PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS ...Bruna Neves. Ao sócio “empresarial” Miguel dos...
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
Programa de Pós-Graduação em Direito
FISCALIDADE E EXTRAFISCALIDADE: em busca de uma dis tinção adequada ao
contexto da Constituição de 1988
FLÁVIA RENATA VILELA CARAVELLI
BELO HORIZONTE
2010
Flávia Renata Vilela Caravelli
FISCALIDADE E EXTRAFISCALIDADE: em busca de uma dis tinção adequada ao
contexto da Constituição de 1988
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de
Mestre em Direito.
Orientador: Marciano Seabra de Godoi
BELO HORIZONTE
2010
FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Caravelli, Flávia Renata Vilela C262f Fiscalidade e extrafiscalidade: em busca de uma distinção adequada ao contexto
da Constituição de 1988 / Flávia Renata Vilela Caravelli. Belo Horizonte, 2010. 153 f. Orientador: Marciano Seabra de Godoi Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Direito. Bibliografia 1. Direito tributário. 2. Tributos – Finalidades e objetivos. 3. Brasil.
Constituição (1988). I. Godoi, Marciano Seabra de. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Direito. III. Título.
CDU: 336.2.022
Bibliotecária: Erica Fruk Guelfi - CRB/MG 6/2068
Flávia Renata Vilela Caravelli
FISCALIDADE E EXTRAFISCALIDADE: em busca de uma dis tinção adequada ao
contexto da Constituição de 1988
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de
Mestre em Direito, área de concentração Direito Público,
linha de pesquisa “Estado, Constituição e Sociedade no
paradigma do Estado Democrático de Direito”.
__________________________________________
Marciano Seabra de Godoi (orientador) – PUC MINAS
__________________________________________
Flávio Couto Bernardes – PUC MINAS
__________________________________________
Carlos Palao Taboada – UNIVERSIDAD AUTÓNOMA DE MADRID
Belo Horizonte, 8 de abril de 2010.
AGRADECIMENTOS
Poder agradecer é uma bênção divina. Em primeiro lugar, por natural, pelo próprio benefício alcançado. Mas não é só. O simples fato de haver a quem agradecer é uma das razões mais importantes para ser grato na vida. Agradecer é também uma preciosa oportunidade de exercitar a humildade, evitar a soberba e compartilhar a alegria. (BARCELLOS, 2002)
Agradeço a Deus e a minha querida Mãe divina por mais uma, dentre tantas bênçãos,
que a todo momento são a minha vida dedicadas. A certeza da presença e guia desde o início
de caminhada só aumenta a confiança, a fé e a entrega de tudo que sou e serei, aos seus
cuidados.
Agradeço ao meu orientador, Professor Marciano Seabra de Godoi. Primeiramente, já
há muito o admirava como profissional do direito. A oportunidade de ter podido cursar, ainda
como aluna não regular do curso de pós-graduação, a disciplina “Jurisprudência
constitucional tributária” foi um presente que não só aumentou a minha admiração, agora
como professor e acadêmico, como transformou o meu ponto de vista acerca da forma de
pensar o direito tributário. O seu equilíbrio e imparcialidade ao avaliar criticamente as
decisões do Supremo Tribunal Federal em relação às grandes questões que envolvem os
tributos, abalaram as convicções de uma advogada tributarista acostumada a simplesmente
buscar soluções que atendam ao interesse de clientes. O estudo da justiça tributária e do
fundamento do dever de contribuir, na disciplina “A face fiscal do Estado Democrático de
Direito”, constituiu a base filosófica e ideológica que fundamentaram a minha pesquisa. A
escolha do Professor Marciano como orientador não foi certamente um mero acaso. Hoje
posso afirmar que foi a maior conquista neste caminho. Agradeço-lhe por possibilitar e
contribuir de forma substancial para o desenvolvimento e conclusão deste estudo.
Ao Professor Álvaro Ricardo de Souza Cruz agradeço também a formação do
pensamento crítico, a valorização da base filosófica na fundamentação da dogmática jurídica.
O conhecimento da linha de pesquisa da instituição foi por ele introduzido, além do preparo
para a aprovação no concurso de ingresso no programa.
A ideia inicial do presente trabalho surgiu das aulas de direito tributário no Programa
de Pós-Graduação da Pontifícia Universidade Católica, nas quais o Professor Paulo Coimbra
me oportunizou conhecer e me interessar pelo tema da extrafiscalidade. Deixo-lhe o meu
agradecimento.
A minha querida mãe, Maria Edna Rosa Marques, agradeço a criação e o incentivo
palpitante para a formação profissional. Ao meu pai, Pedro Cândido Vilela, agradeço o
exemplo de profissional ético e incansável na busca pelo conhecimento.
Ao Fábio Caravelli, meu marido, agradeço a tranqüilidade necessária para me entregar
aos estudos. A sua compreensão foi fundamental para o término da pesquisa.
Ao meu amigo e sócio, Júlio César Baeta Neves, quero agradecer a compreensão pela
ausência do escritório durante três longos anos, o que só um verdadeiro amigo seria capaz de
compreender, possibilitando-me realizar mais um sonho.
Sou grata ainda aos companheiros de escritório, que envidaram todos os esforços para
me disponibilizar o tempo necessário à conclusão desta etapa, especialmente a Drª. Bruna
Neves. Ao sócio “empresarial” Miguel dos Santos, quero agradecer a compreensão e a
autorização para mudanças estratégicas de horários que possibilitaram a fluência dos estudos,
bem como afirmar a admiração que por ele tenho como grande e equilibrado empreendedor.
Ao meu irmão, Leonardo Marques Vilela, agradeço o companheirismo de sempre, os
esforços para possibilitar o ingresso no programa e, especialmente, o apoio e engajamento
para o caminho que será trilhado daqui para frente.
Minha cunhada e amiga Aline Aguiar Mendes Vilela, como já tantas vezes por mim
repetido, mereceria não apenas uma menção neste breve agradecimento, mas uma seção da
dissertação. Brincadeiras à parte, sua disponibilidade infinita, seu doce e meigo amparo nos
momentos difíceis, seu incentivo nos momentos bons, a experiência acadêmica repassada de
forma leve, o desejo de sucesso estampado em todas as conversas e sorrisos, foram
fundamentais para chegar até aqui. A admiração pela sua pessoa e profissional me inspiraram
do início ao fim deste caminho.
Ao querido Professor Rosalvo Pinto, por quem minha admiração pessoal e profissional
cresce a cada momento, quero agradecer pelo ato generoso e desprendido de revisar o texto
deste trabalho. Aos colaboradores, especialmente Janaína Aguiar, também fica o meu
agradecimento.
Aos amigos Tatiana Neves, Viviane Jabour, Adriana Silva, Alessandra Costa e Pedro
Paulo Raimundi agradeço os momentos de relaxamento necessários à fluência do trabalho e a
atenção às angústias divididas e compreendidas. À Maira Campolina, além disso, agradeço a
troca de experiências durante todo o percurso da pesquisa: a sua leveza e tranquilidade, ao
lado da segurança pessoal e profissional, foram inspiração para prosseguir.
Às amigas que fiz nesta caminhada, Andréa Karla Ferraz e Débora Cardoso de Souza,
agradeço a oportunidade de, juntas, aprender e dividir o conhecimento, além das angústias e
alegrias muitas vezes compreensíveis apenas por quem vive o mesmo processo. Agradeço
ainda aos colegas do mestrado, em especial Luciana Goulart, Thiago Bregunci, Leonardo
Varella, Alfredo Vasconcellos, Marcos Antônio e a todos que contribuíram de alguma forma
para o meu ingresso no programa e para a conclusão deste trabalho.
Eles ergueram a Torre de Babel
Para escalar o Céu,
Mas Deus não estava lá!
Estava ali mesmo, entre eles,
Ajudando a construir a torre.
(Mário Quintana, Construção)
RESUMO
A dissertação objetiva a busca de uma adequada distinção entre a fiscalidade e a
extrafiscalidade, sob o prisma da Constituição de 1988, promulgada no paradigma do Estado
Democrático de Direito. Tratar o fenômeno da fiscalidade e da extrafiscalidade envolveu a
compreensão das correntes doutrinárias que as conceituam, a análise das normas tributárias
vigentes e dos seus efeitos e a verificação do seu tratamento pela jurisprudência. A partir
desse estudo, concluiu-se que os conceitos de fiscalidade e extrafiscalidade, trabalhados sob a
forma de contraposição pela doutrina em geral, partem de um equívoco metodológico,
arraigado em concepções superadas do Estado Liberal, como a teoria do “interesse tutelado”
pela norma tributária, o que se buscou desconstruir na pesquisa para, ao final, propor uma
definição dos institutos que seja compatível ao contexto da Constituição de 1988. A
fiscalidade e a extrafiscalidade devem ser vistas como funções da norma tributária, em
enfoque pragmático que se interessa pela aptidão da norma a produzir resultados. A
fiscalidade envolve a função arrecadatória, essa não apenas relacionada ao “simples”
abastecimento dos cofres públicos, mas dotada das características necessárias para atender à
teleologia da Constituição de 1988 e à função do sistema tributário nesse contexto,
especialmente a promoção de uma sociedade livre, justa e solidária. Envolve, ainda, a função
distributiva, no sentido de se repartir de forma justa a carga tributária estatal na sociedade. A
extrafiscalidade, por sua vez, envolve a função indutora de comportamentos lícitos do
contribuinte ou de terceiros, visando à promoção de um bem ou direito constitucionalmente
legítimo.
PALAVRAS-CHAVE: DIREITO TRIBUTÁRIO, FISCALIDADE, EXTRAFISCALIDADE,
CONSTITUIÇÃO DE 1988.
RESUMEN
El objetivo de esta disertación de maestría es la búsqueda de una adecuada distinción entre la
fiscalidad y la extrafiscalidad, bajo el prisma de la Constitución de 1988, promulgada en el
paradigma del Estado Democrático de Derecho. Tratar el fenómeno de la fiscalidad y de la
extrafiscalidad involucró la comprensión de las corrientes doctrinarias que las conceptualizan,
el análisis de las normas tributarias vigentes y de sus efectos y la verificación del tratamiento
del tema por la jurisprudencia. A partir de ese estudio, se concluyó que los conceptos de
fiscalidad y extrafiscalidad, trabajados bajo la forma de contraposición por la doctrina en
general, parten de un equívoco metodológico, arraigado en concepciones superadas del Estado
Liberal, como la teoría del “interés tutelado” por la norma tributaria, lo que se buscó
desconstruir en la investigación para, al final, concluirse por la definición de los institutos que
se entienden compatibles al contexto de la Constitución de 1988. La fiscalidad y la
extrafiscalidad deben ser vistas como funciones de la norma tributaria, en enfoque pragmático
que se interesa por la aptitud de la norma a producir resultados. La fiscalidad involucra la
función recaudatoria, esa no solo relacionada al “simple” abastecimiento de las arcas públicas,
sino también dotada de las características necesarias para atender a la teleología de la
Constitución de 1988 y a la función del sistema tributario en ese contexto, especialmente la
promoción de una sociedad libre, justa y solidaria. Involucra, todavía, la función distributiva,
en el sentido de repartirse de forma justa la carga estatal en la sociedad. La extrafiscalidad,
por su vez, involucra la función inductora de comportamientos lícitos del contribuyente o de
terceros y pretende la promoción de un bien o derecho amparados por la constitución.
PALABRAS-CLAVE: DERECHO TRIBUTARIO, FISCALIDAD, EXTRAFISCALIDAD,
CONSTITUCIÓN DE 1988.
LISTA DE SIGLAS
ADI - Ação Direta de Inconstitucionalidade ADIMC – Medida Cautelar em Ação Direta de Inconstitucionalidade AFRMM - Adicional ao Frete para Renovação da Marinha Mercante CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico CPMF - Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira CTN – Código Tributário Nacional ICMS – Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de comunicação II – Imposto de Importação IE – Imposto de Exportação IGF – Imposto sobre Grandes Fortunas IOF – Imposto sobre Operações de Crédito, Câmbio e Seguro ou relativas a Títulos e Valores Mobiliários IPI – Imposto sobre Produtos Industrializados IPTU – Imposto sobre Propriedade Territorial Urbana IPVA – IMPosto sobre a Propriedade de Veículos Automotores IRPF - Imposto de Renda Pessoa Física IRPJ – Imposto de Renda Pessoa Jurídica ISSQN – Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza ITBI – Imposto de Transmissão de Bens Imóveis e Direitos Reais sobre Imóveis ITCD – Imposto sobre a Transmissão “causa mortis” e Doação ITR – Imposto Territorial Rural Simples Nacional – Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte RE – Recurso Extraordinário STF – Supremo Tribunal Federal
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................13 2 FISCALIDADE E EXTRAFISCALIDADE: APROXIMAÇÃO INICI AL ..................15 2.1 O conceito da fiscalidade e da extrafiscalidade na doutrina ........................................15 2.2 Distinção entre a fiscalidade e a extrafiscalidade ..........................................................20 2.3 A problematização da fiscalidade e da extrafiscalidade voltada ao princípio da capacidade contributiva: análise da doutrina espanhola ...................................................23 2.4 Critérios de distinção .......................................................................................................33 2.4.1 Finalidade .......................................................................................................................33 2.4.1.1 Aspectos subjetivos ....................................................................................................33 2.4.1.2 Aspectos objetivos ......................................................................................................35 2.4.2 Capacidade contributiva ................................................................................................36 2.4.3 Funcionalidade ..............................................................................................................38 2.5 Funções da norma tributária segundo a doutrina ........................................................40 2.6 Proposta de classificação .................................................................................................41 2.7 Relevância da distinção ...................................................................................................42 3 FISCALIDADE ...................................................................................................................44 3.1 Fiscalidade como interesse “meramente arrecadatório”: a “teoria do interesse” tutelado nos moldes do Estado liberal e de acordo com a visão “liberista” .....................44 3.1.1 A teoria do “interesse tutelado” pela norma tributária: finalidade arrecadatória nos moldes do Estado liberal .........................................................................................................45 3.1.2 Liberistas x liberais ........................................................................................................46 3.2 Mito do tributo como instrumento de “abastecimento dos cofres públicos”: necessária desconstrução da finalidade arrecadatória no paradigma do Estado Democrático de Direito ..........................................................................................................49 3.2.1 A evolução do papel do sistema tributário nos diferentes paradigmas de Estado........49 3.2.2 Qualificação do vínculo jurídico da obrigação tributária e fundamento do dever de contribuir..................................................................................................................................53 3.3 O papel do sistema tributário na Constituição de 1988.................................................56 3.3.1 Ideologias dialeticamente adotadas................................................................................57 3.3.2 Objetivos e metas detalhadamente positivados: opção do constituinte pela Constituição Dirigente.............................................................................................................60 3.3.3 Interpretação sistemática da Constituição e as funções do Direito Tributário..................................................................................................................................62 3.4 Conceito de fiscalidade ....................................................................................................67 3.5 Análise de casos práticos .................................................................................................71 3.5.1 Legislação infraconstitucional ......................................................................................71 3.5.2 Constituição de 1988: imunidades ................................................................................73 4 EXTRAFISCALIDADE .....................................................................................................78 4.1 Da natureza jurídico-tributária das normas extrafiscais .............................................78 4.2 Conceito de extrafiscalidade............................................................................................80 4.2.1 Indução de comportamentos através do manejo do tributo: agravamento, minoração, exclusão, remanejamento .......................................................................................................83 4.2.2 Licitude do comportamento estimulado: conformidade com o art. 3º do CTN............86 4.2.3 Destino da arrecadação: fator irrelevante para a conceituação da extrafiscalidade...89
4.2.4 Análise crítica dos conceitos doutrinários sobre a extrafiscalidade ............................92 4.3 Extrafiscalidade e os limites constitucionais ao poder de tributar ..............................93 4.3.1 Princípio da legalidade ..................................................................................................96 4.3.2 Princípio da anterioridade .............................................................................................98 4.3.3 Princípio da irretroatividade ..........................................................................................99 4.3.4 Princípio do não confisco ............................................................................................101 4.3.5 Princípio da igualdade e capacidade contributiva ......................................................103 4.3.6 Imunidades ...................................................................................................................111 4.4 Legitimidade ...................................................................................................................114 4.4.1 Fins buscados pela norma extrafiscal: conformidade com o ordenamento jurídico. Análise dos chamados impostos moralizadores ...................................................................114 4.4.2 A questão da função extrafiscal como aptidão para induzir comportamentos e produzir resultados quanto ao bem jurídico prestigiado ....................................................120 4.4.3 Razoabilidade: a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre o controle de legitimidade da extrafiscalidade face ao princípio da igualdade ........................................127 4.5 Algumas considerações sobre a vantagem do uso de técnicas indutoras...................131 5 CONCLUSÕES .................................................................................................................136 REFERÊNCIAS ...................................................................................................................143
13
1 INTRODUÇÃO
A presente pesquisa foi desenvolvida na área de concentração em direito
público, na linha de pesquisa “Estado, Constituição e Sociedade no Paradigma do
Estado Democrático de Direito”. O trabalho tem como tema e objetivo geral o estudo da
fiscalidade e da extrafiscalidade, buscando-se uma distinção adequada dos institutos sob
o prisma e no contexto da Constituição de 1988, inserida no atual paradigma do Estado
Democrático de Direito.
Tratar o fenômeno da fiscalidade e da extrafiscalidade envolve a compreensão
das correntes doutrinárias que as conceituam, a análise das normas tributárias vigentes e
dos seus efeitos, a verificação do seu tratamento pela jurisprudência, bem como a
definição de regime jurídico próprio aos institutos, o que confere a possibilidade de se
afastarem ou mitigarem princípios limitadores do poder de tributar em se tratando das
normas extrafiscais.
O estudo da fiscalidade e da extrafiscalidade envolve o debate de questões
complexas nos diversos ramos do conhecimento e é objeto de dissenso na comunidade
jurídica, o que desperta interesse em sua compreensão, especialmente através da
perspectiva teleológica da Constituição de 1988.
O trabalho buscará demonstrar que os conceitos de fiscalidade e extrafiscalidade,
trabalhados sob a forma de contraposição na doutrina, partem de um equívoco
metodológico, arraigado em concepções superadas do Estado Liberal, como a teoria do
“interesse tutelado” pela norma tributária, o que necessita ser revisto em razão da
solidificação do Estado Democrático de Direito, no qual se enquadra a Constituição de
1988.
Como objetivos específicos da pesquisa, procura-se apontar os conceitos
doutrinários da fiscalidade e da extrafiscalidade na doutrina brasileira, delimitar o
critério que se entende como apto à diferenciação das normas fiscais das extrafiscais,
bem como classificar as normas tributárias segundo a sua função no ordenamento
jurídico - o que é realizado na seção 2. Também nessa seção objetiva-se analisar o
direito comparado, especialmente a doutrina espanhola, em que o epicentro da discussão
situa-se na relação entre as normas fiscais e extrafiscais e o princípio da capacidade
contributiva.
Objetiva o estudo, em sua seção 3, desconstruir os fundamentos que embasam o
conceito de fiscalidade na doutrina em geral, arraigados na teoria do “interesse tutelado”
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pela norma tributária e de acordo com a “teoria liberista”, consequências do paradigma
liberal ainda presente na seara tributária – e que levam ao persistente mito do tributo
como instrumento de abastecimento dos cofres públicos. Na mesma seção pretende-se
delimitar os fins do Estado e do direito tributário na Constituição de 1988 - e,
consequentemente, qualificar o vínculo jurídico da relação obrigacional tributária e
indicar o fundamento do dever de pagar tributos. Ao fim da seção 3, pretende-se
conceituar a fiscalidade e analisar alguns casos práticos.
São também objetivos específicos do trabalho: apontar a natureza jurídico-
tributária das normas extrafiscais; conceituar a extrafiscalidade; relacionar a
extrafiscalidade com os limites ao poder de tributar, com ênfase na capacidade
contributiva e delinear a legitimidade das normas extrafiscais no ordenamento jurídico-
tributário. Esses aspectos serão considerados na seção 4. Nesse contexto, busca-se
responder a alguns questionamentos relevantes que surgem ao se considerar o lado
prático da aplicação das normas extrafiscais, tais como: a possibilidade de instituição de
impostos “moralizadores”; como tratar a norma que, a pretexto de aumento da carga
tributária no exercício da função fiscal, é revestida da forma de uma pretensa norma
extrafiscal, o que poderia flexibilizar alguns dos limites ao poder de tributar - como no
caso do aumento do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) para cigarros, após o
fim da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF) e as
consequências do fato de a norma extrafiscal não ser capaz de promover o bem jurídico
que, em princípio, se visa a prestigiar.
A investigação tem características interdisciplinares, já que a fiscalidade e a
extrafiscalidade, segundo a forma proposta, são temas que, para o tratamento completo
e adequado, requerem a coordenação de conteúdos pertencentes a disciplinas
diferenciadas, tais como o direito tributário, econômico, constitucional e filosofia do
direito.
São dados primários da pesquisa as normas constitucionais relacionadas à
fiscalidade e da extrafiscalidade, especialmente as normas de limitação ao poder
tributante e as normas legais instituidoras de tributos com a finalidade extrafiscal no
ordenamento jurídico brasileiro. Como dados secundários serão estudados artigos, obras
doutrinárias e a jurisprudência sobre o tema da fiscalidade e da extrafiscalidade.
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2 FISCALIDADE E EXTRAFISCALIDADE: APROXIMAÇÃO INICIAL
2.1 O conceito da fiscalidade e da extrafiscalidade na doutrina
O presente trabalho tem como ponto de partida a análise crítica da fiscalidade e
da extrafiscalidade na visão da doutrina jurídica e da jurisprudência. Justifica-se essa
análise pelo fato de a legislação não cuidar especificamente da definição e diferenciação
dos institutos, a não ser prevendo os tributos em espécie e a regulação de cada um pelos
entes competentes. Em razão dessa indefinição, cabe aos intérpretes e aplicadores do
direito a tarefa de identificar a fiscalidade e/ou extrafiscalidade nos instrumentos
normativos que criam, majoram ou minoram cada um dos tributos. Delimitado o
conceito da fiscalidade e da extrafiscalidade, o estudo se propõe a uma análise crítica de
seu conteúdo a fim de concluir se a posição da doutrina é adequada ou não ao atual
paradigma do Estado Democrático de Direito.
A princípio, o trabalho se propôs tão somente a investigação da extrafiscalidade;
contudo, tendo em vista que esta é tratada pela maioria dos autores em contraponto com
a fiscalidade, tornou-se inevitável o estudo de ambos os institutos. Constatou-se, ainda,
que muitos autores os confundem ou tendem a considerar a simultaneidade da
fiscalidade e da extrafiscalidade obrigatória, justamente por um equívoco quanto aos
elementos que definem a primeira, o que vem sendo aceito de forma acrítica pelos
operadores do direito. Por isso é fundamental a delimitação do conceito da fiscalidade
para, posteriormente, se estudar o conceito e os elementos da extrafiscalidade.
A jurisprudência raramente aprofunda a discussão sobre a diferenciação entre os
institutos. Reconhece, contudo, que a extrafiscalidade está presente em determinados
tributos, diferenciando o tratamento desses dos que não possuem tal característica,
aspecto que será examinado no decorrer do trabalho.
A doutrina tem sido o campo preferencial para a análise da fiscalidade e
extrafiscalidade. Esta seção, sem a pretensão de exaurir o tratamento doutrinário
conferido ao tema, destina-se a apresentar um resumo das diferentes concepções que
fundamentam os institutos, destacando a ausência de consenso jurídico-dogmático
conceitual.
Diante da existência de poucas obras específicas sobre o tema na doutrina
nacional e da forma sucinta com que é abordado nos manuais, muitas vezes é difícil
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definir o pensamento de cada autor. A maioria deles, contudo, considera necessário
diferenciar a norma fiscal da extrafiscal, conceituando os institutos através de um
critério de contraposição. A fiscalidade seria a utilização dos tributos com fins
“meramente” ou “simplesmente arrecadatórios”, sendo corrente a utilização da
expressão que remete ao uso do tributo como “fonte de custeio da máquina estatal”. A
extrafiscalidade, por sua vez, representaria a utilização do tributo com fins outros (que
não os “meramente arrecadatórios”), sendo diversificados os elementos que os autores
utilizam para complementar a definição do instituto.
Fanucchi (1976, p. 54) reconhece o tributo como extrafiscal quando se verificam
em sua cobrança “outros interesses que não sejam os de simples arrecadação de recursos
financeiros, que se exteriorizam mediante ‘alívios’ e ‘agravamentos fiscais’”.
Ao estudar a extrafiscalidade nos impostos e o princípio do não confisco, Berti
afirma que:
O uso extrafiscal do tributo significa o alcance de fins distintos dos meramente arrecadatórios mediante o exercício das competências tributárias (poder de criar e alterar tributos) outorgados pela Constituição Federal às pessoas políticas da União, Estados, Distrito Federal e Municípios (BERTI, 2006, p. 41, grifo nosso).
Fica clara nos conceitos acima a visão da fiscalidade como sendo o uso do
tributo para interesses “meramente” ou “simplesmente arrecadatórios”. Os autores não
relacionam a fiscalidade com a persecução de resultados e fins constitucionais como,
por exemplo, igualdade, segurança e erradicação da pobreza.
No dizer de Carvalho (2007, p. 243), as normas fiscais seriam aquelas voltadas
“ ao fim exclusivo de abastecer os cofres públicos, sem que outros interesses – sociais,
políticos ou econômicos – interfiram no direcionamento da atividade impositiva”. Já as
normas extrafiscais prestigiariam os interesses referidos, pautando a conduta dos
contribuintes através do uso favorável ou gravoso do tributo.
Em obra específica sobre o tema da extrafiscalidade, Gouvêa identifica a
fiscalidade com o mero auferimento de recursos para a subsistência do Estado, enquanto
a norma extrafiscal teria a natureza de “princípio” ligado à realização dos “valores
constitucionais”:
Verificamos, assim, que a tributação tem dupla finalidade: a) auferir recursos para que o Estado subsista; e b) garantir a realização dos direitos fundamentais dos cidadãos, os verdadeiros fins do Estado.
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Quando falamos em “auferir recursos para o Estado”, segundo regras constitucionais, referimo-nos à “fiscalidade”. Consideramos a fiscalidade desvinculada de valores, afeita, apenas, a receitas e despesas. Quando nos referimos à efetiva consecução de fins do Estado, mediante o uso do instrumento fiscal, reportamo-nos à “extrafiscalidade”. Tomamos por extrafiscalidade os objetivos axiológicos da tributação (GOUVÊA, 2006, p. 38, grifo nosso).
O autor enfatiza a despreocupação da fiscalidade com a realização de valores
constitucionais, realização essa que, na sua opinião, estaria presente apenas na face
extrafiscal do tributo:
Para nós, extrafiscal é a norma voltada à realização de valores constitucionais. Como não se pode conceber norma jurídica avessa a valores constitucionais, nem norma tributária avessa a arrecadação, concluímos que toda norma tributária será, a um tempo, fiscal e extrafiscal. A nosso ver, a análise identificará extrafiscalidade sempre que a norma tributária refletir efetivação concreta de desidérios constitucionais, de realização dos direitos do cidadão, ao passo que identificará fiscalidade verificar o objetivo de obtenção de receitas para a subsistência do Estado (GOUVÊA, 2006, p. 47, grifo nosso).
Segundo Machado (1998), os tributos são classificados, conforme a sua função,
em fiscais, extrafiscais e parafiscais. Os primeiros seriam aqueles dotados da função de
angariar recursos para o custeio das atividades próprias do Estado. Os últimos (que não
constituem objeto deste trabalho) se caracterizariam pela obtenção de recursos para o
financiamento de atividades que, em princípio, não seriam próprias do Estado, mas que
são exercidas por este através de entidades específicas. Sobre a extrafiscalidade, o autor
aduz que:
No mundo moderno, todavia, o tributo é largamente utilizado com o objetivo de interferir na economia privada, estimulando atividades, setores econômicos ou regiões, desestimulando o consumo de certos bens e produzindo, finalmente, os efeitos mais diversos na economia. A esta função moderna do tributo se denomina função extrafiscal (MACHADO, 1998, p. 52).
Para Coêlho (2004, p. 87), “a extrafiscalidade se caracteriza justamente pelo uso
e manejo dos tributos com a finalidade de atingir alvos diferentes da simples
arrecadação de dinheiro”, sendo tal afirmação inserida em comentário sobre o princípio
da capacidade contributiva que, segundo o autor, pode ser afastado quando se tratar de
agravamento de tributo incidente sobre o comportamento que a norma quer evitar.
Verifica-se, novamente, o uso de um conceito de extrafiscalidade como algo oposto ao
tributo utilizado para “simples arrecadação de dinheiro” (fiscalidade).
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Falcão entende ser possível a distinção entre a tributação fiscal e extrafiscal.
Afirma que o conceito de fiscalidade, a princípio, ligou-se à visão da tributação “como
um instrumento para prover o erário público dos recursos necessários aos gastos
indispensáveis” (1981, p. 43), como defesa exterior, educação, justiça e obras públicas.
Atribuía-se a essa tributação a característica de neutralidade, no sentido de que deveria
intervir o menos possível na vida privada e no curso normal do mercado. O autor critica
tal raciocínio pela impossibilidade de sua aplicação concreta no mundo fático
(especialmente a neutralidade por compensação, que seria a devolução, pelo Estado, de
igual quantia despendida pelo contribuinte, uma espécie de contraprestação em serviços
públicos) e pela injustiça decorrente da ideia, que apenas aumentaria a desigualdade
entre os indivíduos de maior e menor potencial econômico. Falcão, então, define a
fiscalidade, seguindo Souto Maior Borges, como “aquela que ‘se limita a retirar do
patrimônio dos particulares, recursos pecuniários para a satisfação das necessidades
públicas’” (FALCÃO, 1981, p. 45).
Já a extrafiscalidade é, pelo autor, considerada medida de intervenção do
Estado no mercado e na livre iniciativa e responsável por parcela da modificação do
conceito de justiça fiscal:
Por extrafiscalidade entender-se-á a atividade financeira que o Estado exercita sem o fim precípuo de obter recursos para seu erário, para o fisco, mas sim com vistas a ordenar ou reordenar a economia e as relações sociais, intervindo, por exemplo, no mercado, na redistribuição de riquezas, nas tendências demográficas, no planejamento familiar. No fundo, mas não unicamente, importa em atuar sobre a economia, para mudar o panorama social. Extrafiscalidade é conceito bem amplo, que envolve, entre mais coisas, a tributação ordinatória, a aplicação dos recursos provenientes dessa tributação em gastos seletivos, ou sua retenção. Enfim, opções diversas, de respaldo político, social, econômico, etc., alheias à intenção pura e simples de carrear ingressos para o fisco” (FALCÃO, 1981, p. 48-49, grifo nosso).
Oliveira (2007), a par de distinguir as normas fiscais das extrafiscais, entende
que estas se caracterizam como instrumento de indução ou desestímulo de
comportamentos, voltados à função política, econômica ou sanitária dos governos.
Quanto às primeiras, o autor mantém o entendimento habitual da doutrina de visarem
“exclusivamente à arrecadação” para manter os serviços públicos:
A imposição tradicional (tributação fiscal) visa exclusivamente à arrecadação de recursos financeiros (fiscais) para prover o custeio dos serviços públicos. Já a denominada tributação extrafiscal é aquela dirigida a fins outros que não a captação de dinheiro para o Erário, tais como a redistribuição da
19
renda e da terra, a defesa da indústria nacional, a orientação dos investimentos para setores produtivos ou mais adequados ao interesse público, a promoção do desenvolvimento regional ou setorial etc. Como instrumento indeclinável de atuação estatal, o direito tributário pode e deve, através da extrafiscalidade, influir no comportamento dos entes econômicos, de sorte a incentivar iniciativas positivas, e desestimular as nocivas ao Bem Comum (OLIVEIRA, 2007, p. 47, grifos nossos).
Esse autor acrescenta que a qualificação jurídica da extrafiscalidade encontra-se
na destinação do produto arrecadado para a finalidade objetivada pela norma, devendo a
tributação extrafiscal necessariamente ter a sua receita vinculada a alguma despesa,
órgão ou programa, mesmo em se tratando de impostos. Considera que a vinculação
seria “a verdadeira condição de legitimidade concreta da extrafiscalidade.” (2007, p.
41), raciocínio esse que a pesquisa encontrou apenas em sua obra.
Fernandes (2005) concorda com os conceitos de fiscalidade e extrafiscalidade
expostos por Oliveira, mas não se posiciona sobre a questão da qualificação jurídica da
extrafiscalidade pela vinculação da receita, defendida pelo autor. Acrescenta a autora
uma classificação da extrafiscalidade, quanto à forma de manifestação, em direta e
indireta. No primeiro sentido, a tributação não visaria a induzir comportamentos, mas as
receitas dela provenientes seriam aplicadas para a intervenção do Estado nas áreas
econômica e social, citando os exemplos das contribuições especiais e das normas
isencionais ou imunitórias que não estimulam comportamentos, como a isenção do
imposto de renda até determinado teto. Já a manifestação indireta da extrafiscalidade se
daria pelo “manejo dos diversos elementos da norma instituidora de um tributo com o
objetivo de encorajar ou desestimular condutas, de acordo com o interesse público”
(FERNANDES, 2005, p. 235), citando como exemplos as isenções e imunidades com
tal objetivo.
Schoueri (2005, p. 32) considera que o termo extrafiscalidade pode ser tratado
como gênero e espécie:
“O gênero da extrafiscalidade inclui todos os casos não vinculados nem à
distribuição equitativa da carga tributária, nem à simplificação do sistema
tributário. (...) Inclui, nesse sentido, além de normas de função indutora (que
seria a extrafiscalidade em sentido estrito, como se verá abaixo), outras que
também se movem por razões não fiscais, mas desvinculadas da busca do
impulsionamento econômico por parte do Estado”.
20
Após citar o conceito de Oliveira, o autor parece indicar como exemplo do
gênero as normas referentes à política social, como uma lei que prevê o tratamento
diferenciado no caso de desemprego.
Já como espécie, a extrafiscalidade se caracterizaria por normas com função
indutora, ou seja, dotadas de “consciente” estímulo de comportamentos, não tendo
fundamento precípuo na arrecadação. “Por normas tributárias indutoras se entende um
aspecto das normas tributárias, identificado a partir de uma de suas funções, a indutora”
(2005, p. 30). Nessa função, “o legislador vincula a determinado comportamento um
consequente, que poderá consistir em vantagem (estímulo) ou agravamento de natureza
tributária” (2005, p. 30), sendo típica forma de intervenção do Estado no domínio
econômico. Shoueri prefere utilizar a terminologia “normas indutoras” ao invés de
extrafiscalidade, diante da amplitude que considera ínsita a este último termo.
Verifica-se ainda que o autor dedica pouca atenção à fiscalidade, referindo-se à
mesma como “a simples busca de maior arrecadação” (2005, p. 32).
Em breve síntese dos conceitos apontados, conclui-se que, por unanimidade, os
autores definem a fiscalidade como a finalidade arrecadatória do tributo, enfatizada
habitualmente pelas expressões “simplesmente”, “meramente” ou “exclusivamente
arrecadatórias”. As obras citadas relacionam, em geral, valores, resultados e objetivos
constitucionais, como a redistribuição de riquezas e alteração do panorama social e
econômico, à extrafiscalidade, limitando a fiscalidade à “mera”, “simples” e “exclusiva”
função de arrecadar dinheiro para os cofres públicos.
A investigação pretende demonstrar que tais conceitos não se ajustam ao perfil
que a fiscalidade e a extrafiscalidade devem possuir no contexto da Constituição de
1988, inserida no atual paradigma do Estado Democrático de Direito. A análise dos
equívocos e da insuficiência das concepções citadas bem como a proposta de um
conceito adequado aos institutos será realizada nas seções seguintes.
2.2 Distinção entre a fiscalidade e a extrafiscalidade
Além da questão conceitual, não há consenso dogmático sobre a real e efetiva
necessidade da distinção entre normas fiscais e extrafiscais. Há quem entenda que não
se pode conceber um tributo puramente fiscal ou extrafiscal, convivendo sempre ambos
os objetivos como faces de uma mesma moeda, o tributo.
21
Nesse sentido, Carvalho (2007) menciona que não há entidade tributária pura
(fiscal ou extrafiscal):
[...] Há tributos que se prestam, admiravelmente, para a introdução de expedientes extrafiscais. Outros, no entanto, inclinam-se mais ao setor da fiscalidade. Não existe, porém, entidade tributária que se possa dizer pura, no sentido de realizar tão-só a fiscalidade, ou, unicamente, a extrafiscalidade. Os dois objetivos convivem harmônicos, na mesma figura impositiva, sendo apenas lícito verificar que, por vezes, um predomina sobre o outro (CARVALHO, 2007, p. 246).
Machado (1998) expressa a dificuldade de utilização do tributo, atualmente,
apenas na sua face fiscal: “No estádio atual das finanças públicas, dificilmente um
tributo é utilizado apenas como instrumento de arrecadação. Pode ser a arrecadação o
seu principal objetivo, mas não o único” (MACHADO, 1998, p. 52).
Gouvêa (2006, p. 47) também considera que “toda norma jurídica será, a um
tempo, fiscal e extrafiscal.”
Ao se defender a simultaneidade de incidência dos institutos, acaba-se por
esvaziar a diferenciação entre os mesmos - que lhes confere autonomia científica e
determina a natureza jurídica que lhes é própria. É interessante notar que, de forma
antinômica, os autores citados acima mantêm, em suas obras, conceitos distintos para a
fiscalidade e extrafiscalidade, embora afirmem a impossibilidade real de distinção entre
os mesmos.
Outrossim, como se verá no decorrer deste estudo, a afirmação de que coexistem
as funções fiscais e extrafiscais em qualquer tributo se dá em razão de um equívoco
metodológico de transportar para a extrafiscalidade elementos que são típicos das
normas fiscais ou que permeiam toda e qualquer norma tributária. É o que se verifica na
afirmação de Godoi (2004, p. 222) de que os efeitos extrafiscais - citando os sociais,
econômicos e psicológicos - existirão em todos os tributos, em maior ou menor grau.
Menciona que “é da natureza patrimonial e coativa dos tributos, por mais neutros que
sejam, incidir materialmente no meio econômico e social, não sendo mais que uma
abstração lógica a ideia de impostos puramente arrecadatórios ou fiscais.”
Em uma acepção genérica, toda norma tributária realmente terá um efeito social
ou econômico, pois incide sobre o patrimônio dos contribuintes, modificando as
relações sociais. Contudo, essa constatação não identifica corretamente a função
extrafiscal do tributo nem a distingue da função fiscal. Tal interferência também ocorre
no campo das normas fiscais, o que foi verificado pelo autor citado. O equívoco, nesse
22
caso, é o de caracterizar como extrafiscal algo que é imanente aos tributos em geral. O
reflexo social, por exemplo, pode ser alcançado por diversas formas e é através da
análise da estrutura e do conteúdo do meio escolhido para alcançar o resultado social,
que será averiguada a função fiscal ou extrafiscal da norma tributária. Por exemplo, a
isenção de até um determinado teto no Imposto de Renda Pessoa Física (IRPF) visa à
proteção do mínimo existencial, medida ligada à capacidade contributiva, que para este
estudo é dotada de claro conteúdo fiscal (isso porque, como se verá, há muito foi
superado o interesse tutelado pelo direito tributário como o “simplesmente
arrecadatório”) e não extrafiscal. Uma isenção conferida em uma determinada região
pobre e desestruturada do país, aos empresários que lá se estabeleçam, tem relação com
a indução de comportamentos do contribuinte, visando a prestigiar a redução das
desigualdades regionais, conforme preconiza o art. 3º, III, da Constituição de 1988.
Ambos os exemplos têm reflexos no domínio econômico e social, o que deixa claro que
os critérios em geral utilizados para a distinção dos institutos são equivocados. Após o
desenvolvimento dos conceitos de fiscalidade e extrafiscalidade nas seções 3 e 4, o
raciocínio exposto certamente será mais claro ao leitor.
