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CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018. O APADRINHAMENTO AFETIVO COMO CAMINHO PARA A ADOÇÃO Jucelia Oliveira Freitas* RESUMO: O presente artigo busca demonstrar que, passados quase oito anos de sancionada a Nova Lei de Adoção, que alterou o Estatuto da Criança e do Adolescente, em 2008, milhares de crianças e adolescentes continuam abrigados, por anos, em instituições de acolhimento, sem acesso ao direito constitucional de convivência familiar e comunitária. Isso é verificado tanto pela morosidade das autoridades em decidir pela reintegração à família biológica ou perda do poder familiar dos abrigados, quanto pelo preconceito que afasta as crianças mais velhas dos pretendentes a adoção. Dessa forma, propõe o incentivo aos programas de Apadrinhamento Afetivo como instrumentos capazes de minimizar os danos provocados pela institucionalização, ressaltando que através deles crianças e adolescentes que estão fora do perfil de adoção poderão usufruir do convívio familiar e de experiências afetivas com seus padrinhos ou madrinhas, além de terem a possibilidade de estreitar vínculos que podem resultar na adoção tardia. Palavras-chave: Adoção. Afetividade. Apadrinhamento afetivo. ABSTRACT: This article aims to demonstrate that, after almost eight years of sanctioning the New Adoption Law, which amended the Statute of the Child and Adolescent, in 2008, thousands of children and adolescents have remained sheltered for years in host institutions, Without access to the constitutional right of family and community coexistence. This is verified both by the delays of the authorities in deciding to reintegrate to the biological family or loss of the family power of the sheltered ones, as well as by the prejudice that distances the older children from the adoptive adopters. In this way, it proposes to encourage Affective Sponsorship programs as instruments capable of minimizing the damages caused by institutionalization, pointing out that through them, children and adolescents who are outside the adoption profile may enjoy family life and affective experiences with their godparents , As well as having the possibility of closer ties that may result in late adoption. Keywords: Adoption. Affectivity. Affective sponsorship. Sumário: 1 Introdução. 2 O papel do afeto no desenvolvimento da criança. 3 A adoção e a afetividade como princípio fundamental da constituição federal. 4 Apadrinhamento afetivo versus institucionalização. 5 Caminho para a adoção. 5.1 A busca pela experiência do apadrinhamento afetivo. 5.2 Pedras no caminho da adoção. 5.3 Cadastro Nacional de Adoção. 5.4 A idade distancia a criança da adoção. 6 Considerações Finais. Referências Bibliográficas. * Presidente da Comissão de Assuntos da Criança, do Adolescente e do Idoso da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ). Pós-Graduada em Direito da Infância e da Juventude pelo Instituto de Educação e Pesquisa do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro IEP/MPRJ. E-mail: [email protected].

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CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.

O APADRINHAMENTO AFETIVO COMO CAMINHO PARA A ADOÇÃO

Jucelia Oliveira Freitas*

RESUMO: O presente artigo busca demonstrar que, passados quase oito anos de sancionada a Nova Lei de Adoção, que alterou o Estatuto da Criança e do Adolescente, em 2008,

milhares de crianças e adolescentes continuam abrigados, por anos, em instituições de acolhimento, sem acesso ao direito constitucional de convivência familiar e comunitária. Isso

é verificado tanto pela morosidade das autoridades em decidir pela reintegração à família

biológica ou perda do poder familiar dos abrigados, quanto pelo preconceito que afasta as

crianças mais velhas dos pretendentes a adoção. Dessa forma, propõe o incentivo aos

programas de Apadrinhamento Afetivo como instrumentos capazes de minimizar os danos

provocados pela institucionalização, ressaltando que através deles crianças e adolescentes que

estão fora do perfil de adoção poderão usufruir do convívio familiar e de experiências afetivas

com seus padrinhos ou madrinhas, além de terem a possibilidade de estreitar vínculos que

podem resultar na adoção tardia.

Palavras-chave: Adoção. Afetividade. Apadrinhamento afetivo.

ABSTRACT: This article aims to demonstrate that, after almost eight years of sanctioning

the New Adoption Law, which amended the Statute of the Child and Adolescent, in 2008,

thousands of children and adolescents have remained sheltered for years in host institutions,

Without access to the constitutional right of family and community coexistence. This is

verified both by the delays of the authorities in deciding to reintegrate to the biological family

or loss of the family power of the sheltered ones, as well as by the prejudice that distances the

older children from the adoptive adopters. In this way, it proposes to encourage Affective

Sponsorship programs as instruments capable of minimizing the damages caused by

institutionalization, pointing out that through them, children and adolescents who are outside

the adoption profile may enjoy family life and affective experiences with their godparents , As well as having the possibility of closer ties that may result in late adoption.

Keywords: Adoption. Affectivity. Affective sponsorship.

Sumário: 1 Introdução. 2 O papel do afeto no desenvolvimento da criança. 3 A adoção e a

afetividade como princípio fundamental da constituição federal. 4 Apadrinhamento afetivo

versus institucionalização. 5 Caminho para a adoção. 5.1 A busca pela experiência do

apadrinhamento afetivo. 5.2 Pedras no caminho da adoção. 5.3 Cadastro Nacional de Adoção.

5.4 A idade distancia a criança da adoção. 6 Considerações Finais. Referências Bibliográficas.

* Presidente da Comissão de Assuntos da Criança, do Adolescente e do Idoso da Assembleia Legislativa do

Estado do Rio de Janeiro (ALERJ). Pós-Graduada em Direito da Infância e da Juventude pelo Instituto de

Educação e Pesquisa do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro – IEP/MPRJ. E-mail:

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1 INTRODUÇÃO

Milhares de crianças e adolescentes brasileiros encontram-se confinados em

instituições de acolhimento, longe do convívio familiar. À sua volta, vêm deixar os abrigos

por intermédio da adoção as crianças mais jovens e os bebês, enquanto eles acabam

permanecendo nos abrigos até completarem 18 anos. Por outro lado, quem deseja adotar,

independentemente da aparência física ou idade do futuro filho, enfrenta entraves que põem à

prova e muitas vezes minam por completo as suas forças.

Para os que se tornam adultos dentro dos abrigos a única opção é, com data marcada,

deixar esse ambiente coletivo para enfrentar a vida lá fora. Saem em condições de

desigualdade, porque não se fortaleceram com a auto estima, o afeto e a confiança que

alimentam os que crescem em família. Esse retrato da realidade brasileira contrasta com o

texto do art. 2271 da Constituição Federal de 1988, que afiança à criança e ao adolescente,

com prioridade absoluta, o direito à convivência familiar, sendo reiterado pelo art. 19 do

Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990)2, e

consubstanciado pelas mudanças apresentadas pelo Direito de Família, que passou a definir o

afeto como um direito fundamental e princípio constitucional implícito. Não podemos deixar

de observar também as alterações feitas à Lei 8069/90 pela Nova Lei Nacional de Adoção

(Lei nº 12.010, de 03 de agosto de 2009), que estabeleceram importantes regras, inclusive no

que se refere ao acolhimento institucional.

O abrigamento cumpre o papel de proteger a criança da pobreza familiar, que

representa a maior parte dos casos, e também do abandono, da violência doméstica, de abusos

sexuais, da vivência de rua, da prisão de pais ou responsáveis, e da exploração do trabalho

infantil, entre outros fatores. Ainda que todos os esforços devam ser envidados para reintegrar

essas crianças às suas famílias de origem, é fundamental que as instituições legalmente

responsáveis por decidir o seu futuro atuem com eficácia e celeridade. Levando-se em

consideração que mais de 40% das crianças e dos adolescentes institucionalizados perderam

1 Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com

absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura,

à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda

forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Redação dada pela Emenda

Constitucional nº 65, de 2010.

Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 21 jun. 2017. 2 Art. 19. É direito da criança e do adolescente ser criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente,

em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente que garanta seu

desenvolvimento integral. Redação dada pela Lei nº 13.257, de 2016.

Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm>. Acesso em: 21 jun. 2017.

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totalmente o contato com as suas famílias de origem, conforme atesta o “Levantamento

nacional dos abrigos para crianças e adolescentes da rede de serviço de ação continuada”,

feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), se a adoção for considerada a

medida mais apropriada, é imprescindível que ela seja autorizada com rapidez para evitar que

esses infantes continuem a perder os melhores anos de suas vidas em instituições de

acolhimento3.

Conforme salienta a cartilha Adoção Passo a Passo, da Associação dos Magistrados

Brasileiros (AMB), para que o abrigamento possa ser uma medida excepcional e provisória é

necessário o cumprimento das atribuições e responsabilidades de todos os órgãos do Sistema

de Garantia de Direitos e, além disso, a constituição de um trabalho integrado entre o Sistema

de Justiça e os abrigos4.

