
vida representada criadas pela pontualidade imprevisível da suspensão do tempo e da
petrificação do espaço (GREIMAS, 2002, p. 25- 26) dá lugar à fase da espera, na paixão da
cólera, figurativizada pela isotopia da mendicância.
Assim, quando, de acordo com Fontanille (2012, p. 112), ao desenvolver o
esquema de atenuação, no campo de presença do Andarilho, a tensão desemboca na atenuação
do acontecimento – a intensidade (andamento e tonicidade) do sobrevir esmaece à proporção
que a extensidade (temporalidade e espacialidade) também não consegue manter o tempo
suspenso e o espaço volta a existir. É nesse instante que ocorre um relaxamento das tensões
do sujeito e ele pede, pela primeira vez, que o objeto seja devolvido: “− Me dá” (BRAFF,
2006, p. 127).
2.3 A MANIFESTAÇÃO PASSIONAL DA CÓLERA E DA VINGANÇA NO TEXTO
65
Quando o acontecimento é potencializado, ocorre, na narrativa, uma
atualização do desejo do Andarilho de novamente tornar-se conjunto do gorro. Afinal, ele crê
que “não se pode privar um homem inteiramente de tudo” (BRAFF, 2006, p. 128). Essa
potencialização equivale à instauração do modo de existência da focalização, característica do
sujeito operador, que visa a algo, ou seja, que diante da falta instaurada “se inscreve como
mediação entre a atualização e a realização”, nas palavras de Zilberberg (2007, p. 22).
Entretanto, enquanto sujeito operador, o Andarilho também é um sujeito
passional, um sujeito, que segundo Tatit (2003, p. 193), é pragmaticamente imobilizado por
ações anteriores, mas também estimulado sensível e afetivamente por tais ações. Por isso, é no
momento de atualização do devir que se inicia a crise de confiança estabelecida pela quebra
do contrato fiduciário entre o Andarilho e o Gordo. Assim, o rompimento do contrato
fiduciário, no qual o Gordo deveria devolver o gorro para o Andarilho, desencadeia a paixão
da cólera, evidenciando uma relação direta entre a intensidade da espera pela devolução do
gorro pelo Gordo e a gradação correspondente da insatisfação provocada pela não realização
do esperado (recusa do Gordo em devolver o gorro), parafraseando Greimas (1983, p. 233).
Com essa afirmação, o semioticista ainda esclarece que a explosão da cólera é
conduzida pela frustração que envolve a crise de confiança. Essa crise de confiança pode ser
entendida da seguinte forma: modalizado pela crença de que o Gordo devolveria o gorro, o
Andarilho sente-se insatisfeito pelo fato de o Gordo não realizar o que ele esperava. Nesse
momento, o Andarilho percebe que sua crença é injustificada e, decepcionado, vê, instalada, a
crise de confiança em relação ao Gordo, que frustrou a confiança nele depositada.
Para explicarmos como se dá a transformação passional do sujeito Andarilho,
consideraremos a sequência canônica da paixão da cólera proposta por Fontanille (2005, p.
63), conforme página 29. Para Fontanille (2005, p. 66), cada fase dessa sequência canônica
pode desmembrar-se em fases intermediárias, anteriores ou ulteriores à explosão da cólera.
Dessa perspectiva, notamos que, no texto em análise, a fase da agressividade não desemboca
na explosão da cólera, mas dá origem à paixão da vingança.
Levando em conta os acontecimentos que constituem cada fase do dispositivo
da cólera também serão consideradas, na análise, as modulações tensivas de intensidade e de
extensidade que, de acordo com Fontanille (2012, p. 204), dirigem a transformação passional.
2.3.1 A sequência passional da cólera
66
No início da narrativa, o Andarilho confia no Gordo. Essa confiança, como
assevera Fontanille (2005, p. 64), é uma relação estabelecida entre ao menos dois sujeitos e se
baseia em um estado de crença em alguém. Por isso, sendo companheiros, o Andarilho crê
/não poder ser/ roubado pelo Gordo.
Podendo instalar-se tanto informalmente, na forma de afetividade, quanto
formalmente, por meio de um contrato narrativo ou de uma promessa, a confiança, primeira
fase da sequência passional da cólera, pode afetar a representação de um estado ou de um
acontecimento que irá ocorrer, que é modalizado por um /dever-ser/. E é nesse sentido que o
Andarilho é afetado pelo roubo do gorro. Esse acontecimento abala o estado de confiança do
sujeito no companheiro: “[...] não era a primeira vez que partilhava com ele seu almoço
debaixo daquela mesma gameleira” (BRAFF, 2006, p. 127-128). Nesse excerto, o enunciado
“não era a primeira vez” indica que o Andarilho e o Gordo não se conheceram na situação
inicial da narrativa. Na verdade, compartilham uma história. Assim, se por mais de uma vez
partilharam o almoço e, consequentemente, fizeram a sesta juntos, era de conhecimento do
Gordo que o gorro pertencia ao Andarilho e não era um objeto compartilhável. Na ancoragem
espacial “debaixo daquela mesma gameleira22
” notamos uma recorrência da ação de
almoçarem juntos no mesmo espaço geográfico, inclusive, reforçando a informação de que
havia uma relação de companheirismo entre eles23
.
Assim, o andarilho espera24
que o gorro seja devolvido pelo Gordo. Essa espera
se funda na memória da confiança antes depositada no primeiro pelo segundo, e “o crer,
instalado pela confiança, se desdobra, portanto, na espera em um crer em alguma coisa (o
estado esperado) e um crer em alguém (aquele que deve realizá-lo)” (FONTANILLE, 2005, p.
64), ou seja, na crença de que o gorro será devolvido. Tal crença na devolução do objeto é
figurativizada pelos três primeiros pedidos, direcionados ao companheiro pelo andarilho. Eis
o primeiro: “Então pediu uma primeira vez, a mão teimosa estendida” (BRAFF, 2006, p.
127). Como o primeiro pedido parece não surtir efeito, o Andarilho pede uma segunda vez: “–
Me dá! – repete com voz envelhecida e olhos grisalhos, sem brilho” (BRAFF, 2006, p. 127).
O Gordo, no entanto, devolve, como resposta, “[...] uma gargalhada sem dentes e de barba
22
O lexema “gameleira”, cuja acepção, no Houaiss (2009), é árvore “com madeira geralmente usada para a
confecção de gamelas”, é um prenúncio da manifestação passional final do Andarilho em relação ao Gordo, pois,
etimologicamente, conforme o mesmo dicionário, o lexema “gamela” advém do latim camélla,ae, ou seja,
significa “vaso de madeira usado em certos sacrifícios”. 23
Fazemos aqui uma ressalva: à medida que desenvolvermos a sequência passional da cólera, notaremos que
essa confiança depositada no Gordo será revista pelo Andarilho. 24
Trata-se da espera “da participação de um outro sujeito: na verdade apenas se espera o acontecimento porque
não se pode ter certeza plena a respeito de sua realização e porque isso depende da intervenção de um ou de
inúmeros outros sujeitos” (FONTANILLE, 2005, p. 64).
67
suja desgrenhada” (BRAFF, 2006, p. 127). Ainda acreditando que o outro vai lhe restituir o
objeto, pede novamente: “– Me dá! A repetição do pedido não aumentava nem diminuía a
intensidade de seu desejo, que era monótono” (BRAFF, 2006, p. 128). E o Gordo, agora
assumindo a condição de antissujeito, visto que, mais uma vez, o Andarilho não é atendido,
“[...] ria cada vez mais alto, pois sentia muito prazer em aumentar o seu domínio” (BRAFF,
2006, p. 128).
Dessa forma, mais de uma vez o Gordo é chamado a cumprir seu dever. Mas a
esfera concessiva do acontecimento, mesmo já potencializado, prevalece, e o antissujeito não
devolve o objeto, tornando o esperado pelo Andarilho irrealizável. Pressupondo que o
Andarilho imagine que embora o Gordo devesse devolver o gorro, ele não o faz, “pois sentia
muito prazer em aumentar seu domínio” (BRAFF, 2006, p. 128, grifo nosso), notamos, no
trecho grifado, a tonicidade acentuada do prazer do antissujeito, que intensifica o sofrer do
sujeito e também o seu /querer-ser/ “imperador” do conforto proporcionado pelo gorro
novamente, como quando ganhou o objeto: “Arredou os trapos e levantou-se, já com o gorro
na mão. Ao enfiá-lo na cabeça até cobrir as orelhas, olhou longe, [...] muito imperador
naquele conforto” (BRAFF, 2006, p. 129).
No campo de presença, assim como pressupõe Zilberberg (2011, p. 70), a
tonicidade projeta-se na espacialidade e na temporalidade. Assim, torna mais vasto o seu
campo de desdobramento e alonga a duração da carga tímica do sujeito:
No alto da gameleira uma cigarra pôs-se a chiar e o fez com tamanho
empenho e volume que o mundo ficou estridente. Aquilo aumentou a
intensidade frenética do sol que atravessava a copa da árvore e vinha cair em
feixes longos e delgados sobre os dois homens que digeriam o almoço
sentados sobre pilhas de pedras (BRAFF, 2006, p. 129).
Os lexemas “tamanho”, “empenho”, “volume”, “estridente” e “delgados”
figurativizam a acentuação da tensão do sujeito. O aumento do volume, que torna o mundo
estridente, demonstra como o espaço tensivo se desdobra ao mesmo tempo em que a duração
da sensação se alonga em “feixes longos”.
O tumulto modal sofrido pelo Andarilho que quer ser “imperador naquele
conforto”, mas não pode ser, porque o gorro está com o antissujeito, é marcado pelo
andamento acelerado, fazendo recrudescer o sofrer do sujeito, como revelam as figuras “o
mundo ficou estridente” e “aquilo aumentou a intensidade frenética do sol”. Desse modo, fica
implícito que o ambiente passa também a perturbar o sujeito estupefato com a recusa do
Gordo em devolver o objeto.
68
Essa manifestação tensiva no campo de presença integra a terceira fase do
dispositivo da cólera: a frustração. Enquanto “momento passional da sequência”
(FONTANILLE, 2005, p. 64), em que o sujeito “reatualiza a promessa de conjunção anterior”
diante da confiança e da espera irrealizadas, na frustração, o corpo sensível do Andarilho é
tomado pela decepção ao provar a privação do gorro. Então pede novamente, mas, agora, com
impaciência – “Me dá! Houve uma leve alteração na voz envelhecida que, um pouco mais
trêmula deixava de ser um pedido, quase um apelo impotente, para se tornar uma exigência”
(BRAFF, 2006, p. 129).
Notamos que a voz é alterada, levemente, e se torna trêmula, uma forma de
manifestação sensorial da crescente insatisfação do sujeito em relação à insistência do
antissujeito em não devolver o gorro. Uma expressão somática25
, provocada pela privação do
objeto, é projetada na tonicidade presente no espaço tensivo e na manutenção do andamento
por meio da audição, visto que “A cigarra continuava a chiar”, “o mundo estridulava”, assim
como pela visão e pelo tato – “o sol descia em feixes da copa da árvore” (BRAFF, 2006, p.
129) – como indica o quadro abaixo: (ver Tabela 1)
Tabela 1 – Isotopias figurativas das notações somáticas
SENTIDO FIGURAS
Audição Cigarra, chiar, estridulava
Visão Sol, feixes
Tato Calor (proporcionado pelo sol)
Fonte: Elaborado pela autora.
A decepção de definitivamente não ter o pedido atendido inaugura a fase do
descontentamento (FONTANILLE, 2005, p. 65) do Andarilho em que se observa a
confrontação entre o que ele esperava do Gordo (que não roubasse o gorro) e o que o
antissujeito realizou (o roubo do gorro e a não devolução do objeto), e fica insatisfeito com o
a inadequação da ação do Gordo, que, mais uma vez, de forma inesperada, “se finava afogado
naquela gargalhada grossa de catarro” (BRAFF, 2006, p. 129).
Diante da confrontação deceptiva e da não realização do esperado, pois um
novo acontecimento – mais uma vez o objeto não é devolvido ao pedi-lo – é instalado pelo
modo de junção concessivo – o gordo deveria devolver o gorro, mas não devolveu –, surge a
tensão entre a percepção do esperado e do realizado, sobretudo, entre as instâncias modais do
25
Ver o conceito de expressão somática à página 23.
69
/querer/ e do /saber/. Em suma, entre o /querer ser/ e o /saber não poder ser/ “imperador
naquele conforto”: “Pois, apesar da ojeriza pelo companheiro, não era a primeira vez que
partilhava com ele seu almoço debaixo daquela mesma gameleira” (BRAFF, 2006, p. 127-
128, grifo nosso).
