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FLAVIA KARLA RIBEIRO SANTOS PAIXÕES, ACONTECIMENTOS E FORMAS DE VIDA EM CONTOS DE MENALTON BRAFF. UMA ABORDAGEM SEMIÓTICA Dissertação apresentada à Universidade de Franca, como exigência parcial para a obtenção de título de Mestre em Linguística. Orientadora: Profa. Dra. Vera Lucia Rodella Abriata. FRANCA 2014

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FLAVIA KARLA RIBEIRO SANTOS

PAIXÕES, ACONTECIMENTOS E FORMAS DE VIDA EM CONTOS

DE MENALTON BRAFF. UMA ABORDAGEM SEMIÓTICA

Dissertação apresentada à Universidade de

Franca, como exigência parcial para a

obtenção de título de Mestre em Linguística.

Orientadora: Profa. Dra. Vera Lucia Rodella

Abriata.

FRANCA

2014

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DEDICO esse trabalho a todos que, de alguma forma, dele

participaram.

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AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, Maria e Wandercy, às minhas irmãs Paula e Jacqueline, aos

meus sobrinhos Gabriel, Ana Laura, Maria Clara e Pedro Henrique, e ao meu cunhado Suéber

pela compreensão por minha ausência, ora no dia-a-dia, ora nos finais de semana, inclusive

almoços de domingo, em prol da minha formação acadêmica;

ao Marcelo, meu marido, pelo companheirismo, pela paciência, pelo

encorajamento e por relevar a minha ausência em diversas ocasiões para que eu pudesse dar o

meu melhor neste trabalho;

à minha orientadora, Professora Doutora Vera Lucia Rodella Abriata, que me

aceitou como sua orientanda e que admiro desde o curso “O universo mitopoético de

Guimarães Rosa” – por ela ministrado durante o meu primeiro ano de graduação em Letras –,

pela amizade, pelo apoio, por ser paciente, acessível e pela oportunidade de tanto com ela

aprender, conhecer e crescer ao longo dessa caminhada;

aos amigos Fernanda Trevisani, Cidinha Morais, Márcio Nalini, Lucinéia

Sartori, Ana Maria Janeiro, Sílvia Orlando, Eliane Junqueira, entre outros, pelo incentivo a

minha formação acadêmica;

à querida Ana Cláudia Ferreira Silveira, pelas lisonjeiras palavras de apoio e

pela amizade;

à Adriana Montesanti e ao Thércius Tasso, que além da competência no

atendimento da Secretaria de Pós-Graduação, tornaram-se amigos muito queridos.

aos docentes do Programa de Mestrado pelas disciplinas ministradas, que me

ajudaram a adquirir conhecimento e a fazer as reflexões, necessários para essa pesquisa e para

a minha vida acadêmica;

ao Professor Doutor e amigo Matheus Nogueira Schwartzmann, pelas

inesquecíveis conversas, pelos conselhos e pelas dicas de língua francesa, que muito

contribuíram para o meu crescimento como pessoa e como pesquisadora;

à Professora Doutora Edna Maria Nascimento dos Santos por me apresentar à

teoria semiótica, ainda na graduação em Letras;

aos queridos amigos e companheiros de experiências semióticas Fabrício Flóro,

Renata Duarte, Jéssica Celestino, Luiz Henrique Pereira, Raíssa Médici, Cleides Prestes e

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Amanda Raiz.

à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Capes, pela

concessão da bolsa Prosup Institucional, que me propiciou cursar o Programa de Mestrado em

Linguística da Universidade de Franca e me dedicar exclusivamente à pesquisa;

ao Marcelo Facuri pelo apoio, sem o qual não conseguiria a licença sem

vencimentos para cursar o Mestrado em Linguística;

à coordenadora Lúcia Maria Guimarães Nassim e aos professores da graduação

em Letras, que sempre me incentivaram a prosseguir nos estudos acadêmicos, pelas

oportunidades de estágio, sem as quais não cumpriria com as exigências da bolsa Prosup

Institucional;

Enfim, agradeço a todos os amigos, que embora não citados nominalmente,

fizeram parte dessa jornada.

Meu sincero – e indelével –, obrigada!

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E maior é sua cólera contra os amigos do que contra aqueles que não

lhes são caros, porque pensam ser mais pertinente receber dos

primeiros um bem do que disso serem privados.

ARISTÓTELES

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RESUMO

SANTOS, Flavia Karla Ribeiro. Paixões, acontecimentos e formas de vida em contos de

Menalton Braff. Uma abordagem semiótica. 114 f. 2014. Dissertação (Mestrado em

Linguística) – Universidade de Franca.

Analisamos, neste trabalho, por meio do referencial teórico da semiótica francesa, sob as

perspectivas de Algirdas Julien Greimas, Jacques Fontanille e Claude Zilberberg, os contos

“O gorro do andarilho” e “O zelador”, que integram a obra A coleira do pescoço, de Menalton

Braff. No primeiro conto, um andarilho executa outro andarilho a fim de recuperar seu gorro,

objeto que o aquece nos dias frios. No segundo texto, um zelador de vilas, executa um cão,

seu companheiro e amigo, punindo-o por um roubo que o privaria de uma promoção.

Examinamos os percursos do fazer, os percursos passionais da cólera e da vingança dos

sujeitos protagonistas dos dois textos constituintes do corpus da pesquisa, assim como as

formas de vida que eles manifestam, associadas a acontecimentos que vivenciam. Assim,

aplicamos aos textos elementos da semiótica narrativa, da semiótica das paixões e da

semiótica tensiva. Nosso objetivo é verificar o modo como ocorre a tensivização das paixões

manifestadas nos textos e a forma como os acontecimentos irrompem no desenlace das

narrativas, relacionando-os às formas de vida de seus atores. Nessa perspectiva, associamos os

esquemas passionais a gráficos tensivos, a fim de demonstrar a gradação da tensão dos

sujeitos patemizados. Notamos que tais sujeitos, quando atingem o ápice das manifestações

patêmicas, podem assumir novas formas de vida. Analisamos também o diálogo que o

enunciador estabelece com elementos do discurso psicanalítico freudiano no texto “O

Zelador”, considerando a relevância desse interdiscurso na constituição da forma de vida do

ator-protagonista do conto no desfecho do texto. Observamos que há nos textos que são

objeto de análise a irrupção de acontecimentos, relacionados a formas de vida responsáveis

por desumanizar os atores-protagonistas. Nesse sentido, eles são acometidos por paixões de

malevolência. Assim, constatamos que a manifestação da paixão da cólera em ambos os

textos é desencadeada por acontecimentos que rompem a rotina dos sujeitos, levando-os, por

sua vez, à paixão da vingança. Esta, no auge do recrudescimento da carga tímica dos sujeitos,

resulta em novos acontecimentos.

Palavras-chave: Menalton Braff; contos; paixão; acontecimento; forma de vida.

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ABSTRACT

SANTOS, Flavia Karla Ribeiro. Passions, happenings and ways of life in short stories by

Menalton Braff. A semiotic approach. 114 f. 2014. Dissertation (Mastering in Linguistics) –

Universidade de Franca, Franca.

In this paper, we analyze through the theoretical framework of French Semiotics, under

Algirdas Julien Greimas, Jacques Fontanille and Claude Zilberberg's perspectives, the short

stories “O gorro do andarillho” and “O zelador”, which are part of the book “A coleira no

pescoço”, by Menalton Braff. In the first short story, a wanderer executed another wanderer in

order to get his beanie back, object which keeps him warm at cold days. In the second text, a

village janitor executed a dog, his partner and friend, punishing him for a robbery that would

deprive him of a promotion. We examined the processes of doing, the passionate processes of

fury and revenge of the protagonist subjects from both texts constituting the corpus of the

research, as well as the ways of life which they have manifested, associated with happenings

that they experience. Thus, we apply to the texts the elements of narrative semiotic, passion

semiotic and tensive semiotic. Our aim is verifying how the tensivization of the manifested

passions occurs and the way of the happenings erupt at the denouement of the stories, relating

them to the ways of life of their actors. In this perspective, we associated the passionate

scheme with tensive graphics, in order to demonstrate the gradation of tension from the

passional subjects. We have noted that these subjects, when achieved the apex of patemic

manifestation, they can assume new ways of life. We also analyzed the dialogue that the

enunciator establishes with the elements from Freudian psychoanalytic discourse at the text

“O Zelador”, considering the relevance from this interdiscourse in the constitution of the way

of life from the protagonist actor at the denouement of the story. We have observed that the

eruption of happenings, related to ways of life, is responsible for dehumanizing the

protagonist actors. From this perspective, they are taken by passions of malevolence. Thus,

we concluded that the manifestation of fury at both texts is caused by happenings which

rupture the routine of the subject and take them to the revenge. This passion at the top of the

recrudescence of the subjects' thymic load results in new happenings.

Key words: Menalton Braff; short stories; passion; happening; way of life.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Exclusão social do ator Andarilho enquanto valor do absoluto

57

Figura 2 – Amplificação tensiva do percurso passional da cólera do sujeito

Andarilho

71

Figura 3 – Desdobramento da amplificação tensiva do percurso passional da

cólera do Andarilho na paixão da vingança

73

Figura 4 – Atenuação da carga tímica do Andarilho após execução da vingança

75

Figura 5 – Submissão do ator zelador enquanto valor do absoluto

83

Figura 6 – Amplificação tensiva do percurso passional da cólera do sujeito

zelador

96

Figura 7 – Desdobramento da amplificação tensiva do percurso passional da

cólera do zelador na paixão da vingança

99

Figura 8 – Atenuação da carga tímica do zelador após execução da vingança 100

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1 – Isotopias figurativas das notações somáticas

68

Tabela 2 – Isotopias figurativas das subvalências tensivas

91

Tabela 3 – Isotopias figurativas das fases da cólera

105

Tabela 4 – Isotopias figurativas da paixão da vingança

106

Tabela 5 – Principais isotopias figurativas presentes nas análises

108

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SUMÁRIO

Conteúdo

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 12

1 PAIXÃO, FORMA DE VIDA E ACONTECIMENTO EM SEMIÓTICA ........... 16

1.1 DA SEMIÓTICA DA AÇÃO À SEMIÓTICA DAS PAIXÕES ................................. 16

1.1.1 A paixão e a semiótica tensiva ...................................................................................... 20

1.1.2 Os efeitos de sentido passionais ................................................................................... 22

1.1.3 A constituição das paixões complexas ......................................................................... 23

1.1.4 A cólera como paixão ................................................................................................... 25

1.1.5 A vingança: uma variante da paixão da cólera ............................................................. 29

1.2 A CONCEPÇÃO DE FORMA DE VIDA EM SEMIÓTICA ....................................... 32

1.2.1 Da imperfeição: a noção de estesia ................................................................................ 33

1.2.2 A contribuição de Wittgenstein ..................................................................................... 34

1.2.3 A construção do conceito .............................................................................................. 36

1.2.4 A práxis enunciativa da forma de vida ......................................................................... 40

1.3 NA IRRUPÇÃO DO INESPERADO, O ACONTECIMENTO .................................. 42

1.3.1 Os modos semióticos .................................................................................................... 44

1.3.1.1 Os modos de eficiência ................................................................................................ 45

1.3.1.2 Os modos de existência ............................................................................................... 46

1.3.1.3 Os modos de junção ...................................................................................................... 47

1.3.2 O ponto de vista figural do acontecimento .................................................................. 48

1.4 A INTERDISCURSIVIDADE EM SEMIÓTICA ....................................................... 49

2 O GORRO DO ANDARILHO: NO ACONTECIMENTO, A VINGANÇA ........ 53

2.1 A FORMA DE VIDA DA INDIGÊNCIA................................................................... 53

2.1.1 A assunção do papel temático de andarilho e da forma de vida da indigência ............ 53

2.1.2 A desumanização do Andarilho .................................................................................... 55

2.2 O ROUBO DO GORRO: UM ACONTECIMENTO ................................................... 60

2.3 A MANIFESTAÇÃO PASSIONAL DA CÓLERA E DA VINGANÇA................. ... 64

2.3.1 A sequência passional da cólera ................................................................................... 65

2.3.2 A vingança do Andarilho: o grande acontecimento ..................................................... 71

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3 O ZELADOR: O ACONTECIMENTO, A VINGANÇA E A

TRANSFORMAÇÃO DA FORMA DE VIDA .................................................................... 76

3.1 NO PRIMEIRO RELATO: A SUBMISSÃO COMO FORMA DE VIDA ................. 76

3.1.1 A transformação da forma de vida ................................................................................ 84

3.2 NO SEGUNDO RELATO: DOIS ACONTECIMENTOS ........................................... 87

3.3 O PERCURSO PASSIONAL DO ZELADOR ............................................................ 92

3.3.1 O percurso da cólera ..................................................................................................... 92

3.3.2 A execução da vingança ............................................................................................... 97

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 102

REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 110

ANEXOS ............................................................................................................................... 114

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INTRODUÇÃO

A prática literária, no dizer de Leyla Perrone-Moisés (1990, p. 100-110),

ocupa-se da “reconstrução do mundo pelas palavras”, apontando para o que falta no mundo e

em nós. Ricardo Piglia (2004, p. 87-114) afirma que a diferença entre a literatura e a vida está

na marca no tempo, na “linha incerta que sabemos existir no futuro como um sonho” – como

a narrativa de Borges, que “narra o fim como se o vivesse no presente: está além e é remoto,

mas já está aqui, inesquecível, despercebido”. Segundo Piglia (2004), somente sob a forma de

arte é possível perceber o sentido à medida que nos projetamos para além do fim.

Da perspectiva da semiótica francesa, teoria que segundo Denis Bertrand

(2003, p. 11-25), investiga o “parecer do sentido” manifestado nos discursos presentes em

diferentes formas de linguagem (verbais, não verbais ou sincréticas), a literatura exerce uma

função crítica sobre a língua, desaprumando-a em relação a si mesma em cada obra. É, pois, o

lugar onde a memória coletiva se cristaliza, espaço em que essa memória é elaborada,

arquivada, fixada e instituída como referência cultural. Pela literatura, são transmitidos

crenças e valores de uma comunidade, seus modos de ser e de fazer, a identidade do grupo.

Assim, para o autor de Caminhos da semiótica literária, os modelos de ação, de representação

e de liturgias passionais são depositados e transformados na literatura, capaz de impingir o

que Bertrand (2003, p. 25) chama de “formas de organização discursiva do sentido e dos

valores, interpretadas como hierarquias e exclusões (o ‘bom’ e o mau gosto...)”.

Diante desse panorama, que abarca o conceito de literatura do ponto de vista da

crítica literária e da teoria semiótica, tecemos algumas observações acerca da escolha dos

contos que constituem o corpus de nossa pesquisa. “O gorro do andarilho” e “O zelador”

integram a coletânea de contos, finalista do prêmio Jabuti-2007, A coleira no pescoço, de

Menalton Braff (2006). O autor, vencedor do prêmio Jabuti-2000, com o romance À sombra

do cipreste, destaca-se no panorama literário brasileiro contemporâneo, por meio da

focalização de temas como “a incomunicabilidade, a apatia, as inações, a pobreza, a luta de

classes e a exploração do trabalho”, segundo a pesquisadora Natalí Fabiana da Costa e Silva

(2011, p. 111-115). Ainda de acordo com a pesquisadora, “[...] as personagens braffianas

carregam, em alguma medida, o estigma de uma sociedade dilacerada. Ineficácia, falência,

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insucesso e solidão são aspectos característicos às protagonistas”.

Nesse sentido, a literatura braffiana apresenta temas voltados a problemas

sociais da atualidade, o que pode ser observado nos contos que selecionamos para constituir o

corpus desta pesquisa, “O gorro do andarilho” e “O zelador”, cujos temas se relacionam à

violência e à desumanização de seus atores protagonistas.

Assim, em “O gorro do andarilho”, um andarilho mata o companheiro após

acordar da sesta e perceber que o gorro – proteção do frio e seu único bem – está na cabeça de

um outro, que reluta em devolvê-lo e ainda zomba do sujeito espoliado. Em “O zelador”, um

zelador de vilas mata o cão, seu amigo e companheiro, como punição por entrar na casa,

embora pertença ao lado de fora, e roubar a carne da geladeira, ação que privará o ator-

protagonista da promoção almejada.

Considerando, pois, a temática dos contos braffianos, nossa pesquisa de

mestrado, à luz da teoria semiótica francesa, aplica aspectos teóricos relativos aos estudos da

paixão, das formas de vida e do acontecimento em semiótica. Essa escolha teórica foi

determinada pelos próprios textos, pois no processo de análise da construção de seus atores

protagonistas, na medida em que analisávamos seus papéis temáticos e patêmicos,

observamos o modo como neles se manifestava a tensivização da paixão da cólera e sua

variante, a vingança. Assim, passamos a ter como um de nossos objetivos demonstrar como

ocorre a intensificação do sentir dos sujeitos das narrativas analisadas.

Justificamos a escolha de textos literários para a aplicação da teoria, tendo em

vista a relação da história da semiótica com a arte literária. Em outras palavras, a presença do

corpus literário é frequente nas pesquisas greimasianas, registradas desde Maupassant: La

sémiotique du texte, exercices pratiques até “Le beau geste”. Para Greimas (2002, p. 69-70), a

literatura, na medida em que cria simulacros de comportamentos humanos “vividos”, pode

externar informações sobre a condição humana.

Além disso, após Da imperfeição (2002), a preocupação com as vivências

humanas, escopo da literatura, se tornou fulcral nas pesquisas em Semiótica, o que nos

inspirou a associar os conceitos de acontecimento e de forma de vida à pesquisa, adotando a

perspectiva zilberbergiana sobre tensividade, pois observamos que as paixões, nos textos em

análise, irrompem dentro de uma forma de vida e em razão de um acontecimento.

Observamos, desse modo, a tensivização das paixões da cólera e da vingança

que se manifestam nos textos em análise, conforme Jacques Fontanille (2005), os

acontecimentos, como concebe a semiótica tensiva – que engloba em seu cerne as grandezas

de intensidade e de extensidade, e os modos semióticos –, e a desumanização imposta pelas

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formas de vida vivenciadas pelos atores-protagonistas.

Relacionando os conceitos semióticos já assinalados – paixão, acontecimento,

forma de vida – partimos da hipótese de que o acontecimento, ao provocar uma tensão na

relação dos atores-protagonistas com o Outro, um Outro que às vezes se confunde com a

alteridade do próprio sujeito, incita a manifestação patêmica da cólera com base na concessão

e na quebra do contrato fiduciário entre os sujeitos. A um só tempo, tanto esse acontecimento,

quanto a manifestação patêmica estão relacionados às formas de vida da submissão e da

indigência. Acreditamos ainda que o percurso passional da cólera, que é influenciado pelo

acontecimento, se transforma na paixão da vingança. Consequentemente, os sujeitos

patemizados, desumanizados pelas formas de vida, são violentos na aplicação de sanções

pragmáticas aos antissujeitos com que se deparam em seu percurso.

Com base na hipótese apresentada, nosso objetivo geral é verificar como ocorre

a tensivização das paixões manifestadas nos textos, paixões relacionadas à desumanização dos

atores e às formas de vida que eles manifestam. Temos também por objetivo observar de que

modo os grandes e últimos acontecimentos irrompem no desenlace das narrativas. Além

disso, também temos por propósito observar o modo como esses acontecimentos se

relacionam às formas de vida dos atores-protagonistas.

No primeiro capítulo – Paixão, forma de vida e acontecimento em Semiótica

– procedemos à contextualização teórica em que baseamos esse trabalho. Desse modo,

fazemos referência ao estudo das paixões em semiótica, às noções de formas de vida e de

acontecimento. Embora retomemos cada um desses conceitos separadamente, já que se

incorporaram à teoria em momentos históricos diferentes, motivo pelo qual adotamos essa

sequência – paixão, forma de vida, acontecimento –, procuramos associá-los uns aos outros. A

adoção de concepções da semiótica tensiva, relacionadas aos estudos das paixões e das formas

de vida, tem o intuito de proporcionar homogeneidade no desenvolvimento das análises dos

dois contos.

Ademais, também discorremos, no capítulo teórico, sobre o conceito de

interdiscursividade, com base na adaptação do conceito bakhtiniano para a teoria semiótica

francesa, operada por Fiorin (1994). Buscamos, nesse caso, justificar a pertinência da

utilização desse conceito, mediante estudos de Barros (2009) sobre a “exterioridade”

discursiva em semiótica. Utilizamo-nos ainda da pesquisa de Waldir Beividas (1996), para

exemplificar o modo como no conto “O zelador”, observamos o diálogo com conceitos da

obra de Sigmund Freud.

Nos capítulos subsequentes – O gorro do andarilho: no acontecimento, a

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vingança e O zelador: o acontecimento, a vingança e a transformação da forma de vida

–, observamos, com base nas isotopias temático-figurativas e nos papéis temáticos dos atores

que se concretizam nos textos, um esquema de identificação de ocorrências de deformação

coerente da moral social, de recorrência e de manifestação de uma nova moral, no caso

individual, além de uma operação de triagem na constituição das formas de vida da

indigência, em “O gorro do Andarilho” e da submissão em “O Zelador”. Nesse último, ainda

identificamos uma relação interdiscursiva com a psicanálise freudiana dentro da forma de

vida da submissão.

Em seguida, procuramos descrever o acontecimento uma vez que os sujeitos

andarilho e zelador são surpreendidos pelo inesperado, ou seja, pelo roubo do gorro pelo

Gordo, no texto “O gorro do Andarilho” e da carne do zelador por Ego em “O Zelador”.

Como na potencialização dos acontecimentos há uma atualização dos desejos

dos sujeitos de novamente tornarem-se conjuntos dos objetos de valor, descrevemos o

percurso passional da cólera dos dois atores, andarilho e zelador, nos dois textos. Esse

percurso tem início na potencialização dos acontecimentos – roubo do gorro e roubo da carne

–, que caracteriza o sujeito operador. Dessa forma, demonstramos o desenvolvimento desse

percurso patêmico, mediante a crise de confiança provocada pelo rompimento do contrato

fiduciário, até desdobrar-se na vingança, seguindo o esquema tensivo de amplificação,

desenvolvido por Jacques Fontanille (2012).

Devemos ressaltar que os dois contos são analisados com a mesma sequência

metodológica, e, em ambos, aplicamos os mesmos conceitos teóricos. No entanto, para fins

didáticos, e para melhor entendimento do sentido dos textos à medida que são reconstruídos

neste trabalho, as análises são realizadas separadamente.

Nas Considerações Finais, cotejamos as análises a fim de observarmos a

gradação tensiva em relação às paixões, aos acontecimentos e às formas de vida manifestados

nas narrativas e em que medida a desumanização dos atores afeta suas relações afetivas e

sociais.

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1 PAIXÃO, FORMA DE VIDA E ACONTECIMENTO EM SEMIÓTICA

1.1 DA SEMIÓTICA DA AÇÃO À SEMIÓTICA DAS PAIXÕES

Preocupada com o sentido, ou, mais precisamente, com o parecer do sentido, a

teoria semiótica francesa desenvolveu, entre os anos 1960-1980, um modelo de análise do

texto baseado em um percurso gerativo do sentido. No dizer de Denis Bertrand, trata-se de

“um percurso estratificado em camadas relativamente homogêneas, indo das formas concretas

e particulares, manifestadas na superfície do texto, às formas mais abstratas e gerais

subjacentes, dispostas em múltiplos níveis de profundidade” (BERTRAND, 2003, p. 49).

Esses níveis, segundo Bertrand (2003, p. 49), organizam-se e combinam-se por meio de regras

sintáxicas e semânticas. Assim, o percurso gerativo de sentido distingue as estruturas

profundas onde estão inscritos os valores nos quadrados semióticos, as estruturas

semionarrativas em que se encontram os dispositivos modais (manipulação pelo querer e pelo

dever, competência do poder e do saber), a sintaxe actancial e o esquema narrativo; das

estruturas discursivas que as concretizam por meio da enunciação, onde se manifestam a

tematização (revestida de isotopias figurativas), as figuras do (tempo, espaço e pessoa), os

atores, que criam o simulacro do mundo.

Consoante o semioticista, os sujeitos que agem nos enunciados são operadores.

Eles assumem posições actanciais que, embora variáveis, têm sempre uma visão

transformadora, um fazer (BERTRAND, 2003, p. 359). Daí o fato de, no início da construção

teórica, essa hipótese teórico-metodológica centrar-se na narratividade, nas relações entre o

sujeito e o objeto, a partir de um esquema narrativo, que manifesta a realização em discurso

da “transformação dos estados de coisas [...] por meio de uma sintaxe elementar de aquisição,

privação ou partilha dos valores inscritos nos objetos desejáveis [...]” – os chamados

enunciados de fazer, que asseguram a transformação de estado do sujeito nos enunciados de

junção com o objeto, de acordo com Bertrand (2003, p. 359). Nesse estágio, a teoria semiótica

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é conhecida como Semiótica da Ação1.

A semiótica da ação, ligada à narratividade, conforme Bertrand (2003, p. 359),

faz das posições actanciais “lugares fixos que apesar de compostos por um feixe de

modalidades variáveis”, são considerados, no entanto, por sua “visão transformadora, seu

fazer” em que o actante é um mero operador, não considerando “a modulação dos estados do

sujeito” [...] “instável, flutuante em seu face a face com a ação”., enfim, os estados de alma do

sujeito. Esses estudos passam a ser sistematizados por Greimas e Fontanille (1993) na obra

Semiótica das paixões. Dos estados de coisa aos estados de alma

De acordo com Barros (2001, p. 60-62), as paixões são entendidas como

“efeitos de sentido de qualificações modais que modificam o sujeito do estado”.

Com o desenvolvimento do estudo sobre o ser do sujeito, percebe-se, segundo

Bertrand (2003, p. 360-372), que ao redor da junção há um desdobramento da modulação dos

estados, “como uma variação contínua” tanto antes quanto depois dela. Essa variação delineia

o espaço passional da narrativa. Assim, ao focalizar a “relação juntiva” no centro do programa

narrativo, o espaço passional se dilata, marcando “uma parada no desenvolvimento dos

programas de ação, mas depreendendo um novo universo de significações” até então

mascarado pela abordagem estritamente narrativa. Esse espaço passional, “feito de tensões e

aspectualizações”, é “da ordem do contínuo” e está disposto ao redor das transformações

narrativas do sujeito.

O pesquisador observa que a persistência e a modulação dos estados de alma

do sujeito ao longo das transformações, faz com que o estado passional desse sujeito – na

circulação dos objetos e dos valores considerados “desejáveis ou temíveis” –, dependa da

modalização investida nos objetos – /querer/, /dever/, /poder/, /saber/ –; da intensidade do

desejo de junção com o objeto-valor, no percurso do fazer e; do crivo moral imposto pelo

“Destinador coletivo”. Nessa perspectiva, a paixão corresponde à intensificação da carga

tímica do /ser/, seja do ponto de vista eufórico, seja do ponto de vista disfórico, em sua

relação com as modalidades /querer/, /dever/, /poder/, /saber/, tanto em uma dêixis positiva,

quanto em uma dêixis negativa. Assim, o /querer ser/ inscreve o desejo de conjunção,

enquanto o /não querer ser/ revela o não querer a conjunção, como assevera José Luiz Fiorin

(2007, p. 4).

Lembramos, porém, que os autores de Semiótica das paixões Greimas e

1 Embora os conceitos pertinentes à Semiótica da Ação sejam evocados nas análises, esse trabalho se volta à

aplicação de conceitos teóricos da Semiótica concebida a partir da década de 1980. Por esse motivo, não nos

deteremos na conceptualização de todos os seus elementos.

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18

Fontanille (1993, p. 21) fazem uma ressalva no que concerne à relação do desenvolvimento

dos estados patêmicos com as transformações narrativas. Eles asseveram que, embora o

estudo sobre o percurso passional dos sujeitos possa se dispor em torno das transformações

narrativas, as paixões não se configuram como “propriedades exclusivas dos sujeitos” no

nível semionarrativo. As paixões são, na verdade, “propriedades do discurso inteiro e emanam

também das estruturas discursivas”, podendo se projetar sobre os sujeitos, ou sobre os objetos

ou sobre sua junção.

Essa observação ratifica a explicação de Greimas e Courtés (1986, p. 165) no

Dictionnaire raisonné de la théorie du langage, de que o sujeito de estado se transforma em

ator ao desempenhar, no nível discursivo, papéis patêmicos, à semelhança dos papéis

temáticos. O papel patêmico representa, por sua vez, “uma organização hierárquica modal,

que se manifesta sintagmaticamente, no nível discursivo, sob a forma de configurações

patêmicas”.

Devemos lembrar também que as paixões são obtidas por meio da

complexidade das “correlações entre dispositivos e dimensões provenientes de diversos níveis

do percurso gerativo” (FONTANILLE; ZILBERBERG, 2001, p. 298).

Já, segundo Bertrand (2003, p. 374-415), que se baseia em Semiótica das

paixões, o percurso passional é sistematizado em uma cadeia modal de sequências específicas

da crise passional, inscrita em uma coerência formal que, no esquema da ação, entrelaça o

percurso do fazer ao percurso do ser. Nesse esquema, o sujeito, disposto a acolher

determinado “efeito passional”, é sensibilizado. Por conseguinte, a emoção corresponde à

crise passional e prolonga e atualiza a sensibilização, cabendo à moralização sancionar o

percurso. Essa sequência canônica fica assim esquematizada:

disposição sensibilização emoção moralização

(cf. contrato competência ação sanção)

Nesse processo, as modalidades do /ser/, que podem se intensificar de acordo

com o universo axiológico do sujeito, podem ainda ser aspectualizadas conforme a percepção

temporal sobre o processo, isto é, podem ser acabadas, não acabadas, pontuais, iterativas ou

durativas, incoativas ou terminativas.

No dizer de Greimas e Fontanille (1993, p. 155-156, grifos do autor), como o

simulacro passional pressupõe a projeção da trajetória existencial do sujeito por ele mesmo,

Page 20: PAIXÕES, ACONTECIMENTOS E FORMAS DE VIDA EM CONTOS …€¦ · Figura 4 – Atenuação da carga tímica do Andarilho após execução da vingança 75 Figura 5 – Submissão do

19

esse sujeito pode não passar por todas as fases da sequência canônica, conforme sua

disposição modal. Ao mesmo tempo, a moralização, considerada uma etapa transitiva da

sequência e não pertencendo ao simulacro passional em si, pode se colocar em qualquer etapa

do percurso, estabelecendo o seu fim. Por esse motivo, assume os traços terminativo e

acabado, pois o julgamento ético, ou moral, pressupõe uma parada no desenvolvimento do

ator. Desse modo, à medida que a moralização reconhece os comportamentos observáveis,

convocados por uma disposição, esses comportamentos são apoderados pela moralização. Isso

acontece quando a moralização reconhece “uma intencionalidade da paixão, sob a forma de

uma imagem-fim e de um dispositivo de sensibilização”, possibilitando que o estudo do

discurso moral repouse no conhecimento dos universos passionais.

No âmbito da figurativização da dimensão passional do discurso, o que torna a

paixão nomeável, do ponto de vista de Bertrand (2003, p. 358), é o crivo de moralização. O

autor ressalta que o estudo das paixões em semiótica difere daquele estabelecido por outras

áreas do conhecimento, como a sociologia ou a psicologia, visto que, em semiótica, a paixão

não é considerada do ponto de vista do que “afeta o ser efetivo dos sujeitos ‘reais’”. A paixão,

em semiótica, é “efeito de sentido inscrito e codificado na linguagem”.