Contudo, a distinção prática entre normas fiscais e extrafiscais nem sempre será
tarefa fácil. Em que pese a possibilidade de o tributo ser, sim, “puramente” fiscal ou
extrafiscal, as duas funções podem conviver na mesma norma, o que ocorre com
freqüência, mesmo considerando-se o critério de distinção que a pesquisa entende como
o correto. Em todo caso, ainda assim se faz possível e necessária a distinção entre
ambas.
A título de exemplo, não há qualquer espécie de indução de comportamento na
norma do Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços de Transporte
Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS) que tributa o consumo de
energia elétrica (alíquota de 30%, no Estado de Minas Gerais), denotando pura
fiscalidade. Por outro lado, não há qualquer arrecadação na isenção do Imposto de
Importação (II), IPI e do Adicional ao Frete para Renovação da Marinha Mercante
(AFRMM) na importação de máquinas, equipamentos, aparelhos e instrumentos, bem
como suas partes e peças de reposição, acessórios, matérias-primas e produtos
intermediários, destinados à pesquisa científica e tecnológica - desde que o importador
23
seja cadastrado no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq)1, caracterizando de forma pura essa norma como extrafiscal.
Por outro lado, em relação ao II, ao mesmo tempo que a tributação elevada
preserva a produção nacional, desestimulando a aquisição no mercado externo, haverá
arrecadação e o seu produto será utilizado para a implementação de diversos fins do
Estado e políticas públicas previstas na Constituição, convivendo assim a fiscalidade e a
extrafiscalidade. O Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR), com suas
alíquotas progressivas conforme o grau de produtividade, visa ao melhor
aproveitamento da terra, sendo certo que a arrecadação terá o mesmo fim do exemplo
anterior. Nesses casos, prepondera a função extrafiscal, que, no entanto, não exclui a
outra.
Convivendo a face fiscal e a extrafiscal em uma mesma exação, o que, em tese,
contribui para a dificuldade na averiguação da natureza da norma, deve ser aplicado o
critério da preponderância, como entende Falcão (1981), o que mantêm a possibilidade
de distinção:
[...] não obstante possível a separação conceitual, é um pouco complicada a distinção prática. Com frequência, sói ocorrer de se superporem as duas conotações. Em tal hipótese, só o critério da predominância salvará a distinção fática (1981, p. 49).
Aizega Zubillaga (2001, p. 48), mesmo entendendo que é impossível o tributo
fiscal ou extrafiscal “quimicamente puro”, sendo o ideal a combinação de ambos os
fins, aponta que deverá ser observada a finalidade que o tributo persegue
“principalmente e primordialmente”, que se concretizará na estrutura jurídico-tributária
concreta.
2.3 A problematização da fiscalidade e da extrafiscalidade voltada ao princípio da
capacidade contributiva: análise da doutrina espanhola
A doutrina brasileira, em geral, entende possível a distinção entre a fiscalidade e
a extrafiscalidade, formulando conceitos diversos para os institutos, o que se observou
na seção 2.1. Admitida a possibilidade da distinção, a questão é problematizada no
campo da necessidade, onde parte da doutrina considera que a fiscalidade e a
1 Isenção conferida pela Lei nº 8.010/1990 (BRASIL, 1990).
24
extrafiscalidade atuariam simultaneamente em todo e qualquer tributo (utilizando-se,
contudo, de critérios equivocados para a definição dos institutos).
Na Espanha, por outro lado, a discussão sobre normas fiscais e extrafiscais passa
pela própria possibilidade de manejar o tributo com fins diversos daqueles
arrecadatórios. Isso porque parte da doutrina considera que apenas a função fiscal,
ligada ao princípio da capacidade contributiva, fundamenta o tributo e é o exclusivo
elemento de justiça fiscal no ordenamento tributário. Defendeu-se, inclusive, que a
função fiscal integra o próprio conceito do tributo.
Para a compreensão da análise do tema em termos normativos, Palao Taboada
(2004, p. 83) indica os dispositivos da legislação espanhola que dão partida à discussão:
O art. 4 da Lei Geral Tributária de 1963 dispunha que “os tributos, além de ser meios para arrecadar ingressos públicos, hão de servir como instrumento da política econômica geral, atender às exigências de estabilidade e progresso sociais e buscar uma melhor distribuição da renda nacional.” A nova Lei Geral Tributária, 58/2003, de 17 de dezembro, em seu artigo 2.1, parágrafo 1º, atribui aos tributos “o fim primordial de obter os ingressos públicos necessários para o sustento dos gastos públicos”, ou seja, o fim fiscal, o qual complica as coisas. O parágrafo 2º reproduz em substância o art. 4 da LGT de 1963 (PALAO TABOADA, 2004, p. 83, tradução nossa).2
Não obstante a legislação espanhola vigente mencionar “o fim primordial de
obter ingressos públicos” do tributo [o que também não significa o único], conclui o
autor que “os fins extrafiscais dos tributos estão perfeitamente admitidos no Direito
espanhol” (2005, p. 83). Por outro lado, menciona que a questão da conciliação dos fins
extrafiscais e da capacidade contributiva não resulta nenhum problema dogmático na
atualidade. “As restrições ao princípio da capacidade contributiva [...] são admissíveis
enquanto ditos fins [extrafiscais] estejam constitucionalmente reconhecidos e tutelados”
(2005, p. 83, tradução nossa).3
A propósito, sobre o questionamento da obrigatoriedade do princípio da
capacidade contributiva em todo e qualquer tributo, as lições de Palao Taboada (1976;
2004) e Lejeune Valcárcel (1980) apontam que se encontra superada a visão da
2 El art. 4 de la Ley General Tributaria de 1963 disponía que “los tributos, además de ser medios para recaudar ingresos públicos, han de servir como instrumento de la política económica general, atender a las exigencias de estabilidad y progreso sociales y procurar una mejor distribuición de la renta nacional”. La nueva Ley General Tributaria, 58/2003, de 17 de diciembre, en su artículo 2.1, párrafo 1º, atribuye a los tributos “el fin primordial de obtener los ingresos necesarios para el sostenimiento de los gastos públicos”, o sea, el fin fiscal, lo cual complica las cosas. El párrafo 2º reproduce en sustancia el art. 4 de la LGT de 1963. 3 [...] las restricciones del principio de capacidad económica [...] son admisibles en cuanto dichos fines estén constitucionalmente reconocidos y tutelados.
25
capacidade contributiva como “super princípio”, único a fundamentar o ordenamento
tributário. Segundo os autores, outros fins constitucionalmente protegidos também
podem fazê-lo, o que conferiria legitimidade às normas extrafiscais.
Sobre a evolução da doutrina européia em relação ao princípio da capacidade
contributiva, Palao Taboada (1978, p. 125-128) delimita três fases lógicas na doutrina
européia, lembrando o autor que a noção do princípio da capacidade contributiva é
bastante antiga. Desde os primeiros impostos, há indicações de que a sua cobrança
deveria ser relacionada à riqueza dos contribuintes, com fundamento em uma espécie de
justiça intuitiva. Mas a noção mais elaborada do princípio se dá no direito financeiro, no
século XIX, sendo que na Espanha o termo foi primeira e expressamente inserido na
Constituição posterior à guerra civil espanhola. Nessa primeira fase, o princípio da
capacidade contributiva não foi concebido “como critério positivo, como uma
positivação do princípio da igualdade” (1978, p. 126), mas sim como “uma ideia
deduzida imediatamente do princípio de justiça” (1978, p. 127).
A segunda fase doutrinária “apresenta o princípio da capacidade contributiva
concebido como uma ideia necessária para dotar de conteúdo o princípio da igualdade.”
(1978, p. 127). Esse último teria apenas uma noção abstrata e formal, necessitando de
“complementação por um critério material de justiça”, e o princípio da capacidade
contributiva lhe conferiria tal conteúdo material. O princípio da igualdade se
concretizaria e seria absorvido pelo princípio da capacidade contributiva (que seria a
“medida da igualdade”).
Segundo o autor, a “mutação doutrinária” experimentada nessa fase foi
possibilitada pela incorporação do princípio da capacidade contributiva à dogmática
jurídico-tributária4 (antes o princípio era utilizado apenas na ciência das finanças) bem
como pela “adoção de uma concepção positivista do direito e, concretamente, do
princípio da igualdade” (1978, p. 127).
Nesse cenário, conforme o autor, verifica-se que o princípio da capacidade
contributiva (e sua relação com a igualdade) passou por um apogeu e por uma crise. O
apogeu se identifica na absorção total do princípio da igualdade pelo princípio da
capacidade contributiva, entendendo a doutrina da época que “o único critério válido
para a aplicação do princípio de igualdade é o conceito da capacidade contributiva”
4 Palao Taboada confere o mérito dessa incorporação à Grizziotti, tributarista italiano que chamou a atenção para a capacidade contributiva em obra jurídico-dogmática, levando a calorosas discussões sobre o tema na esfera jurídico-tributária, em contraponto às discussões anteriores, realizadas meramente no campo da ciência das finanças.
26
(1978, p.127), além de esse princípio ser considerado o fundamento exclusivo do
sistema tributário e a medida de justiça dos tributos. A crise do princípio da capacidade
contributiva se dá no momento em que a doutrina “abandona a ideia de que a
capacidade contributiva representa o conteúdo material de um princípio abstrato e
formal, que é o da igualdade” (1978, p. 127), passando a fundamentá-los de forma
distinta. A capacidade contributiva passa a ser “um limite a partir do qual atua o
princípio da igualdade” (1978, p. 127). A igualdade, assim, teria um campo residual de
atuação própria.
A referida “crise” se deu em razão de alguns problemas que impregnavam a
concepção de se reduzir a igualdade à capacidade contributiva. Primeiramente, Palao
Taboada enfatiza a diferença entre um conceito nascido da ciência das finanças, como
critério de repartição da carga tributária, e um princípio jurídico-constitucional.
Diversos questionamentos problematizaram o tema da capacidade contributiva,
sinalizando sua relativização como fundamento do sistema tributário e a medida de
justiça dos tributos. Este princípio teria aplicação global ao ordenamento tributário ou a
cada um dos tributos? Questiona-se a quais espécies tributárias seria aplicável o
princípio (taxas e impostos, impostos diretos e indiretos e impostos pessoais e reais),
bem como se levaria em conta o contribuinte de direito, o contribuinte de fato ou
mesmo terceiros, como se dá na substituição tributária.
Outro ponto enfrentado por Palao Taboada se refere à questão da
extrafiscalidade, objeto da presente dissertação. As soluções para a extrafiscalidade,
com base no raciocínio dessa segunda fase de “crise” da capacidade contributiva,
seriam, em primeiro lugar, considerar que as normas extrafiscais, por se afastarem da
capacidade contributiva, seriam inconstitucionais (o que defende, por exemplo, Sáinz de
Bujanda) ou, em segundo lugar, resolver a questão através de um critério de justiça
financeira (e não tributária), em que eventuais benefícios fiscais seriam compensados,
por exemplo, através das despesas públicas. Tais soluções são criticadas por Palao
Taboada. A primeira seria “incompatível com a função pública de um Estado moderno”
(1978, p. 130), afirmando o autor que os tributos extrafiscais “podem constituir
irrenunciáveis exigências éticas” (1976, p. 394). A segunda solução, segundo Palao
Taboada, contradiria os próprios fundamentos da tese, ao admitir outros critérios, que
não a justiça tributária, para a imposição extrafiscal ou tentar incluí-los na própria
capacidade contributiva, o que termina por esvaziar o conteúdo do princípio.
27
Palao Taboada conclui que as concepções do princípio da capacidade
contributiva, tanto em seu apogeu quanto em sua crise, “partem de uma concepção
positivista do princípio da igualdade” (1978, p. 132), reduzindo, em última análise, a
igualdade à legalidade. A crítica é realizada no ponto em que “em última instância,
sempre acabam por recair os autores na necessidade de fazer uma remissão a critérios de
decisão que estão fora do âmbito do direito positivo” (1978, p. 132) e, portanto,
sensíveis ao intérprete.
Entende o autor que a igualdade “é um princípio que se traduz na proibição de
dar um tratamento desigual a situações para as quais o referido tratamento desigual não
seria justificado nem razoável” (1978, p. 133). Significa a proibição à arbitrariedade, já
que “não é possível formular critérios apriorísticos para a aplicação do princípio da
igualdade” (1976, p. 411). Acrescenta que não haveria a necessidade de os critérios de
discriminação serem apontados pela Constituição, pois o princípio da igualdade teria
conteúdo próprio, considerando o que “em cada situação histórica se considera como
justo, ou razoável, ou ligado à natureza das coisas” (1976, p. 411). Daí a importância da
integração do princípio pelo órgão jurisdicional. Contudo, adverte o autor:
O juízo sobre a arbitrariedade de uma norma deixa intacta a esfera da decisão política própria do legislador; não se trata de fazer prevalecer o critério do juiz frente ao do legislador, instaurando um ‘governo dos juízes’, senão de assinalar a este o mínimo de conformidade com a justiça material exigível. Os riscos que poderiam entranhar o controle material da legislação pelos juízes são muito menores que os que derivam de uma liberdade sem restrições do legislador atual. (PALAO TABOADA, 1976, p. 412, tradução nossa).5
A terceira e última fase doutrinária sobre a capacidade contributiva, conforme
Palao Taboada,
[...] consiste em entender que o princípio da capacidade contributiva não é mais do que a especificação concreta de um princípio de igualdade que já não se concebe - de maneira positiva – como um princípio meramente formal, mas como um princípio dotado de um conteúdo autônomo. Portanto, um princípio que não necessita de nenhuma concreção material; um princípio que tem, em si mesmo, um conteúdo determinado. (1978, p. 127).
5 El juicio sobre la arbitrariedad de una norma deja intacta la esfera de la decisión política propia del legislador; no se trata de hacer prevalecer el criterio del juez frente al del legislador, instaurando un ‘gobierno de los jueces’ sino de señalar a éste el mínimo de conformidad con la justicia material exigible. Los riesgos que pudiera entrañar el control material de la legislación por los jueces son mucho menores que los que derivan de una libertad sin restricciones del legislador actual.
28
Para Palao Taboada, a capacidade contributiva “não é mais que a ideia de que a
tributação deve relacionar-se com a riqueza dos particulares; não é mais que um
elemento imediatamente deduzível da ideia de justiça” (1978, p. 134), o que permite não
ser aplicado em se tratando da tributação extrafiscal, por opção do legislador, e ainda
assim seja legítima a imposição tributária.
Resumindo, o autor pontua que:
A igualdade não se manifesta, no direito tributário, só através do princípio da capacidade contributiva; este princípio é um ponto de vista necessário do legislador, que não o pode desconhecer; mas outras muitas considerações que o legislador tributário possa ter em conta, que justificam certas discriminações no âmbito tributário e que, portanto, excluam a arbitrariedade da legislação. (PALAO TABOADA, 1978, P. 142).
Exemplo de pensamento fundado na fase do apogeu do princípio da capacidade
contributiva quando se trata do assunto da fiscalidade e da extrafiscalidade é o de Yebra
Martul-Ortega6, citado por Godoi7 (2004, p. 225). Esse autor entende possível, além da
finalidade arrecadatória, outra finalidade que proporcione “uma melhor distribuição da
renda nacional”, o que fortaleceria o princípio da capacidade contributiva, que sempre
deve ser observado na tributação. O entendimento do autor, embora no sentido da
necessidade da observância do princípio da capacidade contributiva pelas normas
extrafiscais, acaba por afastar a possibilidade dessas normas, que não se fundamentam
na capacidade contributiva. Outrossim, entende-se que o raciocínio não retrata a
extrafiscalidade ao considerar como seu conteúdo a “melhor distribuição da renda
nacional.” Tal conteúdo é nitidamente vinculado à própria fiscalidade, conforme se
demonstrará na seção posterior.
No sentido da possibilidade da adoção de normas que não observem a
capacidade contributiva pelo ordenamento tributário, Vicente-Arche8 compreende que
outros fins podem ser perseguidos pela fazenda pública, além dos arrecadatórios, os
quais pressupõem o afastamento do princípio da capacidade contributiva. Tais fins
devem ser reconhecidos pela Constituição e implementados pela legislação ordinária
(Godoi, 2004, p. 225).
6 MARTUL-ORTEGA, Perfecto Yebra Martul. Comentarios sobre un precepto olvidado: el artículo cuarto de la Ley General Tributaria. Hacienda Pública Española (HPE), nº 32, 1975. 7 Godoi faz detalhado estudo sobre a evolução da tratativa da extrafiscalidade no ordenamento jurídico espanhol no trabalho que busca traçar limites ao instituto, trabalho esse do qual esta pesquisa aproveitará em grande parte, diante da clareza e substância para o conhecimento da questão no direito comparado. 8 VICENTE-ARCHE DOMINGO, Fernando. Notas sobre gasto público y contribución a su sostenimiento en la Hacienda Pública. Revista Española de Derecho Financiero (REDF), nº 3, 1974.
29
Checa González (1983) questiona se os tributos poderiam ter fins não
diretamente ligados à “estrita obtenção de ingressos públicos” e responde
afirmativamente, apontando as funções que o Estado tem na modernidade e os meios
diferenciados (dentre os quais, o sistema tributário) de que dispõe para cumprir os seus
objetivos. Tratando da inter-relação entre Estado e sociedade após a superação do
laissez faire, o autor considera que o Estado é “encarregado de dirigir globalmente o
sistema econômico, assumindo diretamente muitas de suas funções, tendo a cargo a
fundamental tarefa de conseguir a superação dos obstáculos que se opõem à igualdade
de fato entre os cidadãos” (1983, p. 505). Nesse sentido, o tributo não deve ser
vinculado à tarefa exclusivamente arrecadatória, entendendo o autor que também pode
ser um meio direto para se atingirem os fins constitucionais do Estado:9
[...] não se pode sustentar na atualidade que os impostos tenham como única função a de reunir os meios necessários para cobrir os gastos, aspecto que segue sendo ainda fundamental, senão que junto a esta têm que buscar ‘direta e automaticamente’ em concursos com outros instrumentos, a realização dos fins do ordenamento constitucional” (CHECA GONZÁLEZ, 1983, p. 507, tradução nossa).10
Mateo (1983) considera que o sistema tributário, em seu conjunto, envolve tanto
os tributos com a finalidade arrecadatória, quanto aqueles que têm por fim a intervenção
econômica dirigida, especialmente a distribuição da riqueza, superando “a ideia liberal
de reduzir o fim do mesmo à cobertura das necessidades públicas”.11 Sobre a inclusão
da finalidade arrecadatória no conceito de tributo, o que afastaria da realidade as normas
extrafiscais, Mateo cita Cortés Dominguéz:12
Sua realidade [das normas extrafiscais] é tão manifesta aparentemente que tem sido motivo para objetar a tradicional inclusão da finalidade arrecadatória no conceito de tributo, já que, nas palavras do professor Cortés Domingues, ‘sua característica mais importante é de haver surgido para cumprir uma finalidade que nada tem a ver, em princípio, com a
9 E não como entende Grizziotii, citado por González4 (1983, p. 507): os gastos públicos são instrumento imediato para a busca dos fins do Estado e os ingressos públicos são um meio necessário para os gastos públicos. 10 [...] no puede ya sostenerse en la actualidad que los impuestos tengan como única función la de allegar los medios necesarios para cubrir los gastos, aspecto que sigue siendo aún fundamental, sino que junto a esta tienen que intentar conseguir ‘directa y automáticamente, en concurso con otros instrumentos, la realización de los fines del ordenamiento constitucional’. 11 Pero esta misión general, junto a la propiamente fiscal, corresponde al sistema tributario en su conjunto, en superación de la idea liberal de reducir el fin del mismo a la cobertura de las necesidades públicas.” (1983, p. 343). 12 CORTÉS DOMÍNGUEZ. Ordenamiento tributario español (en colaboración con J. M. Martín Delgado). Madrid: Civitas, 1977, p. 149.
30
arrecadatória. São os tributos com finalidade extrafiscal. Este grupo de tributos que, como dissemos, não cumprem, em princípio, uma missão arrecadatória, senão que tratam de fazer mais gravosa uma determinada atividade dos particulares, desmente que o fim do tributo possa entrar no conceito do mesmo, posto que não seria possível negar-lhes caráter tributário dada a estrutura de muitos dos sistemas tributários atuais. (MATEO, 1983, p. 345, tradução nossa).13
Casado Ollero,14 citado por Godoi (2004, p. 229), esclarece a diferença da
utilização do princípio da capacidade contributiva como critério de graduação das
prestações tributárias e como pressuposto legitimador do tributo. A primeira visão não
se aplicaria aos tributos extrafiscais, que deveriam ter uma justificativa constitucional
para o desvio da capacidade econômica. Adverte que o desvio não pode importar em
“parâmetros contrários ou opostos” ao da capacidade econômica, mas apenas distintos.
Em relação à concepção do princípio da capacidade econômica como pressuposto
legitimador do tributo, esse deve atuar como “um requisito mínimo de razoabilidade ou
não arbitrariedade das normas tributárias.” Assim, o autor espanhol propõe que os
tributos extrafiscais respeitem “os limites da capacidade como fonte do tributo”, a saber
o mínimo existencial e o não confisco.
O Tribunal Constitucional da Espanha tem, contudo, traçado linha hermenêutica
de conciliação entre as normas extrafiscais e a capacidade contributiva, o que é criticado
por Palao Taboada (2005) e Herrera Molina (2000), por implicar a desnaturação do
conteúdo do princípio. Molina (2000, 159-160) menciona o argumento de alguns de
que, nos tributos ambientais, as atividades produtivas que importam degradação do
meio ambiente supõem um índice de capacidade contributiva, ao menos potencial.
Segundo o autor “o argumento é coerente se se admite a jurisprudência constitucional
que define a capacidade contributiva como mera exigência de que na generalidade dos
casos submetidos à imposição se grave uma riqueza atual ou potencial.” Cita a SSTC
37/1987, de 26 de março, FJ 13.º, e 186/1993, de 6 de junho, FJ 4.º, mas discordando do
13 Su realidad es tan manifiesta aparentemente que ha sido motivo para objetar la tradicional inclusión de la finalidad recaudatoria en el concepto de tributo, ya que, en palabras del profesor Cortés Domingues, “su característica más importante es la de haber surgido para cumplir una finalidad que nada tiene que ver, en principio, con la recaudatoria. Son los tributos con finalidad extrafiscal. Este grupo de tributos que, como decimos, no cumplen, en principio, una misión recaudatoria, sino que tratan de hacer más gravosa una determinada actividad de los particulares, desmiente que el fin del tributo pueda entrar en el concepto del mismo, puesto que no sería posible negarles carácter tributario dada la estructura de muchos de los sistemas tributarios actulales”. 14 CASADO OLLERO, Gabriel. El principio de capacidad y el control constitucional de la imposición indirecta(I), Civitas, REDF, nº 32, 1982 y El principio de capacidad y el control constitucional de la imposición indirecta(II), Civitas, REDF, nº 34, 1982.
31
entendimento. Palao Taboada (2005), após analisar o fundamento da primeira
jurisprudência citada15, afirma que:
[...] a construção dogmática do Tribunal se explica com um intento de manter a necessidade de que todo tributo, sem exceção, se ajuste ao princípio de capacidade econômica, o qual só pode lograr, no caso dos tributos com fins não fiscais, ao custo de abandonar toda noção plausível de capacidade econômica (PALAO TABOADA, 2005, p. 85-86, tradução nossa).16
Embora a seção se proponha o estudo da problematização na Espanha, é útil
citar a discussão do tema na Alemanha, que também se dá em relação ao princípio da
capacidade contributiva. Segundo Vogel (1984, p. 543), a possibilidade de utilização
das normas extrafiscais foi questionada, a princípio17, pelo conceito de imposto previsto
no Código Tributário alemão, que previa a necessidade de obtenção de receitas em seu
conteúdo normativo. Contudo, foi expressamente reconhecida pelo Tribunal
Constitucional a legitimidade da veiculação de normas tributárias com fins não fiscais.
Entendeu o tribunal, na vigência do Código Tributário de 1919/1931, que a
característica de “obtenção de receitas” no conceito de “imposto” do § 1º não
necessitaria ser o primeiro objetivo da norma, bastando que fosse um dentre os seus
vários outros. Posteriormente, em 1976, o novo Código Tributário alemão, em seu § 3º,
modificou a definição de imposto para expressamente prever a possibilidade do imposto
ter fins não preponderantemente fiscais.18
Sobre a necessidade de conteúdo arrecadatório como forma de manter a natureza
tributária das normas indutoras, Vogel deixou claro que, embora seja útil a distinção
entre função arrecadatória (fiscal) e regulatória (extrafiscal), a discussão deveria 15 A sentença 37/1987 se refere à análise de uma lei de reforma agrária do parlamento de Andaluzia, na qual foi estabelecido um imposto sobre terras subutilizadas, assim consideradas as que não obtivessem o rendimento “ótimo” fixado pela administração. O tribunal entendeu que “a obtenção de rendimentos inferiores ao ótimo ‘é, por si mesmo, reveladora da titularidade de uma riqueza real ou potencial ou (...) de uma renda virtual cuja dimensão maior ou menor determina a maior ou menor quantia do imposto.’ (PALAO TABOADA, 2005, p. 85, tradução nossa). 16 La construcción dogmática del Tribunal se explica como un intento de mantener la necesidad de que todo tributo sin excepción se ajuste al principio de capacidad económica, lo cual se puede lograr, en el caso de los tributos con fines no fiscales, a costa de abandonar toda noción plausible de capacidad económica. 17 O questionamento se deu, ainda, em relação às normas de competência previstas na Lei Fundamental. Posteriormente, passou-se a questionar a extrafiscalidade em contraponto ao direito de propriedade. Quanto às normas de repartição de competência, apesar de opiniões contrárias na doutrina alemã, Vogel conclui que “enquanto a lei produz rendas, estas devem ser partilhadas e administradas de acordo com as regras do sistema de partilha tributária, dos arts. 105 e s. da Lei Fundamental”, aplicando, sem diferenças, a disciplina dos impostos. A relação entre a extrafiscalidade e o direito de propriedade será analisada na seção 4, ao se tratar da legitimidade e limites do instituto. 18 O parágrafo 3.1 do Código Tributário Alemão prevê que “a obtenção de ingressos pode ser um fim secundário” do tributo. (PALAO TABOADA, 2005, p. 83, tradução nossa).
32
centrar-se entre o conteúdo distributivo da carga tributária e o conteúdo regulatório das
leis tributárias (extafiscalidade):
[...] o contraste com a regulação não é a obtenção de receitas – também os impostos regulatórios têm a mesma função de gerar receita – mas a distribuição da carga tributária, deve-se dizer mais exatamente que a distinção está entre a função distributiva da carga tributária e a função regulatória das leis tributárias [...] (VOGEL, 1984, p. 548).
Não obstante Vogel indicar alguns pontos em que a distinção entre normas
fiscais (entendida pelo autor como aquelas com “objetivo de receita”) e extrafiscais
seria necessária - o que importa quando se discute nesta seção a possibilidade e
necessidade da distinção entre tais normas - a inserção citada tem conteúdo bem mais
profundo. A seção 2.5 tratará das funções da norma tributária, na qual será proposto que
a função distributiva – que o autor considera ser o melhor contraponto às normas
extrafiscais – se insere na própria fiscalidade. Na seção 3, ao se cuidar do conceito da
fiscalidade, também será mencionado esse importante raciocínio do autor alemão.
No Brasil, o art. 3º do Código Tributário Nacional (CTN), ao conceituar o
tributo como “toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se
possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada
mediante atividade administrativa plenamente vinculada” (BRASIL, 1966), não
menciona a característica de arrecadação como seu fundamento de validade. Inexiste
empecilho legal e constitucional para a utilização do tributo como forma de indução de
comportamentos. Ao contrário, o constituinte já deixou clara a presença de tributos que
têm por finalidade precípua a regulação econômica, ao invés da arrecadação de
recursos, no caso dos impostos aduaneiros, do imposto sobre produtos industrializados e
do imposto sobre operações financeiras.
Conclui-se, assim, pela utilidade e possibilidade do manejo extrafiscal do tributo
e da distinção das normas tributárias em fiscais e extrafiscais. A discussão na doutrina
espanhola, que envolve a questão do uso do tributo extrafiscal não observar a
capacidade contributiva, é especialmente bem pontuada por Palao Taboada (1976; 1979;
2005), sendo certo que o princípio da capacidade contributiva não é o único fundamento
da tributação, mas apenas uma especificação possível do princípio da igualdade. O
princípio deve ser observado nas normas fiscais, o que não exclui a possibilidade de
outros fundamentos para o tributo, o que ocorre com as normas extrafiscais.
33
2.4 Critérios de distinção Aqueles que defendem a distinção entre as normas fiscais e extrafiscais em geral
se baseiam no critério finalístico, ou seja, a norma extrafiscal tem finalidade diversa da
buscada pela norma fiscal, a exemplo de Domingues (2007, p. 47), Falcão (1981, p. 28)
e Tipke e Lang (2008, p. 175). Tal entendimento não impede que, por vezes, uma
mesma norma tributária possa atender a finalidades fiscais e extrafiscais. A finalidade,
como instrumento eleito para a distinção entre as normas, poderia ser apurada mediante
a análise de critérios subjetivos, objetivos ou mistos, conforme cita Schoueri (2005,
p.18).
Tipke e Lang (2008, p. 203) indicam que a capacidade contributiva seria um
elemento que diferenciaria os tributos fiscais dos extrafiscais, estando presente apenas
nos primeiros tipos.
Schoueri (2005, p. 26-32) propõe, na linha de Vogel, o critério funcional para a
distinção. As normas tributárias teriam diversas funções, dentre elas a função indutora,
que se caracterizaria pela aptidão para a produção dos efeitos indutores, diferenciando-
as das demais funções do tributo (distributiva, simplificadora e arrecadadora).
Passa-se à análise dos critérios propostos para a distinção.
2.4.1 Finalidade
A grande maioria dos autores identifica a extrafiscalidade quando na norma
tributária se destaca a finalidade não arrecadatória. Outros acrescentam a finalidade de
indução de comportamentos. O ponto fundamental é, então, delinear qual a finalidade
da norma tributária - questão sabidamente tormentosa – o que pode ser estudado por
dois focos distintos: a busca dos aspectos subjetivos do legislador ou dos objetivos da
norma jurídica tributária.
2.4.1.1 Aspectos subjetivos
A análise dos aspectos subjetivos caracteriza-se pela busca dos elementos
volitivos do legislador para o delineamento da exação no contexto de edição da norma,
ainda que não expressos no seu texto. Isso poderia ser obtido, por exemplo, através da
34
análise da exposição de motivos das leis, das atas parlamentares, do contexto em que foi
criada a norma e do programa dos partidos que sustentam a base governamental.
A busca de elementos volitivos subjetivos do legislador para a caracterização da
finalidade da norma é duramente criticada na obra de Dworkin (1999). Através da
crítica ao que o autor denomina “teoria da intenção do interlocutor”19, extrai-se o quão
problemática é a identificação da vontade do legislador.
A primeira dificuldade seria identificar aqueles que teriam elaborado a lei (para,
posteriormente, buscar a sua intenção), diante da diversidade de partícipes no processo
legislativo, como assessores, lobistas, o próprio povo (quando a proposta surgiu a partir
da iniciativa popular), dentre outros. No segundo momento, o da apuração de intenções,
a dificuldade permanece, citando o autor a “intenção representativa” e a “intenção da
maioria”. A primeira é baseada no “mito do legislador médio ou representativo”, cuja
opinião seria a mais próxima da maioria dos parlamentares. A segunda forma de
apuração teria que confrontar-se com a diversidade de pensamentos dos congressistas e
suas ambições pessoais, o estado de espírito, a diferença dos ideais partidários e o
interesse egoístico de determinados grupos - que poderia justificar de forma equivocada
a real intenção visada pelo legislador - ou as misteriosas questões contrafactuais.
Por outro lado, a norma criada com um determinado fim pelo legislador, ainda
que expresso, pode, em um momento posterior, perder o sentido e a finalidade buscada
em sua edição, dependendo de mudanças históricas, econômicas, sociais e culturais,
contrariando a “história em movimento”. Tudo isso termina em avaliações inseguras e
vagas, construídas sobre “previsões” ou “expectativas”.
Nesse raciocínio, entende-se que não é recomendável a adoção do critério da
intenção subjetiva do legislador para identificar a finalidade da norma tributária, se
fiscal ou extrafiscal. Como não parece ser critério apto para interpretação das normas
jurídicas em geral.
19 Para Dworkin, a respeito da busca da finalidade da lei, a questão pode ser vista de duas formas, ao se analisarem os relatórios ou debates formais dos parlamentares. A primeira seria através da adoção da “teoria da intenção do interlocutor” (como aquele que formula o enunciado), que trata as declarações como evidência do estado mental dos legisladores que a fizeram, presumindo ser representativa do estado de espírito da maioria dos legisladores que participaram do processo legislativo. Pressupõe que a interpretação correta seja a conversacional, não construtiva. A segunda forma, que seria a adotada pelo “juiz Hércules”, aborda as múltiplas declarações feitas pelos legisladores no processo de elaboração da lei, como atos políticos importantes em si próprios (não como evidência de estado de espírito dos parlamentares), aos quais a interpretação da lei deve ajustar-se e poder explicá-las, assim como a interpretação precisa ajustar-se ao próprio texto da lei e explicá-lo. Entende a ideia do propósito ou intenção da lei como o resultado da “integridade”, não como combinação de propósito dos legisladores.
35
2.4.1.2 Aspectos objetivos
A análise objetiva, por sua vez, consiste na busca de sinais objetivos na lei que
indiquem a finalidade pretendida, o aspecto volitivo da norma. Schoueri cita Dora
Schmidt20, em estudo pioneiro sobre o tema, em 1926, no qual citou como sinais
objetivos o próprio texto da lei, que indica expressamente a sua finalidade indutora, a
base de cálculo, a alíquota, o contexto político (se a medida tributária não é isolada, mas
criada em um “pacote tributário”), a escolha dos objetos tributados, dentre outros. A
busca da finalidade da norma pelo aspecto objetivo leva em conta os elementos nela
expressos de forma literal.
Obviamente, os elementos indicados acima são fundamentais na análise da busca
da finalidade da norma tributária. A lei pode determinar expressamente o fim que
caracteriza a instituição, a minoração ou a majoração de determinado tributo, bem como
ser a finalidade deduzida da diferenciação entre as alíquotas ou base de cálculo entre
situações distintas combinado com a situação fática que constitui objeto do fato gerador.
Contudo, muitas vezes o texto da lei não é claro o suficiente para se concluir pela
finalidade da exação.
Sugere-se a análise do texto das normas jurídicas como “ponto de partida” para a
interpretação de seu conteúdo (que abrange a finalidade) sabendo-se, contudo, que essa
análise nele não se encerra. Dworkin (1999) explicita a “integridade textual” como um
dos elementos utilizados para a interpretação das leis,21 a qual, levando em conta as
justificativas de princípio e política, evitaria conclusões contrárias ao sentido mínimo
que dela pode ser extraído.
No âmbito da realidade política, não há como desprezar a impropriedade técnica
e o conteúdo incoerente e deturpado que muitas vezes eiva o texto e o conteúdo da lei,
dificultando a tarefa do seu intérprete. Tipke e Lang (2008, p. 168), explicitando a
20 SCHMIDT, Dora. Nichtfiskalische Zeweck der Besteuerung, Ein Beitrag zur Steuerthorie und Steuerpolitik, Tübingen, J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), 1926, p. 16-19. 21 Para a interpretação das leis em sua “melhor luz”, além da integridade textual, o autor ainda cita a equidade, que compreende a análise de qualquer expressão de pontos de vista políticos que pareça relevante para decidir se uma determinada lei, compreendida de acordo com uma interpretação que ele esteja considerando, seria equitativa, tendo-se em vista o caráter e o alcance da opinião pública e a história legislativa, como as convicções concretas que os legisladores expressam dentro de uma “comunidade de princípios”, que trata a legislação como uma decorrência do compromisso atual da comunidade com o esquema precedente de moral política.
36
dificuldade de averiguação da finalidade expressa pelo texto da lei, ao tratarem do
sistema externo22, em boa parte responsável pelo “caos tributário”, aduzem que:
A qualidade jurídica das leis tributárias sofre especialmente sob a caotização do direito tributário por meio de uma legislação tributária orientada pelos objetivos políticos do dia. De quando em quando adquirem as leis tributárias a natureza de leis desleixadas (Wegwerfgesetzen). Dessa maneira evidenciam-se frequentemente como insuficientes os argumentos provindos do sistema externo das leis tributárias, tanto assim que para a obtenção de consequências jurídicas aceitáveis precisam logicamente ser introduzidos outros métodos.
Tipke e Yamashita (2002, p. 40) vislumbraram outra dificuldade no que tange à
busca da finalidade, apontando a facilidade que o legislador tem de justificar a norma
extrafiscal por “uma razão objetiva qualquer, tal como o fomento do crescimento
econômico, a redução do desemprego, a garantia da infraestrutura pública, a
manutenção ou melhoria da saúde pública, a proteção ao meio ambiente [...]”.
Especialmente quanto à justificativa econômica, há que se ter bastante cuidado
ao analisar a norma tributária. Parece que toda norma tributária, independente do seu
caráter fiscal ou extrafiscal, terá um efeito sobre a economia, afinal, é sobre o
patrimônio do contribuinte que incide o tributo; mesmo a opção do poder público pela
ausência de tributação estará a interferir nessa esfera, implicando o aumento do
patrimônio daquele beneficiado pelo incentivo. A consideração de tal efeito, sem uma
investigação crítica da sua incidência, acaba por não diferenciar a norma fiscal da
extrafiscal, tendo, nesse diapasão, toda norma tributária uma finalidade extrafiscal, com
o que não se pode coadunar.
Outrossim, por mais que do texto da norma seja possível deduzir a sua
finalidade, pode haver a total impropriedade do alcance de seu resultado pela forma de
tributação escolhida, o que torna insuficiente o critério da busca da vontade objetiva da
lei para a escorreita e segura qualificação da norma tributária como fiscal ou extrafiscal.
2.4.2 Capacidade contributiva
22 O sistema externo, segundo os autores, “diz respeito ao modo da ordenação formal da matéria, a articulação técnica e ordem da matéria. Elementos do sistema externo são os conceitos de ordenamento da lei, a construção da lei e a posição da matéria jurídica singela na estrutura da lei.” (TIPKE e LANG, 2008, p. 168). O sistema interno, seguindo os autores o viés da jurisprudência de valores, seria composto dos valores que informam o conteúdo da ordem jurídica.
37
Schoueri (2005, p. 23) menciona que a capacidade contributiva é apontada por
Tipke como um dos possíveis critérios para distinguir as normas fiscais das extrafiscais
em se tratando de impostos, sendo princípio presente nas normas arrecadadoras. Ao
contrário, ausente a gradação segundo a capacidade contributiva, ter-se-ia um tributo
extrafiscal.
Tipke e Yamashita (2002) registram que a capacidade contributiva pode ser
afastada em se tratando de normas de cunho extrafiscal, mas não se encontra, nessa
obra, a indicação de tal fato como critério de distinção entre as normas fiscais e
extrafiscais. Tipke e Lang (2008, p. 203) mencionam, quando do estudo da igualdade,
que “o princípio da capacidade contributiva é o critério comparativo para normas de fim
fiscal [...]; para as normas de fim social valem princípios, que são apropriados para
justificar derrogações do princípio da capacidade contributiva”. Os autores
complementam, ainda, que embora nos tributos extrafiscais (por eles denominados
sociais) a capacidade contributiva pode ser afastada, não se pode desprezar nessa
espécie de tributos o mínimo existencial.
Embora não fique totalmente claro se os autores defendem a capacidade
contributiva como o único critério de distinção entre os tributos fiscais e sociais, não
parece suficiente e adequado realizar a distinção que se preconiza neste estudo através
do princípio em questão. Isso porque, em alguns casos, mesmo presente a função
extrafiscal como primária, pode ocorrer que a capacidade contributiva seja observada,
mas não como fundamento da exação. Um exemplo é fornecido por Schoueri (2005, p.