No Houaiss (2009), o lexema “ojeriza” também pode ser entendido como
sentimento de “aversão, antipatia gerado pela intuição, por uma percepção”. Nesse sentido, o
“si projetado” do Andarilho revela que o sujeito tinha uma antiga desconfiança, uma suspeita
sobre o caráter do Gordo. A concessão feita ao companheiro, de partilhar o almoço
desconsiderando a suspeita sobre ele, resulta no /saber/ do “Eu atual”, uma vez que o Gordo
além de não parecer, revelou-se não ser confiável, pois roubou o gorro. Nesse tumulto modal
entre o /querer/ e o /saber/, aflora a inquietação do sujeito que esperava algo (dormir e acordar
com o gorro / manutenção da confiança no Gordo), mas viu esse algo resultar no inesperado
(roubo do gorro / confirmação de que o Gordo não era confiável). Mas a espera (recuperar o
gorro) se reitera, por meio de seus vários pedidos ao Gordo, transformando-se, pois, em novas
expectativas de reaver o objeto.
Além disso, por meio do lexema “ojeriza” o enunciador revela também uma
tonicidade cada vez mais acentuada do estado deceptivo do Andarilho. Podemos observá-la na
intensificação dos sentimentos negativos do sujeito em relação ao Gordo. Já vimos que no
Houaiss (2009) uma das acepções para “ojeriza” é “aversão”. Mas, se atentarmos ao
significado de “aversão”, o Houaiss (2009) tem como resposta “sentimento de repugnância
em relação a pessoa ou coisa; repulsão, antipatia”, podendo ainda significar sentimentos de
“rancor, ódio”, paixões de malevolência que são mais intensas do que o estado deceptivo em
que o sujeito se encontrava na fase anterior ao descontentamento. Essa gradação tensiva do
recrudescimento do descontentamento do Andarilho pode ser assim esquematizada:
A penúltima fase da sequência canônica da cólera é a agressividade. Essa fase é
direcionada ao sujeito que rompeu o contrato fiduciário. Contudo, também pode se voltar “para os
objetos, para a construção ou o dispositivo que se revelaram menos confiáveis do que se supunha”
e também para a situação, “ao próprio estado deceptivo”, enquanto configurações concretas que
representam a promessa e a confiança iniciais, o engajamento negligenciado ou traído por outro
sujeito (FONTANILLE, 2005, p. 65).
Nesse sentido, observemos o excerto: “Não gostava do Gordo, porque falava
70
demais com sua boca e contava histórias de vida que não poderiam ser dele. Era um mentiroso
ocupando lugar nos acostamentos. E andava rápido, com seu tamanho, como se tivesse onde
chegar. Não gostava” (BRAFF, 2006, p. 127, grifo nosso).
Nesse fragmento do texto, temos, pois, a agressividade direcionada ao antissujeito.
O lexema “mentiroso” é um indicativo do estado deceptivo do sujeito em relação ao Gordo e da
conclusão de que o antissujeito não era, de fato, confiável. Era mentiroso.
Tal lexema, “mentiroso”, julgamento negativo atribuído ao Gordo, também é um
indicativo de acentuação da tonicidade, demonstrando a intensificação contínua da carga tímica.
Porém, é importante atentarmos à repetição da figura “Não gostava” direcionada ao antissujeito.
Na primeira vez que aparece, a expressão é acompanhada da explicativa: “Não gostava...
porque...” Desse modo, o Andarilho enumera os motivos que o levaram a manifestar o juízo de
valor “não gostar” em relação ao outro andarilho: falava demais, contava histórias de vida que não
podiam ser dele. Em seguida, conclui que o antissujeito “era um mentiroso”. E reafirma,
categoricamente, o seu sentimento pelo Gordo: “Não gostava”.
Dessa perspectiva, nesse trecho da narrativa, temos a figurativização da
agressividade, descrita por Fontanille (2005, p. 65) como um efeito da irrupção do antissujeito
(Gordo) no campo de presença do sujeito (Andarilho). Temos ainda o pico de intensidade da
manifestação passional, diante da abertura de uma sequência de afrontamento, na qual o
Andarilho manifesta a emergência de um /poder -fazer/.
Se observarmos o esquema de amplificação, que Fontanille (2012, p.114-115)
chama de “princípio de gradação geral que parte de um mínimo de intensidade e de uma fraca
extensão para desembocar em uma tensão máxima, igualmente desdobrada em extensão”,
podemos identificar, gradativamente, a cada fase da paixão da cólera, após a quebra do contrato
de confiança, uma amplificação da tensão do Andarilho, como mostra o gráfico abaixo: (ver
Figura 2)
71
Figura 2: Amplificação tensiva do percurso passional da cólera do sujeito Andarilho
Fonte: Fontanille (2012, p. 112)
De acordo com a sequência canônica, após a fase da agressividade, ocorreria a
explosão da cólera, mas essa explosão não ocorre, mesmo com a intensificação da carga
tímica do Andarilho. Isso, porque após enumerar os motivos pelos quais não gostava do
Gordo, o Andarilho reflete sobre o riso do antissujeito e uma bifurcação do processo passional
se abre nesse momento, evitando que haja uma cólera completa (FONTANILLE, 2005, p. 66),
como observamos na sequência.
2.3.2 A vingança do andarilho: o grande acontecimento
Com o estado de alma tomado pela decepção na fase da agressividade, em
processo de desumanização pela forma de vida da indigência e concluindo que, na verdade, o
antissujeito é mentiroso, a negativa do Gordo em devolver o gorro por meio da gargalhada,
72
cada vez mais intensa, leva o Andarilho a refletir sobre aquele riso – “O riso grosso, do
Gordo, não era uma alegria leve e doce, provida com as suavidades da vida. Não era. Seu riso
vinha de uma região obscura, quase o inexplicável que é a invocação tenebrosa, quando se
chama a morte” (BRAFF, 2006, p. 130).
Desvela-se nesse excerto uma nova fase da sequência canônica, tendo em vista
a ocorrência de mudanças na relação entre os actantes – transformação do Gordo, que de
companheiro passa a ser mentiroso – e, na relação fiduciária – o Andarilho deixa de confiar
no Gordo.
Segundo o Houaiss (2009), o lexema “riso” pode significar tanto expressão de
contentamento, quanto de zombaria. Se considerarmos a reiteração da negativa na reflexão do
Andarilho, que sabe que o riso do antissujeito não era de alegria, como se observa na
passagem “não era uma alegria [...] Não era” (BRAFF, 2006, p. 130, grifos nossos),
podemos observar que, da sua perspectiva, o riso do Gordo não é manifestação de
contentamento, mas, sim, expressão de zombaria. Para o Andarilho, o riso do Gordo é
expressão de malevolência, como revela a isotopia figurativa: “riso grosso que vinha de uma
região obscura”, “quase o inexplicável que é a invocação tenebrosa quando se chama a
morte”. Essa isotopia representa uma gradação tensiva que se relaciona à morte.
Tal reflexão do Andarilho acerca do riso do Gordo, logo após a fase da
agressividade, se relaciona na sequência canônica da cólera, a um desdobramento da
sequência em uma fase intermediária, visto que a agressividade, “pode tomar a forma do ódio,
a longo termo, ou da vingança, segundo um princípio de reciprocidade dos danos”, consoante
Fontanille (2005, p. 66). A vingança relaciona-se assim ao ato de reflexão do Andarilho sobre
o mal causado ao antissujeito.
Assim, diante do riso “grosso” do antissujeito, a conclusão do Andarilho é que
o Gordo invoca a morte e é malévolo. O Andarilho é, portanto, modalizado pelo /querer -
fazer/ e, no apogeu de sua desumanização, decide destruir o ofensor, revelando o caráter
necessariamente unilateral da “ruptura de confiança” (FONTANILLE, 2005, p. 74) e a
necessidade de reparação do dano causado: “A pedra que rachou a cabeça do Gordo e
silenciou todas as histórias que ele contava rolou e misturou-se às outras pedras, todas elas
com aquela mesma aparência de inocente dureza” (BRAFF, 2006, p. 130).
Notamos, então, que embora não fique explícito no texto que o sujeito golpeou
o antissujeito com a pedra, se no espaço da narrativa existem apenas o Gordo e o Andarilho, o
golpe que atinge o Gordo só pode ter sido desferido pelo Andarilho. Apesar de não existirem
figuras no texto que indiquem que o Gordo morre, o fato de sua cabeça ter sido “rachada”
73
revela uma intensidade exacerbada do golpe aplicado pelo sujeito, demonstrando “a rapidez
dos reflexos do ofendido” (GREIMAS, 1983, p. 245).
É importante observar o caráter paradoxal da expressão “inocente dureza”
utilizada pelo enunciador em referência à pedra utilizada pelo Andarilho para atingir o Gordo.
Assim, nota-se que a intensidade da agressão ao antissujeito se manifesta no lexema “dureza”.
Por outro lado, seu atributo “inocente” revela a naturalidade com que o andarilho encara a
vingança por meio do apedrejamento e morte do antissujeito, o que o nivela a um sujeito que
sofreu um processo de desumanização
Atentando, mais uma vez, ao esquema de amplificação apresentado na página
71, figura 2, representando o dispositivo da cólera, acrescentamos ao gráfico tensivo a
execução da vingança do Andarilho, ápice da carga tímica do sujeito e de sua desumanização:
(ver Figura 3).
Figura 3: Desdobramento da amplificação tensiva do percurso passional da cólera do
Andarilho na paixão da vingança
Fonte: Fontanille (2012, p. 112)
No que diz respeito à reparação do dano, que constitui a paixão da vingança, ao
apedrejar o Gordo, o Andarilho recupera o objeto-valor: “O gorro, finalmente recuperado
tinha uma pequena mancha de sangue, que em pouco tempo estaria seco, apenas uma pequena
mancha escura” (BRAFF, 2006, p. 130). Pragmaticamente, com o gorro recuperado, o
74
enunciado revela, assim como observa Greimas (1983, p. 245-246) em seu Du sens II, que o
sujeito constituído pela emergência segundo um /poder fazer/ foi competente ao executar um
programa narrativo de afirmação de si e de destruição do outro.
Por fim, após o apedrejamento do Gordo, a tensão no discurso é atenuada à
proporção que a pedra rola e se mistura às demais – “A pedra que rachou a cabeça do Gordo
[...] rolou e misturou-se às outras pedras [...]” (BRAFF, 2006, p. 130). O movimento da pedra
indica o início da desaceleração da tensão na valência de intensidade. Concomitantemente,
evidencia a concentração na valência de extensidade. O espaço percorrido pela pedra que rola
é aparentemente curto, como demonstra o aspecto terminativo dos lexemas “roubou” e
“misturou”.
Nesse aspecto observemos ainda o excerto: “Apesar de ser uma tarde quente de
sol, o Andarilho, com seu gorro na cabeça, pôs-se na estrada como se tivesse onde chegar.
Mas não andava muito rápido, porque sua idéia de futuro era aquela sensação de que agora,
sim, agora poderia enfrentar as noites frias de inverno” (BRAFF, 2006, p. 130, grifo nosso).
Nota-se aí o contínuo enfraquecimento da intensidade da carga tímica do sujeito, pois, o
Andarilho não anda muito rápido, ou seja, há uma desaceleração da tensão que se reitera em
“idéia de futuro”, expressão que do ponto de vista temporal apenas parece representar uma
difusão da duração da carga tímica do sujeito que já executou a vingança. O futuro, para o
Andarilho significa poder “enfrentar as noites frias de inverno”. Assim, com as valências de
intensidade e de extensidade enfraquecidas, as tensões diminuem completamente, ressaltando
o caráter breve, intenso e decadente da vingança, consoante Fontanille (2005, p. 74). Esse
processo de atenuação pode ser relacionado o esquema de atenuação fontanilliano (2012, p.
115-116), como observamos no gráfico abaixo: (ver Figura 4)
75
Figura 4: Atenuação da carga tímica do Andarilho após execução da vingança
Fonte: Fontanille (2012, p. 112)
Essa difusão da grandeza de extensidade, associada ao enfraquecimento da
intensidade leva o sujeito ao relaxamento aparentemente definitivo da tensão provocada pelo
acontecimento final – apedrejamento do antissujeito, o Gordo.
Nesse sentido, pode-se concluir que a forma de vida de indigência do
Andarilho levou-o à desumanização o que fez com que passasse a encarar a vingança e a
violência contra o outro como um gesto natural.
76
3 O ZELADOR: O ACONTECIMENTO, A VINGANÇA E A
TRANSFORMAÇÃO DA FORMA DE VIDA
No conto “O Zelador”, um homem solitário trabalha como zelador de vilas mal
conservadas e inóspitas. Ele tem como objetivo alcançar uma promoção e assim passar a fazer
parte de outra classe social: a Classe C. Ao descobrir que não foi promovido, recebe
determinação para cuidar de uma vila nas mesmas condições daquelas de que sempre cuidou.
