Pelas trilhas-do-mundo-a-caminho-do-reino

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PELAS TRILHAS DOMUNDO, ACAMINHO DO REINO JULIO DE SANTA ANA IMPRENSA METODISTA 1985 ÍNDICE CAPITULO I — Reorientação da Tarefa Teológica: da Repetição de Fórmulas à Libertação da Teologia CAPITULO II — Modelos Bíblicos de Pastoral CAPITULO III — Chaves para a Ação Pastoral a partir da Leitura dos Sinais dos Tempos CAPITULO IV — Cristo Tomando Forma na Sociedade e na Igreja CAPITULO V — Caminhos à Frente — Trilhas a Traçar — Dilemas e Oportunidades Esta é uma co-edição da Imprensa Metodista e Faculdade de Teologia da Igreja Metodista, publicada em maio de 1985. Tradutor: Uriel Teixeira Correção e Adaptação de Originais: Amélia Tavares Revisão: Marilía Schüller Ferreira Leão Imprensa Metodista

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PELAS TRILHASDOMUNDO,ACAMINHO DOREINO

JULIO DE SANTA ANA

IMPRENSA METODISTA

1985

ÍNDICE

CAPITULO I— Reorientação da Tarefa Teológica: da Repetição de Fórmulasà Libertação da Teologia

CAPITULO II— Modelos Bíblicos de Pastoral

CAPITULO III— Chaves para a Ação Pastoral a partir da Leitura dos Sinais dosTempos

CAPITULO IV— Cristo Tomando Forma na Sociedade e na Igreja

CAPITULO V — Caminhos à Frente — Trilhas a Traçar —Dilemas e Oportunidades

Esta é uma co-edição da Imprensa Metodista e Faculdade deTeologia da Igreja Metodista, publicada em maio de 1985.

Tradutor: Uriel TeixeiraCorreção e Adaptação de Originais: Amélia Tavares

Revisão: Marilía Schüller Ferreira LeãoImprensa Metodista

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Prefácio à Edição Brasileira

O texto deste volume recolhe as cinco conferências quepronunciei em março de 1984, no Seminário Bíblico Latino-americano, cujas autoridades me convidaram para ocupar aCátedra Enrique Strachan nesta oportunidade. Este convite foicomo um desafio para ordenar idéias e aprofundar pistas deanálises em torno da questão referente a pastoral protestante naAmérica Latina. O terna que desenvolvi durante aqueles dias quepassei em São José da Costa Rica foi: Reorientação Pastoral eRenovação Teológica na América Latina, tentando responder asprioridades que se colocam 'as igrejas na América Latina nesteperíodo de rápidas transformações e, muitas vezes, atéimprevistas.

E minha convicção que a região do inundo onde a vidaeclesial alcança maior densidade e riqueza neste momento dahistória é a nossa. A América -Latina é o cenário de profundosprocessos de renovação social, que inevitavelmente influemsobre as comunidades cristãs. Entre estas, há aquelas que aceitameste desafio de nosso tempo, enquanto há outras que fogem domesmo. A questão é de suma importância: trata-se de saber se apastoral das igrejas é pertinente ao período histórico quevivemos, ou se, ao contrário, corre o risco de ser anacrônica, de

permanecer fora do horizonte de nosso tempo.

Para responder a esta questão me pareceu necessárioconsiderar em primeiro lugar os pressupostos teológicos dapastoral protestante. Mas, como se sabe, para o cristianismoevangélicos, mais importante do que a reflexão teológica é areferência à Bíblia. Daí, que no segundo capítulo me concentreina análise do que significa ser pastor no testemunho escritural,assim como na reflexão sobre os modelos bíblicos de pastoral.Em terceiro lugar, me pareceu necessário atender a questão daleitura dos sinais do Reino da análise da conjuntura histórica:com efeito, após a autocrítica ecológica, a referência às fontesbíblicas, surge, inevitavelmente, a pergunta relativa ao que estáfazendo Deus, hoje, no mundo. A pastoral de nossas igrejas nãopode ser pensada sem esta referência. Não é possível ser Igrejasem estar participando na missão de Deus. E, para isso, aparececomo inevitável a necessidade de compreender o tempo em quevivemos, a história na qual participamos. Desta análise surge apercepção do sentido da ação de Deus em nosso tempo, que aIgreja tem que acompanhar e testemunhar. O quarto capítuloprocura responder a interrogativa sobre como ser o Corpo deCristo no meio de tais condições. Ou seja, como expressarconcretamente o ser de Jesus Cristo, servo sofredor, em nossomundo. A Igreja militante muitas vezes se perdeu nos atalhos dahistória por afirmar unilateralmente seu caráter triunfante,quando também deve recordar seu caráter peregrino, caminhandojunto ao povo que sofre e que, por isso mesmo, espera redenção.Finalmente; a partir de todas estas colocações anteriores tenteicompreender como deve ser orientada a pastoral evangélica,indicando os dilemas e oportunidades que se apresentam asnossas igrejas no momento atual.

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Quero ressaltar, de forma especial, nestas linhas deintrodução, quão grande é minha dívida para com ascomunidades cristãs do Brasil. Foi no contexto da prática eclesialdas mesmas que recebi inspiração para desenvolver a visão quetentei expressar nas páginas que se seguem. Nelas apenasprocuro traduzir, em conceitos, o que o Espírito está dizendo àsIgrejas hoje.

Por último, também quero dizer quão agradecido estou àFaculdade de Teologia da Igreja Metodista no Brasil, eespecialmente a seu Reitor, Prof. Dr. Rui de Souza Josgrilberg,assim como também 'a Imprensa Metodista, por ter feito todo onecessário para que este livro chegue as mãos do públicobrasileiro e de língua portuguesa.

São Paulo, 9 de dezembro de 1984.

Julio de Santa Ana

CAPITULO I

Reorientação da Tarefa Teológica:da Repetição de Fórmulas à Libertação da

Teologia

A década dos anos 60 pode ser considerada, na história dateologia ocidental, como a do grande impacto das idéias e dosvalores da cultura do Ocidente moderno. Se, no campo CatólicoRomano, isto se manifestou, especialmente, através do ConcílioVaticano II, a partir do qual a Igreja se abriu à cultura e aomundo moderno, no Protestantismo, isto ocorreu graças àquelasteologias que, tomando consciência do processo desecularização, começaram a delinear linhas de reflexão, para asquais a perda da vigência do religioso e, inclusive a "morte deDeus", foram considerados elementos de grande importância (1)Hoje, há duas décadas destes acontecimentos, é possível afirmarque aquela ruidosa moda teológica deixou muito poucos rastros.

As profecias que anunciavam o esquecimento e abandonorápido de formas de pensar e comportamento religiososprovaram ser falsas. Apesar dos augúrios — baseados em teoriasde "transformação social", amparadas pelo pensamento

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sociológico funcionalista, para as quais a secularizaçãosignificava praticamente a superação de qualquer tipo deinfluência religiosa (entre os quais, evidentemente, deve-seincluir o pensamento teológico) — da morte de Deus e dadesqualificação progressiva do religioso, podemos perceber,hoje, que os acontecimentos levaram justamente a afirmar ocontrário do que diziam aqueles oráculos (2).

É verdade que no Ocidente (Europa, EUA, Canadá) oprocesso de secularização continua afetando claramente asformas organizadas, através das quais se manifesta a vidareligiosa: os templos estão vazios, há um grande desinteressepelas questões teológicas, os livros a este respeito — lidosavidamente durante a década dos anos 50 e no começo dos anos60 — só interessam a especialistas e, em geral, as igrejas têmperdido a influência sobre as sociedades às quais pretendemservir. Este processo tem afetado, também a produção teológicado Ocidente: é possível afirmar que, a partir do ConcílioVaticano II, não surgiu nada de novo e de interessante entre osteólogos católicos ocidentais. Algo semelhante ocorre entre osteólogos protestantes: logo após as primeiras obras de JürgenMoltmann (3), não apareceram grandes novidades. É como se areflexão teológica ocidental se limitasse a girar em torno de simesma, a repetir-se constantemente.

Isto, todavia, não ocorre com as teologias do TerceiroMundo. Tomando um rumo diferente dos teólogos ocidentais, naÁsia, África e América Latina, a teologia passa, hoje, por umperíodo de grande atividade e produção. Neste trabalho, nãopretendemos examinar a evolução teológica na África e na Ásia.Concentrar-nos-emos na América Latina somente. Nesta parte do

mundo, é possível ressaltar que se multiplicam os livros deteologia, assim como também aqueles trabalhos teológicos quecirculam por meios alternativos. Enquanto no Ocidente,respeitáveis e tradicionais revistas teológicas perdem leitores,fato que as leva a reconsiderar a possibilidade de continuar suaimpressão, na América Latina cresce o número desse tipo depublicações.

Mais importante ainda: a religião, cuja perda de influênciasobre a vida dos povos, anunciava-se há vinte anos atrás,demonstrou ser um fator de primeiríssima importância para ahistória dos povos do Terceiro Mundo. Assim, por exemplo, noIrã ou no Líbano, não se compreendem os acontecimentos quemarcaram estes países no decorrer dos últimos anos, a menos quese leve em conta os valores e símbolos religiosos que motivam aação destes povos. Do mesmo modo, no continente africano, aluta contra o domínio ocidental — sobretudo na África do Sul —tem-se dado e se dá com um alto índice de componentesreligiosos, tanto cristãos como islâmicos. E, na América Latina,as grandes mobilizações populares na década dos anos 70 ecomeço da atual, permitem mostrar como o religioso é um fatorque dinamiza e motiva os setores populares para que estesassumam um papel de protagonista na história que lhes cabeviver.

Isso explica, entre outras coisas, esse assombroso impactoda teologia na história latino-americana. Ou seja, não se trata dofato de que a teologia atue como um agente desencadeador, queinflui sobre os povos que estão ao sul do Rio Bravo, motivando-os para a sua libertação. Ocorre o contrário: é a participaçãopopular nos processos históricos que dá origem à novos

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desenvolvimentos teológicos. Com efeito, povos que sãoprofundamente religiosos não podem deixar de pensarreligiosamente, teologicamente, quando enfrentam opçõescruciais relacionadas com seus respectivos destinos históricos. Agravidade do atual momento histórico latino-americano, aimportância crescente dos setores populares nos processos quelhes cabe viver, manifestam-se no plano teológico por umatentativa de explicar o sentido de sua ação a partir da fé, que osmotiva a assumir novos papéis e funções na sociedade. Ateologia não está em primeiro lugar, mas vai sendo construída àmedida que seus sujeitos vão atuando na história (4).

Isso significa, claramente, que na América Latina, hoje,existe uma nova maneira de fazer teologia. Esta que, por muitotempo, esteve separada, distante, alienada dos setores populares,vai sendo assumida pelos mesmos. A prática religiosa (eclesial,se desejamos referir-nos mais estritamente às igrejas e aoscristãos) cria novas condições para fazer teologia. Não se trata derefazer a teologia cristã, mas sim de simplesmente reformulá-la apartir de um novo sujeito histórico. Antes, o povo recebia ateologia elaborada de antemão por outros, mas recentementecomeçou a reformulá-la, a partir de suas próprias experiências,de suas próprias percepções e no contexto de seus própriosproblemas. Daí, que seja possível assinalar que existe, hoje, naAmérica Latina uma reorientação do labor teológico. Se antes aorientação procedia do Ocidente, hoje esta explicitação doconteúdo da fé se faz pelo povo, para si e a partir daquelasinterrogações e desafios que ele mesmo experimenta.

IO que foi dito previamente serve para fundamentar a

seguinte afirmação: a teologia que se faz na América Latina estádeixando de ser uma repetição de fórmulas elaboradas em outrostempos e em outros contextos, e, ao mesmo tempo, estáchegando a ser uma teologia pertinente aos latino-americanos.Por isso, hoje, preocupa tanto a teologia latino-americana,conhecida como teologia da libertação (5).Quer dizer, a teologiada libertação é uma ferramenta que os crentes latino-americanosestão utilizando na sua prática de libertação. Isso significa quevão saindo da esfera de limitação, de castração teológica, asquais lhe haviam sido impostas pelas teologias elaboradas emoutros contextos, que, certamente, puderam ser pertinente nosmesmos, mas não o são na América Latina.

Esta afirmação que acaba de ser feita e pode parecer brutal,merece uma explicação detalhada para ser compreendida. Deve-se começar recordando que, logo após a Reforma do século XVIe até as primeiras décadas do nosso século, a teologia ocidentalclássica desenvolveu um método que pretendeu combinarsucessivamente três características: as de ser dogmático,apologético e científico. Passadas as duas primeiras gerações deteólogos reformadores, o protestantismo caiu numa faseortodoxa, na qual o que mais importava era a repetição defórmulas doutrinárias que provinham dos reformadores. Querdizer, o peso da nova tradição necessitava consolidar-se diantedos embates da contra-reforma católica, organizada a partir doConcílio de Trento, teve um efeito paralisante sobre a teologiaprotestante desde o final do século XVI até o começo do séculoXVIII. Ante a necessidade de fortalecer o Protestantismo,durante o período das guerras de religiões na Europa Ocidental,tentou-se tornar inflexível e extremamente dura a doutrinaclássica dos primeiros reformadores (6)

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O pensamento da Ortodoxia protestante é dogmático emdois sentidos. Por um lado, ao aceitar acriticamente as premissasdos reformadores do século XVI, especialmente na formulaçãodos grandes símbolos (Confissão de Ausburgo, Fórmula deConcórdia, Credo de Westminster etc.), impõe sobre a reflexãoteológica um método dedutivo. Quer dizer, as premissas já estãoformuladas: das mesmas não há mais que se deduzirrigorosamente as inevitáveis conclusões que devem aplicar-se àsituação de mudança. Na realidade, o método dedutivo nateologia não leva em conta a experiência humana, a práticadaqueles que fazem teologia. Trata-se, pois, de um discurso queprivilegia certas bases (as premissas, credos confessionais) e quenão se abre às novidades da existência. Por isso mesmo, e poroutro lado, é um método que só leva à reprodução da doutrina járecebida. Frente a situações novas, a doutrina pode enfatizar umou outro elemento nela implícito, mas não é capaz de criar umnovo desenvolvimento do pensamento teológico. Daí, que não éde se estranhar, que em pouco mais de um século, o pensamentoteológico ocidental clássico (tanto Protestante como CatólicoRomano) tenha começado a dar evidências de esgotamento. Detanto se repetir e reproduzir a si mesmo, logo já não teve maisnada a oferecer. Quando começaram os primeirosquestionamentos sérios do pensamento filosófico, a teologiaortodoxa protestante (e católica) permaneceu sem resposta.

Então, para superar esta paralisia, o método teológicotornou-se apologético. Era urgente responder aos ataques doslivres pensadores à religião cristã. O pensamento de Galileu eDescartes, construindo as bases a partir das quais se desenvolveua ciência moderna, abriu um caminho no qual começaram a

transitar aqueles que fizeram uma crítica desapiedada à religião(e, por extensão, à teologia), tanto aos seus fundamentos como àssuas manifestações. Então, desenvolveu-se uma linha de defesada doutrina, quer dizer, uma orientação apologética da teologia.Esta começou a fazer uma distinção entre a teologia revelada(aquela cujas doutrinas só podem deduzir-se da revelação) e ateologia natural, que admite a necessidade de desenvolver linhasde pensamento diante de questões complexas (entenda-sepolêmicas). Para ela, como as doutrinas que resultam diretamenteda revelação não respondem diretamente aos novos desafios quese apresentam à reflexão teológica, podem completar-se emtermos da razão humana, a qual se apela para a defesa da fé. Estecaráter apologético unido ao dogmático, já mencionadopreviamente, acentua o aspecto racionalista que tambémcaracterizou a teologia ocidental clássica do século XVIII. Alémdisso, a razão não é tudo na existência, ao lado dela sedesenvolvem sentimentos, instintos, paixões, que a teologiatambém necessitava levar em conta.

O pietismo foi uma reação dentro das igrejas ante essaexcessiva racionalização da teologia. Mas, também o pietismoassumiu este caráter apologético. Por exemplo, quando JoãoWesley — fortemente influenciado pela piedade moraviana —precisou de fortes argumentos para defender a fé diante dosempiristas britânicos do final do século XVII e nas primeiras seisou sete décadas do século XVIII, e o fez recorrendo à noção deexperiência religiosa, que também pode ser comprovadaempiricamente. Além disso, o pietismo, em seu intentoapologético da fé cristã, precedeu a crítica da razão desenvolvidapor Kant até fins do século XVIII. Este, cuja formação pietistaninguém pode ignorar, de uma ou de outra maneira, recolheu

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estes argumentos, dando-lhes uma forte consistência filosófica(8). Todavia, nem sequer a apologética pietista foi suficiente pararesponder às críticas que o Iluminismo (Aufklãrung) começou afazer à fé cristã.

No desenvolvimento da cultura ocidental, o Iluminismosignificou o momento no qual a razão adquire plena autonomia.A partir de então, tem sentido o empiricamente comprovável eracionalmente incorporado ao acervo do conhecimento humano.O restante pode considerar-se fantasia e ilusão. Isso foi o queocorreu com a religião. Ao não ser possível provarcientificamente a verdade que fundamenta a fé, esta começou aser desqualificada no mundo do Iluminismo. Então, FriederichSchleiermacher exigiu que a teologia tivesse um ponto de partidacientífico. Neste sentido, baseou sua reflexão num fato queninguém pode negar: a existência do sentimento religioso (9).Portanto, a teologia passou a ser o conhecimento positivo de umarealidade histórica. Neste ponto, Schleiermacher se distancia dateologia ortodoxa: já não lhe preocupa tanto a verdade à qual serefere a fé como aquelas percepções teóricas, induzidas dosentimento religioso, do mesmo modo que as normasadministrativas necessárias para manter e expandir a vida daIgreja(10). Paul Tillich assinala que "é um conceito altamentepositivista da teologia. Eu diria que se trata de uma descriçãopositivista de algum grupo que se encontra na história e cujaexistência não se pode negar. Podem-se descrever as idéiasimportantes dentro desse grupo e as regras que aceita. Portanto,pode-se educar os jovens teólogos chamados a serem líderes daIgreja no conhecimento daquelas coisas que deverão praticarmais adiante. Neste positivismo se deixa de lado a questão daverdade" (11).

A influência de Schleiermacher no desenvolvimento dateologia no resto do século XIX e grande parte do nosso, éinegável. Teve-se que esperar até Karl Barth para que começasseuma mudança na maneira de fazer teologia no Ocidente. Em queconsistiu esta mudança? Em tomar conta não só da revelação,mas também do contexto — sitz in leben — daqueles que fazemteologia. Barth se distancia de Schleiermacher também pelo fatode que seu ponto de partida não é o sentimento religioso, massim a própria revelação. Daí, que sua teologia seja apreciadacomo a que resulta de um "positivismo da revelação". Querdizer, para quem tem fé, a revelação é indiscutível. Barth superaa insuficiência de Schleiermacher e seus seguidores (Ristch,Troeltsch, Harnack), os quais primeiro definem o cristianismocomo uma religião e depois afirmaram que era a religião maiselevada para o espírito humano. Para Barth, ao contrário, o maisimportante é falar de Deus aqui e agora. Isso o levou a dizer quefazer teologia significa ter a Bíblia numa mão e o jornal na outra:a autoridade é da Palavra de Deus (através da qual se expressa oEspírito de Deus), não de forma abstrata, mas sim na situação naqual se encontra o teólogo. A autoridade da Bíblia o levou a serum crítico radical das situações humanas: o teólogo, se quer serfiel a Deus, não pode aderir acriticamente a nenhuma situaçãoestabelecida, nem à qualquer proposta humana, sob pena deinclinar-se diante dos ídolos que não têm identidade diante doDeus vivo.

Essas maneiras de fazer teologia dominaram plenamente naAmérica Latina até vinte anos atrás, aproximadamente. Estasvias demonstram ser, além do que foi dito: axiomáticas, porquepartem de enunciados indiscutíveis; reações a desafios ou

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proposta que se dão, sobretudo, a nível ideológico; e, ademais,teóricas, porque o conteúdo da fé não se traduz em termoshistóricos (12). Nesse sentido, é possível afirmar que, em geral, ocampo de referência dessa maneira de fazer teologia é o dascategorias e dos conceitos teológicos, antes que o da matériateológica. Por matéria teológica entendo as revelações de Deusna história; as formas sociais organizadas e objetivas da vida defé, entre as quais se destacam aquelas de caráter eclesial; e entreoutras, as opções históricas que assume a comunidade de crentesfrente a desafios políticos, econômicos, sociais e culturaisconcretos.

Assim, pois, chegou a ser evidente no decorrer das últimasdécadas (como se também não o houvesse sido anteriormente, sóque não se teve consciência disso) que essa teologia repetidora ereprodutora de fórmulas não era capaz de responderpertinentemente aos desafios que a situação latino-americanacolocava para a fé cristã. A reiteração freqüente e obstinada defrases teológicas patenteadas em outros lugares e em outrostempos que não dava conta da fé cristã, num momento em quecomeçavam a irromper os setores populares como os grandes efuturos agentes decisórios da história latino-americana. Essamaneira de fazer teologia mostrava também sua índoleanacrônica pelo tom defensivo (e, às vezes também,inapropriadamente agressivo) que assumiu diante dasferramentas ideológicas utilizadas por esses setores populares nacolocação de suas reivindicações e, ademais, o que menoscontentava aos espíritos mais alertas, era seu tom abstrato, tãoevidente e particular.

As comunidades cristãs não se guiam felizmente — graças

a Deus — pelas teologias dominantes. O espírito de Deus temseus meios para levar o povo e as comunidades de crentes aações que, nem sempre, os aparatos hierárquicos e seusinstrumentos doutrinários podem controlar. Na América Latina,uma parte das comunidades cristãs, minoritária todavia, mas quecresce constantemente e muito significativa, começou a darrespostas novas e imaginativas aos desafios dos últimos tempos.Chegou a ser patente que as velhas maneiras de fazer teologiaeram anacrônicas. Contudo, ainda predominavam nos currículosde muitas instituições de ensino teológico. Deveriam sermudadas, mas sem perder o rigor científico contido naexperiência de fazer teologia. Não se tratava de diminuir essasexigências, mas justamente de responder a elas.

Responder a novos desafios históricos não significaabandonar totalmente a tradição da teologia que se tem recebido.Significa, em primeiro lugar, procurar ser fiel à ação do Espíritode Deus entre as igrejas. Por que repetir velhas fórmulas se arealidade eclesial demonstra que já não são mais pertinentes? Porque opor-se a essas manifestações de vida eclesial promovidaspelo Espírito Santo, repetimos, usando argumentos que nada têma ver com nossa situação atual? Mais ainda, se o sujeito socialque irrompe na vida das igrejas é diferente daqueles grupos emcujo contexto surgiram essas doutrinas, não estará se cometendoum grave erro ao se privilegiar àqueles grupos em detrimento dosque agora procuram ser fiéis ao Espírito em nosso tempo?

Isto é sumamente importante quando se considera que estesujeito social corresponde, muito mais que outros, àqueles que,segundo os Evangelhos, são herdeiros do Reino de Deus. Comefeito, no presente contexto latino-americano, são os pobres, os

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setores populares que irrompem preponderantemente no processohistórico. Por séculos estiveram submetidos, mas agora queremdar sua palavra, e nessa tentativa chegam a desestabilizar rígidosesquemas de segurança nacional, administrados por ferrenhosaparatos de controle.

Esses setores também invadem as igrejas. Já não é possívelque essas sigam mantendo ideais de estilos de vida quecorrespondam às classes médias, com as correspondentesteologias que os legitimam. Se somos coerentes com amensagem de Jesus, a irrupção dos pobres na história é sinal daproximidade do Reino (Lc 4.17-22). Já não é mais tempo parateologias que, ainda que oportunas em outras circunstâncias, nãosão mais apropriadas para a nossa. Essa mudança requer, por umlado, o rigor próprio com o qual deve ser levada adiante a tarefateológica e, por outro lado, a própria realidade eclesial em quevivem as igrejas. Uma nova pastoral emergente exigereformulações teológicas. Elas devem libertar a fé para que seexpresse segundo as exigências que surgem de nosso tempo noespaço latino-americano. E a teologia deve participar nessalibertação, que resulta dessa reorientação.

IIAssim, pois, na América latina, pela graça de Deus que nos

impele a esta mudança, percebe-se que — entre tropeções, comerros e dores, com esforços e empenhos, procurando serrealmente fiéis às exigências do Deus Trino — está se realizandoessa libertação da teologia. Mas seria errôneo pensar que ela nãotem nada a ver com o que ocorre na vida das igrejas. Tal como odissemos anteriormente, uma teologia frutífera para o povo de

Deus, que confirma a sua fé e lhe ajuda a descobrir novaspossibilidades para ir concretizando o Reino, é aquela que sedesenvolve a partir da prática eclesial desse mesmo povo. Se ateologia está distante da prática do povo (especialmente daquelessetores do mesmo que atuam dando testemunho do Reino deDeus) certamente não vai ser proveitosa para este povo. Ou seja,se a teologia da libertação é válida, isto se deve ao fato de que,tendo como fonte a memória da revelação de Deus à Igreja,contida na Bíblia, demonstra ser própria do povo que irrompe nahistória da América Latina, essas massas pobres, herdeiras doReino prometido por Jesus.

Ali é onde se encontra, em primeiro lugar, a indicação dareorientação da tarefa teológica latino-americana: a repetição defórmulas era uma evidência, por um lado, de que a teologia queessas fórmulas expressavam não surgia da experiência de fé dopovo. Ou melhor, essa vivência tinha que se ajustar às indicaçõesdaquelas fórmulas. E, por outro lado, significava, emconseqüência, que a prática da fé se orientava segundo pautasestranhas ao povo latino-americano. Não causa surpresa, então,quando se percebe que os projetos históricos de sociedade, maisou menos explícitos naquelas formulações teológicas, tenhamsido mais aceitas para as minorias dominantes da América Latinado que para as classes populares. Agora, ao contrário, a situaçãocomeçou a mudar. Com efeito, apesar da carga secularizante quecaracteriza o projeto modernizador impulsionado pelas minoriasno poder, o povo latino-americano segue se afirmando comoprofundamente religioso. Sua prática de fé foi promovendo umprocesso evidente de renovação eclesial que, por um lado,manifesta-se no surgimento de formas de ser igreja popular(quando antes a vida eclesial se caracterizava pelo predomínio

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das classes dominantes, ou dos setores médios da sociedade)enquanto que, por outro lado, percebe-se que essas comunidadescristãs que expressam essa nova maneira de ser igreja seincorporam a vastos movimentos — também de origem popular— que tentam plasmar na história, sociedades maisdemocráticas, mais participantes e mais justas.

É a partir desse novo sujeito social que irrompe nas igrejase no contexto de nossos esforços pela construção do Reino deDeus, através dessa luta pela justiça e democracia, que sefomenta essa orientação da teologia que a leva para sualibertação. Com efeito, em vez de responder aos novos desafioshistóricos com receitas e argumentos anacrônicos, ascomunidades eclesiais se atrevem, sempre levando em conta amensagem bíblica, a oferecer propostas inéditas — ousam fazerouvir sua voz, a partir de sua própria perspectiva.