Fiorin (2008, p. 60-63), a esse respeito, afirma que como a paixão presente em

um texto é uma paixão representada, resultado de um arranjo de modalidades, é também

modulada, aspectualizada e envolvida pelo tempo. Pode aparecer mencionada no texto, por

meio de um lexema, ou representada na narrativa, criando o tom do texto. É chamada de

paixão de papel em semiótica, porque é lexicalizada, porque é representação do real no

discurso, assim como o sujeito. Fontanille (2012, p. 214) ainda acrescenta que as paixões são

designadas por lexemas nas línguas naturais. Esses lexemas podem ser nominais, como

“orgulho”; adjetivos, como “mesquinho”; adverbiais, como “orgulhosamente”; ou verbais,

como “inquietar-se”. Nas palavras do autor,

Esses lexemas são signos e, enquanto tais, são resultados de um uso. Como

todos os vocábulos de uma língua, eles são depositários (e tributários) de

uma história e de uma cultura. Nosso projeto como um todo é o de uma

semiótica do discurso, e não do signo, e, consequentemente, ele nos impele a

ultrapassar também a expressão lexical da paixão. Essa “fossilização”

histórica e cultural dos efeitos passionais é, em si, um [...] fenômeno

limitado e que depende da capacidade mais geral do discurso de produzir

efeitos passionais (FONTANILLE, 2012, p. 214).

Assim, a paixão só pode ser reconhecida dentro de uma história e de uma

cultura – como também observa Greimas (1983, p. 225), onde o crivo moral pode distinguir

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uma paixão de outra e classificá-la como positiva ou negativa, vício ou virtude. Uma ressalva,

porém, deve ser feita. Para ser reconhecida, não basta à paixão ser lexicalizada e estar inserida

em uma cultura, pois cada discurso apresenta características próprias, que podem tornar as

paixões irreconhecíveis. Considerando essa perspectiva, “cada efeito passional deve ser

relacionado à sintaxe de que depende e que lhe fornece seu contexto”, motivo pelo qual cada

paixão-lexema comporta um programa, que permite reconhecê-la a partir de um percurso

figurativo associado ao nome da paixão (FONTANILLE, 2012, p. 214-216).

Na opinião de Beyaert-Geslin (2009a, p. 55), o estudo das paixões, iniciado em

Du sens II, em 1983, e sacramentado em Semiótica das paixões, em 1991, inaugurou linhas de

pesquisa que até hoje conduzem à reflexão semiótica. Por isso, estabelecido o panorama dos

primeiros anos de estudo das paixões pela semiótica, apresentamos as contribuições da

semiótica tensiva de Jacques Fontanille e Claude Zilberberg (2001) a essa investigação, e as

manifestações passionais da cólera e da vingança, tendo como referências, os estudos

preliminares de Greimas (1983) e os estudos ulteriores, desenvolvidos por Fontanille (2005)

acerca dessas paixões.

1.1.1 A paixão e a semiótica tensiva

Após a publicação de Da Imperfeição2 (2002) e com a o advento da semiótica

tensiva3, o estudo das paixões volta-se cada vez mais para as manifestações passionais

relacionadas ao “vivenciado”. Para Fontanille e Zilberberg (2001, p. 297-299), “vivenciar

uma paixão seria mesmo conformar-se a uma identidade cultural e buscar a significação de

nossas emoções e afetos na sua maior ou menor conformidade às taxionomias acumuladas em

nossa própria cultura”. Os semioticistas ainda acrescentam que é a sanção intersubjetiva e

social da práxis enunciativa que determina o que é uma paixão. Desse modo, a manifestação

passional é reconhecida, identificada, partilhada e denominada, transformando-se em um

estereótipo cultural da afetividade.

Fontanille (2012, p. 130-204) considera que se “a paixão em discurso remete

2 Trataremos dessa obra greimasiana detalhadamente ao introduzirmos os estudos sobre formas de vida.

3 Conhecida como Semiótica pós-passional, um prolongamento lógico da Semiótica das Paixões, a Semiótica

Tensiva é concebida como “uma semiótica do sensível, ou da presença, centrada em um sujeito cada vez mais

personificado”, nas palavras de Couégnas (2009, p. 67). Nessa perspectiva, segundo o autor, a Semiótica Tensiva

não se preocupa com o sujeito que age, mas como o sujeito sente e, principalmente, com a percepção do sujeito

sobre o mundo que o rodeia (COUÉGNAS, 2009, p. 67).

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ao ‘vivido’, ao sentir”, a práxis enunciativa é que esquematiza tanto a dimensão passional,

quanto outras dimensões do discurso. Essa esquematização permite a inscrição da dimensão

passional em formas culturais – que lhe atribuem sentido – e a tornam inteligível. Assim,

estabelece uma sequência canônica que, submissa aos esquemas de tensão, possibilita o

reconhecimento de paixões “típicas” em uma dada cultura. Eis o esquema:

Com esse esquema, Fontanille não somente amplia o percurso passional

canônico, antes desenvolvido por Greimas, como também delineia uma nova abordagem no

estudo das paixões. Isso, porque, em sua concepção, assim como a ação – que transforma os

estados de coisas –, a paixão transforma o sujeito por ela afetado, porém dirigida por

modulações tensivas de intensidade e de extensidade. A paixão obedece, pois, aos esquemas

tensivos, além de sintetizar, organizar e solidarizar as tensões da presença, ao passo que “a

ação obedece aos esquemas narrativos canônicos”, e sintetiza os programas de junção.

Os esquemas tensivos são, para Fontanille (2012, p. 109-116), “esquemas

discursivos elementares, que regulam a interação do sensível e do inteligível, as tensões e os

relaxamentos que modulam essa interação”. Esses esquemas podem ser canônicos e, nesse

sentido, são “esquemas discursivos compostos, que conjugam e encadeiam vários esquemas

tensivos sob a forma cristalizada e imediatamente reconhecível em uma dada cultura”.

Segundo o autor, existem quatro esquemas elementares de tensão que, combinados ou não,

“asseguram a solidariedade entre o sensível (a intensidade, o afeto, etc.) e o inteligível (o

desdobramento na extensão, o mensurável, a compreensão)”. Esses esquemas de tensão

representam as variações do equilíbrio entre as grandezas de intensidade e de extensidade.

Nesse sentido, gradativamente, as variações conduzem aumento da intensidade ao aumento da

tensão afetiva e o aumento da extensidade ao relaxamento cognitivo.

Fontanille (2012, p. 109-116) explica que no primeiro tipo de esquema, o

relaxamento cognitivo é produzido pela combinação entre a diminuição da intensidade e o

desdobramento da extensão. É chamado de esquema descendente ou esquema da decadência.

O semioticista francês descreve-o como cenário que “parte de um realce da intensidade, de

um choque emocional, para o relaxamento produzido pelo desenvolvimento, uma explicação

ou, ainda, uma reformulação em extensão”. O segundo tipo de esquema combina o aumento

da intensidade com a redução da extensão, produzindo uma tensão afetiva. É o esquema da

ascendência. Nesse caso, ao contrário do primeiro esquema, o realce de intensidade conduz a

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uma tensão final. O terceiro esquema é o da amplificação. Ele produz tanto uma tensão

afetiva, quanto uma tensão cognitiva ao combinar o aumento da intensidade com o

desdobramento da extensão. Aqui, segue-se “um princípio de gradação geral que parte de um

mínimo de intensidade e de uma fraca extensão para desembocar em uma tensão máxima,

igualmente desdobrada na extensão”. Segundo o pesquisador, esse esquema está presente na

tragédia clássica, pois quando as tensões diminuem antes de ser encontrada uma solução para

o drama, propiciam que a crise irrompa com mais força e não encontre outra solução que não

seja a morte ou a desgraça. No último esquema, uma diminuição da intensidade é combinada

com uma redução da extensão, que produz um relaxamento geral. É chamado esquema de

atenuação. Nesse cenário ocorre o “declínio geral das tensões e dos desdobramentos”,

conduzindo a um relaxamento, que convoca uma reavaliação das forças no discurso. Nesse

esquema, as valências de intensidade e de extensidade estão em grau muito baixo, ou até sem

grau, à espera de uma amplificação da carga tímica.

Tendo esclarecido como funcionam os esquemas tensivos, elucidaremos como

a paixão é discursivizada no campo de presença do sujeito, ou seja, como os efeitos de sentido

passionais são produzidos, de acordo com a semiótica tensiva.

1.1.2 Os efeitos de sentido passionais

No dizer de Fontanille (2012, p. 205), a paixão discursiva é resultado de

determinações modais e tensivas. Nelas, as modulações da tensividade fórica são rearticuladas

descontinuamente sob a forma de modalizações do ser. Da perspectiva de Fontanille e

Zilberberg (2001, p. 297-302), a paixão é uma “configuração discursiva caracterizada por suas

propriedades sintáxicas – é um sintagma do discurso – e pela diversidade dos componentes

que reúne: modalidade, aspectualidade, temporalidade, etc.”. Nesse sentido, a manifestação

passional envolve: dimensões modais e fóricas; modalidades existenciais (/ser/) e de

competência (/querer/, /dever/, /poder/ e /saber/) e as grandezas de intensidade e de

extensidade e suas subvalências correlatas de andamento e tonicidade, tempo e espaço.

Os semioticistas franceses (2001, p.301) alegam, outrossim, que a definição da

paixão é determinada pelo valor a que essa paixão visa. Dessa forma, são identificados dois

tipos de valores: valores de absoluto, de caráter exclusivo e concentrado, e valores de

universo, de caráter participativo e extenso. Mas, o que define o tipo axiológico de paixão é a

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correlação entre intensidade e extensidade afetivas investidas no objeto.

Como observa Fontanille (2012, p. 217-225), as formas e os esquemas

sintáticos produzem efeitos de sentido passionais à proporção que a paixão sentida é

identificada por códigos estabilizados na cultura. Esses códigos são figurativizados e,

conforme aparecem e desaparecem, trespassam o campo de presença. São eles: os códigos

modais, os códigos rítmicos, os códigos somáticos e os códigos perspectivos. As modalidades,

ao levarem em conta a correlação entre intensidade e extensidade, propiciam a uma paixão

suscitar outra, em dependência da “identidade modal do actante que a vivencia”. O ritmo

revela as tensões sentidas pelo corpo próprio do actante (abrandado, sincopado, agitado, etc.).

A expressão somática compreende as sensações que acompanham a paixão que anima o

actante (cor da pele, fisionomia, gesto, tremor, etc.). Intrinsecamente ligada a uma práxis

enunciativa, a expressão somática identifica uma paixão com base em uma dada cultura. A

cólera, por exemplo, se expressa de formas diferentes no Ocidente e no Oriente. O código

perspectivo, por fim, insere-se na tomada de posição no discurso por meio de escolhas

linguísticas como escolha entre o artigo definido e o artigo indefinido, ou entre a debreagem e

embreagem, dentre outras.

Voltando à questão das esquematizações, que inscrevem as manifestações

passionais em formas culturais, de acordo com o Dictionnaire Raisonne de la Theorie du

Langage II (GREIMAS; COURTÉS, 1986, p. 164-165), a intensidade passional, no aspecto

tensivo, distingue uma paixão de outra pela gradação de intensidade, ou seja, a paixão é

nomeada consoante a menor ou a maior intensidade da carga tímica dentro de um programa

de uso. Como a manifestação passional pode comportar tanto um, quanto vários estados

patêmicos, é pertinente que nos aprofundemos na distinção entre paixões simples e paixões

complexas, para, a posteriori, introduzirmos os conceitos concernentes à paixão da cólera.

1.1.3 A constituição das paixões complexas

Segundo Greimas (1983, p. 225), as paixões podem ser simples ou complexas.

As simples, que no dizer de Fiorin (2007, p. 5), resultam de uma única modalização do

sujeito, correspondem a um estado passional que não exige nenhum percurso modal anterior.

As complexas, por outro lado, “resultam do encadeamento de vários percursos”. Greimas

(1983, p. 227-230) esclarece que as paixões complexas, como a cólera, são fortemente

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modalizadas por um estado inicial de espera, que pode ser simples ou fiduciária. Geralmente,

não se trata de contrato verdadeiro, mas de contrato de confiança, imaginário. Se o contrato é,

portanto, resultado da imaginação do sujeito de estado, simulacro construído por ele, o sujeito

do fazer, em quem foi depositada a confiança, não se sente obrigado a fazer. Por essa razão,

essa espera pode ter como contrapartida os estados patêmicos de satisfação e de confiança ou

de insatisfação e de decepção, decorrentes “da conjunção ou da disjunção do sujeito com o

objeto-valor desejado e da conservação ou da perda da confiança investida no contrato

simulado”, nas palavras de Barros (2001, p. 64).

Como Greimas (1983, p. 227-230) explicita em seus pressupostos, a espera,

estado tenso e disfórico de disjunção, ao resultar na realização de um /querer ser/, é distendida

em uma satisfação – estado relaxado e eufórico de conjunção. Quando ocorre o oposto e a

espera é “sobredeterminada pela categoria de intensidade, tornada excessiva, bem mais,

intolerável”, ao saber da não realização do programa narrativo do sujeito do fazer, um /saber

não ser conjunto/, esse estado patêmico inicial é conduzido à insatisfação e à decepção,

estados tensos e disfóricos.

Para o semioticista lituano (GREIMAS, 1983, p. 233-237), aspectualmente, a

intensidade da insatisfação e da decepção é determinada pela duração e está ligada a não

realização do que o sujeito esperava. Assim, a insatisfação é provocada pela interpretação de

que o sujeito do fazer teve um comportamento não conforme ao que dele era esperado e pela

conclusão de que essa espera é injustificada. A decepção resulta da crise de confiança, visto

que o sujeito do fazer não atendeu às expectativas do sujeito do /crer/ que, decepcionado, se

acusa de ter feito uma má aplicação de sua confiança. Por isso, provocadas pela frustração,

que pode significar “vivo descontentamento”, a insatisfação e/ou a decepção podem ser

conduzidas à cólera. Isso ocorre à medida que se prolongam e desencadeiam novos efeitos

passionais. A insatisfação, que pode ter um aspecto terminativo e colocar fim em um

programa narrativo, também pode ter um aspecto incoativo e iniciar um programa narrativo

de liquidação da falta. Nesse caso, dá início a um estado patêmico de descontentamento. Ao

mesmo tempo, o sujeito privado do objeto-valor e em crise de confiança, pode ser provocado

pelo destinador a desenvolver um programa narrativo de revolta e /querer fazer/ mal ao sujeito

que o decepcionou, ou pode considerar o sujeito que o decepcionou um antissujeito e

desenvolver um programa narrativo de vingança, como observaremos em tópico específico.

Sendo assim, conforme Barros (2001, p. 69), uma paixão complexa obedece a

critérios de organização modal em que são determinados os estados passionais do sujeito. Isso

significa que as variações tensivas que marcam o percurso podem graduar de um estado de

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espera relaxada a uma falta tensa para, na sequência, a distensão da constituição da

competência convergir no relaxamento final do fazer.

Desse modo, considerando tanto os postulados aqui apresentados acerca da

constituição das paixões complexas, apresentamos, a seguir, o percurso passional da cólera,

desenvolvido, primeiramente, por Greimas, em Du sens II e, depois por Jacques Fontanille no

Dictionnaire des passions littéraires4.

1.1.4 A cólera como paixão

Ainda na antiguidade clássica, (ARISTÓTELES, 2000, p. 7), a cólera é

entendida como “[...] o desejo, acompanhado de tristeza, de vingar-se ostensivamente de um

manifesto desprezo por algo que diz respeito a determinada pessoa ou a algum dos seus,

quando esse desprezo não é merecido”. Para o filósofo grego, “o colérico se irrita sempre

contra um indivíduo em particular, [...] e isso porque ele fez ou ia fazer algo contra si ou

contra um dos seus, e porque a toda cólera se segue certo prazer, proveniente da esperança de

vingar-se [...]”.

No artigo denominado De la colère, Greimas (1983, p. 225-246) afirma que a

cólera é uma paixão complexa, ou seja, uma sequência discursiva constituída por uma

superposição de estados e de fazeres. Essa sequência divide-se em unidades sintagmáticas

autônomas que, reconhecidas, se refazem e se transformam em uma configuração passional.

É essa configuração passional que define a paixão da cólera: uma sucessão de etapas que

comporta, sucessivamente, uma frustração, um descontentamento e uma agressividade.

Entretanto, também pressupõe um estado inicial de não frustração, ou seja, de espera, que

pode ser simples ou fiduciária. Na espera simples, o sujeito deseja estar conjunto de seu

objeto-valor. Mas, enquanto a conjunção não se realiza, sendo um sujeito competente para

isso, é denominado sujeito atualizado. Na espera fiduciária, o sujeito é um sujeito de estado e

crê que outro sujeito deve ser responsável pela sua conjunção com o objeto-valor. Trata-se de

um contrato imaginário que, não se efetivando, conduz o sujeito decepcionado ao

descontentamento, que pode levá-lo a tornar-se agressivo contra o outro. Quanto à

agressividade, Greimas (1983) afirma que a agressão é suscetível de se transformar em

4 Todas as citações da obra Dictionnaire des passions littéraires (2005) são traduções nossas.

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vingança. O seu estudo se conclui com a afirmação de que a cólera tem um caráter violento,

ou melhor, pressupõe uma decepção violenta e uma “reação imediata do sujeito

decepcionado”, mesmas características da vingança. No entanto, difere a cólera da vingança

pelo /poder-fazer/ exacerbado da cólera, que domina o sujeito de tal modo que ele perde a

capacidade de aplicar a “agressividade orientada (afirmação de si e destruição do outro)”,

característica da vingança.

Sendo assim, a sequência passional da cólera que se desenha em Du Sens II

(GREIMAS, 1983, p. 226-227) é a seguinte:

[Espera Fiduciária] → Frustração → Descontentamento → Agressividade

A “cólera literária” também é, para Fontanille (2005, p. 61-79), uma paixão

complexa, é uma paixão originada de outra paixão e por ela controlada, comportando

avaliações positivas ou negativas, que a transformam em comportamento moral. Esse

comportamento moral recobre e camufla o funcionamento propriamente passional, visto que o

discurso ético, ao revelar suas articulações principais, preocupa-se mais com a explosão

colérica, “com sua oportunidade, com seus efeitos e com sua ética”. Na visão do semioticista,

baseando-se em Aristóteles e Sêneca, essas avaliações morais são determinadas por um

momento histórico e por uma cultura, e podem considerar a patemização do sujeito justa ou

fraqueza de caráter.

Para Fontanille, no esquema desenvolvido por Greimas em Du Sens II não há

preocupação com o funcionamento textual e com o desenvolvimento discursivo da cólera.

Além disso, Greimas superpõe a espera e a confiança para caracterizar um tipo de espera que

não seria somente temporal. Todavia, seja a espera simples ou fiduciária, não pode ser

confundida com a confiança, que não se relaciona à cólera propriamente, já que a maior parte

da confiança depositada no outro não conduz à cólera. O mesmo ocorre na relação entre

espera e frustração, que também não desemboca na explosão da cólera. Algumas frustrações

levam ao desespero, outras, a simples e duráveis descontentamentos; outras, enfim, são

compensadas por contra estratégias, de vingança ou de represália. Quanto à explosão, essa

fase não pode ser confundida com a agressividade, pois diferentes derivados da cólera podem

se manifestar sem a explosão final, enquanto variações da agressividade. Desse modo, como

existem alternativas à explosão, parece-lhe útil inscrever a explosão no final da sequência

canônica em razão da sua função de “descarga” imediata e muito precoce da agressividade.

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Por isso, o esquema greimasiano é complementado por Fontanille (2005, p. 63), como segue:

Confiança → Espera → Frustração → Descontentamento → Agressividade → Explosão

Ao explicar cada uma das fases da sequência canônica da cólera acima

ilustrada, Fontanille (2005, p. 63-79) assevera que:

A confiança “é uma relação entre ao menos dois sujeitos, e pode ser

formulada como um ‘crer em’ alguém” (FONTANILLE, 2005, p. 64). Para

ele, trata-se de um estado passional de crença em alguém no qual é

estabelecido um contrato fiduciário, explícito ou não, entre o sujeito

patemizado e um destinatário, sendo o último aquele em quem a confiança é

depositada. Dessa forma, a confiança pode, no mínimo, “afetar a

representação de um estado ou de um acontecimento” ao modalizar o sujeito

por um /dever ser/ (FONTANILLE, 2005, p. 64).

Na espera há uma relação entre o espaço de tempo em que o sujeito espera

pelo cumprimento do contrato fiduciário pelo destinatário e “a capacidade do

sujeito de suportar a demora de realização” (FONTANILLE, 2005, p. 64).

Como a espera “guarda a memória da confiança que a funda”, a junção

eufórica depende da ação de outro sujeito (ou outros sujeitos). Por isso, o

sujeito da espera não tem a certeza de que a junção desejada será realizada e

vê essa espera desdobrada em “um ‘crer em qualquer coisa’ (o estado

esperado) e um ‘crer em qualquer um’ (aquele que deve realizar essa qualquer

coisa)” (FONTANILLE, 2005, p. 64).

a frustração, segundo Fontanille (2005, p. 64), em sua definição narrativa

elementar “[...] concerne à relação entre sujeito e objeto” em um estado de

privação ou falta. Para o semioticista, “enquanto momento passional da

sequência, ela reatualiza a promessa de conjunção anterior, e a falta apenas se

prova, nesse caso, sobre o fundo da confiança e da espera decepcionadas”

(FONTANILLE, 2005, p. 64). Por esse motivo, essa configuração passional

ocorre na constatação da irrealização da junção, ou seja, na intensificação da

necessidade de cumprimento da promessa de junção. Nesse momento, o

sujeito da cólera percebe que será privado do objeto-valor e “seu corpo

sensível é tomado pela decepção”. Há, pois, nessa fase, uma reativação do

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/querer/ do sujeito.

O descontentamento, de acordo com Fontanille (2005, p. 65), trata da relação

do sujeito consigo mesmo:

[...] decepcionado pela frustração, o sujeito confronta o que ele esperava e o

que ele obtém (o estado esperado e o estado realizado) e conclui por uma

situação insatisfatória, por uma inadequação entre o si projetado e o eu atual.

Mas, enquanto momento passional da cólera, o descontentamento é

igualmente direcionado a qualquer outro, qualquer um que se tinha engajado,

que antes talvez prometera, e que está ao menos implicado nessa

inadequação. Esse ‘qualquer outro’ talvez si mesmo, mas em um outro papel

actancial, um ‘si-mesmo’ com o qual se contava para a realização do

acontecimento esperado (FONTANILLE, 2005, p. 65)

Segundo o autor (2005, p. 65), quando há uma confrontação deceptiva entre os

dois estados, uma tensão é provocada entre o sujeito do querer (o Si projetado)

e o sujeito do saber (o “Eu” atual). Esse “actante clivado, dividido entre suas

modalizações que suporta dois estados contrários ou contraditórios”

(FONTANILLE, 2005, p. 65), torna-se instável (inquieto, agitado). Essa

instabilidade requer resolução. Por isso, num momento posterior às sequências,

esse actante deverá voltar a ser um actante inteiro.

a agressividade, conforme Fontanille (2005, p. 65), pode ser endereçada ao

outro sujeito, aquele “que não honrou a promessa”, ou aos objetos que

impediram a realização da junção com o objeto-valor. Nos dois casos, tanto o

sujeito, quanto os objetos se revelaram menos confiáveis que se imaginava.

Dessa forma, o sujeito da cólera afronta os actantes que considera antissujeitos.

Para o autor, “a agressividade pode ser descrita como um efeito da irrupção do

antissujeito no campo de presença do sujeito” (FONTANILLE, 2005, p. 65).

Significa “que o actante da cólera, revisou sua percepção do outro que ele

identifica como um antissujeito potencial” e, nesse momento, ela [a

agressividade] abre “uma sequência de afrontamento, uma prova: o actante se

prepara para a confrontação, e sua eventual agitação manifesta a emergência de

um /poder fazer/” (FONTANILLE, 2005, p. 65).

A explosão, última fase da sequência, manifesta-se no momento em que “o

sujeito, face a face consigo mesmo, resolve brutalmente as tensões acumuladas,

sem nenhuma consideração pelos objetos perdidos, pelos antissujeitos

incriminados, ou pelos danos causados” (FONTANILLE, 2005, p. 65). De acordo

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com o semioticista, a explosão cólera sempre resulta no mal do sujeito e

[...] reúne todas as identidades modais e afetivas surgidas no curso da

sequência em uma manifestação única, massiva e imediata: a resolução das

clivagens internas, a tensão versus um inteiro reencontrado torna-o violento

diante de possíveis afrontamentos. (FONTANILLE, 2005, p. 65)

Com base na explanação sobre cada fase da sequência canônica da cólera e no

fato de essa sequência nem sempre culminar na explosão de tal paixão, esta pode ser

considerada um “ramo” passional, ou seja, a versão sintáxica da “gama” passional

(FONTANILLE, 2005, p. 74). Esse ramo passional traça o seguinte esquema do percurso da

cólera, com suas variações:

Assim sendo, segundo Fontanille (2005, p. 78), a principal característica da

cólera é sua estrutura sequencial, composta de fases ordenadas e todas diferentes umas das

outras. Adotando um ponto de vista tensivo, Fontanille esclarece que essa paixão é regida pela

temporalidade do acontecimento, do programa narrativo, e das tensões apreendidas à altura da

percepção humana. Ela também opõe a relação entre a intensidade e a quantidade, que

equivale à noção de extensidade. Ademais, a cólera propicia a violência já que, ao se

manifestar, muitas vezes engendra o infortúnio e a destruição, tendo em vista ser a “reação à

ruptura unilateral do contrato fiduciário” (FONTANILLE, 2005, p. 78). Essa reação, por sua

vez, é intensa, pontual. Ao mesmo tempo, proporciona uma violência autorregulada, pois a

pontualidade da explosão limita a quantidade e a duração de seus efeitos.

Quando, porém, não há explosão da cólera, pode surgir a vingança, como

explicaremos a seguir.

1.1.5 A vingança: uma variante da paixão da cólera

Segundo Lombardo (2005, p. 279), enquanto reação a uma ação nociva ou

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assim considerada, a vingança consiste na devolução do mal com o mal. Paixão antiga,

praticada desde a mitologia grega, pelos deuses, passa a ser considerada negativa no

cristianismo, que a opõe ao perdão. Na modernidade, com o advento das leis que organizam a

justiça, a “prática selvagem do castigo”, passa a ser condenada, e essa paixão deixou de existir

enquanto prática social. Contudo, a vingança é um “sentimento humano fundamental”,

presente no cotidiano, tanto nas relações familiares quanto nas relações profissionais.

A explicação de Lombardo pode ser ratificada em Greimas e Courtés (2011, p.

535). Para os pesquisadores, a vingança é praticada pelo destinador individual enquanto a

justiça é exercida por um destinador social, porém ambos são dotados de um /poder-fazer/

pragmático de resposta similar a uma ação negativa.

Nesse sentido, Greimas (1983, p. 241, grifos do autor) assevera que a vingança

pode ser definida tanto como necessidade ou desejo de se vingar, quanto como uma ação.

Desse modo, é possível considerá-la uma “compensação moral do ofendido por punição ao

ofensor”, ou uma “punição do ofensor que repara moralmente o ofendido”. A ação, por fim,

diz respeito a dois sujeitos com vistas a restabelecer o equilíbrio entre eles, uma vez que o

equilíbrio do sofrimento é considerado uma regulação social das paixões. Assim, um é

compensado moralmente, o outro é punido, e a falta é liquidada.

Fontanille (2005, p. 66-71), por sua vez, afirma que a vingança surge como

variante da agressividade e pode surgir tanto no lugar da explosão da cólera, quanto após essa

paixão. Tem como principal característica o reconhecimento do princípio de reciprocidade

dos danos e desenvolve-se a partir de um programa de retaliação contra o antissujeito.

Presumida na reparação do dano causado, a vingança só pode ser medida em relação a esse

dano, tendo em vista: a quantidade, a temática, a duração. Enquanto resultado da ruptura do

contrato fiduciário, essa paixão substitui as regras de boas condutas por regras de más

condutas, estabelecendo um diálogo interdiscursivo não só com Lombardo (2005, p. 279-281)

– que considera a vingança “uma reação a uma ação nociva ou assim considerada”, capaz de

expor a sua dimensão pessoal ao aplicar a justiça selvagem, ou seja, devolvendo o mal com o

mal –, mas também com Aristóteles (2000, p. 9) – que afirma em Retórica das paixões, que

quem paga na mesma moeda comete a vingança. Ao mesmo tempo, o semioticista francês

também assinala que a vingança não dura indefinidamente, pois comporta, impreterivelmente,

limites quantitativos e temporais, que especificam seu papel de compensação dos danos

causados (FONTANILLE, 2005, p. 71).

Quanto ao aspecto tensivo da vingança, à medida que essa paixão revela a

explosão agressiva da confiança, unilateralmente “desprezada/ridicularizada, mas

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intensamente sentida/lastimada/deplorada”, realça “a estrutura temporal e tensiva da cólera”,

de acordo com Fontanille (2005, p. 74). Por esse motivo, quando ocorre a vingança,

[...] qualquer que seja a duração das etapas que a precedem, a última deve

ser breve, intensa, decadente, quer ela se instale no tempo e permaneça

átona, quer ela adote um perfil ascendente e progressivo; em todos os casos

ela faz com que se saia do campo passional da cólera no sentido estrito

(FONTANILLE, 2005, p. 74).

Muito pensada, “altamente cerebral”, e motivada por sentimentos e costumes

(LOMBARDO, 2005, p. 288), a vingança é composta de dois pontos de vista: da sanção

pragmática e da sanção cognitiva. Na sanção pragmática (GREIMAS, 1983, p. 241), um

programa de compensação é levado adiante pelo programa narrativo de vingança. Nele, é

conveniente para o sujeito S1, que sofre, infligir o castigo, ou seja, a punição e a dor ao mesmo

tempo, para que S2 sofra da mesma forma. A vingança é, em primeiro lugar, “um reequilíbrio de

sofrimentos entre sujeitos antagonistas”. Para o semioticista,

Tal equilíbrio de sofrimentos é um fenômeno intersubjetivo, uma regulação

social das paixões. O programa narrativo de vingança não se encontra ainda

esgotado desse feito. Com efeito, o sofrimento de S2 provoca o prazer de S1 –

uma satisfação que acompanha normalmente todo programa narrativo bem

sucedido – que, para dizer as coisas brutalmente, se deleita por ter feito sofrer

seu inimigo. A vingança é, por conseguinte, sobre o plano individual e não

mais social, um reequilíbrio dos desprazeres e dos prazeres (GREIMAS,

1983, p. 241, grifo do autor).