A morosidade processual vem resultando na ineficácia do que prevê o §1º do art. 19 do

ECA, alterado pela Lei 12.010/09, que dispõe que toda criança e todo adolescente que estiver

inserido em programa de acolhimento familiar ou institucional terá sua situação reavaliada, no

máximo, a cada seis meses, devendo a autoridade judiciária competente, com base em

relatório elaborado por equipe interprofissional ou multidisciplinar, “decidir de forma

fundamentada pela possibilidade de reintegração familiar ou colocação em família substituta”,

em quaisquer das modalidades previstas no art. 28 desta Lei. A demora do judiciário resulta

no prolongamento da permanência do infante no sistema acolhimento pelos dois anos

previstos como limite pelo §2º do mesmo artigo, ou até mais do que isso. Diante deste quadro

ainda não solucionado pela legislação que dispõe sobre a adoção e com o objetivo de

minimizar a ausência da convivência afetiva surgiram os programas de Apadrinhamento

Afetivo. Neles, o padrinho ou madrinha irão proteger, orientar, dar afeto e servir como

referência de vida.

João Baptista Herkenhoff, juiz de Direito aposentado do Espírito Santo, salienta: [...]

Na condição de Juiz de Direito, não rezei pela cartilha oficial. Intelectualmente

descompromissado com dogmas, quase um réprobo, não subscrevia a jurisprudência

dominante [...] Destaca ainda: Abreviei os processos de adoção de crianças, em aparente

desobediência ao rito legal. Argumentei: Uma criança pode esperar o andamento da

“traquitana da Justiça” (Monteiro Lobato), a sorte de uma criança pode suportar o

3 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br>. Acesso em: 06 de jul.

2017. 4 Cartilha Adoção Passo a Passo, da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB).

Disponível em: <,http://www.amb.com.br/cartilha-da-campanha-mude-um-destino-apresenta-passo-a-passo-da-

adocao/>. Acesso em: 21 jun. 2017.

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emperramento dessa traquitana, quando pais adotivos suplicam pela oportunidade de adotar5?

Este artigo pretende, como objetivo geral, apontar o projeto Apadrinhamento Afetivo,

que já se multiplica em todo o Brasil, como instrumento capaz de atenuar a situação de

milhares de crianças e adolescentes que não têm preferência para adoção, além de servir de

importante incentivo à adoção tardia.

Por objetivos específicos tem-se: discutir o papel do afeto no desenvolvimento da

criança por entender que ele é um fator essencial à vida humana; identificar o princípio da

afetividade com base na Constituição Federal; validar o Apadrinhamento Afetivo como um

condutor para a adoção tardia. Utilizamos a metodologia qualitativa, por entendermos que os

fatos que serviram de embasamento para nossa pesquisa estão diretamente ligados a um

contexto social.

2 O PAPEL DO AFETO NO DESENVOLVIMENTO DA CRIANÇA

As sementes do afeto são mais eficazes quando existe uma família que se disponha a

amar e cuidar dela. Esse ambiente familiar sadio é o adubo desta grande floresta de segurança

afetiva, importante para toda a vida6.

O léxico afetividade tem como raiz a terminologia “afeto”. Sua etimologia remonta do

substantivo latino affectus, us – “disposto, inclinado a, constituído”. Traz uma marca

semântica muito forte, pois quer dizer “sentimento terno de adesão, afeição, ligação espiritual

em relação a alguém”. Deste modo, podemos apontar que a afetividade é a expressão máxima

que traduz o sentimento de querer bem, do carinho em cuidar do outro. Sem ela não há como

estabelecer uma ligação entre pares, pois é a amálgama do relacionamento desejado. Embora

esteja presente em toda forma de convívio, uma vez que a afetividade pode se dar no trato

com seres não humanos, sua lembrança dá-se prontamente na relação entre os homens, já que

a sua carência pode produzir vários tipos de perturbações na fase adulta do indivíduo.

Por estar diametralmente vinculada à constituição do caráter de um determinado

sujeito por se tratar de um sentimento afetivo, exerce um papel de grande importância durante

toda a existência do ser, especialmente na fase de desenvolvimento em que ocorre todo o

processo de aprendizagem de qualquer pessoa, ou seja, na infância. Daí a afetividade ser

5 HERKENHOFF, João Baptista. Juiz de Direito aposentado (ES) e escritor. Disponível em:

<http://www.amb.com.br/publicacoes/desalento-na-caminhada/>. Acesso em: 10 de jul. 2017. 6 BITTENCOURT, Sávio. A nova Lei de Adoção. Do Abandono à garantia do direito à convivência familiar e comunitária. Rio de Janeirro: Lumen Juris. 2013, p. 4.

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conectada na formação dos costumes. Destarte, a construção dos laços afetivos, é imperativa

na vida de qualquer indivíduo. Sua ausência poderá fazer com que a pessoa não possua

reminiscências positivas, levando-a a se transformar em um ser insensível e excluso da vida

social, assim como interferindo nos seus sentimentos, vale ressaltar que os sujeitos que se

desenvolvem sem afetividade não são capazes, na maioria das vezes, de suscitar comiserações

benfazejas para com seus iguais.

Um fator importante deve ser destacado no entendimento da afetividade. Ela não pode

ser confundida com os sentimentos da paixão ou da emoção, já que pertence a um campo mais

extenso, mas que as inclui. É uma possessão funcional que se desenvolve a partir dos fatores

orgânico e social. Tanto que no decorrer da evolução do sujeito, devido à afinidade presente

entre os fatores, transformam tanto as fontes que geraram as manifestações como as formas de

demonstração. Deste modo a afetividade que em princípio é determinada basilarmente pelo

orgânico, passará a sofrer influência do meio social. Como nos aponta Henri Wallon: “a

constituição biológica da criança ao nascer não será a lei única do seu futuro destino. Os seus

efeitos podem ser amplamente transformados pelas circunstâncias sociais da sua existência,

onde a escolha individual não está ausente”.

Ela é um fator essencial à vida humana, como o ar que nos mantém vivos. Está

relacionada ao social e constitui-se como parte integrante de todo relacionamento humano, em

virtude de ser a premissa de nossa implicação com o mundo.

Por influenciar diretamente o modus vivendi do homem, seja consigo mesmo ou com

os seus pares, a afetividade pode, por carência, produzir fissuras irremediáveis, que poderão

motivar sérios distúrbios. Isso nos leva a apontar a importância da família saudável ou

funcional7, evidenciando que ela irá propiciar o clima de afeto e apoio indispensáveis ao

desenvolvimento saudável da criança, independentemente de sua conexão biológica8. Na

contemporaneidade, existem composições e conformações diversificadas de famílias em

virtude da própria evolução da sociedade, assim como modelos variados em uma mesma

família, que possui formação díspar, seja por origem ou valores diferentes, o que não diminui

ou apaga a sua importância capital, apesar de todas as mudanças ocorridas, o que reverbera e

integra ainda mais a afetividade no arcabouço familiar.

Embora a afetividade tenha sido objeto de estudos de pensadores, como Jean Piaget e

7 MACEDO, Rosa Maria. Ambiente acolhedor, continente, podendo as relações entre seus membros serem

caracterizadas como amorosas, carinhosas e leais. p. 186. 8 ROSSOTO, Rafael Bucco. A importância das relações afetivas advindas da convivência familiar vai além e

independe do vínculo biológico, aplicando-se também as famílias socioafetivas. p. 15.

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Lev Vygotsky, Henri Wallon apontou que o processo de evolução depende tanto da

capacidade biológica do sujeito quanto do ambiente, destacando que a afetividade o afeta de

alguma forma. Sabemos que ela está elencada em diversas áreas, como por exemplo, na

educação que abaliza a sua contribuição para a aquisição do conhecimento e conquista da

autoestima do indivíduo, pois as relações afetivas não podem ser desassociadas do universo

familiar.

Com base nesta premissa, é preciso definir que o conceito de família ao qual nos

referimos está calcado no ordenamento jurídico, segundo o qual trata-se de uma organização

social com base em laços sanguíneos, jurídicos ou afetivos; ou seja, ela não é somente a

instituição jurídica, devendo ser compreendida em sua importância social, englobando as

múltiplas formas e variantes9. Por não ser inflexível, o Direito perde seu propósito ao não

refletir os avanços e mudanças da sociedade, raiz e orientação dos princípios jurídicos. Na

qualidade de matriz de família, o afeto está essencialmente manifestado na adoção, pois ele

está fora dos laços sanguíneos, solenização, uma vez que ela parte exclusivamente do afeto

manifestado pelos pais. Logo, o afeto excede a própria família, já que o enlace familiar ocorre

a partir de um envolvimento que alimenta as relações de benquerença, enternecimento e

humanidade.