Tem sido assinalado (13) que as rupturas sócio-eclesiais semanifestam em rupturas teológicas. Mas, por sua vez, taisrupturas sócio-eclesiais refletem profundos processos detransformações históricas. As comunidades cristãs não podemsubtrair-se a essas modificações. E a teologia, como "atosegundo", segue este desenvolvimento. Ela significa umainovação importante na tarefa teológica latino-americana: entreaqueles que manifestam esta atitude, o verdadeiro teólogo não équem aprendeu o ofício teológico, mas o povo. É este quem estádemonstrando perceber com maior profundidade aspectos novosna reflexão teológica. Sua percepção, muitas vezes, é inculta,sem perceber todas as conseqüências dessa nova realidade queestá apreendendo. É, justamente, ao que possui as ferramentas eas técnicas necessárias para desenvolver o saber teológico, que

corresponde aprofundar essas novas visões que entusiasmam opovo e o motiva para atuar, a partir de como entende a realidade,numa perspectiva de fé. O teólogo de ofício a não já não é maisum mestre, mas sim um intérprete das percepções populares. Jánão é um líder, mas um servidor. Cabe falar dele, segundoGramsci que considerava os intelectuais que fazem uma opçãopelos setores populares: em vez de serem mercenários dosgrupos no poder, são orgânicos desse sujeito social integradopelas classes pobres da América Latina. Como tais, têm que estara serviço dos setores menos privilegiados da sociedade para quepossam compreender com clareza (e, portanto explicá-las), asrelações e mecanismos que levaram esses grupos sociais, numadeterminada situação, a alcançar estas percepções teológicas,econômicas, sociais e políticas os motivam a lançar-se numdeterminado tipo de ação.

Creio que um exemplo indiscutível deste tipo de teólogo naAmérica Latina foi Mons. Oscar Romero. Enquanto teve vida,com a coragem própria daqueles que têm fé, buscouincansavelmente explicar, através de suas homilias dominicais,transmitidas pela rádio, quais eram os problemas que afetavam opovo e as causas dos mesmos. Se teve a audiência que se lhereconhece é porque, antes de dirigir-se ao povo, soube escutá-lo.A partir da percepção dos problemas do povo, e sempre desdeuma perspectiva dos pobres de seu país, levou uma palavra a suagrei, que se reconheceu na mesma. Quer dizer, Mons. Romeronão falou ao povo de fora do seu ambiente, ou de uma situaçãode superioridade. Colocou-se a serviço de sua gente, ajudando-aa compreender como estavam ligados os distintos componentesda complexa circunstância que lhes cabia viver (14).

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Essa reflexão teológica, precisamente por ser encarnada emcontextos muito concretos, não tem a pretensão de ser válida urbiet urbi. É consciente não só de suas limitações, mas também deseu caráter relativo. Daí que não se pretende que se repita e sereproduza a mesma, acriticamente, em outras situações. Querdizer, é um pensamento que está libertado de toda pretensão deabsoluto. 15 Por isso mesmo, dada a consciência de suarelatividade, tem o compromisso de dar luz a este contexto, noqual vai tomando forma, ou seja, não pode desentender-se dasdiversas dimensões deste contexto. O teólogo está a serviço dacomunidade eclesial, mas esta, ao mesmo tempo, não está isoladado mundo (Jo 17.11). De diferentes maneiras participa noemaranhado tecido que compõe a realidade. Esta não étransparente, mas possui uma densa opacidade. A explicitaçãodas manifestações da fé exige que se coloquem a claro asrelações entre essa fé e seus condicionantes. Para isso, énecessário, por um lado, compreender a índole dinâmica eflexível da realidade (seu caráter dialético): enquanto que, poroutro lado, impõe-se analisar — com o instrumental apropriado— os diversos elementos dessa realidade.

Isso leva a examinar indiscutivelmente a relação que existeentre teologia e ciências sociais, e que é própria da naturezarelativa da teologia. Por isso em nosso tempo é impossível fazerteologia sem entrar em diálogo com as ciências sociais. Estaexigência que está explícita na teologia latino-americana (16), émuito mais radical do que a indicação de Karl Barth de fazerteologia com a Bíblia numa mão e o jornal na outra. Com efeito,a leitura diária de notícias não é suficiente para construir oaparato crítico necessário para relativizar a reflexão teológica.Isto se obtém através da utilização das ferramentas que nos

brindam as ciências sociais. Isto não quer dizer que a teologia sesubmeta àquelas, mas sim meramente que — na sua tentativa deser coerente com aquela realidade na qual se desenvolvem seusargumentos e na qual Deus atua — estabelece com essas ciênciasuma relação dialética, uma tensão constante. Não é umantagonismo, mas uma reciprocidade que procura acomplementaridade. Não é uma relação na qual cada termoprocura sua justificação (nem a fé, nem a igreja e nem asociedade com seus processos inerentes, necessitam justificar-se), mas de tensão flexível, mediante a qual se busca determinarmodalidades e limites para os termos dessa relação.

Graças a esta relação com as ciências sociais, a teologiaque se faz nesta região do mundo tem-se libertado da ilusão deque a fé pode chegar a ser explicitada sem recorrer à mediaçõessócio-analíticas. Mas estas, por sua vez, necessitam serrecompostas numa síntese para a qual há dois conceitos chaves:um é o de estrutura, que se refere à ordem e a organização daspartes que constituem uma totalidade. Ou seja, a análise não nospode levar a afirmar que a realidade é uma soma de partesseparadas, mas um conjunto disposto de uma maneira que deveser aclarada. Esta ordem está intimamente relacionada com aorientação que caracteriza o uso do poder na sociedade poraqueles que dispõem do mesmo. Tornar clara a estrutura darealidade significa lançar luz sobre o exemplo do poder, fonteconstante de tentação (cf. Mt 4.1-11; Ec 4.1-13). A questão dopoder nos coloca no centro da teologia, porque o próprio Deus époder, mas frente a Ele se levantam os poderes que se opõem àsua vontade, esses mesmos que constituem a realidade dopecado; que erguem ídolos (falsos deuses) que pervertem efascinam aos povos. Em nosso próximo capítulo, estender-nos-

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emos mais ainda sobre a importância da análise das estruturas edo (ou dos) poder(es) que as administram e mobilizam.

O segundo conceito que desempenha um papelfundamental nesta reconstituição sintética dos elementos quecompõem a realidade, é a dialética. Por este conceito se querindicar a inter-relação dinâmica que compõe o tecido vivo destarealidade. Nela seus componentes negam-se e se afirmammutuamente, e através destas tensões vão criando novassituações, inovando na história. Uma divulgação inapropriada doconceito de dialética em manuais escolares tem levado a falar de"determinismo dialético". Isto supõe reduzir a tensão existenteentre os termos da realidade a uma série de relações mecânicas,de causa e efeito. Isto não é dialética. Esta, depois de teranalisado as partes que integram a estrutura, entende que estaestrutura é mais importante do que as partes que a compõem. Porisso torna-se fundamental tentar perceber o sentido histórico (nãohá outro) dessa realidade. O mesmo resulta da tensão(contradição-negação-superação) que estabelecem as partesnessa totalidade. Tensão que evidencia como os distintoscomponentes da realidade relacionam-se diversamente entre sipara fazer prevalecer seus interesses.

As comunidades cristãs encontram-se no meio destascontradições estruturais. Sua prática eclesial pode contribuir parao avanço da justiça ou para que se firmem os poderes do"príncipe desse mundo". Para que as opções que tomam sejam asmais fiéis possíveis ao Evangelho de Jesus, a teologia lhes serve,através de indicações e sugestões; mas como saber que essateologia corresponde à marcha da comunidade cristã em direçãoao Reino? A teologia latino-americana enfatiza, como resposta a

esta pergunta, a necessidade de que as orientações teológicassejam verificadas através da prática eclesial. Nascida desta, areflexão teológica volta à sua origem. Só que, no processo dosacontecimentos, a prática eclesial que levou à formulação decertas perguntas, quando as mesmas lhe são devolvidas com asrespostas elaboradas, mediante a reflexão teológica, já não seencontrar no mesmo ponto em que estava ao colocar suasinterrogações. A ação a levou a outro lugar. As respostas querecebe lhe servirão para ver se correspondem ou não àsexperiências que, entretanto, têm vivido, se lhe ajudam acompreender melhor ou não, se lhes permitem seguiraprofundando ou não sua compreensão da vida de fé. Se ateologia lhe permite seguir avançando, a mesma prática eclesialverifica a validade dessa reflexão. Se assim não ocorre, entãoaparece a necessidade de corrigir a argumentação teológica, apartir das lições que a experiência vivida ensina à comunidade. Ateologia, que está a serviço daquela, vê-se libertada — uma vezmais — do triste ofício que consiste em repetir conceitos e frasesinadequadas da realidade.

Como se pode apreciar, a distância entre este modo defazer teologia, e aquele que nos foi imposto, é enorme. Um estáoposto ao outro. Isto se nota ainda mais claramente quando seconsidera a maneira como uma e outra buscam comunicar suaspercepções da verdade. A teologia que recebemos como herança,foi caracterizada por seu caráter perscrutador, idealista. Suamensagem era imposta: era difícil impugná-la.

Ao contrário, a teologia latino-americana comunica porsuas indicações simbólicas: sua linguagem não é digital, masicônica, e pretende suscitar novas percepções no sujeito

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teológico popular. Antes de prescrever o que pensar ou o quefazer, sugere novos símbolos, deixando ao povo a liberdade dedecidir sobre como orientar sua ação.

Quer dizer, mais uma vez, a teologia latino-americanavolta a reiterar, no plano da comunicação, seu ponto dereferência constante: é o povo de Deus, o laos. Nisto também suasubstância, que não é teórica, mas eclesial. Com isto, ademais,procura ser coerente: a teologia não pode ser livre se o povo, queé o seu sujeito, não caminha para a liberdade (para onde está oEspírito, diria o Apóstolo Paulo — 2 Co 3.17) e se, também, nãocontribui para que povo crie alento nesse caminhar, para quenessa caminhada renove suas forças. Seu caráter científico —paradoxalmente está intimamente relacionado com sua dimensãopastoral. Por isso, é possível afirmar que renovação pastoral erenovação teológica são inseparáveis. Mas isto já nos conduz aotema do próximo capítulo.

Notas

1. A partir da obra de Friedrich Gogarten, vários teólogos e filósofoscomeçaram a mostrar que nossa época podia ser considerada culturalmentecomo a da "morte de Deus". Entre eles, ressaltamos teólogos tais comoHamilton, Van Buren, Altizer, e filósofos como Daniel Vahanian. No planocorrespondente ao impacto deste processo sobre a sociedade, a religião e, maisparticularmente, a igreja, deve levar em conta o livro muito conhecido deHarvey Cox: A Cidade Secular, assim como também o do ex-bispo anglicanoJohn T. Robinson, Honesto para com Deus.

2. A Sociologia funcionalista de Talcott Parsons foi a que insistiu naimportância social do processo de secularização. A racionalização(modernização) do comportamento, a institucionalização da mudança, e a

adoção de pautas decisórias influenciadas pela necessidade de eficácia antesque pelo peso dos valores tradicionais, são elementos que caracterizamaqueles que se integram ao processo de secularização. Para estes, segundo ofuncionalismo sociológico, a religião conta cada vez menos. Na AméricaLatina, estas idéias tiveram um ardente defensor no sociólogo ítalo-argentinoGino Germani. Cf. especialmente seu livro: Politica v Sociedad en una Epocade Transición , Buenos Aires, Paidos, 1962.

3. Cf., sobretudo, sua obra mais conhecida: Teologia da Esperança.

4. Por isto, Gustavo Gutiérrez, seguido por outros teólogos latino americanos,tem insistido que a "teologia é um ato segundo". George Casalis, o teólogoprotestante francês mais próximo à teologia latino-americana, inspirado porGutiérrez, disse em seu livro Las Buenas ideas no Caen del Cielo, San José daCosta Rica. DEI. 1980, que em toda a história da reflexão teológica cristã seassinala que as formulações teológicas não precedem à prática eclesial(quando são pertinentes), mas é a prática eclesial o que constitui o ponto departida e a matéria de referência para essas reflexões.

5. A teologia da libertação chegou a ser motivo de contínuos ataques pelosque administram e/ou aderem à práticas de dominação. Um poderoso projetocontra a mesma foi lançado pelo Instituto de Religião e Democracia, entidadeestadunidense, fundada em 1980, de claro cunho conservador. Sobre esteInstituto, ver Ana Maria Ezcurra, La Ofensiva Neoconservadora. Las Igresiasde U.S.A. y la Lucha Ideológica hacia América Latina, Madrid, IEPALA,1982.

6. A respeito escreve Paul Tillich: "(A Ortodoxia foi) a maneira na qual seestabeleceu a Reforma como forma de vida e de pensamento eclesiásticos,uma vez que finalizou seu movimento dinâmico. E a sistematização econsolidação das idéias da Reforma e se desenvolveu em oposição à Contra-reforma". In Pensamiento Cristiano y Cultura Actual, Buenos Aires, LaAurora. 1976, Vol. I: De los Origenes a la Reforma, p. 289.

7. O livro de Paul Hazard: La Crise de la Conciencia Européene: 1680-1715,Paris, 1935, dá conta de maneira magistral desse processo.

8. Essas críticas à razão, por exemplo, aparecem esboçadas em algumas obras

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de João Wesley. Por exemplo, em "La Imperfección del ConocimientoHumano", e em "El caso de la Razón Imparcialmente Considerada". Cf.Thomas Jackson: The Works of the Revd. John Wesley, A. M., with the LastCorrections of the Author, Vol. VI, 3rd Edition, London, Wesleyan —Methodist Book-Room, 1829-1831.

9. Cf. Friedrich D. Schleiermacher, Discursos sobre la Religión , Berlim,1799.

10. Friedrich D. Schleiermacher, Glaubenslehre, Berlim, 1821.

11. Paul Tillich, Op. Cit., Vol. II, p. 421.

12. Cabe aqui uma exceção, por outra parte muito especial, no pensamento deKarl Barth. F. Wilhelm Marquardt sustém que ao escrever a primeira versãode seu Comentário à Epístola aos Romanos, Barth tinha como referência osacontecimentos da revolução bolchevista de 1917. Por isso, rebela-se contra ateologia acadêmica, por considerá-la a-histórica, sem vontade para atender aoque sucede na história, campo de ação do Espírito de Deus. Quando Barthtem, então, que traduzir "ressurreição" na linguagem do seu tempo, escreveque ressurreição é revolução (e, em 1918, isto era uma alusão direta einevitável à revolução soviética). Mas isto é muito matizado na 2ª ediçãodesse livro, em 1922. Cf. de Marquardt, Teologia e Socialismo. L'esempio deKarl Barth, Milano, Jaca Book, 1974, pp. 147-165. Cabe agregar, entretanto,que esta ousadia de Karl Barth abriu caminho para novas empresas teológicas,entre as quais também se inscreve a teologia latino-americana da libertação.

13. Veja de J. B. Libânio, As Grandes Rupturas Sócio-Culturais e Eclesiais,Petrópolis, Vozes/CRB, 1981, pp. 147-167.

14. Veja de Antonio Gramsci, Gli Intelectualle e L'organizzazione dellaCultura . Sobre a noção de "bloqueio histórico", de Hugues Portelli, Gramsciet le Bloc Historique, Paris, PUF, 1972.

15. Sobre o caráter relativo do pensamento teológico, veja de Juan LuízSegundo, Liberación de la Teologia, Buenos Aires, Carlos Lallé, 1975.

16. Veja, entre outros, de Hugo Assmann, Opressión-Liberación: Desafio a

los Cristianos, Montevidéu, Tierra Nueva, 1971 e Clodovis Boff, Teologia ePrática: A Teologia do Político e suas Mediações, Petrópolis, Vozes, 1978.

17. Esta distinção entre a linguagem icônica (própria da teologia) e a digitalfoi introduzida por Juan L. Segundo em seu livro El Hombre de Hoy anteJesús de Nazaret, Madrid, Ediciones Cristandad, 1982, Vol. I, pp. 179-213. Aimportância da linguagem icônica pode ser vista também na obra de GustavoGutiérrez, Beber en su Propio Pozo, Lima, CEP 1983; e nos livros de CarlosMesters, tão ricos em metáforas e iluminações poéticas. Ainda maisclaramente se pode observar nos trabalhos teológicos que, nos últimostempos, tem elaborado Rubem Alves, por exemplo, La Teologia como Juego,Buenos Aires, La Aurora, 1982 e Creio na Ressurreição do Corpo, Rio deJaneiro, Tempo e Presença/CEDI, 1982.

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CAPITULO II

Modelos Bíblicos de Pastoral (1)

Um dos conceitos que se repete com freqüência nopensamento teológico latino-americano, dos últimos quinze anos,é o de "pastoral". Esse uso começou a generalizar-se em círculoscatólicos desde o princípio da década dos anos 60, quando, sob ainfluência de Emile Pin e de François Houtart, começou-se arefletir e a discutir sobre a função da Igreja na sociedade, suasestratégias e técnicas para dar a conhecer o Evangelho. Foidurante os anos 60 que se tornou freqüente falar de "pastoral deconjunto", ou de "pastoral de elites", ou de "pastoral de massas",etc. O Concílio Vaticano II ressaltou a importância do conceitoatravés de seus textos mais famosos: a declaração pastoralGuadium et Spes, onde se examina a função da igreja no mundomoderno. A partir de então, a reflexão sobre o tema adquiriuaspectos mais amplos, agora também se fala de pastoral popular,pastoral latino-americana, pastoral operária, pastoral de periferiasurbanas, pastoral indígena, pastoral da terra etc. (2).

Em todos estes casos, o termo tem um uso claro e definidono contexto da prática eclesial da Igreja Católica Romana. Osentido do vocábulo se refere à forma como a Igreja cumpre sua

função, seja em termos gerais (pastoral de conjunto) ouparticulares (pastoral da terra, pastoral indígena, pastoral dajuventude, isto é, referida a situações e/ou grupos sociaisespecíficos). A pastoral, pois, no contexto do pensamentocatólico latino-americano, refere-se à ação coletiva do povo deDeus, da igreja, cuja hierárquica principal é o bispo. A definiçãode uma linha de pastoral, no catolicismo, inclui pelo menosquatro elementos: a situação social, analisada através daperspectiva que surge da prática do povo crente; a memória dafé; a comunidade eclesial e a ordem do ministério que encontrasua culminância hierárquica no episcopado. Através da inter-relação dinâmica destes componentes, a igreja (universal,nacional ou particular) elabora suas linhas de ação.

Partindo de uma leitura dos sinais dos tempos, formulam-se planos de ação, estratégias e táticas, que tendem a tornar cadavez mais atual e funcional a ação de Deus na história. Nessesentido, toda a "pastoral", pelo menos no catolicismo tem umelemento que tende para o "aggiornamento". Procura fazer comque a igreja participe de maneira significativa (de acordo com oEvangelho e com o magistério) na história que lhe correspondeviver. Pretende assim, superar os possíveis anacronismos da vidaeclesial.

Esta compreensão do termo "pastoral" não se encontra noprotestantismo. Para o pensamento das igrejas que surgiram apartir da Reforma do século XVI, falar de "pastoral" temsignificado, principalmente, referir-se à função do pastor. Isto é oque surge da análise de currículos acadêmicos nos Semináriosprotestantes, que dão lugar em seus programas de estudo àdisciplina chamada "teologia pastoral". A diferença entre o

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pensamento católico e o protestante é grande neste ponto: oprimeiro indica uma comunidade, enquanto o segundo umindivíduo. O primeiro refere-se a um conjunto de ministérios,enquanto que o outro a um carisma particular.

Não obstante, há um ponto que se deve perceberimediatamente: os reformadores do século XVI nunca falaram de"pastoral”, quando muito, referiram-se ao ministério do pastor esua ordem própria. É óbvio que, com o correr do tempo,produziu-se no pensamento protestante uma redução do conceito,que foi ficando limitado à pessoa (ou à figura, como se queira)do ministro ordenado. A centralidade deste ofício nas igrejasprotestantes (clássicas, livres e/ou pentecostais) em mais de umsentido choca-se com o conceito do sacerdócio universal doscrentes, que é uma das maiores contribuições do pensamento daReforma para o desenvolvimento da teologia.

Este ato paradoxo resultou numa hipertrofia do ministérioexercido pelo clero em cada congregação protestante. Ao invésde aceitar na comunidade local a diversidade de carismas e dedons, o que supõe taticamente a diversidade e pluralidade deofícios na igreja, ocorreu que o ministério da Palavra protestantecomeçou a acumular responsabilidades. A comunidade que, emprincípio era concebida como um grupo no qual se exercia ademocracia e a participação, passou a ser gradualmente centradano pastor. Este passou a ser o modelo da vida cristã, o paradigmapara o laicato. Esta tendência, fortemente arraigada noprotestantismo, influi para que a compreensão da pastoral sigafocalizando a figura do "pastor", ou seja, quem tem aresponsabilidade do ministério da Palavra de Deus.

Quando muito, no Protestantismo, aqueles que procuraramuma aproximação mais global às questões da teologia prática,têm sido também aqueles que têm buscado uma compreensãomais eclesial (que procuram levar em conta a assembléia dosfiéis) da função da Igreja. Nesse sentido, seu enfoque da questãoé menos clerical.

Na América Latina, Emílio Castro tentou abrir um caminhoneste sentido com a série de conferências que pronunciou em SãoJosé da Costa Rica, em 1972 (3). Não obstante, ainda nelas pode-se perceber a importância que tem a referência "pastoral" aoclero. Ainda que essa não tenha sido a intenção de Castro, o pesoda figura do pastor (ministro ordenado para a pregação daPalavra, a administração dos sacramentos e a condução dasatividades da organização dos fiéis) condiciona claramente seuconceito de pastoral.

Nos diversos países da América Latina, observa-se entre osevangélicos um interesse crescente por aqueles problemas que serelacionam com a organização coletiva das igrejas. Por exemplo,no Brasil, há alguns intentos de renovação e de reformulação dapastoral protestante. Entre eles, um dos mais significativos é o doCentro Ecumênico de Documentação e Informação (CEDI), queprocura prestar um serviço às igrejas através do programa do seusetor sobre "Pastoral Protestante", formando ministros e leigos,visando claramente tornar mais presente a realidade da igreja nasociedade brasileira. Ademais, cabe ressaltar o CentroEvangélico de Estudos Pastorais (CEBEP), que tem relação como CELEP (Centro Evangélico Latino-Americano de EstudosPastorais), cuja sede está em São José da Costa Rica e, em cujomarco programático, Emílio Castro fez a contribuição

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mencionada anteriormente. Também no Brasil, referindo-se àvida e missão da Igreja Metodista, o bispo Paulo Ayres Mattosindicou que, entre as congregações de sua denominação, podem-se denotar três modos ou maneiras de ser: um de caráterconservador, no qual predomina as orientações que provêm desetores teologicamente fundamentalistas; outro de tipo neo-conservador (sua tendência é carismática); e outro liberal-progressista (4). O bispo Paulo Ayres não fala, nessa ocasião,especificamente de "pastoral", mas há muitas pessoas que,baseando-se nos termos desta reportagem, utilizam o termo paramencionar como a igreja pretende cumprir sua função nasociedade, de acordo com uma ou outra maneira.

Não obstante essas indicações, parece existir — pelomenos no Brasil (em outros lugares da América Latina não sepercebe de forma tão clara, como neste país, uma preocupaçãopelo assunto) — certa confusão entre os evangélicos quanto aouso do conceito de pastoral. Por exemplo, afirma-seconstantemente: "a pastoral protestante está em crise", outros,por outro lado, afirmam: "O problema da pastoral protestante équestão de linguagem". Agora, tendo em conta o que foiindicado previamente, sobre a relação estreita que existe noProtestantismo entre o conceito de "pastoral" e o conteúdoclerical que se dá a este termo, e, tratando de relacionar isto comalgumas das afirmações que acabamos de citar, parece-nosevidente que o uso do termo "pastoral" no protestantismo não éunívoco. E, portanto, não é claro. Há a tendência de pensar que acrise é dos pastores e não das igrejas. Ou também, que oproblema consiste na falta de comunicação que, muitas vezes, seobserva entre o clero e os membros de uma congregação.Respeitando a importância indubitável destas questões, cremos

que chegou o momento de reconhecer que a vida da igreja nãopode articular-se só em torno da função do pastor, do clérigo.Então, surge a necessidade de se levar mais em conta opensamento católico, que enfatiza a dimensão coletiva,comunitária, da ação pastoral como um conjunto de atividadespromovidas por diversos ministérios, que procura harmonizar-see se complementar visando dar um testemunho mais integrado doEvangelho e do Reino de Deus no mundo. Esta concepção daigreja não somente é mais bíblica, mas — e precisamente porisso mesmo — é mais acorde com a doutrina do sacerdóciouniversal dos crentes, que foi tão firmemente sustentada pelosreformadores do século XVI. Ou seja, o conceito de pastoral nãopode reduzir-se a um só ministério, a um só carisma: é algo que,de alguma maneira, relaciona-se com toda a vida e a missão dacomunidade dos crentes.

Tendo em conta esta afirmação, a pergunta que se coloca é:tem o Protestantismo (as Igrejas Evangélicas) noção de pastoral?Pode ser que na prática de algumas delas, como o demonstrou oBispo Paulo Ayres, haja implícitas linhas de ação pastoral,especialmente no que se refere a estratégias e táticasevangelizadoras orientadas para o crescimento numérico dasigrejas. Essa carência pode levar alguns a falar de "crise dapastoral protestante" entre aquelas igrejas que crescem menos.Mas, como se sabe, crise supõe não só um juízo, mas tambémoportunidade, circunstância na qual são possíveis asreformulações, os novos começos. Daí entendermos que asituação pode ser considerada positiva.

Agora, no contexto do Protestantismo, as propostaspastorais não podem ser feitas dando prioridade à situação social,

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à conjuntura na qual se encontra a Igreja. A referência àsEscrituras também é necessária e tão importante quanto a análiseda realidade histórica e a partir da práxis eclesial. Neste capítulo,não vamos analisar a situação social atual, que merece umaanálise muito mais profunda do que a que podemos fazer agora.Vamos nos limitar à reflexão bíblica: existem no NovoTestamento elementos que nos ajudem a compreender comoorientar a ação da igreja na sociedade? Quais são as formulaçõesteológicas que devemos levar em conta para atuar pastoralmentecomo povo de Deus?

Responder a estas perguntas, em primeiro lugar, supõesaber o que é ser pastor, e em que níveis da realidade tem que sedar a função do pastor, segundo a Bíblia. Dito isto, assinalamosas limitações deste texto: neste capítulo só se pretende tratar oassunto do ponto de vista bíblico. Para situar-se na totalidade doproblema dever-se-ia prestar atenção à situação da vida eclesial,as propostas de orientação para o povo, ao qual se quer servir nonome de Cristo. Portanto, este capítulo não responde totalmenteà questão do que significa a pastoral; apenas prepara novasetapas que, necessariamente, deverão ser cobertas no resto dotexto.

Pastor — PastoralQuando Javé aceitou a oferenda de Abel (Gn 4.3-5), teve

bons olhos para o sacrifício do pastor, mas não para o dolavrador. Mais adiante, no relato do Pentateuco, elege-se o povode Israel entre as nações da terra para dar testemunho da vontadede Deus às nações: é um povo nômade, pastoril, de descendentesde pastores. Com o passar dos anos, chegou a cantar seu louvor a

Javé, exaltando-lhe e dizendo: "O Senhor é o meu pastor". Estaconcepção sobre o povo de Deus, de uma ponta a outra da Bíblia:no Novo Testamento, o autor da Epístola aos Hebreus (cf. cap.11) fala da grei de Deus como um povo peregrino.

Ser pastor em Israel é ser fiel à vocação do povo. Daí, queos dirigentes da nação eram chamados pastores: Jeremias, porexemplo, critica os maus pastores de Israel, culminando com umdiscurso através do qual foi fustigando, sucessivamente, a famíliareal de Judá, aos reis Joacaz, Joaquim e Jeconias (cf Jr 21.11-23.2). Os dirigentes do povo têm a vocação de ser fiéis a Javé;quando isto não ocorre, então, só Deus é o pastor. Ele reunirá opovo e de uma maneira ou de outra cumprirá com seu desígniohistórico. A tarefa pastoral não tem uma dimensão só teológica:também é política. Com isto queremos dizer que o papel pastoral,pelo menos para os relatores dos escritos vétero-testamentários,tinha a ver diretamente com aqueles níveis da realidade sobre osquais incide decisivamente o jogo de poderes que existem numadada situação. O pastor, para os profetas de Israel, é quem tem aresponsabilidade de conduzir o povo, tarefa que segundo se sabe,é eminentemente política Ou seja, que o pastor de Israel não erajulgado negativamente por ser político e atuar politicamentecomo pasto, mas por prescindir de fazê-lo.