25), ao tratar da tributação dos juros sobre capital próprio. As normas concernentes à
matéria, instituídas no art. 9º da Lei nº 9.249/1995 (BRASIL, 1995), teriam a finalidade
de promover a capitalização das empresas, isso após o fim da medida que possibilitava a
correção dos balanços das sociedades empresárias. Contudo, conferiam “ao investidor
tributação equivalente à que teria em caso de investimento no mercado financeiro de
renda fixa, atendendo, daí, a capacidade contributiva”.
Concorda-se com a afirmação de Tipke e Lang (2008) de que, nos tributos
extrafiscais, a capacidade contributiva não deve, obrigatoriamente, se fazer valer, mas
não se pode, daí, concluir que o princípio seria sempre o critério oportuno para
distinguir as normas, devendo ser visto como um elemento que fará parte (ou não) da
natureza jurídica das normas fiscais e extrafiscais.
Esclarecimento, oportuno, relaciona-se à diferença da utilização do princípio da
capacidade contributiva como o critério que distinguiria normas fiscais de extrafiscais,
38
que pressupõe a possibilidade do emprego de ambas as funções da norma tributária no
ordenamento jurídico, do raciocínio que, conforme parte da doutrina espanhola,
valorizando de forma exacerbada o princípio da capacidade contributiva, afasta a
tributação extrafiscal por não observar o princípio (admitindo-se apenas a função fiscal),
o que foi objeto da exposição na seção 2.3 ao ser analisada a doutrina espanhola e
novamente será tratado na seção 4.3.5.
2.4.3 Funcionalidade
Schoueri (2005) propõe um critério de distinção entre as normas fiscais e
extrafiscais pelo qual a investigação fundamenta-se na eficácia, adotando a definição de
Ferraz Júnior (2008, p. 168), que a considera, “no sentido técnico, como aptidão, mais
ou menos extensa, para produzir efeitos”.23
Ferraz Júnior (2008) explicita que, no sentido técnico, a aptidão para produzir
efeitos admite “graus”, e que para aferição desses, deve-se levar em conta “as funções
da eficácia no plano da realização normativa”, que denomina “funções eficaciais”.24
A eficácia das normas jurídicas tributárias é analisada por Ávila (2008).
Segundo o autor, todas as normas jurídicas possuem objetos de proteção, sendo que
“quando se faz referência à eficácia das normas tributárias, está-se a fazer referência - a
rigor - aos bens atingidos, cuja disponibilidade é protegida pelos princípios jurídicos”
23 Segundo Ferraz Júnior, “a capacidade de produzir efeitos depende de certos requisitos. Alguns são de natureza fática; outros de natureza técnico-normativa. A presença de requisitos fáticos torna a norma efetiva ou socialmente eficaz [...] quando encontra na realidade condições adequadas para produzir seus efeitos.” Quanto aos requisitos técnicos, “a dogmática supõe, nesse caso, a necessidade de enlaces entre diversas normas, sem os quais a norma não pode produzir seus efeitos” (2008, p. 168). A teoria adaptada à extrafiscalidade pressupõe que a realidade fática suporte e torne possível a indução de comportamentos do contribuinte. Por exemplo, um aumento de alíquota do IPI, utilizando o critério da “essencialidade” para um produto supérfluo deve ser adequado à realidade social, no sentido de que a redução de seu consumo não importará prejuízo à sociedade. O aumento do tributo em tela para aparelhos de ar condicionado, por exemplo, não se adequaria à realidade futura do superaquecimento do planeta. Outrossim, em termos técnicos, o que é comum em se tratando de normas extrafiscais, possuindo o seu texto conceitos indeterminados ou referências que dependam da regulamentação ou atuação de órgãos competentes, estes devem produzir os atos normativos necessários a possibilitar a produção de efeitos da norma. 24 A primeira seria a “função de bloqueio” de condutas indesejáveis e contrárias ao preceito da norma. A segunda liga-se à “realização de objetivo, que funciona com um telos programático” (2008, p. 169), sendo a “função de programa.” A terceira e última seria a “função de resguardo”, visando a “assegurar uma conduta desejada”. As funções podem ser primárias ou secundárias, a depender da natureza da norma. Ferraz Júnior cita o exemplo do art. 129 do Código Penal que imputa pena de três meses a um ano a quem “ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem.” A função de bloqueio seria “evidente e primária.” A função de resguardo seria secundária, pois “a contrario sensu”, por força do princípio da legalidade, assegura a conduta de não provocar lesões corporais. Na mesma norma, de forma indireta, há também um telos objetivado na paz social e na integridade física de qualquer cidadão contra agressões” (2008, p. 169).
39
(2008, p. 82). A análise da eficácia leva à análise (e controle) de elementos que não são
considerados quando essa é “circunscrita aos meros enunciados linguísticos e às
estruturas lógicas” (2008, p. 84). O autor conclui que:
A análise da eficácia das normas (tributárias) faz parte do próprio objeto da Ciência do Direito. Sem a análise dessa eficácia, não se sabe quais os bens jurídicos promovidos ou restringidos na aplicação das normas tributárias. Sem o exame dos bens jurídicos, não se sabe quais são as normas constitucionais – princípios e regras – que devem ser buscadas para resolver os problemas tributários. E sem saber quais são as normas constitucionais, não se sabe quais são os critérios de controle de sua aplicação. Uma parte importantíssima do Direito fica esquecida (2008, p. 86).
Schoueri considera que o critério de distinção entre as normas tributárias fiscais
e indutoras (para este estudo, extrafiscais) deve ser baseado na função, entendida como
aptidão para produção de resultados. Seguindo Vogel25, os tributos teriam a função
arrecadadora, no sentido próprio terminológico, a qual considera presente em qualquer
norma tributária (posição com a qual não compartilha este estudo) e a função indutora,
caracterizada por possibilidade de influenciar o comportamento do contribuinte para
adotar, ou não, determinada conduta possível no ordenamento jurídico. Além destas
funções, o autor cita a distributiva, que representa a “repartição das necessidades
financeiras do Estado segundo os critérios de justiça distributiva” e a simplificadora
(2005, p. 27), o que será tratado na seção seguinte.
Na linha do supracitado autor, propõe-se neste trabalho, ao invés da investigação
do objetivo visado pela norma tributária (cuja insuficiência dos critérios de averiguação
foram apontados anteriormente), a busca pelo efeito prático que dela possa ser
alcançado, a sua “aptidão para produzir efeitos”, no caso, indutores de comportamentos,
em uma postura pragmática. Ao invés de se questionar se o legislador ou a norma visam
a estimular ou desestimular alguma conduta do contribuinte, propõe-se verificar se,
fática e tecnicamente, a norma é apta a fazê-lo. Caso a resposta seja positiva, a norma
caracterizar-se-ia como extrafiscal, distinguindo-se das normas fiscais.
Assim, a busca da função exercida pela norma parece ser o critério que trará
melhor luz ao tema. A função fiscal se caracteriza pela aptidão da norma a produzir
receitas, mas não somente, o que se enfatiza e se demonstrará na seção seguinte. A
função extrafiscal é determinada pela aptidão para produzir a indução de
25 VOGEL, Klaus. Die Abschichtung Von Rechtsfolgen im Steuerrecht. Steuer und Wirtschaft, nº 2, 1977, p. 106-107.
40
comportamentos do contribuinte desejada. Deve estar presente na norma tributária e
verificada no momento em que esta for apta a produzir os seus efeitos.
2.5 Funções da norma tributária segundo a doutrina
Na linha de Vogel, citado por Shoueri (2005), verifica-se que as normas
tributárias teriam quatro funções diversas. A primeira, arrecadadora, estaria presente em
qualquer norma tributária. Ao lado dessa, haveria a função de simplificar o ordenamento
jurídico tributário (função simplificadora), citando-se como exemplo a norma que cria o
regime de apuração pelo lucro presumido no cálculo do imposto de renda. Haveria
também a função distributiva, relacionada à distribuição dos encargos do Estado entre
os particulares, através de critérios de justiça fiscal e uma quarta, a função indutora,
ligada ao impulsionamento econômico por parte do Estado. Uma ou mais funções
poderiam estar presentes de forma concomitante em uma mesma norma tributária.
Como salientado anteriormente, Vogel (1984) considera mais propício o contraponto
entre normas indutoras e distributivas, e não entre as indutoras e as de conteúdo
arrecadatório, pois o conteúdo arrecadatório estaria presente em todas as normas
tributárias).
Tipke e Lang (2008) agrupam as normas tributárias no sistema, de acordo com a
sua finalidade,26 em normas fiscais, sociais e simplificadoras. O conceito de normas
fiscais envolve o conteúdo arrecadatório, servindo para cobrir as necessidades
financeiras do Estado. Seriam fundadas em “decisões concretas de dignidade tributária
segundo critérios distributivos (melhor, atributivos) de justiça, em que evidentemente
devem considerar-se os direitos fundamentais” (2008, p. 175). Interessante notar que,
em análise sistemática da obra dos autores, a distribuição compreende a aplicação da
capacidade contributiva, reconhecida mundialmente como “o princípio fundamental da
tributação justa” (2008, p. 201). O raciocínio não envolve, contudo, a progressividade,
que, para Tipke e Lang, integra o conteúdo das normas sociais.27
26 Optou-se neste trabalho pelo tratamento das funções da norma tributária (e não finalidades), diante dos motivos já expostos. 27 O raciocínio dos autores fica claro na seguinte passagem: “A alíquota progressiva do imposto de renda é norma de escopo social com finalidade de redistribuição: ela não colhe sua justificação da regra da igualdade e do princípio da capacidade contributiva; esses princípios levam a uma regra proporcional da finalidade fiscal. A progressão é muito mais a expressão da social-estatabilidade redistributiva [...]” (TIPKE E LANG, 2008, p. 262).
41
As normas simplificadoras “devem facilitar por motivos técnico-econômicos a
aplicação do direito tributário, simplificar, dar uma forma mais prática ou mais
econômica; [...] evitar a excessiva complexidade e inexequibilidade da lei.” (Tipke e
Lang, 2008, p. 178). Advertem, contudo, que simplificar não significa o tratamento do
direito tributário por “poucas cláusulas gerais”: “a fácil legibilidade para leigos de uma
cláusula geral esconde frequentemente sua alta propensão a litígio”.
As normas nomeadas pelos autores como “sociais” seriam as reguladoras, que
serviriam a objetivos políticos diversos, estimulando comportamentos desejados e
onerando comportamentos indesejados. Os autores as classificam em normas sociais
dirigistas (estímulo de comportamento voltado ao bem comum) e de redistribuição
(visam à correção do bem-estar no interesse de um equilíbrio social):
São normas direcionantes (reguladoras, dirigistas, intervencionistas, instrumentalistas) que são político-social (especialmente melhoradoras do bem-estar ou redistributivas), político-econômica, político-cultural, político-sanitária, político-profissional etc., não fiscalmente motivadas. Elas não subministram nenhuma decisão de dignidade tributária. Elas podem produzir exonerações tributárias através de privilégios fiscais [...], mas também onerações tributárias adicionais (por exemplo, por limitações de dedução fiscal) ou criar tributos especiais. Quem se comporta “de modo socialmente desejado” é fiscalmente desonerado, quem “de modo indesejado” se comporta, é tributariamente especialmente onerado”(2008, p. 176).
Concorda-se com as diversas funções citadas pelos autores, sendo que
provavelmente outras poderiam ser elencadas, quando se visa a instrumentalizar o
tributo de forma a atender às múltiplas funções que o Estado desempenha nas
complexas sociedades modernas. Contudo, verifica-se que a função arrecadatória não
pode, em solitário, definir a fiscalidade, pelo que se entende necessário manejar
algumas funções citadas para o conteúdo do instituto, sejam aquelas identificadas como
funções autônomas, a exemplo da simplificadora e distributiva (Schoueri, 2005) sejam
aquelas identificadas de forma equivocada no conteúdo da extrafiscalidade, como a
função social redistributiva de Tipke e Lang (2008).
2.6 Proposta de classificação
Não obstante as várias funções possíveis das normas tributárias, por opção
metodológica opta-se por classificá-las em dois grupos, o das normas fiscais e o das
extrafiscais, o que não significa excluir as diversas funções elencadas na seção anterior.
42
As normas fiscais, cujos efeitos mais conhecidos são os arrecadatórios, não
esgotam neste ponto a sua atuação. Como normas que têm, também, a tarefa de
promover a realização dos fins legítimos previstos no ordenamento constitucional e
infraconstitucional, especialmente da justiça fiscal, agrupam a função distributiva – essa
entendida como o critério de justa repartição da carga tributária na sociedade,
utilizando-se do princípio da capacidade contributiva e da progressividade. Assim, esses
princípios (que se relacionam à função distributiva) devem ser implementados ao lado
da função de arrecadar recursos para o custeio dos serviços públicos, das despesas do
Estado e para a promoção do bem-estar coletivo. Coaduna-se, assim, com Vogel (1984)
em que o contraponto com a função extrafiscal se dá, especialmente, na função
distributiva (ausente nas normas extrafiscais) e não na aptidão arrecadatória.
Nesse sentido, na classificação delineada por Tipke e Lang (2008), entende-se
que a fiscalidade abrange a finalidade [para este trabalho, função] fiscal mencionada
pelos autores, mas também a finalidade [função] social redistributiva, que para os
autores significa a correção do bem-estar no interesse de um equilíbrio social” (2008, p.
177), o que se daria através da progressividade. Ora, a progressividade é, junto à
capacidade contributiva, critério de distribuição justa da carga tributária, sendo certo
que se compreende no campo da fiscalidade, e não no campo das “normas sociais”.
A extrafiscalidade, por sua vez, abrange a função indutora de Vogel e Schoueri
(2005), bem como as normas de finalidade social dirigistas, de Tipke e Lang (2008).
A função simplificadora, citada por Schoueri (2005), na linha de Vogel, Tipke e
Lang (2008) deve ser implementada tanto pelas normas fiscais quanto pelas normas
extrafiscais.
O enquadramento proposto ficará mais claro com o aprofundamento realizado
nas seções posteriores.
2.7 Relevância da distinção
Definido o critério funcional para a distinção entre as normas fiscais e
extrafiscais, deve-se destacar a relevância da distinção no que concerne às
consequências práticas no uso e na aplicação dos institutos.
Poderia parecer, a princípio, parafraseando Godoi (2004, p. 256), que a
distinção não passaria de “estética da dogmática jurídica” ou “preciosismo
terminológico”, um jogo de palavras sem maiores consequências. Contudo, a distinção
43
tem efeitos práticos relevantes no estudo do direito tributário, seja para a correta
interpretação desse no paradigma do Estado Democrático de Direito, seja para aclarar as
diversas funções do tributo, seja para delimitar os limites na aplicação dos tributos
fiscais e extrafiscais, inclusive pela percepção dos desvios das políticas públicas ao
manejá-los.
A distinção tem reflexos quanto aos limites ao poder de tributar. Enquanto nos
tributos fiscais não há dúvidas sobre a obrigatoriedade de adequação aos seus ditames,
que comporiam o “estatuto do contribuinte”, questiona-se qual a relação das normas
extrafiscais com as limitações ao poder de tributar estabelecidas pela Constituição de
1988. Poderiam ser mitigados tais limites, deveriam ser enrijecidos ou, simplesmente, as
normas extrafiscais obedeceriam ao mesmo regime das normas ditas fiscais?
Observa-se, ainda, a possibilidade de uso indevido dos tributos extrafiscais,
especialmente aqueles que, por sua natureza constitucional, têm flexibilizados os
princípios da legalidade e anterioridade. Nesse caso, verificado o desvio na sua
finalidade, qual a providência a ser tomada? Este estudo se propõe, nas seções
seguintes, a responder a tais questionamentos, que destacam ainda mais a relevância na
distinção das normas fiscais e extrafiscais.
Após esses apontamentos iniciais, com base na necessária distinção entre as
normas fiscais e extrafiscais, pelo critério da função, a pesquisa buscará, nas duas
seções seguintes (na seção 3, quanto à fiscalidade e na seção 4, quanto à
extrafiscalidade), construir um conceito que possa definir adequadamente os institutos
no paradigma do Estado Democrático de Direito, analisando, de forma crítica, o
tratamento doutrinário conferido ao tema. Quanto à extrafiscalidade, buscar-se-á tratar
da sua natureza jurídica, dos aspectos voltados à legitimidade de sua instituição e dos
erros frequentes ao enquadrar uma norma em função diversa, o que ocorre em razão de
claro equívoco metodológico ou, propositadamente, pelos desvios na utilização das
normas extrafiscais como fiscais pelos que elaboram e executam as políticas públicas.
44
3 FISCALIDADE 3.1 Fiscalidade como interesse “meramente arrecadatório”: a teoria do “interesse
tutelado” pela norma tributária nos moldes do Estado Liberal e de acordo com a
visão “liberista”
Como se verificou pelos conceitos expressos na seção 1, a fiscalidade é
comumente tratada como a utilização do tributo para fins “meramente arrecadatórios”,
ligados ao custeio da “máquina pública” ou à prestação dos serviços públicos essenciais.
Tal tributação é vista como se tivesse por fim atender a um limitado rol de atividades,
como o pagamento do funcionalismo e a prestação de serviços básicos, como a
educação, a segurança pública e o serviço jurisdicional.
Outrossim, em viés garantista, é comum relacionar o objeto do direito tributário
somente à proteção do contribuinte quanto aos “desmandos” do poder de tributar,
valorizando a tal ponto as limitações contra tal poder como se estas constituíssem o
papel quase exclusivo do sistema tributário. É o que se percebe, por exemplo, na
afirmação de que “o direito tributário tem por finalidade limitar o poder de tributar e
proteger o cidadão contra os abusos deste poder” (MACHADO, 1998, p. 38) e na
construção engendrada por Martins (2000, p. 57), que trata o tributo como norma de
rejeição social, devendo o “sujeito mais débil da relação tributária” ser protegido contra
“as lanças penetrantes do sujeito ativo”.28
Tais visões, intrinsecamente relacionadas uma a outra, são vinculadas ao
paradigma liberal, já superado, o qual fincava suas raízes na intervenção mínima do
Estado nas relações privadas, partindo do pressuposto da supervalorização do
patrimônio individual e da premissa de que a autonomia dos indivíduos e do mercado
regulariam de forma suficiente o curso das relações na sociedade.
O raciocínio envolvendo a tradicional visão da fiscalidade tem por critério
metodológico o “interesse tutelado” pelo direito tributário como a arrecadação em favor
do Erário, contrapondo o interesse público ao particular e separando completamente o
Estado da sociedade civil. Esse raciocínio tem ainda, seguindo a classificação adotada
por Menéndez (2001), em obra que procura definir a legitimação do sistema tributário
no regime democrático, relação com a teoria liberista, que é antagônica à teoria liberal,
28 A teoria construída por Martins (2000) será exposta com maiores detalhes e terá seu conteúdo analisado criticamente na seção 4.
45
ambas tentando explicar que papel deve exercer o Estado e o direito tributário na atual
conjuntura econômica e política.
É fundamental, então, delimitar no que consistiria o “conteúdo arrecadatório” do
tributo referido pela doutrina e qual seria a sua extensão. Esse é um dos pontos
problematizados neste trabalho. A incompreensão sobre essa questão explica o fato pelo
qual a doutrina dá diversos exemplos de tributo com finalidade não arrecadatória que,
ao ver deste estudo, compreendem o papel do sistema tributário em sua face
desenganadamente fiscal no contexto do Estado Democrático de Direito.
3.1.1 A teoria do “interesse tutelado” pela norma tributária: finalidade arrecadatória
nos moldes do Estado Liberal
Conforme lições de Lozano Serrano (1988), o critério do interesse tutelado pelas
normas tributárias supõe a aplicação formalista e dogmática do Direito, na hermenêutica
da jurisprudência dos conceitos, embora tenha por intenção preconizar a aplicação
substantiva do direito29. O autor considera que muito mais que um critério
metodológico, o raciocínio remete a uma concepção de fundo sobre o direito, à justiça e
à posição do intérprete quanto à interpretação e aplicação do ordenamento jurídico.
O interesse tutelado pelo direito tributário seria a arrecadação, o interesse fiscal e
o crédito tributário em favor da fazenda pública. O interesse do particular, de proteção
do seu patrimônio, é tratado como contraposto ao interesse público, que deve ser o
normalmente prestigiado pela tributação. Tal raciocínio encontra a justificativa do
tributo no poder de império do Estado, considerando o direito financeiro meramente
instrumental, já que trataria dos ingressos, cabendo a outro ramo a “designação dos fins
e objetivos de justiça na atuação pública” (LOZANO SERRANO, 1988, p. 35).
Tal critério do interesse tutelado explicita uma “formalização” do dever de
contribuir, de apenas entregar uma quantia ao poder público, despido dos princípios de
29 A jurisprudência de conceitos, na qual o nome de maior destaque é Puchta, percebe o direito como uma realidade fechada, com viés exegético e formalista, caracterizando-se pela interpretação do Direito com base no produto da dedução científica. A jurisprudência de interesses tentou superar o formalismo da concepção anterior, encarando o direito como um fim. A aplicação do direito deveria observar os interesses e necessidades do caso concreto. Ambas as formas hermenêuticas pregavam a dicotomia entre direito e moral. Já na jurisprudência de valores, o Direito é visto como a “ciência dos valores” de determinado momento histórico, admitindo a graduação hierárquica. Nesse método, direito e moral não são antinômicos. A crítica a tal concepção do Direito é realizada na medida em que conduz a um processo de pré-compreensão dos valores, arriscando a racionalidade do direito e sobrecarregando a base de legitimação do Poder Judiciário (HABERMAS, 1997, p. 175).
46
justiça que, nesse raciocínio, não teriam relação com o direito tributário. O interesse
tutelado como único conteúdo da norma jurídica é positivista, ao considerar unicamente
uma pretensa vontade do legislador, abandonando outros critérios valorativos que
integram o ordenamento jurídico e a norma tributária.
A teoria citada é uma consequência do liberalismo filosófico e jurídico, já que o
conceito de interesse público era bem diverso do que temos atualmente. No paradigma
de Estado Liberal, separava-se rigidamente Estado e sociedade. O interesse público não
representava o interesse da coletividade, apenas contrapunha-se ao interesse do
particular. O Estado deveria se impor aos particulares através de sua autoridade - poder
de império. Daí a ideia de interesse arrecadatório, de um lado, e interesse do sujeito
passivo, do outro - ideia que frequentemente verifica-se nos debates que envolvem os
temas tributários e que resulta na visão míope de que o direito tributário teria como
objeto exclusivo a proteção do contribuinte contra o Estado, explicitada sobretudo
através das limitações ao poder de tributar.
O aumento da intervenção estatal, resultado da insuficiência da ideologia liberal
para atender aos anseios da sociedade, leva à revisão do papel do Estado, do direito e,
consequentemente, do direito tributário. Segundo Habermas (2004, p. 299), passa-se á
relação de equiprimordialidade entre a autonomia pública e a privada, não podendo se
separar o interesse público do particular. O interesse tutelado pelo sistema tributário não
é o meramente arrecadatório, mas sim a consecução dos fins previstos na Constituição,
devendo o sistema tributário realizar este papel, tanto na elaboração das normas
tributárias quanto na posterior destinação dos recursos arrecadados – e também na tarefa
de interpretação do direito. No Estado Democrático de Direito não há como sustentar a
dicotomia interesse público versus interesse privado, que a teoria da tutela do interesse
prestigia.
É por essa razão que a fiscalidade e o próprio conceito da arrecadação devem ser
reavaliados, de forma a se livrar dos ideais de paradigma superado e acolher o papel de
que o sistema tributário se reveste no atual Estado Democrático de Direito. Muito do
que é relacionado, por diversos autores, à extrafiscalidade nada mais é que a própria
fiscalidade, com a necessária configuração que o Estado e a sociedade moderna
requerem, o que será detalhado em seção posterior.
3.1.2 Liberistas x liberais
47
A terminologia utilizada por Menéndez (2001) pode causar certo estranhamento
e induzir o leitor a erro, já que a teoria que o autor nomeia de “liberal” é o oposto do
que o termo comumente significa no contexto político-econômico no Brasil. Trata-se de
uma teoria com eminente preocupação social no manejo do sistema tributário,
utilizando, em sua plenitude, instrumentos relacionados à capacidade contributiva dos
cidadãos como forma de redistribuição de rendas.
Já a teoria que o autor nomeia de “liberista” é a que representa o que se costuma
chamar, no Brasil, de pensamento “liberal” ou “neoliberal”, privilegiando a propriedade
privada e o mercado de transferência pelo contrato, conferindo ao sistema tributário a
tarefa simples de prover os bens públicos básicos e o custeio da máquina estatal.
As teorias acima têm respostas distintas quanto ao papel do sistema tributário:
este deve ser responsável pelo financiamento de um conjunto muito limitado de bens
públicos (liberistas) ou deve proporcionar receitas suficientes para redistribuir os
recursos econômicos e auxiliar na gestão da economia, com a redistribuição do
rendimento da sociedade com vistas a garantir certa igualdade entre os cidadãos
(liberais).
Verifica-se que ambas as correntes concordam em relação à atribuição ao
sistema tributário do papel de fornecedor de receitas para o financiamento dos bens
públicos básicos, sendo a discordância em torno da função que o Estado (inclusive
através do sistema tributário) deve representar em termos políticos, sociais e
econômicos.
Para a teoria liberista, o mercado autorregulado constitui a ordem social mais
justa, construída sobre o princípio da autonomia individual. Os liberistas são contra
qualquer intervenção no mercado livre. A relação entre o público e a autonomia privada
se baseia na autonomia da última. Quanto aos tributos, devem ser limitados à cobrança
de receitas necessárias para financiar os gastos públicos.
Como fundamentos da tese liberista, Menéndez (2001), embora adepto da tese
liberal, arrola argumentos funcionalistas, evolutivos e normativos. O argumento
funcionalista aduz que o mercado é mais eficiente para alocar seus recursos, já que tem
a eficiência como valor primordial. O evolutivo defende o fato de que o mercado de
autorregulação reflete a ordenação espontânea da sociedade. Já o argumento normativo
conclui que a economia de mercado deixa o máximo possível de espaço à autonomia
48
individual, o que deve ser preservado pelo Estado, adotando a ideia do contrato,
corolário da autonomia das vontades, como padrão de troca e distribuição.
Para a teoria liberal, no sentido conferido por Menéndez (2001), às finanças
públicas é atribuído um papel mais importante do que o conferido pelos liberistas. Os
liberais admitem ser necessária a intervenção do Estado na economia privada como
forma de promoção do bem-estar econômico e social e apresentam os tributos como
uma combinação de custo e de seguro contra o risco de extrema privação, a má sorte,
exatamente na linha das teorias da justiça de Rawls (2000)30 e da igualdade de recursos
de Dworkin (2005)31.
Os liberais combatem o argumento funcionalista pelo fato de que o mercado
regulado gera níveis mais elevados de ordem social que o de autorregulação: épocas de
plena maturidade do bem-estar social coincidiram com tempos de maior crescimento
econômico e prosperidade na Europa Ocidental.
Sobre o argumento evolutivo, os liberais questionam por que o estado
redistributivo também não pode ser visto como uma ordem espontânea da sociedade.
Segundo Menéndez (2001), realidades históricas demonstrariam que o sucesso de cada
modelo depende do contexto, tal como houve a crise da bolsa de Nova Iorque no
mercado autorregulado e ordens sociais bem estruturadas no pós-guerra, quando o
Estado foi intervencionista.
A teoria liberal, neste diapasão, é favorável aos tributos progressivos, à
utilização na maior medida do princípio da capacidade contributiva, que se pauta na
capacidade econômica dos contribuintes.
30 A teoria da justiça construída por Rawls (2000, p. 64-69) baseia-se em dois princípios. O primeiro constitui-se no direito de cada indivíduo ter igual acesso ao sistema de liberdades básicas (com conteúdo material e equitativo) oportunizado aos demais membros da sociedade. O segundo relaciona-se à distribuição de bens primários (posições sociais, cargos, riqueza). A desigualdade na distribuição dos mesmos só será legítima se for resultado de um processo de acesso universal em igualdade equitativa de oportunidades e trouxer o máximo de benefícios aos menos favorecidos. 31 Para Dworkin (2005, p. 79-156), o mercado deve ter uma importância ética, de forma a respeitar a igualdade de condições (recursos) entre os indivíduos - metáfora do leilão, o que deve ser assegurado pelas políticas públicas. As circunstâncias acidentais ou arbitrárias, como a transferência de riquezas pelo nascimento, a falta de talentos, os aspectos físicos ou doenças que importem na diferenciação e, consequentemente, em desigualdades na obtenção dos recursos (denominada “sorte bruta” pelo autor), devem ser consideradas para efeitos de transferências pelo Estado. Por outro lado, ao contrário de Rawls, Dworkin considera que as preferências, crenças e convicções pessoais, resultado das escolhas autônomas dos indivíduos (“sorte escolhida”), não devem ser fatores que influenciem nas políticas públicas, dada a inviolabilidade da liberdade de cada um. Daí a metáfora dos tributos como prêmios de seguro de forma a se implementar a justiça distributiva. Neste “seguro coletivo”, todos contribuem para o eventual insucesso de si e/ou dos outros, sendo o “prêmio” a contribuição paga para o eventual sinistro da má-sorte. Tal “prêmio” corresponde justamente ao tributo que será utilizado para o pagamento das “indenizações” aos que dela necessitarem. É a solidariedade fiscal como forma de promoção da justiça distributiva.
49
3.2 Mito do tributo como instrumento de “abastecimento dos cofres públicos”:
necessária desconstrução da “finalidade meramente arrecadatória” no paradigma
do Estado Democrático de Direito
A visão da fiscalidade baseada no interesse tutelado e de acordo com os
fundamentos da tese liberista não é adequada ao contexto da atual ordem jurídica.
Criou-se um mito de que a tributação “fiscal” estaria voltada ao atendimento de
interesses “simplesmente” ou “meramente” arrecadatórios, destinados ao
“abastecimento dos cofres públicos”, sendo tal premissa aceita de forma acrítica pelos
autores, abstraindo a substancial mudança verificada nos fundamentos da tributação na
nova ordem social democrática, quais sejam, a justiça social, a igualdade material e a
solidariedade.
Isso não significa desconsiderar a característica arrecadatória do tributo. Pelo
contrário. Não há dúvidas de que a arrecadação tributária constitui, já há muito tempo, a
maior fonte de receita do Estado - caracterizando o Estado Fiscal. Contudo, atualmente,
a face fiscal do tributo não pode se esgotar neste ponto. Daí a importância do correto
posicionamento sobre a função arrecadatória do tributo, a qual se liga à fiscalidade.
O debate remonta ao papel que o Estado e o sistema tributário exercem no nível
de desenvolvimento da sociedade moderna, bem como à questão do fundamento do
pagamento dos tributos pelos contribuintes.
3.2.1 A evolução do papel do sistema tributário nos diferentes paradigmas de Estado
Para a avaliação do papel do Estado e do sistema tributário, é necessário
compreender a evolução paradigmática do Estado Liberal para o Estado Social e deste
para o Estado Democrático de Direito. Paralelamente à tal evolução, o papel do tributo
sofreu significativas alterações, que devem ser mencionadas.
Como salientado em tópico anterior, no regime do laissez faire, o Estado teve
limitado o seu papel à operacionalização da organização estatal de forma a garantir as
liberdades individuais em seu status negativus, interferindo o menos possível na
autonomia privada, de forma a não ferir os interesses econômicos da classe burguesa
dominante32. A razão de existir do Estado estaria vinculada à necessidade de
32 Bonavides (2003, p. 158) aponta para o fato de que o calcanhar de Aquiles do modelo liberal se encontra no fato de que o conteúdo material da liberdade humana não foi dotado de universalidade, mas
50
manutenção das conquistas obtidas com a Revolução Francesa: liberdade, igualdade e
fraternidade, impedindo o retorno à ordem absolutista anterior pela conformação do
Estado à lei, sendo este o fundamento da soberania estatal sobre os indivíduos. A
igualdade alcançava apenas o sentido formal e a fraternidade era encarada como forma
de assistencialismo estatal, despida de conteúdo horizontal, entre os indivíduos. A
liberdade era o direito em voga, a concreta herança da revolução científica do
“iluminismo”.
A atividade financeira do Estado nesse período marcou a transição do Estado
Patrimonial33 para o Estado Fiscal, este caracterizado pelo predomínio das receitas
tributárias na atividade financeira pública, cobradas agora de forma regular e habitual, o
que levou ao desenvolvimento do aparato estatal tributário. No Estado Fiscal
minimalista (primeira fase do Estado Fiscal, ocorrida do final do séc. XVII ao início do
séc. XX), a tributação era vista com cautelas, já que a função do Estado era a garantia
das liberdades, mas sem transpor a medida necessária da autonomia individual. O
tributo era visto justamente como a contrapartida dos contribuintes pela conquista de
tais liberdades (com destaque ao fim dos privilégios odiosos outorgados à nobreza e à
Igreja no regime anterior patrimonialista), sendo centrais as noções de
representatividade, de livre consentimento da tributação – através da legalidade
tributária, de cidadania fiscal. A sociedade política coincidia com a sociedade dos
contribuintes, já que os detentores do direito ao voto eram justamente os que possuíam
capacidade econômica. Nessa quadra histórica, fazia algum sentido que o tributo fosse
visto como a fonte de receitas destinada à “manutenção da máquina pública”.
O desenvolvimento do capitalismo, a reação ao excesso de autonomia na
condução do mercado pela iniciativa privada, típica do Estado burguês, as mazelas da
revolução industrial, que oprimia e explorava a massa de trabalhadores, fomentando a
miséria e acentuando as desigualdades de toda ordem e o crescimento dos movimentos
alcançado apenas em favor do capitalismo burguês, “a serviço de seu Estado-gendarme”. (grifo nosso). 33 Torres (2007, p. 7-10), ao mencionar a atividade financeira do Estado em momentos históricos distintos, explicita a seguinte classificação: o Estado patrimonial, o Estado fiscal e o Estado socialista. O Estado patrimonial, presente desde o séc. XVI, tinha a sua maior fonte de receita nas rendas patrimoniais do príncipe, em aparente unidade do patrimônio deste e do Estado, do público com o privado. A arrecadação dos tributos era esporádica e apropriada de forma privada, como resultado do exercício da jurisdictio.
51
democráticos levaram à problematização da ideologia liberal: sob a forte influência dos
ideais marxistas, ascendeu o paradigma do Estado Social.
O welfare state, em sentido oposto ao do Estado Liberal, pregava a forte
intervenção do Estado nos assuntos sociais e econômicos, carregando a função de
promover segurança e bem-estar dos administrados. A atuação não era meramente
negativa, de abstenção e preservação dos direitos à liberdade, mas positiva, no sentido
do implemento efetivo das medidas necessárias ao alcance dos direitos sociais dos
indivíduos pelo Estado. O direito à igualdade (agora no sentido material) passa a ser a
principal preocupação do Estado, enfatizando-se os direitos denominados de “segunda
geração”. A relação entre Estado e particulares era novamente verticalizada e baseada
na soberania daquele, ao qual os indivíduos deveriam servir (e não o contrário, como no
liberalismo). Nas palavras de Bonavides (2003, p. 151) “era, assim, o Estado Social do
Estado e não o Estado Social da sociedade,” afastando o fundamento da soberania
popular como sustentação do poder estatal.
No campo financeiro e tributário, constituiu-se o Estado Social Fiscal (séc. XX,
iniciando com as Constituições do México, de 1917, e da Alemanha, de 1919, até a
queda do muro de Berlim, em 1989, aproximadamente). O aumento da atuação do
Estado na ordem econômica e social gerou o aumento das receitas tributárias e, mais
ainda, das despesas públicas. A expansão descontrolada do orçamento levou à crise
financeira e orçamentária do modelo34, não sendo a arrecadação suficiente para arcar
com a atuação inflada do Estado. Conforme Godoi (2005, p. 154), “o imposto passa a
ganhar outras funcionalidades que não a meramente arrecadatória.” Nesse período, o
pagamento do tributo era justificado pela teoria do sacrifício35.
Segundo Baracho (2000, p. 167) a crise de tal paradigma se deveu ao fato de que
[...] a redução do Direito ao Estado retirou o vigor das tentativas de justificação racional do Direito, ao impor a consecução de finalidades materiais a todo custo e, assim, ao menosprezar as suas necessidades de legitimação formal. Este paradigma foi superado em razão de sua incapacidade de ver o caráter privado essencial à própria dimensão pública,
34 Por fim, o Estado socialista controla os meios de produção e distribuição, sendo reservado ao sistema tributário papel quase insignificante. Na atualidade, verifica-se a dificuldade de se identificar algum sistema puramente socialista, tendo em vista a realidade da crescente abertura dos mercados nos poucos países que assim se denominam e o aumento do papel da arrecadação via tributos, podendo-se dizer híbridos pela face do Estado Fiscal que apresentam. 35 A teoria do sacrifício igual, segundo o Godoi (2005), baseia-se “na premissa de que os recursos econômicos agregam-se à renda ou ao patrimônio de um indivíduo segundo uma curva decrescente de utilidade marginal” (GODOI, 2005, p. 156). O raciocínio é contrário, pois, à tributação fixa e favorável, obviamente, à tributação proporcional, progressiva
52
enquanto locus privilegiado da construção e reconstrução das estruturas de personalidade, das identidades sociais e das formas de vida.
O Estado Democrático de Direito surge na tentativa de resolver os problemas
evidenciados tanto pelo Estado Liberal quanto pelo Estado Social. O grau de
complexidade das sociedades modernas não aceita a justificação da relação entre Estado
e sociedade na verticalização hierárquica entre a autonomia privada e a pública, mas sim
na relação complementar e essencial entre ambas (BARACHO, 2000, p. 168). O Estado
tem o papel de promover o bem-estar, mas tem como limites os direitos conquistados
pelos indivíduos, especialmente os direitos humanos, a promoção de condições
objetivas de desenvolvimento da liberdade e personalidade individuais e o poder de
autodeterminação democrática da sociedade. Nesse ponto, os direitos à liberdade,
igualdade e fraternidade (primeira, segunda e terceira gerações) são materialmente
consagrados e, como afirma Bonavides (2003. p. 162), a democracia deve ser vista
também como um direito fundamental dos povos, pelo que acrescenta à classificação os
direitos de quarta geração.
A fim de concretizar os ideais do paradigma ora em comentário, o Estado tem o
papel de intervir na economia, de buscar a redução das desigualdades entre os
indivíduos através da distribuição justa da carga tributária e da redistribuição das rendas
e de promover a justiça social, nos moldes da teoria liberal tal como exposta por
Menéndez (2001). A figura neutra do Estado há muito foi afastada, se é que, conforme
aduz Sidou (1978), em algum momento, em termos práticos, pôde-se confirmar tal
neutralidade.
Em termos financeiros, o Estado Fiscal, em sua fase atual, se preocupa em
atender às expectativas coletivas, através da intervenção na vida social e econômica,
destacando a função regulatória, de forma a garantir o bem-estar social, mas
abandonando a “utopia da inesgotabilidade de recursos públicos”. (TORRES, 2007, p.
9).
Como instrumento preferencial à disposição do Estado para que esse possa
atingir os objetivos pretensiosos das constituições contemporâneas, o sistema tributário
tem o papel de, através de suas receitas, financiar as despesas do Estado e o
fornecimento dos serviços públicos básicos, a universalização de serviços como a saúde,
a educação em todos os níveis e a previdência, dentre outros, de proporcionar a correta
distribuição da carga tributária e redistribuição das riquezas no seio da comunidade
53
política e ainda de atuar como forma de implementação das diretrizes constitucionais,
especialmente os direitos fundamentais.
SCHOUERI explicita a influência da nova concepção de Estado no papel da
ordem tributária:
Seguindo a evolução que também se verificou em outros ordenamentos jurídicos, adotam-se as finanças funcionais, que se propõem a intervir no campo sócio-econômico, com fins de tutela, redistribuição, equilíbrio. Daí que dentre os instrumentos de que se vale o Estado para atuação sobre a ordem econômica e social, modificando-a segundo os desígnios constitucionais, surgem as normas tributárias, já que nas palavras de Duverger, “No Estado moderno, as finanças públicas não são apenas um meio de assegurar a cobertura de suas despesas administrativas, mas também e principalmente um meio de intervir na vida social, de exercer uma pressão sobre os cidadãos para organizar o conjunto da nação (2005, p. 3).