Diante dessa perspectiva, Greimas (1983, p. 244) conclui, consequentemente,

que na dimensão pragmática e enquanto atividade somática e gestual, a vingança é definida

pelos efeitos passionais dessa atividade e compreendida como “circulação de objetos

‘paixões’”. Ademais, compara o percurso dessa paixão ao esquema sintagmático do sádico:

O equilíbrio dos sofrimentos e dos prazeres possibilita a substituição da punição

somática através da privação dos bens, presumida na provocação do desprazer, ou da aquisição

dos bens, como reparação moral por meio de satisfações julgadas equivalentes. Dessa forma, o

/poder-fazer/ convocado pela vingança institui um destinador-julgador que transforma essa

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manifestação passional em justiça5. Por conseguinte, a intelectualização da manifestação

passional (das dores e dos prazeres) conduz ao desapaixonar da vingança, ou seja, “conduz

progressivamente à dessemantização da estrutura da vingança e a seu enfraquecimento”.

A sanção cognitiva, para Greimas, está na reinstalação da linguagem da verdade.

Nela, as manifestações figurativas exploram os universos semânticos que comportam no embate

entre o herói e o traidor, “a afirmação de si e a destruição do outro”. Fontanille (2005, p. 71-76),

por outro lado, esclarece que apesar de a vingança substituir a explosão agressiva final da cólera

e, diferentemente das manifestações passionais do ressentimento e do ódio, não dura

indefinidamente. Contudo, sua eficácia está condicionada à identificação completa como dano,

de tal modo que o antissujeito reconheça o vínculo e a equivalência entre o erro sofrido e o dano

causado. É nesse sentido que o pesquisador considera a vingança cognitiva: “não somente o

outro sujeito deve provar um dano equivalente àquele que causou, mas, reconhecer essa

equivalência, e saber que se trata de uma medida de compensação; aquele que se vinga sem

poder fazer saber é privado de uma parte de sua vingança” (FONTANILLE, 2005, p. 72).

Para concluir, o semioticista francês ainda afirma que a vingança se distingue da

cólera porque aquele estado patêmico “implica um cálculo cognitivo, um cálculo das partes,

uma avaliação das quantidades e da duração”. Essa perspectiva é equivalente à conclusão de

Greimas (1983, p. 245-246), que concebe a vingança como uma agressividade orientada por um

programa de ação, que reúne um conjunto de competências modais do sujeito na emergência do

/poder-fazer/.

Apresentamos até aqui um panorama dos estudos das paixões – especialmente

das paixões da cólera e da vingança. Como a manifestação passional também se relaciona às

formas de vida manifestadas no corpus que constitui nossa pesquisa, faremos alusão a seguir, ao

conceito de forma de vida para a semiótica francesa.

1.2 A CONCEPÇÃO DE FORMA DE VIDA EM SEMIÓTICA

Um novo modelo de análise surge no Seminário de Semântica Geral de 1991-

1992, ocorrido na École des Hautes Études en Sciences Sociales, intitulado Estética da ética:

5 Para Greimas e Courtés (2011, p. 279, grifo do autor), a justiça designa “a competência do destinador social,

dotado da modalidade do poder-fazer absoluto”. Esse destinador é chamado de julgador, porque é encarregado

de aplicar a sanção.

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moral e sensibilidade. Em 1993, como resultado desse evento, um dossiê, integralmente

dedicado à noção de forma de vida, é publicado sob a forma de revista: a Recherches

sémiotiques. Semiotic inquiry. Nesse periódico, Greimas (1993, p. 21-34)6 introduz o conceito

de forma de vida ao explicitar o interesse pela sequência de comportamentos individuais de um

sujeito frente à coletividade, que funda uma nova axiologia, própria e única, a partir da ruptura

com a moral coletiva.

Segundo Anne Beyaert-Geslin (2012), “desde sua primeira menção por Greimas

em 1991 às exemplificações de hoje, a noção de forma de vida acompanha a construção da

semiótica e concentra a interrogação sobre o ‘sentido da vida’”. Por isso, diante do legado

deixado pelo pai da Semiótica e dos atuais diálogos entre semioticistas acerca dessa herança,

parafraseando a semioticista, apresentamos os pressupostos teóricos diretamente ligados à

constituição dessa linha de investigação semiótica, como a noção de estética, em Greimas, e de

jogos de linguagem, em Wittgenstein. Em seguida, fazemos referência ao desenvolvimento do

conceito e da práxis enunciativa da forma de vida, prezando tanto o ponto de vista greimasiano,

quanto o ponto de vista tensivo, tão caro a alguns semioticistas da atualidade.

1.2.1 Da imperfeição:a noção de estesia

Com a publicação de Da imperfeição, Greimas (2002) inaugura uma nova

investigação semiótica. Segundo Oliveira (2002, p. 9-13), na introdução do livro, ao convidar o

semioticista a refletir “sobre o modo de presença da estética na vida humana, ou melhor, na

cotidianidade”, a obra propicia o interesse pelas práticas sociais, pelos objetos e pelos atos do

cotidiano tendo em vista “uma maior inteligibilidade de nossos comportamentos”. Além disso,

considerando “o papel da estesia na experiência humana”, a obra conduz o investigador “à

análise dos vários modos de recepção estética, de estruturação do gosto, das formas e estilos de

vida7 em nossa sociedade”.

As explanações de Oliveira dizem respeito à observação de Greimas (2002, p.

24-82) sobre as experiências estéticas vividas por seres do mundo real, sujeitos históricos

“reais”, que são estetizadas em apreensões “de papel” na arte literária. Por isso, esses

6 Todas as citações de textos publicados na revista Recherches sémiotiques. Semiotic inquiry (1993), como “Le

beau geste” e “Les formes de vie”, são traduções nossas. 7 Esclarecemos que, nesse contexto, a expressão “estilos de vida” não se refere à linha de investigação da

sociossemiótica.

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simulacros podem, com base na análise de comportamentos humanos “vividos”, externar

informações sobre a condição humana. Diante disso, o semioticista expressa sua preocupação

com a apreensão estésica – enquanto descontinuidade no discurso pela ruptura de isotopia na

vida representada – e com a conversão da originalidade em “originalidade coletiva”, que leva o

investigador a uma reflexão sobre a ameaça da apatia, imposta pelo uso e pela usura, à estesia.

Para Greimas (2002, p. 75-76), a estesia está presente nos comportamentos

diários, ou seja, manifesta-se nas práticas cotidianas, que reclamam inteligência sintagmática.

Por isso, a continuidade da vida “vivida” exige escolhas sucessivas e ininterruptas na condução

da construção de um objeto de valor. Ao mesmo tempo, as práticas cotidianas manifestam

juízos de valor. Mas, esses juízos de valor, ou moralização, não pertencem à dimensão estética,

já que estão ligados ao saber viver, à boa educação. Pertencem; pois, à dimensão ética.

O semioticista (GREIMAS, 2002, p. 77-82) ainda considera que, na

cotidianidade, a classificação cultural das figuras exige conformidade com “as formas

elementares dos grandes estilos”. Assim, seu uso constitui o gosto, corroborando com o fato de,

desde o Iluminismo, o “estilo” ser considerado uma “dimensão social de avaliação”. Além

disso, lembra que é no Iluminismo que surge a ideia de “originalidade”8 que, conjuntamente à

noção de progresso, erige um conjunto de valores formador do estilo de vida. Contudo, o uso

banaliza os comportamentos cotidianos tidos como originais ao convertê-los em programas de

uso mais favoráveis aos ditames sociais. Ao mesmo tempo, a vida a ser “vivida” é corroída pela

usura, que a deixa redundante e sem conteúdo. Dessa forma, assim como a originalidade, as

tentativas de viver outra vida também são socializadas e socializáveis de tal modo que as

práticas cotidianas podem ser comparadas às paixões, que se fixam em papéis patêmicos, ou

melhor, em simulacros passionais representáveis, em razão da repetição.

Essa preocupação de Greimas com a estética da vida cotidiana relaciona-se,

como veremos, à elaboração da noção de forma de vida em semiótica a partir dos pressupostos

teóricos de Wittgenstein.

1.2.2 A contribuição de Wittgenstein

8 Greimas (2002, p. 89) também acredita que a concepção baudelariana de originalidade na vida cotidiana é mais

aceita pela semiótica do que a concepção do século das Luzes. Chamada meta-semiótica, propõe um novo

desregramento a partir da estética do gosto já integrado, reclamando a investidura do inesperado no além das

esperas esperadas.

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35

Inicialmente, segundo Fontanille (1993, p. 7), parecia mais adequado escolher a

noção de “estilo de vida” para expressar a estetização da vida cotidiana, caracterizada pelo

“modo como indivíduos e grupos exprimiriam sua concepção existencial pela forma de fazer e

de ser, de consumar e arranjar seu meio”9. Contudo, Greimas prefere utilizar o termo formas de

vida – tomado de empréstimo das Investigações filosóficas de Wittgenstein –, visto que procura,

por um lado, marcar, de modo simbólico, “a linha divisória entre as preocupações antes

psicossociológicas e o domínio próprio da semiótica” – a relação entre o sensível e o inteligível

– e, por outro lado, ancorar as questões que nasciam na filosofia da linguagem – como a

inquietação em relação ao uso.

Em capítulo de Tensão e significação, dedicado exclusivamente ao estudo das

formas de vida, Fontanille e Zilberberg (2001, p. 203), esclarecem que em seu trabalho, ao se

preocupar com a pragmática dos “jogos de linguagem”, Wittgenstein concede primazia ao

cultural, à adaptabilidade dos usos linguísticos e semióticos, sobre o sistema e a estrutura. O

filósofo propõe um encadeamento conceitual em que “expressões” são estabelecidas pelo “uso”.

Este, por sua vez, pertence a um “jogo de linguagem”, inserido em uma “forma de vida”. Tal

encadeamento possibilita a substituição dos usos, considerados “em si mesmos lábeis,

imprevisíveis e insignificantes, por formas intencionais e/ou codificadas, capazes de ancorar em

cada expressão o sentido da práxis cotidiana”. Logo, como o próprio Fontanille (1993, p. 7)

assevera em Les formes de vie, sobre o trabalho de Wittgenstein, a significação das expressões

somente pode advir do uso, na forma de jogos de linguagem, surgidos nas formas de vida, ou

seja, a significação é descrita nas formas de vida e as formas de vida atualizam-na. Desse modo,

constantemente, novos jogos de linguagem podem ser inventados, assim como novos usos, para

novas formas de vida.

No que concerne à questão da imprevisibilidade dos usos, Fontanille e

Zilberberg (2001, p. 203) afirmam que os usos podem ser estabilizados pelos jogos de

linguagem na construção de uma forma de vida pela ação da condensação e da expansão. Por

meio desses procedimentos, os usos possibilitam às figuras – ou palavras –, serem articuladas e

se transformarem em formas de vida. Essas formas de vida, por conseguinte, subsumem e

fazem as figuras significarem, como esclarece o semioticista:

A relação de condensação/expansão entre a significação de uma figura e uma

forma de vida pode ser compreendida como uma relação de interpretação. A

“forma de vida” explicita a isotopia segundo a qual a figura e a estrutura

9 A perspectiva de Greimas sobre a noção de estilo de vida, enquanto prática cotidiana e parte da estética da vida

representada, encontra-se em Da imperfeição (2002, p. 77-78).

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encatalisada devem ser lidas; essa seria, de qualquer modo, a

interpretabilidade da figura (sua inteligibilidade) a qual depende do

reconhecimento prévio da forma de vida correspondente (FONTANILLE,

1993, p. 8).

Nesse procedimento de condensação e expansão, enquanto manifestação de uma

forma de vida, a figura equivale ao condensado de uma forma de vida inteira, conforme

Fontanille e Zilberberg (2001, p. 204).

Outra observação de Fontanille (1993, p. 9) sobre o trabalho de Wittgenstein

refere-se à estabilização dos usos, como produtos da história e da cultura. Quando isso ocorre, a

práxis enunciativa engendra protótipos e estereótipos à medida que ela reorganiza e completa,

incessantemente, as estruturas semionarrativas. Por esse motivo, fica difícil estabelecer uma

estrutura representativa da forma de vida, uma vez que os universos semióticos são, ao mesmo

tempo, heterogêneos – não afetam todos os níveis do percurso gerativo do sentido igualmente –

e coerentes – embora as distorções no uso sejam diferentes em cada caso, produzem o “mesmo

efeito de sentido e exprimem a mesma concepção da vida”. Sendo assim, nas palavras do

semioticista:

As formas de vida são enunciações na medida em que a manifestação de uma

entidade discursiva e figurativa qualquer, para parafrasear Wittgenstein,

convoca para sua interpretação e sua colocação em discurso, o conjunto de

adaptações e de seleções operadas no percurso gerativo pelo uso, em vista de

realizar uma forma de vida inteira; essa convocação passa por um ato de

linguagem e toma a forma de um sintagma enunciativo identificável

(FONTANILLE,1993, p. 9).

Portanto, considerando a necessidade de a semiótica examinar em que condições

os estereótipos e os protótipos são estabilizados e desestabilizados, inseridos novamente na

cultura e disponibilizados para convocações de novas formas de vida, é necessário determinar

como a práxis enunciativa se organiza para “modificar essas unidades tipos ou criar novas”

engendrando unidades discursivas e manipulando discursos realizados (FONTANILLE, 1993,

p. 9).

1.2.3 A construção do conceito

Em “Le beau geste”, após narrar minuciosamente como o belo gesto, enquanto

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forma de vida, é construído e afirmado em uma cultura, mediante o rompimento com a moral

social, coletiva, e afirmação de uma moral individual do sujeito, Greimas concebe o conceito de

forma de vida em Semiótica. Segundo o autor, a ruptura com a moral social provoca uma

mudança radical de forma de vida, que inscreve o indivíduo na perspectiva de “uma nova

‘ideologia’, de uma ‘concepção de vida’, de uma ‘forma’ que é ao mesmo tempo uma filosofia

de vida, uma atitude do sujeito e um comportamento esquematizável” (GREIMAS, 1993, p.

32). Tal perspectiva é diferente da noção de “estilos de vida” de superfície, que estão mais

ligados às concepções da sociologia e, portanto, mais próximos dos estereótipos. Nesse sentido,

a forma de vida pode ser definida, concomitantemente, “por sua recorrência nos

comportamentos e no projeto de vida do sujeito [...] por sua permanência, [...] pela deformação

coerente que ela induz a todos os níveis dos percursos de individuação”: níveis sensível e

tensivo, passional, axiológico, discursivo e aspectual, etc. (GREIMAS, 1993, p. 33).

No artigo “Les formes de vie”, também publicado na Recherches sémiotiques.

Semiotic inquiry, Fontanille (1993, p. 5-6) define forma de vida como “configurações onde uma

‘filosofia de vida’ se expressaria por uma deformação coerente do conjunto de estruturas

definindo um projeto de vida”. Essa definição corrobora a afirmação de Greimas e ainda a

complementa ao considerar que a forma de vida tem origem em uma práxis enunciativa, que se

faz e se desfaz pelo uso, à medida que é inventada, praticada ou revelada por “instâncias

enunciantes”, coletivas ou individuais.

Quanto à pertinência dos estudos sobre forma de vida em Semiótica, e ainda

pensando na afirmação de Oliveira (2002, p. 13) sobre a investigação semiótica das práticas

sociais e dos atos do cotidiano, no dizer de Greimas (2002, p. 33), a sociedade poderia deixar de

ser dividida em grupos territoriais, em instituições e em classes sociais para ser “articulada e

compreendida como um conjunto dos ‘seres semióticos’” com existência própria, ou seja, a

sociedade poderia ser dividida de acordo com as “pessoas morais” e as formas de vida. Assim,

as formas de vida e as “pessoas morais” seriam moralizadas como os papéis patêmicos e os

papéis temáticos, podendo ser interpretadas “como um efeito da práxis enunciativa que, assim

como engendra e solidifica, depois convoca novamente papéis patêmicos e papéis temáticos; ela

criaria, fixaria, depois convocaria de novo ‘formas de vida’”. Desse modo, diferentes formas de

vida, já esquematizadas e estereotipadas (pela recorrência, pela permanência e pela deformação

coerente nos níveis dos percursos de individuação), podem ser objeto de análise da semiótica,

visto que são “papéis modificando as condutas, as relações com o outro, a percepção do mundo

e sua organização figurativa” que, posteriormente, fundam “uma nova sabedoria, uma filosofia

da vida, uma nova identidade modal, de novas relações humanas” (GREIMAS, 1993, p. 33).

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38

Adotando a perspectiva da semiótica tensiva, os autores de Tensão e

significação, asseveram que:

O conceito de forma de vida pertence ao paradigma das esquematizações

semióticas. Mas ele teria, em princípio a peculiaridade de integrar as

esquematizações atualmente conhecidas: salvo melhor juízo, um esquema

discursivo, um esquema narrativo, um esquema modal, um esquema tensivo

e até mesmo, [...] um esquema relativo às estruturas elementares da

significação, em sua interpretação topológica. Porém, a particularidade dos

esquemas – a de encontrar-se dispostos ente o sistema, que sustentam, e o

uso, do qual se alimentam – incita a pô-los em relação com a problemática

dos modos de existência (FONTANILLE; ZILBERBERG, 2001, p. 207,

grifos dos autores).

Ao abarcar, ao mesmo tempo, os esquemas discursivo, narrativo, modal e

tensivo, Fontanille e Zilberberg (2001, p. 209) consideram a forma de vida um “esquema de

esquemas”, que responde “pela coerência e significação de todos os esquemas imanentes a um

conjunto discursivo vinculado à enunciação”. Essa definição parece manter os pressupostos

de Greimas (1993, p. 33), que considera a forma de vida, como já dissemos, uma deformação

coerente nos níveis dos percursos de individuação, sendo eles o sensível e o tensivo, o

passional, o axiológico, o discursivo e o aspectual, dentre outros. Por outro lado, ao

relacionarem os modos de existência à forma de vida, introduzidos como particularidade dos

esquemas que a compõem, os pesquisadores delineiam o lugar da forma de vida no espaço

tensivo. Este, assevera Zilberberg (2012, p. 1-4), funda-se na intersecção das grandezas de

intensidade (tensão entre fraco e forte) e de extensidade (tensão entre concentrado e difuso),

onde agem os modos semióticos, que se baseiam na relação do sujeito com o que o avizinha,

ou seja, com o campo de presença. Consequentemente, a forma de vida está intimamente

ligada à noção de acontecimento, noção sobre a qual discorreremos de forma mais

aprofundada posteriormente.

Além disso, a concepção de forma de vida relaciona-se ainda com os efeitos de

sentido passionais, porque, assim como as paixões, a forma de vida é composta de papéis

temáticos e arranjos modais estereotipados, que se associam a axiologias e a formas

aspectuais e tensivas. Diferem das paixões, todavia, pelo fato de que “as paixões infletem

apenas a dimensão tímica dos discursos, enquanto as formas de vida afetam as suas

componentes”. Pode-se considerar, inclusive, “que uma forma de vida se organiza em torno

de uma paixão prototípica, como, por exemplo, a busca a partir da espera” (FONTANILLE;

ZILBERBERG, 2001, p. 218-219).

Mais recentemente, no Vocabulaire des études sémiotiques et sémiologiques,

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39

Beyaert-Geslin (2009b, p. 202) afirma, no verbete “forma de vida”, que esse conceito da

teoria semiótica “descreve um regime de presença do sujeito no mundo manifestado pelas

propriedades discursivas recorrentes (modais, aspectuais, etc.)”. Para a semioticista, à medida

que a forma de vida caracteriza o sujeito no discurso revela o sujeito passional.

Esse ponto de vista se coaduna com as perspectivas greimasiana e

zilberberguiana, que tanto em “Le beau geste”, quanto em Tensão e significação, enfatizam

que a forma de vida tem influência sobre as diferentes “propriedades discursivas” e se

relacionam intimamente com a esfera passional. Por esse motivo, Fossali (2012, p. 6),

parafraseando Fontanille, complementa que “a forma de vida somente pode ser um ‘modelo

cultural’”, mas fundado na deformação que “corre ao longo da articulação semiótica”.

Ademais, julga significativa a contribuição de Tensão e significação na elaboração de

critérios para identificação de uma forma de vida e define-a como “modalidade de seleção e

de gestão de valores elaborados [...] sustentada por cenarizações privilegiadas de confrontação

inter-actancial”, onde é preservada a narrativização identitária dentro de um percurso

existencial.

Essa definição também não se distancia dos ensinamentos de Fontanille e

Zilberberg (2001, p. 225-226), visto que a forma de vida pode ser apreendida em razão das

escolhas axiológicas próprias a um indivíduo ou a uma cultura, quando ligadas à globalidade

de uma prática significante. E, na qualidade de prática cotidiana, a forma de vida pode

aparecer ou desaparecer conforme os usos. Mas, o desaparecimento não é completo, pois

embora a dimensão estética desapareça, a dimensão ética10

permanece, pois é “imanente à

nostalgia que se concretiza” no sujeito, afirmam os semioticistas.

Em suma, ao longo dos vinte anos de existência do conceito de forma de vida

continuam relevantes as reflexões de Greimas sobre o conceito. Entretanto, novos conceitos,

como a noção de acontecimento, relacionado às grandezas tensivas, da perspectiva

zilberberguiana, passaram a ser vinculados à noção de forma de vida. Nesse sentido, parece-

nos pertinente a afirmação de Beyaert-Geslin (2012, p. 4) de que a forma de vida promove um

diálogo entre as gerações de semioticistas e as teorias em torno da herança greimasiana, como

essa pesquisa, em que adotamos o ponto de vista tensivo sobre as formas de vida.

10

Ou moralização, de acordo com Greimas (1993, p. 22-23).

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40

1.2.4 A práxis enunciativa da forma de vida

Quando Fontanille (1993, p. 10-11) apresenta o conceito de forma de vida,

explicita a existência de alterações ou de seleções no que diz respeito às estruturas narrativas

modais ou actanciais, à percepção e à sensibilidade, à intensidade e à quantidade (ou

extensidade) e às formas passionais. Segundo o semioticista francês,

[...] grande parte da semiótica narrativa é construída ao redor de uma só

forma de vida, procedente de um só tipo de intencionalidade [...] No entanto,

com a teoria das modalidades e a das paixões, outros encaminhamentos

vieram à luz, outras maneiras de ‘dar sentido à vida’ emergiram.

(FONTANILLE, 1993, p. 12).

A semiótica tensiva, por sua vez, complementa essa introdução fontanilliana.

Em Tensão e significação, Fontanille e Zilberberg (2001, p. 211-221) explicam que se nos

voltarmos ao par coerência e congruência, a construção de dispositivos canônicos

reconhecíveis pelo uso e pelas culturas, por meio da esquematização, torna sensível a

coerência de uma forma de vida. À proporção que papéis modais, actanciais e patêmicos

medeiam o equilíbrio ou o desequilíbrio, internos à função semiótica, delineiam-se os actantes

coletivo e individual. Um regime é, então, selecionado e uma cadeia de seleções congruentes

opera nos demais níveis, tornando o conjunto coerente e a forma de vida identificável, e,

portanto, nomeável, como as paixões.

Nesse panorama, a práxis enunciativa também é carregada de tensões, surgidas

na integração das grandezas de intensidade e de extensidade, e dos modos semióticos11

, que

constituem o acontecimento. Como observa Zilberberg (2012, p. 7), o acontecimento e o

exercício constituem os horizontes das formas de vida, disponíveis a se oporem ou a se

designarem conforme o acontecimento ou o exercício chama um sujeito. Na relação das

formas de vida com os modos de existência, por exemplo, segundo Fontanille e Zilberberg

(2001, p. 211), a valência de extensidade convoca as triagens e as misturas, operadores

discursivos que se relacionam, ora com a intensidade, ora com a extensidade (ZILBERBERG,

2006, p. 192). Assim, as operações de triagem estão a serviço da pureza – comparada à pureza

do diamante – na presença de valores do absoluto, enquanto as operações de mistura estão a

serviço da difusão na presença de valores do universo (ZILBERBERG, 2006, p. 195). Nesse

11

Ver o conceito de modos semióticos às páginas 44-45.

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41

sentido, como esses operadores discursivos estão amalgamados aos valores semióticos12

“[...] o sujeito semiótico não pode evitar de triar misturas, visando a um valor do absoluto, e

de misturar triagens, visando a um valor do universo” (ZILBERBERG, 2006, p. 193) – e não

poderão ser dissociados das análises, nesse trabalho, tratemos brevemente dessa questão.

De acordo com Fontanille e Zilberberg (2001, p. 45-52, grifos dos autores), as

grandezas comportam valores discursivos que se relacionam com os modos de existência.

Esses valores são nomeados valores de absoluto, quando há domínio do foco, e valores de

universo, quando impera a apreensão. Os valores de absoluto integram a grandeza de

intensidade, à medida que reconhecem o uno na intensidade sem extensidade. Em oposição,

os valores de universo integram a grandeza de extensidade e reconhecem na extensidade sem

intensidade o universal. Para que isso seja possível, os valores de absoluto recorrem às

operações de triagem e de fechamento – sendo beneficiados pela concentração –, e os valores

de universo lançam mão da abertura e da mistura, que os beneficiam com a expansão. Assim,

no “regime que visa aos valores de absoluto, o máximo de intensidade está associado à

unicidade”, à exclusão. A diminuição da intensidade implica a abertura, em que o aumento da

extensão conduz à universalização, à participação. Posteriormente, no artigo “Síntese da

gramática tensiva” o próprio Zilberberg assevera que

[...] A afirmação da superioridade intrínseca das operações de triagem sobre

as operações de mistura acaba por promover a reiteração da triagem, isto é,

por triar a triagem obtida, com vistas à pureza [...]; em todas as acepções do

termo, estamos em presença de valores de absoluto, concentrados e

reflexivos. A afirmação inversa, ao instalar a mistura muito acima da

triagem, ao misturar as misturas, admitindo a plausibilidade de uma classe

das classes resulta no elogio dos valores de universo, difusores e transitivos.

[...] Um mundo “jansenista”, em que os valores de absoluto não

concedessem qualquer lugar para os valores de universo seria um mundo de

excluídos; a configuração inversa, [...] seria um mundo de incluídos [...]

(ZILBERBERG, 2006, p. 195, grifos do autor)

Portanto, na interação dos operadores discursivos com os modos semióticos em

uma forma de vida,

[...] quando a triagem é adotada como ponto de vista pertinente, o ‘todo’ é

avaliado como mau, pois que comporta partes julgadas impuras [...]. Por

outro lado, quando prevalece a mistura, a direção se inverte: o ‘todo’ é

avaliado como bom se for completo, e mau, se apresentar

12

Já fizemos referência sucinta aos valores semióticos na página 22, quando tratamos das paixões.

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42

faltas....(ZILBERBERG, 2006, p. 195)

Desse ponto de vista, a concatenação de seleções, operadas pelas triagens e

pelas misturas, nos diferentes níveis do percurso gerativo, configuram uma forma de vida,

como asseveram Fontanille e Zilberberg (2001, p. 213).

Quanto aos modos de junção, eles opõem a concessão à implicação. A

concessão, segundo Zilberberg (2012, p. 6-8), compõe a semiótica do acontecimento e, ao ser

convocada, permite reconhecer tanto os excessos da sintaxe intensiva, quanto “a legitimidade

das entradas e das saídas em que o campo de presença é o teatro”. Mas, se formulada como

implicação, o esquema narrativo deixa de ser exclusivo. Nesse campo de presença não

existem excessos e a forma de vida insere-se no exercício, em oposição ao acontecimento. No

que concerne à temporalidade e à espacialidade, consoante Fontanille e Zilberberg (2001, p.

222), a forma de vida pode apresentar uma aceleração lenta ou viva, uma tensão efêmera ou

durável – do lado da temporalidade –, e um campo de presença aberto ou fechado, próximo ou

distante – do lado da espacialidade.

De mais a mais, na apresentação do dossiê do número 115 da revista Nouveaux

actes sémiotiques, um compilado das novas teorizações sobre a forma de vida, Beyaert-Geslin

(2012, p. 3-5) afirma que “a exploração da noção de forma de vida acompanha a construção

do edifício conceitual da semiótica”. De acordo com a semioticista, a forma de vida é “a pedra

angular dos diferentes edifícios teóricos”, pois controla não somente a semiótica das práticas,

mas também a semiótica tensiva e a sociossemiótica. E é sob o ponto de vista da semiótica

tensiva de Claude Zilberberg, que analisaremos a constituição da forma de vida no corpus

desse trabalho. Antes disso, porém, tendo em vista a íntima relação entre as noções de forma

de vida, paixão e acontecimento, exploraremos, também, o conceito de acontecimento.

1.3 NA IRRUPÇÃO DO INESPERADO, O ACONTECIMENTO

Em Da imperfeição (GREIMAS, 2002, p. 25), a concepção de apreensão

estética está inserida na cotidianidade e leva em conta as articulações da sequência discursiva

na relação particular entre sujeito e objeto. Essas articulações discursivas são,

consequentemente, marcadas pela descontinuidade no discurso e pela ruptura na vida

representada, que podem ser criadas pela pontualidade imprevisível da suspensão do tempo e

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43

da petrificação do espaço. O conceito de acontecimento, elaborado por Zilberberg à luz da

semiótica tensiva, pode começar a ser lido sob essa perspectiva.

Zilberberg, ao desenvolver a noção de acontecimento no contexto da Semiótica

tensiva, insere-a em oposição ao fato e na figura do inesperado. Por isso, inicialmente,

atentemo-nos à relação de oposição entre acontecimento e fato:

[...] o fato tem por correlato intenso o acontecimento, o que equivale dizer: o

fato é o resultado do enfraquecimento das valências paroxísticas de

andamento e de tonicidade que são as marcas do acontecimento. Em outras

palavras, o acontecimento é o correlato hiperbólico do fato, do mesmo modo

que o fato se inscreve como diminutivo do acontecimento. Este último é

raro, tão raro quanto importante, pois aquele que afirma sua importância

eminente do ponto de vista intensivo afirma, de forma tácita ou explícita, sua

unicidade do ponto de vista extensivo, ao passo que o fato é numeroso. É

como se a transição, ou seja, o “caminho” que liga o fato ao acontecimento,

se apresentasse como uma divisão da carga tímica (no fato) que, no

acontecimento, está concentrada (ZILBERBERG, 2007, p. 16)

Isso quer dizer que quando a intensidade da carga tímica é fraca, temos o fato,

o que ocorre com mais frequência no cotidiano. Nesse caso, o andamento é desacelerado e a

tonicidade é átona na valência de intensidade, ao mesmo tempo em que, na valência de

extensidade, a temporalidade é prolongada e a espacialidade aberta, o que corresponderia à

“divisão da carga tímica” a que se refere o autor. Quando a carga tímica das valências tensivas

é recrudescida, o que é incomum, temos o acontecimento, ou seja, o andamento da valência de

intensidade é acelerado, e a tonicidade é tônica, acompanhados de uma temporalidade

momentânea em um espaço fechado na valência de extensidade, equivalendo à concentração

da carga tímica, como mencionado no excerto acima.

Zilberberg (2011, p. 164-169) alerta que a reflexão sobre o acontecimento é

anterior à linguística e à semiótica. Segundo ele, essa reflexão remonta aos estudos de

Descartes sobre a “admiração”. Tais estudos propiciam ao semioticista destacar a importância

do intervalo existente entre o esperado, que seria o foco e seu objeto, e o inesperado, isto é, a

apreensão e seu objeto, ou o sobrevir. Nessa perspectiva, opõe a “admiração” à percepção.