Isso se descobre, também, na mensagem do profetaEzequiel: no capítulo 34 de seu livro, refere-se aos pastores deIsrael como dirigentes políticos: têm errado porque "não têmfortalecido aos débeis, nem atendido aos enfermos, nem curadoas feridas. Não têm reunido o rebanho, a ovelha desgarrada, nembuscado a perdida. Ao contrário, vocês (os reis e dirigentespolíticos de Israel) têm-lhes maltratado com violência e dureza.

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Elas têm-se dispersado por falta de pastor, e se têm convertidoem presa das feras. Minhas ovelhas têm-se perdido por todos oscerros e pelas altas colinas do país, sem que ninguém as cuide eas busque (...). Logo eu farei surgir à frente delas um pastor.Então eu, Javé, serei Deus, e meu servo Davi será chefe no meiodeles (...) Saberão que eu sou Javé, quando romper seu jugo e oslibertar de seus opressores" (Ez 34.4-6; 23.24; 27b). Este textoera lido integralmente por ocasião da celebração anual dadedicação do templo, o que desde o tempo do retorno do exíliobabilônico, tinha lugar em Jerusalém durante o inverno. Nestecontexto (cf. Jo 10.22) Jesus proclamou seu discurso afirmandoser o Bom Pastor (Jo 10.1-8). Deste modo, Jesus coloca suaprática num espaço que é teológico e político, porque afirma sero guia de todo o povo (Jo 10.16), cujo propósito é que se forme"um só rebanho, com um só pastor". Essa é a meta do que, nalinguagem dos Evangelhos Sinóticos, chama-se "o Reino deDeus", visão messiânica definitiva.

Em Jesus, pois, a função do pastor não é só religiosa: tem aver com o propósito último de Deus que, nas palavras do autorda Epístola aos Efésios, é "reunir sob uma só cabeça"(anakefalaiosis), Cristo, tanto os seres celestiais como osterrestres (Ef 1.10). É uma função que tem dimensão cósmica,mas também histórica. Na linguagem da época, os seres"celestiais" são os poderes: religiosos, do conhecimento, ospolíticos, etc. O propósito de Cristo é englobar, sob suasoberania, todas as esferas da existência: as pessoais, as sociais,as econômicas, as políticas, as culturais, assim como também asque têm a ver com a vida religiosa dos seres humanos.

A pastoral, pois, no pensamento do Novo Testamento,

define-se a partir de Jesus. Hoje, segundo o Evangelho de João,sua presença está dada pela ação do seu Espírito (cf. Jo 15.26-27;16.12-15: o Parakletos que se evidencia na luta/missão do povofiel) e significada pela ação deste povo, que forma seu corpo(Rm 12.5; 1 Co 12.27).

Isto nos leva a dizer que essa relação entre o Espírito e opovo constitui hoje a realidade pastoral que deve se discernir e seindicar. A pastoral, pois, já que Cristo, por seu Espírito, está nocorpo que é a Igreja, tem uma dimensão coletiva, comunitária.Não se limita a uma pessoa, a um carisma, a um só ministério.Mas, nem por isso tem perdido sua função, sua responsabilidade,de guiar, de cuidar, de conduzir, de abrir caminho e acompanhara toda a gente em sua marcha para o Reino. Já citamospreviamente a passagem do capítulo 11 da Epístola aos Hebreus,segundo o qual, aqueles que vivem pela fé vão cumprindo estafunção na sociedade "em busca de uma pátria" (Hb 11.14).Quase todos aqueles mencionados nesta passagem, pessoasregistradas no Antigo Testamento foram pastoras: Abel, Abraão,Moisés etc. O povo criou uma corrente histórica de peregrinos,de pastores. Daí que, para nosso tempo, pensamos que a pastoralmanifesta-se nessa relação entre o Espírito (junto com o Pai ecom o Filho, na Trindade) e o povo que dinamiza a história eabre novos caminhos que indicam a presença do Reino de Deusem nosso mundo.

A pastoral é marcha, peregrinação, recusa do conformismoe do status quo, dado que "esses homens, dos quais não era dignoo mundo tinham que caminhar pelos desertos e montanhas e serefugiar em cavernas" (Hb 11.38). O povo de Deus mantém suaidentidade enquanto mantém consciência de ser "itinerante",

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recordando sempre que deve abrir-se caminho (ainda que sejaprecário, no meio de um universo no qual, aparentemente,predominam forças contrárias ao amor de Deus) para um mundoque expresse plenamente o Reino de Deus.

Definir a "pastoral" equivale a reconhecer que esta funçãoda Igreja tem que se concretizar em meio aos conflitos dasociedade, que a luta frente aos poderes que se opõem a Cristo éinevitável: "Pensem em Jesus, que sofreu tantas contradições dagente má, e não se cansarão e nem desanimarão. Vocês estãoenfrentando o mal, mas todavia não têm tido que resistir até osangue" (Hb 12.34). Por isso, a pastoral deve reconhecer suarelação com aqueles aspectos da vida humana, onde há tensões,das quais as de caráter político são de suma importância. É aopovo seguidor de Jesus, formado por aqueles que hoje integramseu movimento (e que durante anos na Igreja Primitiva eraconhecido como "Os do caminho"), que compete cumprir afunção pastoral. Para isso vão contar com força e inspiração doEspírito Santo. É ao binômio unido "Espírito-povo" que lhe édada a função pastoral.

Agora, quando estudamos o Novo Testamento,encontramos na vida das comunidades daquele tempo, váriosmodelos de ação pastoral. Se bem relacionados com os sinais doseu tempo, têm sua base em realidades teológicas fundamentais.Para dizê-lo de maneira mais clara: têm sua base no próprioDeus, em Cristo (revelação de Deus), na Trindade (o ser deDeus), no Espírito Santo (o Espírito de Deus). Ou seja, é possívelencontrar aqui, como por outra parte no resto da Bíblia, umaconvergência fundamental. Se o binômio "Espírito-povo" dá osinal da realidade pastoral, é porque o povo hoje, como antes,

afirma "Deus é meu Pastor". O ponto de partida da pastoral estásempre em Deus. Mas a expressão histórica dessa pastoral é aresponsabilidade do povo. A questão que levantamos agora é:quais são esses modelos? A partir da resposta a esta pergunta,com a perspectiva que surge da prática eclesial e que trata deentender os sinais de nosso tempo, poder-se-ão definir linhasconcretas de ação pastoral. Mas, como já temos dito, esta é umatarefa para os próximos capítulos. Para o momento,mantenhamo-nos no campo da reflexão bíblica.

O Modelo Cristomórfico: Formando a Cristo naComunidade

O apóstolo Paulo, num dos textos mais antigos do NovoTestamento, escrevendo aos Gálatas exclamou: "Filhos meus, denovo sofro as dores do parto até que Cristo se forme em vocês"(G1 4.19). Tomar a forma de Cristo e segui-lo é uma insistênciapermanente do apóstolo Paulo às Igrejas: assim também,escrevendo aos Filipenses, recomenda ter os mesmossentimentos de Cristo (Fp 2.5-11) insistindo na mesma epístolaque se deve chegar a ser semelhante a ele em sua morte: assim oencontraremos — Deus o queira! — "na ressurreição dosmortos" (Fp 3.10).

Foi Dietrich Bonhoeffer quem, em sua Ética, chamou aatenção sobre esta necessidade de ser conformados com Cristo eem Cristo: "Não se trata na Escritura de conformação do mundomediante planos e programas, mas que em toda conformação setrata somente da única forma, aquela que tem vencido o mundo,a forma de Jesus Cristo" (6). Esta é a forma que se propõe àIgreja: chegar a ser o Corpo de Cristo. A questão que surge

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imediatamente é como? O mesmo Bonhoeffer demonstra que"isto não tem lugar graças ao esforço próprio de 'assemelhar-se aJesus', como costumamos explicar, mas graças a maneira comoJesus influi, por si mesmo, em nós de tal maneira que determinanossa forma de acordo com a sua" (7). Aqui, a nova pergunta é:Qual é essa forma? E a resposta vem da passagem já indicada, dosegundo capítulo da Epístola aos Filipenses: "Ele, que era decondição divina, não considerou o ser igual a Deus como algo aque se apegar ciosamente, mas rebaixou a si mesmo até não sernada, tomando a condição de escravo e chegou a ser semelhanteaos homens. Havendo se tornado como homem, humilhou-se etornando-se obediente até a morte numa cruz".

Para ser mais claro: a forma de Cristo, em primeiro lugar, éa forma de um servidor, de um escravo, que está disponível aopróximo. No relato do Evangelho de João isso se concretizouquando Jesus lavou os pés dos discípulos, e logo morreu na cruzem benefício de toda a criação de Deus (cf. espec. Jo 13.2-17).Vale a pena repetir aqui as palavras chaves: "Se eu, que sou oSenhor e Mestre, tenho lhes lavado os pés, também vocês devemlavar os pés uns dos outros. Tenho lhes dado o exemplo para quevocês façam o que lhes tenho feito. Porque em verdade lhes digo:O escravo não é mais do que seu amo, nem o enviado maior doque aquele que o envia. Agora que vocês sabem isto, serãofelizes se o põem em prática" (vv. 14-17).

O sentido desta práxis se indica de outra maneira,totalmente convergente com o significado da ação de Jesus aolavar os pés dos discípulos — na célebre perícope de Mt 25.31-40, onde se expõe o ensino de Jesus sobre o juízo final: o filhodo homem separará os aceitos e os recusados de seu Reino pela

forma como foi reconhecido e servido entre os necessitados,miseráveis, oprimidos e marginalizados deste mundo. A dialéticadestes textos é inesgotável; por um lado, Jesus assume a formade escravo para servir. Mas, ao mesmo tempo, por essaidentificação com os pequeninos, quando estes são servidos é aJesus quem se serve. Pode ser que não sejamos conscientes deque estamos fazendo isto; não importa: o Cristo servidor serve aomesmo Cristo que sofre entre os pobres e oprimidos da terra. Eestes, por sua vez, em sua fraqueza misteriosamente expressam apresença do Filho do Homem, juiz todo-poderoso. Os servidores,explorados pela sociedade, levam Cristo consigo. Ele serveatravés daqueles. Mas também julga através deles.

Uma pastoral que procura conformar a Cristo, fazê-lovisível entre os homens e mulheres de nosso tempo, não sepreocupa com o êxito, mas com a fidelidade à pessoa d'Aqueleem que Deus se encarnou e morreu na cruz, para logo ressuscitar.Essa fidelidade — sequela Christi — é a exigência dodiscipulado. Mas não se limita ao crente individual, mas é umaexigência para a maneira de ser igreja, para a função desta nasociedade. Voltando a citar Bonhoeffer: "Portanto, conformaçãosignifica em primeiro lugar a conformação de Jesus Cristo emsua igreja. É a figura do mesmo a que toma forma aqui. O NovoTestamento chama a Igreja Corpo de Cristo como designaçãoprofunda e clara. O corpo é a forma. Deste modo, a Igreja não éuma comunidade de religião dos que vinham a Cristo, mas Cristoque tem tomado forma entre os homens. Mas a Igreja pode sechamar-se corpo de Cristo, porque no corpo de Cristo o homeme, por conseguinte, todos os homens, têm sido acolhidos. (...) AIgreja não é mais do que o fragmento da humanidade em queCristo tomou forma realmente. Trata-se total e absolutamente da

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figura de Jesus Cristo e não se trata de outra junto a Ele. A Igrejaé o ser humano encarnado, julgado, desperto para a nova vida emCristo. Portanto, ela não tem, em absoluto, a ver, primeiramentee de maneira essencial, com as chamadas funções religiosas doser humano, mas tem a ver com o homem total em sua existênciano mundo, com todas as suas relações" (8).

A partir dessas afirmações, e tendo em conta especialmenteos textos bíblicos que as sustentam, é fácil compreender algumasconseqüências para orientar a função da Igreja na sociedade.

Primeiro, opção pela vida e combate às forçasdesumanizantes que matam. A resistência aos poderes do malnão é somente um elemento político: é também uma exigênciateológica.

Segundo, porque Jesus Cristo veio trazer vida emabundância, a opção pela vida é, antes de mais nada, opção pelospobres, os quais são, geralmente, excluídos dos programas eplanos impostos pela ordem que predomina no mundo. Adefinição da pastoral, da caminhada da Igreja, é pela justiça doReino, segundo a qual os pobres são felizes porque o herdarão(Lc 6.20-21).

Terceiro, isto exige levar muito em conta as esperanças demudança social que se expressam na prática dos pobres, pois sãoelas que apontam as mediações históricas através das quaismostra-se a presença do Reino entre nós.

O Evangelho é uma boa notícia para os pobres, um anúncioque os alegra, que os reconforta apesar de seu sofrimento, que

lhes dá alento e coragem para reivindicar suas posições. OEvangelho não desqualifica as expectativas populares, mas lhesdá cumprimento. O Evangelho é justiça, libertação, bem-estar epaz, coisas que os pobres anelam desde o mais profundo do seuser. O Reino que anuncia o Evangelho, do mesmo modo que amensagem de Jesus estava relacionada à esperança dos pobres,também, está ligado às coisas que os humildes e deserdadosaguardam. Tomar a forma de Cristo é atuar neste sentido:confirmando aos de baixo, fortalecendo suas posições, dandoapoio às suas lutas.

O Modelo Trinitário: a Comunidade de MinistériosNo pensamento teológico cristão do Oriente sempre se

enfatizou a necessidade de se compreender a doutrina de Deuscomo aquela que se refere ao mistério do infinito e supremoamor: a maneira como se expressou esta convicção, não só noOriente, mas também no Ocidente, foi a doutrina da Trindade.Um só Deus em três pessoas: Pai e Filho e Espírito Santo. Nopensamento teológico dos Pais latinos, especialmente em SantoAgostinho, as três pessoas — ainda que unidas entre si —distinguem-se claramente. Daí, que os teólogos do Oriente, paraos quais a compreensão da pessoa de Deus supera a todas aspossibilidades do entendimento humano, insistiram nanecessidade de perceber ao Deus Trindade com o mistério doamor, do vínculo profundo e indissolúvel entre o Pai e o Filho eo Espírito Santo.

Deus, que é amor, expressa intensamente esta relaçãoatravés de sua dádiva ao gênero humano, ao qual oferece amaravilha da criação, o perdão redentor que permite às criaturas

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humanas descarregar suas ansiedades e dores, assim comotambém a oportunidade de chegar a serem ajudantes naconstrução de seu Reino. A imagem, o ícone, que expressa,melhor do que qualquer outro, este enigma de Deus, é aTrindade.

No pensamento das Igrejas da Reforma reafirmou-se estaindivisibilidade do ser de Deus, que é Um em três pessoas, aomesmo tempo. No nosso século, Karl Barth, o grande teólogoreformado, foi quem ajudou a construir pontes entre estasafirmações teológicas: "Entendemos por doutrina trinitária oensino da Igreja sobre a unidade de Deus em suas três maneirasde ser, do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Tudo o que temosdito e tudo o que vamos dizer, todavia, sobre este assunto, nosleva a afirmar e a insistir simplesmente sobre a unidade natriplicidade, e a triplicidade na unidade de Deus. Agora, estadoutrina não se encontra explícita nos documentos (Antigo eNovo Testamento) do testemunho bíblico da revelação. Elatampouco precede às situações históricas às quais se referemestes textos. Ela resulta de uma exegese desses textos, elaboradano idioma e, portanto, sob a influência de uma situação anterior.É uma doutrina da Igreja, um teologúmeno, em resumo: umdogma" (9).

Por que este "excursus" sobre a Trindade quando estamosrefletindo sobre a pastoral? Simplesmente, porque, como disseBarth, o ser de Deus é uma relação de amor entre três pessoas. Éum mistério de vinculação profunda entre o Pai, o Filho e oEspírito Santo numa existência singular que se define como amorinesgotável e muito intenso. Desse modo, para quem trata deanalisar a vida de algumas comunidades neotestamentárias e sua

função na sociedade de seu tempo, este dogma (ainda nãodefinido então, mas em vias de formação) foi uma referência,como um modelo de ação de ser Igreja no mundo: a vinculaçãoindissolúvel entre o Pai e o Filho e o Espírito Santo, sem ordemde importância, pois a única importância é a relação de amorentre essas três maneiras de ser Deus, é também a que deveexistir na comunidade de ministérios que compõem a Igreja. Talfoi a mensagem do apóstolo Paulo em várias ocasiões: aosRomanos, aos Coríntios etc. A comunidade cristã, a assembléiaeclesial, só reconhece a hierarquia de Cristo. No plano de suafunção na sociedade, não há parte na qual se possa prescindir (1Co 12.17-21); e, em seguida, o apóstolo Paulo agrega a estetexto: "Mas ainda, olhem como as partes do corpo que parecemser as mais fracas são as mais necessárias. E as partes do corpoque menos estimamos as vestimos com mais cuidado, e as menosapresentáveis as tratamos com mais modéstia, o que se necessitacom as outras que são mais decorosas. Deus fez o corpo, dandomais honra ao que lhe faltava, para que não haja divisões dentrodo corpo; mas fez em verdade que cada um dos membros sepreocupe com os demais. Quando um sofre todos os demaissofrem como ele, e quando recebe honra, todos se alegram comele" (1 Co 12.22-27).

A ação pastoral, enquanto expressão fundamental da vidada Igreja, deve ser um testemunho de comunhão. Esta comunhãopode expressar-se de diversas maneiras, pode chegar a ter formasconcretas muito distintas, porém, é necessário que esteja semprepresente na pastoral, porque sem ela não seria expressão da vidade Deus, de seu amor.

Esta concepção paulina da igreja como uma comunidade

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de ministérios particulares, vinculados e ligados entre si,imprescindíveis uns aos outros, além de recordar a imagem docorpo de Cristo, indica, também, por alusão o mistério de DeusTrindade. Aqui há uma convergência clara com a afirmação doapóstolo Pedro, que em sua Primeira Carta compara a Igreja,primeiro com um templo espiritual, construído a partir da pedraangular — Jesus Cristo — com pedras vivas, os crentes. Estestambém são chamados de 'uma raça eleita, um reino desacerdotes, uma nação consagrada, um povo que Deus elegeupara que fosse seu e para proclamar as suas maravilhas" (1 Pe2.9a).

A doutrina das Igrejas surgidas da Reforma do século XVI,que afirma o sacerdócio universal dos crentes, está relacionadacom uma concepção da Igreja como comunidade de ministérios,que varia segundo as situações e os desafios que essasapresentam. Ministérios que são dons (charismata) do EspíritoSanto, relacionados a partir da igualdade entre eles, por meio deum profundo vínculo de amor. Daí que, na VI Assembléia doConselho Mundial de Igrejas, em Vancouver, o Secretário Geraldesse organismo, Dr. Philip Potter, assinalou que "as igrejasdeveriam ser uma comunidade de participação". Na realidade, asduas palavras "comunidade" e "participação" se expressam numsó vocábulo grego do Novo Testamento (koinonia). Este termosignifica uma comunidade que está reunida no apoio, naparticipação e serviços mútuos. Na imagem da casa de pedrasvivas, o apóstolo Pedro utiliza outro símbolo de koinonia. Falade “sacerdócio santo, para oferecer sacrifícios agradáveis a Deuspor intermédio de Jesus Cristo" (1 Pe 2.5). (10)

Aqui estamos no oposto ao clericalismo, que se manifesta

na centralidade e no predomínio do ofício pastoral que reduz acomunidade de ministérios em assembléia eclesial, a umarepetição do pastorado ou — quando muito — a transformar osleigos em assistentes do pastor. Este clericalismo não aparece naBíblia. Os dons devem ser complementares para que se manifesteCristo, que é revelação do Deus Trindade. Segundo se escreveuno texto da Epístola aos Efésios. "Assim, pois, é Cristo quemdeu, a uns o ser apóstolos, a outros ser profetas, ou aindaevangelistas, ou pastores e mestres. Assim, preparou os seus parao trabalho tendo em vista a construção do corpo de Cristo. Ameta é que todos juntos nos encontremos unidos na mesma fé nomesmo conhecimento do Filho de Deus, e com isso se logrará oHomem perfeito, que, na maturidade de seu desenvolvimento, é aplenitude de Cristo. Então não seremos meninos movidos porqualquer vento de doutrina, e aos quais os homens astutos podemenganar para arrastá-los ao erro. Mas, vivendo segundo averdade e no amor, crescemos de todas as maneiras até Aqueleque é a cabeça, Cristo. Ele dá organização e coesão ao corpointeiro, por meio de uma rede de articulações, que são osmembros, cada um com sua atividade própria, para que o corpocresça e se construa a si mesmo no amor" (Ef 4.11-16).

A figura da Trindade, tal como foi entendida,especialmente pelos Pais Orientais, surge como outro modelobíblico de pastoral. Este exige uma correção, não só do lugar dopastor/clérigo na vida da congregação, mas também do seupapel. Já não pode ser hierarca (autoridade superior em matériaeclesiástica) na assembléia eclesial, controlando suaadministração, fechando o ensino da verdade, quasemonopolizando a compreensão da Palavra. Surge a exigência deabrir-se à diversidade de ministérios e à participação dos mesmos

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na vida da congregação. Formas mais democráticas, quecontenham uma relação mais ativa na vida da Igreja, parecemimperativas. Isto pode inclusive — hic et nuns — chegar a seruma resposta adequada ao tipo de democracia limitada econtrolada que se pretende impor às nossas sociedades. Aindaque modesta, assim sendo, seria uma expressão que abre novoscaminhos, como corresponde à função pastoral que pretendechegar à plenitude de Cristo, plenitude de Deus.

Novas formas de vida eclesial, que surgem entre os setorespopulares, nos ajudam a perceber que a igreja, em sua expressãoconcreta, no nível local, deve ser entendida como umacomunidade de mistérios, que busca ser obediente a Jesus Cristo,servindo em especial aos pobres. Levanta-se, então, o seguinteproblema: quem cuida do conjunto, quem assegura a ordem e acomplementaridade entre os diferentes dons, carismas para quetudo funcione em uníssono na edificação do mesmo corpo?Neste sentido, por exemplo, no Brasil, aqueles que participam daexperiência das Comunidades Eclesiais de Base falam do“ministério de unidade" que é exercido pelo presbítero, bispo ouagente de pastoral designado para esta responsabilidade. Este édistinto do "ministério de autoridade" que é exercido de cima, e,às vezes, até de fora da comunidade (11).

A Pastoral de AnimaçãoEste modelo pode ser caracterizado também como

relacionado à ação do Espírito Santo. E a organização dacomunidade que se expressa no cumprimento da missão, talcomo se expressa no livro de Atos. Nesse texto, cada passosignificativo que dão as igrejas, desde o acontecimento doPentecostes em diante, resulta da ação do Espírito Santo. O

apóstolo Paulo, um dos personagens mais ativos de todo esseprocesso, procurou resumir teologicamente o significado domesmo na Epístola aos Romanos. Segundo esta percepção, aação do Espírito Santo não pode desvincular-se dosacontecimentos históricos. Aqueles mais agônicos, mais tensos,mais conflitivos dão uma indagação da ação do Espírito de Deus,que chama e anima a Igreja a não se ajustar aos esquemas destemundo. Deve-se ressaltar, também, que esta compreensão daobra do Espírito Santo aparece também nos primeiros capítulosdo livro do Apocalipse que corresponde a um período de grandesconflitos entre a Igreja e a ordem imposta pelo Império Romano,quando as autoridades deste perseguiam e aterrorizavam aoscristãos. O conflito, entendido teologicamente, é entre o Espírito(que nos chama a ser livres, cf. G1 5.13-26) e a ordem do mundocom sua lei de morte (Rm caps. 6-7).

No desenvolvimento do pensamento cristão foi Joaquín deFlore quem percebeu com clareza esta dialética teológica (11).Contemporaneamente, entre os teólogos católicos, JosephComblin tem procurado comunicar de maneira brilhante algunspensamentos da mesma linha (13). No meu entender uma dasprincipais bases bíblicas para os mesmos, encontra-se nodiscurso de despedida de Jesus aos discípulos, que encontramosno evangelho de João (caps. 13-17), especialmente nas mençõesque Jesus faz ao Parakletos, o Espírito da Verdade. Infelizmente,nem sempre a tradução deste termo tem sido correta. Denenhuma maneira pode ser visto — como se tem feito — naslínguas modernas como "o Consolador". O termo pode serentendido literalmente como "o defensor" (figura do foro, dotribunal: o advogado que nos defende). Entretanto, quandoanalisamos as passagens deste discurso onde se menciona o

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Parakletos (Jo 14.15-17; 25-26; 15.18-27; 16.12-15) se concluique o Espírito virá animar a comunidade de discípulos nas lutasque deverão enfrentar no mundo por causa da fé. No transcursodo discurso, Jesus falou sobre o ódio do mundo aos seus amigose discípulos, que é uma expressão renovada do ódio do mundo àpessoa de Jesus. Este ódio implacável, a ponto de quererprovocar a morte, pode criar condições que movam os discípulosa perderem o seu valor na marcha para o Reino: é uma luta, nãosó contra eles, mas contra Deus. Ali, então, se fará presente oParakletos, dando ânimo na luta, injetando coragem quandoparece que não há mais fé para seguir adiante: "Quem odeia amim, odeia a meu Pai. Se não tivesse feito diante deles estascoisas que ninguém havia feito, não estariam em pecado. Porém,eles viram e odeiam a mime ao meu Pai. Assim se cumpre aPalavra escrita em sua Bíblia:“Têm-me odiado sem causaalguma". “Quando vier o Parakletos que eu lhes enviarei, e quevirá do Pai, ele dará provas a meu favor. É o Espírito da Verdadeque sai do Pai. E vocês também falarão a meu favor, já que têmestado comigo desde o princípio" (Jo 16.23-27).

A experiência do Parakletos pode comparar-se à de umanimador de um grupo que se organiza para conseguir algumobjetivo. É como um treinador que, quando os membros de suaequipe se desalentam, dá-lhes ânimo para que se mantenham naluta com entusiasmo. A experiência do Espírito Santo seconcretiza na missão, na luta contra aqueles que odeiam a Jesus,ao Pai e à comunidade que caminha para o Reino prometido.Esta compreensão da ação do Espírito vivida no meio da agoniae conflitos de nossas sociedades, em meio à lutas por uma vidamais humana, por uma nova realidade, está clara no pensamentode São Paulo, especialmente no capítulo 8 de sua Epístola aos

Romanos: os cristãos têm recebido o Espírito e este os conduz nasua caminhada para o Reino. Nesta marcha tem que se enfrentara carne, esta parte da realidade que se ajusta à morte e à lei, queimpõe tal morte. A luta é entre carne (sarx) e o Espírito(Pneuma).

Sarx não é o corpo, mas a realidade da morte.Experimentar o Espírito, viver no espírito, receber a força querenova a criação, não é uma experiência calma, tranqüila, mas seproduz no meio das convulsões que agitam a história.Enfrentando poderes imensos, a comunidade às vezes perde suasforças: manifesta, então, sua fraqueza, sua debilidade, seudesânimo. Então, "o Espírito vem nos socorrer em nossadebilidade: porque não sabemos como pedir e nem o que pedirem nossas orações. Mas, o próprio Espírito roga por nós, comgemidos e súplicas que não se podem expressar. E Deus, quepenetra nos segredos do coração, escuta os anelos do Espíritoporque, quando o Espírito roga pelos santos, o faz segundo amaneira de Deus" (Rm 8.26-27).