3 A ADOÇÃO E A AFETIVIDADE COMO PRINCÍPIO FUNDAMENTAL DA

CONSTITUIÇÃO FEDERAL

A palavra adotar vem do latim adoptare, que significa escolher, perfilhar, dar o seu

nome a, optar, ajuntar, escolher, desejar. Do ponto de vista jurídico, adotar é um

procedimento legal, garantido no Código Civil brasileiro e no Estatuto da Criança e do

Adolescente, que consiste em transferir todos os direitos de pais biológicos para família

substituta, conferindo à criança/adolescente os direitos e deveres de filho. Esse procedimento

não é regra. A regra, indiscutivelmente, é a família biológica. Em um outro sentido, a adoção é

a oportunidade do exercício da maternidade/paternidade. Um desejo que nasce no coração e é

gestado pelo afeto.

A Constituição Federal de 1988 desenhou uma nova estrutura para o Direito de

Família ao acabar com antigas e inaceitáveis discriminações e trazer novas ramificações. São

9 LÔBO. Paulo. Sob o ponto de vista do direito, a família é feita de duas estruturas associadas: os vínculos e os

grupos. Há três sortes de vínculos, que podem coexistir ou existir separadamente: vínculos de sangue, vínculos

de direito e vínculos de afetividade. A partir dos vínculos de família é que se compõem os diversos grupos que a

integram: grupo conjugal, grupo parental (pais e filhos), grupos secundários (outros parentes e afins). p. 2.

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reconhecidos o pluralismo familiar resultante das novas espécies de família, a igualdade de

direitos entre homens e mulheres, tratamento jurídico igualitário para os filhos genéticos ou

não, a inclusão da afetividade como princípio fundamental e a oficialização da união estável e

da família monoparental, tanto fundada nos laços de sangue quanto por adoção.

A família atual, reflexo de mudanças das estruturas políticas, econômicas e sociais,

passou a ter como objetivo principal alcançar a relação de afeto dentro do seu núcleo. O filho

deixou de ser o objetivo do matrimônio, a família não é mais o núcleo social responsável por

moldar os filhos para o convívio social, assim como deixou de existir a figura do pai como

patriarca. Com as sucessivas modificações que sofreu, a família moderna avançou e continua

avançando rumo a um ambiente predominantemente igualitário e afetivo.

A nossa Carta Magna estabelece que a “família é a base da sociedade” (Art.226) e que,

portanto, compete a ela, juntamente com o Estado, a sociedade em geral e as comunidades,

“assegurar à criança e ao adolescente o exercício de seus direitos fundamentais” (Art. 227).

Com base no Estatuto da Criança e do Adolescente, Nucci observa que, embora a

pobreza não sirva de justificativa para a destituição do poder familiar, nos termos do art. 23,

caput deste Estatuto, também não pode servir de escudo protetor para abusar dos filhos

pequenos, obrigando-os a pedir esmola nas ruas, explorando o seu trabalho, impedindo-os de

estudar, bem como os fazendo passar privações completamente inadequadas para sua faixa

etária. Isto posto, destaca o autor a necessidade de se distinguir os genitores pobres

interessados no bem-estar dos filhos daqueles que os desprezam e, em nome da pobreza,

abusam dos pequenos10

.

Neste último artigo, também são especificados os direitos fundamentais especiais da

criança e do adolescente, ampliando e aprofundando aqueles reconhecidos e garantidos para

os cidadãos adultos no seu artigo 5º. Dentre estes direitos fundamentais da cidadania está o

direito à convivência familiar e comunitária.

Por sua vez, descrita como um conjunto de atividades desenvolvidas por pessoas de

referência da criança, a parentalidade visa assegurar a sua sobrevivência e o seu

desenvolvimento pleno, através dos cuidados, do estímulo, da educação e do fortalecimento

de sua autonomia como preparativos para os desafios e as oportunidades da vida futura. Dela

surgiu a parentalidade socioafetiva, desempenhada pelos adultos responsáveis pela criança na

ausência de pais biológicos11

.

10

NUCCI, Guilherme de Souza. Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado. Rio de Janeiro: Forense,

2015. 11

Fundação Maria Cecília Souto Vidigal pela Primeira Infância. Disponível em: <http://www.fmcsv.org.br/pt-

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Disposta no art. 1.593 do Código Civil, segundo o qual “o parentesco é natural ou

civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem12

”, enquanto modalidade de

parentesco e de filiação, a parentalidade socioafetiva já é bastante debatida na área do Direito

de Família, como resultado do reconhecimento da importância da afetividade nas relações de

família. Apesar de ser da natureza humana o impulso à procriação e de a maioria dos casos de

filiação se originar da relação biológica, em muitos casos o vínculo socioafetivo se sobrepõe

ao vínculo biológico, já que os laços de afeto resultam da construção da convivência contínua,

alimentada pelo amor e pela responsabilidade, não sendo fruto do parentesco sanguíneo.

Assim, como padrão recente de formação familiar contemporânea, a parentalidade

socioafetiva vem ganhando importância na esfera jurídica ao institucionalizar o afeto como

ingrediente indispensável na relação familiar.

Identificam-se quatro fundamentos básicos do princípio da afetividade na Constituição

Federal de 1988. No art. 227, a adoção como escolha afetiva caracteriza a igualdade de

direitos (§§5º e 6º) e a igualdade de todos os filhos independentemente da origem (§6º). Já no

§4º do art. 226, a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, incluindo

os adotivos, terá a mesma dignidade da família. E no art. 227, que caracteriza como prioridade

absoluta da criança e do adolescente o direito à convivência familiar.

De acordo com a jurista Maria Berenice Dias, ao investigar o melhor interesse da

criança, a autoridade escolheu o elo de afetividade como parâmetro para a definição dos

vínculos parentais. A verdade biológica, presumida, legal ou genética deixou de interessar. O

fundamental é identificar quem a criança considera pai e quem a ama como pai. A situação

familiar dos genitores em nada influencia na definição da paternidade, pois filho é quem foi

gerado pelo afeto e alimentado por meio do cordão umbilical do amor. Além de afirmar que o

afeto merece ser visto como uma realidade digna de tutela, Dias frisa que a paternidade

passou a ser reconhecida pela identificação da posse do estado de filho. Assim, a filiação

socioafetiva surgiu como uma nova figura jurídica, definida como a relação afetiva, íntima e

duradoura, na qual a criança é tratada como filho, por quem cumpre todos os deveres

inerentes ao poder familiar13

.

Os mais de 100 Grupos de Apoio à Adoção (GAAs) existentes no país são um

importante braço na luta em defesa do direito da criança e à convivência familiar e

br/sobre-nos/Paginas/O-que-%C3%A9-Parentalidade.aspx>. Acesso em: 13 mai.2017. 12

Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 13 mai. 2017 13

DIAS, Maria.Berenice. Filhos do afeto. Disponível em:

<http://www.mariaberenice.com.br/manager/arq/(cod2_691) 3 filhos_do_afeto.pdf>. Acesso em: 20 maio 2017.

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comunitária. De acordo com Sávio Bittencourt, eles vão muito além do apoio à família

adotiva, denunciando as falhas sistêmicas que emperram o poder público incumbido de

garantir o direito da criança e do adolescente, combatendo a cultura da institucionalização e

dirimindo preconceitos existentes contra o vínculo adotivo14.

À luz da Carta Magna, a afetividade, ao aproximar os indivíduos e propiciar as

relações que resultam em estruturas familiares, deve ser definida como direito fundamental e

princípio constitucional implícito, em consonância com seu art. 5º, § 2º, sendo reconhecido e

inserido no sistema jurídico15

.

4 APADRINHAMENTO AFETIVO VERSUS INSTITUCIONALIZAÇÃO

Inegavelmente, os avanços legais garantiram que o país enterrasse definitivamente a

cultura que perdurou do período colonial até o início do Século XX, em que se dispensava a

oficialização da adoção e as famílias ricas, mesmo sem qualquer relação de afeto, recebiam

em suas casas os “filhos de criação”. A adoção legal passou a ser um ato motivado pela

vontade de ter um filho ou filha, cujo vínculo seja o sentimento de afinidade e de afeto, que

nada tem a ver com a biologia.