Ainda descontente com o fato de não ter sido promovido, na saída do prédio da Zeladoria, o
zelador conhece o cão Ego. No dia seguinte, o zelador e Ego partem juntos para a vila a ser
cuidada. No decorrer da viagem, a cada obstáculo vencido a relação de amizade entre os
companheiros se fortalece até chegarem a uma amizade quase irredutível. Essa amizade
perdura até a terceira vila que visitam juntos. Lá, desaparece a carne que deveria alimentar o
zelador durante um mês. O trabalhador, acreditando ter sido roubado pelo cão e concluindo
que um novo pedido de carne o privará da almejada promoção à Classe C, executa o amigo
como forma de manter a rigidez dos regulamentos que conhecera desde a infância.
Antes de iniciarmos a análise, é importante atentarmos ao fato de que esse
texto apresenta dois planos narrativos. O primeiro é relatado no tempo pretérito. É grafado em
caracteres normais e narra a história de amizade entre o zelador e o cão Ego, desde o
momento em que se conhecem até chegarem à vila onde acontece o conflito e o desfecho da
narrativa. Nele, também se manifesta a forma de vida do ator-protagonista, sua constituição,
manutenção e permanência, assim como o processo inicial de desumanização do zelador. O
segundo plano narrativo, relatado no tempo presente, descreve o estado de alma do zelador,
desencadeado pelo inesperado roubo do gorro. Grafado em itálico, inicia o texto e se insere
em meio ao primeiro plano narrativo, encerrando também o conto. Nesse espaço tensivo
irrompe a paixão da cólera, como veremos no decorrer da análise, que começa pela
identificação da forma de vida predominante na narrativa.
3.1 NO PRIMEIRO RELATO: A SUBMISSÃO COMO FORMA DE VIDA
77
Observamos, na situação inicial da narrativa, um enunciado de estado de
disjunção do sujeito zelador com o objeto-valor promoção. O zelador é um sujeito virtual, que
quer entrar em conjunção com a promoção no cargo que exerce. Ao mesmo tempo, a
proximidade que estabelece com o cão Ego e seu estado de solidão revelam que ele também
quer entrar em conjunção com outro objeto: a amizade. Para a realização desses programas
narrativos, o zelador assume diferentes papéis actanciais, uma vez que ora é modalizado pelo
/dever/, ora é modalizado pelo /querer/ realizar as performances.
No primeiro programa narrativo, a Zeladoria, assumindo o papel actancial de
destinador, manipula o destinatário zelador por provocação ao informá-lo de que a sua idade o
impedira de entrar em conjunção com a promoção. Essa manipulação leva-o a /dever/ aceitar
o contrato de continuar cuidando das vilas com zelo e seguindo os regulamentos com rigor
para poder entrar em conjunção com tal objeto. Para a realização dessa performance, a
Zeladoria dá ao zelador as competências do /saber/ ser promovido, pois o seu zelo era relatado
em documentos da empresa. O sujeito, modalizado pelo /querer/ ser promovido – “[...]
esperava uma promoção que não tinha vindo” (BRAFF, 2006, p.141), executa as tarefas com
esmero e total submissão às normas da empresa: “O zelador conhecia as normas de segurança
e as seguia com bastante rigor, como tudo que fazia profissionalmente” (BRAFF, 2006, p.
148). A performance, porém, não ocorre, pois na terceira vila a ser cuidada, o zelador
descuida-se – “Não se lembrava de ter tido muito cuidado com a porta naquela manhã quando
saiu para o trabalho” (BRAFF, 2006, p.140) – possibilitando que Ego, seu companheiro de
viagem, roube a provisão mensal de carne da geladeira. Esse descuido provoca o rompimento
do contrato estabelecido entre a Zeladoria e o zelador, culminando em uma sanção pragmática
negativa ao sujeito, que sabe que devido ao descuido continuará disjunto da promoção –
“Com um pedido antecipado de alimento, ele sabia, adeus qualquer esperança de passar à
Classe C” (BRAFF, 2006, p.140 e 143) – devendo se conformar a permanecer em vilas do
mesmo nível de todas as vilas onde já havia trabalhado.
Por outro lado, o zelador também se encontra modalizado pelo /querer/ realizar
outro programa narrativo: tornar-se conjunto com o objeto-valor amizade com o cão Ego, na
medida em que ambos se encontram em estado patêmico de solidão. O zelador, no papel
actancial de destinador, é dotado de autoridade para estabelecer o contrato e julgar a
performance, e Ego é o destinatário. Assim, quando o zelador encontra Ego, este o
acompanha até o restaurante, onde é por ele alimentado. E continua a acompanhá-lo no dia
seguinte, manipulado por tentação a /querer/ acompanhar o zelador, que lhe oferece valores
positivos, tais como: alimento – “O volume no bolso da calça era o pão que Ego esperava
78
receber” (BRAFF, 2006, p.145) –, afago – “Parou ao lado de Ego para lhe fazer uma carícia”
(BRAFF, 2006, p.146) –, cuidados – “Ele sabia que a retirada daquelas setas agudas causava,
no início, maior sofrimento do que deixá-las paradas onde estavam [...] pôs-se a trabalhar [...]
e a cirurgia em alguns minutos teve fim” (BRAFF, 2006, p.158). Ego, animal irracional, é
instintivamente dotado do /saber/ e do /poder/ fazer companhia e utiliza os sentidos (olfato,
audição) para ambos conseguirem atravessar a ponte e esconderem-se da chuva sob uma
caverna em seu percurso rumo à vila a ser cuidada, como observamos nos excertos:
Ego chegou em seguida, focinho colhendo cheiros do chão, e não hesitou em
atravessar a ponte com seu trote balançado. O rapaz não esperou melhor
prova de segurança e percorreu o trajeto exatamente por onde passara o
amigo (BRAFF, 2006, p.146).
O lugar era escuro, e o zelador não se descuidava de animais perigosos.
Contudo, ao ver a naturalidade com que ego passeava de um lado a outro da
caverna, farejando todos os cantos, sentiu confiança e desatrelou-se da
mochila, que largou no fundo da caverna (BRAFF, 2006, p.147).
À medida que Ego realiza essas performances, o zelador se sente protegido e,
em estado de confiança em relação ao outro, estabelece o contrato de amizade. Entretanto, já
na terceira vila juntos, Ego, com fome, pois “Há dias ele vinha percorrendo os arredores sem
encontrar caça alguma” (BRAFF, 2006, p.139), rompe o contrato de confiança com o zelador,
manipulado, instintivamente, por outros valores, como /querer/ entrar em conjunção com o
objeto-valor alimento. O cachorro encontra facilidade para entrar na casa devido a um
descuido do zelador, o que dá a Ego a competência do /saber/ entrar na casa e do /poder/
roubar a carne da geladeira. Desse modo, realiza uma nova performance: sacia a fome.
Mas, pelo rompimento do contrato, Ego recebe a sanção cognitiva negativa do
zelador, relacionada à perda de confiança, e a sanção pragmática negativa da morte, entrando
em disjunção com os objetos vida – “O zelador tomou o cabo pela extremidade e, com o olho
da enxada, amassou a cabeça entre as duas orelhas” (BRAFF, 2006, p. 159-160) – e amizade,
como evidencia o enunciado – “Nem que estivesse agora no inferno, pensou, o traidor estaria
seguro” (BRAFF, 2006, p.159).
No nível discursivo, observamos que o zelador exerce o papel temático de
trabalhador, pois é membro de uma classe social menos favorecida, figurativizada como
Classe D, e segue com rigor as normatizações impostas pelo Destinador Social, figurativizado
como “Zeladoria”. Ao receber as ordens da Zeladoria – “Tinha acabado de receber das mãos
do Gerente Geral, a Ordem de Serviço” (BRAFF, 2006, p. 140), o zelador é modalizado pelo
/dever/ e cumpre tais normas, mesmo a contragosto – “Não ousou reclamar de seus
79
superiores” (BRAFF, 2006, p. 140) –, sempre seguindo os regulamentos da empresa, sem
questioná-los, conforme o excerto: “Como segredo inviolável, mantinha um certo desprezo
pelos superiores da Zeladoria que o incumbiam de embelezamentos desnecessários nas vilas.
[...] Jamais ousara fazer o menor comentário sobre o que pensava” (BRAFF, 2006, p. 152-
153).
O não cumprimento das normas da empresa é passível de punição ao
trabalhador. Porém, o zelador, acostumado desde criança a seguir regras, ao longo de sua
experiência profissional não apresenta dificuldade em colocar em prática esse hábito
arraigado em sua vida. Desse modo, o zelador executa uma operação de triagem, “lançando
para fora do campo de presença, as grandezas que não satisfazem a condição exigida”
(ZILBERBERG, 2012, p. 8), ou seja, como os valores de submissão às normas estão
intrinsecamente fixados em seus usos, segue passivamente os regulamentos impostos pela
empresa, haja vista que: “Qualquer atraso ou descontrole [...] era infração que não se admitia,
por causa das consequências disciplinares e dos prejuízos físicos” (BRAFF, 2006, p. 150).
Ao mesmo tempo, no papel temático de cidadão – inserido em uma cultura,
que normatiza os comportamentos, dividindo-os em aceitos e não aceitos – também segue as
normas da coletividade, como ocorre ao frequentar um restaurante acompanhado de Ego:
Entrou e sentou-se à primeira mesa que encontrou [...] com medo de ver
entrando o cachorro [...] com medo de que pensassem que era seu. Os
cachorros, em todo o país, estavam proibidos de entrar em restaurantes.
[...] Como [...] já tivesse passado o perigo de ser expulso por comportamento
inconveniente, o zelador pôs-se a observá-lo [...] (BRAFF, 2006, p. 142,
grifo nosso)
Essa preocupação com as normas também se dá em atividades cotidianas. O
zelador não as questiona ou reflete sobre a possibilidade de ser flexível em relação à
aplicabilidade dessas regras, como quando o cachorro fica do lado de fora do refeitório, no
frio – “São os impedimentos [...] Quase todos inexplicáveis, mas aceitos passivamente”
(BRAFF, 2006, p. 145) – ou quando estão na vila, sozinhos – “[...] a janela permitia a
comunicação entre o que estava dentro da casa com o mundo de fora [...] E Ego, apesar de
companheiro e amigo, pertencia ao lado de fora” (BRAFF, 2006, p. 139-140).
Percebemos, nos excertos, que Ego é impedido de frequentar ambientes
fechados, destinados às atividades humanas, mesmo sendo considerado “companheiro e
amigo”. A inflexibilidade do zelador em relação às normas sociais ocorre mesmo quando
estão, o zelador e o cão, sozinhos na vila e mesmo que o convívio contínuo tenha criado entre
80
eles “uma relação de confiança mútua e um sentimento muito próximo de uma amizade
irredutível” (BRAFF, 2006, p. 156).
À medida que o zelador respeita as normatizações coletivas, modalizado pelo
/dever/ segui-las independentemente de supervisão de outro membro do grupo social ao qual
pertence, desvela a recorrência e a permanência da forma de vida da submissão. Trata-se de
um comportamento normatizado, e também esquematizado, uma filosofia de vida,
demonstrando, mais uma vez, que a triagem, a serviço da intensidade e da pureza, como
coloca Zilberberg (1999, p. 171), guia o zelador à homogeneização do comportamento
submisso. Ele aceita a manipulação por tentação oferecida pelo cão, de acompanhá-lo, mas
não entrar em lugares fechados, como no restaurante, após sentar-se à mesa com medo de que
pensassem que o cão lhe pertencia: “[...] ficou muito surpreso ao perceber o amigo sentado
sobre as patas traseiras [...] bem ali, do lado de fora na frente da porta” (BRAFF, 2006, p.
142). O que o zelador não percebe, é que Ego age por instinto, pois é um animal irracional.
Mas, como no enunciado, ao longo do relato da amizade dos atores, o cachorro é
antropomorfizado no decorrer da narrativa, fica evidente a crença do zelador de que Ego
deveria cumpridor das normas – valores relativos ao universo humano.
A antropomorfização do animal é evidenciada nos excertos:
[...] ele tinha uma fisionomia jovial e festiva, como de alguém que sente
grande prazer no fato de estar vivo (BRAFF, 2006, p. 142).
Ego espiava através do vido aquele mundo iluminado que ele vagamente
entendia. [...] ele abanava a cauda, esperançoso [...] O volume o bolso da
calça era o pão que Ego esperava receber, pois adivinhava que seria seu (BRAFF, 2006, p. 145).
Os olhos de Ego, apesar de pedintes, eram também acusadores (BRAFF,
2006, p. 150).
[...] finalmente começou a falar com Ego. O cão [...] mirava-o com a
cabeça adernada ora para a esquerda, ora para a direita (BRAFF, 2006,
p. 157).
O cão trotava tristonho ao lado do amigo (BRAFF, 2006, p. 159).