A pastoral de animação é espiritualidade no combate: nãopode fugir do mundo, sair da luta, mas estar presente em nomede Cristo no centro dos acontecimentos. Com as opções doEvangelho: pelo Reino, pela justiça, pelos pobres e oprimidos,pela libertação, pelos direitos dos marginalizados, pela vida econtra a morte.

Como se disse antes, a exposição sobre estes modelosbíblicos de pastoral não se excluem, mas estão relacionados unscom os outros, é apenas um passo prévio para empreender umatarefa mais ampla — que nos ocupará nos próximos capítulos —

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com vistas a lançar mais luz sobre a questão da pastoralprotestante. Ela deve incluir também o exame de uma práticaeclesial, desde a qual deve analisar-se a realidade em termosconcretos. Sobre o resultado da análise da realidade, acomunidade tem que formular opções também levando em contaos dados da memória bíblica, como estes que acabamos de expor.Os mesmos, ainda que não sejam absolutamente normativos, têma importância que caracterizam as grandes referênciasorientadoras.

Notas

1. Este capítulo tem como base um artigo que, com o mesmo título, foipublicado pela revista "Tempo e Presença", RJ, nº` 185, agosto de 1983.

2. Existe uma extensa literatura sobre o assunto. Dela queremos ressaltar,especialmente, o livro de Juan Luís Segundo, Motivos Ocultos de la PastoralLatinoamericana, Buenos Aires, Ed. Búsqueda, 1973.

3. Cf. Emílio Castro, Hacia una Pastoral Latinoamericana , San José, CostaRica, Ed. CELEP, 1972.

4. Entrevista com Paulo Ayres em Tempo e Presença, nº 177 — Set./Out. de1982.

5. Paul Lehmann, Ethics in a Christian Contest, pp. 77-101, New York andEvanston, Harper and Row Publishers, 1963.

6. Dietrich Bonhoeffer, Etica, Barcelona, Ed. Estelar, 1968. p. 55.

7. Ibid., p. 55.

8. Ibid., p, 57.

9. Karl Barth. Dogmatique, Premier Volume. Tome Premier .p 76. Genève:Ed. Labor et Fides; 1953.

10. Philip A. Potter, Casa de Pedras Vivas, Mensagem do Secretário Geral doConselho Mundial de Igrejas à 6ª Assembléia Geral do CMI, Vancouver(Canadá). 1983, in Tempo e Presença, 187, outubro de 1983.

11. Julio de Santa Ana. Hacia una Iglesia de los Pobres. Buenos Aires, LaAurora, 1983, p. 247.

12. Joaquin de Flore, Concordia de los Testamentos.

13. José Comblin, O Templo de Ação: Ensaio sobre o Espírito e a História,Petrópolis, Ed. Vozes, 1982.

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CAPITULO III

Chaves para a Ação Pastorala partir da Leitura

dos Sinais dos Tempos

"Acercaram-se os fariseus para discutir com Jesus e lhepediram um sinal do céu como prova. Jesus, suspirandoprofundamente, disse-lhes: "Por que esta gente pede um sinal?Eu lhes asseguro: Não se dará a esta gente nenhum sinal". Edeixando-lhes, subiu no barco e foi para o outro lado do lago.Haviam esquecido de levar pães e só tinham um pão no barco.Num certo momento, Jesus lhes disse: Abram os olhos. Tomemcuidado com o fermento dos fariseus e de Herodes". Então elesse puseram a dizer entre si: É porque não temos pão. Dando-seconta, Jesus lhes disse: Por que estão falando que não têm pão?Porquanto não entendem e nem se dão conta? Têm a mentefechada? Tendo olhos não vêem e tendo ouvido não ouvem? Nãose recordam quando reparti cinco pães entre cinco mil pessoas?Quantos cestos cheios de pedaços recolheram? “Doze",

responderam eles. "E quando reparti os sete pães entre quatromil, quantos cestos cheios de pedaços recolheram?" "Sete",responderam. E Jesus lhes disse: "Todavia não entendem?" (Mc8.11-21).

É tradicional, na maioria das culturas de nossa humanidadeque, frente a questões cruciais, as quais desafiam, num dadomomento, homens e mulheres a irem consultar pessoas religiosasque têm a capacidade de aconselhá-los, orientá-los, ajudá-los aconduzir sua existência. Quer dizer, em meio às peripécias davida cotidiana, procuram uma iluminação especial, aqueleoráculo que os confirme no que estão fazendo, ou que osreoriente a partir de uma nova visão que passe a determinar ouinfluenciar seus comportamentos.

Assim, por exemplo, na antigüidade clássica grega, otemplo de Delfos era visitado por aqueles que necessitavam deum anúncio, uma resposta à questões candentes que sacudiam oser daqueles que peregrinavam até o alto da colina.Similarmente, ainda que, com intenções também maliciosas,segundo o relato do evangelista Marcos, os fariseus seacercavam de Jesus para discutir e diante das afirmações deste,pediram-lhe um sinal extraordinário como garantia do que dizia.A resposta de Jesus foi taxativa: não querendo ser tomado porum taumaturgo, mas por quem inaugura o Reino de Deus,suspirando frente à incompreensão farisaica, deixou plantado ogrupo que o questionava (é esse o sentido do verbo grego notexto de Marcos) e se foi ao outro lado do lago. Quer dizer, nãoestava para discussões inúteis.

Alertou aos discípulos sobre a manobra de fariseus e

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herodianos: não só queriam matar a Jesus, mas tambémdesvirtuar seu movimento. Era necessário estarem prevenidos enão caírem nessa armadilha. Mas, tampouco os discípulosentendem, nem dão conta. É como se eles também necessitassemde "um sinal do céu", aquele oráculo ou visão extraordinária quedissipa todas as dúvidas. Ou seja, é como se os discípulos, assimcomo os fariseus, estivessem cativos pelas velhas estruturas doespírito religioso: olham o insólito, sem compreender que osverdadeiros sinais para compreender a ação de Deus na históriaocorrem no seio desta, no âmbito do cotidiano. Daí que Jesusrecorda aos discípulos os atos que eles mesmos têm vivido comJesus, nos quais se manifestou o poder do Reino. Não foram"sinais do céu" (quer dizer, algo semelhante à maravilhosairrupção na história de um ser absolutamente diferente do quenós somos) que ele indicou, mas acontecimentos singularespertencentes à vida de todos os dias. Evocou as duasexperiências do repartir de pães e peixes às multidões que oacompanhavam: a partir do pouco, todos foram satisfeitos. Eainda sobrou: doze cestos (alusão simbólica ao povo de Israel,com suas doze tribos) num caso. E no outro, sete (novamente,outro símbolo aludindo aos sete espíritos da gentilidade, àplenitude da oikoumene).

O que quer dizer que, para conhecer a vontade de Deus,não é necessário "um sinal do céu": deve-se procurar entender ossinais implícitos nos acontecimentos históricos que nos cabeviver. O povo sabe ler esses sinais quando pensa que os mesmostêm a ver com aspectos secundários da vida: infelizmente, essacompreensão parece ficar bloqueada frente às manifestações doReino. Por isso, segundo o Evangelista Lucas, "Jesus dizia aopovo: Quando vocês vêem uma nuvem que se levanta no poente,

imediatamente dizem que vai chover, e assim sucede. Quandosopra o vento sul, dizem que fará calor, e assim sucede.Hipócritas, sabem interpretar o aspecto da terra e do céu. Como,pois, não entendem o tempo presente?" (Lc 12.54-56). Esse"tempo presente" era aquele no qual Jesus atuava com o poderpróprio do Reino de Deus, curando enfermos (Lc 5.12-26),ressuscitando mortos (Lc 7.11-17), fazendo com que seusdiscípulos expulsassem demônios (Lc 10-17) dominando asforças desencadeadoras da natureza (Lc 8.22-25) e, sobretudo,alentando e reconfortando aos pobres com uma boa notícia: queiam receber a justiça do Reino (Lc 6.20-23), enquanto chegava omomento dos ricos darem conta de todas as iniqüidadescometidas contra os humildes.

Procurar um "sinal do céu", consultar um áugure(adivinho), orientar-se pelo horóscopo, são maneiras através dasquais o espírito humano descarrega sua responsabilidade paratornar decisões, que fica nas mãos de uma referência exterior, naqual coloca uma certa dose de autoridade. Não que esta entidade,alheia a ele ou a ela, tenha esse poder; é o próprio ser humanoquem lhe confere essa força, essa potestade. No fundo, trata-sede um mecanismo que aliena o homem ou a mulher de suasituação concreta: em vez de responder aos desafios da mesma,dela escapa consultando algo que imagina poder orientá-lo. Ouseja, quando frente à urgências concretas, o ser humano tem queresponder, inevitavelmente, de uma maneira que, de um modo oude outro, desestabiliza e põe em perigo sua existência, então fogede sua circunstância. Faz sua peregrinação a Delfos, ou pretendeintegrar-se no âmbito do sagrado. A "resposta" que o oráculo ou"sinal do céu" lhe sugere, geralmente, não faz mais do queconfirmar suas próprias posições. Estas, por sua vez, estão

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profundamente influenciadas pelas idéias dominantes que, comose sabe, provêm das classes dominantes.

As mesmas bloqueiam o espírito humano para poderchegar a perceber a presença do Reino entre os sinais dostempos. Foi o que ocorreu com os próprios discípulos de Jesus:"tinham a mente fechada". Apesar de seus olhos, não viam;apesar de seus ouvidos, não chegavam a escutar; não entendiame nem se davam conta.

Não obstante, os fatos eram claros: testemunhavam o poderdo Reino atuando na história. Com efeito, os famintos repartiamos alimentos e eram saciados, os pobres já não sofriam os efeitosde sua miséria e não sentiam o impacto da escassez. Quer dizer,a utopia tantas vezes pressentida deixava de ser umpressentimento para transformar-se em algo concreto, real davida daqueles humildes. Lamentavelmente, na consciênciapopular há uma barreira que impede perceber e discernir estesfatos. Pode vir algo de Nazaré? Podem os pobres e deserdadosexperimentar o Reino? Não será que este aparece entre ospoderosos e arrogantes? A resposta de Jesus é clara: O Reino nãodepende de "sinais do céu". Está entre nós. Deve-se ler os sinaisdos tempos, com olhos humildes, realistas e, a partir destaleitura, nutrir a fé. Quer dizer, através destes fatos aqueles que(ainda apesar de ambivalências históricas) atestam o poder doReino (esse mesmo que satisfaz o humilde e derruba ospoderosos) mediante a compreensão dos mesmos, percebe-se apresença do Reino entre nós.

Isto é fundamental para orientar a ação da Igreja, para daruma referência à pastoral, à itinerância, à caminhada do povo de

Deus na história. "Postos os olhos em Jesus", quer dizer, no BomPastor, seu povo nômade caminha e abre novas pistas em meio àrealidade diária referindo-se àqueles acontecimentos queexperimenta a sua conjuntura; discernindo entre os mesmos apresença do Reino. Esses sinais do Reino, que se dão no tempo,devem ser apoiados, ratificados, através da ação pastoral.

Neste ponto, é importante destacar a frutífera tensão, adialética, que se cria entre a leitura dos sinais dos tempos e acompreensão da fé. Esta adquire maior densidade e profundidadequando se refere àquela: corrige discernimentos inadequados, ouconsegue novas convicções, ou chega a perceber novas metas aalcançar. À sua vez, a compreensão da realidade, a partir de umaperspectiva de fé, dá um conteúdo sacramental à história, àsrelações que vamos tecendo em seu curso: acontecimentosprosaicos, às vezes banais, têm que serem considerados como seestivessem cheios da presença de Deus, que infunde nos mesmoso poder do Reino. Esta dialética entre a leitura dos sinais dotempo (ou, para chamá-lo com palavras mais atuais, “análise deconjuntura”) e o conteúdo da fé, abre caminhos (trilhas) pararenovadas tentativas de fidelidade da Igreja à vontade de Deus.Por isso, ela é tão importante para a pastoral. Daí, serconveniente aprofundar os termos dessa tensão.

Como Entender a Fé a partir dos Sinais dos TemposUma referência ao pensamento paulino nos ajudará a

introduzir esta reflexão. Mas, previamente, deve se levar emconta o seguinte: tende-se a pensar que a explicitação doconteúdo da fé não pode e nem deve sofrer mudanças. Com isso,reforçam-se a tradição e o dogmatismo. Quando ocorre tal coisa,

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a vida da Igreja tende a esclerosar-se, a se esgotar na repetição defórmulas que tiveram sentido um dia, mas que ao mudar ocontexto no qual foram forjadas, chegaram a ser anacrônicas.Tenha-se em conta, a este respeito, o que foi mostrado noprimeiro capítulo sobre este particular. Quer dizer, a explicitaçãodo conteúdo da fé (e nisto consiste a teologia, entre outrascoisas) necessariamente deve levar em conta a conjuntura naqual pretende cumprir esta tarefa. Se assim não ocorre, comodissemos, a teologia não sai de um espaço que, em vez deorientar-se pelo presente (a conjuntura) e o futuro (o sentidohistórico que aponta para a irrupção do Reino, do novo nahistória), refere-se ao passado. Passa, então, a servir aosinteresses daquelas forças que querem fazer com que o passadoperdure, que se mantenha o status quo. A teologia é aprisionadapor tais forças. A pastoral torna-se cativa: já não é fiel ao espíritolivre de Deus.

Deve-se reconhecer que isto tem ocorrido muitas vezes notranscurso da história da Igreja. As conseqüências desta"catividade" foram nefastas (1). Daí a necessidade de libertar ateologia (2) para também libertar a pastoral e criar condiçõespara manter-se alerta contra todo novo perigo de que a Igrejacaia em novos "cativeiros". Neste processo de libertação, umponto capital consiste em ser permanentemente consciente deque a teologia é sempre relativa à evolução da história. Istoajudará a evitar a rigidez dogmática.

Isto é justamente o que é possível constatar no pensamentode São Paulo, pelo menos segundo os escritos do NovoTestamento. É sem dúvida, no lapso que vai desde a 1ª Epístolaaos Tessalonicenses (escrita ao redor do ano 51) até a Epístola

aos Efésios (a qual não é do autor, mas que, indubitavelmente,expressa o pensamento deste, nos últimos anos de sua vida) oconteúdo da sua teologia foi variando segundo as percepções dossinais dos tempos. Isto pode observar-se claramente quando sesegue a evolução da reflexão paulina com relação ao tempo dairrupção final da presença de Jesus Cristo. A escatologia paulina,com efeito, não é a mesma ao longo deste período (que ébastante breve: de quinze anos aproximadamente). Mas vamospor partes.

Parece ser inegável que a Igreja primitiva (a comunidadede Jerusalém, em primeiro lugar, mas também outras como a deAntioquia, Tessalônica etc.) aguardava de maneira iminente oretorno glorioso de Jesus Cristo e a instauração de seu Reino.Inevitavelmente, aquele fariseu convertido, Saulo, batizadoPaulo, participava fielmente das esperanças no dia de Javé, o diade Cristo, seu novo advento ou parusia. São Paulo, no começo desua missão aos gentios, experimentava o sentimento de viver"nos últimos dias", e que esperava viver até a parusia (1 Ts 4.15).É certo que ele reconhece não ter discernimento para indicar omomento exato no qual se produzirá a parusia, mas esta lheparece de uma proximidade premente: "Quanto ao tempo oumomento que Deus fixou, vocês irmãos, não necessitam que lhesescreva, pois sabem perfeitamente que o dia do Senhor chegacomo um ladrão na noite. Quando os homens se sentem em paz esegurança, nesse momento e, de repente, sobrevirá a eles oextermínio, da mesma forma como vem à mulher grávida a dorde parto, e não poderão escapar" (1 Ts 5.1-3). Entretanto, "temosque ser santos e irrepreensíveis diante de Deus", até o “dia emque venha Jesus, nosso Senhor, com todos os seus santos" (1 Ts3.13). Este dia estava muito próximo da consciência do apóstolo,

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no começo da década do ano 50, do primeiro século.

Mas o tempo passou e o novo advento glorioso do Senhornão se concretizou na forma esperada. Apenas três ou quatroanos depois de escrever aos Tessalonicenses, já se percebe naprimeira carta aos Coríntios uma grande mudança na linguagemde São Paulo. Diante da evidência da não manifestação daparusia, segundo expectativas da primeira geração de cristãos,São Paulo deixa de falar tanto "da volta do Senhor" e enfatiza oponto da "ressurreição dos mortos": "irmãos, eu lhes declaro quenão entrará no Reino de Deus o que, no homem, é carne esangue. Vou lhes revelar uma coisa secreta: nem todosmorreremos, mas todos seremos transformados, num instante,num abrir e fechar de olhos, ao som da trombeta. Pois a trombetatocará e os mortos ressuscitarão de tal forma que já não podemmorrer e nós seremos transformados. É necessário que este corpodestrutível se revista da vida que não se destrói, e que estehomem que morre se revista do homem que não morre, e entãose cumprirá a palavra da Escritura: A morte foi destruída, nestavitória. Morte, onde está agora o teu triunfo? Onde está, morte,teu aguilhão?" (1 Co 15.50-55).

De acordo com os dados que podemos recolher dospróprios escritos de São Paulo, ou de outros textosneotestamentários referentes à sua pessoa (especialmente o relatode Lucas no livro de Atos) não existe nenhum elementopuramente subjetivo, algo que tenha ocorrido a Paulo em seuforo íntimo, unicamente, que explique esta transformação de sualinguagem. Ao contrário, tudo leva a pensar que a leitura dossinais dos tempos provocou esta mudança significativa naexplicitação de sua fé: ao não se concretizar a parusia, ele teve

que reformular em outros termos sua esperança cristã.Certamente, a partir dessa mudança, também a ação da igrejavaria: em vez de esperar em termos imediatos a transformação darealidade histórica, a igreja necessitava reconsiderar seutestemunho em meio a um contexto cuja mudança não ia serproduzida tão rápida como se havia pensado.

Quer dizer, a leitura dos sinais dos tempos, a percepçãodessa realidade, na qual se encontra a comunidade de crentes,leva à renovação da explicitação do conteúdo da fé, e também aconcretizar de uma nova maneira as linhas de ação pastoral. Aleitura dos sinais dos tempos, a análise da realidade, permite umacompreensão mais afinada da fé. Este fato, inclusive na evoluçãode São Paulo, não ocorreu uma só vez. Podemos voltar aperceber uma nova mudança de linguagem acerca destesaspectos da nossa fé, por ocasião de sua Epístola aos Romanos.Sem abandonar nela sua insistência na importância daressurreição, São Paulo introduz ali a necessidade de considerarque o mesmo Espírito de Deus está atuando no meio das lutas eagonias próprias da história humana. A obra do Espírito é segurae firme; ainda que não produza grandes resultados de maneiraimediata: devemos ter paciência: "Vemos, todavia, como ouniverso geme e sofre dores de parto. E não só o universo, mastambém nós mesmos, ainda que nos tenha sido dado o Espíritocomo uma antecipação do que teremos, gememos interiormente,esperando o dia em que Deus nos adote e liberte nosso corpo.Temos sido salvos pela esperança; mas ver o que se espera já nãoé esperar. Como se pode esperar o que se vê? Mas se esperamoscoisas que não vemos, com paciência as devemos esperar" (Rm8.22-25).

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Entre a Epístola aos Tessalonicenses e sua carta aosRomanos, a linguagem e as ênfases do pensamento de São Paulopermitem compreender uma grande inovação: de umaexpectativa urgente passou-se a uma espera paciente. Atransformação da realidade histórica não será o fruto deacontecimentos espetaculares, mas da luta firme, obstinada,pertinaz e fecunda do Espírito de Deus entre as estruturas esituações deste mundo. Preparando-se para novas missões (SãoPaulo pretendia lançar-se à evangelização dos povos ibéricos)(3), ampliando, portanto, seu horizonte de referência e reflexão,comprovando a densidade de certas estruturas históricas (o poderda lei, a influência dos ídolos no poder), a percepção da realidaderesultou num aprofundamento da sua teologia, com novasindicações para o comportamento dos membros da Igreja emRoma. São Paulo insiste que ser de Cristo é aceitar formar parteda família universal. Não há estrutura histórica, nem sequer amorte, que nos possa separar desta irmandade fundamental dosseres humanos em Jesus Cristo e pela qual trabalhapacientemente o Espírito: "Quem nos separará do amor deCristo? As provas ou a angústia, a perseguição ou a fome, a faltade roupa, os perigos ou a espada? Como disse a Escritura: Portua causa nos arrastam continuamente à morte, tratam-nos comoovelhas destinadas à matança. Não, em tudo isto, triunfaremospela força dele que nos amou. Estou certo de que nem a morte,nem a vida, nem os anjos, nem os poderes espirituais, nem opresente, nem o futuro, nem as forças do universo, sejam doscéus, sejam dos abismos, nem criatura alguma poderá afastar-nosdo amor de Deus, que encontramos em Cristo Jesus, nossoSenhor" (Rm 8.35-39).

Juan Luís Segundo explica esta mudança de linguagem

paulina, como uma mudança de chave: leva a pensar que aEpístola aos Tessalonicenses foi escrita ainda com uma chavepolítica, tanto que, de sua carta aos Gálatas em diante, oelemento que permite compreender o pensamento paulino é umachave antropológica. A mudança de chave não significa umamudança da fé: é fruto de novos contextos que apresentam novasperguntas e desafios à compreensão pós-pascal da vida emensagem de Jesus. Ou seja, a evolução histórica (que motivanovas práticas eclesiais) ao ser analisada, desafia novasformulações teológicas. Esta tarefa é inseparável da necessárialeitura dos tempos.

Como ler os Sinais dos Tempos a partir da FéA cultura de nossa época está muito distante daquela dos

tempos bíblicos. Ainda mais, os dados de nossa realidade põemde manifesto de que maneira tem variado o horizonte históricoem comparação com os das comunidades neotestamentárias.Nosso mundo não se limita ao Oriente próximo e aoMediterrâneo. As comunicações que estabelecemos nele podemser quase instantâneas. A intensidade dos problemasinternacionais que nos preocupam é muito maior do que tudo oque podia imaginar-se durante a época da Pax Romana. Para darum só exemplo: pela primeira vez, ao longo de toda a evoluçãodo planeta, o ser humano possui a capacidade de destruirtotalmente esta terra na qual vivemos. Se levarmos em contatudo isto necessariamente temos que concluir que somosobrigados a reconsiderar radicalmente os termos com os quaisensaiamos a comunicação do conteúdo de nossa fé.

Dizíamos, ao mencionar como a análise de nossa realidade

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conduz a novas formulações teológicas, que esta se expressaatravés de chaves de interpretações que variam de acordo com amudança, também, de nossas percepções sobre o contexto noqual nos encontramos. Essas chaves de interpretação de fésupõem uma mudança de perspectiva. Ou seja, que de umamaneira ou de outra, levam à uma nova compreensão darealidade. Do mesmo modo que a análise de conjuntura influisobre a auto-compreensão da fé, esta por sua vez, permitecompreender a situação de novas maneiras. As chaves teológicasnão são alienadas da realidade; desenvolvem-se com esta e porisso mesmo permitem aclará-la. A "teologia desde a práxis"supõe também que a fé ajuda a interpretar aqueles contextos nosquais a práxis pastoral vai tomando forma.

“Mas como o faz? A leitura dos sinais dos tempos é maisoposta a um concordismo literal da Bíblia com uma situaçãodada: buscar similares é ficar numa exterioridade. Ao contrário, areleitura opera por dentro, conecta querigma e situação por umeixo semântico, desfazendo um excesso de sentido que sedescobre justamente porque um novo processo ou acontecimentoaparece 'dentro', sem haver estado no horizonte de compreensãodo autor bíblico" (5). Ou seja, a perspectiva da fé ajuda acompletar com novas dimensões e, sobretudo, com novossentidos, o que as ciências humanas não permitem conhecer deuma dada realidade. Fundamentalmente, é essa perspectiva a quediscerne o sentido teológico da circunstância analisada. Essediscernimento de sentido faz à comunidade cristã, ao crente,exigências de ação, desafios que só podem ser respondidosmediante militâncias concretas e claras (6).

Parece-nos muito importante, pois, que à medida que a

análise conjuntural ilumina a fé e ajuda a corrigi-la, a fé (quetoma a forma de testemunho, ou de teologia), por sua vez,contribui para dar à situação que se estuda, dimensões quepassam desapercebidas aos cientistas seculares. O teólogoquando estuda e analisa uma realidade dada, não o faz parareproduzir o trabalho dos economistas, cientistas políticos,sociólogos e antropólogos, mas para poder perceber o sentidohistórico global da realidade, o que lhe permite vislumbrar apresença de Deus nos acontecimentos estudados. Como disseSeverino Croatto: "reconhecer os sinais dos tempos, ou ler apresença de Deus nos acontecimentos do mundo, significa, pelomenos, que deve haver uma 'sintonia' muito profunda entre estese a mensagem cristã, mas aquela se dá porque primeiro sedescobre a Deus no acontecimento, desde o qual alguém remontaaté a mensagem arquétipa, como garantia da fidelidade ao'sentido' de tal acontecimento e como interpretação da própria fé"(7)

As ciências humanas não têm a possibilidade de perceber aDeus numa situação, nem tampouco de descobrir o sentidofundamental dos acontecimentos. A fé, ao contrário, partindo dasituação, volta à esta percebendo como atuam, nesse contexto, osagentes "teológicos" (os quais só podem ser percebidos pela fé).Elementos da realidade cotidiana, próprios de nossa situação,adquirem então uma densidade teológica que permite conhecê-los melhor. Partindo da realidade, a comunidade de crentesretorna à mesma para poder indicar como Deus se manifesta namesma, assim como também para apontar aquelesacontecimentos que vão mediando a presença do Reino (suasmanifestações poderosas) em nossa conjuntura.

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Convém ilustrar isto através de um exemplo. Quando em1983, reuniu-se em Vancouver, Canadá, a VI Assembléia Geraldo Conselho Mundial de Igrejas, foi encomendado à "Sessão nº6" desse encontro ecumênico, a tarefa de refletir sobre o sentidoque têm em nosso tempo as lutas pela justiça e pela dignidadehumana. Os dados do contexto são bem conhecidos e o ConselhoMundial de Igrejas os havia comunicado, com antecedência,àqueles que participaram nesse grupo de trabalho: aceleração dacarreira armamentista que acarreta perigo de um holocaustonuclear geral. Isto tem intensificado, por um lado, as tensõesinternacionais: o risco deste tipo de conflitos é muito maior doque em todo o período que transcorreu desde 1945 até 1980. E,por outro lado, estes elementos colaboram para que se reforcemregimes de segurança nacional em todo o mundo, o que acarretagraves violações dos direitos humanos. As reivindicaçõespopulares são desconhecidas. O capital transnacional, fascinadopela exigência do lucro, desconhece a dignidade dos sereshumanos e da natureza. Em virtude dessa fascinação, investemais e mais recursos na corrida armamentista, apropria-se decotas de renda cada vez maiores (o que conduz ao aumento donúmero dos pobres e deterioração de sua qualidade e vida); alia-se com regimes injustos como o que faz prevalecer o apartheidna República da África do Sul, apóia outras formas de racismo eexploração humana. O quadro é bem sombrio, sem sombra dedúvidas.