Considera que a primeira, enquanto “intensidade repentina e superior daquilo que sobrevém”,

é modalizada pelo sofrer até decair, ao passo que a segunda é o seu correlato, porém

“inacentuado ou desacentuado” e modalizada pelo agir.

Ademais, de acordo com o cientista da linguagem, em contraposição ao estado,

que é resolução dos sincretismos intensivo e extensivo projetados pelo discurso, o

acontecimento é a figura do inesperado, por isso não pode ser antecipado. É, portanto, “algo

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afetante, perturbador, que suspende momentaneamente o curso do tempo”. Todavia, o tempo

não pode ser impedido de retomar o seu curso e o acontecimento esmaece de tal forma que se

potencializa, tornando-se legível e inteligível.

Além disso, a configuração do acontecimento, assim como a configuração do

exercício, não ocorre apenas na concentração ou na divisão da carga tímica do sujeito, pois a

relação entre o sujeito e o seu campo de presença, onde agem as grandezas tensivas, é

mediada pelos modos semióticos (ZILBERBERG, 2007, p. 16). Por esse motivo,

explicaremos, agora, o que são modos semióticos, como se constituem e de que forma

contribuem com o despontar do acontecimento.

1.3.1 Os modos semióticos

Como observa Zilberberg (2007, p. 16), a noção de modo está presente tanto na

linguística, quanto na semiótica.

Na linguística, relaciona-se com o verbo – modos do verbo. De acordo com o

dicionário de língua portuguesa, o modo integra a gramática, e é definido como “cada um dos

diferentes paradigmas que o verbo apresenta em algumas línguas, como as neolatinas, para

indicar a modalidade, a atitude (de certeza, dúvida, desejo etc.) da pessoa que fala em relação

ao fato que enuncia” (HOUAISS, 2009). Ainda de acordo com o Houaiss (2009), na língua

portuguesa, esses paradigmas modais são divididos em modos indicativo, subjuntivo e

imperativo. Já no dicionário francês Micro-Robert (2013), o modo é definido como “forma

particular sob a qual se apresenta um fato, se completa uma ação”, embora, para Zilberberg

(2007, p. 16), reúna ou confunda os dois aspectos.

Em semiótica, o conceito de modo é intrínseco à definição de modalidade e

relaciona-se com os estudos dos modos de existência, realizados por Greimas. No Dicionário

de semiótica, a modalidade é entendida como “a produção de um enunciado dito modal que

sobredetermina um enunciado descritivo” (GREIMAS; COURTÉS, 2011, p. 314). Esse

enunciado é considerado por Greimas e Courtés (2011, p. 314-315) transitivo, “suscetível de

atingir um outro enunciado como objeto”. Nesse sentido, à medida que os enunciados de fazer

e de estado se encontram na situação de enunciados descritivos ou de enunciados modais,

podem ser classificados como modalizações do fazer ou do ser. Simultaneamente, ao tratarem

da existência semiótica, Greimas e Courtés (2011, p. 195) não somente reconhecem no

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45

trabalho de Saussure uma existência13

virtual no eixo paradigmático e uma existência atual no

eixo sintagmático – distinção baseada na dicotomia língua e fala –, como também identificam

uma existência realizada, tendo em vista a manifestação discursiva. Nesse sentido, conforme

os discursos descrevem simulacros de situações e ações “reais”, os modos de existência, ou de

realização, são, na perspectiva dos percursos do fazer, configurados como “modelo para uma

semiótica da ação e da manipulação”.

Assim, ao considerarem a realização em uma semiótica da ação, os autores do

Dicionário de Semiótica afirmam que em um discurso,

um sujeito semiótico não existe enquanto sujeito senão na medida em

que se lhe pode reconhecer pelo menos uma determinação, ou seja,

que ele está em relação com um objeto-valor qualquer. Da mesma

forma, um objeto [...] só o é enquanto esteja em relação com um

sujeito, enquanto é ‘visado’ por um sujeito. É a junção que é a

condição necessária tanto à existência do sujeito quanto à dos objetos.

(GREIMAS E COURTÉS, 2011, p. 195)

No que concerne à semiótica tensiva, Zilberberg (2011, p. 176) observa que as

questões referentes ao modo, em linguística, e à modalidade, embora não se sobreponham por

completo, são muito próximas entre si já que o modo avalia a eficiência suposta da

modalidade em discurso. Por isso, o conceito de modo é introduzido no estudo sobre o

acontecimento, em semiótica, tendo em vista explicitar e resolver o sincretismo existencial

entre fato e acontecimento, e ainda para determinar o “precipitado de sentido que constitui,

tanto coletiva quanto individualmente, o acontecimento” (ZILBERBERG, 2007, p. 16).

Do ponto de vista de Zilberberg (2012, p. 4), os modos semióticos visam,

portanto, à relação do sujeito com o que o avizinha, ou seja, com o campo de presença. Nessa

relação, ora o sujeito controla o campo de presença, ora dele escapa. Servindo de mediação

entre o esquema e o discurso, os modos se dividem em modos de eficiência, modos de

existência e modos de junção. Nesse sentido, os modos semióticos explicam como o sujeito se

relaciona com seu entorno.

1.3.1.1 Os modos de eficiência

13

Greimas e Courtés (2011, p. 195) entendem que existência semiótica é uma grandeza qualquer, “determinada

pela relação transitiva que, tomando-a como objeto de saber, a liga ao sujeito cognitivo”.

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46

Os modos de eficiência representam a forma como as grandezas de intensidade

e de extensidade penetram no campo de presença do sujeito sob as condições do tempo. Tem-

se uma oposição entre o sobrevir e o conseguir. O sobrevir é entendido como negação do

prevenir, ou seja, aceitação do inesperado, que é o acontecimento. Porém, quando o sujeito

requisita a instalação das grandezas tensivas em seu campo de presença, tem-se o conseguir.

Tanto o sobrevir, quanto o conseguir são regidos pelas subvalências de

andamento e de temporalidade, cabendo ao sobrevir o andamento acelerado. Quanto à

extensão temporal, ao conseguir concerne o agir e a paciência, “que o agir racional supõe”, ao

sobrevir cabe a “brevidade, a do sofrer, que o inesperado, precipitadamente, impõe ao

sujeito”. (ZILBERBERG, 2007, p. 18-21). Assim, no sobrevir, as competências do sujeito são

excedidas de forma literal pelo tempo, ou seja, por uma “instantaneidade devastadora”,

enquanto a lentidão do conseguir respeita os limites de tempo que o sujeito reconhece

(ZILBERBERG, 2012, p. 4).

1.3.1.2 Os modos de existência

Sobre os modos de existência, o semioticista (ZILBERBERG, 2012, p. 5)

afirma que alongam “as consequências subjetais abertas pelo modo de eficiência”. A surpresa,

determinada pela modalidade do sobrevir, embaralha o jogo do antes e do depois, permitindo

que o sujeito passivo, “espectador de seu próprio conflito” seja apreendido. O sujeito se vê em

uma situação para a qual não está preparado, atualizado, pois não espera pela surpresa. Na

apreensão, também está presente a exclamação, associada às valências de tempo e de

tonicidade, instalada no campo de presença, assim como o sobrevir. O conseguir é

manifestado pelo foco e pela espera. Essa está sob o controle do tempo, assim como o modo

de eficiência. Ela se manifesta pela paciência e pela impaciência, que não são medidas pela

realização de um programa de junção: “o sujeito paciente julga a velocidade razoável e

suportável, enquanto o impaciente a considera insuportável”.

Sendo assim, como caracteriza Zilberberg (2007, p. 21-23), dos modos de

existência, que são dependentes dos modos de eficiência, fazem parte a focalização e a

apreensão. A focalização caracteriza o sujeito operador, que visa a algo e, por isso, “se

inscreve como mediação entre a atualização e a realização”, na medida em que a apreensão

caracteriza “o estado do sujeito de estado” atônito com algo que lhe aconteceu, ou seja,

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47

corresponde à potencialização.

1.3.1.3 Os modos de junção

No Dicionário de Semiótica, Greimas e Courtés (2011, p. 279) descrevem o

termo junção como “a relação que une o sujeito ao objeto, isto é, a função constitutiva dos

enunciados de estado”. Essa relação a que se referem os pesquisadores pode ser de conjunção,

disjunção, não conjunção e não disjunção, consoante o quadrado semiótico. Na perspectiva

tensiva, (ZILBERBERG, 2007, p. 23) “o termo se refere à condição de coesão pela qual um

dado, sistemático ou não, é afirmado”. Para que essa coesão se estabeleça, os modos de

junção requerem a implicação e a concessão. Na implicação, há um respaldo mútuo entre o

direito e o fato que, representado pelo “porque”, corresponde à expressão “se a, então b”. Na

concessão, há uma discordância entre o direito e fato, representada pelo “embora” e pelo

“entretanto”, correspondendo à expressão “embora a, entretanto não b”. Logo,

A tensão própria à sintaxe juntiva opõe a concessão à implicação. Como

categoria, a concessão é emprestada à linguística que considera como

expressão de uma “causalidade inoperante”, ou seja, que o sujeito constata

que a causa que o solicita não produz a consequência esperada. A esse título,

a concessão é uma das vias de acesso à semiótica do acontecimento

(ZILBERBERG, 2012, p. 8).

Assim, o acontecimento é a essência do sistema que compõe o modo, “se for

concebido como sobrevir, isto é, realização do irrealizável”. Nesse sentido, esse sistema

[...] leva em conta a modalidade implicativa do realizável. Por sua vez, o

acontecimento dá como certa a modalidade concessiva que instaura um dado

programa como irrealizável e um contraprograma que, no entanto, levou a

cabo sua realização: “não era possível fazer isso e no entanto ele o fez!” (ZILBERBERG, 2011, p. 176-177)

Por isso, considerando a relação (tensiva ou não) entre o direito e o fato,

Zilberberg (2012, p. 5-6) conclui que a grandeza do sobrevir não faz parte da espera do

sujeito. Na espera, a relação no campo de presença é implicativa. No inesperado, é

concessiva. Assim, os enunciados implicativos são considerados normais, ordinários. Já os

enunciados concessivos são tônicos, motivo pelo qual, na concessão, o fazer prevalece sobre o

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correto.

Em suma, no que se refere à noção de acontecimento, este comporta, ao mesmo

tempo, “o sobrevir para o modo de eficiência; a apreensão para o modo de existência; a

concessão para o modo de junção” (ZILBERBERG, 2007, p. 24-25). Outrossim, esclarece

Zilberberg (2007, p. 24-25), o modo de eficiência “conseguir”, o modo de existência

“focalização” e o modo de junção “implicação” complementam-se na constituição do

exercício (ou da rotina), termo mais próximo do agir.

1.3.2 O ponto de vista figural do acontecimento

Ao estabelecer uma abordagem figural14

do acontecimento, Zilberberg (2011,

p. 169-175) afirma que no espaço tensivo, é necessário verificar as dinâmicas intensivas, de

andamento e de tonicidade, e as dinâmicas extensivas, de temporalidade e de espacialidade,

produzidas pelo acontecimento. Na intensidade, segundo o autor, o andamento e a tonicidade

agem ao mesmo tempo e repentinamente, provocando desorientação modal no sujeito e falta

de atitude. A tonicidade afeta o sujeito integralmente de tal modo que o acontecimento,

quando pode ser assim denominado, “absorve todo o agir e de momento deixa ao sujeito

estupefato apenas o sofrer”.

Na extensidade, a temporalidade é “fulminada, aniquilada” e sua recomposição

“está condicionada à desaceleração e à atonização, ou seja, ao retorno àquela atitude que o

acontecimento suspendeu momentaneamente”. O sujeito deseja voltar a controlar e dominar a

duração para, de acordo com sua vontade, nas palavras do semioticista, “alongar o breve ou

abreviar o longo”. Na espacialidade, deixa de existir a escansão do aberto e do fechado uma

vez que o aberto se ausenta do campo de presença a fim de manter apenas o fechado. Desse

modo, o sujeito fica paralisado, estarrecido, como se o seu ambiente deixasse de existir.

No dizer do semioticista, o acontecimento tem uma “valência intensiva

complexa e compõe um andamento extremo, o da instantaneidade, e uma tonicidade superior,

sempre difícil de formular”, visto que é vivenciada. Por isso, é associada aos modos de

existência. Ainda, embora o que sobrevém não possa ser atualizado, pode “ser relembrado

enquanto permanecer vívida a subvalência de tonicidade”.

14

Segundo Fontanille e Zilberberg (2001, p. 45), o ponto de vista figural equivale à atestação simultânea das

categorias no plano do conteúdo e no plano da expressão.

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49

Semanticamente, o produto do andamento e da tonicidade, na opinião do

pesquisador “seria a força que precipita o acontecimento em discurso”, entendendo como

andamento a velocidade de penetração, que é composta pela velocidade de desagregação e

pela velocidade de apassivação, ao mesmo tempo em que a tonicidade é metaforicamente

representada pelo lexema choque – lexema, frequente na maneira de falar contemporânea

configura a virtualização do estereótipo que geralmente o acompanha.

Resumindo, no acontecimento,

[...] o sujeito se vê em conjunção com um sobrevir que transtorna e por vezes

suprime a duração e a espacialidade. [...] O sobrevir do acontecimento vem

anular a própria textura do tempo, isto é, a “virtude” potencializante da

temporalidade.[...]

O acontecimento, na qualidade de grandeza tensiva, deve ser apreendido

como uma inversão das valências respectivas do sensível e do inteligível.

Marcado por um andamento rápido demais para o sujeito, o acontecimento

leva o sensível à incandescência e o inteligível à nulidade (ZILBERBERG,

2011, p. 189-190).

Desse modo, a temporalidade só recupera a memória suspensa pelo

acontecimento em um contraprograma de freagem específico, desenvolvido pelo discurso

conforme restaura a historicidade (ZILBERBERG, 2011, p. 189-190), ou seja, quanto se

transforma em exercício. É nesse sentido que, como caracteriza Zilberberg (2007, p. 25-26), o

exercício e o acontecimento se configuram como grandes orientações discursivas divididas

em discurso do exercício e discurso do acontecimento. O primeiro associado ao discurso

histórico, que se interessa pela “minúcia dos exercícios e dos funcionamentos”. O segundo

associado ao discurso mítico tendo em vista sua relação com a surpresa e com o que dela

resulta.

Concluídas as reflexões acerca da noção de acontecimento em semiótica,

dirigimos agora a nossa atenção à noção de interdiscursividade, conceito semiotizado por

Fiorin no artigo “Polifonia textual e discursiva” (1994), e necessário à análise do conto “O

zelador”, que compõe o corpus de nossa pesquisa.

1.4 A INTERDISCURSIVIDADE EM SEMIÓTICA

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50

De acordo com Fiorin (1994, p. 29-30), no artigo “Polifonia15

textual e

discursiva”, a interdiscursividade e a intertextualidade são fenômenos discursivos e textuais

fundados no conceito bakhtiniano de dialogismo, que está associado à “presença de duas

vozes num mesmo segmento discursivo ou textual”.

No dizer do semioticista, ocorre a intertextualidade quando um texto é

incorporado por outro. Assim, ora esse processo reproduz o sentido incorporado, ora

transforma-o, podendo acontecer por meio da citação, da alusão e da estilização. A citação

confirma ou altera o sentido do texto citado. A alusão reproduz construções sintáticas,

substituindo certas figuras por outras, através de relações hiperonímicas com o mesmo

hiperônimo ou de figurativizações do mesmo tema. A estilização reproduz o estilo de outro

enunciado, ou seja, suas recorrências formais.

Em seus pressupostos, o autor também explicita que o processo em que ocorre

a incorporação de percursos temáticos e/ou figurativos, temas e/ou figuras de um discurso em

outro é chamado de interdiscursividade. Esse fenômeno é manifestado tanto pela citação,

quanto pela alusão. A primeira corresponde à repetição de percursos temáticos e/ou

figurativos, evidenciando: ora uma relação contratual com uma formação discursiva – seja

essa formação discursiva igual ou distinta da formação discursiva tematizada e/ou

figurativizada –, ora uma relação polêmica em que “cada tema e/ou figura de um discurso

nega tema e/ou figura correspondente de seu outro”. A segunda diz respeito ao processo

interdiscursivo em que a compreensão (o sentido) de um discurso depende de sua

contextualização por meio da incorporação de temas e/ou figuras de outro discurso, isto é, um

discurso serve de contexto para que se possa entender o sentido de outro discurso.

Fiorin ainda afirma, considerando o ponto de vista bakhtiniano, que conforme

textos e ou discursos ressoam outros textos e ou outros discursos, a interdiscursividade não

implica a intertextualidade, mas o contrário acontece, uma vez que “ao se referir a um texto, o

enunciador se refere, também, ao discurso que ele manifesta”. Ao mesmo tempo, um texto

pode não ser constituído pela intertextualidade, ao passo que a interdiscursividade “é inerente

à constituição de um discurso”, o que a torna social, pois inscreve a história.

É nesse sentido que Barros (2009, p. 351-362)16

, no artigo “Uma reflexão

semiótica sobre a ‘exterioridade’ discursiva” assevera que a semiótica pode examinar as

15

Segundo Fiorin (1994, p. 29), o termo polifonia integra os estudos bakhtinianos sobre dialogismo, cuja

preocupação principal é “a de que o discurso não se constrói sobre o mesmo, mas se elabora em vista do outro”. 16

Nesse artigo Barros (2009, p. 351) busca desenvolver “uma reflexão mais sistematizada sobre a ‘exterioridade’

do discurso, no quadro teórico da semiótica discursiva de origem francesa”. Contudo, esclarece, primeiramente,

que o termo “exterioridade” não faz parte da metalinguagem semiótica. Pertence ao campo da Análise do

Discurso Francesa (AD).

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51

relações histórico-sociais, presentes na construção dos sentidos dos textos. Contudo, atenta

para a necessidade de que sejam observadas: a organização linguístico-discursiva dos textos –

tendo em vista seus percursos temáticos e figurativos, que revelam as determinações

histórico-sociais inconscientes – e para as relações intertextuais e interdiscursivas mantidas

entre os textos e os discursos com que dialogam. Na organização linguístico-discursiva, a

semântica discursiva é constituída pelos conteúdos semânticos dos temas e pelo investimento

semântico-sensorial desses temas pelas figuras, pois os temas e as figuras asseguram o caráter

ideológico dos discursos de classes, grupos e camadas sociais, sócio-historicamente

determinados. Nas relações intertextuais e interdiscursivas, os textos dialogam com outros

textos, “seja no nível apenas dos conteúdos discursivos dos temas e figuras, seja no nível

propriamente textual”, possibilitando aproximações entre planos da expressão. Desse modo,

estando fortemente inserida no quadro das disciplinas humanas e sociais, a semiótica não

somente mantém relações estreitas com os estudos cognitivos, como também pode dialogar

teoricamente com a História, a Sociologia, a Antropologia e com outros estudos do discurso.

Considerando essa possibilidade de diálogo teórico da semiótica com outras

ciências, no artigo “Do sentido ao corpo: semiótica e metapsicologia” (1996), Waldir

Beividas (1996, p. 125-130, grifos do autor) apresenta hipóteses de trabalho que estabelecem

relação entre o sentido e o corpo17

sob um ponto de vista semiótico, amparando-se na

interdiscursividade com os pressupostos teóricos da psicanálise freudiana. Para Beividas, o

sentido e o corpo se constroem nos níveis: a) temático-figurativo, enquanto significação nos

discursos; b) semionarrativo, na estruturação sêmica, e “inconsciente”, assunção “patêmica”

dessa estruturação. Por isso, “O corpo e o sentido não interessam à Semiótica como realidades

ontológicas [...] mas como realidades semiotizadas, de efeitos de sentido situados à ‘escala

humana’”.

O corpo-que-sente, instituído pela semiótica como instância de mediação entre

o mundo e o sujeito, revela uma intensidade mínima da oscilação tensiva da tímia, do sentir.

Desse modo, o conceito freudiano de pulsão é indispensável na concepção do sentido já que o

corpo é o lugar das primeiras somações tímicas do sujeito. Diante disso, o semioticista propõe

semiotizar a pulsão, tendo em vista

[...] as coerções semióticas que se dão num “percurso gerativo da

subjetividade consciente” passível de ser construído no trajeto das pulsões

17

O corpo é aqui entendido como simulacro do corpo do sujeito projetado no texto. A representação do corpo é

instantaneamente perceptível pelo enunciatário/leitor devido aos simulacros presentes no “enunciado

enunciado”, como destaca Fiorin (1996, p. 85).

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aos seus sentidos. A proposta visa também poder ampliar o campo de

atuação da semiótica das paixões, isto é, pleitear a contrapartida de uma

“sensibilização individual” para a sensibilização e moralização, concebidas

como operações de interpretação e regulação das configurações passionais

no “espaço comunitário” (BEIVIDAS, 1996, p. 130-131, grifos do autor).

Define, assim, a pulsão, sob o ponto de vista semiótico, como “o primeiro ‘ato

puro’ de somação tensiva com que o sujeito sente o corpo”, pois esse ato aciona o imaginário

humano para além dos instintos. As informações do corpo interior e do mundo são existências

semióticas emergidas na pulsão, e, portanto, “lugar da conversão semiótica do mundo

natural”. Nesse sentido, o universo passional é concebido como um “desdobramento

sequencial da tensividade pulsional”, ou seja, como “matriz da paixão”, que pode se converter

em configurações das paixões de papel já conhecidas, como a cólera, por exemplo

(BEIVIDAS,1996, p. 131-132).

Apresentamos aqui a noção de interdiscursividade sob uma perspectiva

semiótica, tendo em vista a possibilidade de diálogo da semiótica com outras teorias, como a

psicologia, por exemplo. Como em um dos contos a serem analisados observamos a relação

interdiscursiva com o conceito de ego, advindo da psicanálise freudiana, considerado

essencial para o desenvolvimento da análise – uma vez que esse interdiscurso, em particular,

perpassa todo o texto –, procuramos esclarecer, nesse tópico, questões importantes da

construção do sentido em semiótica na sua relação com a “exterioridade” discursiva e com a

psicanálise.

Em suma, com base nos conceitos teóricos expostos, passamos à análise dos

contos braffianos “O gorro do andarilho” e “O zelador”, que constituem o corpus deste

trabalho. Na análise, observamos a constituição das formas de vida manifestadas no texto e

dos acontecimentos, que afetam a relação dos atores-protagonistas com o Outro e consigo

mesmo, e desencadeiam percursos passionais de malevolência.

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2 O GORRO DO ANDARILHO: NO ACONTECIMENTO, A VINGANÇA. NA

VINGANÇA, UMA NOVA FORMA DE VIDA

2.1 A FORMA DE VIDA DA INDIGÊNCIA

2.1.1 A assunção do papel temático de andarilho e da forma de vida da indigência

No conto “O gorro do andarilho”, tal sujeito deseja recuperar seu gorro, furtado

por outro companheiro, o Gordo. O andarilho é um homem solitário, que se encontra a

contragosto na companhia do Gordo. O gorro é o único bem do andarilho, protegendo-o

contra o frio que sente vivendo na rua, depois de ter sido privado do emprego e da família. Ao

acordar da sesta, o andarilho vê seu gorro na cabeça do Gordo, pede o objeto de volta várias

vezes, mas este, no papel de antissujeito, não o devolve, e ainda ri, incessantemente, do

proprietário do objeto. Crendo ter direito ao gorro e sentindo-se menosprezado pelo Outro, o

andarilho, utilizando uma pedra, golpeia o Gordo na cabeça e recupera o objeto-valor.

Tendo em vista o percurso narrativo do sujeito Andarilho, este se encontra, no

estado inicial do texto, dormindo na beira da estrada ou sob alguma ponte e sentindo muito

frio. No primeiro inverno nessa condição, o gorro é doado a ele por um transeunte,

metaforicamente figurativizado como um “anjo” – “Abriu bem os olhos, o mais que pôde,

pois queria ver a cara do anjo” (BRAFF, 2006, p. 128). Conjunto do gorro, o sujeito

acostuma-se ao calor proporcionado pelo objeto, sinônimo de conforto, que perdera quando

ficou desabrigado. Sete anos após ganhar o gorro, ao acordar da sesta do almoço e vê-lo na

cabeça do Gordo, o Andarilho percebe que está disjunto do objeto-valor. Ele volta a sentir o

frio de outrora e é modalizado pelo /querer/ entrar em conjunção com o objeto.

Atordoado pelo inesperado roubo, o Andarilho pede ao Gordo que lhe devolva

o gorro – “Me dá!” (BRAFF, 2006, p. 127) –, mas o Gordo revela-se um antissujeito ao

passar a desejar o mesmo objeto e a /não-querer/ devolvê-lo ao Andarilho – “Como resposta,

uma gargalhada sem dentes e de barba suja, desgrenhada” (BRAFF, 2006, p. 127). A não

devolução do gorro ao andarilho e o riso exacerbado do antissujeito, intensificam o /querer/

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do Andarilho que deseja recuperar o objeto. À medida que o outro andarilho ri, como resposta

pelo pedido de devolução do gorro, o Andarilho é manipulado por provocação a recuperar o

objeto – “[...] e o Gordo se finava naquela gargalhada [...]” (BRAFF, 2006, p. 129). Nesse

momento, o Andarilho assume o papel actancial de sujeito do fazer e golpeia a cabeça do

antissujeito com uma pedra. Assim, o Andarilho volta a ficar conjunto do gorro, concluindo

com sucesso a performance de recuperação do objeto-valor – “O gorro, finalmente

recuperado” (BRAFF, 2006, p. 130).

Em termos de nível discursivo, observamos que o ator-protagonista da

narrativa assume o papel temático18

de andarilho. Investido desse papel temático, o ator

também manifesta a forma de vida da indigência.

De acordo com o Houaiss (2009), o lexema indigência, que nomeia a forma de

vida neste texto, tem as acepções “situação de extrema necessidade material, de penúria;

miséria, pobreza, inópia”, além de “o conjunto de pessoas que vivem nesta situação;

mendicidade”. Já o lexema “andarilho”, significa, no mesmo dicionário, “que ou aquele que

anda muito, percorre muitas terras ou anda de forma erradia” e está associado à isotopia

figurativa que constitui o papel temático do andarilho: “estrada”, “sem lugar onde dormir”,

“beira da estrada”, “debaixo de qualquer ponte, abrigado”, “E andava rápido [...] como se

tivesse onde chegar”, “inverno passado na estrada”, “pôs-se na estrada como se tivesse onde

chegar”, “acostamento”.

Outra isotopia figurativa associada à forma de vida da indigência refere-se à

prática da mendicância, empreendida pelo Andarilho e arraigada em seu comportamento. A

expressão “– Me dá!” é repetida quatro vezes, seguida do gesto de estender a mão, que o

narrador descreve como “gesto antigo, de sete anos, repetido desde a perda do emprego e da

família” (BRAFF, 2006, p. 127), quando se viu desabrigado. Essa recorrência no

comportamento e no projeto de vida do sujeito é evidenciada pelo narrador no excerto: “Pedia

muito mais com os olhos e as mãos, parados de tão duros, do que com as palavras, em cujo

manejo vinha destreinando nos acostamentos” (BRAFF, 2006, p. 128).

Ademais, a atividade de pedinte lhe garante a alimentação de que necessita

para viver, como se nota no trecho: “Atravessou a cerca que o separava do acostamento e

marchou seguro na direção do posto de gasolina, a pouco mais que dois quilômetros à frente,

onde sabia garantido o seu desjejum” (BRAFF, 2006, p. 129).

18

Em termos de nível discursivo, o papel temático é tido como o “papel assumido pelos actantes narrativos no

interior de um tema ou de um percurso temático, quando então os actantes se convertem em atores discursivos”

(BARROS, 2005, p. 84).

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Tal comportamento parece pertinente com a forma de vida da indigência, uma

vez que o Andarilho não tem destino, não permanece em um determinado espaço geográfico –

é desempregado – “pois nunca tinha nada que pudesse fazer” (BRAFF, 2006, p. 128) – e,

consequentemente, não tem dinheiro para comprar comida, fato que o induz à mendicância.

Outro aspecto a ser observado, diz respeito à temporalidade e à espacialidade,

conforme Fontanille e Zilberberg (2001, p. 222). Do ponto de vista da temporalidade, tal

forma de vida apresenta uma aceleração lenta, visto que o Andarilho repete o ato de pedir,

“com a mão teimosa estendida”, como “gesto antigo, de sete anos” (BRAFF, 2006, p. 127). A

presença do lexema “teimosa”, definido como “que insiste, que não desiste facilmente [...]

que se prolonga, que não termina facilmente; insistente, prolongado” (HOUAISS, 2009),

complementada pelas expressões “gesto antigo” e “de sete anos” indica uma recorrência do

comportamento do pedinte e uma permanência desse comportamento, características da forma

de vida identificadas por Greimas (1993, p. 33). Quanto à espacialidade, o campo de presença

do Andarilho comporta um espaço aberto da estrada e da natureza. Esse espaço se concretiza

nas figuras “estrada”, “acostamento”, “posto de gasolina”, “gameleira”, “cigarra”, “pilhas de

pedras”, “sol”, que ancoram19

a vida errante do andarilho. Dessa maneira, a temporalidade e a

espacialidade parecem figurativizar uma extensidade difusa dessa forma de vida, revelando

uma tensão fraca e durável, do lado da temporalidade, e um campo de presença aberto, do

lado da espacialidade.

Assim, enquanto a isotopia figurativa da indigência demonstra que o Andarilho

vive na estrada, sem se fixar em um determinado espaço geográfico (comportamento

equivalente ao do nômade, do errante) a isotopia temático-figurativa da mendicância desvela

que essa forma de vida está associada à perda, seja da identidade coletiva do sujeito (ao viver

na estrada, nos acostamento e não estar inserido em um meio social), seja da capacidade de

prover o próprio sustento (ação de pedir), que o conduzem à desumanização, como

observaremos a seguir.

2.1.2 A desumanização do Andarilho

19

De acordo com Barros (1990. p. 58), à medida que os atores, os espaços e o tempo do discurso, através do

recurso semântico denominado ancoragem, são preenchidos com traços sensoriais, tornam-se mais concretos, ou

seja, são iconizados. A iconização corresponde, portanto, à transformação de atores, espaços e tempo do discurso

em “cópias da realidade”, ou melhor, em ilusão de realidade.

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Notamos que o ator-protagonista, o Andarilho, sofre um processo de

desumanização no texto. Essa desumanização inicia-se com a degradação da condição social

desse ator e se intensifica quando é tomado pela paixão da cólera que culmina no

acontecimento que marca o desenlace da narrativa. Para demonstrarmos como esse processo

de desumanização se associa à forma de vida da indigência, relembremos que a partir do

instante em que o Andarilho perde o emprego e a família, ele passa a viver na “beira da

estrada”, nos “acostamentos” e a depender da ajuda alheia para viver, como evidencia o

excerto:

O sol batia-lhe no rosto só como iluminação porque era um sol imprestável

para aquecimento, quando percebeu subindo da terra um barulho de

botas. [...] Foi assim que viu pela primeira vez o gorro, jogado sobre seu

corpo, com barulho e susto. Abriu bem os olhos [...], pois queria ver a

cara do anjo” (BRAFF, 2006, p. 128, grifos nossos).