A isotopia figurativa grifada nos excertos acima – “alguém que sente grande
prazer no fato de estar vivo”, “entendia”, “esperançoso”, “adivinhava”, “olhos acusadores”,
“mirava-o com a cabeça adernada ora para a esquerda, ora para a direita”, “tristonho” – fazem
parte do universo humano. Entender, adivinhar, ter esperança, ficar triste, adernar a cabeça
para o lado como sinal de entendimento ou sentir prazer em estar vivo são ações e/ou
sentimentos humanos atribuídos ao animal. Desse modo, o zelador acredita que o cão
compreende os limites a ele impostos tanto no restaurante quanto no refeitório – “Por causa
81
do frio, a porta de vidro do refeitório permanecia fechada [...]. Do lado de fora, sentado sobre
as patas traseiras, Ego espiava através do vidro aquele mundo iluminado que ele muito
vagamente entendia” (BRAFF, 2006, p. 145). Em sua visão, a ação instintiva de Ego, que há
dias “vinha percorrendo os arredores sem encontrar caça alguma”, voltando “sempre sujo de
barro, com a barriga no espinhaço” (BRAFF, 2006, p. 139) corresponde a um roubo – ação
atribuída a humanos. O roubo é considerado crime na cultura ocidental, por isso esse ato passa
a configurar uma ruptura de comportamento, tanto de Ego, que teria entrado na casa sem o
consentimento do zelador e se apropriado de um bem que não lhe pertencia, quanto do
zelador, que deixa de considerar Ego “amigo” e passa considerá-lo “ladrão”, “traidor”.
Em oposição à antropomorfização do cão, também podemos notar que o
zelador passa por um processo de desumanização ao longo da narrativa. A isotopia figurativa
“Julgava, mesmo, uma ocupação inútil, pensar no passado ou no futuro”, “[...] o zelador
percebeu que já não se lembrava mais dos sons produzidos pela garganta humana. Não
que isso lhe fosse muito necessário [...]” – registrada no relato da amizade entre os atores – e
“as duas mãos abertas como patas”, “ele era um ser existente” – relatada no tempo presente
do enunciado – indicam a gradativa desumanização do ator-protagonista. No primeiro relato o
zelador demonstra não mais apresentar traços que são exclusivamente humanos, como pensar
e falar. Assim, preocupa-se apenas com o presente, pressupondo a ação por instinto,
característica atribuída a animais irracionais. Além disso, animais irracionais também não
falam e o zelador nem mesmo considera a fala necessária à sua existência. Do ponto de vista
da anatomia humana, conforme se instala o estado de alma deceptivo, que conduzirá o ator-
protagonista pelo dispositivo da cólera até chegar à vingança, o zelador passa a apresentar
traços da estrutura física animal, como patas. Ele também não explicita considerar o descuido
com a porta uma falha humana, mas, sim, uma falha de “um ser existente”, ser que pode ser
humano ou não, deixando a dúvida sobre a natureza de sua fisiologia, já comparada à de um
animal, que tem patas. O ápice dessa desumanização, no entanto, se dá no final da
manifestação patêmica do zelador, que examinaremos adiante.
Considerando a antropomorfização/humanização do cão e a
desumanização/zoomorfização do zelador, esse último mata o Ego regido pela operação de
triagem. Essa operação comporta como significação imanente “a pureza e a separação do
espaço em dois sub-espaços: um espaço reservado às grandezas boas ou benéficas, e um
espaço reservado às grandezas abjetas e vis”, de acordo com Zilberberg (2012, p. 8). Mas, o
zelador não pode ter como companheiro (que ele crê ser humano) aquele que não segue
rigidamente as normas, que não é submisso à moral social, comportamento considerado vil
82
nesse contexto. Desse modo, tal operação de triagem pode ser percebida nas figuras que
representam a transformação do estado patêmico eufórico de amizade para o estado patêmico
disfórico de descontentamento, que converge, como veremos adiante, na paixão de
malevolência da vingança. Essa mesma gradação tensiva também representa a
antropomorfização do cão pelo zelador:
jovem cão cachorro amigo humano (companheiro) ladrão traidor
Notamos, nesse caso, tanto no que concerne à antropomorfização/humanização
de Ego, quanto na transformação dos estados de alma do zelador, uma ruptura da troca entre o
cão, que oferecia companhia e proteção – “Ego chegou em seguida, focinho colhendo cheiros
do chão, e não hesitou em atravessar a ponte em seu trote balançado. O rapaz não esperou
melhor prova de segurança e percorreu o trajeto exatamente por onde passara o amigo”
(BRAFF, 2006, p. 146) – e o zelador, que oferecia cuidado, alimento e afago – “O volume no
bolso da calça era o pão que Ego esperava receber” (BRAFF, 2006, p. 145) –, enquanto eram
amigos. Nessa troca, considerando os pressupostos de Greimas (1993, p. 24), deveria ser
mantido e desenvolvido o vínculo de companheirismo entre os atores, mas o zelador
ressemantiza os seus comportamentos diante dos regulamentos, que não deixa de seguir,
ocasionando o início da transformação na forma de vida submissa até o momento conservada.
Desse modo, ao /não poder ser/ tolerante em relação ao descumprimento das
regras, como observamos no auge do comportamento submisso do ator – “Educado na rigidez
dos regulamentos, o zelador não conhecia a tolerância, vício que aprendera a banir desde
criança” (BRAFF, 2006, p. 159) – o zelador passa a ser intolerante à desobediência. A
sentença do cão à morte, pelo descumprimento das normas sociais, que condenam tanto o
roubo, quanto a presença de animais em lugares fechados – “Ego [...] pertencia ao lado de
fora”, “Os cachorros, em todo o país, estavam proibidos de entrar em restaurantes”,
“Enquanto passava a manteiga no pão, o rapaz refletiu descontente que o mundo era [...] cheio
de barreiras [...]” (BRAFF, 2006, p. 140-145). O zelador condena-o também pelo mal causado
a ele com a transgressão, revelando que a triagem atingiu o seu limite e produziu um valor de
absoluto, que devido a seu caráter exclusivo e concentrado à semelhança da análise do jardim,
feita por Zilberberg (1999, p. 173), refuta qualquer possibilidade de aceitação ao não
cumprimento das normas. Assim, a forma de vida da submissão, predominantemente fechada
à mistura e concentrada, exclui de seu universo a desobediência às normas. Essa operação
pode ser visualizada no gráfico abaixo: (ver Figura 5)
83
Figura 5: Submissão do ator zelador enquanto valor do absoluto
Fonte: Zilberberg (2011, p. 90)
Enfim, quando o zelador renuncia à amizade do cachorro e sai de casa com o
intuito de matá-lo, fazer por ele justificado pela comparação do ato de matar com as tarefas
rotineiras por ele executadas – “Jogou ao ombro o cabo da enxada, [...] como se retornasse à
limpeza do pátio da escola” (BRAFF, 2006, p. 159, grifo nosso) –, faz parecer que mantém a
recorrência comportamental e a permanência da forma de vida da submissão (GREIMAS,
1993, p. 33), visto que, quanto ao cumprimento dos regulamentos e à sequência de seu projeto
de vida, permanece exercendo as suas atividades de trabalhador que não quer ser punido. Ao
comparar a execução do cão (traidor) com a limpeza do pátio, parece crer continuar sendo
rígido no cumprimento das normas da empresa, demonstrada pela isotopia da submissão:
“não ousou reclamar”, “com medo de ver entrando o cachorro, mas principalmente com
medo de que pensassem que era seu”, “Como [...] já tivesse passado o perigo de ser expulso
por comportamento inconveniente”, “Preferiu não acender a luz com medo de acordar
alguém”, “Qualquer atraso ou descontrole era infração que não se admitia”, “Preso [...] à
possibilidade de sobreviver e de executar o que a Zeladoria lhe determinasse, dispensava-se
de qualquer reflexão sobre os significados e as razões”, “Jamais ousara fazer o menor
comentário sobre o que pensava”. Lembramos que essa preocupação com as normas, porém,
não faz parte do universo do cão, que age instintivamente, não entra em lugares fechados para
não ser punido.
Dessa forma, o zelador torna-se desobediente devido à intolerância nele
84
arraigada, como aponta a relação especular entre o zelador e o cão, examinada na sequência.
Verificaremos, ainda, que a desobediência revela um parecer mentiroso ao tentar ser rígido e
deixar de sê-lo devido à desumanização sofrida pela forma de vida da submissão.
3.1.1 A transformação da forma de vida
Outro dado a ser mais detalhadamente investigado no texto e que tem íntima
relação com o comportamento submisso do zelador, com a desumanização do ator e com a
manifestação passional da vingança é o diálogo que o enunciador estabelece com elementos
do discurso psicanalítico. Assim, ao nomear o cão como “Ego”, possibilita-nos um exame
metodológico das relações interdiscursivas “que os textos e os discursos mantêm com aqueles
com que dialogam” (BARROS, 2009, p. 352), nesse contexto, com a psicanálise:
Um método de investigação que consiste essencialmente na evidenciação do
significado inconsciente das palavras, das acções, das produções imaginárias
(sonhos, fantasmas, delírios) de um indivíduo. Este método baseia-se
principalmente nas associações livres26
do indivíduo, que são a garantia da
validade de interpretação (LAPLANCHE; PONTALIS, 1988, p. 495).
Nesse sentido, segundo Freud (1980, p. 23-83) o inconsciente é composto pelas
instâncias psíquicas id, ego e superego. O id desempenha o papel do instinto, onde predomina
o princípio do prazer. O ego é a parte do id que, por influência direta do mundo externo, foi
modificada e, a fim de substituir o princípio do prazer, que no id impera, pelo princípio de
realidade, procura lhe aplicar essa influência do mundo externo. O superego se inscreve no
papel da moralidade, que impõe a proibição ao ego. À medida que “sucumbe à repressão das
coerções sociais (sob a influência do pai, da autoridade, do ensino religioso, da educação
escolar, da leitura)” o superego domina o ego para que aja de acordo com a moral social.
Podemos observar a interdiscursividade, primeiramente, quando o zelador
atribui ao cão, que acaba de conhecer, o nome Ego – “Ego, murmurou o zelador, acariciando
sua cabeça. E o nome não foi uma invenção, mas uma descoberta, porque o jovem cão parou
de pular e, abanando a cauda, olhou com muita simpatia para seu novo amigo” (BRAFF,
26
Entende-se por Associação Livre o “Método que consiste em exprimir indiscriminadamente todos os
pensamentos que acodem ao espírito, quer a partir de um elemento dado (palavra, número, imagem de um sonho,
qualquer representação), quer de forma espontânea” (LAPLANCHE; PONTALIS, 1988, p.71).
85
2006, p. 141) – demonstrando a incorporação da figura de um discurso – o psicanalítico – em
outro – o literário –, conforme Fiorin (1994, p. 32). Assim, tendo em vista que “O ego (...) não
é o lugar da verdade do sujeito, mas imagem que o sujeito faz de si mesmo”, segundo Garcia-
Roza (2001, p. 211), importa considerarmos que o zelador conhece Ego, no dia em que recebe
a Ordem de Serviço e descobre que não foi promovido em razão de sua pouca idade. Por isso,
imediatamente identifica-se com o animal – “Na sua espécie, pensou, é tão jovem quanto eu
na minha” (BRAFF, 2006, p.141). Desse modo, para o zelador, ele e Ego são iguais.
Considerando a alusão ao discurso psicanalítico, observamos, então, que o
zelador projeta sua imagem na figura do ator Ego, uma vez que para ele, fisicamente,
apresentam características semelhantes, como se nota na figura “é tão jovem quanto eu”.
Essa projeção especular também está presente nas relações entre os
companheiros, conforme indiciam as passagens “O zelador nunca soube direito quem
conduzia e quem era conduzido” (BRAFF, 2006, p.142), “Nas diversas viagens que juntos
empreenderam, os dois se complementavam” (BRAFF, 2006, p.141).
Mediante o primeiro acontecimento – o inesperado roubo da carne –, uma
ruptura do contrato imaginário de confiança entre o zelador e o cão se estabelece, na medida
em que o animal, ser irracional que age por instinto e, portanto, não tem consciência da
existência de um contrato – “Nenhum dos episódios que foi tecendo, ao longo do tempo, a
mútua confiança pôde naquele momento valer ao cão” (BRAFF, 2006, p. 159).
Concomitantemente, o zelador, que se vê projetado em Ego – inicialmente considerado
companheiro e amigo –, no auge da amplificação tensiva da manifestação passional, passa a
vê-lo como ladrão, pois crê que Ego descumpriu as exigências da moral social (regulamentos
da empresa e normas sociais).
Em outras palavras, considerando a perspectiva freudiana, o ego não atendeu
aos apelos do superego. Logo, a rigidez do sujeito em relação a Ego e à imagem do que
deveria ser (o ideal do ego) é intensificada, como revela, gradualmente, a isotopia figurativa já
mencionada na página 82, mas que aqui sintetizamos, para fins de melhor entendimento da
análise:
jovem cão cachorro amigo humano (companheiro) ladrão traidor
Nesse momento, prevalece a natureza concessiva da expressão “embora a,
entretanto não b” (ZILBERBERG, 2007, p. 23), ou seja, embora Ego fosse considerado
86
companheiro e amigo, não era autorizado a entrar na casa ou em qualquer ambiente fechado,
destinado a humanos, como exemplifica o excerto: “Ego, apesar de companheiro e amigo,
pertencia ao lado de fora” (BRAFF, 2006, p. 140).