Contudo, a leitura dos sinais dos tempos seria incompletase só fossem levados em conta aqueles dados que são percebidosem relação aos poderes estabelecidos. Quer dizer, uma leitura darealidade não se esgota com uma fenomenologia e uma análisedos fatores de poder. Essa aproximação necessariamente deve ser

complementada, levando em conta aqueles que levam em si aspossibilidades de um novo futuro, ou seja, os sinais deesperança. Para isto, é imprescindível levar em consideração odesenvolvimento das forças oprimidas por esses mesmos poderesque cobrem nosso horizonte com escuras nuvens, cheias de mauspresságios. Quando se observa a prática popular, percebe-se queela é a que procura transformar o presente, fazê-lo pleno denovas possibilidades históricas. Para isso, os movimentospopulares não só resistem à dominação e à injustiça, mastambém se organizam para obter algumas vitórias. Nessa prática,os de baixo demonstram grande imaginação e criatividade, aomesmo tempo, que uma grande generosidade de vida: muitasvezes estão dispostos a arriscar tudo para defender e promover ajustiça e a dignidade humana. Isso supõe tensões e combates comas forças que negam a vida: daí as terríveis lutas quecaracterizam nossa época.

Como devem entender as Igrejas esta situação? Ou,colocando a questão de outras maneiras: onde está Deus nessequadro? Qual é o sentido teológico dessa conjuntura? A respostaa essas perguntas está dada pela chave hermenêutica utilizadapelo Conselho Mundial de Igrejas para poder discernir a ação dasIgrejas em fidelidade à vontade de Deus. Ou seja, o que contapara as Igrejas, para a teologia, não é somente o conhecimento darealidade através dos dados científicos, mas também através daação de Deus nessa situação, que se dá de acordo com umsentido. Esta, a fé percebe a partir da memória da revelação deDeus culminada em Jesus Cristo e explicitada através dasSagradas Escrituras. Aplicar estes últimos elementos (próprios einerentes ao conteúdo da fé) sobre os dados da análise, permite àcomunidade eclesial (mundial ou local, não importa) elaborar

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chaves que sintetizem as referências da realidade concreta, com aação de Deus na história, com o sentido desta última que tendepara o Reino de Deus, e com a vida da mesma comunidadeeclesial (que foi chamada a participar ativamente na situação e acolaborar com Deus na sua obra de construir o Reino — cf. 2 Co6.2). Deste modo, com elementos próprios, a partir de sua fé, acomunidade eclesial aprofunda e amplia a leitura dos sinais dostempos.

Por ocasião da Assembléia do Conselho Mundial deIgrejas, isso se manifestou quando se utilizou a chave doApocalipse. Por quê? Porque, por um lado, a acumulação depoder que se produz no conglomerado de forças que se reúnemno estado de segurança nacional é tão grande, e sua capacidadedesumanizadora é tão forte, que só pode ser comparada à grandebesta apocalíptica. Além disso, assim como no último livrobíblico há outra besta que está a serviço da primeira, que estálogrando que as massas adorem a besta maior, em nosso mundopode-se ver como, por ordem daqueles que têm o controle dosmeios de comunicação social, se manipula uma propaganda queconsegue o apoio de grandes massas para o projeto dedenominação dos poderes opressores. Estes, por sua vez, erigem-se em ídolos. O estado de segurança nacional, que permitegrandes lucros ao capital transnacional que o alenta, intimamenteligado àquele, ambos servidos pelos que possuem domíniossobre os sistemas de comunicação, aparecem de novo nocontexto do Apocalipse quando se descreve como perece agrande Babilônia e sofrem os poderes aliados à mesma: osestados ("reis", segundo a linguagem da época: Ap 18.9), oscomerciantes (Ap 18.11 equivalentes às companhiastransnacionais de nosso tempo) e os pilotos, navegantes e

marinheiros (Ap 18.17-18) responsáveis pela comunicaçãodaquela época.

Isto não quer dizer que a visão apocalíptica de São João secumpre em nosso tempo. As Igrejas entendem, não obstante, queela ajuda a compreender melhor os acontecimentos queexperimentamos hoje, a nível mundial. E, mais ainda, do mesmomodo, que no texto bíblico, a primeira preocupação é com a vidadas igrejas que, naqueles tempos difíceis de perseguição, eramprovadas pelos acontecimentos e chamadas a serem fiéis, hoje,também, as igrejas experimentam essa urgência de serem como aigreja de Esmirna, que era rica apesar de sua pobreza. Igreja quefoi submetida a duras provas, mas chamada pelo Espírito deDeus a ser fiel até à morte, pelo que receberia a coroa da vida(Ap 2.8-11).

Esta chave apocalíptica tem, além disso, outro elementoque a torna pertinente à situação atual: após a luta cósmica contraas bestas e seus aliados, através da qual estes foram derrotados, oautor teve a visão de "um novo céu e uma nova terra", a "novaJerusalém", que baixava desde o alto, cidade sem muros, livre,onde não existirão o pecado, a morte e nem a dor (Ap 21.1-4).Mensagem de esperança, mensagem de fé, tão necessárias parauma situação como a nossa.

Significa que o realismo que provém das ciências queanalisam as situações históricas não é definitivo. O realismopleno não é resultado da acumulação de dados e problemas, masaquele dá um sentido a esses elementos através de uma tarefahermenêutica que discerne a ação de Deus e a meta (o Reino deDeus) para a qual se orientam os acontecimentos, entre os quais

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Deus se faz presente. O realismo de que falamos pode serconcebido como um realismo escatológico, que sempre dáespaço ao mistério, ao sacramento, à presença atuante de Deusna história e no mundo, procurando abrir os caminhos que levamao Reino. Este realismo escatológico leva a considerar os pobrescomo os beneficiários primordiais das forças que dão sentido àhistória, que constroem o Reino. Portanto, a partir da fé, eprocurando encontrar pistas para a pastoral, a análise deveatender, em primeiro lugar, a expressão da força dos pobres,meio privilegiado desse Espírito que geme com sons indizíveis,intercedendo assim pelo bem de todos aqueles que compõem afamília humana. Isto nos leva à parte final deste capítulo.

A Leitura dos Sinais de Nosso Tempo Latino-Americano

Certamente, a leitura dos tempos latino-americanos nãopode deixar de lado a análise da conjuntura mundial. A AméricaLatina não é uma realidade isolada do mundo, e grande parte doque ocorre em nossos países é conseqüência direta daquelastendências históricas que revisamos brevemente quando semencionou o trabalho de análise cumprido pelo ConselhoMundial de Igrejas, para poder chegar a compreenderapropriadamente a partir de nossa fé, o que significa lutar pelajustiça e pela dignidade humana. Portanto, não vamos apresentarnovos detalhes sobre o que já foi dito. Agora, nos propomos aindicar alguns pontos muito característicos da América Latina,que nos ajudam a compreender a situação para orientar a açãopastoral.

Em primeiro lugar, as últimas décadas da história latino-

americana têm sido cenário da irrupção de um novo sujeitohistórico até pouco tempo silencioso na vida de nossos povos. Omesmo está constituído pelos setores populares: operários daindústria, camponeses, assalariados rurais, desempregados etc.Em resumo: aquelas vastas massas oprimidas de nossas terras. Airrupção firme das mesmas na história latino-americana estádesestabilizando a ordem vigente. Aqueles que têm o podernessa situação já não têm a facilidade de antes para reprimir opovo: quando o fizeram durante os últimos vinte anos recorreramrepetidamente ao uso da força, caindo em claras violações dosdireitos humanos.

Mas a irrupção dos setores populares como o sujeitohistórico emergente no processo latino-americano não quer dizerque eles tenham chegado a dirigir hegemonicamente o processohistórico. No futuro o farão, indubitavelmente, mas porenquanto, sua presença cada vez mais significativa nosacontecimentos latino-americanos quer dizer que aqueles quenão incidiam sobre eles, aqueles que não tinham importância,agora têm manifestado sua presença e passam gradualmente àofensiva para poderem determinar o desenvolvimento de seupróprio destino (8).

Alguns elementos caracterizam sua presença:Primeiro, estatisticamente constituem a maioria

significativa da população. E, entre eles, o grupo mais extenso,segundo a idade, é dos jovens, que se reproduz aceleradamente.

Segundo, a maioria está composta por pobres, e no caso dedezenas de milhões, por miseráveis. Portanto, ávidos de justiça.Como foi dito na Conferência de Puebla, "dos países que

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constituem a América Latina sobem ao céu um clamor cada vezmais tumultuoso e impressionante. É o grito de um povo quesofre e pede justiça, liberdade, respeito aos direitos fundamentaisdo ser humano e dos povos" (9).

Terceiro, entre eles estão os grupos oprimidos da AméricaLatina, especialmente os índios e os negros.

Quarto, a presença ativa e valente das mulheres é uma desuas notas mais salientes.

Quinto, essas massas demonstram possuir uma grandecapacidade de organização e uma poderosa criatividade.

Sexto — e este é o ponto mais importante — a região daAmérica Latina na qual se tem conseguido avançar mais e, emalguns casos, tomar a condução do processo, é na AméricaCentral e Caribe. Os acontecimentos na Nicarágua e El Salvadorsão provas disto.

A irrupção do novo sujeito histórico não só provoca adesestabilização do status quo, mas também introduz elementosinéditos em nossa história. Entre eles mencionamos doisintimamente ligados: a busca de uma sociedade maisparticipativa, e a formulação de novas utopias (a busca de novosmodelos de sociedade) (10). As conseqüências históricas destesfatos são incalculáveis no prazo dos próximos trinta anos.

Em segundo lugar, é evidente também que a resposta quedão os círculos que repartem o poder, a esta irrupção dos setorespopulares na história latino-americana, tem sido rápida e brutal.

Durante os anos 70, aplicou-se com dureza uma política anti-popular de forma massiva. Entre outras coisas foi violada,inúmeras vezes, a integridade das pessoas humanas. Bastarecordar os acontecimentos do Chile a partir de setembro de1973, os "desaparecidos" da Argentina, o genocídio decamponeses na Guatemala e El Salvador, assim como também ouso indiscriminado da tortura nos procedimentos político-militares.

Todos estes atos puseram em evidência o advento doestado de segurança nacional que, ao mesmo tempo queprocurou frear violentamente o desenvolvimento dosmovimentos populares, também destruiu as instituiçõesdemocráticas liberais na maioria dos países latino-americanos. Apartir da idéia de que se vive uma situação de guerra latentetoma-se uma atitude sumamente agressiva. Ao não aparecer oinimigo externo, aquele setor do aparato do Estado que assume omonopólio do uso e do controle da violência, fez uso da mesmacontra o chamado "inimigo interno". A segurança do sistemadominante prevaleceu sobre a segurança do povo (11).

Um dos piores efeitos deste processo foi o intento demilitarização da sociedade, que tem procurado se impor sobrenossos povos. Diante das aspirações democráticas e departicipação dos setores populares, pretendeu-se (e ainda sepretende) impor um tipo de sociedade organizada rigidamente decima para baixo, na qual não há espaço e nem disponibilidadepara a discussão de alternativas sociais. Isto, por sua vez, temsido acompanhado por movimentos que têm permitido aosmembros do setor dominante (no texto original falava-se de um“setor catastrante”, como a palavra “catastrante” não foi

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encontrada em nenhum dicionário da língua portuguesa nemespanhola, a língua materna do autor desse livro, corremos orisco de substituí-la pela palavra “dominante”) ter acesso a altospostos chaves nas instituições que servem de marco àorganização social. O resultado de tudo isso, tem sido umaumento da rigidez social, ao mesmo tempo que uma drásticalimitação do número daqueles que participam nos processos detomada de decisões. Esse processo é conhecido como a ascensãodo fascismo na América Latina.

Em terceiro lugar, no plano econômico (sob o controle doestado de segurança nacional e graças a seus serviços) podem-seperceber, pelo menos, cinco coisas importantes:

Primeiro, a adoção de um novo modelo, que tomou o lugardo de "substituição de importações" e que está orientado para ainternacionalização do capital e do trabalho. Aproveitado pelascompanhias transnacionais (América Latina é a região doTerceiro Mundo onde é mais profunda a penetração do capitaltransnacional), o novo modelo evidentemente não serve pararesponder às necessidades de nossos povos.

Segundo, a situação destes agrava-se mais ainda emvirtude da dívida externa imensa que padece a região: mais de300 milhões de dólares. O que significa a necessidade de ter quepagar altos juros. As exportações são para tal fim. Emconseqüência, é praticamente impossível fazer inversões emfavor do crescimento econômico.

Terceiro, isto tem como conseqüência uma clara situaçãode recessão: está diminuindo o produto interno bruto da grande

maioria dos países latino-americanos, baixa a produção e cresceo desemprego.

Quarto, isto significa também uma clara incapacidade (demanter-se as constantes atuais) para poder restabelecer um ritmode crescimento na maior parte das economias latino-americanas.

Quinto, a maior distorção, entretanto, observa-se naimportância desmedida que tem o dinheiro (especialmente adivisa forte) que tem se transformado num bem que oferecemuitas vezes mais lucros que a produção de mercadorias. Todaesta situação pode ser vista sumariamente nos seguintes termos:a fascinação do lucro leva a tirar a vida dos setores populares, adiminuir as oportunidades de vida dos pobres e aumentar osacrifício dos oprimidos.

Em quarto lugar, motivada certamente pela irrupção dossetores populares na história latino-americana, os quais invademtambém as Igrejas, observamos nestes importantes movimentosde renovação, a existência de contradições e polêmicas no seiodas mesmas. Por um lado, estão aqueles que pretendem manter afé em seus "odres velhos", naqueles marcos que apenas tocam avida individual do crente. Nestes casos não se pode falar derenovação da Igreja, mas de reação conservadora. E, por outrolado, estão aqueles que procuram plasmar uma nova forma de serigreja na América Latina. É a igreja dos pobres, igreja que surgedo povo. E assim como os setores que compõem este lutam nasociedade para alcançar melhores níveis de participação erelação estruturadas mais democraticamente, do mesmo modo,naqueles grupos que colaboram neste processo de renovação,observa-se a formação de comunidade onde o povo, além de

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celebrar sua fé, tem um gosto antecipado do que pode ser aparticipação democrática. São as Comunidades Eclesiais de Base(12). Nelas, o povo se organiza, conscientiza-se, diz sua palavra.Nelas, estuda-se a Bíblia, reúne-se para orar e festejar. Nelas, vaicrescendo e amadurecendo, através de um diálogo permanente,entre a leitura da realidade e a leitura da Bíblia, entre a análise desua situação e sua própria reflexão teológica sobre essa situação.Nelas, os setores populares, de cunho cristão, tomam coragempara unir suas forças com outros grupos na tentativa de construiro Reino de Deus, república dos pobres.

Isto significa uma tomada de consciência de que o povonão cresce só em número, mas também em maturidade. E assimvai aprendendo uma coisa fundamental, só perceptível aos olhosda fé: que frente ao poder aparentemente avassalador dosgrandes, o Espírito de Deus enche de coragem os pobres ehumildes, os quais em sua simplicidade chegam a desequilibrararrogantes projetos daqueles. É o que poderíamos chamar "arazão evangélica". É o que São Paulo, na primeira Epístola aosCoríntios, chama de "a loucura da cruz". É aqui onde a fécompleta e aprofunda a análise da realidade: Ante o que fezDeus, não se torna louca a sabedoria deste mundo? Primeiro,Deus manifestou sua sabedoria, e o mundo não reconheceu aDeus nas obras da sabedoria. Então, Deus quis salvar os quecrêem por meio da loucura que pregamos.

Com efeito, a "loucura" de Deus é muito mais sábia do quea sabedoria dos homens; e a "debilidade" de Deus é muito maisforte do que as forças dos homens (cf. 1Co 1:25). “Irmãos,fixem-se em quem Deus chamou. Entre vocês há poucos homenscultos, segundo a maneira de pensar; poucos homens poderosos

ou que vêm de famílias famosas. Bem se pode dizer que Deusescolheu ao que o mundo tem por néscio, com o fim deenvergonhar os sábios; e escolheu o que o mundo tem comodébil, para envergonhar os fortes. Deus escolheu o povo comume desprezado; elegeu o que não é nada para rebaixar o que é,assim ninguém poderá louvar a si mesmo diante de Deus" (1 Co1.26-29).

Notas

1. Numa obra clássica da Reforma Protestante do Século XVI, MartinhoLutero tratou este assunto com agudez sem par na história da teologia. Umateologia cativa é sintoma de uma igreja cativa. E o cativeiro da Igreja apontapara um ato extremamente grave: o cativeiro da Palavra de Deus. A liberdadedo Espírito Santo move a Igreja ao presente e ao futuro: o passado é o pontode partida, mas não é agente de controle do presente ou do futuro. Cf. MartínLutero: La Cautividad Babilónica de la Iglesia, In Obras de Martín Lutero,Tomo I, pp. 171-259, Buenos Aires, Ed. Paidós; 1976.

2. Veja-se o excelente livro sobre este particular de Juan Luís Segun do: LaLiberación de la Teología, Buenos Aires, Ed. Carlos Lauhlé, 1975.

3. Romanos 15.22-24.

4. Dizemos "ainda" porque esta chave política, de acordo com Juan Luis Se-gundo, foi a chave de Jesus para dar sentido à sua ação: o Mestre da Galiléiaentendeu a si mesmo como portador de uma mensagem transformadora darealidade, uma mensagem, portanto, política (a "boa nova aos pobres"). SãoPaulo, ao perceber que esta modificação profunda não se produzia, viu-seobrigado a explicitar o conteúdo de sua fé cristã em termos de uma chaveantropológica. A mudança que ocorre a partir da ressurreição de Jesus nahistória afeta em primeiro lugar o ser humano. Esta chave antropológica, pós-pascal, perfila-se a partir da tomada de consciência da escatologia paulina, que"torna possíveis e necessárias estas duas afirmações: o mundo mudaradicalmente para o homem graças a Cristo e o mundo não tem mudado em

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nada com Cristo. O Reino já chegou com poder e o Reino não chegará jamaiscom poder na história". (Juan Luís Segundo, El Hombre de Hoy Ante Jesús deNazaret, Vol. 11/1, p. 509, Madrid, Ediciones Cristandad, S.L., 1982.

5. Severino Croatto: Liberación y Libertad — Pautas Hermémicas. Lima,CEP, 1978, p. 5.

6. Ibid., p. 16; "Essa é a profunda diferença entre a práxis como homem e apráxis como cristão. Uma vez descoberto a Deus no acontecimento por meioda fé, ele aparece exigindo ao que descobre muito mais do que daquele quenão descobriu, que atua num plano meramente humano. Esse é um dossentimentos mais profundos do ser "cristão", do "conhecer" a palavraconscientizadora de Deus.

7. Ibid., pp. 17-18.

8. Veja-se neste sentido, o extraordinário texto de Gustavo Gutiérrez: LaFuerza Histórica de los Pobres , Lima, CEP, 1979.

9. III Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano: La Evangelizaciónde América Latina, 1979, n.° 87.

10. Por exemplo, na Nicarágua, um modelo econômico de satisfaçã o denecessidades básicas com a participação das maiorias. Sobre o exercício darazão utópica entre os povos da América Latina, ver de Raúl Vidales y LuísRivera Pagán (edits.), La Esperanza en el Presente de América Latina, SanJosé de Costa Rica, DEI, 1983, pp. 257-295.

11. Ver de Julio de Santa Ana, Problemas, limites, potencial y mediaciones enla marcha hacia la democracia en América Latina , in Raúl Vidales e LuísRivera Pagan (edits.), Op. Cit., pp. 189-202.

12. A literatura existente sobre este tema é muito vasta. Permitimo-nosdestacar entre a produção dos últimos anos, o livro editado por Pablo Richarde Guillermo Meléndez, La lgresia de los Pobres en América Central, San Joséde Costa Rica, REI, 1982.

CAPITULO IVCristo Tomando Forma na Sociedade e na

IgrejaNo desenvolvimento de nosso pensamento temos insistido,

por um lado, no fato de que a situação que participamos naAmérica Latina está exigindo dos cristãos e das igrejas quenossas posições tradicionais sejam superadas: nosso tempo nãocondiz com as atitudes dogmáticas, apologéticas ou acadêmicas.É um momento da história no qual se está ascendendo umatomada de consciência da primeira da práxis. O ponto de partidade toda reflexão teológica e de organização da pastoral é, pois, aprática histórica das comunidades cristãs. No entanto, tambémtemos enfatizado, que para não perder o rumo em nossocaminhar, é necessário referir-nos, constantemente, àqueleselementos da memória da comunidade eclesial que indicam oconteúdo da fé que anima: por isso foi importante dar umaolhada naquelas referências bíblicas que permitem entender o

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que significa a ação pastoral. Mas, as mesmas, por sua vez,devem plasmar-se em situações concretas, mutáveis, que podemser discernidas através da análise conjuntural, da leitura dossinais dos tempos. Essa leitura incide sobre a consciência dacomunidade eclesial e sobre a explicitação do conteúdo da fé.Mas, por sua vez, a comunidade eclesial, desde sua perspectivade fé e graças a ela, chega a ter uma compreensão mais profundae global da situação em que se encontra. Na acumulação dedados e na sistematização dos mesmos que nos oferecem asciências sociais, a perspectiva que vem da fé acrescenta aindiciação da ação de Deus, dos sinais que permitem perceber apresença de Jesus Cristo, do Espírito Santo, dos caminhos(trilhas) que conduzem ao Reino através dos caminhos domundo.

Marchar pelas mesmas é acompanhar a ação de Deus. Porisso, porque Ele chama o povo a ser seu colaborador, seuajudante (cf. 2 Co 6. 1), é urgente perceber sua presença entrenós, para unirmo-nos à sua obra. É uma afirmação central dopensamento neotestamentário que, a partir de sua ressurreição,Jesus Cristo toma forma tanto na sociedade como na comunidadecristã. Dietrich Bonhoeffer, cujos conceitos neste sentido,recordamos anteriormente, tem reiterado enfaticamente estaafirmação. Ela é decisiva para a ação comunitária da igreja, paraa pastoral. Levando em conta este caráter da mesma, convémaclarar seu conteúdo.

O que significa dizer que Jesus toma forma na sociedade?De que maneira isto está ocorrendo entre nós? Como pode a féindicar a forma de Jesus Cristo, do Jesus de Nazaré ressuscitado,entre essa complexidade enorme na história que nos cabe viver?

Para buscar responder a estas perguntas, mantendo a tensãonecessária entre as exigências da encarnação, a Cruz e aressurreição de Jesus, o ponto de referência deve ser a própriavida e os ensinos do Jesus histórico.

A encarnação de Deus em Jesus Cristo evidencia anecessidade de evitar toda metafísica, teoria ou abstração quandonos referimos à sua pessoa. Não estamos nos referindo aconceitos etéreos, mas a uma pessoa que morreu, foi condenada amorrer na cruz, e que ressuscitou com seu corpo. Portanto,quando se indica a forma que Jesus está tomando na sociedade,deve-se ressaltar a tentação de fazê-lo em termos espiritualistas,abstratos, ideais. A encarnação de Deus em Jesus Cristo nos levaa considerar a sua presença através de mediações históricasconcretas.

Do mesmo modo, a realidade da cruz que Jesus teve quesofrer nos exige sermos conscientes de que a presença de Deusno mundo não se dá de maneira unívoca, mas em realidadesmarcadas pela ambivalência. Com efeito, como se pode pensarque Deus esteve encarnado num homem que teve que padeceruma morte vergonhosa? A cruz é a manifestação de que osmomentos decisivos, para o desenvolvimento da comunidade dafé, estão marcados pela imprecisão e pela ausência de clareza: afé pode penetrar nessa ambivalência opaca, indo além do caráterprosaico da vida cotidiana, para perceber aqueles elementospróprios da ação de Deus no mundo, os quais fecundam arealidade com novas perspectivas históricas, mais próprias doReino que esta fé proclama. Como escreveu São Paulo arespeito: "Olhem que agora vemos como num espelho ruim e deforma confusa, mas, então, será face a face. Agora, somenteconheço em parte, mas então conhecerei a ele (o amor, a Deus)

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assim como ele conhece a mim" (1 Co 13.12-13). Essaambivalência apareceu fortemente na cruz de Jesus Cristo. Masisto só foi compreendido a partir de sua ressurreição.

A experiência pascal significa, por sua vez, que essapresença de Deus no mundo, essa forma de Jesus Cristo nahistória e na sociedade, que se dá através de mediaçõeshistóricas, portanto ambivalentes, não podem ser consideradasdefinitivas. Assim como a morte e o túmulo não foramdefinitivos para Jesus, visto que não conseguiram aprisioná-lo,do mesmo modo hoje, a forma que Jesus Cristo vai tomar hoje nasociedade e na comunidade cristã, não é conclusiva. Quer dizer,a ressurreição significa que não há coisas definitivas senãoaquelas que Deus propôs como tais. É o caso do seu Reino ou damaneira como julgará as nações.

Aqui, então, voltamos à vida e aos ensinos de Jesus. Énossa referência para discernir sua forma presente entre nós hoje.E esse ensino (baseado em sua vida) é paradoxal: por um lado,assinala que sua forma é a de um servidor; é a clara mensagemque deixou a seus discípulos na noite anterior à sua morte,quando no transcurso da última ceia que teve com eles, tomou abacia e a toalha para lavar-lhes os pés; logo após, lhesesclareceu: "entendem vocês o que eu fiz? Vocês me chamam: oSenhor e o Mestre. E dizem a verdade porque eu o sou. Se eu,que sou Senhor e Mestre, tenho lhes lavado os pés, tambémvocês devem lavar os pés uns dos outros. Tenho lhes dado oexemplo, para que vocês façam o mesmo que eu lhes tenho feito.Porque em verdade lhes digo: O escravo não é mais do que oSenhor, e o enviado não é mais do quem o envia" (Jo 13.13-16).É paradoxal esta indicação, porque afirma que a presença de

Jesus, kyrios (Senhor) e condutor de um movimento históriconão se dá através de manifestações de poder, mas sim deservidão e humilhação de si mesmo.

Este caráter paradoxal das indicações de Jesus é reiteradoquando levamos em conta seu ensino sobre o juízo das nações(Mt 25.36-41). Segundo o mesmo, o Filho do Homem (um dostítulos messiânicos conferidos a Jesus nos Evangelhos sinóticos,e que ele mesmo aceitou: cf. Lc 9.26) separará os escolhidos dosrejeitados, de acordo com cada um deles o tenham servido...através das pessoas pobres, marginalizadas, débeis, indigentes,prisioneiros, as quais em nosso tempo são considerados como"os condenados da terra". Ou seja, Jesus Cristo aparecemisteriosamente, sacramentalmente, entre eles. Benoit Dumasdisse que o rosto dos pobres do nosso tempo é o rostodesfigurado do ungido de Deus, do qual fala o profeta nocapítulo 53 do Livro de Isaías (1). O Filho do Homem, juiz todo-poderoso, escolheu tomar forma na história para julgar os ricos,fortes e soberbos, através dos pequeninos e débeis. Neste ensino,Jesus se manifesta totalmente coerente com sua vida. Nele "Jesusse volta preferencialmente para o povo simples, os humildes,pobres, enfermos, inválidos, pecadores sem orgulho. Quanto aosdemais, só recebem a sua mensagem na medida em que aceitamum Messias de procedência humilde e de uma atividade voltadaresolutamente para o povo. A corrente messiânica que leva àJesus é a dos "pobres de Javé": os indigentes e os oprimidos,aqueles cuja situação econômica e social os leva a cultivar aesperança do Reino e a um desejo total de justiça, os humildessujeitos à vontade de Deus e com um coração disposto a recebê-lo" (2).