Cenise Monte Vicente aborda a importância do vínculo familiar, associando-o ao

direito à vida, em seu texto intitulado “O direito à convivência familiar e comunitária: uma

política de manutenção do vínculo, quando afirma:

O vínculo é um aspecto tão fundamental na condição humana, e particularmente

essencial ao desenvolvimento, que os direitos da criança o levam em consideração

na categoria convivência – viver junto... A criança tem direito a viver, desfrutar de

uma rede afetiva, na qual possa crescer plenamente, brincar, contar com a paciência,

a tolerância e a compreensão dos adultos sempre que estiver em dificuldade16

.

Neste aspecto, o programa de Apadrinhamento Afetivo, gestado pelo Poder Judiciário

e a ele subordinado, sendo adotado pelas Varas da Infância, da Juventude e do Idoso por

adesão dos magistrados, revela-se eficaz como forma de romper com o ciclo de fragilidade a

14

BITTENCOURT, Sávio. A nova Lei de Adoção. Do Abandono à garantia do direito à convivência familiar e

comunitária. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 20. 15 Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos

estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à

propriedade, nos termos seguintes: § 2º. Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros

decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República

Federativa do Brasil seja parte. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 11 maio 2017. 16 KALOUSTIAN, Sílvio Manoug (org.). Família brasileira: a base de tudo. 9.ed. São Paulo: Cortez, 2010, p.

50- 51.

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que está exposta a criança ou o adolescente, possibilitando a quebra do sentimento de

abandono e a superação da autoestima. O programa é voltado para crianças e adolescentes que

vivem em situação de acolhimento ou em famílias acolhedoras, tendo por objetivo promover

vínculos afetivos seguros e duradouros entre eles e pessoas da comunidade que se dispõem a

serem padrinhos e madrinhas. A vinculação afetiva permite construir um relacionamento

responsável por gerar referências sociais no presente e no futuro.

O estado do Rio de Janeiro foi precursor do programa de Apadrinhamento Afetivo em

nosso país. Em 2014, por iniciativa do juiz titular da 4ª Vara da Infância, da Juventude e do

Idoso do município do Rio de Janeiro, Sérgio Luiz Ribeiro de Souza, foi criado o projeto

Apadrinhar - Amar e Agir para Materializar Sonhos que, pela sua relevância, sagrou-se

vencedor na categoria “juiz” do 12º Prêmio Innovare, que premia boas práticas voltadas

para a melhoria da Justiça no Brasil. Hoje, ele é responsável por 14 instituições de

acolhimento na capital fluminense e atende a cerca de 200 crianças e adolescentes que estão

em abrigos. No Rio de Janeiro, também a 1ª e 3ª Varas da Infância da capital fluminense, que

têm como titulares os juízes Pedro Henrique Alves e Mônica Labuto, aderiram ao projeto. O

programa ainda hoje não possui regulamentação federal, não existindo imposição para que

seja implantado na totalidade das Varas da Infância, da Juventude e do Idoso que funcionam

nos Tribunais de Justiça. O Apadrinhamento é previsto apenas em algumas legislações

estaduais.

O projeto possibilita três tipos de apadrinhamento: o provedor, o prestador de serviços

e o afetivo. O apadrinhamento provedor oferece suporte material às instituições de

acolhimento, com a doação de objetos, materiais de construção, limpeza, higiene, pagamento

de mão de obra, reformas no espaço físico, entre outros que elas necessitem. O

apadrinhamento prestador de serviço é desempenhado através da prestação de serviços

gratuitos às instituições de acolhimento, de acordo com as áreas de formação ou de interesse

das madrinhas e dos padrinhos. E o mais importante deles, que é o apadrinhamento afetivo,

possibilita a assistência afetiva e educacional à criança ou ao adolescente, estabelecendo

vínculos afetivos e possibilitando o convívio fora das instituições de acolhimento.

Destacam-se entre os objetivos do projeto, o atendimento às necessidades emocionais

e materiais de crianças e adolescentes, contribuindo para o seu desenvolvimento educacional,

social e profissional; propiciar a vivência de vinculação afetiva com um grupo familiar,

favorecendo o desenvolvimento do sentimento de pertencimento e de segurança emocional e

o favorecimento da consolidação de laços afetivos que podem dar suporte emocional futuro

aos abrigados, após o seu desligamento da instituição de acolhimento.

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Os alvos do Apadrinhamento são as crianças com oito anos ou mais de idade e os

adolescentes que tenham vínculos familiares rompidos judicialmente ou sem rompimento

desse vínculo, mas com possibilidades remotas ou inexistentes de reintegração familiar ou de

adoção, as crianças com deficiência de qualquer idade e os grupos de irmãos com vínculo

afetivo que tenham irmão mais novo com idade mínima de cinco anos. São requisitos dos

padrinhos/madrinhas ter, no mínimo, 16 anos a mais que os afilhados, e participar das oficinas

e reuniões com a equipe do projeto.

Além de dar afeto, os padrinhos/madrinhas assumem o compromisso de disponibilizar

tempo para visitar periodicamente seus afilhados (as), levando-os para passear sempre que

possível, e propiciando convivência familiar e comunitária saudável. Também é sua obrigação

visitar regularmente a instituição de acolhimento que abriga o seu protegido e respeitar as

normas do programa e das entidades17

.

Os exemplos de bons resultados divulgados pelo programa Apadrinhar, em sua página

na internet, retratam o mérito do Apadrinhamento Afetivo. Uma das histórias apresenta a

trajetória de Fernanda, de 11 anos, apadrinhada por Joice Biral e Pierre Borges. Aos 43 anos,

Joice não tinha filhos e sonhava, com Pierre, seu marido, ter a experiência de uma história

familiar compartilhada. Depois de conhecer o Projeto Apadrinhar pela internet, no início deste

ano, o casal resolveu apadrinhar Fernanda, que mora em uma instituição de acolhimento com

seus dois irmãos.

Há alguns meses, eles se encontram todos os fins de semana. Foi com eles e sua

família que Fernanda conheceu o mar, que pisou na areia pela primeira vez, que comemorou o

seu último aniversário, cercada de amigos. Joice e Pierre são padrinhos e apoiadores,

exemplos certos em uma vida jovem e já cheia de percalços. O relato salienta que a madrinha

tem consciência das dificuldades para dar prosseguimento a um processo de pedido de guarda

quando a criança tem outros irmãos. Mas, a partir dessa experiência, o casal já está certo de

que poderá, um dia, dar prosseguimento a um processo de adoção, sem se deter em critérios

muito fechados como a faixa etária da criança e que o amor por Fernanda prosseguirá, sem

limites18.

Enquanto no processo de adoção convencional, a Justiça escolhe a criança e a família

que será habilitada para adotá-la, sem considerar questões subjetivas, como a afinidade, no

Apadrinhamento Afetivo ocorre o inverso, já que o relacionamento começa sem o propósito

17

Projeto Apadrinhar. Disponível em: <http://infanciaejuventude.tjrj.jus.br/informacoes/docs/cartilha-

apadrinhamento.pdf>. Acesso em: 11 jul. 2017. 18 Ibid. Disponível em: <http://apadrinhar.org/index.php/2016/10/25/fernanda/>. Acesso em: 11 jul. 2017.

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de se formar uma família. A partir dele, o apadrinhado tem a possibilidade de saber como

funciona a vida da família, vivenciando situações do seu cotidiano.

Embora não recebam a sua guarda ou tutela, visto que o guardião continua sendo a

instituição de acolhimento, o padrinho/madrinha deve necessariamente assumir a

responsabilidade e o compromisso de manter o vínculo com as crianças e os adolescentes, que

já sofreram uma vez ou mais o afastamento de suas famílias de origem. Os padrinhos

precisam ter disponibilidade para partilhar tempo e afeto, prestar auxílio emocional,

orientação vocacional, dentre muitas outras possibilidades de convivência que contribuam

para a construção do projeto de vida e autonomia dos infantes institucionalizados. Para isso,

eles podem, por exemplo, passar os finais de semana e as férias com o afilhado. Geralmente,

as instituições que desenvolvem o programa oferecem capacitação para os futuros padrinhos,

além de promover a sua avaliação por meio de estudo psicológico para saber se estão

preparados para assumir a empreitada, mantendo o vínculo afetivo com os afilhados fora da

instituição de acolhimento.

De acordo com Maria da Penha Oliveira, coordenadora do programa de

apadrinhamento afetivo da ONG Aconchego, em Brasília, pioneiro no Brasil, é um mito achar

que o apadrinhamento confunde a cabeça da criança ou gera uma expectativa de adoção. Para

a psicóloga, as crianças sabem que as chances de adoção são remotas, e que elas têm que se

cuidar, focando na sua própria vida. Podem aprender com o padrinho como funciona uma

família para construir a sua um dia. Ela destaca que quando não há o vínculo social, crianças e

adolescentes institucionalizados têm a vida escolar prejudicada, salientando que, como a

maioria dos acolhidos tem um nível baixo de escolaridade, o padrinho e a madrinha não

podem ser mais um. Vão fazer a diferença na vida deles, não são mais um 'tio' que está

ajudando a cuidar, destaca Maria da Penha19

.