Assim, como no discurso psicanalítico “o ego está numa relação de
dependência quanto às reivindicações do id, bem como quanto aos imperativos do superego e
às exigências da realidade” (LAPLANCHE; PONTALIS, 1988, p. 171), o zelador, na forma
de vida da submissão, não consegue ser tolerante à infração às regras. Infração que acredita
ter sido cometida pelo cão, apesar de o cão, animal irracional, não seguir regras, mas, sim, o
instinto, como já observamos.
Todavia, como o cão – ator que espelha o ego do Zelador – é reflexo da
imagem de seu ego, que é submisso, ou seja, desde muito cedo é dominado pelo superego, o
Zelador torna essa dominação (submissão) ainda mais severa “sob a forma de consciência
(consciente), ou, talvez, de um sentimento de culpa” (FREUD, 1980, p. 49). Dessa forma, a
autonomia relativa do ego, no que se refere à totalidade do sujeito27
, é superada pelo
superego, que reclama uma sanção negativa, como punição ao desrespeito à moral social da
forma de vida do submisso.
O zelador, portanto, não considera que o cão age por instinto e coloca a
moralidade acima do princípio do prazer, presente no id, e do princípio da realidade, que
compete ao ego e é modalizado pelo /dever fazer/ intrínseco ao superego, como adverte o pai
da psicanálise:
Do ponto de vista do controle instintual, da moralidade, pode-se dizer do id
que ele é totalmente amoral; do ego, que se esforça por ser moral, e do
superego que pode ser supermoral e tornar-se então tão cruel quanto somente
o id pode ser. É notável que quanto mais um homem controla a sua
agressividade para com o exterior, mais severo – isto é, agressivo – ele se
torna em seu ideal do ego (FREUD, 1980, p. 70-71).
Por esse motivo, quando o superego do zelador dirige sua vingança contra o
ego, é com “violência impiedosa” – “O zelador tomou o cabo pela extremidade e, com o olho
da enxada, amassou a cabeça entre as duas orelhas” (BRAFF, 2006, p. 160) –, conduzindo o
zelador à anulação do ego – “As quatro pernas apenas estremeceram e o mundo foi coberto
por um lençol de silêncio” (BRAFF, 2006, p. 160) – para que o a moralidade imposta pelo
destinador social o controle totalmente.
Entretanto, embora o tumulto modal do zelador desvele sua completa
27
Segundo Laplanche e Pontalis (1988, p. 171), a autonomia do ego é relativa.
87
submissão às reivindicações do superego, figurativizado pelos regulamentos da empresa e
também pelas normas sociais a que é submisso e que condenam o roubo, o ator-protagonista,
enquanto destinador-julgador, investido do poder aplicar uma sanção ao cão, comete um
crime ao executar o companheiro, ou melhor, o seu ideal de ego. Na cultura ocidental, matar
alguém em razão de uma infração, como o roubo, não constitui norma social. Nem tampouco,
é uma norma de uma instituição corporativa, ou seja, de uma empresa, destinador social
diretamente ligado ao zelador. Nesse sentido, observamos, no texto, o caráter irônico da
excessiva submissão do zelador aos regulamentos, que o leva a infringir a lei – normas sociais
e corporativas – ceifando a vida do Outro.
Por outro lado, no excerto “Não precisou virar a cabeça para ver quem se
aproximava, pois era um passo que conhecia desde sua infância” (BRAFF, 2006, p. 160, grifo
nosso), notamos que a humanização do cão se reitera, figurativizada pelo lexema “infância”,
cuja acepção no Houaiss (2009) é “período do desenvolvimento do ser humano, que vai do
nascimento ao início da adolescência”. Sendo assim, o lexema “infância” comporta o traço
sêmico /humano/, o que revela que Ego no texto é alusão especular ao Ego do próprio
Zelador.
Desse modo, a inesperada execução de Ego, revela a total desumanização do
zelador, que abdica da amizade “quase irredutível”, construída ao longo da história entre os
atores. Esse era o último traço de humanidade do Zelador que já havia se esquecido até do
som da linguagem humana. Por outro lado, o acontecimento do desenlace da narrativa, ou
seja, a execução do cão, seu companheiro e amigo, revela a completa despreocupação do ator-
protagonista com a amizade anteriormente devotada a Ego.
Passamos agora, à reconstituição do acontecimento que desencadeia a
manifestação passional da cólera, que revela a desumanização do ator-protagonista,
ocasionada pela forma de vida da submissão, levando-o à violência contra o outro, o cão Ego,
espelho de seu próprio ego que, dominado pelo superego age com tamanha crueldade com o
outrora companheiro.
3.2 NO SEGUNDO RELATO: DOIS ACONTECIMENTOS
Diante da forma de vida da submissão e da desumanização do zelador e
considerando os conceitos de rotina e acontecimento da perspectiva da semiótica tensiva,
88
vamos considerar o excerto: “O zelador entrou na cozinha empapado de suor e fome e,
quando abriu as duas folhas da veneziana, ficou sendo meio-dia em todo aquele espaço em
que a noite estava escondida” (BRAFF, 2006, p. 139).
Percebemos que ao entrar na casa, antes de abrir a geladeira, o ator-
protagonista encontra-se em estado de relaxamento, seguindo a rotina de trabalhador que faz a
pausa para o almoço – “[...] ficou sendo meio-dia em todo aquele espaço em que a noite
estava escondida” (BRAFF, 2006, p. 139) – para, depois, voltar às suas atividades. Ao
perceber que a geladeira está aberta e sem a carne em seu interior, o zelador é tomado pela
surpresa do sobrevir, “denegando ex abrupto as antecipações da razão” (ZILBERBERG,
2007, p. 18), pois não esperava se deparar com tal cena. Ele passa de um estado desacelerado,
relaxado, anterior à visão da porta da geladeira aberta, para um estado de tensão e de espanto.
Inicialmente, não consegue entender o que está acontecendo: “Num primeiro momento,
pareceu-lhe um cérebro, aquele vão, porque não conseguia organizar uma única idéia”
(BRAFF, 2006, p. 139).
O impacto da ruptura na rotina do sujeito é tão intenso que imediatamente
sente o latejar de suas veias, como evidencia o excerto: “[...] percebeu logo que não era a
geladeira que latejava, com o sangue correndo desesperado” (BRAFF, 2006, p. 139, grifo
nosso). A tonificação cada vez mais acentuada do sentimento de falta do zelador é ilustrada
no eixo da intensidade pelas isotopias figurativas do andamento e da tonicidade. Por isso,
como observamos no trecho em destaque, nesse instante o corpo do zelador começa a
manifestar a intensificação de seu sofrer, figurativizado pelo lexema “sangue”, demonstrando
um andamento acelerado da carga tímica do sujeito, figurativizada pelo lexema “correndo”.
Ao mesmo tempo, o sofrer é acentuado pelo lexema “acelerado”. Dessa forma, o andamento e
a tonicidade, subvalências que constituem a grandeza de intensidade, demonstram a
subtaneidade do choque sofrido pelo zelador ao descobrir o roubo da carne que estava na
geladeira.
Ainda atordoado com o inesperado roubo da carne, procura compreender
claramente a situação – “Apoiou na tampa da mesa as duas mãos abertas como patas,
imaginando que era preciso entender o que acontecera” (BRAFF, 2006, p. 139). Nesse
momento, o acontecimento absorve todo o agir do sujeito estupefato, deixando-lhe apenas o
sofrer, consoante Zilberberg (2011, p. 171).
Tendo em vista a dependência do modo de existência em relação ao modo de
eficiência, diante do sobrevir, ou seja, do roubo da carne, revela-se a apreensão do zelador,
que começa a refletir sobre o que lhe acontecera: “E imaginou. Uma imaginação, quando pega
89
forte o pensamento, pode parecer mais verdadeira do que a verdade. Por isso não teve mais
dúvidas: o culpado era seu companheiro Ego, o cachorro” (BRAFF, 2006, p.139). Em
seguida, o zelador sente notações somáticas, figurativizadas como “suor azedo”, e “fome
aguda” (BRAFF, 2006, p. 140), que revelam uma acentuação tônica da tímia do sujeito. Essas
notações somáticas configuram a relação sinestésica do zelador com o sofrer provocado pelo
acontecimento, manifestada, principalmente por meio da visão (sol, raios, claridade) e do tato
(fome aguda, sol quente).
É importante ressaltar que, conforme Greimas (2002, p. 85), a sensação tátil é a
sensação mais profunda quando se trata do desenvolvimento das paixões do “corpo” e da
“alma”. Essa sensação parece antecipar, como veremos a seguir, o tumulto modal que
desencadeará o dispositivo da cólera.
Ao se lembrar de que esquecera a porta da casa aberta – “Não se lembrava de
ter tido muito cuidado com a porta naquela manhã quando saiu para o trabalho. [...] Ao fechar
a porta da geladeira, talvez não tivesse tido o cuidado suficiente” (BRAFF, 2006, p.140) –, o
zelador se dá conta de que o episódio o privará do objeto-valor almejado e manifesta uma
crise de confiança conforme acredita que fora traído pelo amigo: “Acontece. Isso, contudo,
não era motivo para ter sofrido uma tal traição” (BRAFF, 2006, p. 140).
Do ponto de vista concessivo,(Zilberberg ¸2011, p. 176-177), o zelador conclui
que o cão realizou um programa, até o momento, julgado, por ele, irrealizável, pois Ego
pertencia ao lado de fora e, mesmo assim, poderia ter entrado na casa, como observamos no
fragmento:
O entendimento foi muito claro porque a janela permitia a comunicação
entre o que estava dentro de casa com o mundo de fora, inclusive aquela
claridade do sol por onde descia a imaginação. E Ego, apesar de
companheiro e amigo, pertencia ao lado de fora (BRAFF, 2006, p. 139-140).
O andamento fica mais intenso, como se nota na isotopia figurativa: “sangue
correndo desesperado”, “suor que manchava de azul escuro vastas áreas de sua camisa
azul”, “dança refulgente e frenética”, “raios vivos que se agitavam no ar”, “as folhas da
veneziana, que bateram”. Nesse aspecto, propicia a ascendência da tensão, ou seja, o
crescimento progressivo da carga tímica do sujeito (FONTANILLE, 2012, p. 113-114). Nessa
mesma isotopia figurativa, a tonicidade é figurativizada pelos lexemas “desesperado”, “[raios]
vivos”, “refulgente” e “frenética”. A isotopia figurativa da acentuação tônica da carga tímica
do zelador é ainda composta pelas figuras “traição”, “irritado”, “ruído seco”, “ladrão”, “sol
90
claro e quente”, “claridade intensa”, que provocam desorientação modal no sujeito e falta de
atitude, pois o zelador apaga a luz e volta a se sentar (BRAFF, 2006, p. 144).
No campo de presença do zelador, a ação de sentar-se parece desembocar na
atenuação do acontecimento, mas o sujeito, ainda tomado pela apreensão, reatualiza o desejo
de conjunção com a promoção – “O principal problema relacionado àquele roubo era sua
promoção. [...] Com um pedido antecipado de alimento, ele sabia, adeus qualquer esperança
de passar à Classe C” (BRAFF, 2006, p. 143).
Nesse momento, ainda marcado pelo que lhe sobreveio, o zelador passa a se
preocupar com as consequências daquilo que vivenciou (ZILBERBERG, 2007, p. 22) – “O
futuro era uma névoa só em que tinha engolfado sua vida” (BRAFF, 2006, p. 144). Em
seguida, ocorre uma desaceleração do sofrer do sujeito, que retoma a atitude absorvida pelo
acontecimento à medida que começa a refletir sobre a melhor atitude a ser tomada diante da
situação – “[...] talvez agora conseguisse descobrir qual a melhor atitude” (BRAFF, 2006, p.
144).
No que diz respeito à grandeza de extensidade, a intensidade da carga tímica do
zelador começa a enfraquecer à proporção que, na valência de extensidade, o tempo até o
momento suspenso – “Não se lembrava de ter tido muito cuidado com a porta naquela manhã
[...]” (BRAFF, 2006, p. 140) – volta a existir – “De repente, teve uma idéia como quem
recebe uma pancada na cabeça” (BRAFF, 2006, p. 155, grifo nosso).
Simultaneamente, no espaço fechado da cozinha, o sujeito primeiro se
preocupa com o vazio dentro da geladeira – “Um vazio iluminado com reflexos nas paredes
de esmalte branco” (BRAFF, 2006, p. 139) –, depois precisa apoiar as mãos na mesa para
compreender o que se passara e, por fim, afasta uma cadeira e se senta à mesa, “[...] como
estivesse muito confuso” (BRAFF, 2006, p. 140, grifo nosso).