A isotopia temático-figurativa da mendicância – “Me dá”, “pediu”, “mão

teimosa estendida”, “os olhos e as mãos, parados de tão duros”, “mão aberta no braço

estendido” – e da desumanização do sujeito – “ninhos”, “modo remoto de continuar com a

humanidade”, “vivia por não saber outra coisa”, “olhos grisalhos, sem brilho” –, recobre o

tema da exclusão social. O mesmo ocorre com a pluri-isotopia engendrada pela

plurissignificação de figuras como “acostamento”, por exemplo. De acordo com o Houaiss

(2009), o lexema “acostamento” tem como acepção “margem da pista de rolamento de uma

estrada ou rodovia, destinada sobretudo a paradas de emergência de veículos”. Considerando

essa definição, à medida que o lexema “margem” – indissociável da constituição do

significado de “acostamento” – constitui a locução “deixar à margem”, cujo significado é “pôr

de lado; abandonar; desprezar”, no enunciado em exame, o lexema acostamento tanto pode

fazer referência à margem da estrada, quanto à marginalidade social, visto que o sujeito que

vivia à beira das estradas, era marginalizado do meio social. Por isso, o lexema “acostamento”

é um dado exteroceptivo, que integra um mundo construído pelo enunciador para criar o que

Barros (2005, p. 54) chama de “efeitos de realidade”, a fim de que o enunciatário reconheça

como verdadeiro o discurso enunciado, figurativizando de forma metafórica, a temática da

exclusão social do ator-protagonista.

Sob esse panorama, como se observa no texto, se o Andarilho já teve uma

família, emprego e onde dormir – “Era seu gesto antigo, desde a perda do emprego e da

família” (BRAFF, 2006, p. 127) –, fica pressuposto que o sujeito já integrou uma sociedade e,

portanto, já esteve subordinado às normatizações de uma moral coletiva. Entretanto, com a

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perda da família e do emprego, o Andarilho, marginalizado, vive nos acostamentos, na beira

da estrada.

Podemos concluir, portanto, que o Andarilho passa por uma operação de

triagem, que desfaz uma mistura anterior – o Andarilho como membro da sociedade. Por esse

motivo a beira da estrada é o lugar daqueles que foram excluídos da sociedade, é o lugar do

sujeito que é desumanizado em razão da exclusão social, como observamos no gráfico: (ver

Figura 1)

Figura 1: Exclusão social do ator Andarilho enquanto valor do absoluto

Fonte: Zilberberg (2011, p. 90)

Assim, se na beira da estrada estão concentrados os sujeitos excluídos de um

meio social e se “a aspectualidade própria ao desenvolvimento de uma operação de triagem é

medida pelo progresso da homogeneidade”, conforme Zilberberg (2012, p. 9), o Andarilho,

excluído pela operação de triagem, ao apedrejar o Gordo inesperadamente, no ápice de sua

desumanização, representa um valor de absoluto. Por isso, o acostamento é o espaço do

sujeito desumanizado, segundo a operação de triagem, configurando a oposição à mistura, que

comportaria tanto o sujeito humanizado, quanto o desumanizado ao representar um valor de

universo.

Além disso, diante da falta de abrigo, o Andarilho vê-se obrigado a dormir nos

acostamentos. A figura “ninhos”, no excerto “[...] se viu sem lugar onde dormir, senão nos

ninhos que fazia com a noite escorregando do céu. Ali mesmo, na beira da estrada, ou

debaixo de qualquer ponte, abrigado” (BRAFF, 2006, p. 127, grifo nosso), pertence à isotopia

figurativa que caracteriza os animais irracionais. O sujeito também vai perdendo a

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humanidade à medida que realiza o ato de pedir, como vemos no fragmento: “Pedia muito

mais com os olhos e as mãos, parados de tão duros, do que com as palavras, em cujo manejo

vinha destreinando nos acostamentos. Os olhos, principalmente, [...] eram tristes e úmidos,

um modo remoto de continuar com a humanidade” (BRAFF, 2006, p. 128, grifo nosso).

Nesse processo de desumanização, o sujeito para de praticar o ato da fala, como observamos

no excerto anterior, característica intrinsecamente humana e social.

O enunciado “modo remoto de continuar com a humanidade” em alusão à

tentativa de persistir humano, também desvela o distanciamento gradativo do sujeito em

relação à humanidade que tentou, mas não conseguiu manter. Ademais, após sete anos

vivendo nos acostamentos, inativo (desempregado), o Andarilho começa a apresentar, perda

de competência para viver em sociedade, que o faz sobreviver por instinto como se nota no

enunciado: “[...] nunca tinha nada que pudesse fazer. Tão-somente vivia por não saber outra

coisa” (BRAFF, 2006, p. 128). Por fim, o apedrejamento do companheiro Gordo, revela o

ponto mais intenso do processo de desumanização do Andarilho, aparentemente

despreocupado com sanções morais que poderiam lhe ser aplicadas pelo ato executado. Para

ele, o sangue notado em seu gorro após o apedrejamento do Gordo é, da sua perspectiva, uma

“pequena mancha escura”, e ele volta à estrada como se nada tivesse acontecido.

Apresentamos, assim, as figuras que representam a sequência discursiva da

desumanização do Andarilho:

Observamos, no esquema acima, a gradação da desumanização do Andarilho,

que quanto mais é excluído da sociedade, mais se aproxima da condição desumanizada, ou

seja, se transforma em animal irracional. A completa desumanização do ator-protagonista,

figurativizada pelo acontecimento principal ao final da manifestação passional – o

apedrejamento do Gordo – evidencia, por meio do elemento concessivo do acontecimento –

Perde emprego e

família

Vive na beira

da estrada

Pede esmolas

para viver

(mendicância)

Dorme em

ninhos

Vive “por não saber

outra coisa”

(BRAFF, 2006, p.

128), pois não tem

nada para fazer –

está desempregado.

Agride o

companheiro com

uma pedrada na

cabeça

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não podia apedrejar um ser humano, mas apedrejou – o surgimento de uma nova forma de

vida.

A fim de concluirmos esse processo investigativo sobre a forma de vida da

indigência, em conformidade com os pressupostos teóricos já apresentados, reiteramos que a

recorrência do comportamento que caracteriza essa forma de vida está figurativizada pela

isotopia: “estrada”, “acostamento”, “beira da estrada”, “andava”, “inverno passado na

estrada”, “sem ter onde chegar”.

A permanência, outra característica inerente à constituição de uma forma de

vida, se evidencia por meio da ancoragem temporal “há sete anos”, fazendo remissão à

duração, que marca o tempo que o Andarilho habitou os acostamentos.

Já o enunciado final do conto “pôs-se na estrada como se tivesse onde chegar.

Mas não andava muito rápido, porque sua idéia de futuro era aquela sensação de que agora,

sim, agora poderia enfrentar as noites frias de inverno” (BRAFF, 2006, p. 130), indicia a

continuidade da ação de caminhar sem destino certo, dormindo em lugares abertos, ou seja, a

“filosofia de vida”, do andarilho. Ao mesmo tempo, marca uma ruptura com a moral social,

análoga ao “Le beau geste”, de Greimas (1993, p. 22), uma vez que o sujeito Andarilho

assume uma moral própria, contrária à moral da sociedade ocidental.

Nesse sentido, a manutenção da forma de vida da indigência ocorre na

implicação, ou seja, no respaldo mútuo entre o direito e o fato que, representado pelo

“porque”, corresponde à expressão “se a, então b” (ZILBERBERG, 2007, p. 23). Podemos,

portanto, identificar que se o Andarilho perdeu o emprego, a família e o “lugar onde dormir”,

é porque ele já vivenciou essas práticas cotidianas. Consequentemente, se ele está sempre na

estrada, nos acostamentos, onde também dorme, é porque ele não tem emprego e nem abrigo

onde dormir. Desse modo, ele não espera que algo lhe aconteça, nem tem ambições acerca do

futuro, já que caminha sem destino e, no papel temático de andarilho, só vê à sua frente “as

noites frias do inverno” (BRAFF, 2006, p. 130) que terá que enfrentar.

Todavia, a natureza concessiva do acontecimento que desencadeia a sequência

passional da cólera – embora não esperasse ter o gorro roubado pelo Gordo, o Gordo o roubou

–, conduz o Andarilho à paixão da vingança, que veremos adiante. A vingança do Andarilho,

configura, por sua vez, um novo acontecimento, talvez o principal acontecimento da narrativa,

já que, pelas leis da sociedade ocidental é considerada uma justiça selvagem, conforme

Lombardo (2005, p. 279). Nesse sentido, embora o Andarilho, socialmente excluído, não

pudesse punir o Gordo com selvageria, ele, que se desumanizara, o pune. A aparente

despreocupação do Andarilho com o dano causado ao Gordo, pois “[...] com seu gorro na

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60

cabeça, pôs-se na estrada como se tivesse onde chegar” (BRAFF, 2006, p. 130), apenas faz

parecer que a forma de vida da indigência foi mantida. Assim, considerando que, no que

concerne à aplicação da lei, a agressão física como punição não integra a cultura ocidental

contemporânea, sendo punível com a prisão, um novo papel temático é assumido pelo ator-

protagonista: o papel temático do criminoso, cujo lexema “criminoso”, segundo o Houaiss

(2009), de acordo com a rubrica penal, significa “que ou aquele que infringiu por ação ou

omissão o código penal, cometendo crime”. Além disso, no apedrejamento do Gordo, fica

subentendida a morte do antissujeito, o que implica na assunção, também, do papel temático

de assassino pelo Andarilho, figurativizado pela isotopia “rachou a cabeça”, “silenciou todas

as histórias que ele contava”. Desse modo, investido desses papéis temáticos (agressor e

assassino), conforme a isotopia figurativa “rachou a cabeça”, “inocente dureza”, “finalmente

recuperado”, “pôs-se na estrada”, “não andava muito rápido”, o Andarilho rompe com a

forma de vida anterior, a da indigência (assim como em “Le beau geste”), e assume, por fim,

uma nova forma de vida, a da violência20

.

2.2 O ROUBO DO GORRO: UM ACONTECIMENTO

Considerando a forma de vida da indigência, o processo de desumanização do

Andarilho e os conceitos de rotina e acontecimento da perspectiva da semiótica tensiva de

Claude Zilberberg, atentemo-nos aos excertos do texto:

O primeiro inverno passado na estrada refluiu como sensação, aquele frio na

cabeça. O frio que então sentia machucava-lhe o corpo todo, mas de uma

forma tão aguda que o céu acabava distanciando-se muito, como uma coisa

inatingível (BRAFF, 2006, p. 128).

Quando acordou da sesta, as pálpebras desgrudando-se ainda com

dificuldade, a primeira coisa que viu foi seu gorro de lã, como um sol

colorido na cabeça do Gordo. Então sentiu frio na cabeça, um frio antigo, e

uma náusea gelada subiu-lhe do estômago cheio até inundar sua boca de um

gosto amargo: uma sensação de vida inútil (BRAFF, 2006, p. 129, grifo

nosso).

Convém observar que a sesta, no conto, é um fato, é algo corriqueiro, rotineiro

para o Andarilho e faz parte do “universo de excessivo entorpecimento, sem qualquer

20

No Houaiss (2009), o lexema “violência” tem as acepções “ação ou efeito de empregar força física ou

intimidação moral contra; ato violento”, “exercício injusto ou discricionário, geralmente ilegal, de força ou de

poder”.

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61

expectativa de que algo novo irrompa na rotina em que o sujeito vive imerso” (MERÇON,

2009, p. 396).

Segundo o Houaiss (2009) o lexema “sesta” pode ser definido como “repouso

após o almoço”. Outro significado pode ser “ausência, cessação de movimento, de trabalho”.

Tais sentidos nos levam a observar que as valências de intensidade e de extensidade estão

enfraquecidas. Isso porque as subvalências de andamento e de tonicidade apresentam uma

desaceleração das atividades rotineiras do Andarilho e um relaxamento tensivo do sujeito

durante o repouso – ausência de movimento –, inerente à constituição dos lexemas sesta e

repouso. Da mesma forma, na valência extensiva, as subvalências de temporalidade e de

espacialidade evidenciam na sesta, enquanto extensão do almoço, uma duração relativamente

longa desse processo, como se pode notar no excerto: “[...] as pálpebras desgrudando-se ainda

com dificuldade [...]” (BRAFF, 2006, p. 129).

Essa dificuldade em acordar, evidenciada no desgrudar das pálpebras do

Andarilho, indica que o sujeito espera manter a rotina após o descanso. Além disso, o

andarilho encontra-se em um espaço aberto, ou seja, à sombra uma árvore, a gameleira

(BRAFF, 2006, p. 128). Isso se torna perceptível no trecho: “[...] sol que atravessava a copa

da árvore e vinha cair em feixes longos e delgados sobre os dois homens que digeriam o

almoço, sentados sobre pilhas de pedras” (BRAFF, 2006, p. 129).

Ao acordar da sesta, algo incomum acontece: o Andarilho vê seu gorro na

cabeça do companheiro de estrada, o Gordo. Dessa perspectiva podemos considerar que os

três modos que constituem o acontecimento se instalam na narrativa. O modo de eficiência do

conseguir, grandeza que caracteriza o esperado por parte do sujeito, parafraseando Zilberberg

(2007, p. 18), dá lugar ao sobrevir e o inesperado roubo do gorro se instala no campo de

presença do sujeito.

O Andarilho logo percebe que está desprovido do calor do objeto e,

consequentemente, do conforto e do poder que o gorro lhe proporciona: “Quando acordou da

sesta, [...] a primeira coisa que viu foi seu gorro de lã, como um sol colorido na cabeça do

Gordo. Então sentiu frio na cabeça” (BRAFF, 2006, p. 129). Estabelece-se, nesse instante,

uma tensão na narrativa. A carga tímica do sujeito é intensificada com base na fratura da

rotina de dormir e acordar aquecido com o gorro na cabeça, ou seja, no inesperado roubo

daquele objeto.

Arrebatado pelo sobrevir, que Zilberberg (2011, p. 170) caracteriza como

“andamento mais vivo que o homem, na condição de sujeito sensível, pode sofrer”, no

momento em que acorda e vê o gorro na cabeça do antissujeito, o Andarilho passa a ser

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apreendido pelo sofrer: “[...] um frio antigo, e uma náusea gelada subiu-lhe do estômago

cheio até inundar sua boca de um gosto amargo: uma sensação de vida inútil” (BRAFF, 2006,

p. 129).

Como o modo de existência, depende do modo de eficiência, vemos que é

diante do sobrevir, ou seja, do roubo do gorro, que se revela a apreensão do Andarilho, como

demonstra o excerto “[...] uma sensação de vida inútil” (BRAFF, 2006, p. 129). Nesse

momento, o sujeito é reportado a um período específico de sua vida: o primeiro inverno

passado na estrada, época em que “Tão-somente vivia por não saber outra coisa” (BRAFF,

2006, p. 128), demonstrando a consternação do andarilho frente ao acontecimento.

Ao mesmo tempo, a isotopia figurativa “frio”, “náusea gelada”, “estômago

cheio”, “gosto amargo” revela notações somáticas que se associam às consequências do

acontecimento, ou seja, antecipam a manifestação passional – o percurso da cólera. Essas

notações somáticas reproduzem a relação sensorial entre o sujeito e o objeto – o Andarilho e o

gorro –, ou mais precisamente, as sensações provocadas pelo distanciamento do objeto

imposto ao sujeito subitamente. Desse modo, o sujeito, estupefato diante do acontecimento,

afetado, perturbado com o curso do tempo momentaneamente suspenso, como assevera

Zilberberg (2011, p. 169), percebendo a ausência do calor proporcionado pelo gorro,

rememora o primeiro inverno passado na estrada: “O primeiro inverno passado na estrada

refluiu como sensação” (BRAFF, 2006, p. 128).

Marcado pelo roubo do gorro, o Andarilho volta a sentir, na cabeça, a mesma

sensação de frio de outrora, que machucava todo seu corpo de forma aguda. Nessa nova

notação somática, figurativizada pelo lexema “inverno”, que remete à sensação de frio, o

lexema “refluir”, pode abarcar tanto o sentido do retrocesso, quanto da intensificação da

sensação de frio pelo sujeito. Temos, então, uma aceleração do andamento do discurso. Essa

aceleração está associada à acentuação do sofrer à medida que se invertem as sensações do

Andarilho, que volta a sentir um frio agudo ao deixar de ser aquecido pelo gorro – “Então

sentiu frio na cabeça, um frio antigo, e uma náusea gelada subiu-lhe do estômago cheio até

inundar sua boca de um gosto amargo: uma sensação de vida inútil” (BRAFF, 2006, p. 129).

É na sensorialidade observada primeiramente no desconforto anterior à

conjunção do Andarilho com o objeto gorro, na situação inicial da narrativa, e, depois, no

conforto proporcionado ao Andarilho pelo gorro quando ele ganha o objeto, e, novamente, no

desconforto resultante da posterior disjunção com o gorro, que se revela a amplitude da falta

desencadeada pelo roubo do objeto-valor. Três vezes, nas quatro páginas do conto,

especialmente quando o Andarilho é impactado pelo sobrevir do roubo, o gorro é comparado

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ao sol devido ao calor que proporciona: “Seu gorro de lã, como um sol colorido na cabeça do

Gordo, foi a primeira coisa que viu quando acordou” (BRAFF, 2006, p. 127, grifo nosso). E

essa comparação chega a ser intensificada pelo acréscimo do atributo “quente” na

caracterização do lexema “sol” no auge da apreensão do sujeito: “como um sol colorido e

quente” (BRAFF, 2006, p. 128). Essa relação sinestésica, que segundo Greimas (2002, p. 35),

ocorre no estrato eidético, que é mais superficial, é representada pela figura “colorido do sol”,

que se opõe à ausência de cor, e, consequentemente, de calor, figurativizada pelos lexemas

“frio” e “inverno”. Conforme o cromatismo chega à luz, o que corresponderia ao calor

proporcionado pelo gorro, a visão e o tato se imbricam. O gorro é comparado ao sol, fonte de

calor e de vida, mas ao qualificar a figura do “sol” pelo atributo “quente”, o enunciador

sugere que o calor fornecido pelo objeto torna-se ainda mais intenso e, consequentemente,

mais necessário ao sujeito enquanto ser humano.

Assim, a importância superlativada do tato em sua relação com a visão, bem

explicita a intensidade do desejo do Andarilho de manter a conjunção com o gorro, já que, nas

palavras de Greimas (2002, p. 35-36), “o tato se situa entre as ordens sensoriais mais

profundas, ele exprime proxemicamente a intimidade optimal e manifesta, sobre o plano

cognitivo, a vontade de conjunção total”. Essa vontade de conjunção total, no conto, pode ser

exemplificada no fragmento: “Ao enfiá-lo [o gorro] na cabeça até cobrir as orelhas, olhou

longe, as distâncias, e contemplou a várzea que se estendia em sua frente, muito imperador

naquele conforto. [...] E aquele conforto descia-lhe da cabeça para o corpo, por isso pisava

tão firme o asfalto” (BRAFF, 2006, p. 129, grifos nossos).

Convém ressaltar que, segundo Greimas, (2002, p.85), a conjunção do sujeito

com o objeto pelo tato é, dentre as sensações de onde se desenvolvem as paixões do “corpo” e

da “alma”, a sensação mais profunda. Tamanha profundidade da sensação tátil do calor

proporcionado pelo gorro por parte do Andarilho se revela no enunciado – “E aquele conforto

descia-lhe da cabeça para o corpo [...]” (BRAFF, 2006, p. 129). Dessa perspectiva, o

rememorar o frio do inverno de outrora, quando disjunto do objeto, ilustra a tonificação21

cada

vez mais acentuada do sentimento de falta do gorro pelo Andarilho no eixo da intensidade.

Antes de possuir o gorro, o frio “[...] machucava-lhe o corpo todo, mas de uma forma tão

aguda que o céu acabava distanciando-se muito [...]” (BRAFF, 2006, p. 128), e o sol era

“imprestável para o aquecimento”. Contudo, quando o gorro está mais próximo do sujeito, o

calor por ele proporcionado é um calor acessível, por isso é comparado ao “sol colorido e

21

Quando falamos em tonificação referimo-nos ao aumento da tonicidade, assim como a atonização diz respeito

à diminuição da tonificação, respectivamente, como afirma Zilberberg (2011, p. 74-75).

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64

quente”.

A percepção de que não possui mais a sua fonte de calor, e de vida, leva o

Andarilho a se lembrar do frio que sentira no passado, e a recordar-se do momento em que

ganhou o gorro. Podemos observar, nesse momento, a representação implicativa: se o gorro

fora jogado sobre seu peito, então lhe pertencia. Isso, porque, como explica Zilberberg (2007,

p. 23), no modo juntivo implicativo, “o direito e o fato se respaldam mutuamente”, ou seja, se

o gorro fora jogado sobre o peito do Andarilho, então o objeto é seu: “Foi assim que viu, pela

primeira vez o gorro, jogado sobre seu corpo [...] O gorro jazia imóvel sobre seu peito, feito

uma propriedade sua [...]” (BRAFF, 2006, p. 128).

Contudo, no momento em que acorda, o sujeito admirado se dá conta de que o

mesmo gorro, que há tanto tempo lhe pertencia, que era seu por direito, de repente está na

cabeça de outra pessoa, o Gordo. Tal constatação revela a natureza concessiva do

acontecimento, em que se dá a “realização do irrealizável” pelo sobrevir, consoante

Zilberberg (2011, p. 176-177), pois, embora não parecesse possível ter o gorro roubado pelo

Gordo, o companheiro roubou o objeto do Andarilho.

Enfim, a temporalidade até então aniquilada pelo sobrevir, abreviada pelo

andamento acelerado do sofrer do Andarilho, se recompõe quando ocorre a desaceleração e a

atonização do andamento e da tonicidade, respectivamente, ou seja, quando o sujeito retorna à

atitude momentaneamente suspensa pelo acontecimento (ZILBERBERG, 2011, p. 171) que

dará início à manifestação passional da cólera. A descontinuidade no discurso e a ruptura na

vida representada criadas pela pontualidade imprevisível da suspensão do tempo e da

petrificação do espaço (GREIMAS, 2002, p. 25- 26) dá lugar à fase da espera, na paixão da

cólera, figurativizada pela isotopia da mendicância.

Assim, quando, de acordo com Fontanille (2012, p. 112), ao desenvolver o

esquema de atenuação, no campo de presença do Andarilho, a tensão desemboca na atenuação

do acontecimento – a intensidade (andamento e tonicidade) do sobrevir esmaece à proporção

que a extensidade (temporalidade e espacialidade) também não consegue manter o tempo

suspenso e o espaço volta a existir. É nesse instante que ocorre um relaxamento das tensões

do sujeito e ele pede, pela primeira vez, que o objeto seja devolvido: “− Me dá” (BRAFF,

2006, p. 127).

2.3 A MANIFESTAÇÃO PASSIONAL DA CÓLERA E DA VINGANÇA NO TEXTO

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65

Quando o acontecimento é potencializado, ocorre, na narrativa, uma

atualização do desejo do Andarilho de novamente tornar-se conjunto do gorro. Afinal, ele crê

que “não se pode privar um homem inteiramente de tudo” (BRAFF, 2006, p. 128). Essa

potencialização equivale à instauração do modo de existência da focalização, característica do

sujeito operador, que visa a algo, ou seja, que diante da falta instaurada “se inscreve como

mediação entre a atualização e a realização”, nas palavras de Zilberberg (2007, p. 22).

Entretanto, enquanto sujeito operador, o Andarilho também é um sujeito

passional, um sujeito, que segundo Tatit (2003, p. 193), é pragmaticamente imobilizado por

ações anteriores, mas também estimulado sensível e afetivamente por tais ações. Por isso, é no

momento de atualização do devir que se inicia a crise de confiança estabelecida pela quebra

do contrato fiduciário entre o Andarilho e o Gordo. Assim, o rompimento do contrato

fiduciário, no qual o Gordo deveria devolver o gorro para o Andarilho, desencadeia a paixão

da cólera, evidenciando uma relação direta entre a intensidade da espera pela devolução do

gorro pelo Gordo e a gradação correspondente da insatisfação provocada pela não realização

do esperado (recusa do Gordo em devolver o gorro), parafraseando Greimas (1983, p. 233).

Com essa afirmação, o semioticista ainda esclarece que a explosão da cólera é

conduzida pela frustração que envolve a crise de confiança. Essa crise de confiança pode ser

entendida da seguinte forma: modalizado pela crença de que o Gordo devolveria o gorro, o

Andarilho sente-se insatisfeito pelo fato de o Gordo não realizar o que ele esperava. Nesse

momento, o Andarilho percebe que sua crença é injustificada e, decepcionado, vê, instalada, a

crise de confiança em relação ao Gordo, que frustrou a confiança nele depositada.

Para explicarmos como se dá a transformação passional do sujeito Andarilho,

consideraremos a sequência canônica da paixão da cólera proposta por Fontanille (2005, p.

63), conforme página 29. Para Fontanille (2005, p. 66), cada fase dessa sequência canônica

pode desmembrar-se em fases intermediárias, anteriores ou ulteriores à explosão da cólera.

Dessa perspectiva, notamos que, no texto em análise, a fase da agressividade não desemboca

na explosão da cólera, mas dá origem à paixão da vingança.

Levando em conta os acontecimentos que constituem cada fase do dispositivo

da cólera também serão consideradas, na análise, as modulações tensivas de intensidade e de

extensidade que, de acordo com Fontanille (2012, p. 204), dirigem a transformação passional.

2.3.1 A sequência passional da cólera

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66

No início da narrativa, o Andarilho confia no Gordo. Essa confiança, como

assevera Fontanille (2005, p. 64), é uma relação estabelecida entre ao menos dois sujeitos e se

baseia em um estado de crença em alguém. Por isso, sendo companheiros, o Andarilho crê

/não poder ser/ roubado pelo Gordo.

Podendo instalar-se tanto informalmente, na forma de afetividade, quanto

formalmente, por meio de um contrato narrativo ou de uma promessa, a confiança, primeira

fase da sequência passional da cólera, pode afetar a representação de um estado ou de um

acontecimento que irá ocorrer, que é modalizado por um /dever-ser/. E é nesse sentido que o

Andarilho é afetado pelo roubo do gorro. Esse acontecimento abala o estado de confiança do

sujeito no companheiro: “[...] não era a primeira vez que partilhava com ele seu almoço

debaixo daquela mesma gameleira” (BRAFF, 2006, p. 127-128). Nesse excerto, o enunciado

“não era a primeira vez” indica que o Andarilho e o Gordo não se conheceram na situação

inicial da narrativa. Na verdade, compartilham uma história. Assim, se por mais de uma vez

partilharam o almoço e, consequentemente, fizeram a sesta juntos, era de conhecimento do

Gordo que o gorro pertencia ao Andarilho e não era um objeto compartilhável. Na ancoragem

espacial “debaixo daquela mesma gameleira22

” notamos uma recorrência da ação de

almoçarem juntos no mesmo espaço geográfico, inclusive, reforçando a informação de que

havia uma relação de companheirismo entre eles23

.

Assim, o andarilho espera24

que o gorro seja devolvido pelo Gordo. Essa espera

se funda na memória da confiança antes depositada no primeiro pelo segundo, e “o crer,

instalado pela confiança, se desdobra, portanto, na espera em um crer em alguma coisa (o

estado esperado) e um crer em alguém (aquele que deve realizá-lo)” (FONTANILLE, 2005, p.

64), ou seja, na crença de que o gorro será devolvido. Tal crença na devolução do objeto é

figurativizada pelos três primeiros pedidos, direcionados ao companheiro pelo andarilho. Eis

o primeiro: “Então pediu uma primeira vez, a mão teimosa estendida” (BRAFF, 2006, p.

127). Como o primeiro pedido parece não surtir efeito, o Andarilho pede uma segunda vez: “–

Me dá! – repete com voz envelhecida e olhos grisalhos, sem brilho” (BRAFF, 2006, p. 127).

O Gordo, no entanto, devolve, como resposta, “[...] uma gargalhada sem dentes e de barba

22

O lexema “gameleira”, cuja acepção, no Houaiss (2009), é árvore “com madeira geralmente usada para a

confecção de gamelas”, é um prenúncio da manifestação passional final do Andarilho em relação ao Gordo, pois,

etimologicamente, conforme o mesmo dicionário, o lexema “gamela” advém do latim camélla,ae, ou seja,

significa “vaso de madeira usado em certos sacrifícios”. 23

Fazemos aqui uma ressalva: à medida que desenvolvermos a sequência passional da cólera, notaremos que

essa confiança depositada no Gordo será revista pelo Andarilho. 24

Trata-se da espera “da participação de um outro sujeito: na verdade apenas se espera o acontecimento porque

não se pode ter certeza plena a respeito de sua realização e porque isso depende da intervenção de um ou de

inúmeros outros sujeitos” (FONTANILLE, 2005, p. 64).

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suja desgrenhada” (BRAFF, 2006, p. 127). Ainda acreditando que o outro vai lhe restituir o

objeto, pede novamente: “– Me dá! A repetição do pedido não aumentava nem diminuía a

intensidade de seu desejo, que era monótono” (BRAFF, 2006, p. 128). E o Gordo, agora

assumindo a condição de antissujeito, visto que, mais uma vez, o Andarilho não é atendido,

“[...] ria cada vez mais alto, pois sentia muito prazer em aumentar o seu domínio” (BRAFF,

2006, p. 128).

Dessa forma, mais de uma vez o Gordo é chamado a cumprir seu dever. Mas a

esfera concessiva do acontecimento, mesmo já potencializado, prevalece, e o antissujeito não

devolve o objeto, tornando o esperado pelo Andarilho irrealizável. Pressupondo que o

Andarilho imagine que embora o Gordo devesse devolver o gorro, ele não o faz, “pois sentia

muito prazer em aumentar seu domínio” (BRAFF, 2006, p. 128, grifo nosso), notamos, no

trecho grifado, a tonicidade acentuada do prazer do antissujeito, que intensifica o sofrer do

sujeito e também o seu /querer-ser/ “imperador” do conforto proporcionado pelo gorro

novamente, como quando ganhou o objeto: “Arredou os trapos e levantou-se, já com o gorro

na mão. Ao enfiá-lo na cabeça até cobrir as orelhas, olhou longe, [...] muito imperador

naquele conforto” (BRAFF, 2006, p. 129).

No campo de presença, assim como pressupõe Zilberberg (2011, p. 70), a

tonicidade projeta-se na espacialidade e na temporalidade. Assim, torna mais vasto o seu

campo de desdobramento e alonga a duração da carga tímica do sujeito:

No alto da gameleira uma cigarra pôs-se a chiar e o fez com tamanho

empenho e volume que o mundo ficou estridente. Aquilo aumentou a

intensidade frenética do sol que atravessava a copa da árvore e vinha cair em

feixes longos e delgados sobre os dois homens que digeriam o almoço

sentados sobre pilhas de pedras (BRAFF, 2006, p. 129).

Os lexemas “tamanho”, “empenho”, “volume”, “estridente” e “delgados”

figurativizam a acentuação da tensão do sujeito. O aumento do volume, que torna o mundo

estridente, demonstra como o espaço tensivo se desdobra ao mesmo tempo em que a duração

da sensação se alonga em “feixes longos”.