A propósito do papel do tributo além dos fins “meramente arrecadatórios”, nos
Estados Unidos, Murphy e Nagel (2005) compreendem que:
[...] numa economia capitalista, os impostos não são um simples método de pagamento pelos serviços públicos e governamentais: são também o instrumento mais importante por meio do qual o sistema político põe em prática uma determinada concepção de justiça econômica ou distributiva. (2005, p. 5).
Godoi (2009. p. 8) trata da insuficiência da tese “liberista” (utilizando a
terminologia de Menéndez), também denominada “libertarista”, considerando o papel
do Estado e do direito tributário nos moldes acima delineados:
Se a teste libertarista já é falha para explicar a inserção do tributo na ordem jurídica e social de um Estado Liberal clássico, no contexto de um Estado Democrático de Direito a tese libertarista se revela ainda mais inepta. Os libertaristas parecem não se dar conta de que, se levarmos a sério o compromisso gravado na Constituição de 1988 de “assegurar o exercício dos direitos sociais (“educação, saúde, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância” – art. 6º) e individuais” (preâmbulo), de erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais (art. 3º), então a atividade financeira do Estado (da qual o tributo é um elemento central) deve ser vista como um instrumento de transformação social necessário para conferir e preservar a legitimidade do regime político e dar eficácia aos direitos constitucionais dos cidadãos, e não como um capricho dos governantes que simplesmente retira recursos da atividade produtiva para desbaratá-los nas gargantas vorazes da máquina estatal.
3.2.2 Qualificação do vínculo jurídico da relação obrigacional tributária e
fundamento do dever de contribuir
54
Definido o papel que o Estado e o sistema tributário devem exercer no contexto
do Estado Democrático de Direito, passa-se ao exame da qualificação do vínculo
jurídico da relação obrigacional tributária e do fundamento do pagamento de tributos
pelos contribuintes.
Por óbvio, não suscita qualquer dúvida de que o vínculo jurídico da relação
obrigacional tributária constitui um “dever” para os cidadãos. Contudo, a discussão vai
muito além desta premissa para qualificar tal vínculo no paradigma do Estado
Democrático de Direito como um “dever fundamental”, conforme Nabais (1988, p. 35 e
ss.). Segundo o autor, como herança do período pós-guerra e do liberalismo, há certa
polarização na discussão sobre os direitos fundamentais, pouco se mencionando sobre a
face oculta dos mesmos, que corresponderia a uma categoria autônoma, os denominados
“deveres fundamentais”.
A doutrina de Nabais (2005b, p. 57) desenvolve a ideia de cidadania na qual
todos os indivíduos são titulares de direitos e deveres universais situados no mesmo
plano (e não em relação de hierarquia ou prevalência dos direitos sobre os deveres ou
vice-versa). A cidadania fiscal, especificamente, se relaciona ao dever de pagar
impostos, sendo o preço devido pela sociedade baseada nos ideais de liberdade (posição
passiva do contribuinte frente ao Estado) e num mínimo de solidariedade. Também se
relaciona ao direito de exigir do Estado a tributação universal segundo a capacidade
contributiva dos contribuintes (posição ativa do contribuinte frente ao Estado).
O dever fundamental não é aquele que corresponde à simples obrigação negativa
de respeitar algum direito, visão tipicamente “liberista” (utilizando a teoria de
Menéndez), mas aquele que se baseia na ideia de que cada direito garantido ao cidadão
possui, necessariamente, um custo para a sua implementação, custo esse que será
financiado, no Estado tributário, pelas receitas advindas dos tributos, em especial a dos
impostos (NABAIS, 2005a).
[...] os direitos, todos os direitos, porque não são dádiva divina nem frutos da natureza, porque não são auto-realizáveis nem podem ser realisticamente protegidos num estado falido ou incapacitado, implicam a cooperação social e a responsabilidade individual. Daí que a melhor abordagem para os direitos seja vê-los como liberdades privadas com custos públicos. Na verdade, todos os direitos têm custos comunitários, ou seja, custos financeiros públicos. Têm, portanto, custos públicos não só os modernos direitos sociais, aos quais toda a gente facilmente aponta esses custos, mas também custos públicos os clássicos direitos e liberdades, em relação aos quais, por via de regra, tais custos tendem a ficar na sombra ou mesmo no
55
esquecimento. Por conseguinte, não há direitos de borla, apresentando-se todos eles como bens públicos em sentido estrito (NABAIS, 2005a, p. 19).
Nesta linha também Holmes e Sustein (1999) consideram que em termos
financeiros, todos os direitos, positivos e negativos, têm um custo, e esses custos devem
ser vistos como compatíveis com a liberdade, os quais, para terem existência,
necessitam de todo o aparato do Estado.
O fundamento do dever de pagar tributos, por outro lado, é fundado na
solidariedade.
Sidou (1978), ao tentar justificar o fundamento do dever de contribuir, cita, a
princípio, a teoria do lucro, que encontra a resposta ao dever de contribuir em uma
teoria obrigacional entre Estado e contribuinte, segundo a qual esse tem o dever de
pagar em razão dos benefícios que recebe do poder público (teoria que justificava o
pagamento do tributo no Estado Liberal). Tal teoria, segundo constatado pelo próprio
autor, é insuficiente e inadequada, já que implicaria o pagamento de uma carga
tributária maior àquele que recebesse do Estado uma maior gama de benefícios, ou seja,
em geral, os menos afortunados. Seria a teoria da equivalência, que atualmente se aplica
em relação às taxas no nosso ordenamento jurídico, como estruturante de todo o sistema
tributário. O autor defende, então, que a base do dever de contribuir é a capacidade
contributiva. Cada um arca com os custos do Estado de acordo com a proporção da
riqueza que possui. A adoção de tal teoria seria a evolução da concepção do tributo no
interesse do particular (teoria do lucro) para o tributo como interesse social.
Godoi (2005) menciona que a justificativa atual para o princípio da capacidade
contributiva é a solidariedade social (e cita a teoria da equivalência e a teoria do
sacrifício como outras formas de justificação do princípio). O elo entre o Estado Fiscal
e a solidariedade seria, então, a capacidade contributiva do contribuinte, esta
compreendida pelo “caráter informador do conjunto do sistema tributário” e não na sua
“faceta individual limitativa”:
[...] a tendência de sublinhar as relações do tributo com a solidariedade social e de afirmar o dever fundamental de contribuir com os gastos públicos mediante o princípio da capacidade contributiva veio à baila exatamente para afastar a noção autoritária do direito tributário como direito de império, composto por normas cuja característica fundamental radicava na tutela do interesse público arrecadatório, o que dava um caráter formal e instrumental ao dever de recolher impostos (GODOI, 2005, p. 159).
56
Herrera Molina (2000), ao tratar dos tributos ambientais, considera que o
fundamento jurídico da proteção ao meio ambiente é a solidariedade - assim como é esta
o fundamento do dever de contribuir ao sustento dos gastos públicos em geral - e não a
capacidade contributiva, “que poderá ceder ante outros valores constitucionais” (p.
163).
Por conseguinte, pode-se afirmar que a relação jurídica entre Estado e
contribuinte não é fundada no poder de império do Estado, mas sim nos princípios de
solidariedade, justiça social e de igualdade, que se relacionam à noção do dever
fundamental de pagar tributos, concepção que se coloca paralela à proteção dos direitos
fundamentais dos cidadãos e contribuintes. Direitos e obrigações convivem
harmonicamente e o “dever fundamental” de pagar tributos assegurará a implementação
dos direitos fundamentais que o Estado deve garantir por mandamento expresso da
Constituição.
Propõe-se, portanto, seja repensada a visão da arrecadação fiscal apenas como
destinada ao “abastecimento dos cofres públicos”, passando-se a concebê-la como
forma de realização dos fins previstos constitucionalmente, de se efetivarem as
prestações positivas em relação à sociedade, de se garantir a promoção do bem comum,
e a realização dos direitos fundamentais previstos e assegurados no texto constitucional.
Neste sentido, oportuna a lição de Godoi (2009, p. 5) quanto ao “mito do tributo
como combustível consumido nas atividades da máquina estatal”, referindo-se à
descrição doutrinária da arrecadação como um “recurso do Estado”, destinada ao
custeio de suas atividades administrativo-burocráticas:
Não é que essa descrição esteja errada; a questão é que se trata de uma descrição incompleta e pouco esclarecedora. Porque não reconhecer que o tributo se destina, ao fim e ao cabo, a financiar toda uma gama de atividades direta ou indiretamente relacionadas com o próprio sistema de direitos individuais e coletivos assegurados na Constituição? [...] Seria exato dizer que, conforme nossa Constituição, a contribuição de seguridade social recolhida por empregados e empregadores se destina a custear as atividades do “Estado”? Não seria mais preciso afirmar que o valor arrecadado se destina ao pagamento de aposentadorias, pensões e atendimento de saúde pública? É exato descrever os salários pagos aos professores da rede pública e aos policiais militares como simples “despesas da máquina estatal”? Não seria mais esclarecedor descrever tais despesas como recursos (oriundos dos tributos) diretamente relacionados à eficácia dos direitos dos cidadãos à educação e à segurança jurídica? (GODOI, 2009, p. 5).
3.3 O papel do sistema tributário na Constituição de 1988
57
3.3.1 Ideologias dialeticamente adotadas
A Constituição de 1988 mostra notável distinção estrutural e normativa em
relação às anteriores, especialmente a de 1967, modificada pela Emenda nº 1, de 17 de
outubro de 1969. Esta caracterizou-se por ser uma Constituição do Estado, com
preocupação em delimitar os seus poderes, com a previsão de um rol de direitos
despidos da executoriedade plena e, ainda assim, no que tange aos direitos e garantias
individuais, com a possibilidade de exceção em situações que culminavam na análise
discricionária das autoridades em contexto ditatorial. A título de exemplo, a pena de
morte era permitida em casos de guerra externa, psicológica adversa, revolucionária ou
subversiva (art. 153, § 11) (BRASIL, 1967). O tema da ordem econômica e social era
tratado no Título III e o referente à família, educação e cultura no Título IV, seguido das
Disposições Constitucionais e Transitórias.
Baleeiro (2001, p. 83) considerou que a Constituição de 1967 era calvinista.
“A preocupação é de proteger o comércio e a indústria, mesmo que se sacrifique aquela
coisa que é o essencial de qualquer um, de qualquer povo, de qualquer civilização, de
qualquer desenvolvimento – o homem”.
No que concerne ao sistema tributário, Greco (2005, p. 176-177) menciona, em
relação à Carta de 1967, que tal “Constituição via a tributação como instrumento de
geração de recursos para o funcionamento do Poder público”, “como exercício de um
poder juridicizado pela Constituição,” sendo sua disciplina constitucional voltada à
preservação dos interesses do particular contra o Estado, através das limitações ao poder
de tributar.
A Constituição de 1988 se baseia em uma ideologia bem diferente da anterior,
na tentativa de superar os óbices de uma democracia puramente formal. Neste sentido,
foram inseridas diversas normas principiológicas e programáticas de cunho social,
visando a amenizar a influência liberal dominante nos séculos XIX e XX e fincar a
necessária intervenção do Estado na economia (não propriamente o modelo socialista, já
que a proteção ao social pode-se revelar também no seio de um Estado capitalista).
Sistematicamente, a Constituição de 1988 já inicia o seu texto, no Preâmbulo,
com a afirmação da reunião dos representantes do povo para instituir um Estado
Democrático de Direito “destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e
individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a
justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos,
58
fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a
solução pacífica das controvérsias”.
O art. 1º da Constituição de 1988 elenca os fundamentos da República
Federativa do Brasil, constituída em Estado Democrático de Direito, compreendendo a
soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho, da
livre iniciativa e o pluralismo político. O princípio democrático vem insculpido no
parágrafo único do dispositivo.
A Constituição enumera os “objetivos fundamentais” da República no art. 3º: a
construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a garantia do desenvolvimento
nacional, a erradicação da pobreza e da marginalização, além da redução das
desigualdades regionais e a promoção do bem geral, sem preconceitos de origem, raça,
sexo, cor, idade e outras formas de discriminação.
Como princípios regentes das relações internacionais, são mencionados, no art.
4º, a independência nacional, a prevalência dos direitos humanos, a autodeterminação
dos povos, a não intervenção, a igualdade entre os Estados, a defesa da paz, a solução
pacífica dos conflitos, o repúdio ao terrorismo e ao racismo, a cooperação entre os
povos para o progresso da humanidade e a concessão de asilo político.
Em posição sistematicamente distinta em relação às constituições anteriores, são
previstos os direitos e garantias fundamentais no art. 5º, mas não apenas neste
dispositivo (como se expressa no seu § 2º)36. O prestígio dessas disposições pode ser
afirmado ao serem previstas, sistematicamente, antes mesmo das normas de organização
do Estado. Os direitos e garantias fundamentais foram concebidos como forma de
proteção do indivíduo contra o Estado, mas atualmente, são vistos também como forma
de garantias entre os próprios indivíduos, no âmbito civil – noção da horizontalização
dos direitos fundamentais37. A importância dos direitos humanos foi reforçada com a
Emenda Constitucional nº 45/2004 (que acrescentou o § 3º ao art. 5º), tendo os tratados
e convenções internacionais sobre a matéria aprovados pelo Congresso Nacional,
através de quórum qualificado, força constitucional, equivalente à das emendas à
Constituição.
36 “§ 2º. Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. (BRASIL, 1988). 37 Neste sentido, SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro, Lúmen Júris, 2004. CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Hermenêutica Jurídica em Debate. O constitucionalismo brasileiro entre a teoria do discurso e a ontologia existencial, p. 338-355.
59
Há um título específico sobre a Ordem Social (Título VII), onde são tratadas as
questões referentes a seguridade social, educação, cultura e desporto, ciência e
tecnologia, comunicação social, meio ambiente, família, criança, adolescente e idoso e
índios.
Como absorção da ordem capitalista liberal, no Título VII, concernente à Ordem
Econômica, são evidenciadas a propriedade privada, a livre iniciativa e a livre
concorrência, mas com uma nova roupagem, ao ser assegurada a função social da
propriedade privada, a valorização do trabalho humano, os princípios da defesa do
consumidor, do meio ambiente, da redução das desigualdades regionais e sociais, dentre
outros, sendo fim da ordem econômica “assegurar a todos existência digna, conforme os
ditames da justiça social”.
Albino, cunhando a expressão “ideologia constitucionalmente adotada” ao
referir-se “aos princípios que sejam fundamentais na ordem jurídica considerada”
(2003, p. 29), reconhece que a Constituição de 1988 tem princípios que se relacionam
ora ao viés liberal (no sentido comumente utilizado no Brasil), ora social (2003, p. 33),
devendo ser interpretada de forma a se obter “a linha de maior vantagem em busca da
justiça” (2003, p. 30) – função do princípio da economicidade, de Max Weber, adaptado
ao direito econômico. A aplicação do princípio da economicidade, para o autor, não se
trata de “simbiose, nem muito menos de adoção de uma afirmativa, em definitiva
exclusão da outra [...]; permanecerão as duas com o mesmo peso e mesma importância
no texto” (2003, p. 233); contudo, pode haver a exclusão de uma no caso concreto, mas
jamais do ordenamento jurídico. Também há casos de harmonização dos princípios com
ideologias distintas, tais como o “nacionalismo econômico com o capital estrangeiro
(art. 172)” (2003, p. 33), o que deve ser sempre priorizado, ao prestigiar-se a análise
sistêmica da Constituição.
Elali (2007, p. 61) considera dual o sistema jurídico brasileiro:
O direito brasileiro, neste sentido, serve de alicerce para uma economia de mercado, notadamente influenciada pelos movimentos capitalistas e liberais [no sentido comumente utilizado no Brasil]. Todavia, não valoriza somente os elementos de tais movimentos, pois, como já se registrou no decorrer do presente estudo, o seu sistema pode ser considerado dual, por também proteger direitos sociais, que, numa análise teórica mais profunda, seriam incompatíveis como um sistema totalmente capitalista. Ultrapassada essa fase de sistemas que se prendiam a um grupo de valores específicos, os diferentes valores se concretizam juntos, através de princípios aparentemente contraditórios. Mas só aparentemente, porquanto, se tem um capitalismo socializado, que determina um limite para a propriedade, para a livre-iniciativa.
60
Greco (2005, p. 189), ao mencionar os “valores constitucionalmente
consagrados” pela Constituição de 1988 e sua relação com a tributação, afirma que:
O grande desafio para todos aqueles que lidam com o direito tributário é encontrar o ponto de equilíbrio entre os valores constitucionalmente consagrados. Não podemos ler a Constituição pela metade, ou seja, só pensando em solidariedade social, pois estaríamos cometendo a mesma distorção cometida por aqueles que leem a Constituição só pensando na liberdade individual; temos de ler o conjunto, porque é pela conjugação dos valores protetivos da liberdade e modificadores da solidariedade que iremos construir uma tributação efetivamente justa.
Não há dúvidas sobre a positivação dos valores da liberdade na Constituição de
1988, o que não apenas é herança, mas uma conquista efetiva do Estado Liberal38 e
obviamente deve ser observado na execução das políticas públicas como dever negativo
e positivo do Estado nas suas esferas de atuação, especialmente a tributária. Contudo, ao
ser prestigiado o Estado Social, restou claro no presente estudo que a tutela das
liberdades é qualificada pela busca da concretização da igualdade, da justiça social. O
desenvolvimento deve ser buscado de forma sustentável, através da intervenção do
Estado em uma economia capitalista. Assim, não é a liberdade que modifica a
solidariedade, como expõe o comentário acima, mas ambos os valores positivados se
tensionam dialeticamente de forma complementar, o que se extrai, por exemplo, dos
diversos princípios da ordem econômica esparsos na Constituição. O art. 170 é o
exemplo mais claro, ao determinar que “a ordem econômica tem por fim assegurar a
todos existência digna, conforme os ditames da justiça social” (BRASIL, 1988).
Daí a adaptação do termo utilizado por Albino no título desta seção, no sentido
de contemplar as conquistas liberais e as necessárias garantias sociais como “ideologias
dialeticamente adotadas” pela Constituição de 1988.
3.3.2 Objetivos e metas detalhadamente positivados: opção do constituinte pela
Constituição Dirigente
38 Bonavides (2003, p. 159), embora considere a restauração do modelo liberal (no sentido utilizado no Brasil) “episódica, circunstancial, improvável, inconveniente e sobretudo fatal aos interesses dos países do Terceiro Mundo,” chegando a denominá-lo “úlcera da sociedade”, critica a rejeição integral aos seus princípios, se propondo a analisar o que de benéfico restou incorporado do paradigma, “tão incompreendido por quantos, afoitamente e desprovidos de serenidade, se cingem a uma rejeição superficial e liminar de todos os seus princípios” (2005, p. 144). Cita como herança benéfica do modelo, a sua missão revolucionária, racionalizadora, a incorporação às instituições estatais do princípio da separação dos poderes, dando ênfase às garantias constitucionais da liberdade, que segundo o autor seria o seu ponto mais próspero e estimável. Para se aprofundar no tema, vide BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. São Paulo: Malheiros.
61
Após essa breve incursão pelo panorama constitucional, é útil ao estudo a análise
da natureza da Constituição de 1988. Não há dúvidas de que esta se caracteriza como
uma Constituição dirigente e não como uma Constituição procedimental39.
Por Constituição dirigente entende-se o modelo de Constituição surgido após a
2ª Guerra Mundial, caracterizada pela preocupação de se descreverem as premissas
básicas, políticas, e não apenas as ligadas à separação e à organização de poderes, que
regeriam o Estado e a sociedade. Neste modelo são traçadas concretas metas e objetivos
sociais a serem alcançados pelo Estado, sob a forma de normas-princípios. Seria uma
forma de vincular o legislador futuro àquelas premissas eleitas pelo poder constituinte,
determinando o comportamento do Estado, independente do momento político e
histórico que vier a se formar.
Bercovici (2005) afirma que a Constituição de 1988 é dirigente, o que pode ser
percebido pela fixação de objetivos fundamentais da República em seu art. 3º. Tal
dispositivo, segundo o autor, integra a “fórmula política” da Constituição, a qual
consiste na “síntese jurídico-política dos princípios ideológicos manifestados na
Constituição. O que contraria essa forma política “afeta a razão de ser da própria
Constituição” (2005, p. 36).
O autor afirma que, além de “forma política”, o art. 3º é a “cláusula
transformadora” da Constituição, utilizando a expressão de Pablo Lucas Verdu40. O
artigo teria como precedentes o art. 3º da Constituição da Itália de 194741 e art. 9º, 2 da
Constituição Espanhola de 197842. Ambos os dispositivos buscam a igualdade material
39 Por Constituição procedimental, conforme a linha da teoria discursiva do Direito, se entende a Constituição que pretende normatizar o mínimo necessário ao exercício das atividades do Estado e proteção ao indivíduo, o que favoreceria o pluralismo político e a cidadania, máximas da democracia participativa. Delega-se aos representantes do povo, eleitos de forma racional por este, o poder de decidir o que melhor atende às demandas da sociedade em determinado momento histórico e político. Embora este modelo possa ser o mais adequado para a efetiva democratização, a sua implementação exige um nível de desenvolvimento avançado da sociedade e do Estado, o que é distante da nossa realidade, especialmente tendo em vista as mazelas do poder legislativo e executivo no Brasil. 40 VERDU, Pablo Lucas. Teoría de la Constitución como Ciencia Cultural. Madrid: Editorial Dykinson, 1998, p. 50-54. 41 “Art. 3º. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei, sem discriminação de sexo, de raça, de língua, de religião, de opiniões políticas, de condições pessoais e sociais. Cabe à República remover os obstáculos de ordem social e econômica que limitando de fato a liberdade e a igualdade dos cidadãos, impedem o pleno desenvolvimento da pessoa humana e a efetiva participação de todos os trabalhadores na organização política, econômica e social do País.” (BERCOVICCI, 2005, p. 36). 42 “Art. 9º, 2. Devem os poderes públicos promover as condições para que a liberdade e a igualdade do indivíduo e dos grupos em que se integra sejam reais e efetivas; remover os obstáculos que impeçam ou dificultem sua plenitude e facilitar a participação de todos os cidadãos na vida política, econômica, cultural e social.” (BERCOVICCI, 2005, p. 36).
62
e consideram que a realidade necessita ser modificada pelo Estado, através da estrutura
econômico-social.
A eficácia jurídica destes artigos, assim como a do nosso art. 3º, não é incompatível com o fato de que, por seu conteúdo, a realização destes preceitos tenha caráter progressivo e dinâmico e, de certo modo, sempre inacabado. Sua materialização não significa a imediata exigência de prestação estatal concreta, mas uma atitude positiva, constante e diligente do Estado. Do mesmo modo que os dispositivos italiano e espanhol mencionados, o art. 3º da Constituição de 1988 está voltado para a transformação da realidade brasileira: é a ‘cláusula transformadora’ que objetiva a superação do subdesenvolvimento. (BERCOVICI, 2005, p. 37)
Assim, sendo a Constituição de 1988 nitidamente dirigente, deve-se trabalhar
essa opção do poder constituinte e as diretrizes eleitas e que devem vincular,
materialmente, o legislador, o executor das políticas públicas e a sociedade. Constata-se
que, obviamente, a Constituição dirigente, per se, não será capaz de resolver todos os
problemas advindos da complexa sociedade atual. Isso dependerá da efetiva
implementação das diretrizes constitucionais positivadas no exercício da atividade
legislativa e das políticas públicas.
3.3.3 Interpretação sistemática da Constituição e as funções do Direito Tributário
Ao se discutir a eficácia das normas constitucionais, a dificuldade para a sua
concretude se encontra muita das vezes no conteúdo programático das mesmas.
Algumas normas constitucionais, em que pese possam aparentemente ser consideradas
como de conteúdo programático, são normas de eficácia plena, ao exemplo do art. 3º,
como bem pontua Silva:
Este artigo correlaciona-se com as promessas do Preâmbulo, pois “construir uma sociedade livre, justa e solidária” corresponde a formar uma sociedade dotada de valores supremos dos direitos sociais e individuais, tais a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça — que é aquela sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos e fundada na harmonia social. Mas também se vincula de alguma maneira com as normas que contemplam os direitos da Seguridade Social (arts. 194e ss.) como instrumentos de erradicação da pobreza e da marginalização e redução das desigualdades e se desdobra em normas precisas e de eficácia plena como as que definem o princípio da igualdade (arts. 5º, caput, e inciso I, e 7º, XXX, XXXI e XXXII), de modo que só na aparência é que as disposições do art. 3º têm sentido programático. São, em verdade, normas dirigentes ou teleológicas, porque apontam fins positivos a serem alcançados pela aplicação de preceitos concretos definidos em outras partes da Constituição. (SILVA, 2007a, p. 46).
63
Ainda que boa parte das normas constitucionais sobre a justiça social tenha a
característica de programática, ou seja, normas fim, cujos meios de efetivação são
delegados aos poderes do Estado, a doutrina de Silva (2007b) também enfatiza o seu
caráter imperativo e vinculativo, com eficácia para:
[...] estabelecer um dever para o legislador ordinário; condicionam a legislação futura, com a consequência de serem inconstitucionais as leis ou atos que as ferirem; informam a concepção do Estado e da sociedade e inspiram sua ordenação jurídica, mediante a atribuição de fins sociais, proteção dos valores da justiça social na revelação dos componentes do bem comum; constituem sentido teleológico para a interpretação, integração e aplicação das normas jurídicas; condicionam a atividade discricionária da Administração e do Judiciário; criam situações jurídicas subjetivas, de vantagem ou de desvantagem [...]. (p. 164).
Há que se irradiarem os comandos e valores positivados na Constituição para
todas as fontes de atuação do Estado, e no que concerne ao presente estudo, ao sistema
tributário, que também deve implementar o estatuído como os alicerces da República
Federativa do Brasil, já que, conforme explicita Grau (2008, p. 164), “não se interpreta
a Constituição em tiras, aos pedaços”.
Certamente o papel que é reservado ao sistema tributário na Constituição de
1988 deve observar a realidade econômica e social do país e buscar atingir a igualdade
material, equitativa de oportunidades. Não se pode admitir (como ocorria no antigo
Estado Liberal) que lhe seja reservada apenas a função limitada e objetiva de prover os
gastos burocráticos de Estado e os bens públicos básicos à população (segurança,
judiciário, proteção externa e, no máximo, educação básica). Essa postura jamais levaria
a uma sociedade justa, solidária, permeada pela igualdade no sentido material, conforme
previsto no art. 3º de seu texto.
Também o art. 1º, III, da Carta Magna43 coloca como fundamento da República
o princípio da dignidade da pessoa humana que, embora de difícil e exata definição,
deve ser evidenciado quando se trata do manejo do sistema tributário. O preâmbulo da
Constituição de 1988, os artigos 5º e 6º do seu texto estipulam uma série de direitos e
garantias individuais, coletivos e sociais que também devem ser implementados pelo
Estado, ao que se liga diretamente o sistema tributário como resultado do princípio da
unidade da Constituição.
43 “art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I – [...] III – a dignidade da pessoa humana;” (BRASIL, 1988).
64
Especificamente sobre as normas tributárias de conteúdo programático, Tipke e
Lang (2008, p. 133) mencionam que a ausência de previsão expressa destas (o que
ocorre com a Constituição alemã) não pode ser tida como desvantajosa, já que a
realização da justiça fiscal não é assegurada unicamente pela previsão constitucional
financeira, mas principalmente pela previsão constitucional dos direitos fundamentais e
princípios estruturais da Constituição (princípio do Estado de Direito e princípio do
Estado Social).
Arrematam os autores, outrossim, que a consolidação dos valores materiais
fundamentais do ordenamento jurídico tributário dependerão da efetiva prática no
exercício dos poderes: “[...] depende em toda parte não tanto do texto constitucional
mas ao contrário da realidade constitucional produzida através do Poder legislativo,
Jurisprudência e Executivo, quanto Direito e Justiça uma Ordem Tributária garante”
(TIPKE e LANG, 2008, p. 133).
Não obstante a correção do pensamento exposto, o capítulo que trata do sistema
tributário na Constituição de 1988, embora de forma tímida, prevê algumas diretrizes
específicas relacionadas à justiça fiscal: o princípio da igualdade e o da capacidade
contributiva têm caráter deontológico ao serem positivados nos arts. 145, § 1º e art. 150,
II, este último na forma de limitação ao poder de tributar (BRASIL, 1988).
Não há dúvidas de que um dos instrumentos eficazes para se atingir a função do
sistema tributário defendida é a utilização do princípio da capacidade contributiva e da
progressividade.
Em nosso ordenamento, o princípio da capacidade contributiva foi
primeiramente esboçado na Constituição de 182444. Teve previsão tecnicamente mais
acabada na Constituição de 194645 e embora ausente na Constituição de 1967 e sua
Emenda nº 1 de 1969, teve sua aplicação reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal
(STF, RE nº 112.947, DJ 07.08.87).
44 “Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte: [...] XV - Ninguem será exempto de contribuir pera as despezas do Estado em proporção dos seus haveres;” (BRASIL, 1824). 45 “Art. 202: Os tributos terão caráter pessoal, sempre que isso for possível, e serão graduados conforme a capacidade econômica do contribuinte”. (BRASIL, 1946). O dispositivo foi revogado através da Emenda Constitucional nº 18, de 1º de dezembro de 1965.
65
Na Constituição da República de 1988, o art. 145 § 1º46, menciona que a
graduação dos impostos, “sempre que possível”, deve ser realizada com base na
capacidade econômica dos contribuintes. O dispositivo deve ter a sua interpretação
construída prestigiando a teleologia, a unicidade, a sistematicidade da Constituição e a
grandeza de tal princípio como meio de implementação da justiça fiscal.
Contudo, com a devida vênia, o Supremo Tribunal Federal tem corroborado
com o desprestígio a esse princípio em nosso ordenamento jurídico. A Corte Suprema
manifestou o entendimento de que o termo “sempre que possível” é relacionado tanto ao
caráter pessoal dos impostos quanto para a sua graduação segundo a capacidade
contributiva dos contribuintes, não se aplicando aos impostos com a característica de
reais, ou seja, aqueles que não levam em consideração características pessoais dos
contribuintes. Neste sentido, o RE nº 153.771 (STF, DJ 05.09.97) e o RE nº 204.827
(STF, DJ 25.04.97), ambos tratando do Imposto sobre a Propriedade Territorial Urbana
(IPTU) e o RE nº 234.105 (STF, DJ 31.03.00), sobre o Imposto sobre Transmissões de
Bens Imóveis e Direitos Reais sobre Imóveis (ITBI). No RE nº 116.121 (STF, DJ
25.05.01), tratou-se da locação de bens móveis, excluindo tal atividade da tributação do
Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN), demonstrando, novamente, a
falta de prestígio do princípio da capacidade contributiva, acabando a atividade por não
sofrer a tributação de qualquer tributo indireto. Deve-se destacar, em sentido contrário,
que há julgamento em curso do RE nº 562.045/RS pelo Supremo Tribunal Federal,
analisando a possibilidade de fixação de alíquotas progressivas para o ITCD, em que 4
Ministros votaram de forma favorável à constitucionalidade47, vislumbrando-se a
possibilidade de importante precedente da Corte Constitucional.
O Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF), previsto no art. 153, VII da
Constituição Federal também se fundamenta no princípio da capacidade contributiva.
Contudo, até hoje não foi instituído pelo legislador infraconstitucional, mediante lei
complementar (como determina o próprio dispositivo, neste ponto desnecessariamente,
conforme já prevê o art. 146, III, “a” do texto constitucional). Certamente, o
desinteresse relaciona-se à impopularidade da medida no meio dos eleitores que 46 “Art. 145, §1º: “Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte”. (BRASIL, 1988). 47 Após o voto do Senhor Ministro Ricardo Lewandowski (Relator), desprovendo o recurso, e os votos dos Senhores Ministros Eros Grau, Menezes Direito, Cármen Lúcia e Joaquim Barbosa, provendo-o, pediu vista dos autos o Senhor Ministro Carlos Britto. Ausente, justificadamente, a Senhora Ministra Ellen Gracie. Presidência do Senhor Ministro Gilmar Mendes. Plenário, 17.09.2008.
66
financiam as campanhas eleitorais e também aos interesses diretos daqueles que teriam
afetado o seu patrimônio com a execução da vontade do poder constituinte. Os
argumentos são previsíveis.
Zilveti (2004, p. 198) considera que o imposto em comento tem “conteúdo social
totalmente apelativo [...] a fim de tributar a renda acumulada, forçando uma distribuição
sem causa, o que os alemães chamaram de ‘imposto de inveja’ (Neidsteuer)”. Cita a
decisão do Tribunal Constitucional alemão que deixou de cobrar o imposto sobre
patrimônio em 22 de junho de 1995. Acrescenta, ainda (2004, p. 198), que não seria
“recomendável” a instituição do tributo no país por ser “antieconômico, produzir pouca
receita e de administração custosa,” além de implicar “evasão de divisas, utilização de
pessoas interpostas e outras formas jurídicas chamadas de planejamento fiscal”.
Não se pode coadunar com o raciocínio exposto, o qual contraria toda a
teleologia constitucional exposta nessa seção e despreza as funções do Estado e,
consequentemente, as funções do direito tributário na Constituição de 1988. A
redistribuição de rendas é medida necessária para atingir toda a gama de princípios
sociais inseridos no nosso ordenamento jurídico, especialmente o alcance de uma
“sociedade livre, justa e solidária”. O exemplo citado do Tribunal Alemão tem
fundamentos diversos dos argumentos do autor. Segundo Tipke e Lang (2008, p. 416), o
tribunal declarou a inconstitucionalidade do “§ 10 Nº 1 da lei do imposto sobre o
patrimônio com o Art. 3 I da Lei Fundamental e atribuiu a ofensa à regra da igualdade a
uma alíquota unitária para patrimônio sujeito a valor unitário e não sujeito a valor
unitário”. Tratou-se de excluir do ordenamento jurídico alemão o imposto sobre capital
de empresas e o imposto predial. Contudo, continua possível a tributação patrimonial
sobre a substância através do imposto fundiário, além daquele ordenamento considerar
imposto sobre a renda alguns dos impostos que denominamos patrimoniais, como o de
transferência de bens por doação e herança. É, pois, inapropriado falar em
impossibilidade de “tributação do patrimônio” (considerando o que o termo significa no
nosso sistema tributário) naquele país. Outrossim, além de confundir planejamento
fiscal com medidas evasivas, o autor não considera o fato de que é através de medidas
de fiscalização e investigação criminal que se reprimem condutas ilícitas do
contribuinte, não o absurdo de não se instituir o tributo para evitar a sua sonegação!
Além disso, o imposto sobre grandes fortunas teria o papel de submeter
efetivamente à tributação o patrimônio dos cidadãos mais ricos do país. Os impostos
“ordinários” sobre o patrimônio somente atingem imóveis (imposto sobre a propriedade
67
territorial urbana e imposto sobre a propriedade territorial rural) e veículos automotores
(imposto sobre a propriedade de veículos automotores), que representam a quase
totalidade do patrimônio da classe média, mas uma ínfima parte do patrimônio dos
muito ricos, constituído principalmente por participações acionárias.
Conclui-se que há que se inserir na instituição e aplicação do sistema tributário o
manejo do princípio da capacidade contributiva, inclusive através da progressividade, o
que certamente levará à melhor distribuição da carga tributária. Na atual ordem
capitalista mundial e especialmente em um país socialmente deficitário como o Brasil,
este é um instrumento fundamental, mas não único, para promover a justa distribuição
da carga tributária e dividir as riquezas de forma a se alcançar a vida digna para todos, o
que, frise-se, é fundamento expresso da República Federativa do Brasil.
É bastante comum na sociedade a rejeição do raciocínio exposto com base no
argumento de que nada vale a contribuição tributária diante de tantos desvios praticados
pelos agentes públicos no exercício de suas funções.
Ora, não se desconhece a importância das despesas públicas para o sucesso
global de uma política fiscal. Embora não seja este o objeto central do estudo, não serão
alcançados os desígnios da Constituição de 1988 com o habitual desperdício, a
corrupção e a ineficiência das ações governamentais no campo das despesas públicas. A
efetiva moralidade dos agentes públicos, o fim da corrupção e a existência de políticas
eficazes são fatores fundamentais para a concretização dos desidérios constitucionais e
mudança da praxe na administração pública.
Contudo, não se pode ratificar o pensamento que visa deslegitimar a cobrança de
tributos (muitas vezes, até incentivando a sonegação) devido às várias formas de desvio
existentes. Erra duplamente quem se esquiva da conduta reta para justificar o erro de
outrem. Afirma Nabais que a contribuição tributária é “indeclinável dever de cidadania,
cujo cumprimento a todos nos deve honrar” (2005b, p. 44).
3.4 Conceito de fiscalidade
Na seção anterior buscou-se desmistificar a função “meramente” arrecadatória
do tributo, que é a base do conceito da fiscalidade, redelineada com as mudanças
estruturais experimentadas pelo Estado e pela sociedade desde a criação do tributo.
Não se pretende afastar a relação entre fiscalidade e arrecadação, mas sim,
compreender que aquela não se encerra na mera transferência de titularidade do
68
patrimônio privado para os cofres públicos, devendo se estirparem de seu conteúdo as
expressões impróprias que desqualificam a função que desempenha no Estado
Democrático de Direito – função “meramente”, “simplesmente”, “exclusivamente”
arrecadatória - utilizadas pela quase totalidade da doutrina ao conceituar a fiscalidade,
como visto na seção 2.
Sidou (1978, p. 41-42) já criticava a exarcebação da função financeira do tributo.
O autor menciona, além da função financeira, a econômica e a social do tributo, que
conforme o tipo tributário é considerada imediata ou mediata. Menciona que, no caso do
tributo regulador da produção, a função do tributo seria diretamente econômica e
indiretamente social, citando como exemplos as barreiras alfandegárias, no sentido de se
eliminar a concorrência. Segundo o autor, agindo o tributo sobre a redistribuição da
riqueza, o que nos interessa neste tópico, o objetivo é imediatamente social e
mediatamente econômico, enquanto sobre a circulação, a um só tempo o tributo teria
função diretamente econômica e social, embora com resultados não imediatos, ou
diferidos.
O autor conclui que, embora a função financeira possa ser “sempre a imediata”,
não é a principal:
Fosse a principal a característicca financeira do tributo, representada como já bem exposto na busca de recursos para atender às despesas públicas, o Estado seria um mero caixa de recebimentos-pagamentos, perderia toda sua dinamicidade, seria, enfim, o fiel retrato do Estado contemplativo já de todo eliminado da face da Terra e do consenso da Humanidade. (SIDOU, 1978, p. 42).
Pode-se definir a fiscalidade, então, como o uso do tributo com finalidade
arrecadatória, mas não uma arrecadação autorreferente ou com um fim em si mesma.
No conceito deve ser compreendido que a arrecadação não é meio para “alimentar” a
“máquina estatal” e sim, um instrumento essencial para realizar e tornar efetivos os
direitos individuais e sociais que uma Constituição dirigente impõe ao Estado
implementar. Envolve, ainda, obrigatoriamente, a função distributiva, no sentido de se
repartir de forma justa a carga tributária na sociedade, para tanto sendo de aplicação
necessária o princípio da capacidade contributiva e técnicas como a progressividade.
Diz-se aplicação necessária do princípio da capacidade contributiva e não obrigatória, já
que há casos em que as normas terão função fiscal sem que se verifique fundamento no
princípio elencado. Exemplo de tal situação é a isenção do IRPF aos portadores de
doenças graves e do IPVA aos portadores de deficiência física.
69
Em nosso ordenamento jurídico, a arrecadação de dinheiro é meio para cumprir
os fundamentos e objetivos da República, previstos no art. 1º e 3º da Constituição de
1988 - implementar uma sociedade livre, justa e solidária, erradicar a pobreza e a
marginalidade, garantir a dignidade da pessoa humana, reduzir as desigualdades sociais
e regionais, prestigiar o valor social do trabalho e da livre iniciativa, o pluralismo
político, dentre outros desidérios, estampados em diversas partes do texto
constitucional. A interpretação sistêmica e o princípio da unidade da Constituição
conjugam, necessariamente, o sistema tributário com todos os princípios e valores
prestigiados pela Constituição.