Afirma a Associação dos Magistrados Brasileiros que o apadrinhamento afetivo

deveria ser acompanhado como programa ou projeto, cuja iniciativa pode ser de Conselhos

Municipais dos Direitos da Criança, de abrigos e instituições, de Secretarias de Estado ou

Município, Varas da Infância e da Juventude, Tribunais de Justiça, etc., em parceria com

igrejas, universidades, organizações não-governamentais, associações de moradores, empresas

privadas, entidades ou associações nacionais e internacionais de apoio à infância, entre outras.

Diante dos aspectos positivos do Apadrinhamento Afetivo enquanto programa social,

19

OLIVEIRA, Maria da Penha. Coordenadora do programa de apadrinhamento afetivo da ONG Aconchego.

Disponível em:

<http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/77259-apadrinhamento-afetivo-decriancaeadolescentesentenda-

comofunciona>. Acesso em:13 maio 2017.

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pode-se afirmar ainda que o seu alcance seria efetivamente ampliado se os que estão na fila de

adoção pudessem nele ingressar.

Portugal encontra-se à frente do Brasil e de outros países no que se refere ao

apadrinhamento. O país lusitano aprovou a Lei nº 103, de 11 de setembro de 2009,

estabelecendo o Apadrinhamento Civil. Tal instituto se caracteriza por uma relação jurídica

tendencialmente de caráter permanente, estabelecida entre uma criança ou um adolescente e

uma pessoa ou família, que passa a exercer os poderes e deveres próprios dos pais, e que com

eles estabelece vínculos afetivos que permitem o seu bem-estar e desenvolvimento. A lei em

tela foi elaborada a partir da alteração do Código do Direito Civil, da Lei de Organização e

Funcionamento dos Tribunais Judiciais e do Código Civil. Este modelo de apadrinhamento é

constituído por homologação ou decisão judicial e sujeita a registro civil20

.

5 CAMINHO PARA A ADOÇÃO

O potencial do Apadrinhamento Afetivo como incentivador da adoção tardia é

exemplificado pela matéria publicada pelo jornal O Globo, em 201421

, que destaca um

menino de nove anos que vivia em um abrigo no município de São Gonçalo, no Rio de

Janeiro. Juçara Serrano e Ricardo Barbosa, após dois abortos espontâneos e 19 anos de espera

na tentativa de adotar uma criança, decidiram ir juntos ao Resgate e Ame Crianças e

Adolescentes em Situação de Risco Social (Reame), com o intuito de simplesmente ajudar a

uma criança. Foi através do apadrinhamento afetivo que se depararam com o menino que

fazia pedidos às estrelas... A trajetória do casal de empresários ilustra a solução que algumas

famílias encontram na hora de adotar uma criança. O objetivo do apadrinhamento afetivo não

é escolher um filho para adoção, mas em alguns casos se torna a primeira etapa desse

processo.

O casal decidiu levar o menino para passear nos fins de semana. Em 2011, no fim das

férias escolares de 40 dias passadas com o casal, Everton chamou Ricardo de pai, situação

embaraçosa. Entretanto, numa noite fria longe do menino, Juçara se deu conta do quanto ele

fazia falta em casa. Desde março daquele ano, ela e o marido passaram a lutar pela guarda

definitiva do filho que os escolheu.

20

Diário da República. Portugal. Lei nº 103, de 11 de setembro de 2009. Disponível em: Diário da República,

http://www.seg-social.pt/documents/10152/278915/LEI_103_2009/a30c3ecd-20af-49d2-a64b-5014d01c60be.

Acesso em: 13 jul. 2017. 21

O GLOBO. Rio. Apadrinhamento afetivo: primeiro passo para a adoção de crianças. Disponível em:

<https://oglobo.globo.com/rio/bairros/apadrinhamento-afetivo-primeiro-passo-para-adocao-de-criancas-

12589337>. Acesso em: 02 jun. 2017.

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Juçara destaca, na matéria, que foi um relacionamento construído aos poucos, sem

compromisso, e dele nasceu o amor, lamentando que o processo de adoção seja tão vagaroso.

O casal informou que era obrigado a renovar de quatro em quatro meses a guarda provisória e

que, às vezes, havia demora para sair a prorrogação. Até a publicação da matéria, três anos

haviam se passado, enquanto o casal continuava lutando pelo filho afetivo.

5.1 A BUSCA PELA EXPERIÊNCIA DO APADRINHAMENTO AFETIVO

Ao escrever este artigo de conclusão do curso de Pós-Graduação fui motivada pela

experiência vivida com a habilitação ao programa de apadrinhamento afetivo, bem como pelo

desejo de contribuir para que esse processo passe a ser uma realidade na vida de crianças e

adolescentes abrigados em nosso país. O conhecimento que adquiri sobre a temática da

adoção foi obtido a partir do relato de amigos e matérias jornalísticas. Esse processo, que no

Brasil ainda é difícil, doloroso e angustiante, mesmo levando-se em consideração as

contribuições trazidas pela Lei nº 12.010/2009 (Nova Lei da Adoção), enfrenta um grande

número de obstáculos. Segundo Maria Berenice Dias, em seu artigo “O lar que não chegou22

”,

a lei que deveria solucionar o problema dos infantes institucionalizados, burocratizou ainda

mais o processo.

O mais surpreendente é tomar conhecimento de que muitas dificuldades são também

enfrentadas por aqueles que desejam apadrinhar. Habilitar-se tanto para o processo de adoção,

quanto para o de apadrinhamento, é um verdadeiro desafio; uma corrida com data e hora

apenas para começar, sem perspectiva de terminar. Essa temática, tão relevante como todas as

demais que envolvem a infância e juventude, bem como as suas peculiaridades, requerem

olhar e trato especiais.

Segundo Sávio Bittencourt, em seu livro “Guia do pai Adotivo23

”, a adoção deve ser

motivada pelo desejo de dar amor e afeto com intensidade, e eu me atrevo em a ir além,

afirmando que ambos os processos, seja ele de adoção ou apadrinhamento, devem ser

norteados por tais sentimentos. A afetividade é a única ponte que ligará o adotante ao futuro

adotado, o padrinho ao futuro afilhado. Digo futuro, porque para se criar o elo de afetividade é

preciso que haja o encontro, e é a partir dele que começa a surgir o entrelace da alma e do

coração. Mas como criar afetividade sem conhecer as crianças, sem vê-las, visitá-las? Não há

22

DIAS, Maria Berenice. O lar que não chegou. Disponível em:

<https://espaco- vital.jusbrasil.com.br/noticias/1564113/o-lar-que-nao-chegou>. Acesso em: 24 maio 2017. 23 BITTENCOURT, Sávio. Guia do pai Adotivo. Orientações para uma adoção feliz. Curitiba: Juruá, 2014.

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como.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em seu Art. 19, afirma que é direito da

criança e do adolescente o convívio familiar e comunitário. E certamente, não prevê esse

direito somente para as que já têm uma família, mas sim, para todas. E como terão garantidos

esses direitos aqueles que estão abrigados em instituições? Estariam eles fadados a uma vida

intramuros?

Estamos vivendo uma nova era, entretanto, apesar dos programas dos Tribunais de

Justiça, do Ministério Público, dos juízes das Varas da Infância e Juventude e das novas

legislações, é preciso fazer com que os diretores de instituições de acolhimento também

entendam que as crianças e adolescentes ali abrigados devem ter passagem transitória, e que

devem ser apadrinhados e adotados. Vale salientar que, em 2011, logo o início dos seus

trabalhos, a Frente Parlamentar pela Adoção encaminhou ao Conselho Nacional de Justiça e

ao Supremo Tribunal Federal propostas com o objetivo de acelerar e humanizar as adoções.

Uma delas solicitava orientar os tribunais de Justiça para que semestralmente qualificassem os

profissionais que trabalham nos abrigos e os responsáveis pelos processos de adoção. O

mesmo deve ser feito com relação ao apadrinhamento afetivo.

O Apadrinhamento Afetivo pode ser um passo para a adoção tardia bem- sucedida,

gerada a partir da construção de vínculos, e isso sem prejuízo do processo legal, haja vista,

apenas as crianças que não estão mais na lista de preferência para adoção podem ser

apadrinhadas. Assim sendo, nenhum padrinho estaria burlando a fila do Cadastro Nacional de

Adoção, e sim, tendo a oportunidade de dar afeto (e também receber) a um infante, que na sua

tenra idade já traz marcas de dor, sofrimento, maus tratos e abandono. Essas crianças e esses

adolescentes têm garantidos por lei o direito de serem visitados, abraçados, acalantados, de

receberem amor e contarem com uma família para chamar de sua.