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O paradoxo real (porque não é só de linguagem, mastambém aparece através do desenvolvimento dos processoshistóricos) consiste no fato de que os mansos e desamparados sãoos que se encarregam, uma ou outra vez, de dar seu veredicto aosfortes (3). Como exemplo, basta citar entre muitos outros daatualidade latino-americana, o caso das mães da Praça de Maio,em Buenos Aires. Durante anos, quintas-feiras à tarde apósquintas-feiras à tarde, indefesas, elas estavam ali a protestarcontra a violência desencadeada pelo governo militar sobre suasfamílias e a denunciar o desaparecimento de seus filhos e/ounetos. Foram insultadas, submetidas a rudes tratos,desconsideradas. Eram chamadas "as loucas da Praça de Maio".Não obstante, com sua obstinação (nascida de sua fraqueza)apelaram à consciência de vastos setores da população argentina.Logo depois da guerra das Malvinas, esse grupo se transformouno juiz inexorável dos arrogantes militares que por sete anos,aterrorizaram a Argentina. Uma vez mais, como no cântico deMaria, o Senhor derruba os poderosos dos seus tronos e exalta oshumildes (Lc 1.53). Mas o que é importante assinalar aqui é quea mediação histórica que desencadeou esta mudança naArgentina passou através daquelas mulheres pobres e desvalidas,que encarnavam com seu protesto o clamor que os oprimidos deseu país queriam expressar e não se atreviam a fazê-lo.

Jesus Cristo, assumindo forma na história, significa queestá aproximando-se como juiz entre os desprezados edesvalidos. A reflexão sobre a orientação pastoral, levando emconta os sinais dos tempos, necessita discernir entre os pobrescomo Jesus Cristo, servidor e juiz, que vai tornando forma entreas circunstâncias mutáveis do processo social.

Mas, Jesus Cristo toma forma também na igreja. Entre asmuitas passagens do Novo Testamento, uma das maisimportantes é aquele velho hino das comunidades cristãsprimitivas, recolhido por São Paulo na Epístola que enviou aosFilipenses, quando lhes escreveu:

“Tenham entre vocês o mesmo sentimentoque teve Cristo Jesus: Ele que era de condiçãodivina, não usurpou ser igual a Deus, mas sehumilhou a si mesmo até já não ser nada,assumindo a condição de escravo, e chegou aser semelhante aos homens. Havendo secomportado como homem, humilhou-se e sefez obediente até à morte — e morte numacruz. Por isso Deus o engrandeceu e lheconcedeu o nome que está acima de todonome. Para que diante do nome de Jesustodos se ajoelhem nos céus, na terra e entre osmortos. E toda língua confesse que JesusCristo é o Senhor, para a glória de Deus Pai."

(Fp 2.5-11)

Paulo se dirigiu à comunidade de Filipos, possivelmenteaquela que estava mais próxima do seu coração. Propôs a seusmembros que se estruturassem, que se formassem segundo "osmesmos sentimentos" de Jesus Cristo. Eles se reúnem na cruz,mas o hino que transcreveu imediatamente lhes explicita. Assimcomo Jesus Cristo, Filho de Deus não fez de sua origem ummotivo para colocar-se acima do resto dos seres humanos, acomunidade cristã (a Igreja) deve orientar sua maneira de ser esua ação através de um processo de auto-humilhação e

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identificação com aqueles que sofrem e padecem opressão. Destemodo, na Igreja realiza-se um processo mediante o qual o caráterdo Servo Sofredor de Cristo começa a ser manifestado,testemunhado pela comunidade de crentes. A forma de Jesus nãoé a de um poder agressivo e arrogante, mas daqueles que servemaos mais pobres.

Quando comecei meus estudos de teologia, foi RichardShaull quem me ajudou a compreender este conceito. Ele foiconvidado para dar um curso breve na Faculdade Evangélica doTeologia de Buenos Aires. Isso ocorreu poucas semanas depoisda morte de Eva Peron, cuja influência sobre as massaspopulares da Argentina ainda se mantém viva. Como todos osvisitantes que davam cursos na Faculdade, Shaull também,recebeu um convite para pregar na capela, para os estudantes.Nessa ocasião, seu texto foi precisamente este da Epístola aosFilipenses. Qual não seria nossa surpresa, quando Shaull colocoua pergunta sobre quem havia estado dando conta desse espíritode Cristo na Argentina, durante aqueles tempos. Com a firmezaprofética que lhe é própria, indicou: "Certamente não foram asigrejas. No panorama argentino quem parece haver seguido estecaminho foi Eva Perón”.

Para alguns, foi escândalo. Para outros, foi descoberta. Opensamento de Shaull, influenciado pelo de Dietrich Bonhoeffer,concebia a Igreja como Cristo sendo conformado entre aquelesque compõem a sociedade humana. Anos mais tarde, analisandoa situação que emergia além da década de 60, já marcada porprocessos que apontavam para situações de desumanização nahistória, entre as quais deve-se mencionar a perda da consciênciacomunitária entre os seres humanos, incluindo aqueles que estão

nas igrejas, chegou a escrever que o sentido da ação da Igreja nomundo aparece quando — como Jesus Cristo — abandona suasprerrogativas e se une solidariamente àqueles que são portadoresde uma realidade nova na história, verbi gratia: os pobres eoprimidos (4).

Quando Jesus Cristo toma forma na vida da Igreja, esta jánão pode fazer de si mesma (suas estruturas, instituições,programas, autoridades etc.) o foco de sua atenção. Quando JesusCristo forma a Igreja, então sua ação orienta-se para a vidadaqueles que estão participando nos processos da história. Emvez de uma Igreja centralizada e focalizada em si mesma, temosuma Igreja que serve nas fronteiras do mundo. A proclamação doReino de Deus, o anúncio da boa notícia aos pobres não serealiza entre os burgueses e os ricos, mas sim, ali onde estão ospobres.

Para esclarecer estes conceitos, vamos continuar refletindosobre três elementos necessários para que a ação pastoralacompanhe a maneira como hoje Jesus Cristo vai tomando formana sociedade e na igreja diante dos olhos da comunidade decrentes.

A Opção Fundamental

Como foi enfatizado previamente (5), a vocação para serpastor, segundo a Bíblia, não tem somente uma dimensãoreligiosa, mas também política, à qual a religiosa estáintimamente relacionada. É uma vocação que se coloca para acomunidade da fé, povo itinerante, que está chamado a abrir seus

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caminhos para o Reino de Deus. A pastoral, portanto, deve serformulada, entre outras coisas, no contexto de conflitos e tensõesde caráter político: não pode escapar deles. É em contextos dessaíndole que vai se desenvolvendo uma nova forma de ser igreja naAmérica Latina. Ela transcende aos confessionalismos que temosherdado. Sua definição não se dá em torno de dogmas, mas emrelação a esse novo sujeito histórico que irrompeu vigorosamenteno cenário latino-americano: os setores sociais populares, ospobres de nossa sociedade.

O povo cristão que se reúne na comunidade está sendochamado a ser pastor, acompanhante das massas populares denossos países. Esta opção está sendo tomada em diferentessituações, entre as quais merecem ser citadas a dos países centroamericanos. Pablo Richard e Guillermo Mélendez referindo-se acomo esta opção tem sido assumida em El Salvador, indicamcomo isto foi fruto crescente, contato dos cristãos com osnúcleos organizados do povo, que atuam de diversas maneirasem favor de uma mudança fundamental nesse país. Ou seja,falando com conceitos desenvolvidos mais acima, odiscernimento dos sinais dos tempos levou as comunidades acompreender como Jesus Cristo estava também tomando formana sociedade salvadorenha, como estava traçando sulcos àssituações inéditas, impulsionado pela ação de seu Espíritomovendo-se entre o povo. E, por sua vez, levou as própriascomunidades à convicção de que deviam incorporar-se a essamarcha popular, servindo-a, alentando-a, participando nela demodo solidário.

O contato com os setores populares organizados provocouum processo de conscientização entre os cristãos. E, por isso

mesmo, os editores assinalam que: "Este processo fezamadurecer o conceito de uma Igreja que nasce do povo,conceito que a muitos soava como algo estranho e até perigoso,que outros identificavam como um movimento a mais dentro daIgreja (como os cursilhistas e os carismáticos) ou que algunsimaginavam como mais um meio de controle da participação doleigo através de sacerdotes e religiosos. Entretanto, tratava-se damesma e única Igreja salvadorenha, só que convertida desde epelos pobres e que estaria metida de cheio dentro da luta pelalibertação. Daí, que em todas as organizações populares hajacristãos e que em cada comunidade cristã haja cristãos queparticipem nas organizações populares. O mais importante desteprocesso é que a Igreja salvadorenha descobriu a revolução comoespaço de evangelização, como espaço teológico, de conversão,de ecumenismo e de encontro com os crentes. Com efeito, a lutarevolucionária fez sentir aos sacerdotes, aos religiosos, aosservidores da comunidade e às próprias comunidades o passo deDeus pelo seu povo e como a revolução popular evangelizaporque o pobre é evangelizador" (6).

Através dessa revolução, a Igreja salvadorenha adotou umaatitude de pastor com relação ao povo, o que pode ser percebidomediante a maneira como pretendeu servir aos pobres desse povo(7). A opção pastoral que assumiu foi a de seguir ao "bompastor". Isto nos leva novamente a partir da realidade e da práticaeclesial para o texto bíblico. No capítulo 10 de São João,assumindo a passagem do capítulo 34 do profeta Ezequiel, Jesusse declara "o bom pastor", e define a sua função da seguintemaneira: é quem tem a comunicação franca e direta com o povo,para dar a este vida em abundância (Jo 10.10).

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Ao contrário, aqueles que se comunicam com o povo pormeio de vias tortuosas (os quais não entram no curral das ovelhaspela porta, mas por outra parte) são ladrões e assaltantes queprocuram aproveitar-se do povo. "Mas o pastor das ovelhas entrapela porta" (Jo 10.2), e as ovelhas reconhecem sua voz comoaquela invocação amiga que as conduzem e as guiam para bonspastos. O bom pastor não deixa as ovelhas como presas das ferase saltimbancos: não é como aqueles pseudo-pastores maispreocupados consigo mesmos do que com o bem estar dorebanho (Ez 34.9). O bom pastor caminha à frente de suasovelhas e estas o seguem (Jo 10.4-5). Em oposição, aos mauspastores, segundo o que disse Jesus, não o seguirão: "mas fugirãodele porque desconhecem a voz do estranho" (Jo 10.5). Osdiscípulos não entenderam o que Jesus lhes queria dizer. Domesmo modo, também, as igrejas, às vezes, não entendem que,até que cheguem a ter um verdadeiro contato com o povo e osirvam, até que cheguem a ter com ele essa íntima e entranhávelrelação que se estabelece entre o pastor e suas ovelhas, não vãoser aceitas pelos setores populares.

O conteúdo dessa relação põe de manifesto, por um lado,que a consciência do pastor está intencionada pela existência dorebanho, e que a segurança deste vem, num primeiro momento,da firmeza de seu condutor, de sua capacidade de ir porcaminhos (trilhas) que ajudam as ovelhas a viver. Da mesmamaneira, quando a comunidade põe num nível de maiorimportância suas próprias atividades do que os interessesdaqueles a quem está chamada a servir e acompanhar, estesúltimos a rejeitam. A menos que a comunidade assuma aconsciência do povo, Cristo não começa a tomar a forma do"bom pastor" entre aqueles que confessam o seu nome. Se isto

ocorre, os setores populares, conscientes de que têm sidomanipulados e explorados por muitos, que se declararam seusamigos, para aproveitar-se do povo, vão suspeitar e estabelecerdistância entre si e esses elementos nos quais não reconhecem aJesus Cristo, "o bom pastor".

Jesus mesmo falou desta diferença qualitativa entre ele e osmaus pastores: "Todos os que vieram antes de mim — digo —são ladrões e malfeitores; mas as ovelhas não lhes fizeram caso.Eu sou a porta. O que entra por mim está a salvo. Circulalivremente e encontra alimento. O ladrão entra somente pararoubar, matar e destruir. Mas eu vim para que tenham vida e atenham em abundância" (Jo 10.8-10).

Esta passagem, que acaba de se citar, mostra a opção dapastoral: é para abrir ao povo um espaço (para que passe "pelaporta") em meio à suas lutas na história, no qual lhe seja possívelter liberdade e satisfazer suas necessidades básicas (espaço noqual "circula livremente e encontra alimento"). Liberdade e pãosão duas aspirações profundas na vida dos pobres. Por issomesmo, quando Jesus chegou com uma mensagem de libertação,permitiu ao povo sofrido da Galiléia e de outras partes daPalestina compreender que podiam sacudir o jugo do opressorque a aliança constituída pelo Sinédrio, as forças de Herodes e doimpério romano, lhes impunha suas palavras de promessasefetivas de liberdade que foram compreendidas como umevangelho, como uma verdadeira boa notícia. É assim que opovo reconhece a voz do pastor no meio de suas peripécias.

Também, quando deu de comer às multidões, saciando afome de muitos e ensinando através de atos que o bem-estar na

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vida se consegue melhor compartilhando do que entesourando,os que esperavam justiça compreenderam que a palavra de Jesusnão era vã, que tinha uma substância, uma base em sua própriaprática. Tinha autoridade "não falava como os escribas": comefeito, seu comportamento não era comparável ao dosassalariados, esses mercenários preocupados com o pagamentoque receberão, ao fim de suas funções, mas não com o valor datarefa e o significado da mesma para o povo. Por isso osassalariados que não têm consciência da vida do povo, quandochega a hora do perigo, "fogem abandonando as ovelhas, e olobo as agarra e as dispersa, porque não é mais que umassalariado e não lhe importa as ovelhas" (Jo 10.12-13). Aocontrário, o Bom Pastor dá sua vida pelas ovelhas (Jo 10.11).

Ou seja, a função pastoral, na sua opção fundamental, emfavor da vida abundante para o povo, além de solidarizar-se comeste em suas lutas, supõe também assumir uma posição dedenúncia daqueles que o exploram, manipulam e o traem. NaAmérica Latina, esta posição existiu entre os setores minoritáriosdas igrejas. Entretanto, durante o decorrer das últimas décadas, ovolume social destes setores tem se ampliado notavelmente. E,assim como as ovelhas reconhecem a voz do bom pastor,também a credibilidade das igrejas tem crescidomanifestadamente entre os setores populares. O martírio demuitos cristãos é a garantia dessa nova expressão da igreja naAmérica Latina.

A Opção pelos PobresA leitura dos Evangelhos, especialmente a dos Sinóticos,

dá evidências claras que, através de seu ministério, Jesus optou

pelos pobres. Não se tratou de uma opção "preferencial".Simplesmente colocou-se a seu lado. Só assim se explica suasduras palavras aos ricos (cf Lc 6.24-26), suas exigências radicaisaos mesmos (Lc 18.18-34) e sua ironia contundente com relaçãoà dificuldade total que tem um rico para entrar no Reino de Deus("é mais fácil que um camelo passe pelo buraco de uma agulhado que um rico entrar no Reino de Deus" — Lc 18.25). Só sepela graça de Deus o coração e o comportamento do ricomudassem, ou — dito de outro modo — se o rico deixasse de serrico, poderia salvar-se (Lc 18.27). É indiscutível, portanto, aopção de Jesus pelos pobres. Por isso, sua palavra para eles éuma boa notícia. Para os ricos, ao contrário, é uma exigênciasevera para se arrependerem e mudarem de vida ("Vende tudo oque tens, reparte o dinheiro entre os pobres, terás tesouro no céu;depois vem e segue-me"). Os pobres, entretanto, como pobresrecebem o Reino (Lc 6.20). Por esta razão podem sentir-sefelizes (makarios = bem-aventurados).

Jesus coloca a necessidade da conversão tanto para o pobrecomo para o rico. Se a este, como indicamos acima, exige-lhe oarrependimento como ponto de partida para começar uma novavida, na qual a generosidade e a capacidade de compartilharpredominam, Jesus chama o pobre a uma conversão diferente.Ela consiste por um lado, em superar o medo que tantocaracteriza os pobres frente a seus opressores. É um chamado ater fé, em primeiro lugar. Com efeito, Jesus opõe a fé ao medo:os discípulos "são homens de pequena fé", porque têm medo (Mt8.23-27; Mt 14.27-33). Quando os pobres superam o medocomeçam a manifestar, através de sua prática histórica, os sinaisque marcam a proximidade do Reino de Deus e sua justiça. Terfé é olhar para a frente, possuir o valor para enfrentar situações

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cruciais e decisivas.

E, por outro lado, esse chamado de conversão ao pobre é,em segundo lugar, para que obedeçam à vontade de Deus, queprocura fazer prevalecer o amor e a justiça. Ou seja, o fato de serpobre não é sinônimo de uma vida reta diante dos olhos de Deus.Também o pobre é chamado a "nascer de novo". Não obstante,porque sofre injustiça, opressão e violência por parte dos ricos epoderosos. Deus lhe dá o privilégio de ser herdeiro de seu Reinode justiça, de liberdade e de paz.

Esta opção pelos pobres também é clara em todos osescritos do Novo Testamento, alcançando uma intensidade muitogrande na carta de Tiago, segundo a qual na comunidade cristãnão devem existir diferenças de tratamento entre ricos e pobres.A opção de Deus por estes é patente. "Olhem irmãos, acaso nãoescolheu Deus aos pobres deste mundo para fazê-los ricos na fé?Não será para eles o Reino que prometeu àqueles que o amam?"(Tg 2.5). Por isso a Igreja aceitável aos olhos de Deus é a que,sendo pobre, tem uma riqueza espiritual que se manifestanaqueles difíceis momentos de prova, quando apesar de todos osapertos que deve enfrentar, continua sendo fiel ao Senhor (Ap2.8-11).

A opção fundamental da pastoral, do povo peregrino quecaminha para o Reino pelos caminhos (trilhas) do mundo, sóchega a ser concreta quando é acompanhada pela opção em favordos pobres. Com efeito, são estes que vêem sua vida maisdiminuída, deteriorada, desqualificada. Quando o produto brutolatino-americano baixa, não são os ricos que sofrem, mas ospobres. A possibilidade de vida para eles vai se dissipando. Daí,

que a Igreja tenha que optar por eles. Essa foi a opção de Jesus edas comunidades neotestamentárias. Essa é a opção do povo dafé. Isto só será reconhecido na Igreja, quando esta, por sua vez,acreditar na presença sacramental, misteriosa, de Jesus Cristoentre os deserdados e oprimidos.

Infelizmente, salvo exceções, a história da Igreja há maisde quinze séculos, dá evidência de um cisma entre a instituiçãoeclesiástica e os pobres. Isso levou Benoit Dumas a indicar umadupla alienação da Igreja. "Confessamos a unidade da Igreja,mas uma unidade alienada enquanto esses dois rostos nãotendam a formar o único rosto da única Esposa. De um lado, oCorpo instituído; do outro, as massas sofredoras com as quaisCristo tem se identificado. Se a coincidência não se realiza,Cristo se encontra dividido em suas duas maneiras de dar-se aomundo, e a Igreja alienada, no sentido forte de ser alienada de simesma, de estar fora de si mesma, de seu ser profundo" (8).

Nesta perspectiva, o dinamismo da Igreja que constitui suaunidade, encontrando-se e desvelando a si mesma, é o seguinte: aIgreja se desaliena, entra em si mesma, reduz a diferença entreseus dois rostos. Pois una como é, deve apresentar um únicorosto. Na medida em que o dito encontro não tenha se realizado aIgreja não está totalmente na Igreja:

Enquanto os pobres que esperam sualibertação não saibam nomear a JesusCristo e nem reconhecê-lo em seu corpovisível comprometido junto a eles:enquanto os que esperam em Jesus Cristoe o nomeiam não sabem encontrá-lo,nomeá-lo e esperá-lo na libertação dos

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pobres.

O mesmo sucede com o sacrifício. A Igreja o oferece. Asmultidões deserdadas o vivem. O sacrifício está alienado; não é ode Jesus — perfeito e consumado de uma vez por todas — mas oque a Igreja celebra:

Enquanto os pobres que o vivem nãopossam ver nele, nem nomear ele comofonte de sua vida e de sua libertação;enquanto a Igreja que o celebra nãoencontra nele a força necessária paralibertar a Jesus da paixão que sofre nasmassas oprimidas, o sacrifício estáalienado (9).

Uma Igreja que opta pelos pobres, visando que Jesus Cristotome forma nela é a que se anula a si mesma e se esvazia(kénosis) na luta dos pobres. Esta luta, hoje na América Latina,atinge indícios dramáticos: é o que se percebe no que ocorre aosindígenas guatemaltecos, submetidos a uma violência genocida.Ou o que está acontecendo com os habitantes do nordestebrasileiro, cuja miséria crescente é explicada pela seca quasepermanente: é verdade que não chove, mas sua pobreza convémaos grandes senhores da região. É também o que sucede a todosos pobres da América Latina: a tremenda dívida externacontraída pelos governos da região pesa muito mais sobre oshumildes e empobrecidos do que sobre os abastados e poderosos.Optar pelos pobres significa denunciar esta situação e seusresponsáveis, por um lado, enquanto que, por outro lado, leva aparticipar de cheio, esvaziando-se do poder como igreja queconviveu por séculos com os poderes dominantes da América

Latina, na luta dos pobres.

A oportunidade que Deus oferece às Igrejas da AméricaLatina em nosso tempo é muito evidente. É o kairós (tempo deDeus) apropriado para romper com o velho conformismo. É ummomento adequado para a renovação pastoral. Com efeito, comofoi mencionado previamente, os pobres irrompem na histórialatino-americana com um novo dinamismo. Apesar do fato dospoderosos ainda estarem sentados em tronos transnacionais,enviando forças militares que invadem pequenos estados eameaçam a soberania e a paz daqueles que procuram forjar umanova sociedade, está aparecendo um sujeito histórico pleno degermens de vida que vão frutificar num novo amanhã para a vidade nossos povos. Reprimem-no duramente, porém, apesar dosfortes aparatos de segurança, demonstra obstinação e tenacidadeem querer concretizar suas esperanças. As tensões da AméricaCentral, que é hoje a região crucial do hemisfério, dãotestemunho de como os caminhos (trilhas) do Reino passam hojepelos caminhos que transitam nas lutas dos setores populares dospaíses desta parte do mundo.

A pastoral, fiel à memória bíblica que dá testemunho deDeus, que liberta aos pequenos da opressão dos arrogantes, unidaà leitura dos sinais dos tempos, está sendo convocada a serformulada, a partir desta opção social, que procura concretizar aopção pela vida. Porque mais vida é uma opção em favordaqueles que praticamente não têm vida. Isto significa, porexemplo, que a pastoral deve interessar-se e participar nas lutasdos camponeses pela reforma agrária; nas reivindicações dossindicatos que procuram não somente uma melhor distribuiçãoda renda, mas também a criação de estruturas que permitam o

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desenvolvimento do bem-estar humano de maneira eqüitativapara todos etc.

Para as Igrejas Evangélicas, isto supõe superar aquelaatitude que as leva a se distanciar dos problemas sociais. Esse"isolamento do mundo" revela uma inconsciência da presençaatuante do Espírito Santo de Deus na história. A ação de Deus élivre e soberana. Portanto, aqueles que têm fé são chamados aunir-se à mesma. Não se pode esquecer que as "portas do infernonão prevalecerão frente à Igreja" (Mt 16.18). Muitas vezes,entende-se este dito de Jesus como se as portas das Igrejasfossem conter os embates das forças do mal. Mas, como se acabade ver, a proposição de Jesus não chama a adotar atitudesdefensivas. Num momento da história latino-americana quandoos setores populares, aqueles dos quais é o Reino, tomam ainiciativa da história, as Igrejas não têm argumentos válidos,segundo o ponto de vista do Evangelho, para evitar unir-se a seumovimento, a optar por eles.

Opção pela Utopia dos PobresComo já se enfatizou, o fato dos pobres irromperem em

nosso desenvolvimento histórico não significa que o conduzem.Os pobres ainda têm forças e meios para o seguir fazendo. Nãoobstante esta contradição, dolorosa e até sangrenta em muitoscasos, a ação dos setores populares abre caminhos (trilhas) ondeé possível praticar a esperança.

Com efeito, a ação dos pobres leva consigo — às vezes demaneira mais intuída do que articulada, mas sempre de modoinegável, um projeto de nova sociedade, uma visão mais ou

menos clara das mediações históricas pelas quais têm que passarao marchar para o Reino. Essa nova sociedade, que tem seuponto de partida, na formação de um movimento organizado queprocura a libertação do povo dos agentes históricos que ooprimem, projeta-se à uma liberdade para construir um novocorpo social. As lutas populares no presente latino-americanotendem, justamente, a forjar uma sociedade democrática na qualse concretiza a participação popular com vistas a que todospossam desfrutar do bem-estar que resulta da satisfação de suasnecessidades básicas: alimentação, moradia, saúde, educação,trabalho e segurança social. As igrejas cada vez menos auto-suficientes unem suas vozes às do povo. Entretanto, nãodevemos nos enganar: a maioria por compromisso ou omissão,ainda estão ao lado daqueles que tomam posições anti-populares.

Mas ainda, em muitos casos, há igrejas que repetem emsuas próprias estruturas institucionais comportamentos e estilosde organizações autoritários, que são nitidamente opostos àsaspirações populares.

Participar no projeto do povo significa, por um lado, uniras forças da pastoral às tentativas de construção do Reino nahistória: isto significa — hoje e aqui — lutar pela democracia epara estabelecer uma sociedade que se organiza a partir deprocessos de participação popular. Esta é uma tarefa da pastoralcuja dimensão vai mais além do religioso: tem a ver com aexigência de uma nova estruturação sócio-política e econômicana América Latina que reclama, por sua vez, a criação de umanova institucionalidade para encaminhar a vida de nossos países.

Mas por outro lado, as próprias igrejas estão chamadas a

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abrir-se a este movimento de renovação e de reforma. Comoenfatizavam os grandes teólogos protestantes do século XVI:“Eclesia reformata semper reformanda". Neste caso, não se tratade imaginar uma "nova reforma", mas de levar a sério estarenovação eclesial que surge do próprio povo crente, quemanifesta sua esperança através da conformação de novasestruturas eclesiais. Isto está ocorrendo na América Latina. Sepercebe na reprodução de pequenas comunidades de crentes quese reúnem em torno de uma fé comum, para celebrá-la comliturgias novas, com cânticos que expressam a cultura do povo.São grupos nos quais esta fé comum manifesta-se na atençãoprimordial que dão à Palavra de Deus lida no contexto de umaanálise da realidade que os desafia à ação. Essas comunidadessão assembléias democráticas: nelas são superadas as diferençashierárquicas. Percebe-se nas mesmas a prática viva do sacerdóciouniversal dos crentes. A comunidade que recebe dons do Espíritoé movida por este a fazer-se presente justamente onde o Espíritoafirma a sua liberdade: no meio dos processos históricos denosso tempo.

Uma incontestável unidade existe entre estes grupos: ascomunidades de base no Brasil acompanham a vida da igreja dospobres na Nicarágua e El Salvador. As do Chile e Peru se apóiammutuamente. Isto se expressa, sobretudo, na intensidade queadquirem as celebrações eucarísticas nestes núcleos: "osignificado profundo de koinonia aponta 'ao que se sustenta emcomum'. A comunidade, a comunhão da igreja baseia-se numa fécomum, num compromisso comum, numa tarefa comum nomundo. Os cristãos compartilham — participam — uma mesmarealidade e eles são um. O reconhecimento do compromissocomum com um Senhor ressalta o significado da fé eucarística.

Não é somente uma celebração da presença de Cristo em suaIgreja, é também uma gozosa ação de graças pelo podertransformador do seu Espírito na comunidade cristã e no mundo.A eucaristia e a koinonia são unidas como aspectos de uma sórealidade cristã" (10). Sobre a celebração da presença de JesusCristo na sociedade, converge esse movimento (a estruturação dakoinonia servidora), através da qual Jesus Cristo toma forma namesma Igreja.