O tumulto modal sofrido pelo Andarilho que quer ser “imperador naquele

conforto”, mas não pode ser, porque o gorro está com o antissujeito, é marcado pelo

andamento acelerado, fazendo recrudescer o sofrer do sujeito, como revelam as figuras “o

mundo ficou estridente” e “aquilo aumentou a intensidade frenética do sol”. Desse modo, fica

implícito que o ambiente passa também a perturbar o sujeito estupefato com a recusa do

Gordo em devolver o objeto.

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Essa manifestação tensiva no campo de presença integra a terceira fase do

dispositivo da cólera: a frustração. Enquanto “momento passional da sequência”

(FONTANILLE, 2005, p. 64), em que o sujeito “reatualiza a promessa de conjunção anterior”

diante da confiança e da espera irrealizadas, na frustração, o corpo sensível do Andarilho é

tomado pela decepção ao provar a privação do gorro. Então pede novamente, mas, agora, com

impaciência – “Me dá! Houve uma leve alteração na voz envelhecida que, um pouco mais

trêmula deixava de ser um pedido, quase um apelo impotente, para se tornar uma exigência”

(BRAFF, 2006, p. 129).

Notamos que a voz é alterada, levemente, e se torna trêmula, uma forma de

manifestação sensorial da crescente insatisfação do sujeito em relação à insistência do

antissujeito em não devolver o gorro. Uma expressão somática25

, provocada pela privação do

objeto, é projetada na tonicidade presente no espaço tensivo e na manutenção do andamento

por meio da audição, visto que “A cigarra continuava a chiar”, “o mundo estridulava”, assim

como pela visão e pelo tato – “o sol descia em feixes da copa da árvore” (BRAFF, 2006, p.

129) – como indica o quadro abaixo: (ver Tabela 1)

Tabela 1 – Isotopias figurativas das notações somáticas

SENTIDO FIGURAS

Audição Cigarra, chiar, estridulava

Visão Sol, feixes

Tato Calor (proporcionado pelo sol)

Fonte: Elaborado pela autora.

A decepção de definitivamente não ter o pedido atendido inaugura a fase do

descontentamento (FONTANILLE, 2005, p. 65) do Andarilho em que se observa a

confrontação entre o que ele esperava do Gordo (que não roubasse o gorro) e o que o

antissujeito realizou (o roubo do gorro e a não devolução do objeto), e fica insatisfeito com o

a inadequação da ação do Gordo, que, mais uma vez, de forma inesperada, “se finava afogado

naquela gargalhada grossa de catarro” (BRAFF, 2006, p. 129).

Diante da confrontação deceptiva e da não realização do esperado, pois um

novo acontecimento – mais uma vez o objeto não é devolvido ao pedi-lo – é instalado pelo

modo de junção concessivo – o gordo deveria devolver o gorro, mas não devolveu –, surge a

tensão entre a percepção do esperado e do realizado, sobretudo, entre as instâncias modais do

25

Ver o conceito de expressão somática à página 23.

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69

/querer/ e do /saber/. Em suma, entre o /querer ser/ e o /saber não poder ser/ “imperador

naquele conforto”: “Pois, apesar da ojeriza pelo companheiro, não era a primeira vez que

partilhava com ele seu almoço debaixo daquela mesma gameleira” (BRAFF, 2006, p. 127-

128, grifo nosso).

No Houaiss (2009), o lexema “ojeriza” também pode ser entendido como

sentimento de “aversão, antipatia gerado pela intuição, por uma percepção”. Nesse sentido, o

“si projetado” do Andarilho revela que o sujeito tinha uma antiga desconfiança, uma suspeita

sobre o caráter do Gordo. A concessão feita ao companheiro, de partilhar o almoço

desconsiderando a suspeita sobre ele, resulta no /saber/ do “Eu atual”, uma vez que o Gordo

além de não parecer, revelou-se não ser confiável, pois roubou o gorro. Nesse tumulto modal

entre o /querer/ e o /saber/, aflora a inquietação do sujeito que esperava algo (dormir e acordar

com o gorro / manutenção da confiança no Gordo), mas viu esse algo resultar no inesperado

(roubo do gorro / confirmação de que o Gordo não era confiável). Mas a espera (recuperar o

gorro) se reitera, por meio de seus vários pedidos ao Gordo, transformando-se, pois, em novas

expectativas de reaver o objeto.

Além disso, por meio do lexema “ojeriza” o enunciador revela também uma

tonicidade cada vez mais acentuada do estado deceptivo do Andarilho. Podemos observá-la na

intensificação dos sentimentos negativos do sujeito em relação ao Gordo. Já vimos que no

Houaiss (2009) uma das acepções para “ojeriza” é “aversão”. Mas, se atentarmos ao

significado de “aversão”, o Houaiss (2009) tem como resposta “sentimento de repugnância

em relação a pessoa ou coisa; repulsão, antipatia”, podendo ainda significar sentimentos de

“rancor, ódio”, paixões de malevolência que são mais intensas do que o estado deceptivo em

que o sujeito se encontrava na fase anterior ao descontentamento. Essa gradação tensiva do

recrudescimento do descontentamento do Andarilho pode ser assim esquematizada:

A penúltima fase da sequência canônica da cólera é a agressividade. Essa fase é

direcionada ao sujeito que rompeu o contrato fiduciário. Contudo, também pode se voltar “para os

objetos, para a construção ou o dispositivo que se revelaram menos confiáveis do que se supunha”

e também para a situação, “ao próprio estado deceptivo”, enquanto configurações concretas que

representam a promessa e a confiança iniciais, o engajamento negligenciado ou traído por outro

sujeito (FONTANILLE, 2005, p. 65).

Nesse sentido, observemos o excerto: “Não gostava do Gordo, porque falava

Page 71: PAIXÕES, ACONTECIMENTOS E FORMAS DE VIDA EM CONTOS …€¦ · Figura 4 – Atenuação da carga tímica do Andarilho após execução da vingança 75 Figura 5 – Submissão do

70

demais com sua boca e contava histórias de vida que não poderiam ser dele. Era um mentiroso

ocupando lugar nos acostamentos. E andava rápido, com seu tamanho, como se tivesse onde

chegar. Não gostava” (BRAFF, 2006, p. 127, grifo nosso).

Nesse fragmento do texto, temos, pois, a agressividade direcionada ao antissujeito.

O lexema “mentiroso” é um indicativo do estado deceptivo do sujeito em relação ao Gordo e da

conclusão de que o antissujeito não era, de fato, confiável. Era mentiroso.

Tal lexema, “mentiroso”, julgamento negativo atribuído ao Gordo, também é um

indicativo de acentuação da tonicidade, demonstrando a intensificação contínua da carga tímica.

Porém, é importante atentarmos à repetição da figura “Não gostava” direcionada ao antissujeito.

Na primeira vez que aparece, a expressão é acompanhada da explicativa: “Não gostava...

porque...” Desse modo, o Andarilho enumera os motivos que o levaram a manifestar o juízo de

valor “não gostar” em relação ao outro andarilho: falava demais, contava histórias de vida que não

podiam ser dele. Em seguida, conclui que o antissujeito “era um mentiroso”. E reafirma,

categoricamente, o seu sentimento pelo Gordo: “Não gostava”.

Dessa perspectiva, nesse trecho da narrativa, temos a figurativização da

agressividade, descrita por Fontanille (2005, p. 65) como um efeito da irrupção do antissujeito

(Gordo) no campo de presença do sujeito (Andarilho). Temos ainda o pico de intensidade da

manifestação passional, diante da abertura de uma sequência de afrontamento, na qual o

Andarilho manifesta a emergência de um /poder -fazer/.

Se observarmos o esquema de amplificação, que Fontanille (2012, p.114-115)

chama de “princípio de gradação geral que parte de um mínimo de intensidade e de uma fraca

extensão para desembocar em uma tensão máxima, igualmente desdobrada em extensão”,

podemos identificar, gradativamente, a cada fase da paixão da cólera, após a quebra do contrato

de confiança, uma amplificação da tensão do Andarilho, como mostra o gráfico abaixo: (ver

Figura 2)

Page 72: PAIXÕES, ACONTECIMENTOS E FORMAS DE VIDA EM CONTOS …€¦ · Figura 4 – Atenuação da carga tímica do Andarilho após execução da vingança 75 Figura 5 – Submissão do

71

Figura 2: Amplificação tensiva do percurso passional da cólera do sujeito Andarilho

Fonte: Fontanille (2012, p. 112)

De acordo com a sequência canônica, após a fase da agressividade, ocorreria a

explosão da cólera, mas essa explosão não ocorre, mesmo com a intensificação da carga

tímica do Andarilho. Isso, porque após enumerar os motivos pelos quais não gostava do

Gordo, o Andarilho reflete sobre o riso do antissujeito e uma bifurcação do processo passional

se abre nesse momento, evitando que haja uma cólera completa (FONTANILLE, 2005, p. 66),

como observamos na sequência.

2.3.2 A vingança do andarilho: o grande acontecimento

Com o estado de alma tomado pela decepção na fase da agressividade, em

processo de desumanização pela forma de vida da indigência e concluindo que, na verdade, o

antissujeito é mentiroso, a negativa do Gordo em devolver o gorro por meio da gargalhada,

Page 73: PAIXÕES, ACONTECIMENTOS E FORMAS DE VIDA EM CONTOS …€¦ · Figura 4 – Atenuação da carga tímica do Andarilho após execução da vingança 75 Figura 5 – Submissão do

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cada vez mais intensa, leva o Andarilho a refletir sobre aquele riso – “O riso grosso, do

Gordo, não era uma alegria leve e doce, provida com as suavidades da vida. Não era. Seu riso

vinha de uma região obscura, quase o inexplicável que é a invocação tenebrosa, quando se

chama a morte” (BRAFF, 2006, p. 130).

Desvela-se nesse excerto uma nova fase da sequência canônica, tendo em vista

a ocorrência de mudanças na relação entre os actantes – transformação do Gordo, que de

companheiro passa a ser mentiroso – e, na relação fiduciária – o Andarilho deixa de confiar

no Gordo.

Segundo o Houaiss (2009), o lexema “riso” pode significar tanto expressão de

contentamento, quanto de zombaria. Se considerarmos a reiteração da negativa na reflexão do

Andarilho, que sabe que o riso do antissujeito não era de alegria, como se observa na

passagem “não era uma alegria [...] Não era” (BRAFF, 2006, p. 130, grifos nossos),

podemos observar que, da sua perspectiva, o riso do Gordo não é manifestação de

contentamento, mas, sim, expressão de zombaria. Para o Andarilho, o riso do Gordo é

expressão de malevolência, como revela a isotopia figurativa: “riso grosso que vinha de uma

região obscura”, “quase o inexplicável que é a invocação tenebrosa quando se chama a

morte”. Essa isotopia representa uma gradação tensiva que se relaciona à morte.

Tal reflexão do Andarilho acerca do riso do Gordo, logo após a fase da

agressividade, se relaciona na sequência canônica da cólera, a um desdobramento da

sequência em uma fase intermediária, visto que a agressividade, “pode tomar a forma do ódio,

a longo termo, ou da vingança, segundo um princípio de reciprocidade dos danos”, consoante

Fontanille (2005, p. 66). A vingança relaciona-se assim ao ato de reflexão do Andarilho sobre

o mal causado ao antissujeito.

Assim, diante do riso “grosso” do antissujeito, a conclusão do Andarilho é que

o Gordo invoca a morte e é malévolo. O Andarilho é, portanto, modalizado pelo /querer -

fazer/ e, no apogeu de sua desumanização, decide destruir o ofensor, revelando o caráter

necessariamente unilateral da “ruptura de confiança” (FONTANILLE, 2005, p. 74) e a

necessidade de reparação do dano causado: “A pedra que rachou a cabeça do Gordo e

silenciou todas as histórias que ele contava rolou e misturou-se às outras pedras, todas elas

com aquela mesma aparência de inocente dureza” (BRAFF, 2006, p. 130).

Notamos, então, que embora não fique explícito no texto que o sujeito golpeou

o antissujeito com a pedra, se no espaço da narrativa existem apenas o Gordo e o Andarilho, o

golpe que atinge o Gordo só pode ter sido desferido pelo Andarilho. Apesar de não existirem

figuras no texto que indiquem que o Gordo morre, o fato de sua cabeça ter sido “rachada”

Page 74: PAIXÕES, ACONTECIMENTOS E FORMAS DE VIDA EM CONTOS …€¦ · Figura 4 – Atenuação da carga tímica do Andarilho após execução da vingança 75 Figura 5 – Submissão do

73

revela uma intensidade exacerbada do golpe aplicado pelo sujeito, demonstrando “a rapidez

dos reflexos do ofendido” (GREIMAS, 1983, p. 245).

É importante observar o caráter paradoxal da expressão “inocente dureza”

utilizada pelo enunciador em referência à pedra utilizada pelo Andarilho para atingir o Gordo.

Assim, nota-se que a intensidade da agressão ao antissujeito se manifesta no lexema “dureza”.

Por outro lado, seu atributo “inocente” revela a naturalidade com que o andarilho encara a

vingança por meio do apedrejamento e morte do antissujeito, o que o nivela a um sujeito que

sofreu um processo de desumanização

Atentando, mais uma vez, ao esquema de amplificação apresentado na página

71, figura 2, representando o dispositivo da cólera, acrescentamos ao gráfico tensivo a

execução da vingança do Andarilho, ápice da carga tímica do sujeito e de sua desumanização:

(ver Figura 3).

Figura 3: Desdobramento da amplificação tensiva do percurso passional da cólera do

Andarilho na paixão da vingança

Fonte: Fontanille (2012, p. 112)

No que diz respeito à reparação do dano, que constitui a paixão da vingança, ao

apedrejar o Gordo, o Andarilho recupera o objeto-valor: “O gorro, finalmente recuperado

tinha uma pequena mancha de sangue, que em pouco tempo estaria seco, apenas uma pequena

mancha escura” (BRAFF, 2006, p. 130). Pragmaticamente, com o gorro recuperado, o

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74

enunciado revela, assim como observa Greimas (1983, p. 245-246) em seu Du sens II, que o

sujeito constituído pela emergência segundo um /poder fazer/ foi competente ao executar um

programa narrativo de afirmação de si e de destruição do outro.

Por fim, após o apedrejamento do Gordo, a tensão no discurso é atenuada à

proporção que a pedra rola e se mistura às demais – “A pedra que rachou a cabeça do Gordo

[...] rolou e misturou-se às outras pedras [...]” (BRAFF, 2006, p. 130). O movimento da pedra

indica o início da desaceleração da tensão na valência de intensidade. Concomitantemente,

evidencia a concentração na valência de extensidade. O espaço percorrido pela pedra que rola

é aparentemente curto, como demonstra o aspecto terminativo dos lexemas “roubou” e

“misturou”.

Nesse aspecto observemos ainda o excerto: “Apesar de ser uma tarde quente de

sol, o Andarilho, com seu gorro na cabeça, pôs-se na estrada como se tivesse onde chegar.

Mas não andava muito rápido, porque sua idéia de futuro era aquela sensação de que agora,

sim, agora poderia enfrentar as noites frias de inverno” (BRAFF, 2006, p. 130, grifo nosso).

Nota-se aí o contínuo enfraquecimento da intensidade da carga tímica do sujeito, pois, o

Andarilho não anda muito rápido, ou seja, há uma desaceleração da tensão que se reitera em

“idéia de futuro”, expressão que do ponto de vista temporal apenas parece representar uma

difusão da duração da carga tímica do sujeito que já executou a vingança. O futuro, para o

Andarilho significa poder “enfrentar as noites frias de inverno”. Assim, com as valências de

intensidade e de extensidade enfraquecidas, as tensões diminuem completamente, ressaltando

o caráter breve, intenso e decadente da vingança, consoante Fontanille (2005, p. 74). Esse

processo de atenuação pode ser relacionado o esquema de atenuação fontanilliano (2012, p.

115-116), como observamos no gráfico abaixo: (ver Figura 4)

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Figura 4: Atenuação da carga tímica do Andarilho após execução da vingança

Fonte: Fontanille (2012, p. 112)

Essa difusão da grandeza de extensidade, associada ao enfraquecimento da

intensidade leva o sujeito ao relaxamento aparentemente definitivo da tensão provocada pelo

acontecimento final – apedrejamento do antissujeito, o Gordo.

Nesse sentido, pode-se concluir que a forma de vida de indigência do

Andarilho levou-o à desumanização o que fez com que passasse a encarar a vingança e a

violência contra o outro como um gesto natural.

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3 O ZELADOR: O ACONTECIMENTO, A VINGANÇA E A

TRANSFORMAÇÃO DA FORMA DE VIDA

No conto “O Zelador”, um homem solitário trabalha como zelador de vilas mal

conservadas e inóspitas. Ele tem como objetivo alcançar uma promoção e assim passar a fazer

parte de outra classe social: a Classe C. Ao descobrir que não foi promovido, recebe

determinação para cuidar de uma vila nas mesmas condições daquelas de que sempre cuidou.

Ainda descontente com o fato de não ter sido promovido, na saída do prédio da Zeladoria, o

zelador conhece o cão Ego. No dia seguinte, o zelador e Ego partem juntos para a vila a ser

cuidada. No decorrer da viagem, a cada obstáculo vencido a relação de amizade entre os

companheiros se fortalece até chegarem a uma amizade quase irredutível. Essa amizade

perdura até a terceira vila que visitam juntos. Lá, desaparece a carne que deveria alimentar o

zelador durante um mês. O trabalhador, acreditando ter sido roubado pelo cão e concluindo

que um novo pedido de carne o privará da almejada promoção à Classe C, executa o amigo

como forma de manter a rigidez dos regulamentos que conhecera desde a infância.

Antes de iniciarmos a análise, é importante atentarmos ao fato de que esse

texto apresenta dois planos narrativos. O primeiro é relatado no tempo pretérito. É grafado em

caracteres normais e narra a história de amizade entre o zelador e o cão Ego, desde o

momento em que se conhecem até chegarem à vila onde acontece o conflito e o desfecho da

narrativa. Nele, também se manifesta a forma de vida do ator-protagonista, sua constituição,

manutenção e permanência, assim como o processo inicial de desumanização do zelador. O

segundo plano narrativo, relatado no tempo presente, descreve o estado de alma do zelador,

desencadeado pelo inesperado roubo do gorro. Grafado em itálico, inicia o texto e se insere

em meio ao primeiro plano narrativo, encerrando também o conto. Nesse espaço tensivo

irrompe a paixão da cólera, como veremos no decorrer da análise, que começa pela

identificação da forma de vida predominante na narrativa.

3.1 NO PRIMEIRO RELATO: A SUBMISSÃO COMO FORMA DE VIDA

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Observamos, na situação inicial da narrativa, um enunciado de estado de

disjunção do sujeito zelador com o objeto-valor promoção. O zelador é um sujeito virtual, que

quer entrar em conjunção com a promoção no cargo que exerce. Ao mesmo tempo, a

proximidade que estabelece com o cão Ego e seu estado de solidão revelam que ele também

quer entrar em conjunção com outro objeto: a amizade. Para a realização desses programas

narrativos, o zelador assume diferentes papéis actanciais, uma vez que ora é modalizado pelo

/dever/, ora é modalizado pelo /querer/ realizar as performances.

No primeiro programa narrativo, a Zeladoria, assumindo o papel actancial de

destinador, manipula o destinatário zelador por provocação ao informá-lo de que a sua idade o

impedira de entrar em conjunção com a promoção. Essa manipulação leva-o a /dever/ aceitar

o contrato de continuar cuidando das vilas com zelo e seguindo os regulamentos com rigor

para poder entrar em conjunção com tal objeto. Para a realização dessa performance, a

Zeladoria dá ao zelador as competências do /saber/ ser promovido, pois o seu zelo era relatado

em documentos da empresa. O sujeito, modalizado pelo /querer/ ser promovido – “[...]

esperava uma promoção que não tinha vindo” (BRAFF, 2006, p.141), executa as tarefas com

esmero e total submissão às normas da empresa: “O zelador conhecia as normas de segurança

e as seguia com bastante rigor, como tudo que fazia profissionalmente” (BRAFF, 2006, p.

148). A performance, porém, não ocorre, pois na terceira vila a ser cuidada, o zelador

descuida-se – “Não se lembrava de ter tido muito cuidado com a porta naquela manhã quando

saiu para o trabalho” (BRAFF, 2006, p.140) – possibilitando que Ego, seu companheiro de

viagem, roube a provisão mensal de carne da geladeira. Esse descuido provoca o rompimento

do contrato estabelecido entre a Zeladoria e o zelador, culminando em uma sanção pragmática

negativa ao sujeito, que sabe que devido ao descuido continuará disjunto da promoção –

“Com um pedido antecipado de alimento, ele sabia, adeus qualquer esperança de passar à

Classe C” (BRAFF, 2006, p.140 e 143) – devendo se conformar a permanecer em vilas do

mesmo nível de todas as vilas onde já havia trabalhado.

Por outro lado, o zelador também se encontra modalizado pelo /querer/ realizar

outro programa narrativo: tornar-se conjunto com o objeto-valor amizade com o cão Ego, na

medida em que ambos se encontram em estado patêmico de solidão. O zelador, no papel

actancial de destinador, é dotado de autoridade para estabelecer o contrato e julgar a

performance, e Ego é o destinatário. Assim, quando o zelador encontra Ego, este o

acompanha até o restaurante, onde é por ele alimentado. E continua a acompanhá-lo no dia

seguinte, manipulado por tentação a /querer/ acompanhar o zelador, que lhe oferece valores

positivos, tais como: alimento – “O volume no bolso da calça era o pão que Ego esperava

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receber” (BRAFF, 2006, p.145) –, afago – “Parou ao lado de Ego para lhe fazer uma carícia”

(BRAFF, 2006, p.146) –, cuidados – “Ele sabia que a retirada daquelas setas agudas causava,

no início, maior sofrimento do que deixá-las paradas onde estavam [...] pôs-se a trabalhar [...]

e a cirurgia em alguns minutos teve fim” (BRAFF, 2006, p.158). Ego, animal irracional, é

instintivamente dotado do /saber/ e do /poder/ fazer companhia e utiliza os sentidos (olfato,

audição) para ambos conseguirem atravessar a ponte e esconderem-se da chuva sob uma

caverna em seu percurso rumo à vila a ser cuidada, como observamos nos excertos:

Ego chegou em seguida, focinho colhendo cheiros do chão, e não hesitou em

atravessar a ponte com seu trote balançado. O rapaz não esperou melhor

prova de segurança e percorreu o trajeto exatamente por onde passara o

amigo (BRAFF, 2006, p.146).

O lugar era escuro, e o zelador não se descuidava de animais perigosos.

Contudo, ao ver a naturalidade com que ego passeava de um lado a outro da

caverna, farejando todos os cantos, sentiu confiança e desatrelou-se da

mochila, que largou no fundo da caverna (BRAFF, 2006, p.147).

À medida que Ego realiza essas performances, o zelador se sente protegido e,

em estado de confiança em relação ao outro, estabelece o contrato de amizade. Entretanto, já

na terceira vila juntos, Ego, com fome, pois “Há dias ele vinha percorrendo os arredores sem

encontrar caça alguma” (BRAFF, 2006, p.139), rompe o contrato de confiança com o zelador,

manipulado, instintivamente, por outros valores, como /querer/ entrar em conjunção com o

objeto-valor alimento. O cachorro encontra facilidade para entrar na casa devido a um

descuido do zelador, o que dá a Ego a competência do /saber/ entrar na casa e do /poder/

roubar a carne da geladeira. Desse modo, realiza uma nova performance: sacia a fome.

Mas, pelo rompimento do contrato, Ego recebe a sanção cognitiva negativa do

zelador, relacionada à perda de confiança, e a sanção pragmática negativa da morte, entrando

em disjunção com os objetos vida – “O zelador tomou o cabo pela extremidade e, com o olho

da enxada, amassou a cabeça entre as duas orelhas” (BRAFF, 2006, p. 159-160) – e amizade,

como evidencia o enunciado – “Nem que estivesse agora no inferno, pensou, o traidor estaria

seguro” (BRAFF, 2006, p.159).

No nível discursivo, observamos que o zelador exerce o papel temático de

trabalhador, pois é membro de uma classe social menos favorecida, figurativizada como

Classe D, e segue com rigor as normatizações impostas pelo Destinador Social, figurativizado

como “Zeladoria”. Ao receber as ordens da Zeladoria – “Tinha acabado de receber das mãos

do Gerente Geral, a Ordem de Serviço” (BRAFF, 2006, p. 140), o zelador é modalizado pelo

/dever/ e cumpre tais normas, mesmo a contragosto – “Não ousou reclamar de seus

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superiores” (BRAFF, 2006, p. 140) –, sempre seguindo os regulamentos da empresa, sem

questioná-los, conforme o excerto: “Como segredo inviolável, mantinha um certo desprezo

pelos superiores da Zeladoria que o incumbiam de embelezamentos desnecessários nas vilas.

[...] Jamais ousara fazer o menor comentário sobre o que pensava” (BRAFF, 2006, p. 152-

153).

O não cumprimento das normas da empresa é passível de punição ao

trabalhador. Porém, o zelador, acostumado desde criança a seguir regras, ao longo de sua

experiência profissional não apresenta dificuldade em colocar em prática esse hábito

arraigado em sua vida. Desse modo, o zelador executa uma operação de triagem, “lançando

para fora do campo de presença, as grandezas que não satisfazem a condição exigida”

(ZILBERBERG, 2012, p. 8), ou seja, como os valores de submissão às normas estão

intrinsecamente fixados em seus usos, segue passivamente os regulamentos impostos pela

empresa, haja vista que: “Qualquer atraso ou descontrole [...] era infração que não se admitia,

por causa das consequências disciplinares e dos prejuízos físicos” (BRAFF, 2006, p. 150).

Ao mesmo tempo, no papel temático de cidadão – inserido em uma cultura,

que normatiza os comportamentos, dividindo-os em aceitos e não aceitos – também segue as

normas da coletividade, como ocorre ao frequentar um restaurante acompanhado de Ego:

Entrou e sentou-se à primeira mesa que encontrou [...] com medo de ver

entrando o cachorro [...] com medo de que pensassem que era seu. Os

cachorros, em todo o país, estavam proibidos de entrar em restaurantes.

[...] Como [...] já tivesse passado o perigo de ser expulso por comportamento

inconveniente, o zelador pôs-se a observá-lo [...] (BRAFF, 2006, p. 142,

grifo nosso)

Essa preocupação com as normas também se dá em atividades cotidianas. O

zelador não as questiona ou reflete sobre a possibilidade de ser flexível em relação à

aplicabilidade dessas regras, como quando o cachorro fica do lado de fora do refeitório, no

frio – “São os impedimentos [...] Quase todos inexplicáveis, mas aceitos passivamente”

(BRAFF, 2006, p. 145) – ou quando estão na vila, sozinhos – “[...] a janela permitia a

comunicação entre o que estava dentro da casa com o mundo de fora [...] E Ego, apesar de

companheiro e amigo, pertencia ao lado de fora” (BRAFF, 2006, p. 139-140).

Percebemos, nos excertos, que Ego é impedido de frequentar ambientes

fechados, destinados às atividades humanas, mesmo sendo considerado “companheiro e

amigo”. A inflexibilidade do zelador em relação às normas sociais ocorre mesmo quando

estão, o zelador e o cão, sozinhos na vila e mesmo que o convívio contínuo tenha criado entre

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eles “uma relação de confiança mútua e um sentimento muito próximo de uma amizade

irredutível” (BRAFF, 2006, p. 156).

À medida que o zelador respeita as normatizações coletivas, modalizado pelo

/dever/ segui-las independentemente de supervisão de outro membro do grupo social ao qual

pertence, desvela a recorrência e a permanência da forma de vida da submissão. Trata-se de

um comportamento normatizado, e também esquematizado, uma filosofia de vida,

demonstrando, mais uma vez, que a triagem, a serviço da intensidade e da pureza, como

coloca Zilberberg (1999, p. 171), guia o zelador à homogeneização do comportamento

submisso. Ele aceita a manipulação por tentação oferecida pelo cão, de acompanhá-lo, mas

não entrar em lugares fechados, como no restaurante, após sentar-se à mesa com medo de que

pensassem que o cão lhe pertencia: “[...] ficou muito surpreso ao perceber o amigo sentado

sobre as patas traseiras [...] bem ali, do lado de fora na frente da porta” (BRAFF, 2006, p.

142). O que o zelador não percebe, é que Ego age por instinto, pois é um animal irracional.

Mas, como no enunciado, ao longo do relato da amizade dos atores, o cachorro é

antropomorfizado no decorrer da narrativa, fica evidente a crença do zelador de que Ego

deveria cumpridor das normas – valores relativos ao universo humano.

A antropomorfização do animal é evidenciada nos excertos:

[...] ele tinha uma fisionomia jovial e festiva, como de alguém que sente

grande prazer no fato de estar vivo (BRAFF, 2006, p. 142).

Ego espiava através do vido aquele mundo iluminado que ele vagamente

entendia. [...] ele abanava a cauda, esperançoso [...] O volume o bolso da

calça era o pão que Ego esperava receber, pois adivinhava que seria seu (BRAFF, 2006, p. 145).

Os olhos de Ego, apesar de pedintes, eram também acusadores (BRAFF,

2006, p. 150).

[...] finalmente começou a falar com Ego. O cão [...] mirava-o com a

cabeça adernada ora para a esquerda, ora para a direita (BRAFF, 2006,

p. 157).

O cão trotava tristonho ao lado do amigo (BRAFF, 2006, p. 159).

A isotopia figurativa grifada nos excertos acima – “alguém que sente grande

prazer no fato de estar vivo”, “entendia”, “esperançoso”, “adivinhava”, “olhos acusadores”,

“mirava-o com a cabeça adernada ora para a esquerda, ora para a direita”, “tristonho” – fazem

parte do universo humano. Entender, adivinhar, ter esperança, ficar triste, adernar a cabeça

para o lado como sinal de entendimento ou sentir prazer em estar vivo são ações e/ou

sentimentos humanos atribuídos ao animal. Desse modo, o zelador acredita que o cão

compreende os limites a ele impostos tanto no restaurante quanto no refeitório – “Por causa

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do frio, a porta de vidro do refeitório permanecia fechada [...]. Do lado de fora, sentado sobre

as patas traseiras, Ego espiava através do vidro aquele mundo iluminado que ele muito

vagamente entendia” (BRAFF, 2006, p. 145). Em sua visão, a ação instintiva de Ego, que há

dias “vinha percorrendo os arredores sem encontrar caça alguma”, voltando “sempre sujo de

barro, com a barriga no espinhaço” (BRAFF, 2006, p. 139) corresponde a um roubo – ação

atribuída a humanos. O roubo é considerado crime na cultura ocidental, por isso esse ato passa

a configurar uma ruptura de comportamento, tanto de Ego, que teria entrado na casa sem o

consentimento do zelador e se apropriado de um bem que não lhe pertencia, quanto do

zelador, que deixa de considerar Ego “amigo” e passa considerá-lo “ladrão”, “traidor”.