Neste sentido, como órgãos responsáveis pela deliberação e controle das ações e

políticas públicas relacionadas à infância e à adolescência, criados por imposição do inciso II

do art. 88 do ECA, os Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente podem exercer

papel relevante, principalmente nas esferas municipais, como disseminadores do debate e da

informação sobre a importância do apadrinhamento afetivo e da adoção tardia. Cartilhas,

cartazes e materiais de divulgação para este fim podem ser custeados por recursos dos fundos

municipais da criança e do adolescente, visto terem a finalidade de garantir direitos da

infância e adolescência.

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5.2 PEDRAS NO CAMINHO DA ADOÇÃO

De acordo com Dias, “a paternidade deriva do estado de filiação, independente de sua

origem, se biológica ou afetiva. A ideia de paternidade está fundada muito mais no amor do

que submetida a determinismos biológicos. Também em sede de filiação, prestigia-se o

princípio da aparência24

”.

Ainda que o Brasil tenha avançado de forma eficaz na garantia de direitos de crianças

e adolescentes, ainda não conseguiu garantir à infância o direito constitucional ao convívio

familiar. A legislação em vigor, embora seja qualitativa, deve ser melhor aplicada a fim de

evitar entraves burocráticos tanto para as crianças e os adolescentes que estão à espera de

adoção, quanto para as famílias aptas a adotar ou apadrinhar. Em seu Art. 227, a Constituição

Federal dispõe que:

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao

jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação,

ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à

convivência familiar e comunitária, além de colocá- los a salvo de toda forma de

negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. Disponível

em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>

É neste artigo, e unicamente nele, que o texto constitucional menciona a expressão

prioridade absoluta, deixando evidente que crianças e adolescentes são os seus principais

sujeitos de direitos. Já em seu §6º, ao dispor que “os filhos, havidos ou não da relação do

casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer

designações discriminatórias relativas à filiação”, o artigo também garante a igualdade entre

filhos genéticos e adotados, afastando a possibilidade de qualquer discriminação.

Por sua vez, o art. 34, §1º, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) prioriza o

acolhimento familiar, para garantir que a criança ou o adolescente afastado da família

genética seja entregue temporariamente mediante guarda a pessoa ou família cadastrada no

programa de acolhimento.

O promotor de Justiça Sávio Bittencourt25

, pai de cinco filhos, sendo dois deles

adotados, destaca a inexistência de uniformidade na atuação jurisdicional, do Ministério

Público e da Defensoria Pública. Ele destaca que o Brasil possui uma legislação moderna e

substancial que aponta para a proteção prioritária das crianças e adolescentes. Mas, ainda

assim, um enorme número deles é criado longe do ambiente familiar. Vivem em instituições,

24

DIAS, Maria Berenice. Manual do Direito das Famílias. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2. ed., p. 335-

334. 25

BITTENCOURT, Sávio. A nova Lei de Adoção. Do Abandono à garantia do direito à convivência familiar e

comunitária. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2013, p. 4-5.

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privados do cuidado individualizado de uma família. Sua formação psicológica se faz em um

ambiente coletivo, em detrimento de seu amor próprio. Bittencourt questiona por que se

permite, com tantas pessoas pagas para garantir os direitos da infância, que uma criança passe

sua infância afastada do convívio familiar e por que ela não retorna a sua família de origem.

Diante da morosidade da justiça, lança a pergunta, se há risco para ela nesta família original,

por que ela não vai para uma família adotiva?

Importante salientar que a Corregedoria Nacional de Justiça, através do Provimento nº

36/2014, considerando a demora excessiva dos processos de adoção ou destituição do poder

familiar, além de determinar a realização de estudos para equipar comarcas e foros regionais

com varas exclusivas da infância e juventude e impor outras importantes determinações, já

ordenava que os tribunais de justiça dos estados fiscalizassem o tempo de tramitação dos

processos de adoção e os de destituição do poder familiar, investigando disciplinarmente os

magistrados que tivessem sob sua condução, sem justificativa, ações desse tipo tramitando há

mais de 12 meses26

.

De acordo com Bordallo, o princípio da dignidade humana há de ser o norte para as

relações de parentesco, qualquer que seja sua origem. Destaca o autor que não estaremos

cumprindo a determinação constitucional se não buscarmos incrementar a colocação em

família substituta daquelas crianças/adolescentes que se encontram abrigadas e se nenhuma

possibilidade de reintegração familiar. Conforme destaca Bordallo, o abrigo e a família

acolhedora são medidas excepcionais, conforme preceitua o art. 101, §1º, do ECA, devendo

ser mantidos apenas pelo tempo necessário, salientando que deixar que cheguem à idade

adulta em um abrigo é um total desrespeito ao princípio da dignidade humana27.

Instituído em 2006, o Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de

Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária28

, aprovado pelo Conselho

Nacional dos Direitos das Crianças e Adolescentes (CONANDA) e Conselho Nacional de

Assistência Social (CNAS), pretendeu ser um marco nas políticas fortalecer o paradigma da

proteção integral e da preservação dos vínculos familiares e comunitários preconizados pelo

Estatuto da Criança e do Adolescente. Ele resultou de um processo participativo de

elaboração conjunta que envolveu representantes de todos os poderes e esferas de governo, da

26

Conselho Nacional de Justiça. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/images/imprensa/provimento_36.pdf.

Acesso em: 10 jun. 2017. 27

BORDALLO, Galdino Augusto Coelho. Adoção. In: Curso de Direito da Criança e do Adolescente –

Aspectos teóricos e práticas. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 289-290. 28

Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência

Familiar e Comunitária, de 2006. Disponível em:

<http://www.sdh.gov.br/assuntos/criancas-e-adolescentes/programas/pdf/plano-nacional-de-convivencia-

familiar-e.pdf>. Acesso em: 02 abr. 2017.

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sociedade civil organizada e de organismos internacionais, entre eles o Fundo das Nações

Unidas para a Infância (UNICEF), que compuseram a Comissão Intersetorial que elaborou os

subsídios apresentados ao CONANDA e ao CNAS. Ainda assim, o país está à espera da

verdadeira efetivação do que preconiza este importante documento legal.

Na avaliação de Bittencourt29

, o legislador perdeu a oportunidade de corroborar o

Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à

Convivência Familiar e Comunitária e incluir nesta preparação os grupos de apoio à adoção,

que já cumprem voluntariamente esse papel há mais de uma década e acumularam valiosa

experiência. Essa parceria em prol das crianças disponíveis para adoção, na avaliação do

autor, fortalecerá o Plano, junto aos programas de preparação de pretendentes.

Com base em Levantamento Nacional dos abrigos para Crianças e Adolescentes da

Rede de Serviço de Ação Continuada do IPEA, Bittencourt salienta que 41,8% das crianças

e adolescentes institucionalizados não têm qualquer contato com suas famílias de origem.

Outro dado impressionante é que apenas 54,6% possuíam processo nas varas de infância e

juventude. Ou seja, cerca de 50% parecem ter sua existência ignorada pelo Ministério Público

e pela Magistratura. Estão no limbo jurídico, sem que os guardiões de seu direito saibam

disso.

Diante dos dados levantados, o promotor de Justiça frisa que embora a maioria das

crianças abrigadas devesse estar apta para adoção, apenas 10,7% delas já tinham o poder

familiar destituído. Ou seja, mais de 40% não têm vínculo emocional e ainda assim, apenas

cerca de 10% estão com o poder familiar destituído30

.

Causa perplexidade também o longo tempo de permanência de crianças e adolescentes

nas instituições: 52,6% encontravam-se nelas há mais de dois anos, e quase 20% deles

estavam há mais de seis anos nos abrigos, longe de suas famílias e sem que tenham sido

encaminhadas para uma família substituta. Assim, milhares de brasileiros inocentes padecem

de abandono, sem que o Ministério Público e a Magistratura tenham buscado garantir a

possibilidade de adoção, nem de reintegração à família biológica.

Ainda que as instituições de acolhimento procurem replicar a estrutura física da

residência familiar, a fim de minimizar o trauma que carregam as crianças e os adolescentes

abrigados, o atendimento padrão prestado por suas direções e equipes técnicas

multiprofissionais é pouco pautado pelo afeto, ficando, na maioria das vezes, restrito às

29

BITTENCOURT, Sávio. A nova Lei de Adoção. Do Abandono à garantia do direito à convivência familiar e

comunitária. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2013, p. 128. 30

Ibid. p.11.