Neste sentido, não assiste razão a Gouvêa (2006, p. 38), ao considerar que a
garantia e a realização dos direitos fundamentais caracterizaria a função extrafiscal do
tributo. Tal característica é tipicamente fiscal no contexto do Estado Democrático de
Direito. Não se pode afirmar, outrossim, que a fiscalidade é “desvinculada de valores”
no contexto atual de democracia que se vivencia. Ademais, seguindo Cruz (2006, p.
276), sendo o Direito um subsistema social, reproduz valores todo o tempo. Qualquer
norma jurídica tem por base um valor adjacente48.
Oportuna a lição de Tipke e Lang quanto ao raciocínio construído nesta seção:
A maioria das normas tributárias são normas de finalidade fiscal (normas de finalidade financeira ou arrecadatória, normas fiscais ou fiscalmente motivadas). Elas servem para cobrir as necessidades financeiras do orçamento público (função primária). Elas ocorrem em decisões concretas de dignidade tributária segundo critérios distributivos (melhor: atributivos) de justiça, em que evidentemente devem considerar-se os direitos fundamentais. As normas de finalidade fiscal orientam-se predominantemente pelo princípio da capacidade contributiva ou devem fazê-lo (s. Rz. 81 ff.). Também normas de finalidade fiscal têm repercussões econômicas e sociais (efeitos colaterais); mas elas não perseguem primariamente nenhuma tal finalidade. As repercussões econômicas e sociais de normas de finalidade fiscal são consequências, não fim dessas normas. Assim, por exemplo, as normas de finalidade fiscal do direito dos impostos de renda e sobre o volume de rendas não tem a finalidade de entravar a atividade econômica, o investimento, a poupança, o consumo. (TIPKE e LANG, 2008, p. 175).
Resta claro no conceito dos autores o caráter de justiça social de que devem se
revestir as normas fiscais, especialmente pela utilização do princípio da capacidade
contributiva. Contudo, ao contrário desse entendimento, considera-se no presente
trabalho que a progressividade se enquadra no raciocínio de justiça fiscal distributiva,
48 O que não significa que a ordem jurídica, especialmente a Constituição de 1988, deva ser vista como “uma ordem concreta de valores”, a depender especialmente do poder jurisdicional para sua concretização, conforme se verificou na habitual interpretação conferida pelo Tribunal Constitucional federal da Alemanha em aplicação da hermenêutica da jurisprudência de valores (após a superação da jurisprudência de conceitos e de interesses), o que ocasiona indesejável ativismo na aplicação do Direito.
70
ao lado da capacidade contributiva. Também não passou despercebido aos autores que
as normas fiscais geram consequências econômicas e sociais.
Além da presença no momento de instituição da norma tributária, não se
despreza, na fiscalidade, o destino da arrecadação. A receita derivada em questão deve
ser aplicada no custeio dos serviços públicos, na redistribuição de rendas, em todas as
políticas públicas voltadas à realização dos mandamentos constitucionais.
Os conceitos de Falcão (1981, p. 45), Oliveira (2007, p. 47) e Fernandes (2005,
p. 235) também situam a função de redistribuição de rendas no conceito de
extrafiscalidade. Essa função, salienta-se, é típica do Estado Social Democrático e,
consequentemente, o direito tributário deve se empenhar, obrigatoriamente, em
promovê-la, especialmente através da utilização do princípio da capacidade
contributiva, encontrando-se na face fiscal (e não extrafiscal) do tributo tal
característica.
Neste ponto, a explanação de Fernandes (2005) tem o mérito de distinguir as
imunidades e isenções que têm por objetivo a indução de comportamentos (que no
presente trabalho consideram-se verdadeiramente extrafiscais) daquelas que têm por
escopo a realização de fins constitucionais ligados à justiça social, sendo exemplo desta
última a isenção do Imposto de Renda para contribuintes que auferem receitas até
determinado teto. A autora se posiciona, corretamente, no sentido de que a faixa de
isenção no imposto de renda pessoa física não teria como objetivo o
estímulo/desestímulo à percepção de baixa/alta renda pelos contribuintes, mas sim a
atenuação das desigualdades sociais. Contudo, o exemplo não é manifestação da
extrafiscalidade, no sentido direto, mas da própria fiscalidade.
O conceito formulado por Falcão (1981, p. 45), embora critique com
proficiência a visão da fiscalidade arraigada em fundamentos do Estado Liberal, nada
acrescenta no sentido da modificação de tal estrutura. Ao mencionar que a fiscalidade se
“limita a retirar do patrimônio dos particulares recursos pecuniários para a satisfação
das necessidades públicas” (1981, p. 45), não delimita quais seriam tais necessidades,
omitindo o fato de que os recursos tributários são os principais responsáveis por tornar
efetivos e reais toda a gama de direitos que à coletividade são garantidos pela
Constituição dirigente, de forma a se promover o bem-estar e o interesse social. O autor
transfere os elementos de justiça social que devem ser buscados pela tributação para a
extrafiscalidade, com o que não se pode concordar.
71
Também sem razão é a definição de Carvalho (2007, p. 243). A fiscalidade pura
e simples atende, sim, a interesses políticos, econômicos e sociais, já que a formulação
da norma arrecadatória prestigiará uns e (ou) outros fins. Vale dizer: as normas “fiscais”
que tributam certos fatos e deixam de tributar outros, sem buscar qualquer indução
positiva ou negativa de comportamentos, estão ligadas a interesses e geram claras
repercussões no âmbito econômico e social. A fiscalidade não é neutra nem alheia a
isso.
No momento de incidência da norma, podemos citar como exemplos da
fiscalidade os benefícios fiscais voltados à garantia do denominado “mínimo isento”.
Torres (2007, p. 69), ao tratar do mínimo existencial o define como o “direito às
condições mínimas de existência humana digna que não pode ser objeto de incidência
fiscal e que ainda exige prestações estatais positivas,” além de negativas, das quais a
imunidade é expressão. Complementa que:
Sem o mínimo necessário à existência cessa a possibilidade de sobrevivência do homem e desaparecem as condições iniciais de liberdade. A dignidade humana e as condições materiais de existência não podem retroceder aquém de um mínimo [...] (TORRES, 2007, p. 69).
Segundo Torres (2007), a liberdade seria informada pelo princípio da igualdade,
mas não pelas condições de justiça, que seriam fundamento das políticas orçamentárias
destinadas ao combate à pobreza relativa. A discordância com a assertiva é flagrante, já
que o princípio da igualdade não pode ser desvinculado da ideia de justiça. Conforme
Godoi, “Forçosamente, uma concepção contemporânea de justiça no quadro das
sociedades atuais deve contemplar e combinar os valores da liberdade, da igualdade e da
solidariedade” (GODOI, 2005, p. 149).
3.5 Análise de casos práticos
Passa-se à análise de alguns casos práticos de exações com finalidade fiscal,
frisando que, muitas vezes, diante do equívoco metodológico arraigado na doutrina, são
exemplos tidos pelos autores como ligados à extrafiscalidade.
3.5.1 Legislação infraconstitucional
72
Diversos tributos excluem da sua incidência os sinais não presuntivos de
riqueza, ou que o possuem de forma minorada, de forma que a tributação constitui
medida econômica apta a atender ao anseio social, à dignidade da pessoa humana,
através do princípio da capacidade contributiva, em seu lado negativo. É medida de
justiça fiscal, que deve permear a concepção arrecadatória. Exemplificando, tem-se a
isenção do IRPF para os que auferem rendimentos inferiores a R$ 1.499,15 ao me,s para
o ano calendário 2010, prevista na Lei nº 11.482/2007 (BRASIL, 2007).
A correção monetária da tabela do IRPF visa a recompor a base de cálculo do
tributo, em razão da inflação, pelo que objetiva apenas a manutenção da capacidade
contributiva já eleita, medida relacionada à fiscalidade. Não se percebe o caráter
supostamente indutor apontado por Schoueri (2005, p. 22) quanto à omissão do
legislador em corrigir a tabela progressiva do imposto de renda.
A própria progressividade do IRPF, em maior número de alíquotas (7,5%, 15%,
22,5% e 27,5%), prevista na Lei nº 11.482/2007 (BRASIL, 2007), é medida de justiça
fiscal para atenuação das desigualdades, que prestigia o princípio da capacidade
contributiva em seu aspecto positivo, ligada à fiscalidade e não à extrafiscalidade.
As deduções do IRPF também se caracterizam pelo caráter fiscal, já que visam a
adequar a capacidade contributiva do contribuinte à realidade, descontadas da base de
cálculo do tributo aquelas despesas necessárias à manutenção do contribuinte e de sua
família. Neste sentido, Tipke e Lang, (2008, p. 221), mencionam a teoria da renda
indisponível: “segundo o assim chamado princípio da liquidez privada deve ser
separada da base de cálculo a parte da renda de mercado utilizada como mínimo vital
necessário e portanto não disponível para o pagamento do imposto”. Acrescentam,
ainda, conforme doutrina confirmada pelo Tribunal Constitucional alemão, o princípio
especial de liquidez familiar, considerando as obrigações alimentares ínsitas à seara
familiar e exemplificam que “um rapaz solteiro e um pai de família não são na mesma
medida capazes de contribuir” (2008, p. 222).
Sidou, ao tratar da função do imposto de renda, menciona com clareza a
necessidade de revisão da interpretação relativa a esse tributo pessoal, entendido pelo
autor como o mais propício à correção dos desníveis socioeconômicos (mas não o
único):
Não se faz mister que o legislador inove, mas tão-só que recrie ou reveja princípios já assentes na infra-estrutura tributária, porfiando na ‘transferência de rendas’ uma das múltiplas tarefas do imposto e exatamente o fulcro de seu sentido social. Tal seria a pluralização de tratamento das
73
rendas em função de seu fato gerador, com o retorno da diversidade tributativa cedular; a tributação mais gravosa dos rendimentos mais elevados; a elevação das isenções para os créditos mais modestos; e a tarifação progressiva das heranças (1978, p. 82).
Citando o princípio da capacidade contributiva como forma de promoção da
justiça social através das normas fiscais, Tipke e Lang (2008, p. 261) registram que “O
direito tributário realiza o equilíbrio social em primeiro lugar através de normas de
finalidade fiscal, ou seja, através da transferência consequente do princípio da
capacidade tributária.”
O art. 146, III, “d” da Constituição prevê a definição de tratamento tributário
diferenciado para as microempresas e empresas de pequeno porte. O Estatuto Nacional
da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte – Simples Nacional (instituído pela
Lei Complementar nº 123/2006) (BRASIL, 2006), nesse sentido, tem a função fiscal de
simplificar a operacionalização do sistema tributário para as referidas empresas, que
detém menor capacidade contributiva, em realização da função simplificadora e
distributiva do tributo. Não se olvida, contudo, da natureza também extrafiscal do
Simples Nacional, ao estimular a formalidade e o emprego.
3.5.2 Constituição de 1988: imunidades
Em relação às imunidades, a grande maioria delas se compreende no campo da
fiscalidade, já que são normas de competência negativa49 que, longe de constituírem fins
em si mesmas, visam à garantia de mandamentos constitucionais (especialmente, os
direitos e garantias fundamentais)50, sem a indução de comportamentos dos
contribuintes.
Nesta seção, não se pretende a análise aprofundada de cada uma das imunidades,
o que foge ao objeto deste estudo, mas tão somente a avaliação da função que parte
49 Sobre a visão de que a atuação negativa do Estado para proteção de direitos seria pautada na ausência de gastos públicos, em posição de simples abstenção, as imunidades são clara comprovação da insubsistência da teoria. Isto porque a abstenção ao poder de tributar, por óbvio, é uma escolha que implica reflexo orçamentário, da mesma forma que a proteção aos direitos adjacentes às imunidades poderia ser realizada através de subvenções públicas ou outras ações afirmativas que levassem ao gasto com o valor que eventualmente fosse arrecadado. 50 Nada impede a existência de imunidades de cunho político fiscal, como se verifica pela conferida ao ouro, no art. 153, § 5º da Constituição Federal. Não se vislumbra nesta espécie qualquer tipo de intervenção de cunho social, mas estritamente econômico (e não no sentido de estímulo ou desestímulo), Tal preceito tem por finalidade proteger aqueles que possuem o ouro como ativo financeiro e exclui, por completo, a incidência de outros tributos além do imposto de que trata o inciso V do caput do artigo (imposto sobre operações financeiras).
74
delas desempenham (e neste tópico, apenas a que entendemos possuir conteúdo fiscal,
especialmente pela ausência de qualquer indução de comportamentos do destinatário da
norma).
A imunidade recíproca, estabelecida pelo art. 150, VI, “a” da Constituição de
1988, tem como objetivo a preservação da forma federativa de Estado, a qual é de tal
importância no contexto constitucional que foi alçada à condição de cláusula pétrea, não
podendo ser suprimida pelo poder constituinte derivado (art. 60, § 4º, I, da Constituição
de 1988). Foi na Corte Suprema dos Estados Unidos que a teoria sobre tal imunidade
teve desenvolvida e consolidada sua aplicação,51 sendo a imunidade também
considerada cláusula pétrea pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da Ação
Direta de Inconstitucionalidade nº 939 (STF, DJ 18.03.1994)52.
A imunidade dos templos de qualquer culto, prevista na alínea “b” do
dispositivo, visa à garantia, pelo Estado, da liberdade de crença dos indivíduos e do
livre exercício dos cultos religiosos (art. 5º, VI da Constituição de 1988). Sendo o
Estado laico (art. 19 da Constituição de 1988), não poderia a imunidade em questão
induzir à proliferação de estabelecimentos religiosos, mas apenas assegurar a sua
existência, o que certamente se verifica pela impossibilidade de tributação, via
impostos, caracterizando medida sem qualquer traço de extrafiscalidade.
A imunidade prevista na alínea “c” do inciso IV do mesmo dispositivo
contempla a renda, patrimônio e serviços dos partidos políticos (incluindo suas
51 Nos Estados Unidos, mesmo não estando expressamente previsto na Constituição, o princípio federativo é tido como consequência remota e indireta da teoria dos poderes implícitos. De tal ordenamento jurídico foi copiada a experiência pela Constituição de 1891 (art. 10), quando pela primeira vez foi previsto o instituto no Brasil. O Estado americano teve como leading case no caso da imunidade, em 1819, Mc Culloch vs Maryland, no qual foi analisado o fato de o Estado de Maryland tributar uma filial de um banco nacional criado para regular o comércio e a moeda. O acórdão foi redigido pelo juiz Marshall (considerado no país a sua mais notável sentença), no qual pela primeira vez se afirmou a tese da imunidade federal frente às pretensões dos Estados pois “the power to tax involves the power to destroy” e, portanto, ficariam à mercê de um governo todos os serviços e instrumentos de outro. 52 No julgamento da ADI nº 939 (DJ 18.03.1994), o voto do Ministro Relator, seguido pelos demais neste ponto, considerou que seria contradição imaginar o princípio da paridade jurídica das entidades federadas e, simultaneamente, pudessem elas exercitar suas competências impositivas sobre o patrimônio, rendas e serviços umas das outras. Citando Geraldo Ataliba, o ministro pontua a origem do vocábulo “federação”: “A palavra vem do latim foedus, foederis, que quer dizer pacto-associação. Daí que federação é a autonomia recíproca da União e dos Estados sob a égide da Constituição Federal. Autonomia vem de “auto nomus” aquele que é capaz de dar norma a si mesmo. Se a federação é autonomia recíproca, quer dizer: a união não pode dar normas para o Estado e o Estado não pode dar normas para a União.” O relator conclui que é da própria essência do pacto federal a imunidade recíproca dos entes que o compõem, porque, sendo a federação uma associação de estados, que se encontram no mesmo plano, não há que se falar em relação de súdito para soberano, de poder superior a inferior, o que exclui a possibilidade de tributação.
75
fundações), das entidades sociais dos trabalhadores, das instituições de educação e de
assistência social sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei.
Em relação aos partidos políticos, a imunidade parece ter caráter exclusivamente
extrafiscal, razão pela qual será tratada na próxima seção.
No que concerne aos sindicatos - apenas dos trabalhadores - a imunidade
considerou a hipossuficiência da classe, que ao lado dos sindicatos patronais, foi objeto
de previsão no rol dos direitos sociais - art. 8º da Constituição de 1988, cuja proteção se
perfaz. A importância do sindicalismo, aliás, levou à instituição da contribuição especial
sobre as categorias profissionais ou econômicas (art. 149 da Constituição de 1988). A
imunidade tem ligação à justa distribuição da carga tributária, considerando a menor
capacidade econômica do segmento dos trabalhadores em relação a do empresariado.
Vislumbra-se, no entanto, a função extrafiscal no benefício, que também incentiva a
proliferação dos órgãos de classe objeto da norma, ao eliminar custos que poderiam
influenciar na própria constituição dos mesmos.
As instituições de educação e entidades sociais fazem jus à imunidade desde que
atendidos os requisitos do art. 14 do CTN (BRASIL, 1966) e do art. 12, § 2º, da Lei nº
9.532/1997 (BRASIL, 1997). As imunidades têm ligação ao princípio da capacidade
contributiva, presumindo que as entidades beneficiadas não acumularão riquezas na
prestação dos serviços que se propõem. Nesse sentido, obriga a legislação que, para se
fazer jus ao benefício, a totalidade do lucro auferido (se auferido) deve destinar-se ao
implemento das atividades essenciais das instituições. Contudo, não se esgota aí o
sentido do dispositivo, que também tem a função de estímulo de comportamento da
sociedade civil. Assim, a imunidade em comento teria dupla natureza, fiscal e
extrafiscal (indução de comportamentos), sendo a última tratada na seção seguinte.
Fora da seção do sistema tributário, encontramos a imunidade prevista sobre a
contribuição para seguridade social em relação às entidades beneficentes de assistência
social que se enquadrem nos requisitos previstos pela legislação (art. 195, § 7º da
Constituição de 1988), embora esteja erroneamente utilizado o termo “isenção.” O art.
203 a estende aos beneficiários da assistência social. O mesmo raciocínio acima
mencionado sobre a imunidade da alínea “c” pode ser utilizado para definir o benefício
como de natureza mista.
Sobre as imunidades previstas nos incisos “b”, “c” e “d” do inciso VI da
Constituição de 1988, no julgamento da Ação Declaratória de Inconstitucionalidade
(ADI) nº 939 (STF, DJ 18.03.1994), a maioria dos ministros as consideraram como
76
direitos fundamentais dos contribuintes, já que tais direitos se encontram não apenas no
art. 5º da Constituição, cujo rol não é taxativo (como ressalva o § 2º de tal
dispositivo53).
O voto do Ministro Sepúlveda Pertence enfatizou a vinculação do instrumento
tributário à proteção e garantia de diversos princípios, liberdades e direitos básicos da
Constituição:
Ainda que não se tratem de garantias individuais [o que não foi a conclusão da Corte Suprema], as imunidades aos partidos políticos, sindicatos dos trabalhadores, entidades sociais e de educação sem fins lucrativos, templos de qualquer culto e livros, jornais, periódicos e os papéis destinados a sua impressão, constituem instrumentos de salvaguarda fundamentais de princípios, liberdades e direitos básicos da Constituição, como liberdade religiosa, de manifestação de pensamento, pluralismo político do regime, liberdade sindical, solidariedade social, direito a educação e assim por diante.
Deve-se salientar que a questão da proteção a direitos previstos no texto da
Constituição não é critério para se caracterizar a imunidade como fiscal ou extrafiscal.
Na parte do voto citado, observa-se que todas as imunidades visam à proteção de algum
direito ou garantia fundamental. Contudo, há que se verificar o fundamento do manejo
tributário. Se é realizado através da indução de comportamentos, estará a imunidade
ligada à função extrafiscal do tributo.
O art. 153, § 4º, II da nossa Constituição prevê a imunidade do ITR para as
pequenas glebas rurais, quando exploradas pelo proprietário que não possua outros
imóveis, caracterizando medida que protege o mínimo substancial, medida com nítido
caráter de justiça fiscal, que atende ao princípio da capacidade contributiva.
Também as imunidades em relação às taxas previstas em diversos incisos do art.
5º da Constituição ora prestigiam o mínimo existencial, ora o acesso à Justiça. Portanto,
observam a função fiscal: petições aos poderes públicos em defesa de direitos ou contra
ilegalidade ou abuso de poder e certidões para defesa de direitos e esclarecimento de
situações de interesse pessoal (inciso XXXIV); custas em relação à interposição da ação
popular (inciso LXXIII); assistência jurídica gratuita aos que comprovarem
insuficiência de recursos (inciso LXXIV); registro civil e certidão de óbito aos
reconhecidamente pobres (incisos LXXVI); habeas corpus e habeas data e, na forma da
lei, os atos necessários ao exercício da cidadania. O art. 206, IV prevê, ainda, a
53 “§ 2º. Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.”
77
gratuidade do ensino nos estabelecimentos oficiais, ressalvada a característica de direito
público subjetivo no § 1º do art. 208 da Constituição de 1988. Em relação às
imunidades voltadas ao acesso à Justiça, não se verifica qualquer indução de
comportamento (no sentido de estimular que o indivíduo recorra ao Judiciário, por
exemplo), mas tão somente garantir que, se for da sua vontade fazê-lo, terá as condições
mínimas necessárias para o exercício do seu direito de ação.
78
4 EXTRAFISCALIDADE 4.1 Da natureza jurídico-tributária das normas extrafiscais
A concepção sobre a natureza jurídico-tributária das normas extrafiscais não é
pacífica.
Tipke e Lang (2008, p. 177) aduzem que “materialmente, as normas de
finalidade social (para este estudo, extrafiscais) não pertencem ao direito tributário, mas
ao direito econômico, direito social ou outros ramos”.
Carvalho (1976, 2007, p. 246) aduz que “não se trata de entidade jurídica, mas
de acontecimento que cabe melhor nas categorias de política tributária ou mesmo
economia tributária, cogitadas no contexto da ciência das finanças”.
Schoueri (2005, p. 87), considera que as normas indutoras têm duplo
regramento, tributário e econômico, aplicando-se às mesmas os princípios informadores
de ambas as disciplinas, de forma recíproca e complementar.
Embora boa parte das normas indutoras de comportamento se voltem para a
regulação econômica, o entendimento citado envolve um equívoco metodológico ao
universalizar o tratamento das normas extrafiscais ao direito econômico
(exclusivamente ou em conjunto com o direito tributário). Como já salientado, apenas
em sentido genérico se compreende a tributação (e toda ela, não apenas a de cunho
extrafiscal) como forma de intervenção sobre o domínio econômico ao caracterizar
como compulsória a obrigação de entregar parcela do patrimônio privado (ou mesmo
público, quando se trata da tributação entre os entes federados) ao Estado. Em sentido
estrito, que deve ser observado quando se trata da disciplina jurídica de um instituto, a
intervenção sobre o domínio econômico só pode ser caracterizada, no campo tributário,
se a exação de fato implica a modificação, em algum sentido, no curso das relações
mercadológicas.
Nesse sentido, Mateo (1983, p. 346, tradução nossa)54 explicita que “embora seja
no âmbito econômico no qual, com maior frequência, os tributos extrafiscais encontram
aplicação, é certo que não há razão para que constitua seu âmbito exclusivo”. Citando
Gerloff, afirma que a possibilidade de aplicação das normas extrafiscais se encontra em
54 Pero si bien es el ámbito económico donde con mayor frecuencia encuentran aplicación los tributos extrafiscales, es lo cierto que no tiene por que constituir su ámbito exclusivo.
79
quase todo o domínio da administração pública: políticas social, demográfica, de saúde,
moral, cultural e outras.
Defende-se nesta pesquisa a natureza jurídica tributária das normas extrafiscais
exatamente nos termos propostos por Gouvêa (2006, p. 250), que considera dever a
análise da extrafiscalidade ser feita no enfoque do direito tributário e não do direito
econômico, podendo, contudo, ser estudada pelos dois ramos da ciência (que alteram o
seu objeto formal e a metodologia). Embora “tanto os princípios que constituem o
chamado estatuto do contribuinte, quanto aqueles que orientam as ordens social e
econômica (e não apenas essa última), delimitam o perfil da extrafiscalidade”, cabe ao
direito tributário o seu enquadramento:
Porém, a análise da extrafiscalidade pelo Direito Econômico fica restrita, quanto ao objeto, às normas de conteúdo econômico. De outra sorte, os institutos extrafiscais encontram análise total pelo direito tributário. No direito tributário, a extrafiscalidade é matéria essencial, colocada juntamente com a fiscalidade e com as limitações ao poder de tributar. A extrafiscalidade é essencialmente objeto do direito tributário. É, porém, objeto acidental do Direito Econômico (2006, p. 14).
Assim, a extrafiscalidade pode atuar no campo econômico, mas também nos
campos social, cultural, desportivo e educacional, por exemplo, sem que o fator
econômico (no sentido de regulação do mercado) seja relevante. Além do tratamento
tributário, conforme o objeto da norma, serão aplicados os princípios e regras de outras
disciplinas, de forma acidental.
Outrossim, cogita-se por variada doutrina, especialmente espanhola, objeto de
investigação neste estudo, se as normas indutoras, especialmente desestimuladoras de
comportamento, poderiam caracterizar-se não como normas tributárias, mas sim, como
sanções, portanto afeitas à disciplina do direito sancionador, administrativo ou penal.
Isso porque as normas extrafiscais se afastariam do conteúdo arrecadatório obrigatório
em se tratando de ingressos tributários, o que foi explanado na seção 2.2.1.
Nesse sentido, Godoi (1999, p. 230) cita Albiñana55, o qual entende que as
normas extrafiscais, embora busquem fins socialmente desejáveis e sirvam ao propósito
de alcance da justiça genericamente entendida, não observam os ditames da capacidade
contributiva, nem se destinam a sustentar os gastos públicos, daí não possuírem a
natureza de impostos. Os denominados “impostos de ordenamento”, ao visarem à
55 ALBIÑANA GARCÍA-QUINTANA. Los impuestos de ordenamiento económico. Hacienda Pública Española (HPE), nº 71, 1981.
80
correção de atividades ou condutas humanas, se constituiriam em “multas sem infração
prévia”.
Como já salientado, entende-se que a arrecadação é, ao lado da indução de
comportamentos, uma função possível da norma tributária, mas não obrigatória. A
presença de uma ou outra função não desnatura a prestação pecuniária como tributária e,
portanto, sujeita a norma ao estudo do direito tributário.
4.2 Conceito de extrafiscalidade
O sentido etimológico do termo “extrafiscalidade” é explicitado por Aizega
Zubillaga:
Com o prefixo extra, que significa ‘fora de’, se pretende identificar um conceito que, de acordo com seu próprio nome, se colocaria fora da fiscalidade, como um elemento estranho à mesma, entendendo a fiscalidade como a utilização dos tributos com fins arrecadatórios e a extrafiscalidade como a utilização do tributo com outros fins, distintos dos arrecadatórios. (2001, p. 46, tradução nossa)56.
Tal sentido etimológico tem notável influência sobre a doutrina brasileira, o que
se percebe pelo teor da seção 2.1 deste trabalho, em que os conceitos de extrafiscalidade
citados, em grande parte, são explicitados através de uma mera contraposição com o
conceito da fiscalidade (essa definida como o uso do tributo para fins “meramente
arrecadatórios”). Contudo, o conteúdo da extrafiscalidade não se encerra no sentido
etimológico do termo, que se limita à característica negativa da função “não
arrecadatória” do tributo. Devem ser acrescidos outros elementos para se compreender e
definir as normas cujo estudo esta seção se propõe realizar.
Já se sabe que a extrafiscalidade é uma função da norma tributária. Tal função é
eleita como forma de política fiscal pelo detentor da competência tributária, como
alternativa ao uso do tributo, em sua função fiscal. O Estado poderia arrecadar recursos
e com eles realizar uma série de medidas: prestar serviços, investir em infraestrutura,
realizar programas sociais como o “bolsa família”, adquirir bens, dentre tantas outras
possibilidades. Pode, porém, utilizar o tributo para obter diretamente outras
56 Con el prefixo extra, que significa «fuera de», se pretende identificar un concepto que de acuerdo con su propio nombre, se colocaría fuera de la fiscalidad, como un elemento extraño a la misma, entendiendo fiscalidad como la utilización de los tributos con fines recaudatorios, y extrafiscalidad, como la utilización de los tributos con otros fines distintos de los recaudatorios.
81
consequências, que com independência da arrecadação (pode deixar de existir, ser maior
ou menor), influirão postivamente na consecução de um fim legítimo e constitucional,
eleito pela política pública e que prevalecerá sobre a função de obtenção de receita que
possa advir da exação. Assim, a primeira questão envolvida quando se trata da
extrafiscalidade é política, ou seja, escolher em quais casos a função de arrecadação será
secundária ou inexistente, em prol de um fim legítimo.57
Por essa razão pode-se afirmar que também a extrafiscalidade se presta à
promoção da justiça, pois sempre deverá almejar o alcance de um fim legítimo,
prestigiado pelo ordenamento jurídico. Lejeune Valcárcel, considerando que a
extrafiscalidade “tem um papel que cumprir ao serviço do programa e dos princípios
constitucionais” (1980, p. 121), aponta que:
Com efeito, precisamente porque o tributo não é apenas um instrumento de arrecadação de receitas públicas, o princípio da capacidade contributiva não pode presidir sozinho todo o fenômeno da tributação e, como consequência, a justiça tributária não é um conceito que possa ter como critério orientador exclusivo a capacidade contributiva das pessoas chamadas a suportar as diferentes obrigações tributárias. Na medida em que o instituto tributário está convocado a cumprir uma pluralidade de funções, a justiça do mesmo dependerá do grau de eficiência no cumprimento das funções atribuídas ou, dito de outra forma, do grau em que o instituto tributário se ajuste ao princípio constitucional básico, em virtude do qual se atribui ao instituto tributário (pelo fato de ser um instituto constitucional) uma diversidade de funções (LEJEUNE VALCÁRCEL, 1980, p. 120, tradução nossa)58.
Segundo o autor, a justiça tributária não pode ter por conteúdo exclusivo a
capacidade contributiva diante da variedade de funções que a Constituição reserva ao
tributo (inclusive extrafiscais). Ao sugerir a utilização do princípio da igualdade
tributária “como princípio retor da justiça tributária”, se resolveriam aparentes conflitos
entre o conceito de “justiça tributária” e as demais funções constitucionais direcionadas
aos tributos, além de permitir o cruzamento do princípio da igualdade tributária com o
princípio constitucional da igualdade, do qual aquele é especificação. Assim, a justiça
57 A seção 4.4 trará esclarecimentos sobre a legitimidade do fim buscado pela norma extrafiscal. 58 En efecto, precisamente porque el tributo no es ya sólo un instrumento de recaudación de ingresos públicos, el principio de capacidad contributiva no puede presidir en solitario todo el fenómeno de la tributación, y, como consecuencia, la justicia tributaria no es un concepto que pueda tener como criterio orientador exclusivo la capacidad contributiva de las personas llamadas a soportar las diferentes obligaciones tributarias. En la medida que el instituto tributario está llamado a cumplir con una pluralidad de funciones, la justicia del mismo dependerá del grado de eficiencia en el cumplimiento de las funciones asignadas, o dicho de otra forma, del grado en que el instituto tributario se adecue al principio constitucional básico, en virtud del cual se asignan al instituto tributario (como instituto constitucional que es) una diversidad de funciones.
82
tributária seria “um dos aspectos da mais ampla justiça constitucional”. (LEJEUNE,
1980, p. 121).
Na extrafiscalidade, considerando a indução de comportamentos que é o seu
objetivo, a norma tributária o alcançará geralmente arrecadando menos quanto à receita
do tributo indutor, o que não impede o aumento da arrecadação em geral em
determinadas situações. É o que se verifica no caso da redução do Imposto sobre
Operações de Crédito, Câmbio e Seguro ou relativas a Títulos e Valores Mobiliários
(IOF) sobre operações de crédito, isto visando fomentar o consumo. Nesse caso, obtido
o resultado indutor, haverá aumento na arrecadação do ICMS, do IPI, do IRPJ etc. Se a
norma tributária agrava o tributo, espera-se que grande parte dos contribuintes,
verificando que pagará mais ao realizar a conduta que a norma visa a evitar, opte por
não realizá-la. Nos casos de benefícios fiscais (isenções extrafiscais e minoração da
carga tributária), o Estado abre mão da arrecadação visando a estimular o contribuinte a
realizar a conduta prestigiada pela norma. Contudo, não se desconhece que muitas vezes
ocorrerá o aumento da arrecadação. Nesse ponto, deverá ser verificado se o percentual
de sucesso da norma é suficiente para mantê-la como norma extrafiscal no ordenamento
ou deverá ser revista a sua racionalidade (essa última premissa será discutida na seção
4.4).
No entendimento deste estudo, a aptidão para influenciar o comportamento do
contribuinte ou de terceiros relacionados ao fato gerador da hipótese de incidência é a
essência da norma extrafiscal (e a base do critério funcional, exposto na seção 2.4.3),
devendo tal aptidão ser capaz de produzir efeitos indutores de comportamento. A
conduta desejada deverá influir, de alguma forma, no bem jurídico eleito para proteção,
como, por exemplo, o mercado, o meio ambiente, o consumo, o estimulo à produção
nacional e a pesquisa.
A extrafiscalidade se caracteriza, outrossim, por não se prestar a punir a
ilicitude. As condutas permitidas devem ser lícitas no ordenamento positivo.
O direito financeiro não pode ser desprezado quando se trata das normas
extrafiscais. O produto arrecadado, se houver, por óbvio, será utilizado para concretizar
as funções do Estado e os desígnios constitucionais. Contudo, não é a receita/despesa
que define a natureza da norma extrafiscal, pois a sua essência é a de privilegiar um
bem constitucionalmente protegido através da indução positiva ou negativa de
comportamentos. Realizada no plano concreto a função indutora da norma, a
arrecadação tende a ser menor, ou sequer existir (como no caso das isenções e das
83
imunidades), mas existindo, frise-se, também deve ser empregada de forma a
concretizar as funções estatais e valores positivados constitucionalmente.
Após esses breves apontamentos, passa-se à análise pontual dos elementos que
atuam na caracterização da extrafiscalidade, ao lado do critério negativo de não buscar a
arrecadação como fim principal.
4.2.1 Indução de comportamentos através do manejo do tributo: agravamento,
minoração, exclusão, remanejamento
A aptidão efetiva para influenciar o comportamento do contribuinte de forma a
ser atingido o bem jurídico visado pela norma é a essência da norma extrafiscal (e a
base do critério funcional). Deve a norma, através do comportamento estimulado ou
desestimulado, ser efetivamente capaz de produzir resultados positivos em relação ao
bem jurídico protegido.
Entende-se, neste estudo, que a aferição de tal capacidade se dá, em um primeiro
momento, no plano abstrato, uma vez que no momento da formulação da norma é
possível adiantar, ao menos em tese, a sua chance de atingir, em alguma forma, o bem
jurídico que a norma tributária visa a proteger. Em um segundo momento, porém,
quando da vigência e aplicação da mesma, a efetiva indução de comportamentos será
apurada no plano concreto, verificando se a norma extrafiscal atinge, real e
satisfatoriamente, o objetivo visado. No final desta seção serão analisadas as
consequências, quando da verificação da ineficácia da norma, tanto no plano abstrato,
quanto no plano concreto, questão que se relaciona à legitimidade da norma extrafiscal.
Discorda-se de Schoueri no ponto em que afirma que a função indutora pode ser
caracterizada em momento posterior à edição ou à modificação da norma, como pela
omissão do legislador, da qual se extrai força equivalente ao ato de legislar. O autor cita
como exemplo a falta de correção monetária da tabela progressiva do IRPF (Schoueri,
2005, p. 22). Mas qual seria a indução de comportamentos que a omissão do legislador
provocaria ao corrigir a tabela? A correção é medida de justiça fiscal ligada à
capacidade contributiva, na intenção de conservar o valor econômico dos salários,
vencimentos e proventos, o que não se encontra vinculado à extrafiscalidade.
A capacidade de induzir comportamentos, característica fundamental e
necessária da norma extrafiscal, pode se dar através de incentivos, “vantagens
84
adicionais àqueles que incorrem nos atos contemplados pela norma, que não seriam
obtidas no livre funcionamento do mercado” (SCHOUERI, 2005, p. 54) ou por
desestímulos, nos quais “recai o destinatário da norma em custos que não lhe seriam
imputados, em caso de livre curso do mercado” (SCHOUERI, 2005, p. 54).
A exteriorização dos incentivos se dá especialmente através da minoração, da
exclusão ou mesmo do remanejamento na forma original de cobrança da exação – nesse
último caso, sem prejuízo da carga tributária. O desestímulo, por outro lado, se dá
mediante a instituição de exação ou agravamento de exação existente no ordenamento.
Note-se que as maiores possibilidades de manejo extrafiscal se encontram no tratamento
simultâneo do elemento material e quantitativo da hipótese de incidência.
O agravamento da carga tributária se concretiza principalmente através de
modificações na alíquota ou na base de cálculo tradicional do tributo já instituído. É
possível, ainda, a criação de imposto novo (observada a competência residual prevista
na Constituição de 1988, no art. 154, I) ou a instituição de imposto já previsto no texto,
mas que se limita a situações extraordinárias e eventuais, como o imposto extraordinário
de guerra (art. 154, II da Constituição de 1988) ou a espécie tributária dos empréstimos
compulsórios (art. 148 da Constituição de 1988). Em ambos os casos, desde que tenha
por fato imponível situação que induza o comportamento do contribuinte, esses tributos
terão, simultaneamente, natureza fiscal e extrafiscal, já que o objetivo de arrecadação é
obviamente presente quando a Constituição explicita o seu caráter de imposto afetado às
despesas extraordinárias de guerra, de calamidade pública ou a investimentos de caráter
urgente e relevante interesse nacional.
Em relação aos benefícios fiscais, além do manuseio das alíquotas e base de
cálculo, é possível a concessão de crédito presumido em tributos que observam o
princípio da não cumulatividade, sempre ao relacionar a minoração do fato imponível à
finalidade de proteção de um determinado bem jurídico. A exclusão da carga tributária
pode se dar através das imunidades ou isenções de tributo existente. Entende-se também
possível o manejo da extrafiscalidade no remanejamento da forma original de cobrança,
o que se verifica, conforme exemplo fornecido por Fernandes (2005, p. 236), na criação
de formas de dedução do imposto de renda aos contribuintes que “assumam
comportamentos incentivadores do desenvolvimento da cultura e da arte”.
Questão interessante é a indagação sobre se seria possível o manejo da
extrafiscalidade, através de incentivos ou desestímulos de comportamento, em toda e
qualquer espécie tributária.
85
Embora não seja objeto do trabalho a investigação do juízo de compatibilidade
das espécies tributárias com as normas extrafiscais - o que exigiria um estudo detalhado
sobre a polêmica questão da natureza de cada uma das espécies tributárias admitidas
pelo ordenamento jurídico, avança-se em algumas conclusões que parecem adequadas à
análise do tema. Considerar-se-á a teoria das espécies tributárias pela classificação
quinquipartida, reconhecida por grande parte da doutrina e especialmente consagrada no
Supremo Tribunal Federal a partir do julgamento do RE nº 148.754 (STF, DJ
04/03/1994). Neste sentido, no ordenamento jurídico brasileiro são espécies tributárias
os impostos, as taxas, as contribuições de melhoria, os empréstimos compulsórios e as
contribuições especiais.
O imposto, tendo como fato jurígeno uma ação do contribuinte, é campo
preferencial para a consecução da extrafiscalidade, atuando diretamente na indução ou
desestímulo de comportamentos. A natureza afinalística do produto da arrecadação dos
impostos não impede a presença da extrafiscalidade, já que esta se caracteriza no
momento da incidência ou não da norma, sendo equívoco identificar a extrafiscalidade
na realização dos gastos públicos, aspecto a ser discutido na seção 4.2.3.