Em oposição à antropomorfização do cão, também podemos notar que o

zelador passa por um processo de desumanização ao longo da narrativa. A isotopia figurativa

“Julgava, mesmo, uma ocupação inútil, pensar no passado ou no futuro”, “[...] o zelador

percebeu que já não se lembrava mais dos sons produzidos pela garganta humana. Não

que isso lhe fosse muito necessário [...]” – registrada no relato da amizade entre os atores – e

“as duas mãos abertas como patas”, “ele era um ser existente” – relatada no tempo presente

do enunciado – indicam a gradativa desumanização do ator-protagonista. No primeiro relato o

zelador demonstra não mais apresentar traços que são exclusivamente humanos, como pensar

e falar. Assim, preocupa-se apenas com o presente, pressupondo a ação por instinto,

característica atribuída a animais irracionais. Além disso, animais irracionais também não

falam e o zelador nem mesmo considera a fala necessária à sua existência. Do ponto de vista

da anatomia humana, conforme se instala o estado de alma deceptivo, que conduzirá o ator-

protagonista pelo dispositivo da cólera até chegar à vingança, o zelador passa a apresentar

traços da estrutura física animal, como patas. Ele também não explicita considerar o descuido

com a porta uma falha humana, mas, sim, uma falha de “um ser existente”, ser que pode ser

humano ou não, deixando a dúvida sobre a natureza de sua fisiologia, já comparada à de um

animal, que tem patas. O ápice dessa desumanização, no entanto, se dá no final da

manifestação patêmica do zelador, que examinaremos adiante.

Considerando a antropomorfização/humanização do cão e a

desumanização/zoomorfização do zelador, esse último mata o Ego regido pela operação de

triagem. Essa operação comporta como significação imanente “a pureza e a separação do

espaço em dois sub-espaços: um espaço reservado às grandezas boas ou benéficas, e um

espaço reservado às grandezas abjetas e vis”, de acordo com Zilberberg (2012, p. 8). Mas, o

zelador não pode ter como companheiro (que ele crê ser humano) aquele que não segue

rigidamente as normas, que não é submisso à moral social, comportamento considerado vil

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82

nesse contexto. Desse modo, tal operação de triagem pode ser percebida nas figuras que

representam a transformação do estado patêmico eufórico de amizade para o estado patêmico

disfórico de descontentamento, que converge, como veremos adiante, na paixão de

malevolência da vingança. Essa mesma gradação tensiva também representa a

antropomorfização do cão pelo zelador:

jovem cão cachorro amigo humano (companheiro) ladrão traidor

Notamos, nesse caso, tanto no que concerne à antropomorfização/humanização

de Ego, quanto na transformação dos estados de alma do zelador, uma ruptura da troca entre o

cão, que oferecia companhia e proteção – “Ego chegou em seguida, focinho colhendo cheiros

do chão, e não hesitou em atravessar a ponte em seu trote balançado. O rapaz não esperou

melhor prova de segurança e percorreu o trajeto exatamente por onde passara o amigo”

(BRAFF, 2006, p. 146) – e o zelador, que oferecia cuidado, alimento e afago – “O volume no

bolso da calça era o pão que Ego esperava receber” (BRAFF, 2006, p. 145) –, enquanto eram

amigos. Nessa troca, considerando os pressupostos de Greimas (1993, p. 24), deveria ser

mantido e desenvolvido o vínculo de companheirismo entre os atores, mas o zelador

ressemantiza os seus comportamentos diante dos regulamentos, que não deixa de seguir,

ocasionando o início da transformação na forma de vida submissa até o momento conservada.

Desse modo, ao /não poder ser/ tolerante em relação ao descumprimento das

regras, como observamos no auge do comportamento submisso do ator – “Educado na rigidez

dos regulamentos, o zelador não conhecia a tolerância, vício que aprendera a banir desde

criança” (BRAFF, 2006, p. 159) – o zelador passa a ser intolerante à desobediência. A

sentença do cão à morte, pelo descumprimento das normas sociais, que condenam tanto o

roubo, quanto a presença de animais em lugares fechados – “Ego [...] pertencia ao lado de

fora”, “Os cachorros, em todo o país, estavam proibidos de entrar em restaurantes”,

“Enquanto passava a manteiga no pão, o rapaz refletiu descontente que o mundo era [...] cheio

de barreiras [...]” (BRAFF, 2006, p. 140-145). O zelador condena-o também pelo mal causado

a ele com a transgressão, revelando que a triagem atingiu o seu limite e produziu um valor de

absoluto, que devido a seu caráter exclusivo e concentrado à semelhança da análise do jardim,

feita por Zilberberg (1999, p. 173), refuta qualquer possibilidade de aceitação ao não

cumprimento das normas. Assim, a forma de vida da submissão, predominantemente fechada

à mistura e concentrada, exclui de seu universo a desobediência às normas. Essa operação

pode ser visualizada no gráfico abaixo: (ver Figura 5)

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83

Figura 5: Submissão do ator zelador enquanto valor do absoluto

Fonte: Zilberberg (2011, p. 90)

Enfim, quando o zelador renuncia à amizade do cachorro e sai de casa com o

intuito de matá-lo, fazer por ele justificado pela comparação do ato de matar com as tarefas

rotineiras por ele executadas – “Jogou ao ombro o cabo da enxada, [...] como se retornasse à

limpeza do pátio da escola” (BRAFF, 2006, p. 159, grifo nosso) –, faz parecer que mantém a

recorrência comportamental e a permanência da forma de vida da submissão (GREIMAS,

1993, p. 33), visto que, quanto ao cumprimento dos regulamentos e à sequência de seu projeto

de vida, permanece exercendo as suas atividades de trabalhador que não quer ser punido. Ao

comparar a execução do cão (traidor) com a limpeza do pátio, parece crer continuar sendo

rígido no cumprimento das normas da empresa, demonstrada pela isotopia da submissão:

“não ousou reclamar”, “com medo de ver entrando o cachorro, mas principalmente com

medo de que pensassem que era seu”, “Como [...] já tivesse passado o perigo de ser expulso

por comportamento inconveniente”, “Preferiu não acender a luz com medo de acordar

alguém”, “Qualquer atraso ou descontrole era infração que não se admitia”, “Preso [...] à

possibilidade de sobreviver e de executar o que a Zeladoria lhe determinasse, dispensava-se

de qualquer reflexão sobre os significados e as razões”, “Jamais ousara fazer o menor

comentário sobre o que pensava”. Lembramos que essa preocupação com as normas, porém,

não faz parte do universo do cão, que age instintivamente, não entra em lugares fechados para

não ser punido.

Dessa forma, o zelador torna-se desobediente devido à intolerância nele

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84

arraigada, como aponta a relação especular entre o zelador e o cão, examinada na sequência.

Verificaremos, ainda, que a desobediência revela um parecer mentiroso ao tentar ser rígido e

deixar de sê-lo devido à desumanização sofrida pela forma de vida da submissão.

3.1.1 A transformação da forma de vida

Outro dado a ser mais detalhadamente investigado no texto e que tem íntima

relação com o comportamento submisso do zelador, com a desumanização do ator e com a

manifestação passional da vingança é o diálogo que o enunciador estabelece com elementos

do discurso psicanalítico. Assim, ao nomear o cão como “Ego”, possibilita-nos um exame

metodológico das relações interdiscursivas “que os textos e os discursos mantêm com aqueles

com que dialogam” (BARROS, 2009, p. 352), nesse contexto, com a psicanálise:

Um método de investigação que consiste essencialmente na evidenciação do

significado inconsciente das palavras, das acções, das produções imaginárias

(sonhos, fantasmas, delírios) de um indivíduo. Este método baseia-se

principalmente nas associações livres26

do indivíduo, que são a garantia da

validade de interpretação (LAPLANCHE; PONTALIS, 1988, p. 495).

Nesse sentido, segundo Freud (1980, p. 23-83) o inconsciente é composto pelas

instâncias psíquicas id, ego e superego. O id desempenha o papel do instinto, onde predomina

o princípio do prazer. O ego é a parte do id que, por influência direta do mundo externo, foi

modificada e, a fim de substituir o princípio do prazer, que no id impera, pelo princípio de

realidade, procura lhe aplicar essa influência do mundo externo. O superego se inscreve no

papel da moralidade, que impõe a proibição ao ego. À medida que “sucumbe à repressão das

coerções sociais (sob a influência do pai, da autoridade, do ensino religioso, da educação

escolar, da leitura)” o superego domina o ego para que aja de acordo com a moral social.

Podemos observar a interdiscursividade, primeiramente, quando o zelador

atribui ao cão, que acaba de conhecer, o nome Ego – “Ego, murmurou o zelador, acariciando

sua cabeça. E o nome não foi uma invenção, mas uma descoberta, porque o jovem cão parou

de pular e, abanando a cauda, olhou com muita simpatia para seu novo amigo” (BRAFF,

26

Entende-se por Associação Livre o “Método que consiste em exprimir indiscriminadamente todos os

pensamentos que acodem ao espírito, quer a partir de um elemento dado (palavra, número, imagem de um sonho,

qualquer representação), quer de forma espontânea” (LAPLANCHE; PONTALIS, 1988, p.71).

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85

2006, p. 141) – demonstrando a incorporação da figura de um discurso – o psicanalítico – em

outro – o literário –, conforme Fiorin (1994, p. 32). Assim, tendo em vista que “O ego (...) não

é o lugar da verdade do sujeito, mas imagem que o sujeito faz de si mesmo”, segundo Garcia-

Roza (2001, p. 211), importa considerarmos que o zelador conhece Ego, no dia em que recebe

a Ordem de Serviço e descobre que não foi promovido em razão de sua pouca idade. Por isso,

imediatamente identifica-se com o animal – “Na sua espécie, pensou, é tão jovem quanto eu

na minha” (BRAFF, 2006, p.141). Desse modo, para o zelador, ele e Ego são iguais.

Considerando a alusão ao discurso psicanalítico, observamos, então, que o

zelador projeta sua imagem na figura do ator Ego, uma vez que para ele, fisicamente,

apresentam características semelhantes, como se nota na figura “é tão jovem quanto eu”.

Essa projeção especular também está presente nas relações entre os

companheiros, conforme indiciam as passagens “O zelador nunca soube direito quem

conduzia e quem era conduzido” (BRAFF, 2006, p.142), “Nas diversas viagens que juntos

empreenderam, os dois se complementavam” (BRAFF, 2006, p.141).

Mediante o primeiro acontecimento – o inesperado roubo da carne –, uma

ruptura do contrato imaginário de confiança entre o zelador e o cão se estabelece, na medida

em que o animal, ser irracional que age por instinto e, portanto, não tem consciência da

existência de um contrato – “Nenhum dos episódios que foi tecendo, ao longo do tempo, a

mútua confiança pôde naquele momento valer ao cão” (BRAFF, 2006, p. 159).

Concomitantemente, o zelador, que se vê projetado em Ego – inicialmente considerado

companheiro e amigo –, no auge da amplificação tensiva da manifestação passional, passa a

vê-lo como ladrão, pois crê que Ego descumpriu as exigências da moral social (regulamentos

da empresa e normas sociais).

Em outras palavras, considerando a perspectiva freudiana, o ego não atendeu

aos apelos do superego. Logo, a rigidez do sujeito em relação a Ego e à imagem do que

deveria ser (o ideal do ego) é intensificada, como revela, gradualmente, a isotopia figurativa já

mencionada na página 82, mas que aqui sintetizamos, para fins de melhor entendimento da

análise:

jovem cão cachorro amigo humano (companheiro) ladrão traidor

Nesse momento, prevalece a natureza concessiva da expressão “embora a,

entretanto não b” (ZILBERBERG, 2007, p. 23), ou seja, embora Ego fosse considerado

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companheiro e amigo, não era autorizado a entrar na casa ou em qualquer ambiente fechado,

destinado a humanos, como exemplifica o excerto: “Ego, apesar de companheiro e amigo,

pertencia ao lado de fora” (BRAFF, 2006, p. 140).

Assim, como no discurso psicanalítico “o ego está numa relação de

dependência quanto às reivindicações do id, bem como quanto aos imperativos do superego e

às exigências da realidade” (LAPLANCHE; PONTALIS, 1988, p. 171), o zelador, na forma

de vida da submissão, não consegue ser tolerante à infração às regras. Infração que acredita

ter sido cometida pelo cão, apesar de o cão, animal irracional, não seguir regras, mas, sim, o

instinto, como já observamos.

Todavia, como o cão – ator que espelha o ego do Zelador – é reflexo da

imagem de seu ego, que é submisso, ou seja, desde muito cedo é dominado pelo superego, o

Zelador torna essa dominação (submissão) ainda mais severa “sob a forma de consciência

(consciente), ou, talvez, de um sentimento de culpa” (FREUD, 1980, p. 49). Dessa forma, a

autonomia relativa do ego, no que se refere à totalidade do sujeito27

, é superada pelo

superego, que reclama uma sanção negativa, como punição ao desrespeito à moral social da

forma de vida do submisso.

O zelador, portanto, não considera que o cão age por instinto e coloca a

moralidade acima do princípio do prazer, presente no id, e do princípio da realidade, que

compete ao ego e é modalizado pelo /dever fazer/ intrínseco ao superego, como adverte o pai

da psicanálise:

Do ponto de vista do controle instintual, da moralidade, pode-se dizer do id

que ele é totalmente amoral; do ego, que se esforça por ser moral, e do

superego que pode ser supermoral e tornar-se então tão cruel quanto somente

o id pode ser. É notável que quanto mais um homem controla a sua

agressividade para com o exterior, mais severo – isto é, agressivo – ele se

torna em seu ideal do ego (FREUD, 1980, p. 70-71).

Por esse motivo, quando o superego do zelador dirige sua vingança contra o

ego, é com “violência impiedosa” – “O zelador tomou o cabo pela extremidade e, com o olho

da enxada, amassou a cabeça entre as duas orelhas” (BRAFF, 2006, p. 160) –, conduzindo o

zelador à anulação do ego – “As quatro pernas apenas estremeceram e o mundo foi coberto

por um lençol de silêncio” (BRAFF, 2006, p. 160) – para que o a moralidade imposta pelo

destinador social o controle totalmente.

Entretanto, embora o tumulto modal do zelador desvele sua completa

27

Segundo Laplanche e Pontalis (1988, p. 171), a autonomia do ego é relativa.

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submissão às reivindicações do superego, figurativizado pelos regulamentos da empresa e

também pelas normas sociais a que é submisso e que condenam o roubo, o ator-protagonista,

enquanto destinador-julgador, investido do poder aplicar uma sanção ao cão, comete um

crime ao executar o companheiro, ou melhor, o seu ideal de ego. Na cultura ocidental, matar

alguém em razão de uma infração, como o roubo, não constitui norma social. Nem tampouco,

é uma norma de uma instituição corporativa, ou seja, de uma empresa, destinador social

diretamente ligado ao zelador. Nesse sentido, observamos, no texto, o caráter irônico da

excessiva submissão do zelador aos regulamentos, que o leva a infringir a lei – normas sociais

e corporativas – ceifando a vida do Outro.

Por outro lado, no excerto “Não precisou virar a cabeça para ver quem se

aproximava, pois era um passo que conhecia desde sua infância” (BRAFF, 2006, p. 160, grifo

nosso), notamos que a humanização do cão se reitera, figurativizada pelo lexema “infância”,

cuja acepção no Houaiss (2009) é “período do desenvolvimento do ser humano, que vai do

nascimento ao início da adolescência”. Sendo assim, o lexema “infância” comporta o traço

sêmico /humano/, o que revela que Ego no texto é alusão especular ao Ego do próprio

Zelador.

Desse modo, a inesperada execução de Ego, revela a total desumanização do

zelador, que abdica da amizade “quase irredutível”, construída ao longo da história entre os

atores. Esse era o último traço de humanidade do Zelador que já havia se esquecido até do

som da linguagem humana. Por outro lado, o acontecimento do desenlace da narrativa, ou

seja, a execução do cão, seu companheiro e amigo, revela a completa despreocupação do ator-

protagonista com a amizade anteriormente devotada a Ego.

Passamos agora, à reconstituição do acontecimento que desencadeia a

manifestação passional da cólera, que revela a desumanização do ator-protagonista,

ocasionada pela forma de vida da submissão, levando-o à violência contra o outro, o cão Ego,

espelho de seu próprio ego que, dominado pelo superego age com tamanha crueldade com o

outrora companheiro.

3.2 NO SEGUNDO RELATO: DOIS ACONTECIMENTOS

Diante da forma de vida da submissão e da desumanização do zelador e

considerando os conceitos de rotina e acontecimento da perspectiva da semiótica tensiva,

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vamos considerar o excerto: “O zelador entrou na cozinha empapado de suor e fome e,

quando abriu as duas folhas da veneziana, ficou sendo meio-dia em todo aquele espaço em

que a noite estava escondida” (BRAFF, 2006, p. 139).

Percebemos que ao entrar na casa, antes de abrir a geladeira, o ator-

protagonista encontra-se em estado de relaxamento, seguindo a rotina de trabalhador que faz a

pausa para o almoço – “[...] ficou sendo meio-dia em todo aquele espaço em que a noite

estava escondida” (BRAFF, 2006, p. 139) – para, depois, voltar às suas atividades. Ao

perceber que a geladeira está aberta e sem a carne em seu interior, o zelador é tomado pela

surpresa do sobrevir, “denegando ex abrupto as antecipações da razão” (ZILBERBERG,

2007, p. 18), pois não esperava se deparar com tal cena. Ele passa de um estado desacelerado,

relaxado, anterior à visão da porta da geladeira aberta, para um estado de tensão e de espanto.

Inicialmente, não consegue entender o que está acontecendo: “Num primeiro momento,

pareceu-lhe um cérebro, aquele vão, porque não conseguia organizar uma única idéia”

(BRAFF, 2006, p. 139).

O impacto da ruptura na rotina do sujeito é tão intenso que imediatamente

sente o latejar de suas veias, como evidencia o excerto: “[...] percebeu logo que não era a

geladeira que latejava, com o sangue correndo desesperado” (BRAFF, 2006, p. 139, grifo

nosso). A tonificação cada vez mais acentuada do sentimento de falta do zelador é ilustrada

no eixo da intensidade pelas isotopias figurativas do andamento e da tonicidade. Por isso,

como observamos no trecho em destaque, nesse instante o corpo do zelador começa a

manifestar a intensificação de seu sofrer, figurativizado pelo lexema “sangue”, demonstrando

um andamento acelerado da carga tímica do sujeito, figurativizada pelo lexema “correndo”.

Ao mesmo tempo, o sofrer é acentuado pelo lexema “acelerado”. Dessa forma, o andamento e

a tonicidade, subvalências que constituem a grandeza de intensidade, demonstram a

subtaneidade do choque sofrido pelo zelador ao descobrir o roubo da carne que estava na

geladeira.

Ainda atordoado com o inesperado roubo da carne, procura compreender

claramente a situação – “Apoiou na tampa da mesa as duas mãos abertas como patas,

imaginando que era preciso entender o que acontecera” (BRAFF, 2006, p. 139). Nesse

momento, o acontecimento absorve todo o agir do sujeito estupefato, deixando-lhe apenas o

sofrer, consoante Zilberberg (2011, p. 171).

Tendo em vista a dependência do modo de existência em relação ao modo de

eficiência, diante do sobrevir, ou seja, do roubo da carne, revela-se a apreensão do zelador,

que começa a refletir sobre o que lhe acontecera: “E imaginou. Uma imaginação, quando pega

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forte o pensamento, pode parecer mais verdadeira do que a verdade. Por isso não teve mais

dúvidas: o culpado era seu companheiro Ego, o cachorro” (BRAFF, 2006, p.139). Em

seguida, o zelador sente notações somáticas, figurativizadas como “suor azedo”, e “fome

aguda” (BRAFF, 2006, p. 140), que revelam uma acentuação tônica da tímia do sujeito. Essas

notações somáticas configuram a relação sinestésica do zelador com o sofrer provocado pelo

acontecimento, manifestada, principalmente por meio da visão (sol, raios, claridade) e do tato

(fome aguda, sol quente).

É importante ressaltar que, conforme Greimas (2002, p. 85), a sensação tátil é a

sensação mais profunda quando se trata do desenvolvimento das paixões do “corpo” e da

“alma”. Essa sensação parece antecipar, como veremos a seguir, o tumulto modal que

desencadeará o dispositivo da cólera.

Ao se lembrar de que esquecera a porta da casa aberta – “Não se lembrava de

ter tido muito cuidado com a porta naquela manhã quando saiu para o trabalho. [...] Ao fechar

a porta da geladeira, talvez não tivesse tido o cuidado suficiente” (BRAFF, 2006, p.140) –, o

zelador se dá conta de que o episódio o privará do objeto-valor almejado e manifesta uma

crise de confiança conforme acredita que fora traído pelo amigo: “Acontece. Isso, contudo,

não era motivo para ter sofrido uma tal traição” (BRAFF, 2006, p. 140).

Do ponto de vista concessivo,(Zilberberg ¸2011, p. 176-177), o zelador conclui

que o cão realizou um programa, até o momento, julgado, por ele, irrealizável, pois Ego

pertencia ao lado de fora e, mesmo assim, poderia ter entrado na casa, como observamos no

fragmento:

O entendimento foi muito claro porque a janela permitia a comunicação

entre o que estava dentro de casa com o mundo de fora, inclusive aquela

claridade do sol por onde descia a imaginação. E Ego, apesar de

companheiro e amigo, pertencia ao lado de fora (BRAFF, 2006, p. 139-140).

O andamento fica mais intenso, como se nota na isotopia figurativa: “sangue

correndo desesperado”, “suor que manchava de azul escuro vastas áreas de sua camisa

azul”, “dança refulgente e frenética”, “raios vivos que se agitavam no ar”, “as folhas da

veneziana, que bateram”. Nesse aspecto, propicia a ascendência da tensão, ou seja, o

crescimento progressivo da carga tímica do sujeito (FONTANILLE, 2012, p. 113-114). Nessa

mesma isotopia figurativa, a tonicidade é figurativizada pelos lexemas “desesperado”, “[raios]

vivos”, “refulgente” e “frenética”. A isotopia figurativa da acentuação tônica da carga tímica

do zelador é ainda composta pelas figuras “traição”, “irritado”, “ruído seco”, “ladrão”, “sol

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claro e quente”, “claridade intensa”, que provocam desorientação modal no sujeito e falta de

atitude, pois o zelador apaga a luz e volta a se sentar (BRAFF, 2006, p. 144).

No campo de presença do zelador, a ação de sentar-se parece desembocar na

atenuação do acontecimento, mas o sujeito, ainda tomado pela apreensão, reatualiza o desejo

de conjunção com a promoção – “O principal problema relacionado àquele roubo era sua

promoção. [...] Com um pedido antecipado de alimento, ele sabia, adeus qualquer esperança

de passar à Classe C” (BRAFF, 2006, p. 143).

Nesse momento, ainda marcado pelo que lhe sobreveio, o zelador passa a se

preocupar com as consequências daquilo que vivenciou (ZILBERBERG, 2007, p. 22) – “O

futuro era uma névoa só em que tinha engolfado sua vida” (BRAFF, 2006, p. 144). Em

seguida, ocorre uma desaceleração do sofrer do sujeito, que retoma a atitude absorvida pelo

acontecimento à medida que começa a refletir sobre a melhor atitude a ser tomada diante da

situação – “[...] talvez agora conseguisse descobrir qual a melhor atitude” (BRAFF, 2006, p.

144).

No que diz respeito à grandeza de extensidade, a intensidade da carga tímica do

zelador começa a enfraquecer à proporção que, na valência de extensidade, o tempo até o

momento suspenso – “Não se lembrava de ter tido muito cuidado com a porta naquela manhã

[...]” (BRAFF, 2006, p. 140) – volta a existir – “De repente, teve uma idéia como quem

recebe uma pancada na cabeça” (BRAFF, 2006, p. 155, grifo nosso).

Simultaneamente, no espaço fechado da cozinha, o sujeito primeiro se

preocupa com o vazio dentro da geladeira – “Um vazio iluminado com reflexos nas paredes

de esmalte branco” (BRAFF, 2006, p. 139) –, depois precisa apoiar as mãos na mesa para

compreender o que se passara e, por fim, afasta uma cadeira e se senta à mesa, “[...] como

estivesse muito confuso” (BRAFF, 2006, p. 140, grifo nosso).

Essa isotopia figurativa que gradualmente conduz o sujeito à imobilidade –

“vazio”, “apoiou” e “sentou-se” revela a petrificação do espaço (GREIMAS, 2002, p. 25- 26),

ocasionada pelo inesperado roubo da carne. Conforme o sofrer do zelador vai desacelerando,

a mobilidade do sujeito é recuperada – “Levantou-se e foi até a pia [...] Ao passar de volta

pela janela, empurrou irritado as folhas da veneziana [...] Onde andaria o ladrão? Perguntava

seu olhar, que se perdeu nos dois sentidos da rua” (BRAFF, 2006, p. 144, grifo nosso).

Entretanto, o sujeito continua sofrendo, atordoado e torna a sentar-se (BRAFF, 2006, p. 144).

Observamos, no que concerne à espacialidade, que o zelador somente se recupera do

arrebatamento causado pelo sobrevir, quando se convence de que precisa agir. Nesse

momento, a apreensão dá lugar à focalização, como caracteriza Zilberberg (2007, p. 22),

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91

motivo pelo qual o sujeito se levanta e abre a porta (BRAFF, 2006, p. 155). Como nesse

momento o zelador se converte em um sujeito operador, ele antecipa a realização de um

programa de junção – disjunção com a amizade de Ego, de que trataremos à medida que

desenvolvermos a sequência passional da cólera: “Então, levantou-se de si, sem uma solução

nítida; convencido, contudo, de que fazia parte de suas obrigações uma atitude violenta. Abriu

a porta e apagou a luz” (BRAFF, 2006, p. 155).

Na tabela abaixo, apresentamos as isotopias figurativas das subvalências

tensivas imanentes ao acontecimento “roubo da carne”, que dá início a manifestação patêmica

da cólera: (ver Tabela 2)

Tabela 2- Isotopias figurativas das subvalências tensivas VALÊNCIAS

SUBVALÊNCIAS

INTENSIDADE EXTENSIDADE

Andamento

(acelerado)

correndo, suor que manchava de

azul escuro, dança, agitavam -

Tonicidade

(acentuada)

desesperado, vastas áreas,

refulgente e frenética, raios vivos,

azedo, aguda, traição, irritado,

ruído seco, sol claro e quente,

ladrão, claridade intensa

-

Temporalidade - Nula

Espacialidade - Fechado (casa - cozinha)

Fonte: Elaborado pela autora.

Vemos, pois, que este estado de admiração, que é o acontecimento,

figurativizado nesse conto pelo roubo da carne, é finito e breve. Assim, à medida que a carga

tímica do zelador, afetado pelo inesperado, começa a enfraquecer – a intensidade do sofrer

esmaece, conforme o tempo e o espaço voltam a existir –, o sujeito pode retornar à atitude

temporariamente interrompida pelo acontecimento (ZILBERBERG, 2011, p. 171-177).

Assim, atualizando o desejo de ser promovido, mas sabendo não mais poder ser promovido,

em razão do roubo da carne empreendido por Ego, o zelador é tomado pela paixão da cólera.

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92

3.3 O PERCURSO PASSIONAL DO ZELADOR

Inscrito em torno das transformações narrativas, consoante Bertrand (2003, p.

361), o espaço passional de “O zelador” relaciona-se ao desejo do sujeito de entrar em

conjunção com a promoção. Esse espaço está discursivizado no clímax do conto. Nele, são

explorados os estados de alma do zelador, desumanizado pela forma de vida da submissão.

Notamos que o espaço passional, grafado em itálico no texto, ocupa posição de

destaque na narrativa, pois revela as consequências da desumanização do sujeito submisso.

De acordo com Nascimento e Abriata (2008, p. 299-308) “A coexistência de sujeitos de

diferentes ordens que ora agem, ora são conduzidos pela razão, ora se deixam levar pelo

corpo, instala, na narrativa, momentos de relaxamento, onde a paixão ou o afeto predominam,

e de tensão, em que a cólera explode”, como observamos no conto em exame. Nessa

perspectiva, a amizade é instalada nos momentos de relaxamento, anteriores à tensão

precipitada pelo acontecimento.

Considerando, pois, a modalização do ser do zelador, que deseja a conjunção

com o objeto-valor promoção, no conto, o estado patêmico de tensão do sujeito inicia-se com

o enfraquecimento de seu sofrer, frente ao acontecimento, uma vez que é estabelecida a

atualização de seu desejo de entrar em conjunção com a promoção. Em outras palavras, com a

revelação da quebra do contrato fiduciário operada por Ego, a tensividade fórica do zelador é

manifestada, em consonância com o dispositivo da cólera, desenvolvido por Fontanille (2005,

p. 63).

A gradação tensiva do sofrer do sujeito, associada ao desenvolvimento da

sequência canônica da cólera, conduz a manifestação passional ao desmembramento em uma

fase intermediária, a vingança, de acordo com Fontanille (2005, p. 66). Nesse sentido,

também analisamos essa paixão, observando as modulações tensivas de intensidade e de

extensidade que, de acordo com o semioticista (FONTANILLE, 2007, p. 204), conduzem a

transformação passional em cada fase do dispositivo da cólera.

3.3.1 O percurso da cólera

A situação inicial do percurso passional do zelador desenvolve-se a partir do

Page 94: PAIXÕES, ACONTECIMENTOS E FORMAS DE VIDA EM CONTOS …€¦ · Figura 4 – Atenuação da carga tímica do Andarilho após execução da vingança 75 Figura 5 – Submissão do

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estado de relaxamento, de confiança no sujeito Ego, seu companheiro e amigo, como revela o

excerto: “Permitir que o sono, abruptamente cortado naquela madrugada, aos poucos voltasse,

entorpecendo-lhe os membros e apagando-lhe a vontade, isso já havia sido uma demonstração

cabal de sua confiança em Ego” (BRAFF, 2006, p. 148).

Essa confiança, de acordo com Fontanille (2005, p.64), é estabelecida na

relação entre ao menos dois sujeitos e pressupõe um estado de crença de alguém. Lembremos

que, o zelador crê que pode entrar em conjunção com o objeto-valor, a promoção, devido a

seu desempenho impecável e à possibilidade de promoção por tempo de serviço, consoante o

regulamento – “Seu tempo de serviço na Zeladoria, segundo o regulamento, autorizava-o a

nutrir tal aspiração” (BRAFF, 2006, p. 143).

Percebemos que a confiança na empresa é contratual, instalada de maneira

formal na narrativa, por meio dos regulamentos da Zeladoria, a que o zelador é submisso.

Nesse sentido, é explicitada nos regulamentos corporativos e nos relatórios elogiosos da

empresa para a qual o zelador trabalha – “Foi citado diversas vezes em relatórios da empresa

[...]” (BRAFF, 2006, p.140). A confiança depositada em Ego, no entanto, é uma confiança

informal, afetiva, estabelecida, no enunciado, à medida que os sujeitos, Ego e zelador,

manifestam o estado patêmico de amizade.

Mas, apesar da confiança depositada nos sujeitos com quem estabeleceu o

contrato fiduciário, o zelador não tem absoluta certeza de que a conjunção desejada com o

objeto valor promoção se realizará, como observamos nos excertos: “Seu antecessor fora um

velho funcionário da Zeladoria, que jamais conseguira passar da Classe D” (BRAFF, 2006, p.