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normas impostas pelo Ministério Público, Poder Judiciário e pelos órgãos da Assistência

Social, ainda que sejam eles os rostos mais familiares que os abrigados terão à sua volta. Cabe

ainda a estes profissionais a difícil tarefa de buscar o equilíbrio entre as crianças e/ou os

adolescentes que, naturalmente, apresentam diferenças de caráter, comportamento emocional,

educação e hábitos, a fim de manter a integridade e o bem-estar de todos.

Com previsão no Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de

Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária , no art. 101 do ECA31 e

com orientações contidas no manual de Orientações Técnicas: Serviços de Acolhimento para

Crianças e Adolescentes do Ministério de Desenvolvimento Social (MDS)32

, e com previsão,

o Abrigo Institucional, a Família Acolhedora e a Casa Lar são os serviços de acolhimento

provisório que, legalmente, devem atender a crianças e adolescentes afastados do convívio

familiar por meio de medida protetiva de abrigo, em função de abandono ou cujas famílias ou

responsáveis encontrem-se temporariamente impossibilitados de cumprir sua função de

cuidado e proteção, até que seja viabilizado o retorno ao convívio com a família de origem ou,

na sua impossibilidade, encaminhamento para família substituta.

O Abrigo Institucional deve ter aspecto semelhante ao de uma residência e estar

inserido na comunidade, em áreas residenciais, oferecendo ambiente acolhedor e condições

institucionais para o atendimento com padrões de dignidade. Cabe a ele ofertar atendimento

personalizado e em pequenos grupos e favorecer o convívio familiar e comunitário das

crianças e adolescentes atendidos, bem como a utilização dos equipamentos e serviços

disponíveis na comunidade local. Já a Família Acolhedora presta o serviço em residências de

famílias cadastradas, propiciando o atendimento em ambiente familiar, garantindo atenção

individualizada e convivência comunitária, permitindo a continuidade da socialização da

criança/adolescente. A todo cabe cuidar para que as crianças e os adolescentes sintam-se

acolhidos, principalmente quando chegam às instituições, para evitar que se sintam punidos

com o afastamento familiar ou punidos com a institucionalização.

31

Estatuto da Criança e do Adolescente. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm>. Acesso em: 12 jul. 2017.

Art. 101. Verificada qualquer das hipóteses previstas no art. 98, a autoridade competente poderá determinar,

dentre outras, as seguintes medidas: VII - acolhimento institucional; VIII - inclusão em programa de acolhimento

familiar.

§ 1o. O acolhimento institucional e o acolhimento familiar são medidas provisórias e excepcionais, utilizáveis

como forma de transição para reintegração familiar ou, não sendo esta possível, para colocação em família

substituta, não implicando privação de liberdade. 32

Orientações Técnicas: Serviços de Acolhimento para Crianças e Adolescentes do Ministério de

Desenvolvimento Social (MDS). Disponível em:

<http://www.mds.gov.br/cnas/noticias/orientacoes_tecnicas_final.pdf>. Acesso em: 12 jul. 2017.

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CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.

Podemos afirmar que a Casa Lar é o serviço de acolhimento provisório que mais se

aproxima do modelo ideal, por ser oferecido em unidades residenciais, nas quais pelo menos

uma pessoa ou casal trabalha como educador/cuidador residente – em uma casa que não é a

sua – prestando cuidados a um grupo de crianças e adolescentes afastados do convívio

familiar por meio de medida protetiva. Esse tipo de serviço visa estimular o desenvolvimento

de relações mais próximas do ambiente e da rotina familiar, proporcionar vínculo estável

entre o educador/cuidador residente e crianças e adolescentes atendidos, promover hábitos e

atitudes de autonomia e de interação social com as pessoas da comunidade. Com estrutura de

uma residência privada, deve receber supervisão técnica e localizar-se em áreas residenciais

da cidade.

A Casa Lar visa dar às crianças e aos adolescentes que necessitem do espaço protetivo

a vivência de um modelo de relações que possibilite o resgate de sua autoestima, hábitos e

atitudes de autonomia e de interação social com as pessoas da comunidade, e a construção de

um projeto de vida.

Destaca Berenice Dias que, no momento em que a criança é entregue ao Estado pelos

pais, ou é deles retirada por evidências de maus tratos ou abusos, deve imediatamente ser

entregue à guarda do pretendente à adoção, sem passar por um abrigo. Em seu artigo “A

falência do sistema de adoção”, Dias ressalta que o processo de destituição do poder familiar

deve ser cumulado com a ação de adoção, para que ocorra a transferência do poder familiar

dos pais biológicos para os adotivos. De outro lado, é indispensável possibilitar que os

candidatos à adoção tenham acesso a todas as instituições que têm crianças abrigadas. “O

filho precisa ter empatia por quem serão seus pais para que aconteça o milagre da

identificação entre eles33

”.

5.3 CADASTRO NACIONAL DE ADOÇÃO (CNA)

O Cadastro Nacional de Adoção (CNA), inaugurado em 2008 como sistema de

informações do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)34

, foi criado para auxiliar os juízes das

Varas da Infância e da Juventude, concentrando as listas de crianças e adolescentes com o

poder familiar destituído, que podem ser adotadas, e de candidatos a adotá-las. Os

33

DIAS, Maria Berenice. A falência do sistema de adoção. Disponível em:

<http://www.mariaberenice.com.br/manager/arq/(cod2_13013)A_falencia_do_sistema_da_adocao.pdf>. Acesso

em: 02 abr. 2017. 34

Cadastro Nacional de Adoção (CNA). Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/sistemas/infancia-e-

juventude/20530-cadastro-nacional-de-adocao-cna>. Acesso em: 21 jun.2017.

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interessados em adotar passam por um processo de habilitação (que inclui entrega de

documentos, entrevistas com psicólogos e assistentes sociais e um parecer do juiz da Vara da

Infância e da Juventude) para entrar numa “fila” de pretendentes e aguardar uma criança com

o perfil desejado. Uma vez habilitado, o requerente está apto à adoção em qualquer lugar do

Brasil.

A parceria se deu por um termo de cooperação, assinado entre a Secretaria Especial de

Direitos Humanos, ligada à Presidência da República, e o CNJ. A coleta de dados aponta

quantos são os meninos e meninas disponíveis para adoção no país, quanto tempo vem

durando os processos, quantos são os pretendentes e se existe um perfil de crianças

procuradas por eles.

Embora o CNA trace um quadro sobre a adoção no Brasil, visando-a que suas

estatísticas possam subsidiar a implementação de políticas públicas na área pelo Poder

Executivo, esse objetivo, até aqui, não foi alcançado.

Passados quase 10 anos da sua criação, o CNA enfrenta hoje problemas que têm sido

motivo de críticas dos setores relacionados à adoção no Brasil, inclusive no que se refere ao

seu sistema digital que, comparado com sua versão anterior, vem sendo considerado

inadequado para a utilização dos operadores do sistema. Entre os aspectos negativos do

processo de adoção, destaca-se que muitos adotantes não conhecem a realidade das crianças

que estão nas instituições de acolhimento à espera de uma família.

É grande o número de militantes da causa da infância que defendem o término da lista

única do Cadastro Nacional de Adoção (CNA), sob o argumento de que ela atrasa a conclusão

das adoções, levando muitos pretendentes a desistirem do processo, que pode levar mais de

um ano para ser concluído, punindo de forma cruel infantes e jovens, que muitas vezes,

depois de uma longa espera, sofrem a decepção de não ter acesso à convivência familiar.

Além disso, há críticas às exigências que os inscritos na fila de adoção são obrigados a

cumprir, por serem consideradas exageradas se comparadas coma precária rotina das crianças

nas instituições de acolhimento.

Defende Bittencourt que o CNA passe a conter, além das listas de crianças e

adolescentes com o poder familiar destituído, também, aquelas cujo poder familiar tenha sido

suspenso, para evitar a sua institucionalização35

.

35 BITTENCOURT, Sávio. A nova Lei de Adoção. Do Abandono à garantia do direito à convivência familiar e

comunitária. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 143.

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5.4 A IDADE DISTANCIA A CRIANÇA DA ADOÇÃO

Segundo avaliação dos perfis dos adotantes feita pelo Cadastro Nacional de Adoção, a

questão racial não representa o principal obstáculo às adoções em nosso país. De acordo com

o Relatório de Pretendentes Cadastrados do CNA, aberto à consulta pública, dos 39.985

pretendentes cadastrados, 7.697, ou seja, 19,25%, estão dispostos adotar somente crianças

brancas. Por outro lado, 20.204, o que corresponde a 50,53%, aceitam adotar crianças negras,

e 78,46% adotariam crianças pardas. Já, dos que desejam adotar pela faixa etária, apenas 14,

69% adotariam crianças com até quatro anos de idade; 13,68% com até cinco; 8,38% com até

seis; 4,27% com até sete; 2,34% com até oito; 1,05% com até nove; 1,22% com até 10, caindo

para 0,57% até 0,12% para as faixas de 11 a 16 anos de idade.