Nas taxas, que pressupõem como fato gerador uma atividade específica e
divisível do Estado e não do contribuinte, a extrafiscalidade tem maior dificuldade de
ser implementada. Se, por um lado, a teoria da equivalência pode resistir ao teste de
fundamentação extrafiscal, quando os valores prestigiados reflitam na mensuração da
base de cálculo da taxa, o mesmo não se pode dizer quanto à indução de
comportamentos. Isso porque, se a extrafiscalidade é identificada no momento da
incidência ou não da norma, não se poderia induzir uma conduta do próprio Estado.
Contudo, em alguns casos, como parece ser o das taxas ambientais (se é que têm esta
natureza), atingido o comportamento do contribuinte (ainda que de forma indireta), com
a incidência ou não da norma, poderia se cogitar da presença da extrafiscalidade. Um
exemplo disso seria o da possível distinção entre o valor da taxa de coleta de lixo, caso
o usuário separe ou não os itens do lixo, visando à reciclagem.
Quanto à contribuição de melhoria, tributo cobrado em razão da valorização do
imóvel em função de obra pública, entende-se não haver margem para conteúdo
extrafiscal, já que não há indução de comportamento com a simples incidência do
tributo. Seguindo o conceito proposto para a extrafiscalidade, não vislumbramos
hipótese em que o agravamento ou vantagem poderiam motivar o contribuinte a adotar
comportamento desejado pelo legislador. Não há sentido em um eventual incentivo à
86
compra ou venda do imóvel atingido pela valorização, única indução que se vislumbra
possível à hipótese.
No empréstimo compulsório, pela abstração do conteúdo da hipótese descrita no
inciso I do art. 148 da Constituição Federal, pode-se aceitar a possibilidade da presença
da extrafiscalidade, conforme a eleição do fato gerador do tributo e/ou de elementos de
sua quantificação.
Quanto às contribuições especiais, caracterizando tal espécie tributária pela
destinação específica do produto de sua arrecadação à determinada finalidade (imposto
afetado), entende-se que a extrafiscalidade não é determinada com base nessa
característica. Há que se verificar, em cada espécie de contribuição, a existência de
efetiva norma indutora de comportamento, caso em que, se presente, caracterizado
estará o efeito extrafiscal. O mesmo não ocorre no caso das contribuições sobre as
categorias profissionais, nas quais não enxergamos qualquer forma de induzir
comportamentos com a simples incidência ou não da norma tributária. Nas
contribuições sociais previdenciárias, excluída está a possibilidade de atuação
extrafiscal, já que são instituídas com base no princípio da solidariedade e da
universalidade para garantir aos contribuintes os benefícios previdencários.
No que concerne às contribuições sociais do empregador, da empresa e da
entidade a ela equiparada (art. 195, I da Constituição de 1988), entende-se possível a
presença da extrafiscalidade, desde que a alíquota ou a base de cálculo diferenciada
impliquem indução justificada de comportamento considerando os critérios da atividade
econômica, da utilização intensiva de mão de obra, do porte da empresa ou da condição
estrutural do mercado de trabalho (§ 9º do art. 195 da Constituição Federal). É bem
verdade que critérios relativos ao porte da empresa se relacionam, em geral, à
capacidade contributiva, no que constituiriam benefícios de natureza fiscal. O § 12 do
art. 195 da Constituição de 1988, ao prever a possibilidade de substituição da
contribuição em comento pelas que incidem sobre a receita e o faturamento, deixa clara
a possibilidade do manejo do tributo para fins fiscais, o que não comportaria o
comentário primeiramente exposto neste parágrafo.
4.2.2 Licitude do comportamento estimulado: conformidade com o art. 3º do Código
Tributário Nacional
87
A extrafiscalidade se caracteriza, outrossim, pelo fato de não se prestar a punir a
ilicitude.
Os comportamentos possíveis aos contribuintes (seção anterior) devem ser
lícitos no ordenamento positivo. O tributo, conforme o caso, irá incentivar ou
desestimular um (ou mais) desses comportamentos lícitos possíveis.
O artigo 3º do CTN é expresso ao determinar que o tributo não constitui sanção
por ato ilícito, sendo tal dispositivo citado na seção 2.2.1.
A afirmação não é de fácil constatação em termos práticos. Por vezes, é tarefa
árdua delinear a tênue linha do que deve ser tratado como lícito e ilícito no ordenamento
jurídico e a primeira questão polêmica quanto ao requisito em estudo situa-se
justamente neste ponto. Palao Taboada (1984, p. 82), no campo do direito tributário
ambiental, ao mencionar alguns problemas técnicos dos impostos com tal natureza, cita
a dificuldade de distinguir as atividades contaminantes lícitas e ilícitas59 que, segundo
Herrera Molina (2000, p. 63), devem ser proibidas e não integrar o fato imponível
tributário:
Se determinada atividade é gravemente perigosa para a saúde pública ou produz danos irreversíveis, não deve contemplar-se no fato imponível, mas sim proibir-se em aplicação do art. 45 CE. O campo natural dos tributos ecológicos – como norma incentivadora de condutas limpas – está mais além, no âmbito da “contaminação residual”, não proibida pelo ordenamento jurídico (HERRERA MOLINA, 2000, p. 63, tradução nossa)60.
Becker (1972) menciona o uso da norma extrafiscal como forma gradativa de
mudança de comportamento social não desejável, antes de torná-lo ilícito. Afirma que o
Estado, visando a impedir ou desestimular um fato social, pode intervir criando norma
jurídica que preveja o ilícito ou através do tributo extrafiscal “proibitivo”, que teria um
papel educativo, de “reforma social” (como forma de modificar ou neutralizar a opinião
pública), antes de determinar a proibição da conduta. A tributação seria preferível para o
autor (1972, p. 540). Herrera Molina Molina (2000), ao tratar dos impostos ecológicos e
da natureza não estática do caracteriza um dano ambiental irreversível (caracterizada a
59 Esse autor menciona que as atividades contaminantes lícitas não devem ser tributadas, senão proibidas (parece que houve um equívoco de redação neste ponto: provavelmente o autor pretendeu referir-se às atividades contaminantes ilícitas, até mesmo pela nota, que cita Herrera Molina, cujo entendimento é no sentido ora citado pelo trabalho). Ao lado dessa questão, o autor menciona a dificuldade de definir a base imponível do imposto de maneira a graduá-la conforme a intensidade do dano ambiental, o que remete à necessária e concreta graduação do dano, não apenas tomando-se como base indícios e presunções. 60 Si determinada actividad es gravemente peligrosa para la salud pública o produce daños irreversibles, no debe contemplarse en el hecho imponible, sino prohibirse en aplicación del art. 45 CE. El campo natural de los impuestos ecológicos – como norma incentivadora de conductas limpias – está más allá, en el ámbito de la “contaminación residual” , no prohibida por el ordenamiento jurídico.
88
gravidade do dano como tal, a medida deveria ser alocada do campo tributário para o
sancionatório), menciona a possibilidade de os impostos ecológicos “serem utilizados
como medida transitória para desincentivar uma conduta antes que se proceda a sua
expressa proibição” (2000, p. 63, tradução nossa)61, mas sem relacionar a situação ao
uso de “tributo proibitivo”.
Em defesa do “tributo proibitivo”, Becker (1972) critica a atribuição conferida
ao direito tributário de apenas cuidar dos fatos econômicos, o que possibilitaria a
tributação do ato ilícito justamente pela abstração da ilicitude do ato, ao se focar apenas
o seu efeito econômico. Segundo o positivista gaúcho, a interpretação econômica do
direito tributário “destrói precisamente o que há de jurídico no direito tributário”,
fulminando a certeza e praticabilidade deste, importando na inversão da fenomenologia
jurídica (BECKER, 1972, p. 549).
Contudo, o denominado “tributo proibitivo” não passaria no crivo de legalidade
e constitucionalidade em nosso ordenamento jurídico, por ferir o disposto no art. 3º do
CTN e os arts. 150, IV, e 170 da Constituição de 1988. Se é proibição, não é tributo,
mas sanção. Se se apurar que a sanção é insuficiente para evitar o ilícito, deve a multa
ser majorada e não utilizar a tributação de forma complementar, desnaturando o
conteúdo da prestação tributária62 (a norma extrafiscal perderia seu objeto) bem como
constituindo bis in idem, como bem pontua Herrera Molina (2000, p. 65), que faz um
paralelo do ponto de vista entre o imposto de renda63 relacionado à renda decorrente de
atividades ilícitas e os tributos ambientais.
O Supremo Tribunal Federal, no RE 94.001 (STF, DJ 11.06.82), em voto da
lavra do Ministro Moreira Alves, ao entender pela inconstitucionalidade de adicional de
61 Además, los impuestos ecológicos pueden utilizarse como medida transitoria para desincentivar una conducta antes de que se proceda a su expresa prohibición. 62 Após citar jurisprudência do Tribunal Supremo espanhol que, à vista de manter tributos tipicamente sancionatórios, utilizando a tese das “cláusulas penais não sancionadoras,” Herrera Molina critica tal entendimento, especialmente “quando o pressuposto fático de ditas condutas recai sobre um ilícito radical”. (HERRERA MOLINA, 2000, p. 68). Assevera, frise-se, que as sanções e a devida indenização pelo dano causado são as medidas apropriadas para evitar e corrigir os efeitos do comportamento prejudicial ao meio ambiente. 63 Herrera Molina (2000) menciona que é correta a cobrança do Imposto de Renda decorrente de atividades ilícitas - o contrário constituiria privilégio insustentável em relação àqueles que exercem atividades lícitas, normalmente onerados pelo tributo. Contudo, se se conclui que um elemento patrimonial tem origem delitiva, não deveria ser gravado tributariamente como incremento não justificado, mas sim aplicada a pena de confisco prevista no ordenamento. No caso do tributo ambiental, se se está diante de exploração de substância altamente tóxica e nociva ao meio ambiente, a prevenção geral será adequada através da sanção (administrativa ou penal), pelo que “carece de objeto um tributo extrafiscal” (2000, p. 65).
89
200% no IPTU em casos de construções irregulares, explicitou que a extrafiscalidade
não se presta à penalização do ato ilícito, tendo por limite o próprio conceito de tributo.
4.2.3 Destino da arrecadação: fator irrelevante para a conceituação da
extrafiscalidade
A receita está intimamente ligada à face fiscal do tributo. Nela, a arrecadação é
um dos fundamentos da exação. O produto arrecadado será utilizado para atender aos
fins do Estado e à implementação das políticas públicas, caracterizando as despesas
públicas. Na extrafiscalidade, tais elementos não demonstram importância para a
caracterização da norma, pois, como já salientado, a sua essência é a de privilegiar um
bem constitucionalmente protegido através da indução de comportamentos. Realizada
no plano concreto a função indutora da norma, a arrecadação em geral será menor, ou
sequer existirá (como no caso das isenções e imunidades), mas existindo, também será
empregada de forma a concretizar as funções estatais e valores positivados
constitucionalmente, convivendo as funções fiscal e extrafiscal no tributo.
Deve-se salientar que tanto a fiscalidade quanto a extrafiscalidade atuarão de
forma a prestigiar algum bem ou direito constitucionalmente previsto. Contudo, na
fiscalidade, esta atuação dependerá imediatamente de uma conduta do Estado, tanto ao
manejar a incidência (ou não) do tributo quanto na destinação da sua receita. Na
extrafiscalidade, o prestígio do bem dependerá da atuação imediata do contribuinte ou
do terceiro relacionado ao fato gerador. Exemplificando, na tributação fiscal, o Estado
institui isenção do IPVA aos portadores de deficiência física como medida de justiça
social; institui a isenção do IRPF até um determinado teto, como medida de justiça
fiscal, relacionada à capacidade contributiva. Na destinação de qualquer receita
arrecadada, o Estado irá fazer face às suas despesas e também atuar na promoção dos
interesses coletivos, conforme as variadas funções que lhe são destinadas pela
Constituição. Na tributação extrafiscal, ao se instituir alíquotas variadas de IPI para
veículos movidos à álcool e à gasolina através do Decreto nº 755/1993 (BRASIL,
1993), sendo menores para os primeiros, pretende-se incentivar o contribuinte de direito
à maior produção dos veículos que utilizem combustíveis não poluentes e o contribuinte
de fato a consumir tais veículos. O meio ambiente é prestigiado, então, de forma
imediata pela atuação do contribuinte de direito e de fato.
90
Assim, não se pode concordar com o entendimento de Oliveira (2007, p. 41) de
que o critério de legitimação das normas extrafiscais é a vinculação da receita ao fim
que justifica a criação da norma indutora.
Não é pela destinação da receita que se verifica a “verdadeira condição de
legitimidade concreta da extrafiscalidade” (Oliveira, 2007, p. 41), pelo fato de que,
frise-se, é no momento da incidência ou não da norma tributária que se determina a sua
aptidão para produzir resultados indutores, que são a essência das normas extrafiscais.
Se a norma for capaz de induzir o comportamento do contribuinte para um fim lícito e
razoável, conforme a política pública determina e de acordo com um valor prestigiado
pela Constituição, a norma cumpre o papel que lhe é reservado. Fosse correto esse
critério de legitimação (vinculação das receitas), entendemos que não se explicaria o
manejo extrafiscal que não importasse em arrecadação para o Estado, a exemplo das
isenções dotadas de caráter extrafiscal. De toda forma, o que se entende por critérios de
legitimidade das normas extrafiscais será tratado na seção 4.4 deste estudo.
Oliveira defende a necessária vinculação do produto arrecadado, no caso dos
impostos extrafiscais, não apenas em se tratando de tributos ambientais (Oliveira, 2007,
p. 150-162). Segundo o autor, “a extrafiscalidade seria finalista” (2007, p. 155).
Tal entendimento contraria frontalmente o art. 167, IV da Constituição de
198864, que proíbe a destinação vinculada pela norma, em se tratando de impostos, com
as exceções elencadas no § 4º do mesmo dispositivo. A razão de ser do dispositivo é a
necessária margem de discricionariedade que o administrador deve possuir para
executar as funções do Estado, o que poderia restar prejudicado se fossem afetadas
todas as receitas tributárias a um determinado e prévio setor ou medida.
Neste ponto, Oliveira confunde os conceitos de “imposto afetado” e “imposto
finalista”, equívoco que não passa despercebido a Mateo (1983, p. 358), ao deixar clara
a distinção entre tributo “afetado” e tributo “finalista.” Esse autor explica que, a
princípio, o termo “imposto finalista” se referia à busca de fins não fiscais, mediante a
“ordenação de conduta do indivíduo”. Posteriormente, diante da quantidade de tributos
com tal característica, passou o termo a ser habitualmente utilizado para indicar o 64 “Art. 167. São vedados: [...] IV. a vinculação de receita de impostos a órgão, fundo ou despesa, ressalvadas a repartição do produto da arrecadação dos impostos a que se referem os arts. 158 e 159, a destinação de recursos para as ações e serviços públicos de saúde, para a manutenção e desenvolvimento do ensino e para realização de atividades de administração tributária, como determinado, respectivamente, pelos arts. 198, § 2º, 212 e 37, XXII, e a prestação de garantias às operações de crédito por antecipação de receita, previstas no art. 165, § 8º, bem como o disposto no § 4º deste artigo” (BRASIL, 1988).
91
tributo que teria sua receita previamente afetada a certa destinação. Daí porque, ele
propõe seja utilizado o termo “afetado” quando se tratar de tributo qualificado pela
destinação da receita e “impostos de ordenamento” para os tributos extrafiscais.
Não se trata de desprestigiar a destinação da receita do tributo. Seja fiscal ou
extrafiscal (quando importar em arrecadação), esse é um tema que exige máxima
atenção especialmente dos que implementam e executam as políticas públicas. Não é,
porém, elemento que definirá a legitimidade da norma extrafiscal. A propósito, o
argumento de que a afetação da receita nos tributos extrafiscais levaria “à certeza de que
o tributo será usado na finalidade (ambiental) assinalada, ensejando ao Juiz o necessário
controle da tredestinação” (OLIVEIRA, 2007, p. 154), não traduz a realidade da política
fiscal e legislativa envolvendo tributos de natureza afetada, nem a atuação do poder
judiciário em casos de desvios na receita desses tributos para fins diversos do previsto
na lei instituidora, a exemplo das diversas emendas constitucionais vigentes
desvinculando do destino inicial a receita das contribuições.65
Também se discorda de Gouvêa, para quem, nas contribuições, a destinação da
receita é considerada para fins extrafiscais, caracterizando “realização direta dos valores
constitucionalmente adotados” (2006, p. 173), o que não ocorreria nos impostos - não
abordando o autor as demais espécies tributárias.
Não se compreende haver diferença entre a destinação como elemento da própria
hipótese de incidência nas contribuições e a destinação da receita nos demais tributos. A
distinção apenas serve para vincular, obrigatoriamente, o valor arrecadado àquela
finalidade previamente prestigiada nas contribuições. É indiferente se aquele numerário
é destinado à saúde, pela CPMF (hoje extinta), ou pelo imposto de renda, por exemplo.
Não se vê por que excluir, no raciocínio do autor, a destinação das receitas de todos os
tributos como indicativo de extrafiscalidade. Este é um primeiro ponto. O segundo é
que, considerada a destinação da arrecadação em qualquer dos tributos, tal fator não
caracteriza a extrafiscalidade, que se verifica no momento de incidência (ou não) da
tributação. Não custa salientar que, na fiscalidade, o valor arrecadado é utilizado para a
realização de fins e valores positivados na Constituição, seja custear a própria despesa,
promover a justiça tributária, distribuição de renda, justiça social, econômica, satisfação
65 Para aprofundamento do tema, vide GODOI, Marciano Seabra de. Contribuições sociais e de intervenção no domínio econômico: a paulatina desconstrução de sua identidade constitucional. Revista de Direito Tributário da APET, vol. 15, p. 81-110, 2007.
92
dos direitos fundamentais, dentre outros. É a leitura da fiscalidade que é exigida pelo
Estado Democrático de Direito.
4.2.4 Análise crítica dos conceitos doutrinários sobre a extrafiscalidade
Não se pode compreender a extrafiscalidade como um princípio, como defende
Gouvêa (2006, p. 35). A extrafiscalidade não é um “princípio implícito do sistema
tributário”, um “mandamento nuclear do sistema”, mas uma função possível da
tributação, mas não com caráter principiológico.
O autor ainda compreende a tributação extrafiscal como aquela dotada dos
“objetivos axiológicos da tributação”, dos quais estaria despida a tributação fiscal (sobre
a fiscalidade, a crítica a tal raciocínio foi realizada na seção 3.4). Entende-se neste
trabalho que não é a presença de valores que diferencia a norma extrafiscal. Como já
salientado, não há norma jurídica sem um valor adjacente. Discorda-se, ainda, da
assertiva de que uma norma tributária não pode ser “avessa” à arrecadação (GOUVÊA,
2006, p. 38). As isenções são exemplos disso, tanto na fiscalidade quanto na
extrafiscalidade. O conceito ventilado pelo autor (2006, p. 47) acaba por não diferenciar
os institutos da fiscalidade e da extrafiscalidade, que nem sempre convivem na mesma
norma.
Fanucchi (1976, p. 54) e Berti (2006, p. 41) utilizam-se de conceitos
demasiadamente vagos na definição da extrafiscalidade como sendo o uso do tributo
para fins outros, que não o “simplesmente”, “meramente” arrecadatórios, sequer se
referindo à indução de comportamentos.
Sobre o conceito explicitado por Carvalho (2007, p. 243), entende-se que o
mero prestígio de fim social, político ou econômico não é suficiente para caracterizar a
extrafiscalidade, que requer especialmente a indução de comportamentos do
contribuinte (ao lado dos demais elementos já elencados). O critério do interesse social
ou “não meramente arrecadatório” não seria, assim, suficiente para definir o instituto. A
título de exemplo, uma isenção pode ser concedida por critérios políticos, sociais ou
econômicos, como a isenção do Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação
(ITCD), no Estado de Minas Gerais, para doações de valores até 10.000,00 UFEMG
(Unidade Fiscal do Estado de Minas Gerais). O benefício relaciona-se ao princípio da
capacidade contributiva (em seu aspecto negativo), à proteção do mínimo existencial,
93
sem que importe qualquer indução de comportamento do contribuinte beneficiado. Não
se trata, portanto, de norma extrafiscal.
Machado (1998, p. 52), quando trata da extrafiscalidade, parece atribuir-lhe
conotação exclusivamente econômica, quando vários outros podem ser os bens que a
norma visa a prestigiar utilizando a indução de comportamentos.
A definição de extrafiscalidade de Oliveira (2007, p. 47) mescla elementos
fiscais e extrafiscais. O uso do tributo para redistribuição da renda é elemento fiscal,
voltado à realização da solidariedade e justiça irradiados do conteúdo da Constituição de
1988 ao sistema tributário, não caracterizando qualquer indução de comportamento por
parte do contribuinte e, portanto, afastando a característica indutora.
O conceito trazido por Schoueri (2005, p. 32) tem o mérito de delimitar o campo
de incidência das normas indutoras, contrapondo-as àquelas que têm por função a
distribuição equitativa da carga tributária (e não às que têm por função simplesmente
arrecadar), na linha de Vogel, embora para este estudo entendemos que a função
distributiva deve ser alocada na própria fiscalidade, ao lado da função arrecadatória.
Contudo, no decorrer da obra, o autor considera normas indutoras aquelas voltadas à
implementação do mínimo existencial (2005, p. 83), o que se compreende, neste estudo,
no papel fiscal do tributo.
Outrossim, a vinculação das normas indutoras ao conteúdo econômico, que
permeia toda a obra do autor, leva-o a considerar possível o uso indutor em todas as
espécies tributárias, o que ampliaria o conceito das normas extrafiscais ou se chocaria
com o conceito fornecido pelo próprio autor. A regulação econômica é uma espécie do
gênero de atuação das normas extrafiscais, ao qual também pertencem as normas de
regulação social, ambiental, familiar, dentre tantas outras possibilidades: a indução de
comportamentos pode se verificar para proteção de qualquer bem jurídico prestigiado
pelo ordenamento jurídico (obviamente legítimo), sendo equivocado reduzir a
extrafiscalidade à regulação econômica.
4.3 Extrafiscalidade e os limites ao poder de tributar
Ao se tratar da relevância da distinção entre as normas fiscais e extrafiscais na
seção 2.6, mencionamos especialmente a relação de tais normas com os limites ao poder
de tributar. Questionou-se se tanto as normas fiscais como as extrafiscais teriam igual
94
regime quanto à observância das limitações trazidas pela Constituição de 1988, ou se as
normas extrafiscais admitiriam certa mitigação ou mesmo afastamento de alguns dos
princípios que as integram. Assim, pretende-se neste tópico avaliar a relação e a
compatibilidade das normas extrafiscais com os princípios que compõem os nomeados
“limites ao poder de tributar.” Quanto à fiscalidade, o tema não gera polêmicas, sendo
necessária a observância integral dos referidos limites, conhecidos em nosso
ordenamento como componentes do “estatuto do contribuinte”66.
Embora algumas linhas sobre cada um dos princípios sejam traçadas, não é
objetivo do trabalho uma análise aprofundada dos mesmos. Parte-se das premissas já
conhecidas de tais limitações, buscando apenas verificar a sua relação com as normas
extrafiscais, até porque, tratando-se de tão rico tema, o estudo acabaria por demandar
uma pesquisa paralela específica, desviando-se do tema principal proposto neste estudo.
Pois bem. Esclarecido o objeto do estudo nesta seção, Ávila (2008, p. 71)
pontua que “as limitações ao poder de tributar são uma espécie das várias limitações
estabelecidas ao ente estatal por meio de regras de competência, de princípios, de
garantias e de direitos fundamentais.” Ele enfatiza que as limitações nem sempre são
negativas, como muitos insistem em entendê-las, ora implicam o “dever de
abstenção”67, mas também o “dever de ação”68 e o “dever de composição”69 pelo
Estado.70
Não há divergência quanto à flexibilização, outorgada pela própria
Constituição de 1988, quanto aos limites ao poder de tributar em se tratando de tributos
66 Ávila (2001) define o “Estatuto do Contribuinte” como sendo o “conjunto de normas que regula a relação entre o contribuinte e o ente tributante. Sua utilização possui conotação tanto garantista dos direitos dos contribuintes quanto limitativa do poder de tributar.” E acrescenta que “a função da doutrina e jurisprudência não consiste em meramente descrever o significado do “Estatuto do Contribuinte”, mas em continuamente construí-lo. Considera que equipará-lo aos dispositivos contidos na Constituição de 1988 é igualar o objeto com o resultado da interpretação. O Ministro Celso de Melo, certamente o ministro da Suprema Corte que mais se refere à expressão e ao seu conteúdo em seus votos, enfatiza no voto proferido na Ação Declaratória de Inconstitucionalidade nº 712-2 (DJU 06.11.1998) que: “Delineado pela Lei Fundamental, revestindo-o do mais elevado grau de positividade jurídica, o estatuto do contribuinte compreende um complexo de direitos cujo reconhecimento fixa e impõe, no que concerne à tributação, limites intransponíveis pelos poderes do Estado”. 67 Cita as proibições de retroatividade, de não confisco e de cobrança de tributo no mesmo exercício no qual foi publicada a lei que aumentou ou instituiu o tributo (princípio da anterioridade). 68 O princípio da dignidade da pessoa humana e da solidariedade fiscal a exigir a preservação do mínimo existencial seria um exemplo. 69 Exemplo do dever de composição seria o princípio da impessoalidade, exigindo que o Estado seja “imparcial, neutro e isento” (2008, p. 73). 70 Interessante pontuação do autor sobre o sujeito das limitações é a de que “as limitações não pressupõem relação estática entre particular e Estado” (2008, p. 74). Não apenas a este último sujeito (embora o principal) são direcionados o conteúdo das limitações, mas também aos particulares, quando se considera a “eficácia horizontal dos direitos fundamentais - servindo de “instrumento para conter as forças econômicas e sociais”.
95
extrafiscais. É explícita a mitigação do princípio da legalidade e a exclusão da
anterioridade (art. 150, III, “b” e “c”) em se tratando dos impostos previstos no art. 153,
I, II, IV e V (BRASIL, 1988) de seu texto (II, IE, IPI71 e IOF), extrafiscais por natureza,
tendo a função de intervenção sobre o domínio econômico para regular a economia e o
mercado. Além desta flexibilização, constitucionalmente prevista, há que se investigar a
relação dos princípios limitadores do poder de tributar com as demais exações de
natureza extrafiscal.
Spagnol (2004, p. 128) considera que os princípios e limitações aplicados aos
tributos extrafiscais são os mesmos aplicáveis aos tributos fiscais. Segundo o autor, os
primeiros seriam “desdobramento ou complemento da atividade fiscal, geridas, nas
respectivas dimensões, pelos mesmos princípios consagrados constitucionalmente”.
Gouvêa (2006, p. 254), ao analisar os limites jurídico-principiológicos das
normas extrafiscais, entende que estas, assim como qualquer norma tributária, devem se
conformar aos “princípios de direito tributário, assim como a capacidade contributiva, o
princípio da não surpresa, o princípio da legalidade tributária (que não tem a mesma
conotação no direito econômico) e o princípio do não confisco.” Também não poderão
desrespeitar os princípios constitucionais não tributários e os direitos fundamentais,
sendo a extrafiscalidade “limitada pelo emaranhado principiológico constitucional,
formado pelas diretrizes tributárias, econômicas, políticas e sociais” (2006, p. 257).
Ataliba (1968) também não admite qualquer diferenciação no que concerne ao
âmbito de aplicação das normas extrafiscais:
Não pode a extrafiscalidade servir de invocação mágica que arrede o conjunto de restrições que – em nome da organização estatal, moralidade política e direitos individuais – constitui o regime jurídico tributário. Entender de outra forma seria franquear perigosamente ao legislador ordinário as portas a um arbítrio ilimitado, atentatório do nosso regime constitucional. É, aliás, comum a invocação de pretextos tais como a necessidade de intervenção sobre o Domínio Econômico, para tentar validar exações diversas de que são exemplos os empréstimos compulsórios – ao arrepio das instâncias inescusáveis do regime constitucional (ATALIBA, 1968, p. 168-169).
Para o presente estudo, é possível ora o afastamento, ora a flexibilização de
alguns dos princípios que limitam o poder de tributar do Estado, o que se dá justamente
para possibilitar que a tributação extrafiscal possa atingir os fins visados pela norma.
Não se trata de “invocação mágica”, mas de conferir eficácia ao instrumento tributário
que tenha fundamento na proteção de bens constitucionalmente tutelados. Obviamente,
71 Em relação ao IPI, deve ser observada a anterioridade nonagesimal, prevista no art. 150, III, “c” da Constituição de 1988 (BRASIL, 1988), conforme art. 150, § 1º da mesma.
96
o controle de proporcionalidade das leis deve ser exercido pelo Poder Judiciário, o que
impedirá as eventuais arbitrariedades cometidas pelo Poder Legislativo no manejo do
tributo extrafiscal, razão pela qual não se coaduna com o entendimento de Ataliba
(1968) e ainda de Spagnol (2004) e Gouvêa (2006).
4.3.1 Princípio da legalidade
O princípio da legalidade atua de forma distinta conforme se encarem as
normas extrafiscais sob o prisma do poder de tributar ou do poder de regular.
Souza (2003) menciona a necessidade de maior flexibilidade e mobilidade das
leis que versam sobre a matéria econômica, a fim de acompanharem o dinamismo
próprio dessas relações, o que flexibiliza o princípio da legalidade geral previsto no art.
5º, II da Constituição de 1988. Schoueri, após citar o art. 174 da Constituição72, que
trata especificamente da legalidade na ordem econômica, conclui que a atuação estatal
deve ser baseada na lei, não se exigindo que esta “discipline em minúcias o ato de
intervenção, cabendo-lhe, apenas, estabelecer as metas e limites à autoridade delegada.”
(2005, p. 240).
Sob o prisma do direito tributário, o princípio da legalidade se reveste de maior
rigidez e é previsto especificamente no art. 150, I da Constituição de 198873, no capítulo
das limitações ao poder de tributar. Ávila (2008, p. 75-76) menciona dois significados
do princípio em comento. Em uma perspectiva formal, a legalidade “exige um
fundamento legal para qualquer prescrição normativa”. Enfatiza que “a lei é o único
meio para instituir tributos” (p. 122), ressalvando a equiparação às leis complementares
dos convênios interestaduais (§ 8º do art. 34 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias). Na perspectiva material, “a legalidade exige que qualquer comando
normativo tenha um conteúdo previamente determinável em lei” (2008, p. 76), pelo que
também a ela se refere como o princípio da tipicidade, melhor denominada pelo autor
como “princípio da determinabilidade fática”.
Coêlho (1995, p. 277) aponta a “singela justificação” do princípio da
legalidade, que “promana diretamente da experiência dos povos [...]: a tributação deve
72 “Art. 174. O Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento” (BRASIL, 1988). 73 “Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça” (BRASIL, 1988).
97
ser decidida não pelo chefe do governo, mas pelos representantes do povo, livremente
eleitos para fazer leis”.
Adverte Schoueri que “se as normas indutoras se valem do veículo tributário,
abre mão o legislador da flexibilidade própria do direito econômico, dobrando-se à
legalidade tributária” (2005, p. 241). Contudo, o autor admite o uso dos conceitos
indeterminados e cláusulas gerais em matéria tributária e, mais especificamente, para as
normas indutoras, o que pode ser visto como certa flexibilização ao princípio da
legalidade, se comparado com posições mais ortodoxas envolvendo o princípio74, como
a da tipicidade fechada ou cerrada75:
A admissão de cláusulas gerais e dos conceitos indeterminados reveste-se de importância por permitir a conciliação entre o veículo tributário, sujeito ao princípio da legalidade próprio do pouvoir financier e as normas indutoras, de resto adequadas à flexibilidade da legalidade do pouvoir lègislatif. Por meio das cláusulas gerais e dos conceitos indeterminados, pode o legislador firmar a hipótese de incidência tributária, sem que a todo momento se faça necessário novo texto legal para adaptá-las às mudanças do cenário econômico. Assim, quando a Lei nº 4.131/62, versando sobre limites de dedutibilidade dos royalties, confere ao Ministro de Estado da Fazenda a competência para estabelecê-los e revê-los periodicamente, “segundo o grau de essencialidade”, emprega um conceito indeterminado. Nem por isso, note-se, se afasta da legalidade, já que a essencialidade, conquanto possa variar no tempo, pode ser determinada, hic et nunc, com base no conjunto da política econômica. (SCHOUERI, 2005, p. 253-254)
Concorda-se que os conceitos indeterminados e as cláusulas gerais devem ser
utilizados pelo ordenamento jurídico, especialmente pelo direito tributário, neste último
tanto nas normas fiscais quanto nas extrafiscais, sendo nesta categoria especialmente
necessárias para a produção de resultados indutores de comportamentos para além do
momento de elaboração da norma jurídica.
Oliveira (2007, p. 137) também defende o fato de que as normas extrafiscais,
especialmente aquelas voltadas à defesa do meio ambiente, devem ter flexibilizado o
princípio da legalidade através da utilização de conceitos indeterminados, com o que se
74 Neste sentido, ver XAVIER, Alberto. Os princípios da legalidade e da tipicidade da tributação. São Paulo: Revista dos Tribunais e CARRAZA, Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional Tributário. São Paulo: Malheiros. 75 Adota-se o termo “tipicidade fechada” ou “cerrada” não obstante a controvérsia sobre o antagonismo da terminologia, como apontada por Schoueri: a ideia de “tipo” não se refere à de “determinação” normativa, que se liga ao “conceito”. O tipo é aberto, permite evolução em seu conteúdo, é afeito à “descrição”, enquanto o “conceito” é que remete à definição exata. Daí a impropriedade corrente da literatura, pelo que propõe Derzi a utilização do termo “princípio da conceitualização normativa especificante” ao invés do “princípio da tipicidade”. Neste sentido, também Larenz e Canaris (SCHOUERI, 2005, p. 242-247). De toda forma, a ideia de “tipicidade fechada” traz em seu seio a necessidade de formulação específica e determinada dos elementos do tipo na formulação legal, afastando a possibilidade dos “conceitos indeterminados”, isso como forma de proteção à segurança jurídica.
98
estaria assegurando a efetiva finalidade do tributo pela “necessária atualização dos
critérios” utilizados para induzir o comportamento do contribuinte.
Exemplos de utilização das cláusulas gerais e conceitos indeterminados quanto
às normas indutoras também são oferecidos por Schoueri (2005, p. 252-253). A Medida
Provisória nº 2.199/2001, em seu art. 1º, criou incentivo fiscal de redução do imposto de
renda para “pessoas jurídicas que tenham projeto aprovado para instalação, ampliação,
modernização ou diversificação enquadrado em setores da economia considerados, em
ato do Poder Executivo, prioritários para o desenvolvimento regional” (BRASIL,
2001). Os “setores da economia prioritários para o desenvolvimento regional” são um
conceito indeterminado, o qual depende da aferição do órgão executivo competente
(através do Decreto nº 4.212/2002 foram elencados tais setores).
Outro exemplo é o Decreto-Lei nº 1968/1982, que prevê, em seu art. 2º, a
proibição para empresas em “mora contumaz” de serem favorecidas por benefícios
fiscais. Por “mora contumaz” explicitou a lei caracterizar “o atraso ou sonegação de
salários devidos aos empregados por período igual ou superior a três meses, sem motivo
grave e relevante, excluídas as causas pertinentes ao risco do empreendimento”
(BRASIL, 1982).
4.3.2 Princípio da anterioridade
Coêlho (1995, p. 277) justifica o princípio da anterioridade na expressão da
“ideia de que a lei tributária seja conhecida com antecedência, de modo que os
contribuintes, pessoas naturais ou jurídicas, saibam com certeza e segurança a que tipo
de gravame estarão sujeitos no futuro imediato, podendo dessa forma organizar e
planejar seus negócios e atividades”.
O princípio foi considerado cláusula pétrea pelo Supremo Tribunal Federal no
julgamento da ADI nº 939 (STF, DJ 18.03.1994), ou seja, não pode ser modificado para
reduzir o seu conteúdo pelo poder constituinte reformador, muito menos pelo legislador
infraconstitucional. Entendeu-se que o art. 5º, § 2º da Constituição de 1988 fez expressa
menção à existência de outros direitos individuais no texto da Constituição e, como tal,
o art. 150 estabeleceu garantias aos contribuintes, dentre elas o princípio da
anterioridade, cujas exceções foram esgotadas pelo poder constituinte originário e são
numerus clausus, não exemplificativas.
99
Os tributos utilizados para regulação econômica são exceções à regra da
anterioridade, conforme o § 1º do art. 150 da Constituição de 1988 (além do imposto
extraordinário de guerra e dos empréstimos compulsórios fundados no inciso I do art.
149 da Constituição), frisando que após o advento da Emenda Constitucional nº
42/2003, o IPI deve observar a anterioridade nonagesimal, prevista no art. 150, III, “c”
da Constituição de 1988 (mas não a anterioridade de exercício, prevista no art. 150, III,
“b” do texto constitucional).
Tendo em vista a natureza de direito fundamental do contribuinte e o fato de o
próprio constituinte já afastar o princípio em se tratando dos tributos sobre importação,
exportação, produtos industrializados (se aplica apenas a anterioridade nonagesimal) e
operações financeiras (em que a mobilidade do mercado leva à necessária agilidade nas
medidas para sua regulação), fato é que o princípio da anterioridade deve ser observado
quando da implementação da indução de comportamentos via tributação, privilegiando,
ainda, a segurança jurídica que deve permear as relações fisco-contribuinte.
4.3.3 Princípio da irretroatividade
A proibição do efeito retroativo da lei tributária, prevista pelo art. 150, III, “a”
da Constituição de 1988, “deflui da necessidade de assegurar-se às pessoas segurança e
certeza quanto a seus atos pretéritos em face da lei” (COÊLHO, 1995, p. 277). O
princípio, contudo, não é universal, sendo possível a retroatividade da lei tributária na
França, Áustria, Bélgica, Estados Unidos, Itália e Argentina, segundo cita Schoueri
(2005, p. 271).
Em relação à extrafiscalidade, Schoueri (2005; 2009) aponta que, além da
segurança jurídica, há que se analisar o princípio sob o prisma da eficácia de tais
normas: “tendo elas a função de modificar comportamentos do contribuinte, não podem
elas atingir situações sobre as quais o contribuinte já não tem mais qualquer controle ou
influência” (2005, p. 271). O autor cita um exemplo que clarifica a sua ponderação. O
Decreto nº 1.343/1994 (BRASIL, 1994), aumentou a alíquota do II de diversos
produtos, tendo a Receita Federal passado a exigir a nova tributação para os produtos
que, embora já adquiridos no mercado externo, ainda não haviam sido desembaraçados
no Brasil.
100
Trata-se de situação que envolve a irretroatividade imprópria76, ou seja, aquela
em que embora a operação se enquadre no esquema fático previsto pela hipótese
material de incidência em um dado momento, o fato gerador do tributo só ocorrerá
efetivamente depois; no caso do imposto de importação, com o desembaraço aduaneiro
das mercadorias adquiridas no exterior.
O Supremo Tribunal Federal, a partir do RE nº 225.602 (STF, DJ 06.04.2001)
decidiu a favor do Fisco, considerando que o fato gerador do tributo se dá com a
entrada da mercadoria no território aduaneiro. Schoueri, verificando que a decisão não
considerou a natureza extrafiscal do tributo, expõe que:
Outra poderia ter sido a solução, tivesse sido ponderada a natureza da norma que majorou o tributo, quando se revelaria norma tributária indutora, visando a inibir a importação de diversos produtos, dada a precária situação da balança comercial do País. Ora, nesse caso, a norma somente poderia atingir aqueles contribuintes cujo comportamento pudesse ser influenciado por ela. Tratando-se de mercadoria já adquirida e embarcada, objeto de contrato firme e irretratável, a decisão do importador já não mais poderia ser influenciada pelo incremento da carga tributária. Neste sentido, já não poderia subsistir a norma tributária indutora, porque nada induziria (SCHOUERI, 2009, p. 143; 2005, p. 272).