Essa isotopia figurativa que gradualmente conduz o sujeito à imobilidade –
“vazio”, “apoiou” e “sentou-se” revela a petrificação do espaço (GREIMAS, 2002, p. 25- 26),
ocasionada pelo inesperado roubo da carne. Conforme o sofrer do zelador vai desacelerando,
a mobilidade do sujeito é recuperada – “Levantou-se e foi até a pia [...] Ao passar de volta
pela janela, empurrou irritado as folhas da veneziana [...] Onde andaria o ladrão? Perguntava
seu olhar, que se perdeu nos dois sentidos da rua” (BRAFF, 2006, p. 144, grifo nosso).
Entretanto, o sujeito continua sofrendo, atordoado e torna a sentar-se (BRAFF, 2006, p. 144).
Observamos, no que concerne à espacialidade, que o zelador somente se recupera do
arrebatamento causado pelo sobrevir, quando se convence de que precisa agir. Nesse
momento, a apreensão dá lugar à focalização, como caracteriza Zilberberg (2007, p. 22),
91
motivo pelo qual o sujeito se levanta e abre a porta (BRAFF, 2006, p. 155). Como nesse
momento o zelador se converte em um sujeito operador, ele antecipa a realização de um
programa de junção – disjunção com a amizade de Ego, de que trataremos à medida que
desenvolvermos a sequência passional da cólera: “Então, levantou-se de si, sem uma solução
nítida; convencido, contudo, de que fazia parte de suas obrigações uma atitude violenta. Abriu
a porta e apagou a luz” (BRAFF, 2006, p. 155).
Na tabela abaixo, apresentamos as isotopias figurativas das subvalências
tensivas imanentes ao acontecimento “roubo da carne”, que dá início a manifestação patêmica
da cólera: (ver Tabela 2)
Tabela 2- Isotopias figurativas das subvalências tensivas VALÊNCIAS
SUBVALÊNCIAS
INTENSIDADE EXTENSIDADE
Andamento
(acelerado)
correndo, suor que manchava de
azul escuro, dança, agitavam -
Tonicidade
(acentuada)
desesperado, vastas áreas,
refulgente e frenética, raios vivos,
azedo, aguda, traição, irritado,
ruído seco, sol claro e quente,
ladrão, claridade intensa
-
Temporalidade - Nula
Espacialidade - Fechado (casa - cozinha)
Fonte: Elaborado pela autora.
Vemos, pois, que este estado de admiração, que é o acontecimento,
figurativizado nesse conto pelo roubo da carne, é finito e breve. Assim, à medida que a carga
tímica do zelador, afetado pelo inesperado, começa a enfraquecer – a intensidade do sofrer
esmaece, conforme o tempo e o espaço voltam a existir –, o sujeito pode retornar à atitude
temporariamente interrompida pelo acontecimento (ZILBERBERG, 2011, p. 171-177).
Assim, atualizando o desejo de ser promovido, mas sabendo não mais poder ser promovido,
em razão do roubo da carne empreendido por Ego, o zelador é tomado pela paixão da cólera.
92
3.3 O PERCURSO PASSIONAL DO ZELADOR
Inscrito em torno das transformações narrativas, consoante Bertrand (2003, p.
361), o espaço passional de “O zelador” relaciona-se ao desejo do sujeito de entrar em
conjunção com a promoção. Esse espaço está discursivizado no clímax do conto. Nele, são
explorados os estados de alma do zelador, desumanizado pela forma de vida da submissão.
Notamos que o espaço passional, grafado em itálico no texto, ocupa posição de
destaque na narrativa, pois revela as consequências da desumanização do sujeito submisso.
De acordo com Nascimento e Abriata (2008, p. 299-308) “A coexistência de sujeitos de
diferentes ordens que ora agem, ora são conduzidos pela razão, ora se deixam levar pelo
corpo, instala, na narrativa, momentos de relaxamento, onde a paixão ou o afeto predominam,
e de tensão, em que a cólera explode”, como observamos no conto em exame. Nessa
perspectiva, a amizade é instalada nos momentos de relaxamento, anteriores à tensão
precipitada pelo acontecimento.
Considerando, pois, a modalização do ser do zelador, que deseja a conjunção
com o objeto-valor promoção, no conto, o estado patêmico de tensão do sujeito inicia-se com
o enfraquecimento de seu sofrer, frente ao acontecimento, uma vez que é estabelecida a
atualização de seu desejo de entrar em conjunção com a promoção. Em outras palavras, com a
revelação da quebra do contrato fiduciário operada por Ego, a tensividade fórica do zelador é
manifestada, em consonância com o dispositivo da cólera, desenvolvido por Fontanille (2005,
p. 63).
A gradação tensiva do sofrer do sujeito, associada ao desenvolvimento da
sequência canônica da cólera, conduz a manifestação passional ao desmembramento em uma
fase intermediária, a vingança, de acordo com Fontanille (2005, p. 66). Nesse sentido,
também analisamos essa paixão, observando as modulações tensivas de intensidade e de
extensidade que, de acordo com o semioticista (FONTANILLE, 2007, p. 204), conduzem a
transformação passional em cada fase do dispositivo da cólera.
3.3.1 O percurso da cólera
A situação inicial do percurso passional do zelador desenvolve-se a partir do
93
estado de relaxamento, de confiança no sujeito Ego, seu companheiro e amigo, como revela o
excerto: “Permitir que o sono, abruptamente cortado naquela madrugada, aos poucos voltasse,
entorpecendo-lhe os membros e apagando-lhe a vontade, isso já havia sido uma demonstração
cabal de sua confiança em Ego” (BRAFF, 2006, p. 148).
Essa confiança, de acordo com Fontanille (2005, p.64), é estabelecida na
relação entre ao menos dois sujeitos e pressupõe um estado de crença de alguém. Lembremos
que, o zelador crê que pode entrar em conjunção com o objeto-valor, a promoção, devido a
seu desempenho impecável e à possibilidade de promoção por tempo de serviço, consoante o
regulamento – “Seu tempo de serviço na Zeladoria, segundo o regulamento, autorizava-o a
nutrir tal aspiração” (BRAFF, 2006, p. 143).
Percebemos que a confiança na empresa é contratual, instalada de maneira
formal na narrativa, por meio dos regulamentos da Zeladoria, a que o zelador é submisso.
Nesse sentido, é explicitada nos regulamentos corporativos e nos relatórios elogiosos da
empresa para a qual o zelador trabalha – “Foi citado diversas vezes em relatórios da empresa
[...]” (BRAFF, 2006, p.140). A confiança depositada em Ego, no entanto, é uma confiança
informal, afetiva, estabelecida, no enunciado, à medida que os sujeitos, Ego e zelador,
manifestam o estado patêmico de amizade.
Mas, apesar da confiança depositada nos sujeitos com quem estabeleceu o
contrato fiduciário, o zelador não tem absoluta certeza de que a conjunção desejada com o
objeto valor promoção se realizará, como observamos nos excertos: “Seu antecessor fora um
velho funcionário da Zeladoria, que jamais conseguira passar da Classe D” (BRAFF, 2006, p.
141) e “Seu tempo de serviço na Zeladoria, segundo o regulamento autorizava-o a nutrir tal
aspiração” (BRAFF, 2006, p. 143).
Nesse último fragmento, o lexema “autorizava”, cuja acepção no Houaiss
(2009) pode ser “dar direito a” ou “dar motivo a” evidencia que o tempo de serviço do zelador
poderia ser um critério para a Zeladoria promovê-lo, mas não fator determinante para que isso
ocorresse. Por isso, ele espera pela realização, pela conjunção com o objeto, contando com a
ação do sujeito empregador, conforme continua a exercer suas atividades – “[...] realizando
cada tarefa com esmero, empenhando-se nos mínimos detalhes para merecer uma promoção”
(BRAFF, 2006, p. 156).
Por sua vez, estabelece um contrato imaginário com Ego, na medida em que
fica pressuposto que o cachorro, sendo companheiro e amigo, isto é, humanizado, não o
impedirá de conquistar a promoção, já que “Nas viagens que juntos empreenderam, os dois se
complementavam” (BRAFF, 2006, p.157).
94
No momento em que o zelador percebe o roubo da carne – “E era um vazio o
que estava lá dentro” (BRAFF, 2006, p. 139) –, imediatamente conclui que o responsável só
pode ser Ego: “[...] não teve mais dúvidas: o culpado era seu companheiro Ego, o cachorro”
(BRAFF, 2006, p. 139). Sujeito cognitivo, o zelador sabe que o roubo da carne não foi
premeditado – “O cachorro, sem auxílio de algum acaso, nada conseguiria [...] devia ter
encontrado alguma facilidade” (BRAFF, 2006, p. 140). Essa constatação, todavia, não impede
a instalação de uma tensão na narrativa, pois o zelador, ao antropomorfizar/humanizar Ego
desconsidera que o cão é um animal e, portanto, irracional, que age por instinto. Por isso é
reativado o /querer/ entrar em conjunção com o objeto-valor desejado: “O principal problema
relacionado àquele roubo era sua promoção” (BRAFF, 2006, p. 143, grifo nosso). O lexema
“problema”, também definido no Houaiss (2009) como “situação difícil; conflito emocional”,
figurativiza a acentuação da carga tímica do sujeito e agrava o tumulto modal provocado pelo
acontecimento inicial.
Diante do acontecimento – roubo da carne –, à proporção que o sobrevir é
potencializado, restando apenas a lembrança do que acontecera ao sujeito admirado, para que
ele possa restabelecer sua rotina, ou seja, voltar a agir (cf. ZILBERBERG, 2007, p. 22), surge
a frustração. Nesse instante, a promessa de conjunção anterior – conjunção com a promoção –
é reatualizada. O sujeito que /quer ser conjunto/ se dá conta de que o programa narrativo que
ele esperava ser realizado por Ego – não entrar na casa – não se realizou e que aquele a ser
realizado pela empresa não se realizará: “[...] Com um pedido antecipado de alimento, ele
sabia, adeus qualquer esperança de passar à Classe C” (BRAFF, 2006, p.143). Assim, a falta
fiduciária é, pois, instaurada “sobre o fundo da confiança e da espera irrealizadas”
(FONTANILLE, 2005, p. 64).
O trecho “As vilas onde trabalharia seriam do mesmo nível da atual, que não
era diferente das anteriores. Muito distantes, malcuidadas, em regiões inóspitas” (BRAFF,
2006, p.143) acentua ainda mais a tensão provocada pela frustração do zelador, agora certo de
que não será promovido, como sempre desejara.
Conforme o corpo sensível do zelador é tomado pela decepção, provocada pela
frustração, surge o descontentamento, que Fontanille (2005, p. 65) afirma ocorrer quando o
sujeito compara o estado inicial de espera e o estado final. Desse modo, mais uma vez instala-
se na narrativa a discordância entre o direito e o fato, que constitui a concessão, pois o zelador
esperava ser promovido e deixar de cuidar de vilas como aquela onde estava, mas, com o
roubo da carne, continuaria trabalhando em vilas do mesmo nível que aquela. Diante desse
fato, considera o estado final da espera insatisfatório: “O futuro era agora uma névoa só em
95
que tinha engolfado sua vida” (BRAFF, 2006, p.144).
Nesse momento, sente a raiva somatizada em seu corpo – “Magoados pela
claridade intensa, seus olhos desviaram-se para dentro da cozinha” (BRAFF, 2006, p. 144).
Como nessa fase da sequência passional da cólera, o descontentamento é direcionado a algum
outro, que pode estar implicado na situação, ou ser, até mesmo, um “si mesmo” com o qual se
contava para a realização da conjunção esperada (FONTANILLE, 2005, p. 65), o zelador
demonstra a frustração com aquele até então considerado amigo, direcionando o seu
descontentamento a Ego, por meio de uma mudança na imagem que tem do cão – “Onde
andaria o ladrão?” (BRAFF, 2006, p. 144). Novamente, a tensão é intensificada, agora pelo
lexema “ladrão”, que qualifica negativamente o cão, desobediente aos regulamentos do bem
conviver entre homens e animais, aos quais o zelador também é submisso. Ao considerar
aquele que até o momento era companheiro e amigo, um ladrão, se acentua de forma mais
intensa a carga tímica do sujeito patemizado pela decepção.
O zelador também revela seu estado de descontentamento consigo mesmo,
enquanto destinador do cão, ao ser surpreendido por um novo acontecimento: a constatação
de que deixou de ser zeloso, ou seja, foi descuidado e possibilitou o fazer do cão:
Ele sempre nutriu um orgulho que chegava a ser mórbido por ser zeloso com
tudo. Foi citado diversas vezes em relatórios da empresa por essa razão: a
causa de seu orgulho. Mas não existe um único ser perfeito [...] Também não
era. Ao fechar a porta da geladeira, talvez não tivesse tido o cuidado
suficiente (BRAFF, 2006, p.140)
Além disso, submisso aos regulamentos, deveria assumir publicamente que
fora descuidado, passando a ser desmerecedor da promoção desejada, apesar da dedicação ao
trabalho empreendida:
[...] era forçoso, de acordo com os regulamentos, que registrasse o fato em
seu próximo relatório. E não era pouco ter de confessar um descuido, para
ele, que há anos, vinha realizando cada tarefa com esmero, empenhando-se
nos mínimos detalhes para merecer uma promoção (BRAFF, 2006, p. 156,
grifos nossos)
Esse estado deceptivo é intensificado pela isotopia figurativa destacada no
excerto anterior: “forçoso”, “ter de confessar” e “há anos”. Indicando que a carga tímica do
sujeito está chegando ao ápice da gradação tensiva do dispositivo da cólera.