Os dados revelam que quanto maior a idade da criança menores são as chances de

alcançar a adoção. Os bebês e as crianças com até quatro ou cinco anos de idade que estão no

cadastro, independentemente da cor da pele, são rapidamente adotados, ao contrário dos que

têm mais idade, ainda que sejam brancos e tenham olhos claros. Entretanto, segundo relatório

do CNA, os mais jovens, justamente os mais procurados pelos pretendentes, representam um

universo bastante reduzido entre os que estão disponíveis para adoção: apenas 4,87% estão na

faixa de zero a cinco anos de idade. Na outra ponta estão 70,99% de crianças e adolescentes

com idade superior a 10 anos. Estes são os que mais carecem de medidas urgentes, por parte

do Estado, para incentivar o apadrinhamento afetivo e a adoção tardia.

Além disso, outros fatores que representam um grande entrave à saída de crianças e

adolescentes das instituições de acolhimento, de acordo com as estatísticas do CNJ, são o

percentual de pretendentes que só aceitam crianças sem doenças e/ou deficiências: 65,13%, e

o dos que não aceitam adotar mais de uma criança ao mesmo tempo ou receber irmãos:

66,71%. Esses dados se chocam com o fato de que três em cada dez crianças abrigadas têm

pelo menos um irmão no Cadastro Nacional de Adoção.

Já entre os 315 pretendentes internacionais inscritos, 93,33% aceitam adotar crianças

negras; 53,02% adotariam irmãos; 25,4% aceitam filhos adotivos com até nove anos de idade,

mas 84,13% só aceitam adotar crianças sem doenças e/ou deficiências. É importante destacar

que o Juizado da Infância e da Juventude só disponibiliza para adoção internacional as

crianças para as quais não se obteve êxito na reintegração familiar ou na colocação em família

substituta nacional.

Por outro lado, das 47.500 mil crianças e adolescentes que vivem hoje em quase

quatro mil instituições de acolhimento oficiais credenciadas junto ao Poder Judiciário

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brasileiro, de acordo com o relatório do CNA, apenas 7.686 estão cadastradas no sistema, em

função da perda do poder familiar. Destas, 4.792 estão disponíveis para adoção e 2.894 já se

encontram vinculadas a pretendentes à adoção, também cadastrados.

Já que existem 39.985 pretendentes habilitados para adotar, os dados acima nos

remetem ao seguinte questionamento: por quanto tempo os 40 mil meninos e meninas que não

estão disponíveis para adoção irão ainda esperar até que a Justiça defina o seu futuro?

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Embora o direito à convivência familiar e comunitária para crianças e adolescentes

deva ser a prioridade absoluta do Estado, cabendo a ele definir com brevidade se cabe o

retorno à família original ou sobre a perda do poder parental para aqueles que estão vivendo

em instituições de acolhimento, os nossos infantes estão crescendo nos abrigos, que deveriam

ser uma saída temporária e de curta duração. A burocracia e a morosidade do poder público

são os responsáveis por isso.

Com tempo médio de permanência de até dois anos nos abrigos, para muitas crianças e

muitos adolescentes a vida em família passou a fazer parte de uma memória distante e

impossível de ser novamente alcançada. Para confortá-los, eles têm apenas flashes de

lembranças felizes, a exemplo de um afago ou abraço recebido, das risadas trocadas com os

pais e outros entes queridos, ou até mesmo de uma bronca merecida. Tudo isso fica

armazenado em compartimentos da memória, aflorando quando a solidão aperta. Dentre os

abrigados, quase 71% são adolescentes, que carecem de medidas urgentes por parte das

autoridades, visando o incentivo ao apadrinhamento afetivo e à adoção tardia. Os dados são

contundentes e apontam para a necessidade de soluções imediatas.

De um lado, espera-se que todas as autoridades responsáveis pela garantia de direitos

de crianças e adolescentes cumpram o seu papel, quais sejam o Ministério Público e a

Magistratura, promovendo um esforço para que aqueles que estão institucionalizados,

principalmente nos casos em que a família biológica se afastou por completo, tenham seus

processos instaurados e com tramitação célere. Feitas as tentativas possíveis de reintegração

ao núcleo familiar de origem, torna-se evidente que o encaminhamento para adoção é a

medida mais indicada para que se garanta às nossas crianças e aos nossos adolescentes o

acesso ao convívio familiar baseado no afeto. Neste aspecto, abrir a possibilidade para que o

Apadrinhamento Afetivo alcance também os infantes aptos a adoção representaria mais um

passo no tortuoso caminho rumo ao cumprimento efetivo dos preceitos constitucionais

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dedicados aos nossos pequenos.

Afirma Bittencourt que o filho adotivo é uma dádiva: um ser que o pai adotivo não

poderia nunca ter gerado, por advir biologicamente de outros cromossomos, mas que permite

que ele destine a jazida de afeto que estava ociosa em seu peito. Na verdade, só os filhos

adotivos são amados. Mesmo os filhos biológicos são adotados por seus pais biológicos,

quando há amor e cuidado[...]. Os abrigos abarrotados de filhos biológicos que não foram

adotados por seus genitores são um testemunho trágico de que ter sido gerado por alguém não

importa necessariamente na existência de amor36

.

Na outra ponta, faz-se necessário mudar a cultura, ainda dominante entre os

pretendentes a adoção, de que a relação afetiva com crianças mais velhas, que carregam

consigo traumas e dores profundas, tende a ser mais difícil. O nosso país carece de campanhas

permanentes e diversificadas com o objetivo de desconstruir essa visão estreita. Com oito, 10

ou 16 anos, seja em que idade for, à medida em que o tempo passa, mais reduzida fica a

esperança de virem a ter a sua própria família. Mas, ao mesmo tempo, por outro lado, cresce a

necessidade de afeto, que gera neles a vontade redobrada de agarrar com unhas e dentes a

futura família. Portanto, a chance de dar certo, de haver o entrelace com os pais adotivos,

tende a aumentar.

Da mesma forma, o entendimento equivocado de muitos gestores de instituições de

acolhimento e de suas equipes técnicas, que acreditam que o apadrinhamento afetivo pode

prejudicar ou inviabilizar uma futura adoção, tende a dificultar o acesso de crianças e

adolescentes aos possíveis padrinhos. É importante que estes gestores e profissionais sejam

informados sobre a verdadeira função e os benefícios do Apadrinhamento Afetivo para a vida

desses infantes. A partir da mudança de mentalidade desses atores será possível obter o maior

alcance do programa, permitindo que mais afilhados do afeto compartilhem e se beneficiem

da convivência familiar.

Neste diapasão, o programa de Apadrinhamento Afetivo se configura como

mecanismo importante e fundamental para o fortalecimento da adoção e como forma de

garantir a crianças e adolescentes o direito constitucional ao convívio familiar.

Destarte, para que este programa venha a beneficiar um maior número de crianças e

adolescentes, sugerimos que o Judiciário torne obrigatória a implementação do programa de

Apadrinhamento Afetivo em todas as Varas da Infância, da Juventude e do Idoso, garantindo

36 BITTENCOURT, Sávio. A nova Lei de Adoção. Do Abandono à garantia do direito à convivência familiar e

comunitária. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2013, p. 156.

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a uniformidade nas regras do seu funcionamento, e a consequente facilitação para que os

pretendentes a padrinho/madrinha possam ter acesso a todas crianças e adolescentes afastados

do convívio familiar por medida protetiva.

O Apadrinhamento Afetivo, ao atingir o seu objetivo basilar, que é dar a crianças e

adolescentes que estão em situação de acolhimento a oportunidade de manter vínculos de

afeto, de forma duradoura e compromissada, com seus padrinhos/madrinhas, já se faz

merecedor de todo o incentivo e amparo do Estado. Todavia, quando se considera que ele

possui também a capacidade de atuar como condutor ao processo de adoção, o seu mérito se

agiganta. Ao resultar na adoção, que tem a inquestionável primazia do afeto, e que, por ser

tardia, revela-se ainda mais valorosa, o Apadrinhamento Afetivo vai retirar, definitivamente,

da instituição de acolhimento uma criança ou um adolescente que pouquíssimas ou nenhuma

chance teria de alcançar de fato uma família amorosa e permanente para chamar de sua.

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