A importância ecumênica destes processos é enorme. Opovo em suas lutas procura superar suas diferenças, buscandoforjar uma unidade da qual depende em grande parte seu destino.É aquilo tão cantado pelos povos latino-americanos de que "opovo unido jamais será vencido". As igrejas que optam por estanova pastoral têm que responder positivamente ao desafio dopovo com uma postura ecumênica mais clara e definida. Aunidade do povo está chamada a ser significada e corroboradapela unidade das Igrejas a partir do povo. Quando os poderes docapitalismo só oferecem morte e destruição, e a utopia do povoafirma a vida (11), as igrejas que fazem a opção pela vida, pelospobres e o projeto histórico do povo não podem continuardividindo o povo. Sua unidade vai fortalecer a unidade popular.A unidade da Igreja não pode estar separada da unidade dogênero humano.

Deste modo, os caminhos do povo ajudam a Igreja aencaminhar seus passos para o Reino. A koinonia queexperimentam é a que ajuda na compreensão de que a forma deJesus Cristo vai crescendo na fraternidade cristã. Vale a penaterminar com as palavras do redator da carta aos Efésios:

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Convido-lhes, pois, eu, 'prisioneiro de Cristo', a viver avocação que têm recebido. Sejam humildes, amáveis, pacientes,suportem-se uns aos outros com amor.

Mantenham entre vocês laços de paz, e permaneçam unidosno mesmo espírito. Sejam um corpo e um espírito, pois ao seremchamados por Deus, deu-se a todos a mesma esperança. Um é oSenhor, uma a fé, um o batismo. Um é Deus, o Pai de todos, queestá acima de todos e atua por tudo em todos.

Entretanto, cada um de nós tem recebido sua própria partena graça divina, segundo como Cristo a ofereceu. Não estáescrito: Subiu nas alturas, levou cativos e deu seus dons aoshomens? Subiu: Que quer dizer senão que antes havia baixadoàs regiões inferiores da terra? O mesmo que baixou, subiudepois acima dos céus para tudo encher.

Assim, pois, Cristo é quem deu a uns ser apóstolos, a outrosser profetas, ou ainda evangelistas, ou bem pastores e mestres.Assim preparou os seus nos trabalhos do ministério tendo emvista a construção do Corpo de Cristo. A meta é que todosjuntos nos encontremos unidos na mesma fé e no mesmoconhecimento do Filho de Deus, e com isto lograr-se-á o homemperfeito, que, na maturidade de seu desenvolvimento, é aplenitude de Cristo.

Então não seremos como meninos, os quais são levados porqualquer onda ou qualquer vento de doutrina, e aos quais oshomens astutos podem enganar para arrastá-los ao erro. Mas,vivendo na verdade e segundo o amor, crescemos de todas asmaneiras até aquele que é a Cabeça, Cristo. Ele dá organização

e coesão ao corpo inteiro, por meio de uma rede de articulaçõesque são os membros, cada um com sua atividade própria, paraque o Corpo cresça e se construa a si mesmo em amor.

(Ef 4.1-16)Notas

1. Veja-se de Benoit Dumas, Los Dos Rastros Alienados de laIglesia Una. Buenos Aires, Latinoamériac Libros, 1971, p. 33.

2. Ibid., p. 51.

3. "Jesus afirma que, na espera de sua manifestação gloriosa, oFilho do Homem apresenta um modo de existência e de presençamuito particular, secreto e misterioso. Havia estadomisteriosamente presente nos miseráveis, em seus irmãosfamintos, nus, enfermos, prisioneiros. Em sua parusia, o Juiztranscendente, o Filho do Homem, de Daniel e Enoque revelará atodas as nações congregadas e separadas à sua direita e à suaesquerda um mistério de dimensões cósmicas: Esse juiz que,crêem ver pela primeira vez, os homens o tem encontrado hámuito tempo antes, ao longo de sua vida cotidiana. E essemistério, somente o conhecerão quando já seja demasiado tarde,quando já tenham sido julgados e classificados à direita ou àesquerda. Tanto os eleitos como os rejeitados perguntarão com amaior surpresa: "Mas, quando te vimos faminto", e o juizresponderá aos eleitos: "cada vez que vocês serviram a um destesmeus irmãos pequeninos, a mim o serviram". In Theo Preiss, Lavie en Christ, Neuchâtel, Delachaux et Niestlé, p. 81-82.

4. Veja-se de Richard Shaull, La Forma de la Iglesia en la NuevaDiaspora, in Cristianismo y Sociedad, Ano II, n.° 6, 3-17.

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Especialmente a seguinte citação: "A comunidade de crentes, talcomo se concebe agora, tende a obstacularizar odesenvolvimento de uma preocupação total pelo homem, a quemo Evangelho se dirige. Assim o expressou Christoph Blumhardtnuma carta ao seu genro, em seu batismo: 'Cristo se identificoumediante o espírito com os pecadores no batismo da Igreja, nós,no mesmo espírito, nos separamos deles. Nossa tendência ébuscar a presença da graça unicamente dentro da Igreja, no lugarde mostrar aos homens sua ação no mundo; contudo, nossa vidana communio sanctorum não tem como resultado essa totalpreocupação por anunciar o Evangelho ao mundo inteiro e suaproclamação à todas as raças, classes e grupos de nossasociedade, ato inerente ao próprio Evangelho' " (pp. 15-16).

5. Veja-se no capítulo II, quando nos referimos à relação entre oconceito bíblico de pastor e suas conseqüências para aformulação pastoral.

6. Pablo Richard e Guillermo Meléndez (edits.): La Iglesia de losPobres en América Central, San José da Costa Rica, Dei, 1982,pp. 99-100.

7. Pablo Richard e Guillermo Nleléndez acrescentam: "Por tudoisso é que dizemos que a Igreja salvadorenha tem sentido o passode Deus por seu povo. A revolução a fez recobrar sua identidade,sair de sua prostituição, purificar-se no crisol da perseguição e domartírio. Por isso, os poderosos e de espírito mundano amarcaram e a distinguiram, acusaram-na de tirar a fé e astradições e até falaram de uma Igreja paralela e anti-hierárquica".Op. Cit., p. 100.

8. Um claro exemplo deste tipo de bom pastor foi, nos primeirostempos da colonização espanhola da América Latina, Frei Barto-lomeu de las Casas, amigo dos índios, irmão dos oprimidos.Outro claro exemplo, em nosso tempo, foi Oscar Romero, dequem Pablo Richard e Guillermo Melléndez, Op. Cit., p. 102,assinalam "Pouco a pouco Monsenhor Romero se constituiu navoz dos sem voz. Apesar de sua grande duração, sua homiliadominical, converteu-se no programa radiofônico de maioraudiência em El Salvador. Nos últimos anos de sua vida, suashomilias também eram ouvidas em muitos outros países latino-americanos e do mundo". Como pastor também ressaltou comalegria os sinais de esperança que surgiam para o povo, comoocorreu por ocasião da formação da CoordenadoriaRevolucionária das Massas, passo importante dado pelo povosalvadorenho no caminho para sua libertação.

9. Benoit Dumas, Op. Cit., pp. 19-20.

10. Julio de Santa Ana, Hacia una Iglesia de los Pobres, BuenosAires, La Aurora, 1983, p. 244.

11. Ver de Israel Batista Guerra, La Utopia del Concepto Pueblo,in Raúl Vidales e Luis Rivera Pagán (edits.): La Esperanza en elPresente de América Latina. San José da Costa Rica, Ed. DEI,1983, p. 382.

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CAPITULO V

Caminhos à Frente — Trilhas a Traçar —Dilemas e Oportunidades

Ao longo de nosso itinerário, durante cujo transcurso, temse procurado desenvolver uma reflexão sobre a renovação dapastoral e a reorientação da teologia na América Latina, nãopodemos deixar dúvidas que, nesta nova situação que há poucomais de uma década experimentam as igrejas, estas sãoconvocadas a participar nos processos históricos dos países destaparte do mundo, a partir de uma nova perspectiva, e com umcomportamento diferente daquele que predominou entre elasdurante quase cinco séculos da história latino-americana.

Resumindo rapidamente o que enfatizamos previamente,parece irrefutável que o caminho da pastoral latino-americanapassa por uma opção pela vida. Nos momentos em que os pobresde nossos países são assaltados pelas forças da morte, a açãocoletiva das igrejas está chamada a evidenciar que o que Deusquer é mais e melhor vida para o povo, e, especialmente, para osmais deserdados.

Optar pela vida significa, através de meios que ajudam a

afirmar essa mesma vida, procurar enfrentar e debilitar a açãodesses poderes necrófilos. E, por exemplo, lutar para diminuir osofrimento dos pobres, cuja existência está seriamente ameaçadapela maneira como gravita sobre eles a crescente dívida externa,que hipoteca o futuro de nossos povos.

É, também se solidarizar com os desempregados, cujonúmero aumenta diariamente em quase todos os países daAmérica Latina: uma solidariedade que leva a denunciar políticaseconômicas, orientadas pelos interesses de uma minoria, ao invésde buscar satisfazer as necessidades básicas e as esperanças maisprofundas da maiorias latino-americanas.

É, além disso, opor-se ao fato de que as doenças, a fome aescassez aterrorizem aos pobres, para o que é necessário lutarpara que haja saúde, moradia digna, alimento e trabalho paratodos. As forças que têm plasmado essa sociedade latino-americana com benefícios exclusivos para muito poucos,enquanto que o grande número percebe como, dia a dia,diminuem suas oportunidades de vida, têm que ser confrontadase resistidas pela pastoral, quando essa opta pela vida. Falando emoutros termos, porque a vida em sua dimensão social é umcampo de contradições, a pastoral é chamada a assumir suasresponsabilidades em meio a essas tensões.

Para não desviar seu caminho nesta caminhada, a pastoralnecessita — entre outras coisas — ter bem clara sua militânciafavorável àqueles que têm pouca vida, para que possam ter maise em abundância. Mas, optar pela vida, também, significaapontar a direção transcendente que introduz na mesma o amorde Deus. Trata-se de chegar a ter mais vida e a alcançar uma

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nova qualidade de vida: o que Jesus chama "a vida eterna", (zoé),que é diferente da vida vegetativa (bios) ou da vida pessoal(psyché).

Também ressaltamos que a opção pela vida é uma opçãoque, no nível social, leva a tomar partido pelos pobres. Estes têmsido explorados na América Latina. A estratificação social dospaíses da região colocam em evidência que, os grupos sociaisque têm menos oportunidades em nosso tempo, são basicamenteos mesmos, que sofreram a maior opressão durante o processo deconquista e colonização que os povos europeus impuseram sobreeles. Essa injustiça secular é contrária à justiça do Reino deDeus. Alguns teólogos e sacerdotes se insurgiram contra essasituação, já na época que começava a colonização: Bartolomé delas Casas, Antônio Vaidivieso, Montecinos etc., são nomes quedão testemunho de que houve no seio das igrejas sériaspreocupações e tentativas por plasmar a justiça do Reino naAmérica Latina.

Hoje, a opção pastoral evangélica latino-americana estáchamada a unir suas intenções com as daqueles que —excepcionalmente — deram, com sua vida e ação, consistência àboa notícia para os pobres nessas terras. Ou dizendo com outraspalavras, é hora de, massivamente, as igrejas deixarem de dar aimpressão de serem portadoras de más notícias (a violência e aseparação impostas às famílias indígenas; a justificação oulegitimação da dominação dos fortes sobre os fracos; odesconhecimento da identidade cultural dos indígenas e negros; aexploração econômica dos pobres) para converterem-se emproclamadoras de boas notícias para os economicamente fracos esocialmente débeis. Tal é a renovação a que está chamada a

pastoral.

Isso exige, como vimos anteriormente, optar pelo projetopopular. Confrontando aqueles poderes que administram a mortee impõem a injustiça, a pastoral das igrejas tem que afirmar apresença dos sinais de esperança em meio à desesperançarealizada por aqueles que fazem violência ao Reino de Deus.Essa desesperança e resignação surgem de forma constante entreos pobres frente à dor e à morte que impõem sobre os indigentesestes projetos orientados para consolidação do poder dasegurança daqueles setores sociais que se apropriam, para o seubenefício, do excedente econômico que produzem aqueles queapenas contam com a venda de sua força de trabalho parasobreviver (1).

O projeto popular está, ao contrário, cheio de esperança porter sido fecundado pela razão utópica (2). Agora, o lado religiosoda utopia é a fé de que as condições que pesam sobre a existênciados pobres não são definitivas. Assim como a fé na ressurreiçãode Jesus afirma que a morte não é a última palavra nem o pontofinal da clausura da vida, do mesmo modo a fé nos pobresmanifesta-se como "uma esperança contra toda esperança” (3).Mas esta, a história o demonstra seguidamente, que está na raizdaqueles movimentos históricos que demonstraram ter força esolidez suficientes para transformar as estruturas históricas eabrir caminhos (trilhas) que levaram à construção de uma novarealidade social.

A ação de Jesus e do movimento que ele iniciouencontram-se nesta linha. Por isso, a pastoral, se quer ser fiel aoDeus do Evangelho, tem que segui-la. "Somente desde a

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parcialidade de Deus para com os sem vida, se dá garantiatambém que Deus seja um Deus de vida para todos" (4) Por estarazão, a pastoral está chamada a ter essa dimensão ecumênica(para todos, sem exceção), o que significa dar prioridade à vidados pobres, à luta dos pobres e ao projeto pelo qual estão semobilizando na história.

Não obstante tudo o que se disse, somos conscientes dageneralidade destes propósitos. Para que os mesmos cheguem aser postos em ação é necessário que sejam resolvidos algunsdilemas que se apresentam às Igrejas Evangélicas. Interessa-nos,neste momento, ressaltar que a questão é crucial para as mesmas.Reconhecendo que, inclusive na Igreja Católica Romana, háresistências e bloqueios que inibem a vastos setores da mesmapara aceitar a reorientação pastoral que vem da práxis eclesialdas Comunidades de Base (a qual procuramos ser fiéis nestaspáginas), temos também que aceitar que o mesmo ocorre, e emproporção maior ainda, entre as Igrejas Evangélicas. Mais ainda:há aqueles que, orientando sua ação para a captação da adesãodos setores populares dos países que atuam, chegam em últimainstância a constituir-se em obstáculos que travam a marcha doprojeto popular (5). Portanto, no que se segue, se expressa umatentativa de colocar alguns dilemas que parecem serfundamentais às Igrejas Evangélicas na América Latina, com oânimo de resolvê-los. A partir disto, assinalar algumasoportunidades que Deus, hoje, abre ao seu povo para que sejamaproveitadas pelas igrejas no seu afã de caminhar fielmente parao Reino de Deus.

Dilemas a Confrontar

Indo diretamente ao assunto, entre os vários dilemas que secolocam às Igrejas Protestantes (ou Evangélicas), vamosmencionar três.

Em primeiro lugar, se as Igrejas Evangélicas querem optarpor uma pastoral de vida para os pobres latino-americanos, efavorável para apoiar o projeto histórico dos mesmos, as Igrejastêm que tomar consciência de uma grave exigência que ossetores populares lhes propõem: como romper a herançaestrangeira que marca o Protestantismo até o dia de hoje naAmérica Latina e que, em grande parte, o aliena das massas quecompõem nossos povos?

É um fato resultante da observação sociológica maissimples, que na maioria dos países, os evangélicos constituemum grupo bastante especial, que de um modo ou outro,permanecem à parte dos setores populares latino-americanos.Seu comportamento na sociedade, inclusive sua maneira devestir-se (6), a forma como muitos se negam a considerar suaparticipação em movimentos de reivindicação social, o fato deque recusam tomar parte nas festas populares (inclusive asesportivas) são elementos que automaticamente colocamdistância entre eles e um povo que mostra justamente suaidiossincrasia em grande parte através de seu comportamentosocial, de suas canções, de sua maneira de celebrar a vida.

Esta distância dos setores populares latino-americanos éainda mais evidente quando se observam os valores que apelam àconsciência de uns e de outros: a liberdade, a informalidade, masao mesmo tempo, a relação cálida que se estabelece entreamigos, são valores facilmente percebidos no trato com o povo.

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Eles contrastam com a disciplina de vida, com a excessivaformalidade, com o recato que caracteriza, muitas vezes, osprotestantes. Nestes, indubitavelmente, confia-se quando se tratade assuntos graves e urgentes: sua proverbial seriedade, suacontração ao trabalho, não importa em que condições, sãogarantias de que se pode entregar a eles a consideração deassuntos importantes. Não em vão, são preferidos para seremempregados por executivos estrangeiros: sua abstinência debebidas, sua recusa em participar nas greves e movimentos deprotesto, justificam essa predileção. É o que Christian Lalived'Epinay chamou de tendência à "greve social" (7).

Tudo isto parece estar orientado para conseguir uma certaresponsabilidade da classe média, que no fundo procuradistanciar-se das expressões da cultura popular. Então, a maioriados pobres não se sente motivada a se integrar nas comunidadesprotestantes. Se há pobres que começam a assistir às celebraçõesque se desenvolvem nessas comunidades, pouco a pouco sãoestimulados a aceitarem os valores burgueses que tanto devem àética protestante. "Numa perspectiva individualista, inclusivepodem chegar a adquirir uma certa mobilidade social e, comoconseqüência, terminam por abandonar os interesses eexpectativas de seus companheiros de grupo ou classe social"(8).

As causas deste distanciamento entre os setoresevangélicos e as massas latino-americanas não são difíceis deperceber. Têm a ver com a forma como entrou o Protestantismona América Latina. Por um lado, pode se sentir a presença de um"protestantismo de imigração" que chegou a estas terrasacompanhando mais ou menos vastos contingentes de pessoas,

cuja origem não é nem indígena, nem latina e, raras vezes,africana (9). Os descendentes destes imigrantes protestantes,muitas vezes, tentaram reproduzir no contexto latino-americanoas condições próprias de seu país de origem. Desse modo,tomaram distância do povo e de suas tradições. Sua religião,tanto quanto seus traços culturais estrangeiros, foram entãoconsiderados estranhos, e muitas vezes, até exóticos.

Outra forma, mediante a qual, o Protestantismo chegou àsnossas praias foi através das missões, em sua grande maioria,enviadas por juntas missionárias norte-americanas. Estemovimento procurou fincar raízes entre os próprios latino-americanos, e em parte conseguiu. Inclusive apresentou umaproposta de renovação social a nossos povos, que chegou a obtera adesão dos intelectuais e outros grupos dinâmicos dassociedades latino-americanas. Contudo, sempre houve umadistância entre eles e o povo comum, que até agora não foisuperada. Isto se deve, em grande parte, ao fato de que esteProtestantismo norte-americano era — e é até o dia de hoje —expressão de uma cultura que tem pouco a ver com a realidadede nossos países.

Falando mais concretamente das denominações clássicasdos EUA, deve-se levar em conta que participaram acriticamentedesse processo norte-americano que consistiu na formação edesenvolvimento da religião cívica. Esta dá, em geral, um apoiobastante claro à ordem estabelecida. Não a questiona. "É umamescla feliz de religião e patriotismo" (10). " A religião cívicadenota uma relação estreita entre a posição da confissão religiosae a ordem dominante na sociedade civil. Há vezes em que adenominação religiosa pode propor reformas na ordem cívica,

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mas a tendência é ratificar e corroborar a mesma. A ordem dasociedade civil dá uma ordem preponderante às instituiçõesreligiosas, enquanto que estas dão apoio claro ao poderestabelecido na sociedade. Isto pode ser demonstrado, porexemplo, como a atitude de acompanhamento que as igrejas dosEUA evidenciaram com relação à política de expansionismopolítico e econômico do poder norte-americano, no final doséculo XIX e começo do presente século XX. Em sua maioria, ossetores mais consideráveis do Protestantismo norte-americanoendossaram esta política. E grande parte dos mesmos hoje,também, apóiam a política da administração atual do governoestadunidense para a América Latina.

Esta política, como se sabe, contradiz abertamente asaspirações dos povos latino-americanos. Entre outras coisas,apóia ditaduras que oprimem a estes povos, insistem em manterinstituições e medidas econômicas que direta ou indiretamenteincidem no aumento da pobreza da América Latina, e o que épior ainda, tem-se oposto e se opõe a movimentos latino-americanos que só anelam criar uma ordem de paz, justiça eliberdade na região. A atitude anti-popular dessa administraçãonota-se através do caráter agressivo que tem assumido frente àsorganizações populares de vários países centro-americanos.

Infelizmente, o Protestantismo dos EUA não chegou a sedistanciar desta maneira de atuação política, pelo menos até àcrise econômica que se produziu entre 1928 e 1932. EsseProtestantismo foi o que chegou à América Latina. Suamensagem combinava a pregação da mensagem cristã com aapologia do "american way of life" (o modo de vida americano).O resultado foi uma estranha mescla de pietismo e valores da

sociedade estadunidense, por certo muito distante daidiossincrasia e da cultura dos povos da América Latina. Estes,em virtude de tais condicionamentos, muitas vezes têm sentido apregação evangélica mais como uma agressão cultural do quecomo a apresentação das boas novas de Jesus Cristo. Deve serecordar que no Evangelho,como expressão infinita do amor deDeus, há um sim deste aos seres humanos, seja qual for a suacultura, raça, tradição. Não obstante, muitas vezes, pregou-se aconversão a uma cultura alheia à América Latina, antes que aconversão a Jesus Cristo. Os pobres, especialmente, têm sesentido rejeitados pela sociedade que se expressa através destesvalores. Por manter-se nesta tradição, as Igrejas Evangélicascolocam-se fora do âmbito social do povo e da cultura latino-americana.

Por esta mesma razão, como passo prévio a dar, antes deencaminhar a pastoral em favor da vida, dos pobres e seu projeto,é necessário resolver este dilema. Como se sabe esta palavra deorigem grega, refere-se a linhas argumentativas formadas porduas proposições contrárias. Não se podem manter juntas. Temque se optar frente a disjuntiva, porque os termos que compõema mesma, anulam-se reciprocamente. Ou seja, não se pode fazeruma opção pela causa dos pobres e se manter cativos dentro dosesquemas do comportamento e valores do "american way oflife". É aquilo que dizia Jesus: "não se pode servir a doissenhores, a Deus e a Mamon" (Mt 6.24).

Quando se faz a opção pelos pobres, o sentido daevangelização para a pastoral consiste na construção do Reino, enão tanto em querer convencer o povo para que aumente onúmero de crentes que constituem a Igreja. Se este último ocorre,

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deve-se dar graças a Deus porque é obra do seu Espírito. Mas atarefa de construir o Reino, inaugurado por Jesus, consiste emparticipar naquele processo pelo qual nos aproximamos "à horaescatológica (final e terminal) de Deus, à vitória de Deus, na quala consumação do mundo está próxima, e, por certo, bempróxima" (11). Essa consumação do mundo exige o triunfo dajustiça de Deus, que é motivo de alegria para os pobres.Evangelizar significa, pois, por um lado, o anúncio dessamensagem que enche de gozo os humildes. E, por outro lado,esta tarefa exige a participação na luta histórica em favor destajustiça. Quando isto ocorre, então o dilema está resolvido: apastoral está formulada com o povo, do lado deste.

O próximo passo só pode ser encarado se o primeiro ésuperado, segundo a proposição que acabamos de fazer. Se istoocorre, então tem que se enfrentar o segundo dilemaestreitamente ligado ao anterior. É possível questioná-lo nosseguintes termos: "como superar o sentimento de minoria, degueto, que ainda caracteriza a consciência da maioria dascomunidades evangélicas na América Latina, que as leva, por umlado, a um exercício do proselitismo, a sua vez, que, por outrolado, as conduz a retrair-se de participar no processo sócio-político da América Latina?"

Esta questão está relacionada com a anterior. Seus termossão semelhantes, mas há também elementos que necessitam seraclarados antes de propor a superação do dilema. Este se colocaentre seguir mantendo esta atitude ambígua, que combina aagressividade proselitista (um suposto "evangelismo") com odesejo de não contaminar a pureza da fé, porque se toma partidoexplícito frente a questões políticas e sociais que incidem sobre a

vida do povo, ou de assumir de uma vez por todas aresponsabilidade social própria que corresponde à comunidadecristã.

No ponto anterior, referimo-nos ao afã que existe entre osevangélicos por fazer crescer, numericamente, nossascomunidades. Nada há de mal nisto, se isso vai acompanhado porum exercício evangelizador que não se orienta só para convencera uma audiência, mas também a procurar fazer com que asestruturas sócio-econômicas expressem mais cabalmente afraternidade e justiça que caracterizam o Reino de Deus, do qualos pobres são cidadãos legítimos, segundo a expressão de Jesus.Este afã, esta preocupação, põe em evidência que os evangélicossentem como algo negativo serem minoritários na AméricaLatina. Por isso mesmo, experimentamos a necessidade quasevital de transformarmos nossas igrejas em poderososmovimentos de massas. Para isso, tendem as campanhas de"evangelismos", a esforços para convencer a outros dasuperioridade evangélica, ao testemunho individual, umaexistência orientada para o êxito e que não pode reconhecerfracassos etc.: são meios que procuram persuadir e impressionaraqueles que não compartilham nossa fé de que é bom enecessário tornarem-se membros de nossas igrejas.

O problema não se coloca porque se fazem algumas destascoisas, mas porque as mesmas não são acompanhadas de seucomplemento imprescindível: não basta induzir nossos próximosa que venham às nossas igrejas. Ao mesmo tempo em que nosesforçamos para que isso ocorra, devemos também compreenderque a graça redentora de Deus não se limita ao "coração do serhumano", mas que deve tocar outras esferas da vida humana: as

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de caráter estrutural.

Pregar o Evangelho é dar a alegre nova de que Deus amaaqueles aos quais os poderes do mundo já não têm mais cuidado.É anunciar o amor de Deus e praticar o amor fraternal não sóatravés das relações pessoais, mas também procurando com queas estruturas e instituições que enquadram essas relações sejammais propícias à manifestação desse amor. Como o demonstravahá mais de vinte anos, por ocasião da Primeira Consulta LatinoAmericana de Igreja e Sociedade, o professor José MiguezBonino: "Este amor, no mais, pratica-se em meio às condiçõesdeste mundo. Se não, há de ser um amor abstrato e irreal — e emtal caso não é o amor de Cristo — deve realizar-se em meio àsestruturas deste mundo e por meio delas. O próximo não é uma"alma desencarnada" (tal coisa é totalmente alheia à Escritura),mas um homem concreto: um súdito de um país, um operário ouum comerciante, ou um intelectual ou um negro, ou um amarelo,ou um branco, um homem com necessidades humanas de ordemeconômica, intelectual, social, engajado na sua luta pelaliberdade, pela justiça, pela dignidade ou pelo direito. Não épossível amá-lo fazendo abstração dessas condições, semparticipar nelas. Esta é a sorte do amor. Um amor que não estádisposto a arriscar essa participação não é o amor de Cristo"(12).

Essa maneira de compartilhar o amor de Deus éevangelizar. É diferente de fazer proselitismo. Leva em si umrisco evidente: participar em situações ambíguas, onde não épossível deixar de ter contato com a corrupção e o pecado. Nesteâmbito, é impossível pretender ter posições puras. No mundo emque vivemos, pelo qual transitamos para o Reino, negar-se a unir

forças com outros ou fazer compromissos, é negar-se a amar. Anatureza do Reino se manifesta no meio deste mundo.É o novoque irrompe entre o velho. Nesta maneira de atuar, o cristão"leva as cargas dos demais" (além das suas próprias). Quandoisto se produz, o gueto está superado. Sua atitude já não é tãodefensiva, mas se integra ao movimento transformador doEspírito no mundo, que, como o disse José Comblin, toma oponto de vista dos pobres do mundo. "Em vez de adotar o pontode vista de uma ciência, ou das ciências humanas, coloca-se noponto de vista daqueles que não têm ciência" (13).

Sobre este particular, urge que a consciência evangélicalatino-americana supere esta percepção individualista darealidade. É, possivelmente, parte da herança que recebeu (14).Essa herança, como dizíamos previamente, aliena, muitas vezes,o movimento evangélico do povo latino-americano. Enquantoisso ocorre, a evangelização que se realiza alcança o indivíduo,mas não a sociedade. Resolver o dilema nos termos quepropomos é adotar uma perspectiva mais global e integrada, sema qual não é possível romper os muros que mantêm acomunidade evangélica dentro de seu gueto.