141) e “Seu tempo de serviço na Zeladoria, segundo o regulamento autorizava-o a nutrir tal

aspiração” (BRAFF, 2006, p. 143).

Nesse último fragmento, o lexema “autorizava”, cuja acepção no Houaiss

(2009) pode ser “dar direito a” ou “dar motivo a” evidencia que o tempo de serviço do zelador

poderia ser um critério para a Zeladoria promovê-lo, mas não fator determinante para que isso

ocorresse. Por isso, ele espera pela realização, pela conjunção com o objeto, contando com a

ação do sujeito empregador, conforme continua a exercer suas atividades – “[...] realizando

cada tarefa com esmero, empenhando-se nos mínimos detalhes para merecer uma promoção”

(BRAFF, 2006, p. 156).

Por sua vez, estabelece um contrato imaginário com Ego, na medida em que

fica pressuposto que o cachorro, sendo companheiro e amigo, isto é, humanizado, não o

impedirá de conquistar a promoção, já que “Nas viagens que juntos empreenderam, os dois se

complementavam” (BRAFF, 2006, p.157).

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No momento em que o zelador percebe o roubo da carne – “E era um vazio o

que estava lá dentro” (BRAFF, 2006, p. 139) –, imediatamente conclui que o responsável só

pode ser Ego: “[...] não teve mais dúvidas: o culpado era seu companheiro Ego, o cachorro”

(BRAFF, 2006, p. 139). Sujeito cognitivo, o zelador sabe que o roubo da carne não foi

premeditado – “O cachorro, sem auxílio de algum acaso, nada conseguiria [...] devia ter

encontrado alguma facilidade” (BRAFF, 2006, p. 140). Essa constatação, todavia, não impede

a instalação de uma tensão na narrativa, pois o zelador, ao antropomorfizar/humanizar Ego

desconsidera que o cão é um animal e, portanto, irracional, que age por instinto. Por isso é

reativado o /querer/ entrar em conjunção com o objeto-valor desejado: “O principal problema

relacionado àquele roubo era sua promoção” (BRAFF, 2006, p. 143, grifo nosso). O lexema

“problema”, também definido no Houaiss (2009) como “situação difícil; conflito emocional”,

figurativiza a acentuação da carga tímica do sujeito e agrava o tumulto modal provocado pelo

acontecimento inicial.

Diante do acontecimento – roubo da carne –, à proporção que o sobrevir é

potencializado, restando apenas a lembrança do que acontecera ao sujeito admirado, para que

ele possa restabelecer sua rotina, ou seja, voltar a agir (cf. ZILBERBERG, 2007, p. 22), surge

a frustração. Nesse instante, a promessa de conjunção anterior – conjunção com a promoção –

é reatualizada. O sujeito que /quer ser conjunto/ se dá conta de que o programa narrativo que

ele esperava ser realizado por Ego – não entrar na casa – não se realizou e que aquele a ser

realizado pela empresa não se realizará: “[...] Com um pedido antecipado de alimento, ele

sabia, adeus qualquer esperança de passar à Classe C” (BRAFF, 2006, p.143). Assim, a falta

fiduciária é, pois, instaurada “sobre o fundo da confiança e da espera irrealizadas”

(FONTANILLE, 2005, p. 64).

O trecho “As vilas onde trabalharia seriam do mesmo nível da atual, que não

era diferente das anteriores. Muito distantes, malcuidadas, em regiões inóspitas” (BRAFF,

2006, p.143) acentua ainda mais a tensão provocada pela frustração do zelador, agora certo de

que não será promovido, como sempre desejara.

Conforme o corpo sensível do zelador é tomado pela decepção, provocada pela

frustração, surge o descontentamento, que Fontanille (2005, p. 65) afirma ocorrer quando o

sujeito compara o estado inicial de espera e o estado final. Desse modo, mais uma vez instala-

se na narrativa a discordância entre o direito e o fato, que constitui a concessão, pois o zelador

esperava ser promovido e deixar de cuidar de vilas como aquela onde estava, mas, com o

roubo da carne, continuaria trabalhando em vilas do mesmo nível que aquela. Diante desse

fato, considera o estado final da espera insatisfatório: “O futuro era agora uma névoa só em

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que tinha engolfado sua vida” (BRAFF, 2006, p.144).

Nesse momento, sente a raiva somatizada em seu corpo – “Magoados pela

claridade intensa, seus olhos desviaram-se para dentro da cozinha” (BRAFF, 2006, p. 144).

Como nessa fase da sequência passional da cólera, o descontentamento é direcionado a algum

outro, que pode estar implicado na situação, ou ser, até mesmo, um “si mesmo” com o qual se

contava para a realização da conjunção esperada (FONTANILLE, 2005, p. 65), o zelador

demonstra a frustração com aquele até então considerado amigo, direcionando o seu

descontentamento a Ego, por meio de uma mudança na imagem que tem do cão – “Onde

andaria o ladrão?” (BRAFF, 2006, p. 144). Novamente, a tensão é intensificada, agora pelo

lexema “ladrão”, que qualifica negativamente o cão, desobediente aos regulamentos do bem

conviver entre homens e animais, aos quais o zelador também é submisso. Ao considerar

aquele que até o momento era companheiro e amigo, um ladrão, se acentua de forma mais

intensa a carga tímica do sujeito patemizado pela decepção.

O zelador também revela seu estado de descontentamento consigo mesmo,

enquanto destinador do cão, ao ser surpreendido por um novo acontecimento: a constatação

de que deixou de ser zeloso, ou seja, foi descuidado e possibilitou o fazer do cão:

Ele sempre nutriu um orgulho que chegava a ser mórbido por ser zeloso com

tudo. Foi citado diversas vezes em relatórios da empresa por essa razão: a

causa de seu orgulho. Mas não existe um único ser perfeito [...] Também não

era. Ao fechar a porta da geladeira, talvez não tivesse tido o cuidado

suficiente (BRAFF, 2006, p.140)

Além disso, submisso aos regulamentos, deveria assumir publicamente que

fora descuidado, passando a ser desmerecedor da promoção desejada, apesar da dedicação ao

trabalho empreendida:

[...] era forçoso, de acordo com os regulamentos, que registrasse o fato em

seu próximo relatório. E não era pouco ter de confessar um descuido, para

ele, que há anos, vinha realizando cada tarefa com esmero, empenhando-se

nos mínimos detalhes para merecer uma promoção (BRAFF, 2006, p. 156,

grifos nossos)

Esse estado deceptivo é intensificado pela isotopia figurativa destacada no

excerto anterior: “forçoso”, “ter de confessar” e “há anos”. Indicando que a carga tímica do

sujeito está chegando ao ápice da gradação tensiva do dispositivo da cólera.

Na fase da agressividade, o zelador se endereça àquele que não honrou a

promessa, nesse caso, uma promessa que existe apenas na imaginação do sujeito visto que,

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apesar de ter sido humanizado pelo zelador, Ego é um animal, é, portanto, é irracional:

“Então, levantou-se de si, sem uma idéia muito nítida; convencido, contudo

de que fazia parte de suas obrigações uma atitude violenta. [...] Quase

tropeçou no cabo da enxada com que estivera trabalhando pela manhã, e

que se escorava na parede do galpão. Foi então que a idéia explodiu num

clarão em sua cabeça” (BRAFF, 2006, p. 155-156, grifos nossos).

O símile “a idéia explodiu num clarão” revela que o dispositivo da cólera

atingiu o auge de sua gradação tensiva, que se inicia com um mínimo de intensidade e uma

fraca extensão, na fase da confiança, e chega a uma tensão máxima na agressividade. Nessa

perspectiva, apresentamos, no gráfico abaixo, o recrudescimento da carga tímica do zelador a

cada fase do percurso passional, conforme esquema de amplificação desenvolvido por

Fontanille (2012, p.112-115):

Figura 6: Amplificação tensiva do percurso passional da cólera do sujeito zelador

Fonte: Fontanille (2012, p.112)

Nesse momento do percurso, não acontece a explosão da cólera. Como vemos

no excerto acima, embora a carga tímica do zelador, gradativamente mais desumanizado pela

forma de vida submissa, esteja intensificada, nas passagens em destaque há uma reflexão

sobre o dano sofrido, sobre a necessidade de reagir à ofensa sofrida, peculiar ao programa

narrativo de vingança (GREIMAS, 1983, p. 237-246). Por isso, sendo essa paixão uma

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variante da agressividade que surge no lugar da explosão da cólera, (cf. FONTANILLE, 2005,

p. 74), observaremos a continuidade do percurso passional do zelador, agora patemizado pela

vingança.

3.3.2 A execução da vingança

Manifestação unilateral da ruptura de confiança, (cf. FONTANILLE, 2005, p.

74-78), a fase da agressividade faz irromper o desejo de vingança no zelador patemizado pelo

intenso sofrer provocado por essa ruptura. Certo de que a performance do cão deve ser

punida, tendo em vista o princípio de reciprocidade dos danos, o sujeito é dotado de um

/poder fazer/ emergente que sempre se manifesta nessa fase – “[...] fazia parte de suas

obrigações uma atitude violenta” (BRAFF, 2006, p. 155).

Dessa forma, o zelador desenvolve um programa de retaliação contra o

antissujeito: “[...] teve uma idéia como quem recebe uma pancada na cabeça” / “Foi então que

a idéia explodiu num clarão em sua cabeça” (BRAFF, 2006, p. 155-156).

Isso ocorre porque à modalização pelo /poder fazer/, na fase da agressividade,

se relaciona um /dever fazer/, mediante o fato de o zelador ter sido “educado na rigidez dos

regulamentos” e, por isso, não conhecer “[...] a tolerância, vício que aprendera a banir de sua

vida desde criança” (BRAFF, 2006, p. 159).

Desse modo, a ideia “explode em sua cabeça”, revelando a intensificação da

carga tímica do sujeito que /quer ser/ conjunto do objeto-valor promoção, apesar de ter

descoberto que continuará disjunto dele. Assim, quando o zelador tropeça na enxada, decide

executar um programa narrativo de fazer. Nesse programa narrativo, o zelador, dotado das

competências do /saber fazer/ e do /poder fazer/ joga “[...] ao ombro o cabo da enxada [...]

como se retornasse à limpeza do pátio da escola” (BRAFF, 2006, p. 159, grifos nossos) e

percorre a rua à procura do antissujeito. Logo encontra o cão, agora metaforicamente

figurativizado como “[...] mancha cor de banana madura, imensa e imóvel” (BRAFF, 2006,

p. 159, grifo nosso). Notamos que os lexemas “limpeza” e “mancha” fazem parte da isotopia

da limpeza, ou melhor, da isotopia da atividade de zelador, que deve cuidar da manutenção da

vila, cuidado que exige remover a sujeira (a “mancha”) do espaço físico daquele ambiente.

Essa isotopia também pertence ao espaço passional do zelador, que agora vê o cão como

empecilho para obtenção do objeto-valor.

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Quanto ao lexema “retornasse”, grifado no excerto supracitado, notamos que

faz parte do parecer manter a forma de vida da submissão aos regulamentos da empresa.

Dessa forma, o sujeito passional volta a ser sujeito operador e, visando à vingança (reparação

do dano causado pelo cão), realiza o fazer planejado após tropeçar no cabo da enxada e uma

ideia explodir em sua cabeça: subtrai a vida do “traidor” (Ego), como demonstra o excerto “O

zelador tomou o cabo pela extremidade e, com o olho da enxada, amassou a cabeça entre as

duas orelhas” (BRAFF, 2006, p. 160).

Do ponto de vista tensivo, o zelador tem a carga tímica gradativamente

intensificada pelo plano de vingança. A decepção do sujeito, já é intensa quando resolve

procurar o cão para puni-lo – “Sua primeira idéia foi a de voltar para a frente da casa e

percorrer a rua de uma ponta à outra” (BRAFF, 2006, p. 159). Mas, esse estado deceptivo é

recrudescido quando o zelador encontra o cão, que acabara de enterrar a carne roubada –

“Lambia as patas dianteiras, o cão, provavelmente lavando-as depois do trabalho terminando”

(BRAFF, 2006, p. 160). O aniquilamento do animal, que tem a cabeça amassada por uma

enxada, configura não somente um novo acontecimento, mas, principalmente, o ponto

máximo da acentuação tônica da carga tímica do sujeito.

Pragmaticamente, com a morte de Ego, temos no enunciado um sujeito

competente, que executa um programa narrativo de afirmação de si e de destruição do outro

(GREIMAS, 1983, p. 245-246).

Com base nesse panorama, executada a vingança, fica completo o esquema de

amplificação apresentado na página 96, figura 6. Esse gráfico figurativiza a intensificação da

carga tímica do zelador, agora totalmente desumanizado pela forma de vida da submissão aos

regulamentos da empresa e pela vingança empreendida contra Ego: (ver Figura 7)

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Figura 7: Desdobramento da amplificação tensiva do percurso passional da cólera do zelador

na paixão da vingança

Fonte: Fontanille (2012, p. 112)

Após a morte de Ego, ocorre a desaceleração das tensões – “[...] o mundo foi

encoberto por um lençol de silêncio” (BRAFF, 2006, p. 160) – até chegarem ao

enfraquecimento mínimo, como observamos no excerto “Aproveitando a terra fofa da cova

recém-fechada, o zelador enterrou o cão por cima de sua comida” (BRAFF, 2006, p. 160,

grifo nosso). O lexema “enterrou” figurativiza um aspecto temporal acabado da vingança do

zelador, e consequente redução da extensão. Essa atenuação do discurso pode ser observada

no gráfico abaixo: (ver Figura 8)

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Figura 8: Atenuação da carga tímica do zelador após execução da vingança

Fonte: Fontanille (2012, p. 112)

Enfim, como vemos na figura 8, com o enfraquecimento da intensidade da

carga tímica do zelador, instala-se um momento de relaxamento do sujeito. Porém, parece que

o zelador já não manifesta qualquer estado de alma, em conformidade com a desumanização

suscitada na forma de vida da submissão.

Os percursos do fazer e do ser dos sujeitos revelam que o ator protagonista

privilegia a violência contra o Outro, figurativizada pela execução do cão Ego, tendo em vista

que a performance do cão o levaria à privação de valores aos quais acreditava ter direito.

Ironicamente temos, portanto, o mau êxito do sujeito zelador, enquanto representante de uma

classe social que tem aspirações de ascender socialmente, de melhorar suas condições de vida

e de trabalho, não conseguindo, apesar dos esforços, operar com sucesso essa mudança.

Outrossim, convém ressaltar a ironia presente no título do texto: “O Zelador”.

A figura lexemática “zelador” é definida no Houaiss (2009) como “aquele que zela, cuida ou

vigia”. No mesmo dicionário, o lexema “zelar” é definido como “ter zelo por; vigiar, proteger,

tomar conta de (alguém ou algo) com toda a atenção, cuidado e interesse; velar”, função

desempenhada pelo zelador antes da amizade com Ego ser abalada. Em outra acepção, o

lexema “zelar” é tido como “interessar-se por, administrar, defender ou tratar de (algo) com

empenho”, atividade exercida com esmero pelo zelador antes de ser tomado pela cólera.

Todavia, no decorrer de seu percurso passional o sujeito zelador deixa de cuidar da vila com o

cuidado que sempre tivera e passa à condição de algoz do amigo Ego, matando-o ao invés de

zelar pela paixão da amizade que entre eles imperava.

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Esse final aparentemente trágico da relação de amizade entre os atores zelador

e Ego demonstra, também de forma irônica, a desumanização do ator-protagonista na medida

em que menospreza a amizade ao se sentir frustrado na sua ambição de atingir a tão esperada

promoção social.

Nesse sentido, a paixão da cólera induz o zelador à crueldade contra Ego, o

que revela uma supervalorização das aspirações sociais em detrimento da necessidade de

relações afetivas, inerentes à natureza humana.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Procuramos, em nossa pesquisa, por meio do referencial teórico da semiótica

francesa, analisar os textos “O gorro do andarilho” e “O zelador”. Comprovamos a nossa

hipótese de que determinados acontecimentos provocam uma tensão na relação dos atores-

protagonistas com o Outro, pois, assumindo formas de vida que os desumanizam, são levados

a se encolerizar e se vingar contra as atitudes desse Outro que se associam a outros

acontecimentos. Desse modo, verificamos como ocorre a tensivização das paixões

manifestadas nos textos, de que modo acontecimentos irrompem no desenlace das narrativas e

comprovamos que esses acontecimentos se associam às formas de vida dos atores-

protagonistas.

Conforme tensivizamos as paixões de malevolência que se manifestam nos

textos em análise, com base nas perspectivas de Zilberberg, de Fontanille e de Greimas,

observamos em ambos os contos, os mesmos elementos do dispositivo da cólera e da

vingança. Percebemos que cada fase do percurso passional é desencadeada, nos textos, a

partir de um pequeno acontecimento, ou seja, do inesperado. Tornou-se, por isso, inevitável

aplicarmos a noção de acontecimento, como concebe a semiótica tensiva, que engloba em seu

cerne as grandezas de intensidade e de extensidade, e os modos semióticos. Identificamos

também que, nos contos, a intensificação da manifestação passional conduz os atores-

protagonistas a realizarem um grande acontecimento à medida que seus estados de alma

recrudescem.

Nesse sentido, mediante a desumanização imposta pelas formas de vida

vivenciadas pelos atores-protagonistas, observamos que a supervalorização das aspirações

pessoais leva-os ao apagamento da necessidade de relações afetivas.

Do ponto de vista metodológico, antes de identificarmos os desdobramentos

dos estados de alma dos sujeitos Andarilho e Zelador, descrevemos a constituição de formas

de vida que os desumanizam, tornando-os violentos e incapazes de manter relações afetivas.

Os estados de alma dos atores são analisados em relação a essas formas de vida. Por isso,

buscamos demonstrar como as manifestações passionais são ativadas por acontecimentos

incompatíveis com as formas de vida reveladas nos textos (submissão e indigência).

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Nesse panorama, os acontecimentos patemizam os atores-protagonistas com

tamanha intensidade tímica que depois de sua irrupção, ao final do percurso passional,

desumanizados, ao encararem a violência contra o Outro de forma natural, observamos que

ocorre um processo de arrefecimento de sua carga tensiva.

Desenvolvemos as análises observando primeiramente, como os atores-

protagonistas (Andarilho e zelador) manifestam as formas de vida da indigência e da

submissão. Nessas formas de vida, os atores-protagonistas assumem o papel temático do

andarilho e do trabalhador, respectivamente.

Observamos nas análises, que embora o Andarilho e o zelador tenham revelado

um processo de desumanização relacionado a suas formas de vida, enquanto estavam

relaxados e movidos pela razão, manifestaram estados de alma de benevolência, como a

amizade e o companheirismo. Mas, afetados pelos acontecimentos, que neles provocaram um

tumulto modal entre o /querer/ e o /não-poder/ estar conjuntos de seus objetos de valor, se

tornaram tensos e patemizados pela cólera.

Em “O gorro do andarilho”, o acontecimento irrompe quando o sujeito está

dormindo, desacelerado, e, ao acordar, percebe que está sem o gorro. Ele passa a sentir frio,

que sobe de seu estômago e inunda a sua boca de um gosto amargo. Os lexemas “subir” e

“inundar” indicam a aceleração do sofrer do sujeito, enquanto “frio” e “náusea” tonificam

esse sofrer. Em “O zelador”, o sujeito também passa de um estado desacelerado, anterior à

visão da porta da geladeira aberta, ao entrar na casa, para um andamento mais intenso já que

não consegue entender o que está acontecendo “num primeiro momento”, mas “logo”

recupera o entendimento de que sua provisão de carne fora roubada por Ego.

Concomitantemente a geladeira “lateja” e seu sangue corre desesperado, figuras que revelam

a acentuação da tonicidade da carga tímica.

Nos dois textos, os sujeitos ficam desnorteados e, parados no tempo, sentem

notações somáticas (GREIMAS, 2002, p. 35-36), destacadas pelas isotopias figurativas: “frio

antigo”, “náusea gelada”, “estômago cheio” – em “O gorro do andarilho” – e “sangue

desesperado”, “sangue gelado”, “náusea”, “mãos trêmulas” – em “O zelador”.

Frente ao acontecimento, o andarilho se lembra do frio que já sentiu e do calor

que o gorro passou a lhe proporcionar. Já o zelador pensa na promoção que não conseguirá

em razão do descuido que permitiu ao cão roubar-lhe a carne. Tais lembranças ainda ativam,

nos sujeitos estupefatos, a natureza concessiva do acontecimento, de que embora não

parecesse possível serem roubados pelos companheiros, o roubo aconteceu. Esse estado de

admiração é finito, pois a carga tímica enfraquece com a potencialização, possibilitando aos

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sujeitos o retorno à atitude momentaneamente suspensa pelo acontecimento (ZILBERBERG,

2011, p. 177), ou seja, o andarilho atualiza o desejo de continuar aquecido e, o zelador, de ser

promovido.

Na atualização do devir inicia-se a crise de confiança estabelecida pela quebra

do contrato fiduciário entre Andarilho e Gordo, zelador e Ego. O zelador confiara na

possibilidade de ser promovido e o Andarilho, de não ser roubado. Na fase da espera, o

Andarilho crê na devolução do objeto pelo antissujeito, e o zelador continua aguardando a

promoção a que acredita ter direito. Entretanto, o zelador constata que o acontecimento o

privará da promoção, já que deixou de ser zeloso, o que o frustra. O Andarilho reatualiza o

desejo de conjunção e começa a provar a privação do gorro por meio dos sentidos. O zelador

sente o sangue azedo, e a voz do Andarilho fica trêmula. No descontentamento, confrontam o

que esperavam dos companheiros e o que os antissujeitos realizaram, e ficam insatisfeitos

com o a inadequação das ações do Gordo e de Ego. Isso torna a percepção sobre os

companheiros negativa: Ego volta ser chamado de cão e o Andarilho revela sentir ojeriza pelo

Gordo. Na agressividade, os sujeitos se voltam contra o antissujeito – no caso do Andarilho,

que revela não gostar do Gordo – ou contra os objetos – no caso do zelador, que usa força

desmedida para fechar a janela da casa.

Como a explosão da cólera não ocorre, os sujeitos buscam, com a vingança,

uma reparação do dano, ou seja, tentam infligir o sofrimento aos antissujeitos: o zelador

amassa a cabeça do cão com a enxada, e o Andarilho racha a cabeça do outro com uma pedra.

Depois, o primeiro, como forma de manter a rigidez dos regulamentos aos quais sempre se

submetera, enterra o cão sobre a carne roubada. O segundo volta a caminhar, aquecido pelo

gorro recuperado, como se nada tivesse acontecido. As isotopias figurativas do dispositivo da

cólera podem ser melhor observadas no quadro abaixo: (ver Tabela 3)

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Tabela 3 – Isotopias figurativas das fases da cólera

FASES DA

CÓLERA O GORRO DO ANDARILHO O ZELADOR

Confiança

“[...] não era a primeira vez que

partilhava com ele seu almoço

debaixo daquela mesma

gameleira” (BRAFF, 2006, p.

127-128)

“Permitir que o sono, [...], aos

poucos voltasse, entorpecendo-

lhe os membros e apagando-

lhe a vontade, isso já havia

sido uma demonstração cabal

de sua confiança em Ego”

(BRAFF, 2006, p. 148)

Espera

“Então pediu uma primeira vez,

a mão teimosa estendida”

(BRAFF, 2006, p. 127).

“Nas viagens que juntos

empreenderam, os dois se

complementavam” (BRAFF,

2006, p.157)

Frustração

“Me dá! Houve uma leve

alteração na voz envelhecida

que, [...] deixava de ser um

pedido, quase um apelo

impotente, para se tornar uma

exigência” (BRAFF, 2006, p.

129)

“O futuro era agora uma névoa

só em que tinha engolfado sua

vida” (BRAFF, 2006, p.144)

Descontentamento

“Pois, apesar da ojeriza pelo

companheiro, não era a primeira

vez que partilhava com ele seu

almoço debaixo daquela mesma

gameleira” (BRAFF, 2006, p.

127-128)

“Onde andaria o ladrão?”

(BRAFF, 2006, p. 144)

Agressividade “Não gostava do Gordo [...] Não

gostava” (BRAFF, 2006, p. 127)

“fazia parte de suas obrigações

uma atitude violenta”

(BRAFF, 2006, p. 155)

Explosão da cólera - -

Fonte: Elaborado pela autora.

Conforme a carga tímica desses atores se intensifica, a transformação do

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estado humano para o estado desumano se cristaliza. Em uma tentativa de serem racionais

e reivindicarem o ressarcimento pelos danos a eles causados pelos companheiros, Gordo e

Ego, desenvolvem programas de vingança e agridem fisicamente os antissujeitos. Nesses

programas, pragmaticamente, os sujeitos constituídos pela emergência do poder-fazer

foram competentes ao executarem programas narrativos de afirmação de si e de destruição

do outro (cf. GREIMAS,1983, 245-246).

Sendo assim, o prazer com a vingança em ambos os contos foi instantâneo,

e suficiente para o declínio geral das tensões e dos desdobramentos das forças do discurso,

(cf. FONTANILLE, 2012, p. 115).

Os programas de vingança empreendidos contra o outro andarilho e o cão,

no qual o Gordo é apedrejado e Ego é morto, configuram, por fim, os grandes

acontecimentos, pois ocorrem quando a tensão dos atores-protagonistas atingem o auge na

grandeza de intensidade e a total concentração do sofrer na grandeza de extensidade. As

isotopias figurativas da vingança dos sujeitos estão condensadas no quadro abaixo: (ver

Tabela 4)

Tabela 4 – Isotopias figurativas da paixão da vingança

O GORRO DO

ANDARILHO O ZELADOR

Paixão da

Vingança

“Aquele riso grosso, do

Gordo, não era uma alegria

leve e doce, provida com as

suavidades da vida”, “região

obscura”, “invocação

tenebrosa”, “morte”, “rachou

a cabeça”

“pequenos episódios que foi

tecendo”, “idéia explodiu num

clarão em sua cabeça”,

“traidor”, “jogou ao ombro o

cabo da enxada”, “amassou a

cabeça”

Fonte: Elaborado pela autora.

Esses acontecimentos – apedrejamento em que se subentende o assassínio

do Gordo pelo Andarilho e a morte de Ego operada pelo zelador – também figurativizam o

processo de desumanização dos atores que, decepcionados são agressivos e atacam

fisicamente o outro. Com o enfraquecimento das tensões acumuladas voltam ao estado de

relaxamento aparentemente total, encarando a violência e a crueldade contra o Oura de

forma natural.

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107

Cabe também lembrar que o cão, nomeado Ego em “O Zelador”, devido à

imediata identificação física do ator protagonista com o cão levou-nos a analisar o diálogo

que o enunciador desse texto estabelece com a psicanálise freudiana No conto, o zelador,

premido pelo superego, mata o cão com quem inicialmente se identifica. O superego,

nesse sentido, reprime o ego agindo de acordo com a moral social. Assim, o cão,

considerado pelo ator-protagonista, seu reflexo, ou seja, a imagem que o zelador tem de si,

como descumpriu as exigências do superego/regulamentos da empresa ao roubar a carne, é

sacrificado. Desse modo, o superego domina o ego (FREUD, 1980, p. 49) ao irromper

com a “violência impiedosa” da moralização nele intrínseca e anula-o. Essa anulação é

figurativizada pelo assassinato e pelo enterro/desaparecimento do cão.

Quanto ao acontecimento nesse texto é o dispositivo que propicia a

ressemantização do comportamento do sujeito submisso, que patemizado pela cólera e

depois pela vingança mata o cão por ter se tornado intolerante à desobediência às normas

que regiam sua vida profissional e social, e pela perda da promoção devido à transgressão

do cão – roubo da carne.

Já o Andarilho, que manifesta a forma de vida da indigência, considera

insuportável a espoliação a que é submetido.. O sujeito não aceita a perda do único objeto

em que inscreve valor, o gorro, e agride o espoliador.

Assim, evidencia-se que a vingança, empreendida nos dois contos pelo

Andarilho e pelo zelador, constitui o grande acontecimento desses textos. Esse

acontecimento que leva à morte do Outro, considerado antissujeito, ressemantiza o

comportamento dos atores-protagonistas, que assumem os papéis temáticos de agressor e

de assassino, e a forma de vida da violência é comum aos dois atores protagonistas dos

textos.

Em termos de manifestação patêmica, quanto à violência da vingança, esta

paixão parece encarada com naturalidade pelos sujeitos conforme são desumanizados pela

exclusão social na indigência e pelo desejo de ascensão social na submissão. Por isso, os

sujeitos valorizam o objeto mais que o Outro. No caso do zelador, valoriza-se mais a

forma de vida da submissão aos regulamentos em detrimento do apego e do afeto ao cão.

No quadro abaixo, apresentamos as principais isotopias figurativas

presentes nos textos analisados: (ver Tabela 5)

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Tabela 5 – Principais isotopias figurativas presentes nas análises

O GORRO DO ANDARILHO O ZELADOR

Desumanização

“ninhos”, “modo remoto de

continuar com a humanidade”,

“vivia por não saber outra

coisa”, “olhos grisalhos, sem

brilho”, “acostamento”, “beira

da estrada”, “rachou a

cabeça”

“ocupação inútil, pensar”, “não

se lembrava mais dos sons

produzidos pela garganta

humana”, “mãos abertas como

patas”, “ser existente”,

“amassou a cabeça”

Acontecimento

inicial

“a primeira coisa que viu foi

seu gorro de lã [...] na cabeça

do Gordo”, “frio na cabeça”,

“frio antigo”, “náusea gelada”,

“sensação de vida inútil”

“porta aberta da geladeira”,

“vazio”, “o culpado era seu

companheiro Ego”, “roubo”,

“traição”, “ladrão”

Papel temático do

assassino

(Apedrejamento do Gordo)

“pedra”, “rachou a cabeça”,

“mancha de sangue”, “mancha

escura”

(Assassínio de Ego)

“amassou a cabeça”, “As

quatro pernas apenas

estremeceram”, “lençol de

silêncio”

Forma de vida da

violência

“rachou a cabeça”, “silenciou

todas as histórias que ele

contava”

“tomou o cabo pela

extremidade”, “amassou a

cabeça”, “enterrou o cão”

Acontecimento

final

“rachou a cabeça”, “inocente

dureza”, “finalmente

recuperado”, “pôs-se na

estrada”, “não andava muito

rápido”

“amassou a cabeça”, “não

conhecia a tolerância”, “vício”

Fonte: Elaborado pela autora.

Em suma, nos contos analisados, os sujeitos são patemizados à medida que as

formas de vida por eles vivenciadas são abaladas por um acontecimento. Esse acontecimento

desencadeia o percurso passional da cólera, mas antes da explosão dessa manifestação

patêmica, o percurso desdobra-se em outra paixão, a vingança, que culmina em um

acontecimento ainda mais intenso que o primeiro e tão vigoroso quanto as paixões

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experimentadas. É nesse sentido que associamos as noções de acontecimento, paixão e forma

de vida, sob a perspectiva da semiótica francesa e da semiótica francesa de orientação tensiva,

relacionando a paixão da cólera a uma forma de vida. Observamos ainda como pequenos

acontecimentos desencadeiam cada fase do percurso patêmico, atingindo o seu auge ao

eclodir no acontecimento final, ápice da carga tensiva do sujeito colérico.

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ANEXOS

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