Não apenas concorda-se com a explanação do autor, como verifica-se na
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal certa superficialidade na análise do
conteúdo e eficácia próprios das normas extrafiscais, o que também foi constatado por
Ávila (2010) ao avaliar a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal quanto aos
limites da extrafiscalidade em relação ao princípio da igualdade, o que será melhor
considerado em seção posterior.
A proibição de retroação da norma tributária indutora também se aplica aos
incentivos fiscais: “se o contribuinte já incorreu na hipótese desejada pelo legislador,
sem que a tanto fosse movido pelo incentivo fiscal, a concessão deste configura
privilégio odioso, se não justificada por outro fundamento constitucionalmente válido”
(SCHOUERI, 2009, p. 145; 2005, p. 273).
Herrera Molina (2000) enfatiza a impossibilidade da retroação da norma
tributária no campo ambiental, tendo em vista o seu caráter indutor: “o elemento
incentivador também exclui a possibilidade de que os tributos ambientais possam ter
76 A irretroatividade própria se refere à impossibilidade de aplicação da lei nova a fatos geradores efetivamente ocorridos, no passado.
101
efeitos retroativos” (2000, p. 63, tradução nossa)77 e cita decisão do Tribunal
Constitucional espanhol – STS, de 19 de abril de 1997 (JT, 6520) – que, embora com
argumentos distintos e confusos, afastou a possibilidade de retroação do plano de
saneamento a que se vincula o cânon de saneamento catalão. O alicerce do fundamento
da decisão é resumido pelo autor, o qual o presente estudo está de acordo:
Na base da argumentação do Tribunal subjaz a ideia de que a norma retroativa já não se mostrava idônea para alcançar a finalidade do tributo (reduzir a contaminação nos exercícios [financeiros] aos quais devia se referir o plano de saneamento) (2000, p. 170, tradução nossa)78.
4.3.4 Princípio do não confisco
O princípio do não confisco, previsto pelo ordenamento pátrio no art. 150, IV
da Constituição de 1988 (BRASIL, 1988), refere-se à impossibilidade de a tributação
fulminar a propriedade.
Em se tratando de tributos extrafiscais desestimuladores de condutas, entende-
se possível a flexibilização do conteúdo do princípio de forma a viabilizar a eficácia da
norma. O agravamento da carga tributária deve ser suficiente e adequado para atingir o
bem jurídico que a norma protege, nesse caso, utilizando-se de critérios de
proporcionalidade a fim de não ultrapassar o estritamente necessário para a
possibilidade de produção de resultados.
Ademais, entende-se que os direitos fundamentais (como o da propriedade),
assim como qualquer outro, não são absolutos, sendo a relativização oriunda das normas
extrafiscais fundadas na proteção de outros bens jurídicos constitucionalmente
protegidos. Oportuna, ainda, a lição de Murphy e Nagel (2005), pela qual a propriedade
deve ser vista como o resultado pós-tributação.
Berti (2006) entende ser possível a flexibilização do princípio do não confisco,
o qual “deve sofrer a devida adaptação à teleologia buscada pelo legislador constituinte
ao permitir a aplicação da extrafiscalidade em tema afeto aos impostos” (2006, p. 183).
Schoueri (2005, p. 306-307) aceita a tributação excessiva para atingir a função
prestigiada pela norma indutora, mas não a tributação proibitiva. Essa seria aquela que
77 El elemento incentivador también excluye que los tributos ambientales puedan tener efectos retroactivos. 78 En el fondo de la argumentación del Tribunal subyace la idea – que compartimos plenamente – de que la norma retroactiva no resultaba ya idónea para conseguir la finalidad del tributo (reducir la contaminación en los ejercicios a que debía referirse el plan de saneamiento).
102
impossibilitaria, destruiria o exercício da atividade tributada, de forma absoluta. A
tributação excessiva, por seu turno, apenas a dificultaria ou desencorajaria o exercício
da atividade tributada.
Baleeiro (2005, p. 567) admite o afastamento do princípio do não confisco em se
tratando de normas extrafiscais:
[...] não ofendem à Constituição impostos que, em função extrafiscal, são instituídos com propósito de compelir ou afastar o indivíduo de certos atos ou atitudes. Nesse caso, o caráter destrutivo e agressivo é inerente a esta tributação admitida por tribunais americanos e argentinos e da qual há exemplos no Direito Fiscal brasileiro quando visa ao protecionismo, à indústria, ao incentivo à natalidade, ao combate ao ausentismo, ao latifúndio etc.[...] Esses fins extrafiscais, em geral, resultam de cláusulas da Constituição. Se essa pretende amparar a família, tolera a tributação pessoal drástica sobre o celibato79. Se promete melhor distribuição da propriedade e a condiciona ao bem-estar social, certamente autoriza o fiscalismo enérgico, capaz de reprimir o latifúndio, que impede essa distribuição e impossibilita aquele bem-estar social. Se a Constituição a todos assegura trabalho que possibilite existência digna, e o erige em dever social, é desejável e admissível a tributação violenta que repele acumulações de capitais favoráveis à ociosidade dos donos ou apenas incompatíveis, economicamente, com o pleno emprego.” (BALEEIRO, 2005, p. 567).
O autor ainda menciona o direito comparado norte-americano: “impostos
confiscatórios e proibitivos [...] são tolerados, muitas vezes, pela jurisprudência norte-
americana como manifestações do poder de polícia, desde que, em caso concreto, se
apure sua eficácia na defesa da segurança, saúde e bem-estar do povo.” (BALEEIRO,
1998, p. 190).
Coêlho admite “a tributação exacerbada, por razões extrafiscais e decorrentes do
poder de polícia (gravosidade que atinge o próprio direito de propriedade)” e, antes de
concordar com Baleeiro, menciona:
Nas sociedades modernas, penetradas pelo social mais que pelo individual, o princípio do não-confisco tem horas que assoma como velharia. É que o constitucionalismo moderno, nos países democráticos, prestigia e garante a propriedade referindo-a, porém, a sua função social. Os tributos visam a obter meios mas sempre preservando as fontes de onde se cevam e, até, induzem o crescimento das mesmas. Quanto maior a economia de uma nação, melhor para as finanças públicas. Esta é a índole do regime. Falar-se em confisco neste panorama é non sense. A tributação exacerbada tem finalidade exclusivamente extrafiscal, que arreda o princípio (1995, p. 333).
79 Não parece que, para a proteção à família, se considere legítima a alta tributação do celibato. O tributo assim justificado não passaria ao teste de legitimidade, como se verifica na seção 4.4.
103
Sebastião (2007), em estudo sobre o tributo ambiental, admite a tributação
exacerbada em se tratando de normas extrafiscais, considerando possível o afastamento,
ainda que parcial, do princípio em comento:
(...) o princípio da essencialidade do meio ambiente, posto ser impregnado de valores relativos à perpetuação da vida no planeta, finda por afastar, mesmo que parcialmente – e em alguns casos aperfeiçoar – a presença dos princípios da isonomia tributária, da capacidade contributiva e da vedação ao confisco, sopesando-os, na instituição de isenções e tributos extrafiscais voltados àquele fim (SEBASTIÃO, 2007, p. 146).
Entende-se neste estudo que há a possibilidade de mitigação do princípio em
análise de forma a desincentivar comportamentos do contribuinte, sob pena da norma
extrafiscal não ter eficácia no cumprimento de sua função indutora. Ninguém duvida de
que a tributação do cigarro pelo IPI, a uma alíquota efetiva de 41,25% (considerando a
alíquota de 330%, mas a base de cálculo de 12,5% do preço da venda a varejo) é
excessiva, atingindo quase a metade do valor do produto, mas é necessária para produzir
o resultado visado pela norma, qual seja, inibir o consumo do produto.
Contudo, não se concorda com a tributação proibitiva, que inviabilizaria a
prática da atividade ou fato tributado, descambando ao campo das sanções. Um exemplo
do tributo nessas condições seria a utilização da alíquota acima citada para o IPTU, no
caso dos imóveis urbanos não utilizados ou subutilizados, que acabaria por fulminar o
direito de propriedade que é relacionado ao fato gerador do tributo.
4.3.5 Princípio da igualdade e capacidade contributiva
A capacidade contributiva decorre do princípio da igualdade. Esse princípio,
contudo, não se resume à capacidade contributiva, que não é o critério exclusivo de
justiça fiscal em um ordenamento jurídico. A capacidade contributiva deve ser efetivo
elemento dos tributos fiscais, a embasar e justificar a arrecadação tributária, quando
busca os sinais de riqueza do contribuinte de forma a distribuir com justiça a carga
tributária na sociedade. Mas outros critérios podem fundamentar o tributo, tais como os
diversos bens jurídicos protegidos pela Constituição.
Como a extrafiscalidade visa à indução de comportamentos, a capacidade
contributiva não fundamenta o tributo. O fundamento da norma extrafiscal é a proteção
de algum bem ou direito amparado pelo ordenamento jurídico constitucional, o qual
104
será atingido pelo comportamento que se pretende estimular ou desestimular com a
norma.
Na Espanha, a discussão principal envolvendo as normas de cunho extrafiscal se
relacionou ao princípio da capacidade contributiva. A exposição do tema foi realizada
na seção 2.3 deste trabalho.
Na doutrina brasileira, Derzi (2005, p. 546) coaduna o pensamento dos autores
espanhóis que compreendem a fundamentação dos tributos com base em outros
critérios, além da capacidade contributiva:
A capacidade contributiva é, de fato, a espinha dorsal da justiça tributária. É o critério de comparação que inspira, em substância, o princípio da igualdade. Mas não é o único. Critérios constitucionalmente válidos podem presidir as exceções à proibição de discriminar entre pessoas que demonstram idêntica capacidade contributiva.
Assim, não há dúvidas de que é possível o afastamento do princípio da
capacidade contributiva em se tratando da tributação extrafiscal.
Contudo, questão de extrema relevância apontada por parte da doutrina
espanhola se refere aos riscos que a utilização desmedida e ilimitada da extrafiscalidade
pode trazer à justiça tributária como um todo.
A preocupação observada por alguns doutrinadores na Espanha se dá pelos
abusos que podem decorrer do uso imoderado dos tributos extrafiscais. Godoi (2004, p.
221) expõe o pensamento de Casado Ollero, que cita o uso excessivo dos tributos
extrafiscais pelas Comunidades Autônomas, o que além de gerar problemas em relação
à competência, poderia desvirtuar o conceito de tributo, que se converteria em uma
“prestação coativa polivalente”, abrangendo qualquer tarefa interventora do Estado.
Saínz de Bujanda80 também é mencionado por Godoi (1999, p. 223). Segundo o
professor espanhol, “a equitativa distribuição da carga fical não pode sacrificar-se para a
busca de outros fins, por mais elevados e atraentes que este sejam”. Godoi esclarece
que, ao contrário do que muitos entenderam naquele país, o autor não rechaça a
utilização da tributação extrafiscal, apenas adverte sobre os riscos do “seu uso
imoderado que pode solapar um mínimo grau de justiça no financiamento dos gastos
públicos”. Saínz de Bujanda aduz que os tributos extrafiscais produziriam a
redistribuição da renda de forma contrária ao seu sentido natural, beneficiando os mais
80 SAÍNZ DE BUJANDA, Fernando. Hacienda y Derecho. Instituto de Estudios Políticos. Madrid: 1963, p. 420.
105
ricos ao invés dos mais pobres. Segundo o autor, essa situação teria como fundamento
“um mal dissimulado bem comum e uma leviana ideia de justiça social”. Ele cita como
exemplo o caso das desonerações sobre o capital. No Brasil, pode-se citar a isenção
sobre a distribuição de lucros e dividendos nas sociedades empresárias. O argumento do
autor espanhol é procedente, já que, no exemplo brasileiro, sob o argumento de se
incentivar o investimento estrangeiro no país, deixa-se de tributar a renda auferida pelos
empresários (em geral, mais ricos), enquanto todos aqueles que auferem rendas
mediante relação de emprego ou de serviço, são tributados pelo imposto de renda. O
caso parece contrariar o princípio da igualdade, já que o critério de diferenciação não é
legítimo para justificar a repartição diferenciada da carga tributária.81
Soler Roch82, citada por Godoi (2004, p. 232) demonstra a preocupação com o
fato de os incentivos fiscais ao investimento deixarem de ser excepcionais para
tornarem-se gerais (diante da exagerada quantidade e oferta indiscriminada a todos os
sujeitos passivos), implicando no desvio completo do conceito de renda determinado
pela norma e na neutralização dos princípios de justiça tributária (especialmente o da
capacidade contributiva) no sistema tributário.
Lasarte83 aponta que a eficácia econômica é a base teórica dos impostos ao
investimento, denunciando que a utilização excessiva desses leva à caracterização do
sistema tributário como “um mero instrumento de domínio da classe dominante, um
diabolus ex machina que facilita a manutenção das desigualdades sociais”, utilizando as
palavras de Godoi (2004, p. 233).
Derzi (2005, p. 395-396) menciona o caso brasileiro, no qual também se
verificou o abuso no uso de incentivos tributários para fins de desenvolvimento
econômico, especialmente no período que sucedeu a década de 60, que coincidiu com o
crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) a índices médios de 8% a 9%, sobretudo na
década de 70. E afirma que:
Entretanto, muitos erros foram cometidos. Questionáveis foram as prioridades escolhidas e o próprio modelo de desenvolvimento. Isenções foram dadas e mantidas por anos, sem preocupação com seu elevado custo social, com a concentração e transferência de renda e, sobretudo, sem o conhecimento preciso de sua eficiência, só apurável pela observação dos custos frente aos benefícios dela advindos (DERZI, 2005, p. 395).
81 A seção 4.4 tratará da questão da legitimidade. 82 SOLER ROCH, María Teresa. Incentivos a la inversión y justicia tributaria. Madrid: Civitas, 1983, p. 29-47. 83 LASARTE, Javier. Funcionalidad del sistema fiscal y exigencia de cambio. Civitas, REDF, nº 37, 1983.
106
A autora menciona o fato de que embora os incentivos fiscais possam ser usados
“a favor de uma determinada política socioeconômica [...] isoladamente eles não podem
transformar a realidade, mas tudo depende de um conjunto de medidas de outra
natureza” (2005, p. 395), citando a autora “a relação entre preços e salários, crescimento
dos salários na renda nacional, direção dos gastos públicos e prioridades escolhidas,
mecanismos de financiamento” (2005, p. 395-396). Ela conclui que o acompanhamento
do resultados das medidas indutoras “deve ser criteriosamente seguido para revisão,
retificação ou cancelamento, o que raramente ocorreu” no país (2005, p. 396).
Lozano Serrano (1988, p. 33) propõe que as preocupações relacionadas às
concessões de benefícios se relacionam a uma visão ligada ao método do interesse
tutelado pelo direito tributário, no sentido de ser fundamento exclusivo do tributo a
arrecadação, em uma visão formalista do dever de contribuir de forma a contrapor o
interesse público ao do particular, típica visão liberal, como já tratado na seção 3. O
autor entende que as isenções não são contrárias ao tributo, mas sim, exigência que
também se relaciona à justiça fiscal. O sistema tributário tem que ser analisado de forma
integrada e não apenas o interesse de arrecadar tem proteção. Ambos os institutos, do
tributo e da isenção, têm a mesma matriz constitucional, ambos se baseiam na justiça
fiscal, na igualdade, na solidariedade. No passado, as isenções eram tidas como
instrumentos estranhos, excepcionais à tributação, não devendo respeito aos princípios
que norteavam esta última. Hoje, não persiste tal raciocínio. Os mesmos princípios de
justiça que norteiam o ordenamento jurídico e a tributação, mais especificamente,
devem nortear a estrutura das isenções. A simples uniformidade da tributação poderia
ferir a equidade do sistema tributário e a justiça que deve norteá-lo. O autor também
considera que, além da justiça, outros critérios também são dignos de consideração pelo
legislador, quando se trata do tema das isenções. Propõe a substituição do critério do
interesse tutelado pela vinculação do dever de contribuir aos princípios elencados como
objetivo de todo o ordenamento pela Constituição espanhola.
Apesar dos riscos apontados especialmente pela doutrina espanhola sobre o
excesso no manejo do tributo extrafiscal, que poderia retirar o elemento de justiça do
ordenamento, há que se ponderar o seguinte: as normas extrafiscais, como instrumentos
de política pública, devem ser analisadas e fiscalizadas pelos detentores da competência
material, sendo certo que, não correspondendo aos fins objetivados no seu manejo,
devem ser revistas de forma a não justificar tratamentos arbitrários. O Poder Judiciário
pode e deve interferir quando os critérios utilizados pela norma extrafiscal para a
107
concessão de benefícios sejam arbitrários. Outrossim, não podem os benefícios fiscais
ser encarados como contrários ao interesse público e à justiça fiscal, já que a capacidade
contributiva não é o único fundamento do tributo nem da justiça do sistema tributário,
podendo outros fins justificarem plenamente a incidência ou não incidência do tributo.
Godoi (2004), reconhecendo os riscos globais do uso indiscriminado das normas
extrafiscais, traça os limites que entende necessários à utilização da referida função do
tributo. Cita os direitos fundamentais, o direito à propriedade, a nova configuração
jurídica do dever de contribuir84, o limite da competência85 e a capacidade econômica
que, na extrafiscalidade, deve observar o seu sentido negativo.
Ainda que seja inequívoca neste estudo a possibilidade do afastamento da
capacidade contributiva do contribuinte em se tratando das normas extrafiscais,
concorda-se com Godoi ao limitar tal flexibilização à observância da capacidade
contributiva no sentido negativo, ou seja, não desrespeitando o mínimo existencial e o
direito de propriedade (tributo não confiscatório):
Os limites de tal conflito começam por exigir a capacidade econômica real e efetiva como pressuposto ou fonte da imposição frente a todo e qualquer tributo extrafiscal, garantindo a não imposição sobre o mínimo existencial e a não configuração de uma imposição com efeitos confiscatórios (vulneração do conteúdo essencial do direito de propriedade). Por outra parte, se é verdade que não se pode exigir que os tributos extrafiscais realizem positivamente a capacidade econômica, também é certo que o critério distinto utilizado pela norma tributária não pode ser oposto ou contrário à capacidade econômica, o que seria ainda mais grave e pernicioso se ocorresse no seio dos impostos com maiores responsabilidades de imprimir progressividade ao conjunto do sistema tributário (GODOI, 2000, p. 261-262, tradução nossa)86.
No Brasil, ao contrário da problematização espanhola, parece prevalecer, ao
menos no campo prático, certo desdém em relação ao princípio da capacidade
contributiva, que não tem sido aplicado sequer como forma característica obrigatória
84 Baseada no princípio da solidariedade, da qual decorrem as “notas clássicas do conceito de tributo”: o princípio da capacidade contributiva “como pressuposto legitimador” e a “arrecadação de ingressos públicos como propósito típico”. 85 Pelo qual o ente que instituir a norma intervencionista deve ter a competência material para tratar da matéria, além da competência tributária. 86 Los límites de tal conflicto empiezan por exigir la capacidad económica real y efectiva como presupuesto o fuente de la imposición frente a todo y cualquier tributo extrafiscal, garantizando la no imposición sobre el mínimo vital y la no configuración de una imposición con efectos confiscatorios (vulneración del contenido esencial del derecho de propiedad). Por otra parte, si es verdad que no se puede exigir de los tributos extrafiscales que realicen positivamente la capacidad económica, también es cierto que el distinto criterio utilizado por la norma tributaria no puede ser opuesto o contrario a la capacidad económica, lo que sería aún más grave y pernicioso si ocurriera en el seno de los impuestos con mayores responsabilidades de imprimir progresividad al conjunto del sistema tributario.
108
dos tributos nitidamente fiscais, e muito menos considerado fundamento único do
tributo e critério de justiça do sistema tributário em geral. A interpretação conferida ao
art. 145, § 1º da Constituição de 1988, como já salientado, a despeito da doutrina
majoritária, muitas vezes é no sentido de que apenas “quando possível” os impostos (e
apenas esta espécie tributária e, ainda, exclusivamente os impostos pessoais) serão
graduados segundo a capacidade contributiva do contribuinte87.
Contudo, há autores que defendem a impossibilidade de o princípio da
capacidade contributiva ser afastado em se tratando de normas extrafiscais. Nesse
sentido, Oliveira (1988, p. 116-117) afirma ser equivocado entender como incompatível
o princípio em se tratando das normas em estudo:
Em primeiro lugar, salvo no caso da tributação ambiental, a tributação extrafiscal é e será sempre excepcional, pois a necessidade de recursos materiais pelo Estado é permanente e inarredável já que, ele mesmo, não produz riqueza, mas tem que consumir vultosas verbas na prestação de serviços públicos. E não se deve raciocinar por exceções, máxime em tema tão grave qual seja a igualdade tributária. Em segundo lugar, as hipóteses de tributação extrafiscais pelo só se justificarão juridicamente, se revelarem a real existência ou a movimentação de riqueza (...) servindo de instrumento de efetivação da progressividade do sistema tributário e ensejando, pois, a realização do princípio da capacidade contributiva.
Não se coaduna com o entendimento citado. Não é compreensível porque seriam
as normas tributárias extrafiscais exceções, já que visam à proteção de bens jurídicos
que, na ausência de tais normas, igualmente levariam à diminuição da receita pública,
porém, pela via dos gastos públicos. Outrossim, qual seria a diferença entre os tributos
que protegem o meio ambiente e aqueles que visam a proteger a educação, a ciência e a
tecnologia, a promoção de empregos e tantos outros bens também protegidos pela
Constituição? A defesa da presença do princípio da capacidade contributiva pelo autor,
ao que parece, apegada à interpretação econômica do direito tributário, refere-se mais a
aspectos da fiscalidade, nos quais a progressividade é uma das formas de
implementação da justiça fiscal pela correta aferição e distribuição das riquezas dos
contribuintes, como já explicitado na seção 2.
O Supremo Tribunal Federal analisou a relação da capacidade contributiva nos
tributos fiscais e extrafiscais, diferenciando a aplicação do princípio nos institutos e
permitindo o afastamento do princípio da capacidade contributiva nas exações
extrafiscais.
87 Nesse sentido, ver jurisprudência citada na seção 3.3.
109
Sobre os benefícios fiscais advindos da extrafiscalidade, cuidou o acórdão
proferido no julgamento da Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade
(ADIMC) nº 1.643 (STF, DJ 19.12.97) e ADI nº 1.643 (STF, DJ 05.12.2002) de avaliar
a constitucionalidade da exclusão de pessoas jurídicas de determinados ramos de
atividade econômica – profissionais cujo exercício da atividade dependa de habilitação
legalmente exigida - dos benefícios do Simples (art. 9º, XIII, da Lei nº 9.317/1996,
vigente à época). O Tribunal atestou a constitucionalidade do dispositivo por considerar
que a lei, por motivos extrafiscais, pode estipular tratamento desigual para atividades
econômicas diferenciadas, desde que os critérios de distinção sejam razoáveis, não
ferindo o princípio da igualdade (art. 150, II da Constituição de 1988) nem constituindo
discriminação arbitrária, nos moldes do art. 3º, IV da mesma Constituição. Conforme
voto do Ministro Relator, Maurício Corrêa, na Ação Direta de Inconstitucionalidade e
na Medida Cautelar, a razoabilidade do critério escolhido estaria no fato de “beneficiar
as pessoas que não possuem habilitação profissional exigida por lei, seguramente as de
menor capacidade contributiva e sem estrutura bastante para atender a complexidade
burocrática comum aos empresários de maior porte e aos profissionais liberais”. A
norma teria por fim a proteção contra o abuso do poder econômico, a defesa da
formalidade, a promoção de empregos, proteção que não se compatibilizaria com as
sociedades formadas por profissionais liberais, que já teriam sua estrutura solidificada,
independente dos ditames da lei do Simples Nacional.
No RE nº 153.771 (STF, DJ 05.09.97), fora examinada a constitucionalidade da
progressividade no IPTU instituída em lei do município de Belo Horizonte, que
majorava as alíquotas do tributo conforme o valor venal do imóvel, à luz dos arts. 156, §
1º (com redação anterior à Emenda nº 29/2000) e do art. 182, § 4º da Constituição de
1988. Foi reconhecido que a progressividade expressa no art. 156, § 1º estaria
relacionada à função social da propriedade, dado o conteúdo extrafiscal visado pelo
agravamento tributário no texto constitucional. O voto do Ministro Moreira Alves
deixou claro que a progressividade fiscal, baseada na capacidade contributiva, deve
estar presente apenas nos impostos pessoais com finalidade fiscal, sendo afastada a sua
aplicação nos impostos reais e nas normas indutoras. A progressividade, na norma
indutora em análise, deveria basear-se nos critérios já estipulados na Constituição no
título referente à política urbana e não na capacidade contributiva do contribuinte,
110
representada pelo valor venal do imóvel. Assim, a única forma de progressividade
possível para o IPTU seria, no texto da época, a relacionada à extrafiscalidade88.
O texto do § 1º do art. 156 da Constituição de 1988, em sua redação anterior à
Emenda nº 29/2000, determinava que o IPTU “poderá ser progressivo nos termos de lei
municipal, de forma a assegurar o cumprimento da função social da propriedade”. O art.
182, § 4º da Constituição (BRASIL, 1988) prevê a progressividade no tempo, como
forma de desestimular a propriedade não edificada, subutilizada ou não utilizada. De
fato, ambos os dispositivos tratam de normas extrafiscais, já que o objetivo da
progressividade é o estímulo ao comportamento do contribuinte, visando a conferir a
devida função social à sua propriedade. Neste ponto, é correta a exposição do Ministro
Moreira Alves no sentido de que critérios relacionados à capacidade contributiva não
devem ser utilizados para se determinar o agravamento trazido pelas normas
extrafiscais. Frisamos que os critérios buscados devem ter relação com a finalidade
desejada pela norma, o que não ocorreu no caso, já que foi eleito o valor venal do
imóvel.
Contudo, entendemos que haveria outra forma possível de utilização da
progressividade no caso em tela, voltada aos fins fiscais do sistema tributário, com base
na progressividade relacionada à capacidade contributiva do contribuinte.
O voto do Ministro Carlos Velloso, embora vencido, é de fundamental
importância para diferenciar a progressividade utilizada para fins fiscais e extrafiscais.
Expôs o ministro que a progressividade do IPTU, como forma de tributação a atender o
princípio da capacidade contributiva, é medida que se relaciona à fiscalidade. Seria o
comando do art. 145, § 1º combinado com o art. 156, § 1º da Constituição de 1988
(BRASIL, 1988), em sua redação anterior. Entendeu o Ministro que a função social da
propriedade exigida pelo dispositivo restaria atendida pelo critério distributivo que
caracterizaria a progressividade no caso. Já a progressividade do IPTU prevista no art.
182, § 4º da Constituição de 1988 (BRASIL, 1988), teria o viés extrafiscal, pois é
destinada a induzir o contribuinte a conferir a função social à sua propriedade, buscando
o desenvolvimento urbano.
A distinção relatada é fundamental, como já exposto, mas discordamos da
classificação da progressividade estatuída pelo texto anterior do art. 156, § 1º da
88 No texto atual do art. 156, § 1º da Constituição de 1988, modificado pela Emenda nº 29/2000, foi expressamente prevista a possibilidade de progressividade fiscal para o IPTU: “Sem prejuízo da progressividade no tempo a que se refere o art. 182, § 4º, inciso II, o imposto previsto no inciso I poderá: I – ser progressivo em razão do valor do imóvel (...).” (BRASIL, 1988).
111
Constituição de 1988 como fiscal. O texto do dispositivo relacionava a progressividade
à função social da propriedade, restando flagrante a função da norma de induzir o
comportamento do contribuinte nesse sentido afirmativo. Embora o ministro tenha
considerado a relação da progressividade em tela com o fim de incentivar o
cumprimento da função social da propriedade, declinou-a com a natureza fiscal, o que é
contraditório. Outro equívoco seria o de considerar a função distributiva da carga
tributária como apta a caracterizar a função social da propriedade preconizada pelo art.
156, § 1º da Constituição de 1988. Tal função (distributiva) é ligada à justiça fiscal do
sistema tributário, que assim, estaria relacionada à própria fiscalidade, como já foi
exposto. A progressividade de natureza fiscal seria embasada no art. 145, § 1º da
Constituição de 1988.
Quanto à capacidade contributiva e os seus desdobramentos quanto à
fiscalidade e à extrafiscalidade, entendemos correto o entendimento exposto no voto do
Ministro Carlos Velloso, no sentido de que a capacidade contributiva é elemento da
fiscalidade e pode ser empregada também nos impostos reais, incluindo o IPTU. A
capacidade contributiva relaciona-se à função distributiva do tributo e esta não é
elemento que caracteriza a extrafiscalidade simplesmente por ser medida de justiça
fiscal. A progressividade das alíquotas, como forma de agravamento do tributo, só
caracterizará a extrafiscalidade se houver indução de comportamentos visando à
consecução da finalidade legítima prestigiada pela norma. Como salientado em nota
anterior, a redação atual do art. 156, § 1º da Constituição de 1988, após o advento da
Emenda nº 29/2000, prevê expressamente a possibilidade de progressividade fiscal do
tributo em exame.
4.3.6 Imunidades
As imunidades que possuem função fiscal foram tratadas na seção 3. Trata-se,
neste momento, das que apresentam, exclusivamente, ou de forma simultânea, a função
extrafiscal.
A imunidade prevista na alínea “c” do inciso IV do art. 150 da Constituição de
1988 contempla a renda, patrimônio e serviços dos partidos políticos (incluindo suas
fundações), das entidades sociais dos trabalhadores, das instituições de educação e de
assistência social sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei.
112
Em relação aos partidos políticos, como decorrência do princípio democrático, é
assegurado pelo art. 17 do texto constitucional a liberdade de sua criação (fusão,
incorporação e extinção) e a pluralidade partidária, tendo a imunidade a função de
assegurar a proteção referida, desembaraçando da tributação os referidos institutos
como forma de assegurar a sua existência e induzir a criação e funcionamento efetivo
das entidades partidárias.
No que concerne aos sindicatos – apenas dos trabalhadores - a imunidade
considerou a hipossuficiência da classe, que ao lado dos sindicatos patronais, foi objeto
de previsão no rol dos direitos sociais – art. 8º da Constituição de 1988, cuja proteção se
perfaz. A importância do sindicalismo, aliás, levou à instituição da contribuição especial
sobre as categorias profissionais ou econômicas (art. 149 da Constituição de 1988),
sendo perceptível o objetivo de fortalecimento da classe através da indução à criação
dos órgãos corporativos.
A imunidade prevista na alínea “c” do inciso IV do art. 150 da Constituição de
1988 também contempla a renda, patrimônio e serviços das instituições de educação e
de assistência social sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei e além da função
fiscal salientada na seção própria, tem função extrafiscal.
Razão assiste à Vasconcellos Neto e Cruz ao considerarem que a imunidade, na
mesma medida, incentiva a cidadania ativa, induzindo a sociedade civil a assumir o
compromisso de cooperação na realização dos direitos fundamentais de educação e
assistência social, ao lado do Estado:
Aprofundando a análise: segundo a dicção constitucional, tal imunidade não objetiva somente a concretização do mínimo existencial a que fazem jus os indivíduos carentes e necessitados — destinatários mediatos do referido instituto; tampouco busca preservar apenas a incolumidade tributária de um empreendimento que em nada manifesta a existência de capacidade contributiva (CRFB, art. 145, §1º, c/c art. 150, IV). Para além disso, a imunidade das instituições de assistência social sem finalidade lucrativa também se destina, em larga medida, adjutoriamente, a fomentar a prática virtuosa da cidadania ativa (CRFB, art. 1º, II, c/c art. 5º, XVII e XVIII), assegurando que os membros de nossa comunidade política — destinatários imediatos da mesma imunidade — possam gozar/cumprir, eles mesmos, autônoma e diretamente, sem os naturais embargos de natureza tributária, o seu direito/dever fundamental de solidariedade para com os seus concidadãos menos afortunados (VASCONCELLOS NETO; CRUZ, 2009, p.26-27).
Contudo, quanto à justificativa fiscal, não se concorda que essa visa à proteção
do mínimo existencial “dos indivíduos carentes e necessitados”. O benefício fiscal deve
113
ser voltado aos contribuintes ou terceiros que tenham ligação direta com o fato gerador
do tributo. O fato de os desamparados socialmente serem os reais beneficiários dos
serviços prestados pelas entidades sociais não justifica de forma adequada a concessão
do benefício fiscal que parece mais se adequar à capacidade contributiva das próprias
instituições sociais, conforme explicitado na seção 3.
O art. 150, VI, “d” da Constituição de 1988 trata da imunidade dos livros,
jornais, periódicos e papel destinado à sua impressão. A imunidade em questão visa a
proteger e incentivar a manifestação de pensamento, a liberdade de expressão, assim
como o estímulo à educação, informação e cultura.
O Supremo Tribunal Federal vem assim entendendo e interpretando o
dispositivo de forma a ampliar a sua abrangência. “(...) estão abrangidos pela
imunidade, além dos livros propriamente ditos, as apostilas (vide RE 183.403, DJ
04.05.2001), as listas telefônicas (RE 101.441, DJ 19.09.1988) (...)” (GODOI, 2006, p.
50).
No referido RE nº 183.403 (STF, DJ 04.05.2001), o voto de lavra do Ministro
Relator, Marco Aurélio, apontou que:
[...] o objetivo maior do preceito constitucional realmente não é outro senão o estímulo, em si, à cultura, pouco importando que, no preceito, não se aluda, de forma expressa, a apostilas que, em última análise, podem ser tidas como a simplificação de um livro. Abandone-se a interpretação meramente verbal, gramatical: embora seduzindo, por ser a mais fácil, deve ser observada em conjunto com métodos mais seguros, como é o teleológico. O reconhecimento, pela Corte de origem, do conteúdo de veiculação de mensagem de comunicação, de pensamento em contexto de cultura, é suficiente a dizer-se da fidelidade do órgão julgador de origem à Carta da República.
No RE nº 221.239 (STF, DJ 06.08.2004), fora reconhecida a incidência da
imunidade para os álbuns de figurinhas, sendo fundamento do voto da relatora,
Ministra Ellen Gracie, a impossibilidade de restrição do conteúdo da imunidade “por
força de um juízo subjetivo acerca da qualidade cultural ou do valor pedagógico de
uma publicação destinada ao público infanto-juvenil.” Entende a Corte Suprema que,
além do papel, outros insumos utilizados no processo de confeccção do objeto da
imunidade também são abrangidos pelo seu conteúdo. A Súmula 657 determina que
“a imunidade prevista no art. 150, VI, d da CF abrange os filmes e papéis
fotográficos necessários à publicação de jornais e periódicos.” No RE nº 87.049
114
(STF, DJ 01.09.1978), fora estendida a imunidade aos serviços prestados pela
empresa jornalística na transmissão de anúncios e de propaganda.
Embora vislumbre-se algum excesso na interpretação da imunidade em
questão, o que poderia ferir o princípio da igualdade, discorda-se de Torres (2007, p.
77) ao considerar a imunidade como privilégio constitucional e, em relação aos
jornais, um privilégio “odioso”. Os bens jurídicos amparados pela imunidade em
questão têm fundamento constitucional e são dignos da proteção que lhes é
assegurada, especialmente em um país em desenvolvimento como o Brasil, em que o
acesso à informação e à cultura são importantes instrumentos para a evolução do
quadro social no país.
4.4 Legitimidade
Neste estudo, compreende-se que a legitimidade das normas extrafiscais deve ser
apurada a partir dos fins buscados pela norma, que devem ter conformidade com o
ordenamento jurídico, pela eficácia da norma para induzir comportamentos e produzir
resultados quanto ao bem jurídico prestigiado e pela razoabilidade dos critérios eleitos
pela norma a fim de justificar o tributo sob o prisma da igualdade, sendo esse último
ponto analisado a partir da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
4.4.1 Conformidade dos fins buscados pelas normas extrafiscais com o ordenamento
jurídico: análise dos chamados impostos moralizadores
Ao se mencionarem os fins buscados pela norma extrafiscal, poder-se-ia
questionar sobre a eventual contradição com o critério funcional, escolhido para a
caracterização da extrafiscalidade, ao invés do critério que buscaria a finalidade da
norma. Adverte-se que não há contradição, já que a norma extrafiscal, obviamente, visa
a um fim determinado, prestigiado pelo ordenamento jurídico. O critério funcional
apenas vai mais além, ao determinar a possibilidade da efetiva realização daquele fim
almejado pela norma.
A indução de comportamentos que a norma é capaz de realizar tem por objetivo
implementar um bem relevante segundo o ordenamento jurídico. Na prática, há que se
115
analisar a legitimidade da escolha desses fins e quais os fins possíveis para fundamentar
a instituição da norma indutora de comportamentos.
A legitimação das normas extrafiscais não se encontra na simples possibilidade
de ser apta a produzir resultados indutores, que influenciem de alguma forma a conduta
dos contribuintes ou terceiros em busca de um fim. Este fim prestigiado deve estar em
consonância com os ditames do ordenamento jurídico e, especialmente, da Constituição,
com o que se conformaria a diminuição da carga tributária ou o seu agravamento. Como
pontua Palao Taboada (2004, p. 83), os fins visados pela norma extrafiscal (diversos da
arrecadação), devem ser “constitucionalmente reconhecidos e tutelados”.
Sobre o fim que pode ser prestigiado pela extrafiscalidade, interessante a análise
da tese de doutorado de Ives Gandra Martins (2000). Ao traçar uma teoria sobre a
imposição tributária, o autor considera o tributo como norma de rejeição social, fruto do
poder impositivo do Estado, sendo a carga tributária “desmedida e injusta” diante da
negligência e desvios do Poder Executivo na prestação dos serviços públicos. Após
delinear a ilicitude moral e a jurídica, sendo aquela a proveniente do direito natural e
esta a positivada no ordenamento jurídico, o autor entende que o ilícito moral, mesmo
não sendo jurídico [o autor afirma que deveria sempre haver a correlação entre ambos, o
contrário sinalizando “Estado, Nação e povo decadente” (p. 296)], deve ser evitado pelo
ordenamento jurídico. O direito tributário atuaria, neste sentido, desincentivando
aqueles comportamentos amorais e ilícitos através de exações mais gravosas: “a
imposição fiscal poderá tornar-se grande instrumento de moralização de costumes e de
vedação legal para o exercício de atividades indesejáveis” (MARTINS, 2000, p. 313). O
autor cita o exemplo da exibição de filmes e fotos pornográficos e das casas noturnas
(taxi-dancings).
Não há dúvidas sobre a viabilidadade fática da imposição tributária gravosa
para desincentivar comportamentos socialmente indesejados, pelo que parece propor
Martins o uso de tributos de forma extrafiscal. Contudo, há que se analisar a proposta
sobre dois enfoques. O primeiro, se é possível o uso da extrafiscalidade em se tratando
de condutas ilícitas; o segundo, se os fins propostos pelo autor, de “moralização dos
costumes”, seriam aceitos pelo ordenamento jurídico para tratar de forma diferenciada
os contribuintes através da tributação.
Como salientado na seção 4.2.3, sendo ilícita a conduta que se pretende
desincentivar com a norma, não deve servir o tributo como meio de evitá-la, já que não
resta outra opção ao contribuinte senão a abstenção de praticar a conduta. O raciocínio
116
desenvolvido por Martins (2000) não passaria pelo juízo de adequação ao art. 3º do
CTN, o qual define expressamente que o tributo não se presta à punição do ato ilícito. O
que, por vezes, interessa ao campo tributário, é a consequência da prática ilícita, se o
resultado da conduta amoldar-se a um dos fatos geradores das exações previstas em lei.
Neste sentido, a renda proveniente de atividades ilícitas deve ser objeto de tributação
pela União, como se dá no clássico exemplo do tráfico de drogas. A receita advinda
dessa atividade é fato gerador do imposto de renda. Não se poderia, contudo, pretender
o Estado a cobrança do ICMS pela circulação das mercadorias objeto da mercância
proibida.
Assim, se fosse caracterizada como ilícito jurídico a exibição de fotos ou
filmes pornográficos (exemplos concebidos pelo autor), por constituírem forma indireta
de se praticar o meretrício, considerado ilícito pelo Código Penal (é o que defende
Martins), entende-se neste trabalho que não se poderia cobrar ISSQN mais gravoso
sobre a atividade, como sugere o autor, por ferir a própria concepção jurídica do tributo,
mas sim, multa.