O terceiro dilema segue necessariamente os dois que temosdiscutido. Colocamo-nos assim: Como romper com o projeto queestá na origem do Protestantismo na América Latina e, então,assumir o projeto histórico do povo?

O Protestantismo irrompeu na América Latina, nas décadasseguintes à independência política da maior parte das naçõessituadas ao sul do Rio Bravo. Os grupos dirigentes dessas naçõesprocuravam orientá-las de acordo com sua postura liberal, tanto

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no político como no econômico. Esse interesse ficava longe daspossibilidades que podia oferecer o Catolicismo para apoiar talempresa. Este aval veio do Protestantismo, que apareceu porestas terras como um foco de irradiação ideológica favorável àsposições liberais. A liberdade religiosa, a liberdade depensamento e de expressão, a liberdade de comércio, a educaçãoleiga e democrática, foram bandeiras sustentadas, direta ouindiretamente, pelas Igrejas Evangélicas. O liberalismo, portanto,aparece como projeto histórico do Protestantismo, ao começarsua atuação em nossos países. Adotar esta posição significou, aomesmo tempo, que o Catolicismo passou a ser criticado comocausador e sustentador do obscurantismo e da "barbárie" queexistia em nossos países (15). A barbárie era a do povo latino-americano, cujo espírito libertador "indisciplinado" foimanifestado nas lutas pela independência. Todavia, a busca daliberdade não quer dizer que ela se consiga unicamente atravésda ordem liberal. Esta deixou os povos latino-americanosinsatisfeitos. O liberalismo significou que, por baixo de umaformalidade jurídica aparentemente moderna, os setorespopulares da América Latina seguiram sendo marginalizados. Oliberalismo, pois, resultou num engano para o povo. Não se deveestranhar, portanto, que os setores sociais mais baixos sesublevaram, continuamente, contra a ordem liberal.

O Protestantismo, na grande maioria dos casos, optou pela"civilização” dos ilustrados contra a "barbárie" do povo. Essaetapa e essa opção não devem ser repudiadas. Eram necessáriaspara o desenvolvimento histórico, e o movimento evangélicocontribuiu para a mesma (16). O problema colocado por esteterceiro dilema não se consolida naquela atitude original doProtestantismo (de fato, é impossível que houvesse tido outra

distinta), senão que a continua postulando desde aquele tempoaté agora. Mantê-la tem significado, por um lado, umanacronismo, e por outro, cair na rotina do carisma (para usar umvocábulo próprio da sociologia de Max Weber). Porque ambas ascoisas são contra-producentes; impõe-se a resolução do dilemaatravés de uma atitude madura.

A mesma deve levar em conta elementos teológicos esociológicos. Entre os teológicos basta mencionar um, jáapontado previamente, ao longo de nossa reflexão: A Reformado século XVI fez-se em grande parte para permitir que a Igrejachegue a ser a expressão privilegiada do povo de Deus. É umacomunidade livre, o que lhe possibilita ser serva da sociedade.Isso exige que seja libertada de qualquer dominação — exceto ade Deus, cuja vontade o Espírito testemunha através da Palavrade Deus. A Igreja está chamada a não cair em cativeiro (17). Asubmissão da comunidade de crentes aos poderes deste mundo,significa que a Palavra de Deus está cativa. Enquanto oProtestantismo na América Latina não consegue desvencilhar-sedo projeto liberal, anti-popular, modernizante e pró-ocidental queo caracterizou ao irromper na história latino-americana, é cativodaqueles interesses que têm esgrimido e seguem manejando aideologia liberal em nossos países para poder oprimir aos pobres.O problema em questão não é, neste caso, político, masteológico: o que está em jogo é a fidelidade das IgrejasEvangélicas ao Deus do Reino.

Entre os elementos teológicos a considerar, propomos trêspara resolver o dilema.

Primeiro, com base na análise dos sinais dos tempos é

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urgente compreender que nem o sujeito histórico que fez aproposta liberal e nem o projeto que apresentou, têm futuro. Ahistória latino-americana demonstra que, se a burguesia tem opoder na maioria dos nossos países, ela não consegue melhorar asituação dos mesmos. Ao contrário, como já foi percebidorepetidas vezes, está irrompendo na história um novoprotagonista, portador de um novo projeto, o qual é indicador,também, da proximidade do Reino. Optar pelo mesmo, supõeromper com o projeto liberal.

Segundo, ao tomar esta opção, deve deixar-se de ladoqualquer tipo de messianismo. Tem que se reconhecer aspossibilidades e as limitações das igrejas Evangélicas paraimpulsionar o projeto popular. Quer dizer, as comunidadesprotestantes devem tomar consciência de que esse projeto éimpulsionado primordialmente pelos setores populares. Cabe aoProtestantismo acompanhá-lo, aprendendo deles, porém,evitando cair na tentação de dirigi-lo. A hora não é paravanguardismo, mas para o exercício de uma sóbria atitudeecumênica: complementar forças com outros entre si. Serorgânico e funcional aos interesses dos pobres e oprimidos daAmérica Latina. E. por sua vez, sem fazer dos setores populareso novo “ungido" de Deus.

Terceiro, compreender que esta reorientação pastoral e arenovação teológica que a acompanha não dá frutos imediatos,mas que estes virão ao longo de um processo que pode levarvários anos, inclusive mais de uma década. Para não perder orumo neste itinerário, convém formular um projeto de transiçãopastoral que permita, gradualmente, passar de uma igrejaorgânica da burguesia a uma igreja dos pobres. Este projeto pode

ir definindo metas de trabalho tais como a defesa dos direitospopulares, a educação popular, a ação solidária com camponesese trabalhadores, a reivindicação da identidade cultural de índios enegros e — entre muitas outras coisas — a reformulação dasestruturas eclesiásticas que enquadram a vida de nossascongregações em termos democráticos e de participação,seguindo a inspiração da ação popular que se manifesta nascomunidades eclesiais de base.

Tudo isto, exige uma visão estrutural da sociedade. Ela éprópria da Bíblia (ainda que não exclusiva). Corresponde àtomada de consciência de que, por um lado, o Espírito de Deusnão tem limites para sua ação, mas está presente em toda acriação, "fazendo o bem para aqueles que amam a Deus" (Rm2.26-28). Neste mundo, no qual está atuando o Espírito, não háacontecimentos isolados, grupos separados, nem compartimentosisolados. E, por outro lado, exige que se leve em conta o caráterpolifacético da ação popular: seu esforço por plasmar aesperança que move ao povo não é especificamente social, oupolítica ou econômica, ou teológica. Engloba todos estesaspectos. Inclui tanto a pessoa como a sociedade.

Quando se levam em conta estes elementos, é possívelcompreender inequivocamente a conveniência que existe emresolver este dilema com uma perspectiva que tende para ofuturo, unindo-nos aos setores que procuram fecundar o mesmocom novas realidades com as quais está se plasmando o porvir,assim como em outras oportunidades o fizeram aquelasinumeráveis testemunhas da fé, "deixando toda carga inútil",

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libertando-nos do pecado que nos assedia, para correr comperseverança na prova que nos espera" (Hb 12.1). Isto nos leva aconsiderar as oportunidades que Deus dispõe em nosso favor.

OPORTUNIDADESReferir-nos-emos a elas brevemente. Supõem, em nosso

modo de ver, uma reafirmação do conteúdo da fé evangélicacomo um dos valores do povo latino-americano. Exigemposições flexíveis e evitar atitudes rígidas e dogmáticas;contrárias, justamente ao espírito da Reforma Protestante.

A primeira oportunidadeA primeira oportunidade consiste em perceber que o tempo

que Deus abre à nossas comunidades é propício para umareafirmação vigorosa, em termos atuais, dos elementosfundamentais do pensamento evangélico. Pode parecerparadoxal, mas os fatos o provam. Apesar da distância temporale cultural que nos separa da obra dos reformadores do séculoXVI, os elementos indicados por eles aparecem com força navida eclesial do presente latino-americano.

Despojando-nos de toda a presunção apologética,examinemos atentamente os atos e o potencial que descobrem. Asituação que hoje experimentam os povos latino-americanos éfavorável para reafirmar os elementos cardeais da ReformaProtestante.

Primeiro, porque é uma conjuntura na qual os grandespoderes voltam-se contra os pobres, e estes vão chegando aoconvencimento de que sua existência não depende tanto da forçaque podem acumular, mas da graça que podem experimentar.

Mais ainda, seus progressos na caminhada para a justiça sãopercebidos, muitas vezes, como resultados inesperados, gratuitos.O princípio protestante de sola gratia (só a graça) é confirmadoatravés da vivência popular. Não pode se estranhar, então, que asComunidades Eclesiais de Base (CEBs), lugar privilegiado ondeo povo da América Latina dá expressão à sua maneira própria deser Igreja, estão chegando a ser um espaço da graça, no qual ospobres experimentam, não só a alegria da koinonia, mas tambémo sabor daquilo que será para eles uma nova sociedade. Comefeito, nas comunidades de base, por graça (porque ninguémcalculava que elas surgiriam como as observamos hoje) o povocrente da América Latina tem uma experiência de participaçãotal que sabe existir uma antecipação da nova ordem social queanelam as massas populares.

Segundo, a experiência do povo permite tambémcompreender um fato muito importante: ele está perdendo omedo. Desde o Atlântico ao Pacífico, de Norte a Sul na AméricaLatina, sobretudo na América Central, os setores populares estãodispostos a fazer ouvir sua voz, apesar de suas fraquezas. Estãomovidos pela fé. E nisto vemos, uma vez mais, que as palavrasde Jesus são ratificadas. Em seu ensino, fé é o contrário do medo(cf Mt 8.25-26). Ter medo é ser "de pouca fé". Mas, agora naAmérica Latina, aqueles que, por séculos, estiveram manejandosuas vidas com cálculos prudentes para sobreviver, ousamaparecer na história. Sola fide (só a fé) é aquela afirmaçãoprotestante que, por outra parte, hoje, encontramos na práticaeclesial dos pobres e oprimidos: entre as mulheres indígenas daBolívia, entre as mães da Praça de Maio em Buenos Aires, entreos jovens camponeses da América Central, entre os deserdadosdo Nordeste brasileiro... A fé influi sobre o desenvolvimento do

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processo político e social.

Terceiro, a experiência da fé no seio das Comunidades deBase põe de manifesto a importância central da Bíblia nesta novaforma de ser Igreja na América Latina. A Palavra de Deus é areferência para o povo que procura orientar sua ação em meio àssituações que lhes cabe viver. O princípio de Sola Scriptura (sóas Sagradas Escrituras), tão importante na Reforma do séculoXVI é revitalizado pela prática da igreja dos pobres. A Bíblia étomada como fonte de fé e conduta. Os pobres vão até ela paralançar-se em ação na sociedade. Não fazem uma "leituraprivada" da Escritura, mas a estudam comunitariamente paralogo atuar como grupo em situações concretas: no bairro, nosindicato e na própria igreja. Deste modo, começam a perceber agrande capacidade de motivação para a ação que contém aPalavra de Deus, que promove liturgias e celebrações. Oconhecimento dos símbolos com os quais a Bíblia refere-se aoReino, permite aos pobres perceber a presença do mesmo noprocesso histórico.

Quarto, a utopia popular reclama uma sociedadedemocrática e de participação. Uma sociedade que tem suaexpressão eclesial na koinonia que experimentam asComunidades de Base. Nestas há uma complementaridade deministérios. Ou seja, concretiza-se também o conceito bíblicoque revitalizou as igrejas que se orientaram segundo os preceitosda Reforma do século XVI, que dá ao povo de Deus um carátersacerdotal. O sacerdócio universal dos crentes é o mais opostoque se conhece à acumulação de funções e de poder quecaracteriza geralmente os grupos que se organizam segundopautas clericais. Esse elemento da fé nutre a utopia de uma

sociedade com participação das maiorias. O mesmo irrompefortemente na vida das Comunidades de Base. A Igreja adquire,então. de maneira concreta e material (e não só teórica) o caráterde um sinal de libertação (18).

Uma leitura do presente nos permite compreender, pois,que os elementos cardeais do Protestantismo estão vivos naprática histórica e eclesial latino-americana. O problema não estácolocado porque o movimento evangélico segue aderindo a eles,mas porque muitas vezes têm sido relegados. Seu caráterprimordial para a vida das congregações evangélicas, nemsempre é levado em conta pelas mesmas. Não obstante, aoportunidade que abre o presente chama a que sejam ratificadas.É a circunstância favorável para que o Protestantismo dê suacontribuição à nova forma de ser Igreja que vai se plasmando naAmérica Latina.

A segunda oportunidadeA segunda oportunidade, muito relacionada com a anterior,

consiste em compreender e atuar logo em conseqüência, pois omomento histórico apela para que as Igrejas Evangélicasretomem sua tradição original, segundo a qual apareceram nahistória como um vigoroso movimento popular. OProtestantismo, em suas próprias origens foi expressão do povode Deus. Infelizmente, com o passar do tempo, centros de poderpassaram a fazer da fé protestante um elemento importante desua ideologia. Todavia, e apesar deste "cativeiro burguês" quegravita sobre o Protestantismo, existem neste, aspectos quepodem ajudar a colocá-lo ao lado do povo.

Um deles é a ênfase na liberdade, avis rara no presente

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latino-americano, sem a qual é impossível forjar a democraciaque anela o povo. A liberdade que propôs o Protestantismo,muitas vezes, foi reduzida a um princípio formal, quando narealidade é algo que deve expressar-se através de práticas bemconcretas (19). Não obstante o legalismo e o autoritarismo quepassaram a predominar na vida das Igrejas Evangélicas; aintolerância tomou o lugar da liberdade (20). Tomar consciênciadas origens do movimento evangélico, e dos desvios nos quaisincorreu, leva necessariamente a restaurar os caminhos (trilhas) evoltar ao caminho apropriado, que não é outro senão o daafirmação e do respeito à liberdade. Como o escreveu MiguezBonino: "a fim de fazer essa contribuição, o Protestantismo devereestruturar-se internamente para tornar-se um instrumento maisflexível e disposto. Quer dizer, também internamente — e só emsua interpretação teológica e numa concepção de sua missão —deve superar sua compreensão inicial. Nossas estruturaspresentes — tanto mentais como institucionais — levam asmarcas da história de nossas origens, com as vinculaçõesteológicas e ideológicas que temos visto. Enquantopermanecermos prisioneiros dos condicionamentos dessahistória, persistirá nossa esterilidade. Em outros termos, oprotestantismo tem que passar por uma conversão, umarenovação que será, por certo, um retorno a sua origem (aconcentração no poder transformador do Evangelho), mas porsua vez, um começo radicalmente novo (a ruptura com aideologia, a dependência cultural, a alienação econômica einstitucional que têm marcado a vida do protestantismo em nossocontinente)" (21).

Fazer valer esta oportunidade requer voltar a enfatizar quea igreja, antes que um aparato organizado, com uma ordem e

uma hierarquia, é povo que caminha para o Reino. A função dosleigos na Igreja necessita ser realçada. O clero e o laicato serequerem mutuamente na comunidade. Esta relação deve serencarada em termos de complementaridade e apoio mútuo. Oministro da Palavra necessita do assessoramento que podemoferecer os leigos, ao mesmo tempo em que precisam de umaformação teológica pastoral que os ministros podem prover. Umaigreja que se clericaliza tende a enquistar-se, a apartar-se domundo. Ao contrário, quando os leigos compartilham com oclero na vida eclesial e na instituição eclesiástica, a tentação defugir do mundo e da história é menor. É verdade que os riscossão maiores, mas também é a fidelidade do Evangelho.

A tarefa de formação do laicato é parte importante destaoportunidade. O movimento evangélico está chamado em nossotempo a ser capaz de fazer o que fez durante o tempo daReforma, isto é: a incentivar uma reflexão bíblica e teológica apartir do povo e com o povo. Para isto, é necessário perceber queos desafios que coloca o processo histórico que vivemos na fécristã são imensos e muito complexos. Responder a eles exigemuito mais do que o tipo de formação que oferece a EscolaDominical. Devem-se propor, portanto, processos de educaçãopermanente que permitam a clérigos e leigos capacitar-se mútuae apropriamente para refletir teologicamente acerca de problemasreais, que exigem respostas inéditas e que põem em evidência ocaráter anacrônico de fórmulas teológicas que foram forjadas nocontexto de outras circunstâncias.

Quando se reflete teologicamente com o povo, em geral, opensamento é pertinente, atual, responde-se a questões que acomunidade experimenta. Produz-se a renovação da teologia. É o

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fruto da tentativa de incorporar o povo à vida da Igreja. Quandoaqueles que compõem a congregação se integram na açãocomunitária na procura do Reino, os sinais de Jesus Cristopassam a ser percebidos na Igreja.

A terceira oportunidadeA terceira oportunidade que nos parece importante

enfatizar, consiste na necessidade de incorporar os valoresculturais do povo latino-americano à vida de nossas Igrejas.Felizmente, há sinais de que esta tarefa está sendo empreendida.Por exemplo, através da renovação do acervo hinológico doProtestantismo latino-americano, mediante o qual vai semanifestando uma nova canção evangélica, com ritmos própriosda música dos povos latino-americanos.

Esta empresa, que vai dando os seus frutos, precisa sercompletada em outros níveis da vida das comunidadesevangélicas. A América Latina mesma, ainda está em processo.Em seu desenvolvimento, os componentes dos povos oprimidos,indígenas e africanos, são tão importantes quanto os aportesibéricos e de outros povos ocidentais. Reduzir a cultura latino-americana à dos povos dominantes é uma amputação injusta edolorosa. Disto resulta, por um lado, um grave reducionismo elimitação cultural. E, por outro lado, uma esquizofrenia na vidade nossos povos que cantam, dançam e criam com coraçõesmestiços, indígenas e negros, enquanto pensam segundo umamentalidade ocidental e moderna.

Não é segredo que a maioria do pensamento evangélicoainda não descobriu a cultura latino-americana. A evidência distoé o afã de referir-se a conceitos e autores da Europa e EUA. Nãose quer dizer com isso que o típico, o folclórico, o tropical devem

suprir o rigor intelectual. O que interessa ressaltar é que oProtestantismo deve levar em conta as expressões dos setorespopulares, que denotam por uma parte sua opressão secular,enquanto que por outra expressam suas esperanças, suas utopias.Isto se sintetiza nos vários modelos de ser dos latino-americanos,que no presente momento, converge numa marcha para alibertação de nossos povos. Este acontecer histórico, com suastradições (negadas pela cultura oficial dominante), com seusvalores (nos quais também se expressa o espírito cristão, apesarde serem tão freqüentemente desqualificados), devem serassumidos pelos evangélicos do continente. Essa identificaçãocultural fará com que o movimento evangélico seja parte dojardim e da flora latino-americana. Se não for assim, corre operigo de ser considerado como uma planta exótica.

Quarta oportunidadePor último, e muito brevemente, as Igrejas Evangélicas têm

a oportunidade de superar seu denominacionalismo, geralmenteherdado, e assim chegar a compreender que a missão cristã emnossos tempos exige um testemunho de unidade. O ecumenismodo povo é real: expressa-se através de celebrações comuns, deações nas quais se integram católicos e evangélicos. Muitasvezes isso é ignorado (involuntária ou voluntariamente) pelashierarquias eclesiásticas. Quando o povo se reúne, acima de suasdefinições religiosas, exulta de alegria, o que demonstra que oespírito ecumênico é próprio do Evangelho. Os caminhos(trilhas) do povo de Deus não são de separação, mas de unidade.Esta oportunidade é preciosa para aqueles que procuramcaminhar pelo mundo a procura do Reino (22).

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Notas1. Celso Furtado tem estudado e explicado cuidadosamente oprocesso de apropriação do excedente econômico produzidopelos trabalhadores, por parte daqueles que possuem o capital eadministram os bens de produção; o lucro destes últimos baseia-se sobre a pauperização dos primeiros: "Em conseqüência, acomposição do excedente (econômico) é em grande medidareflexo do sistema de dominação social, o que significa que amenos que conheçamos a estrutura de poder não podemosavançar no estudo das forças produtivas". Celso Furtado,Prefácio à Nova Economia Política, Rio de Janeiro. Ed. Paz eTerra, 1976, p. 29. E páginas mais adiante, acrescenta: "Mas seobservarmos mais de perto uma e outra forma de organizaçãosocial, comprovamos sem dificuldades que no capitalismo asformas encobertas de coação desempenham papel fundamental,pois o uso do excedente para a apropriação de outro excedente,ou seja. sua transformação em capital, pressupõe uma imposiçãode determinadas relações sociais. Deste modo, o capitalismodeve entender-se como uma formação sócio-política, ou seja,como uma estrutura de poder, impõe as relações nas quais oexcedente se transforma mais rapidamente em capital" (pp. 36-37).

2. Veja-se sobre este assunto o excelente livro de FranzHinkelammert, Crítica de la Razón Utópica, San José de CostaRica, Ed. DEI, 1984, especialmente seu último capítulo.

3. Pablo Richard, em seu ensaio Reflexión Teológica sobre laDimensión Utópico de la Praxis, no último livro já várias vezescitado nesse trabalho, do qual são editores Raul Vidales e LuísRivera Pagán, La Esperança en el Presente de América Latina,

assim oexpressa: pp. 305-306: "A racionalidade da fé é, assim, aracionalidade da "esperança contra toda esperança". Transcende-se, inclusive, o limite que aparece como o absolutamenteinsuperável: a morte. Na racionalidade da fé tudo pode sersuperado, inclusive a morte. E esta superação da morte é umaexperiência transcendente, interior à práxis política da libertação.A libertação humana total é vivida como possível, pois a fé nosdá a certeza de realizá-la mais além dos limites de toda apossibilidade humana e só quando chegamos a essa plenitude davida humana total, a fé desaparecerá, pois Deus será tudo emtodas as coisas".

4. Citado por Victório Araya, El Dios de los Pobres, San José daCosta Rica, Ed. SEBILA e DEI, 1983, p. 119.

5. Um exemplo claro é o caso da Igreja do Verbo de Deus naGuatemala. A ofensiva proselitista de muitas missões de fé naAmérica Central durante os últimos cinco anos deve serpercebida, entre outras coisas, também neste sentido.

6. Em sociedades como a brasileira, na qual se tem alcançadouma grande democratização na vestimenta, os evangélicos sãofacilmente percebidos por sua obstinação em usar terno egravata, geralmente de tons escuros. É um hábito que os colocade imediato fora das modas que prevalecem entre o povo, asquais tendem para o descontraimento (ou seja, algo menosformal), para o conforto.

7. Christian Lalive dEpinay, El Refugio de las Masas, Santiagodo Chile, Ed. Pacífico, 1969.

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8. Julio de Santa Ana, Op. Cit., p, 11.

9. Há grupos de origem africana que chegaram à América Latinadepois que várias gerações dos mesmos estiveram estabelecidosna Jamaica, ou outras ilhas do Caribe. Seus pais chegaram àAmérica como escravos. Nas ilhas colonizadas pela GrãBretanha foram evangelizados por missionários evangélicos.Quando a execução de certos trabalhos exigiu que a mão de obraindígena e crioula fosse ampliada, esses setores foramencarregados de prover os contingentes necessários detrabalhadores. Eles chegaram com sua cultura e a religião quehaviam adotado.

10. A frase aparece nas atas da Conferência Anual da IgrejaMetodista do Leste de Nova York. Revised Edition, AbingdomPress, 1954, p. 284.

11. Joaquim Jeremias, O Pai-Nosso, A Oração do Senhor, SãoPaulo, Ed. Paulinas; 1976, p. 126.

12. José Miguez Bonino, Fundamentos Bíblicos e Teológicos dela Responsabilidad social de la Iglesia, in Encuentro y Desafio,informe da Consulta Latino Americana de Iglesia y Sociedad.Huampaní, Perú, 1961, p. 24.

13. José Comblin, O Tempo da Ação — Ensaio sobre o Espíritoea História, Petrópolis, Ed. Vozes. 1982, p. 73.

14. José Miguez Bonino, em outro trabalho seu: Metodismo:Releitura Latino-americana. Piracicaba: UNIMEP; Faculdade de

Teologia da Igreja Metodista do Brasil. 1982, pp. 8-11, ressaltaque João Wesley nunca chegou a perceber a dimensão estruturaldos problemas sociais: "seria absurdo culpar a Wesley destafalha", assinala Miguez. Mas, havendo tomado consciência dela,cabe superá-la e corrigi-la.

15. José Miguez Bonino, no livro Protestantismo y Liberalismoen América Latina, San José da Costa Rica .Ed. DEI e SEBILA,1983, p. 25, indica que "O Catolicismo Romano é consideradocomo a ideologia e estrutura religiosa de um sistema global, acaduca ordem hispânica, senhoril, implantada na América Latina,que deve desaparecer e ceder o lugar a uma ordem democrática,liberal, ilustrada, dinâmica, que o Protestantismo tem inspiradohistoricamente, e ao que a doutrina protestante — o livro aberto,o juízo próprio — abre caminho e sustenta".

16. Domingo Faustino Sarmiento, intelectual que chegou a serpresidente da República Argentina, via no Protestantismo umagente eficaz para promover a modernização de seu país e oespírito liberal. Um de seus livros mais famosos tem por títuloCivilización y Barbarie. O primeiro termo corresponde à culturada cidade, a qual o Protestantismo era chamado a dar suacontribuição. A barbárie, ao contrário, característica do povocamponês, da sociedade rural e tradicional.

17. Veja-se de Martinho Lutero, Op. Cit., esp. pp. 174-206.

18. Leonardo Boff, Igreja Carisma e Poder, Petrópolis, Ed.Vozes, 3.a ed., pp. 208-209.

19. Martinho Lutero, La Libertad Cristiana, in Obras de Martín

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Lutero, Buenos Aires, Ed. Paidós, 1967, Tomo I, p. 167: “Emtudo que foi dito se deduz que o cristão não vive em si mesmo,mas sim em Cristo e no próximo; em Cristo pela fé e no próximopelo amor. O cristão sai de si mesmo e vai a Deus; de Deus desceo cristão ao próximo por amor. Mas sempre permanece em Deuse no amor divino como Cristo disse: ‘Daqui por diante vereis oscéus abertos, e os anjos que sobem e descem sobre o Filho doHomem’ (Jo 1.51). Daqui a liberdade verdadeira, espiritual ecristã que livra o coração de todo o pecado, mandamento e lei; aliberdade que supera toda outra, como os céus superam a terra.Queira Deus fazer-nos compreender essa liberdade e que aconservemos. Amém".

20. Cf. Rubem Alves: Protestantismo e Intolerância e João DiasAraújo: Inquisição sem Fogueiras. Rio de Janeiro, ISER, 1982,2ª ed., onde se analisa o processo crescente de autoritarismo queprevaleceu na Igreja Presbiteriana do Brasil.

21. José Miguez e outros, Protestantismo y Liberalismo enAmérica Latina, San José da Costa Rica, Ed. DEI e SEBILA,1983. pp. 3536.

22. Como o expressa o Conselho Latino-Americano de Igrejas(CLAI), no informe de sua Junta Diretiva e de seu Secretariado,De Oaxtepec a Huampani, Lima, Perú: Ed. CLAI, 1982. p. 18:"Em momentos em que o sonho de Bolívar por uma AméricaLatina integrada adquire novas ressonâncias e maior urgência emnosso continente, o propósito de nosso Conselho de ‘promover aunidade do povo de Deus na América Latina como expressãolocal da Igreja Universal de Jesus Cristo, e como sinal econtribuição para a unidade de todo o povo latino-americano’,

deve ser acentuado até que se faça carne e sangue em cada umade nossas Igrejas e organismos membros".