Na fase da agressividade, o zelador se endereça àquele que não honrou a
promessa, nesse caso, uma promessa que existe apenas na imaginação do sujeito visto que,
96
apesar de ter sido humanizado pelo zelador, Ego é um animal, é, portanto, é irracional:
“Então, levantou-se de si, sem uma idéia muito nítida; convencido, contudo
de que fazia parte de suas obrigações uma atitude violenta. [...] Quase
tropeçou no cabo da enxada com que estivera trabalhando pela manhã, e
que se escorava na parede do galpão. Foi então que a idéia explodiu num
clarão em sua cabeça” (BRAFF, 2006, p. 155-156, grifos nossos).
O símile “a idéia explodiu num clarão” revela que o dispositivo da cólera
atingiu o auge de sua gradação tensiva, que se inicia com um mínimo de intensidade e uma
fraca extensão, na fase da confiança, e chega a uma tensão máxima na agressividade. Nessa
perspectiva, apresentamos, no gráfico abaixo, o recrudescimento da carga tímica do zelador a
cada fase do percurso passional, conforme esquema de amplificação desenvolvido por
Fontanille (2012, p.112-115):
Figura 6: Amplificação tensiva do percurso passional da cólera do sujeito zelador
Fonte: Fontanille (2012, p.112)
Nesse momento do percurso, não acontece a explosão da cólera. Como vemos
no excerto acima, embora a carga tímica do zelador, gradativamente mais desumanizado pela
forma de vida submissa, esteja intensificada, nas passagens em destaque há uma reflexão
sobre o dano sofrido, sobre a necessidade de reagir à ofensa sofrida, peculiar ao programa
narrativo de vingança (GREIMAS, 1983, p. 237-246). Por isso, sendo essa paixão uma
97
variante da agressividade que surge no lugar da explosão da cólera, (cf. FONTANILLE, 2005,
p. 74), observaremos a continuidade do percurso passional do zelador, agora patemizado pela
vingança.
3.3.2 A execução da vingança
Manifestação unilateral da ruptura de confiança, (cf. FONTANILLE, 2005, p.
74-78), a fase da agressividade faz irromper o desejo de vingança no zelador patemizado pelo
intenso sofrer provocado por essa ruptura. Certo de que a performance do cão deve ser
punida, tendo em vista o princípio de reciprocidade dos danos, o sujeito é dotado de um
/poder fazer/ emergente que sempre se manifesta nessa fase – “[...] fazia parte de suas
obrigações uma atitude violenta” (BRAFF, 2006, p. 155).
Dessa forma, o zelador desenvolve um programa de retaliação contra o
antissujeito: “[...] teve uma idéia como quem recebe uma pancada na cabeça” / “Foi então que
a idéia explodiu num clarão em sua cabeça” (BRAFF, 2006, p. 155-156).
Isso ocorre porque à modalização pelo /poder fazer/, na fase da agressividade,
se relaciona um /dever fazer/, mediante o fato de o zelador ter sido “educado na rigidez dos
regulamentos” e, por isso, não conhecer “[...] a tolerância, vício que aprendera a banir de sua
vida desde criança” (BRAFF, 2006, p. 159).
Desse modo, a ideia “explode em sua cabeça”, revelando a intensificação da
carga tímica do sujeito que /quer ser/ conjunto do objeto-valor promoção, apesar de ter
descoberto que continuará disjunto dele. Assim, quando o zelador tropeça na enxada, decide
executar um programa narrativo de fazer. Nesse programa narrativo, o zelador, dotado das
competências do /saber fazer/ e do /poder fazer/ joga “[...] ao ombro o cabo da enxada [...]
como se retornasse à limpeza do pátio da escola” (BRAFF, 2006, p. 159, grifos nossos) e
percorre a rua à procura do antissujeito. Logo encontra o cão, agora metaforicamente
figurativizado como “[...] mancha cor de banana madura, imensa e imóvel” (BRAFF, 2006,
p. 159, grifo nosso). Notamos que os lexemas “limpeza” e “mancha” fazem parte da isotopia
da limpeza, ou melhor, da isotopia da atividade de zelador, que deve cuidar da manutenção da
vila, cuidado que exige remover a sujeira (a “mancha”) do espaço físico daquele ambiente.
Essa isotopia também pertence ao espaço passional do zelador, que agora vê o cão como
empecilho para obtenção do objeto-valor.
98
Quanto ao lexema “retornasse”, grifado no excerto supracitado, notamos que
faz parte do parecer manter a forma de vida da submissão aos regulamentos da empresa.
Dessa forma, o sujeito passional volta a ser sujeito operador e, visando à vingança (reparação
do dano causado pelo cão), realiza o fazer planejado após tropeçar no cabo da enxada e uma
ideia explodir em sua cabeça: subtrai a vida do “traidor” (Ego), como demonstra o excerto “O
zelador tomou o cabo pela extremidade e, com o olho da enxada, amassou a cabeça entre as
duas orelhas” (BRAFF, 2006, p. 160).
Do ponto de vista tensivo, o zelador tem a carga tímica gradativamente
intensificada pelo plano de vingança. A decepção do sujeito, já é intensa quando resolve
procurar o cão para puni-lo – “Sua primeira idéia foi a de voltar para a frente da casa e
percorrer a rua de uma ponta à outra” (BRAFF, 2006, p. 159). Mas, esse estado deceptivo é
recrudescido quando o zelador encontra o cão, que acabara de enterrar a carne roubada –
“Lambia as patas dianteiras, o cão, provavelmente lavando-as depois do trabalho terminando”
(BRAFF, 2006, p. 160). O aniquilamento do animal, que tem a cabeça amassada por uma
enxada, configura não somente um novo acontecimento, mas, principalmente, o ponto
máximo da acentuação tônica da carga tímica do sujeito.
Pragmaticamente, com a morte de Ego, temos no enunciado um sujeito
competente, que executa um programa narrativo de afirmação de si e de destruição do outro
(GREIMAS, 1983, p. 245-246).
Com base nesse panorama, executada a vingança, fica completo o esquema de
amplificação apresentado na página 96, figura 6. Esse gráfico figurativiza a intensificação da
carga tímica do zelador, agora totalmente desumanizado pela forma de vida da submissão aos
regulamentos da empresa e pela vingança empreendida contra Ego: (ver Figura 7)
99
Figura 7: Desdobramento da amplificação tensiva do percurso passional da cólera do zelador
na paixão da vingança
Fonte: Fontanille (2012, p. 112)
Após a morte de Ego, ocorre a desaceleração das tensões – “[...] o mundo foi
encoberto por um lençol de silêncio” (BRAFF, 2006, p. 160) – até chegarem ao
enfraquecimento mínimo, como observamos no excerto “Aproveitando a terra fofa da cova
recém-fechada, o zelador enterrou o cão por cima de sua comida” (BRAFF, 2006, p. 160,
grifo nosso). O lexema “enterrou” figurativiza um aspecto temporal acabado da vingança do
zelador, e consequente redução da extensão. Essa atenuação do discurso pode ser observada
no gráfico abaixo: (ver Figura 8)
100
Figura 8: Atenuação da carga tímica do zelador após execução da vingança
Fonte: Fontanille (2012, p. 112)
Enfim, como vemos na figura 8, com o enfraquecimento da intensidade da
carga tímica do zelador, instala-se um momento de relaxamento do sujeito. Porém, parece que
o zelador já não manifesta qualquer estado de alma, em conformidade com a desumanização
suscitada na forma de vida da submissão.
Os percursos do fazer e do ser dos sujeitos revelam que o ator protagonista
privilegia a violência contra o Outro, figurativizada pela execução do cão Ego, tendo em vista
que a performance do cão o levaria à privação de valores aos quais acreditava ter direito.
Ironicamente temos, portanto, o mau êxito do sujeito zelador, enquanto representante de uma
classe social que tem aspirações de ascender socialmente, de melhorar suas condições de vida
e de trabalho, não conseguindo, apesar dos esforços, operar com sucesso essa mudança.
Outrossim, convém ressaltar a ironia presente no título do texto: “O Zelador”.
A figura lexemática “zelador” é definida no Houaiss (2009) como “aquele que zela, cuida ou
vigia”. No mesmo dicionário, o lexema “zelar” é definido como “ter zelo por; vigiar, proteger,
tomar conta de (alguém ou algo) com toda a atenção, cuidado e interesse; velar”, função
desempenhada pelo zelador antes da amizade com Ego ser abalada. Em outra acepção, o
lexema “zelar” é tido como “interessar-se por, administrar, defender ou tratar de (algo) com
empenho”, atividade exercida com esmero pelo zelador antes de ser tomado pela cólera.
Todavia, no decorrer de seu percurso passional o sujeito zelador deixa de cuidar da vila com o
cuidado que sempre tivera e passa à condição de algoz do amigo Ego, matando-o ao invés de
zelar pela paixão da amizade que entre eles imperava.
101
Esse final aparentemente trágico da relação de amizade entre os atores zelador
e Ego demonstra, também de forma irônica, a desumanização do ator-protagonista na medida
em que menospreza a amizade ao se sentir frustrado na sua ambição de atingir a tão esperada
promoção social.
Nesse sentido, a paixão da cólera induz o zelador à crueldade contra Ego, o
que revela uma supervalorização das aspirações sociais em detrimento da necessidade de
relações afetivas, inerentes à natureza humana.
102
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Procuramos, em nossa pesquisa, por meio do referencial teórico da semiótica
francesa, analisar os textos “O gorro do andarilho” e “O zelador”. Comprovamos a nossa
hipótese de que determinados acontecimentos provocam uma tensão na relação dos atores-
protagonistas com o Outro, pois, assumindo formas de vida que os desumanizam, são levados
a se encolerizar e se vingar contra as atitudes desse Outro que se associam a outros
acontecimentos. Desse modo, verificamos como ocorre a tensivização das paixões
manifestadas nos textos, de que modo acontecimentos irrompem no desenlace das narrativas e
comprovamos que esses acontecimentos se associam às formas de vida dos atores-
protagonistas.
Conforme tensivizamos as paixões de malevolência que se manifestam nos
textos em análise, com base nas perspectivas de Zilberberg, de Fontanille e de Greimas,
observamos em ambos os contos, os mesmos elementos do dispositivo da cólera e da
vingança. Percebemos que cada fase do percurso passional é desencadeada, nos textos, a
partir de um pequeno acontecimento, ou seja, do inesperado. Tornou-se, por isso, inevitável
aplicarmos a noção de acontecimento, como concebe a semiótica tensiva, que engloba em seu
cerne as grandezas de intensidade e de extensidade, e os modos semióticos. Identificamos
também que, nos contos, a intensificação da manifestação passional conduz os atores-
protagonistas a realizarem um grande acontecimento à medida que seus estados de alma
recrudescem.
Nesse sentido, mediante a desumanização imposta pelas formas de vida
vivenciadas pelos atores-protagonistas, observamos que a supervalorização das aspirações
pessoais leva-os ao apagamento da necessidade de relações afetivas.
Do ponto de vista metodológico, antes de identificarmos os desdobramentos
dos estados de alma dos sujeitos Andarilho e Zelador, descrevemos a constituição de formas
de vida que os desumanizam, tornando-os violentos e incapazes de manter relações afetivas.
Os estados de alma dos atores são analisados em relação a essas formas de vida. Por isso,
buscamos demonstrar como as manifestações passionais são ativadas por acontecimentos
incompatíveis com as formas de vida reveladas nos textos (submissão e indigência).
103
Nesse panorama, os acontecimentos patemizam os atores-protagonistas com
tamanha intensidade tímica que depois de sua irrupção, ao final do percurso passional,
desumanizados, ao encararem a violência contra o Outro de forma natural, observamos que
ocorre um processo de arrefecimento de sua carga tensiva.
Desenvolvemos as análises observando primeiramente, como os atores-
protagonistas (Andarilho e zelador) manifestam as formas de vida da indigência e da
submissão. Nessas formas de vida, os atores-protagonistas assumem o papel temático do
andarilho e do trabalhador, respectivamente.
Observamos nas análises, que embora o Andarilho e o zelador tenham revelado
um processo de desumanização relacionado a suas formas de vida, enquanto estavam
relaxados e movidos pela razão, manifestaram estados de alma de benevolência, como a
amizade e o companheirismo. Mas, afetados pelos acontecimentos, que neles provocaram um
tumulto modal entre o /querer/ e o /não-poder/ estar conjuntos de seus objetos de valor, se
tornaram tensos e patemizados pela cólera.
Em “O gorro do andarilho”, o acontecimento irrompe quando o sujeito está
dormindo, desacelerado, e, ao acordar, percebe que está sem o gorro. Ele passa a sentir frio,
que sobe de seu estômago e inunda a sua boca de um gosto amargo. Os lexemas “subir” e
“inundar” indicam a aceleração do sofrer do sujeito, enquanto “frio” e “náusea” tonificam
esse sofrer. Em “O zelador”, o sujeito também passa de um estado desacelerado, anterior à
visão da porta da geladeira aberta, ao entrar na casa, para um andamento mais intenso já que
não consegue entender o que está acontecendo “num primeiro momento”, mas “logo”
recupera o entendimento de que sua provisão de carne fora roubada por Ego.
Concomitantemente a geladeira “lateja” e seu sangue corre desesperado, figuras que revelam
a acentuação da tonicidade da carga tímica.
Nos dois textos, os sujeitos ficam desnorteados e, parados no tempo, sentem
notações somáticas (GREIMAS, 2002, p. 35-36), destacadas pelas isotopias figurativas: “frio
antigo”, “náusea gelada”, “estômago cheio” – em “O gorro do andarilho” – e “sangue
desesperado”, “sangue gelado”, “náusea”, “mãos trêmulas” – em “O zelador”.
Frente ao acontecimento, o andarilho se lembra do frio que já sentiu e do calor
que o gorro passou a lhe proporcionar. Já o zelador pensa na promoção que não conseguirá
em razão do descuido que permitiu ao cão roubar-lhe a carne. Tais lembranças ainda ativam,
nos sujeitos estupefatos, a natureza concessiva do acontecimento, de que embora não
parecesse possível serem roubados pelos companheiros, o roubo aconteceu. Esse estado de
admiração é finito, pois a carga tímica enfraquece com a potencialização, possibilitando aos
104
sujeitos o retorno à atitude momentaneamente suspensa pelo acontecimento (ZILBERBERG,
2011, p. 177), ou seja, o andarilho atualiza o desejo de continuar aquecido e, o zelador, de ser
promovido.
Na atualização do devir inicia-se a crise de confiança estabelecida pela quebra
do contrato fiduciário entre Andarilho e Gordo, zelador e Ego. O zelador confiara na
possibilidade de ser promovido e o Andarilho, de não ser roubado. Na fase da espera, o
Andarilho crê na devolução do objeto pelo antissujeito, e o zelador continua aguardando a
promoção a que acredita ter direito. Entretanto, o zelador constata que o acontecimento o
privará da promoção, já que deixou de ser zeloso, o que o frustra. O Andarilho reatualiza o
desejo de conjunção e começa a provar a privação do gorro por meio dos sentidos. O zelador
sente o sangue azedo, e a voz do Andarilho fica trêmula. No descontentamento, confrontam o
que esperavam dos companheiros e o que os antissujeitos realizaram, e ficam insatisfeitos
com o a inadequação das ações do Gordo e de Ego. Isso torna a percepção sobre os
companheiros negativa: Ego volta ser chamado de cão e o Andarilho revela sentir ojeriza pelo
Gordo. Na agressividade, os sujeitos se voltam contra o antissujeito – no caso do Andarilho,
que revela não gostar do Gordo – ou contra os objetos – no caso do zelador, que usa força
desmedida para fechar a janela da casa.
Como a explosão da cólera não ocorre, os sujeitos buscam, com a vingança,
uma reparação do dano, ou seja, tentam infligir o sofrimento aos antissujeitos: o zelador
amassa a cabeça do cão com a enxada, e o Andarilho racha a cabeça do outro com uma pedra.
Depois, o primeiro, como forma de manter a rigidez dos regulamentos aos quais sempre se
submetera, enterra o cão sobre a carne roubada. O segundo volta a caminhar, aquecido pelo
gorro recuperado, como se nada tivesse acontecido. As isotopias figurativas do dispositivo da
cólera podem ser melhor observadas no quadro abaixo: (ver Tabela 3)
105
Tabela 3 – Isotopias figurativas das fases da cólera
FASES DA
CÓLERA O GORRO DO ANDARILHO O ZELADOR
Confiança
“[...] não era a primeira vez que
partilhava com ele seu almoço
debaixo daquela mesma
gameleira” (BRAFF, 2006, p.
127-128)
“Permitir que o sono, [...], aos
poucos voltasse, entorpecendo-
lhe os membros e apagando-
lhe a vontade, isso já havia
sido uma demonstração cabal
de sua confiança em Ego”
(BRAFF, 2006, p. 148)
Espera
“Então pediu uma primeira vez,
a mão teimosa estendida”
(BRAFF, 2006, p. 127).
“Nas viagens que juntos
empreenderam, os dois se
complementavam” (BRAFF,
2006, p.157)
Frustração
“Me dá! Houve uma leve
alteração na voz envelhecida
que, [...] deixava de ser um
pedido, quase um apelo
impotente, para se tornar uma
exigência” (BRAFF, 2006, p.
129)
“O futuro era agora uma névoa
só em que tinha engolfado sua
vida” (BRAFF, 2006, p.144)
Descontentamento
“Pois, apesar da ojeriza pelo
companheiro, não era a primeira
vez que partilhava com ele seu
almoço debaixo daquela mesma
gameleira” (BRAFF, 2006, p.
127-128)
“Onde andaria o ladrão?”
(BRAFF, 2006, p. 144)
Agressividade “Não gostava do Gordo [...] Não
gostava” (BRAFF, 2006, p. 127)
“fazia parte de suas obrigações
uma atitude violenta”
(BRAFF, 2006, p. 155)
Explosão da cólera - -
Fonte: Elaborado pela autora.
Conforme a carga tímica desses atores se intensifica, a transformação do
106
estado humano para o estado desumano se cristaliza. Em uma tentativa de serem racionais
e reivindicarem o ressarcimento pelos danos a eles causados pelos companheiros, Gordo e
Ego, desenvolvem programas de vingança e agridem fisicamente os antissujeitos. Nesses
programas, pragmaticamente, os sujeitos constituídos pela emergência do poder-fazer
foram competentes ao executarem programas narrativos de afirmação de si e de destruição
do outro (cf. GREIMAS,1983, 245-246).
Sendo assim, o prazer com a vingança em ambos os contos foi instantâneo,
e suficiente para o declínio geral das tensões e dos desdobramentos das forças do discurso,
(cf. FONTANILLE, 2012, p. 115).
Os programas de vingança empreendidos contra o outro andarilho e o cão,
no qual o Gordo é apedrejado e Ego é morto, configuram, por fim, os grandes
acontecimentos, pois ocorrem quando a tensão dos atores-protagonistas atingem o auge na
grandeza de intensidade e a total concentração do sofrer na grandeza de extensidade. As
isotopias figurativas da vingança dos sujeitos estão condensadas no quadro abaixo: (ver
Tabela 4)
Tabela 4 – Isotopias figurativas da paixão da vingança
O GORRO DO
ANDARILHO O ZELADOR
Paixão da
Vingança
“Aquele riso grosso, do
Gordo, não era uma alegria
leve e doce, provida com as
suavidades da vida”, “região
obscura”, “invocação
tenebrosa”, “morte”, “rachou
a cabeça”
“pequenos episódios que foi
tecendo”, “idéia explodiu num
clarão em sua cabeça”,
“traidor”, “jogou ao ombro o
cabo da enxada”, “amassou a
cabeça”
Fonte: Elaborado pela autora.
Esses acontecimentos – apedrejamento em que se subentende o assassínio
do Gordo pelo Andarilho e a morte de Ego operada pelo zelador – também figurativizam o
processo de desumanização dos atores que, decepcionados são agressivos e atacam
fisicamente o outro. Com o enfraquecimento das tensões acumuladas voltam ao estado de
relaxamento aparentemente total, encarando a violência e a crueldade contra o Oura de
forma natural.
107
Cabe também lembrar que o cão, nomeado Ego em “O Zelador”, devido à
imediata identificação física do ator protagonista com o cão levou-nos a analisar o diálogo
que o enunciador desse texto estabelece com a psicanálise freudiana No conto, o zelador,
premido pelo superego, mata o cão com quem inicialmente se identifica. O superego,
nesse sentido, reprime o ego agindo de acordo com a moral social. Assim, o cão,
considerado pelo ator-protagonista, seu reflexo, ou seja, a imagem que o zelador tem de si,
como descumpriu as exigências do superego/regulamentos da empresa ao roubar a carne, é
sacrificado. Desse modo, o superego domina o ego (FREUD, 1980, p. 49) ao irromper
com a “violência impiedosa” da moralização nele intrínseca e anula-o. Essa anulação é
figurativizada pelo assassinato e pelo enterro/desaparecimento do cão.
Quanto ao acontecimento nesse texto é o dispositivo que propicia a
ressemantização do comportamento do sujeito submisso, que patemizado pela cólera e
depois pela vingança mata o cão por ter se tornado intolerante à desobediência às normas
que regiam sua vida profissional e social, e pela perda da promoção devido à transgressão
do cão – roubo da carne.
Já o Andarilho, que manifesta a forma de vida da indigência, considera
insuportável a espoliação a que é submetido.. O sujeito não aceita a perda do único objeto
em que inscreve valor, o gorro, e agride o espoliador.
Assim, evidencia-se que a vingança, empreendida nos dois contos pelo
Andarilho e pelo zelador, constitui o grande acontecimento desses textos. Esse
acontecimento que leva à morte do Outro, considerado antissujeito, ressemantiza o
comportamento dos atores-protagonistas, que assumem os papéis temáticos de agressor e
de assassino, e a forma de vida da violência é comum aos dois atores protagonistas dos
textos.
Em termos de manifestação patêmica, quanto à violência da vingança, esta
paixão parece encarada com naturalidade pelos sujeitos conforme são desumanizados pela
exclusão social na indigência e pelo desejo de ascensão social na submissão. Por isso, os
sujeitos valorizam o objeto mais que o Outro. No caso do zelador, valoriza-se mais a
forma de vida da submissão aos regulamentos em detrimento do apego e do afeto ao cão.
No quadro abaixo, apresentamos as principais isotopias figurativas
presentes nos textos analisados: (ver Tabela 5)
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Tabela 5 – Principais isotopias figurativas presentes nas análises
O GORRO DO ANDARILHO O ZELADOR
Desumanização
“ninhos”, “modo remoto de
continuar com a humanidade”,
“vivia por não saber outra
coisa”, “olhos grisalhos, sem
brilho”, “acostamento”, “beira
da estrada”, “rachou a
cabeça”
“ocupação inútil, pensar”, “não
se lembrava mais dos sons
produzidos pela garganta
humana”, “mãos abertas como
patas”, “ser existente”,
“amassou a cabeça”
Acontecimento
inicial
“a primeira coisa que viu foi
seu gorro de lã [...] na cabeça
do Gordo”, “frio na cabeça”,
“frio antigo”, “náusea gelada”,
“sensação de vida inútil”
“porta aberta da geladeira”,
“vazio”, “o culpado era seu
companheiro Ego”, “roubo”,
“traição”, “ladrão”
Papel temático do
assassino
(Apedrejamento do Gordo)
“pedra”, “rachou a cabeça”,
“mancha de sangue”, “mancha
escura”
(Assassínio de Ego)
“amassou a cabeça”, “As
quatro pernas apenas
estremeceram”, “lençol de
silêncio”
Forma de vida da
violência
“rachou a cabeça”, “silenciou
todas as histórias que ele
contava”
“tomou o cabo pela
extremidade”, “amassou a
cabeça”, “enterrou o cão”
Acontecimento
final
“rachou a cabeça”, “inocente
dureza”, “finalmente
recuperado”, “pôs-se na
estrada”, “não andava muito
rápido”
“amassou a cabeça”, “não
conhecia a tolerância”, “vício”
Fonte: Elaborado pela autora.
Em suma, nos contos analisados, os sujeitos são patemizados à medida que as
formas de vida por eles vivenciadas são abaladas por um acontecimento. Esse acontecimento
desencadeia o percurso passional da cólera, mas antes da explosão dessa manifestação
patêmica, o percurso desdobra-se em outra paixão, a vingança, que culmina em um
acontecimento ainda mais intenso que o primeiro e tão vigoroso quanto as paixões
109
experimentadas. É nesse sentido que associamos as noções de acontecimento, paixão e forma
de vida, sob a perspectiva da semiótica francesa e da semiótica francesa de orientação tensiva,
relacionando a paixão da cólera a uma forma de vida. Observamos ainda como pequenos
acontecimentos desencadeiam cada fase do percurso patêmico, atingindo o seu auge ao
eclodir no acontecimento final, ápice da carga tensiva do sujeito colérico.
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