A segunda análise que se faz necessária quanto à proposta de Martins (2000) e
a que mais interessa neste tópico, é se a “moralização dos costumes” seria um fim aceito
pelo ordenamento jurídico para justificar a norma tributária indutora de
comportamentos.
A primeira dificuldade que se põe é a própria relação entre direito e moral.
Sem pretender aprofundar o tema nesta curta exposição, vale lembrar que atualmente
não se considera a cisão total e absoluta entre ambos, podendo-se afirmar, por outro
lado, que longe está a fusão de direito e moral.
A dificuldade na obtenção de uma moral coletiva é atestada por diversos
autores, das mais variadas épocas, sendo difícil, senão impossível, concluir que a
“moralização dos costumes” sugerida por Martins (2000) encontraria amparo em um
conceito de moral que daria respaldo à coerção estatal89.
89 Sobre a relação entre moral e direito, verifica-se que houve momento em que se considerou a total separação entre o conteúdo de ambos, o que pode ser observado através do pensamento de Weber. Posteriormente, direito e moral passaram a ter uma relação de dependência, sendo a fundamentação do direito, obrigatoriamente, baseada na moral. É o pensamento de Kant. Em uma visão pós-moderna, explicitada nesta seção, direito e moral passaram à uma relação de cooriginariedade. Para uma melhor compreensão dos paradigmas, passa-se a explicitar os fundamentos das duas primeiras fases. A última fase será tratada na nota seguinte. Para Weber, moral e direito seriam totalmente dissociáveis, sendo a primeira “mecanismo de enfraquecimento” do Direito; se aplicada, conduziria à irracionalidade deste, prejudicando a sua autonomia científica. Segundo Cruz, “para Weber, o direito teria uma racionalidade neutra no tocante aos aspectos da moralidade. Essa racionalidade seria composta de três aspectos: a) sistematicidade conceitual;
117
Moreira (2004), avaliando o pensamento de Habermas, explicita o atual
entendimento do autor alemão sobre a relação de cooriginariedade entre direito e moral,
substituindo a relação de dependência entre os institutos defendida por Kant, raciocínio
com o qual se coaduna o presente estudo:
Ora, segundo a teoria discursiva do Direito, não há um atrelamento do Direito à Moral, mas ambos originam-se simultaneamente. Apenas pelo procedimento é que se dá o entrelaçamento dessas esferas. Isso vai significar um abalo na estrutura da ética do discurso. Habermas vai rejeitar o atrelamento em favor de uma relação de cooriginariedade. Com essa relação de cooriginariedade, há uma mudança de perspectiva no modo de conceber sua teoria: primeiro, o Direito passa a assumir o papel principal na resolução dos problemas de integração social. É por intermédio do Direito que são institucionalizadas as aspirações, vontades e opiniões dos cidadãos. Nessa institucionalização, as razões que guiam as ações individuais, e que são o cerne da razão prática, adquirem a forma de um procedimento democrático, isto é, sua normatividade deixa de ser imediata para tornar-se mediata. Em uma palavra, só adquirem obrigatoriedade as questões que puderem resistir aos questionamentos do processo democrático; segundo, a recusa dessa normatividade imediata em favor de uma normatividade procedimental significa que nós não temos uma esfera moral para orientar nossas ações. A resolução de nossos problemas desliga-se da tradição para atrelar-se ao procedimento discursivo, onde apenas a normatividade do melhor argumento adquire obrigatoriedade (2004, p. 194).
Diante da complexidade e pluralidade das sociedades atuais, da
heterogeneidade das visões éticas, do multiculturalismo, do respeito às diferenças, do
direito à privacidade, à individualidade, à liberdade de crença, à liberdade de profissão,
de expressão artística e cultural, de iniciativa e tantos outros direitos e garantias
fundamentais do indivíduo, parece difícil sustentar como fim legítimo da tributação a
“moralização dos costumes”, especialmente se ligado a viés religioso conservador,
como se houvesse um padrão axiológico homogêneo aplicável.
b) a base do direito seria um conjunto de normas que garantiriam as liberdades negativas em face do Estado e c) institucionalização de procedimentos que permitiriam um grau de previsibilidade das relações sociais regulamentadas. Em outras palavras, a neutralidade do direito se sustentaria exclusivamente nos seus aspectos formais. (...) E a racionalidade da ciência jurídica centrar-se-ia exclusivamente no trabalho reconstrutivo e analítico dos conceitos” (2004, p. 211). É o primeiro paradigma. No segundo paradigma, Kant, o seu principal nome, parte do conceito fundamental da lei da liberdade moral e extrai dela as leis jurídicas, seguindo o caminho da redução. “A teoria moral fornece os conceitos superiores: vontade e arbítrio, ação e mola impulsionadora, dever e inclinação, lei e legislação, que servem inicialmente para a determinação do agir e do julgar moral. Na doutrina do direito, esses conceitos fundamentais da norma são reduzidos a três dimensões. Segundo Kant, o conceito de direito não se refere primariamente à vontade livre, mas ao arbítrio dos destinatários; abrange a relação externa de uma pessoa com outra e recebe a autorização para a coerção que um está autorizado a usar contra o outro, em caso de abuso. O princípio do direito limita o princípio da moral sob esses três pontos de vista. A partir dessa limitação, a legislação moral reflete-se na jurídica, a moralidade na legalidade, os deveres éticos nos deveres jurídicos etc” (Habermas, Direito e Democracia, vol. I, 2003, p. 140, grifo nosso).
118
Como bem enfatiza Cruz (2006, p. 131), “na modernidade, o consenso
valorativo material de formas específicas de vida reduz-se ao campo da ética, mas não
tem condição de, por si só, racionalmente, fundamentar a praxis jurídica90.
Neste sentido, o agravamento da carga tributária para os motéis, outro caso
defendido por Martins (2000) se revela ilegítimo. Segundo o autor, a defesa pela
tributação sugerida se dá pelo fato de tais estabelecimentos servirem “apenas para dar
cobertura legal às relações sexuais ilegítimas”, como a exploração do adultério, da
prostituição, da corrupção da juventude ou para a exploração do lenocínio. Tal juízo de
valor não parece adequado ao paradigma do Estado Democrático de Direito,
confrontando a liberdade do indivíduo, inclusive sexual, o direito ao lazer e a liberdade
de iniciativa dos estabelecimentos que exploram a atividade. Seguindo o raciocínio do
autor, entender-se-ia possível a instituição de benefício fiscal para os indivíduos que
frequentassem cultos religiosos, ou para as empresas que promovessem cultos em seu
estabelecimento. Tal fim não estaria a contrariar a liberdade de culto prevista na
Constituição de 1988, que contempla, inclusive, a liberdade de não ter crença?
Sobre a justificativa moral para embasar tributos extrafiscais, Mateo (1983)
argumenta que no ordenamento espanhol a Lei de Regime Local de 1955 permitia à
Fazenda local a utilização de exações para “correção dos costumes”. O autor analisa o
tributo cobrado sobre a exibição de filmes nas “salas X”, instituída pela Lei 1/1982, em
seu artigo 3º91. Critica, a princípio, a qualificação conferida pela lei como exação
“parafiscal”. A afetação do produto arrecadado (como em geral se justifica a escolha da
terminologia) não seria suficiente para assim defini-la, mencionando o autor que “uma
vez mais o legislador recorre à ‘gaveta do costureiro’ da denominada parafiscalidade
para estabelecer uma nova figura tributária” (MATEO, 1983, p. 353, tradução nossa)92.
Admite o autor que se trata de tributo extrafiscal.
Analisando a exação enquanto medida para desincentivar a exibição de filmes X,
Mateo pondera sobre a efetividade da exação para atingir o fim buscado e o grau de
conformidade com direitos fundamentais, como a liberdade de expressão. Quanto à
90 Segundo Cruz, na proposta de Habermas, “a moralidade deve transcender as diversas visões de mundo, com enunciados derivados de um diálogo/discurso público e racional, incluindo tanto concepções individuais e coletivas sobre a noção de vida digna” (CRUZ, 2004, p. 213), o que é encontrado na moral pós-convencional, em que “os indivíduos, mesmo detentores de uma herança cultural, conseguem identificar os valores que formam sua identidade e passam a ter juízos críticos sobre os mesmos, por meio do reconhecimento dos direitos individuais e de princípios universais” (CRUZ, 2006, p. 135). 91 O dispositivo foi revogado pela Lei 30/1985, de 2 de agosto. 92 Una vez más nuestro legislador recurre al ‘cajón de sastre’ de la denominada ‘parafiscalidad’ para establecer una nueva figura tributaria.
119
primeira questão, dúvidas há sobre a quem o legislador visou a desestimular, se o
espectador contribuinte ou o empresário, já que a base de cálculo do tributo é a renda
adquirida em função da exibição e dos preços. Na segunda questão, o autor questiona se
é possível utilizar o tributo como forma de “corrigir uma tendência considerada imoral”
e conclui que “não parece próprio dos tempos atuais, nem sequer dos de 1955, recorrer à
instituição tributária, forçando seu próprio fundamento, para supostamente ordenar a
moralidade dos cidadãos.” (MATEO, 1983, p. 347, tradução nossa)93. Neste caso, o
tributo, embora apresente formalmente a natureza tributária, não se adequaria ao
conceito de tributo por desconsiderar o princípio da igualdade (que justificaria as
normas extrafiscais) e da capacidade contributiva (que justificaria as normas fiscais).
Citando Albiñana, Mateo explicita a natureza da exação, que se assemelha a de “multas
sem infração prévia, pois cumprem funções corretivas diminuindo, moderando ou
obstaculizando uma determinada atividade ou conduta humana.” (MATEO, 1983, p.
363, tradução nossa)94. E assim, conclui que:
Ante tão clara conclusão, só nos resta reiterar nossa posição contrária à sanção de condutas declaradas legais e que não prejudicam a esfera jurídica alheia, nossas reservas a respeito da efetividade da medida no cumprimento das funções indicadas e, enfim, nossa objeção ao fato de que uma instituição com as características e o fundamento da tributária, quando já parece totalmente superado o velho preconceito de sua odiosidade, seja utilizada com finalidades repressivas (MATEO, 1983, p. 363, tradução nossa)95.
Godoi explicita, quanto ao assunto, que:
Outro direito fundamental que costuma ser violado pelos impostos extrafiscais é o da livre expressão de pensamentos, ideias e opiniões mediante qualquer meio de reprodução (art. 20 CE). Com efeito, os impropriamente chamados “impostos de ordenamento moral” costumam criar exações sobre determinadas atividades (exibição de certos filmes, publicações com determinado conteúdo) que, além de promover um uso inadequado do instituto do tributo como meio de sanção, violam o conteúdo plural e respeitoso das diferenças de moralidade individual que é da essência
93 No parece propio de los tiempos actuales, y ni siquiera de los de 1955, recurrir a la instituición tributaria, forzando su propio fundamento, para ordenar supuestamente la moralidad de los ciudadanos. 94 [...] bien puede afirmarse que tales tributos no fiscales no son impuestos y que podrían ser asimilados a ‘multas’ sin infracción previa, pues cumplen funciones correctoras disminuyendo, moderando u obstaculizando una determinada actividad o conducta humana. 95 Ante tan clara conclusión, solo nos resta reiterar nuestra posición contraria a la sanción de conductas declaradas legales y que no dañan la esfera jurídica ajena, nuestras reservas respecto a la efectividad de la medida en el cumplimiento de las indicadas funciones y, en fin, nuestro rechazo al hecho de que una instituicíon con las características y el fundamento de la tributaria, cuando ya parece totalmente superado el viejo prejuicio de su odiosidad, sea utilizada con finalidades represivas.
120
do Estado Democrático e Social de Direito (GODOI, 2004, 251-252, tradução nossa)96.
Sendo assim, conclui-se que os fins protegidos pela norma tributária indutora
devem ser legítimos, amparados pelos valores adjacentes às normas constitucionais, sob
pena de eivá-la de inconstitucionalidade e, na linha de Mateo (1983), desviarem a
natureza tributária da exação. Os analisados “impostos para moralização dos costumes”
não passariam no teste de legitimidade pois estariam baseados em uma espécie de ética
solipsista, não se adequando à complexidade das sociedades modernas e ao paradigma
democrático.
4.4.2 A questão da função extrafiscal como aptidão para induzir comportamentos e
produzir resultados quanto ao bem jurídico prestigiado
Como já salientado no decorrer desta pesquisa, a norma extrafiscal deve ser apta
para atingir os fins visados pelo incentivo ou agravamento da carga tributária. Trata-se
do cerne do critério funcional, eleito como adequado a distinguir as funções fiscais das
extrafiscais.
Questionamento relevante no que concerne à aplicabilidade das normas
extrafiscais situa-se justamente neste aspecto: a efetiva possibilidade de induzir
comportamentos que levarão ao alcance dos fins buscados pela norma. Verificado,
ainda no plano abstrato ou no plano concreto, que a norma não é capaz de interferir ou
interfere insatisfatoriamente no bem jurídico que visou a proteger, qual a solução? Seria
a norma inconstitucional?
Herrera Molina (2000) enfatiza a necessidade do “controle de idoneidade” das
normas indutoras, tratando justamente desse aspecto em seu estudo sobre as normas
ambientais: “Em primeiro lugar, os tributos ou elementos tributários ambientais hão de
ser idôneos para alcançar seu objetivo. Ou seja, hão de constituir um verdadeiro
incentivo para a proteção do meio ambiente” (2000, p. 166, tradução nossa)97. Assinala,
96 Otro derecho fundamental que suele ser conculcado por los impuestos extrafiscales es el de la libre expresión de pensamientos, ideas y opiniones mediante cualquier medio de reproducción (art. 20 CE). En efecto, los impropiamente llamados “impuestos de ordenamiento moral” suelen crear exacciones sobre determinadas actividades (exhibición de ciertas películas, publicaciones con determinado contenido) que, además de promover un uso inadecuado del instituto del tributo como medio de sanción, violan el contenido plural y respetuoso de las diferencias de moralidad individual que es de la esencia del Estado democrático y social de Derecho. 97 “En primer término, los tributos o elementos tributarios ambientales han de ser idóneos para alcanzar su objetivo. Es decir, han de constituir un verdadero incentivo para la protección del medio ambiente (...).”
121
como consequência do raciocínio, a inconstitucionalidade do imposto balear sobre
instalações poluidoras na Espanha, que tem por fato gerador o exercício de certas
atividades poluentes e por base imponível o volume de faturamento, sendo certo que
qualquer esforço do contribuinte para afetar positivamente o meio ambiente não refletirá
em sua carga tributária.
Ferraz Júnior (2008, p. 167), tratando da validade das normas jurídicas em geral,
conclui que “a ineficácia de uma norma, a ausência de um mínimo de efetividade não
altera sua validade, pois a norma editada entrou para o ordenamento, ainda que nunca
tivesse produzido efeitos”. Ele entende que se inexistem as questões de fato necessárias
à efetividade ou à eficácia social da norma, restará alterada a sua produção de efeitos,
não a sua validade. Argumenta, por outro lado, que a questão da eficácia social ou
efetividade da norma “não se reduz à sua obediência”, citando o exemplo das normas
programáticas que, muitas vezes, não são “obedecidas” (acrescenta-se, especialmente
pelo Poder Legislativo e Executivo), mas que são eficazes socialmente no sentido de
estatuírem “prescrições reclamadas ideologicamente pela sociedade”98.
Entende-se que se a norma não é capaz, de forma alguma, de modificar a
situação fática que justifica a sua existência, certo é que deve ser revista a sua
racionalidade pelo detentor da competência material. Sendo norma de minoração da
carga tributária, não haverá respaldo para a diferenciação com os demais contribuintes,
ferindo o princípio da igualdade e passando ao campo da arbitrariedade. Sendo norma
de agravamento da carga tributária, não haverá justificativa para o excesso, razão pela
98 Neste ponto, o autor cita o exemplo do salário mínimo, que pelo art. 7º, IV da Constituição da República, deve ter valor adequado a atender às necessidades vitais do trabalhador e de sua família, o que não é observado ao verificar-se a realidade do país. Curiosamente, porém, o autor adverte, quanto ao preceito, que “se atendido, certamente levaria a um tumulto nas relações econômico-sociais; mas a norma constitucional produz, não obstante isso, um efeito ideológico simbólico: a Constituição garante salário mínimo!” (2008, p. 168). Não se coaduna com esta espécie de eficácia artificial. As normas programáticas, como visto na seção 2, possuem, sim, forma de eficácia própria, sendo o maior desafio para a resolução desse problema o alcance de meios exequíveis para compelir o legislativo e o executivo a conferirem a eficácia plena a tais normas. No ordenamento jurídico brasileiro, o mandado de injunção (art. 5º, LXXI da Constituição de 1988) é ainda instrumento insatisfatório para a implementação dos direitos constitucionais - inaplicáveis em razão da omissão de norma regulamentadora pelo Poder Público - não obstante a evolução (morosa) da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. A recente Lei nº 12.083/2009, ao regulamentar a Ação Declaratória de Inconstitucionalidade por omissão, se ateve especialmente aos aspectos formais do procedimento, ao invés de buscar assegurar o alcance do seu objetivo maior, que é a edição da norma ausente no ordenamento jurídico pelo órgão competente, de forma a ter eficácia erga omnes. A lei contudo previu algumas medidas interessantes para a valorização da ação em comento, como a possibilidade de medidas cautelares, a suspensão do ato legislativo eivado de omissão parcial, suspensão dos processos nas instâncias ordinárias que tratarem do tema e, especialmente, a possibilidade de “adoção de outra providência a ser fixada pelo tribunal”, como a aplicação da legislação análoga para resolver a lide, providência que já têm sido realizada nos mandados de injunção.
122
qual ferirá o direito de propriedade do contribuinte e também o princípio da igualdade.
Tais problemas devem ser corrigidos pelo administrador (quando de sua competência,
caso dos tributos regulatórios econômicos) e pelo legislador (legítimo detentor da
prática legislativa), que devem adequar ou estirpar do ordenamento as normas jurídicas
arbitrárias. Caso não o sejam, não pode ser a norma aplicada de forma a corromper a
ordem jurídica, pelo que o Judiciário deve intervir, quando provocado, para adequá-la
ou afastá-la do direito positivo, lembrando-se de que o ilícito não é parâmetro para a
igualdade99.
Passemos ao estudo de alguns exemplos práticos.
Gouvêa (2006) menciona os limites lógicos da tributação extrafiscal100, que se
relacionam à imprestabilidade da norma extrafiscal para atingir o fim pretendido. O
autor menciona diversos casos em que seria vedada a utilização da extrafiscalidade
como, por exemplo, as isenções nos tributos plurifásicos sobre o consumo. O benefício
só cumpriria o objetivo de redução de preços se concedido no final da cadeia produtiva
ou, se concedido nas operações intermediárias, de forma que se preservasse o direito de
crédito ao adquirente.
O raciocínio é correto se se considera que o objetivo da norma extrafiscal é a
indução do comportamento do contribuinte de fato, ou seja, estimular a redução de
preços e o aumento do consumo de certo bem pelo consumidor, como ademais, ocorreu
neste país no ano de 2009, através de várias medidas de renúncia fiscal. Em meio à crise
mundial, o governo federal reduziu à “alíquota zero” o IPI aos setores da construção
civil, de eletrodomésticos (linha branca) e automotivo, objetivando o consumo101. Visou
com tal medida a incrementar as vendas em setores diretamente atingidos pela crise
(embora critica-se a escolha dos setores prestigiados pelas medidas, que pode não ser
totalmente justificada considerando o princípio da igualdade), impedir a paralisação das
atividades com o encerramento de empresas e evitar as demissões em massa.
99 Conforme preconizado pela doutrina e, ainda, reconhecido, há muito, pelo Supremo Tribunal Federal (STF, RE nº 12.782, DJ 15.04.52). 100 Além desse limite à extrafiscalidade, o autor elenca os jurídico-normativos (embora considere a extrafiscalidade como um princípio, os instrumentos de veiculação da norma extrafiscal se sujeitam aos limites das regras jurídicas, por exemplo, regras de competência e técnica legislativa), limites lógicos (que se referem à imprestabilidade da norma extrafiscal para atingir o fim por ela visado) e limites atinentes à eficácia (análise da realidade sócioeconômica, que determinará a repercussão das medidas extrafiscais quanto aos sujeitos passivos e ao mercado, interferindo na eficácia do objetivo visado pela norma). 101 Decreto nº 6.743/2009 (setor automotivo); Decreto nº 6.823/2009 (construção civil); Decreto nº 6.825/ 2009 (eletrodomésticos da linha branca); Decreto nº 6.890/2009 e Decreto nº 6.996/2009.
123
Nesse sentido, o objetivo da norma extrafiscal pode não ser o de beneficiar o
consumidor de fato, mas o de direito. Outro exemplo seria incentivar um dos ramos
envolvidos nas cadeias anteriores ao consumo final, como o processo produtivo ou
industrial de produtos em escassez no mercado, pelo que a norma tributária de incentivo
seria apta a cumprir o seu objetivo.
Outro exemplo fornecido por Gouvêa é a incompatibilidade da utilização de
normas extrafiscais por meio dos tributos diretos para afetar os preços do mercado e, no
mesmo passo, a utilização de normas extrafiscais por meio de tributos indiretos para
redistribuir renda e riqueza. Em que pese a tarefa de redistribuição de rendas refletir a
função fiscal do tributo, como salientado na seção 3, a conclusão do autor parece ser
procedente.
Gouvêa ainda afirma não seriam veículo apto ao conteúdo extrafiscal os
impostos extraordinários, empréstimos compulsórios e contribuições de intervenção
sobre o domínio econômico se estas espécies tributárias destinassem os seus recursos a
projetos culturais, por exemplo. Isto porque que seus fins estariam previamente
vinculados pelo constituinte. Já foi explicitado neste trabalho que a extrafiscalidade não
se atesta pela destinação do produto arrecadado, o que per se, confrontaria o raciocínio
do autor, especialmente no que concerne às contribuições sobre o domínio
econômico102. O empréstimo compulsório e o imposto extraordinário de guerra não
tiveram o seu fato gerador explicitado pelo constituinte. A depender da escolha do
legislador, nada impediria que prestigiassem um objetivo lícito através da indução de
comportamentos dos contribuintes, ao lado da prévia e sabida destinação das receitas
arrecadadas.
Questão interessante é a do uso dos tributos ICMS e IPI de forma majorada para
produtos maléficos à saúde, como cigarro e bebidas. De acordo com o “discurso
oficial”, a carga tributária é aumentada com o objetivo de evitar ou minorar o consumo
de produtos caros ao interesse social, o que na prática não se verifica. O preço dos
produtos não é recurso suficiente para se evitar o consumo. Contudo, nesses casos,
estando na esfera da vida privada a decisão pelo consumo, não há como proibir a venda
102 Interessante e atual questão é a da destinação do produto arrecadado com as contribuições no ordenamento jurídico brasileiro. Embora o tema não se relacione à extrafiscalidade (que, como salientado, não se interessa, para sua caracterização, pelo produto arrecadado com a exação) certo é que o fundamental traço de tal espécie tributária, inclusive, que a diferencia das demais, é a destinação do produto arrecadado para finalidade específica. Não obstante tal característica ser delimitada pela própria Constituição, certo é que o Poder Executivo não tem observado tais diretrizes na formulação e execução das políticas fiscais, o que, infelizmente, vem sendo corroborado pelo Supremo Tribunal Federal.
124
dos mesmos103, podendo o meio tributário ser apto para influenciar o comportamento
dos indíviduos. Mas indaga-se: se a majoração não impede o consumo, a ausência dessa
majoração não estaria a estimulá-lo? Por esse motivo entende-se que se encontra
eficácia na norma, que seria aprovada, no entendimento deste estudo, no teste de
legitimidade pelo desestímulo positivo, ainda que pequeno (e ao mesmo tempo, o
desestímulo negativo, no sentido de não estimular), à conduta que é compatível com o
interesse público, neste caso, o interesse social ligado à saúde.
Outro exemplo é dado por Tipke e Lang (2008, p. 136) ao mencionarem o
imposto alemão sobre cães de briga, que consideram inconstitucional por não alcançar
efetivamente o fim de proteger a população, já que por mais que o imposto seja elevado,
não atingirá o seu objetivo pelo alto poder econômico dos que geralmente cultuam a
prática. O autor considera que, neste caso, melhor seria a proibição regulamentar da
criação de cão de briga, que tornaria ilícita a conduta e, então, seria “capaz de proteger
mais eficazmente a população que um imposto de fim social”. Neste caso, concorda-se
que a proibição da criação de cães teria justificação na segurança social e proteção
ambiental da fauna, o que justificaria a relativização do direito à propriedade dos
semoventes através da proibição administrativa, mais eficaz ao fim proposto que a
norma tributária.
Além do ponto acima, relacionado aos limites do poder de tributar, há que se
considerar que o tratamento diferenciado aos tributos extrafiscais não pode levar ao
manuseio dessas exações para fins apenas arrecadatórios, desprezando-se a função que
qualifica a norma jurídica extrafiscal, sob pena de inconstitucionalidade. Não são
incomuns os casos em que o Estado utiliza o tributo “extrafiscal” de forma desviada,
contrariando o ordenamento.
A CPMF foi extinta em dezembro de 2007, o que implicou perda de arrecadação
de 40 bilhões de reais ao ano. Ato contínuo e sem qualquer pudor em deixar clara a
intenção arrecadatória, o governo federal anunciou o aumento do IOF, através dos
Decretos nº 6.339/2008 (BRASIL, 2008) e nº Decreto nº 6.345/2008 (BRASIL, 2008).
Nem é preciso argumentar que a extinção da CPMF não causou qualquer interferência
nas atividades atingidas pelo aumento do IOF, não atendendo, assim, ao objetivo de
103 Mas há como limitar o seu uso. Atualmente, vários estados da federação, como São Paulo (Lei nº 13.541/2009), Rio de Janeiro (Lei nº 5.517/2009) e, recentemente, Minas Gerais (Lei nº 18.552/2009, que entrará em vigor em 120 dias da publicação) proibiram o fumo em ambientes coletivos fechados, públicos ou privados (com exceção de Minas Gerais, onde são permitidos os “fumódromos”). A proibição de fumar em locais públicos se deu em momento bem anterior, com a Lei Federal nº 9.294/1996. São medidas que, igualmente, visam à proteção da saúde pública no contexto administrativo sancionatório.
125
regulação econômica a que se presta esse último tributo, que deve ter reflexos na
política monetária, cambial ou fiscal (art. 1º da Lei nº 8.894/1994, com a devida e
melhor interpretação à luz da Constituição de 1988) (BRASIL, 1994).
Novamente, em meio à crise financeira que assola o planeta desde 2008, foi
anunciada a redução do IPI para o mercado de veículos, construção civil e
eletrodomésticos, através dos decretos já citados. Em contrapartida, foi aumentado o IPI
e PIS/COFINS sobre o cigarro, no mesmo decreto, demonstrando a utilização da
tributação pretensamente extrafiscal como forma de equilíbrio orçamentário pela perda
de arrecadação com os setores beneficiados pela redução do tributo IPI.
Outra situação prática relacionada ao debate é trazida por Schoueri (1999) e
Gonçalves (1999), quanto ao IOF.
Ao analisar a Lei nº 9.779/1999 (BRASIL, 1999), que trouxe significativas
modificações ao imposto previsto pelo art. 153, IV da Constituição de 1988,
especialmente a possibilidade de ser tributada a operação civil de mútuo entre pessoas
jurídicas e entre pessoa jurídica e pessoa física, Schoueri (1999) traz importantes
considerações sobre a impossibilidade de ser desvirtuada a função do tributo em
questão, tipicamente extrafiscal, para um tributo com fim arrecadatório, à luz da
Constituição de 1988.
O autor menciona que, ao lado do II, IE e IPI, o IOF tem a função regulatória do
mercado e da economia, sendo as exceções às limitações do poder de tributar conferidas
a esses tributos justamente para possibilitar a realização dos fins que pretendeu conferir-
lhes a Carta Magna. A esse respeito, Gonçalves (1999), tratando do mesmo tema,
acrescenta que as justificativas para a flexibilização aos princípios constitucionais da
legalidade e anterioridade “estão, sempre, na circunstância de que o IOC104, dizendo
diretamente com, e instrumentalizando a, (sic) política monetária e financeira do país,
não poderia subordinar-se aos rigores de tais preceitos, sob pena de comprometimento
de sua necessária agilidade, incompatível com as delongas inerentes à democrática
discussão pressuposta pelo processo legislativo. Daí sua natureza ‘extra fiscal,
unanimemente reconhecida pela doutrina e pela jurisprudência’” (1999, p. 180).
Ambos os autores mencionam que a inclusão como fato gerador do imposto de
operações civis de mútuo não se enquadraria na função extrafiscal proposta
constitucionalmente ao tributo regulatório.
104 O autor trata o IOF, no caso específico, como Imposto sobre Operações de Crédito.
126
Gonçalves (1999) pontua que o papel dos recursos objeto de operações de
transferência civil é “irrrelevante para os destinos da política econômica e monetária
nacional, para o controle da moeda, para a vigilância dos mercados financeiros, para
indução e administração da política de crédito etc.” (1999, p. 182), não havendo, com
base no princípio da coerência da Constituição, fundamento para a tributação instituída
pela Lei nº 9.779/1999. Equivocadamente, tentou-se através do instrumento normativo
ampliar o conteúdo da expressão “operações de crédito”, prevista como fato gerador da
exação pelo art. 153, IV da Constituição de 1988.
Schoueri afirma que “o Poder Executivo alterou o perfil constitucional desse
imposto, transformando-o em mais um instrumento de arrecadação de recursos,
afastando-o de sua função de controle de mercado financeiro, o que, todavia, lhe é
totalmente vedado” (1999, p. 218). Conclui o autor105:
Neste sentido, portanto, a Lei nº 9.779/99 é inconstitucional, pois instituiu um IOF incidente sobre operações de mútuo contratadas entre pessoa física e pessoa jurídica, e entre pessoas jurídicas não financeiras, operações estas que em nada se relacionam com o mercado financeiro, gerando incoerência dentro do sistema, na medida que se afasta do perfil constitucional traçado para este imposto” (SCHOUERI, 1999, p. 221).
Nesse caso, o tributo regulatório perdeu a função que a própria Constituição lhe
assegura, razão pela qual se concorda com o fato de que a solução não poderia ser outra
senão a declaração de sua inconstitucionalidade. Não se afasta a hipótese de que tal
espécie de tributos (voltados à regulação econômica) pode ter uma face fiscal
secundária, ao gerar arrecadação aos cofres públicos, porém, desde que seja preservada
a sua identidade de induzir o comportamento do mercado ou de seus participantes.
Assim, é fundamental a percepção da função da norma que se analisa, por parte
dos magistrados. O ideal, que nem sempre se verifica, é que a norma jurídica tenha
clareza ao identificar a função extrafiscal na exação (o que muitas vezes é realizado
propositalmente a fim de camuflar intenções contrárias ao ordenamento jurídico). A
propósito, Tipke e Lang (2008, p. 176) citam decisão do Tribunal Constitucional
Federal alemão em relação à necessidade de clareza quanto à finalidade extrafiscal da
norma, que não pode estar “escondida” em norma de função fiscal:
105 O autor ainda acrescenta, concluindo, que “tratando-se de imposto novo, tem-se que sua instituição jamais poderia ter sido veiculada por lei ordinária (conversão de medida provisória), sendo obrigatória a observância da via complementar, nos termos do art. 154, I da Constituição Federal” (1999, p. 222).
127
O BVerfG [Tribunal Constitucional Federal] exige certeza normativa de Estado de Direito: “dispondo uma lei tributária admissivelmente também objetivos dirigistas, então deve a finalidade dirigista estar tipicamente tracejada com bastante certeza [...]” (BVerfGE 93, 121,148) [Repertório de Jurisprudência 93, 121, 148]. A norma dirigista não pode portanto estar irreconhecível em uma norma de finalidade fiscal, por exemplo, escondida numa trivial norma de avaliação; (BVerfGE 93, 121, 148) [Repertório de Jurisprudência 93, 121, 148]. (2008, p. 176).
4.4.3 Razoabilidade: a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre o controle
de legitimidade da extrafiscalidade face ao princípio da igualdade
No que concerne à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, é comum a
referência ao critério de razoabilidade para avaliar o conteúdo da norma sob o prisma do
princípio da igualdade.
Ao analisar a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal em relação ao
princípio da igualdade e as normas extrafiscais, Ávila (2010, p. 350-351) pontua que:
O Supremo Tribunal Federal decidiu, a respeito de uma diferenciação de tratamento com base em finalidades extrafiscais, que o princípio da igualdade proíbe apenas desigualdades injustificadas.106 Deve haver um fundamento para justificar o tratamento diferenciado. Se houver fundamentos materiais (concretos), o tratamento diferenciado não é arbitrário. As decisões apenas afirmam que deve ser encontrado um fundamento, mas não determinam quando um fundamento é suficiente e como isso pode ser controlado.
E acrescenta: [...] não há, nas decisões do Supremo Tribunal Federal, uma clara divisão entre justificação da desigualdade com base em fins internos (finalidades fiscais) e fins externos (finalidades extrafiscais). Esta compreensão traz consigo dois problemas. Primeiro, a perda da função de controle do princípio da igualdade: enquanto a desigualdade com base em fins internos (finalidades fiscais) deve corresponder à capacidade contributiva dos contribuintes (relação “parâmetro-medida”), a desigualdade com base em fins externos (finalidades extrafiscais) deve ser proporcional (relação “medida-fim-bem jurídico), no sentido de saber se a medida (o meio) é apto para promover a finalidade extrafiscal almejada (relação “meio-fim”), se a medida consiste no meio mais suave relativamente ao direito fundamental à igualdade de tratamento (relação “meio x meio”) e se as vantagens decorrentes da promoção da finalidade extrafiscal estão em relação de proporção com as desvantagens advindas da desigualdade (relação “vantagens x desvantagens). (ÁVILA, 2010, p. 357).
106 RE nº 203.954-3 (STF, DJ 07.02.97). Veja-se p. 4 do acórdão.
128
O autor elenca diversos pontos críticos da jurisprudência da Suprema Corte ao
analisar acórdãos sobre o tema da extrafiscalidade e o seu controle de razoabilidade107.
Em se tratando da extrafiscalidade, além do argumento utilizado pela Corte
Suprema de que “inexiste desigualdade de tratamento quando o pretendido afastamento
da igualdade de tratamento baseia-se na ‘política social e econômica do Estado’”,
acrescenta o autor que “essa espécie de tratamento diferenciado ‘é um ato que envolve
apreciação discricionária”,108 indicando a adoção pelo órgão julgador da tese do
legislador negativo. Ávila (2010) explicita e critica a adoção de tal interpretação pelo
Supremo Tribunal Federal, que se baseia no princípio da separação dos poderes,
impedindo a substituição ou conformação da norma violadora do princípio da igualdade
pelo Poder Judiciário, especialmente em se tratando do controle abstrato. A
autolimitação de competência, na visão do autor, viola a Constituição, a própria
separação entre os poderes (ao conferir poder ilimitado ao Estado para agir sem que
possa ter o devido controle jurisdicional) e, em última ratio, o próprio Estado de
Direito.
O autor aponta a negligência da Suprema Corte quanto ao controle pelo
princípio da proporcionalidade. Menciona que, em que pese o Supremo Tribunal
Federal utilizar o princípio (na dimensão positiva) em diversos casos envolvendo o
controle de constitucionalidade das leis, quanto ao princípio da igualdade, “mantém-se
passivo, observando, sem controle, a atividade do Poder Legislativo” (2010, p. 362). O
órgão “limita-se a controlar a arbitrariedade da utilização de critérios diferenciadores”
(2010, p. 362), avaliando “se a discriminação mantinha uma relação lógica com a
finalidade da distinção estabelecida pela lei” (2010, p. 359). Isso significa que “o
Supremo Tribunal Federal faz um controle de congruência nos casos de desigualdade
baseada em finalidades extrafiscais”, ao passo que “a constitucionalidade da finalidade e
sua ponderação com outras finalidades que o Estado deve atingir deixam de ser
examinadas” (2010, p. 359). Nesse ponto, cita o RE nº 336.134 (DJ 16.05.03), que
107 Deve-se pontuar que alguns dos acórdãos citados pelo autor, como será indicado abaixo, se referem à fiscalidade, na forma em que entendida nesta pesquisa. 108 Neste sentido, o autor cita os seguintes julgados: RE nº 185.802-SP (STF, DJ 04.08.95); RE nº 184.957 (STF, DJ 04.08.95) e RE nº 185.993-SP (STF, DJ 18.08.95), todos julgando constitucional a isenção do IOF instituída pelo Decreto-lei nº 2434/88 para as operações de câmbio ao amparo de guia de importação emitida a partir de 1º de julho de 1988. O RE nº 199.090-PE (STF, DJ 07.03.97) e RE nº 203.308 (STF, DJ 14.03.97), embora tenham como fundamento a discricionariedade do Poder Executivo para proibir a importação de veículos usados, no entendimento deste estudo, não se enquadram em exemplo de extrafiscalidade, já que a medida encontra-se no campo da proibição, fruto do exercício do poder de polícia do Estado, não ensejando a possibilidade de o indivíduo agir em sentido diverso da norma.
129
envolve, na verdade, a análise de tributação fiscal. Porém, é útil para entender o
raciocínio do autor. O julgamento do recurso citado foi no sentido da
“constitucionalidade da norma que previa o direito de compensação da contribuição
social sobre a receita [COFINS] com a contribuição social sobre o lucro líquido [CSLL]
apenas para as empresas lucrativas” (2010, p. 364). Nesse caso, não houve exame pelo
STF do critério escolhido pelo legislador para diferenciar os contribuintes, no caso a
lucratividade, relativamente à alíquota a ser paga, entendendo a Corte Suprema que
todos os contribuintes da COFINS pagariam a mesma alíquota, enquanto os
contribuintes da CSLL poderiam compensar parte do valor devido pelo tributo com o
que foi recolhido a título da COFINS.
Verifica o autor, ainda, a limitação das decisões ao controle do direito individual
à igualdade: a Suprema Corte foca a análise sob o prisma dos bens jurídicos individuais,
quando “a promoção de finalidades econômico-políticas diz respeito a bens jurídicos
coletivos e não a pessoas que diretamente possam ter proveito delas” (2010, p. 360), o
que deveria ser realizado através da proporcionalidade.
É apontado por Ávila o caráter formal e limitado do controle de
constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal. As decisões se voltam à análise do
conteúdo normativo da igualdade ao âmbito de aplicação da lei, evitando a análise do
âmbito de edição da lei, “especialmente no que se refere ao exame de
constitucionalidade do critério escolhido” (2010, p. 364). Valoriza-se a “aplicação
uniforme da lei” (2010, p.365), mas não a razoabilidade do critério eleito pelo
legislador, deixando-o de fora da submissão ao princípio da igualdade.
O autor conclui que “é preciso ultrapassar o controle formal, aplicativo e
limitado à evidência de arbitrariedade em favor de um modelo material, integral e
justificativo de controle do princípio da igualdade” (2010, P. 365), afastando a “solução
simplista de que o Poder Judiciário não pode controlar outro poder com base no
princípio da separação dos poderes (2010, p. 369). Arremata que “o princípio
democrático só será realizado se o Poder Legislativo escolher premissas concretas que
levem à realização dos direitos fundamentais e das finalidades estatais” (2010, p. 369).
Embora o presente estudo compartilhe da crítica de que é necessário um controle
das normas extrafiscais pelo Supremo Tribunal Federal de forma mais contundente e
efetiva, deve-se ressaltar, porém, a delicada questão ao ser aplicado o critério da
proporcionalidade na forma defendida por Ávila, o qual é fundado na adequação,
necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.
130
No caso específico das normas extrafiscais, é complicada a mensuração da
“necessidade”, entendida esta como a verificação da inexistência de meio menos
gravoso para se atingir os fins visados. Isso porque o exercício da função extrafiscal é
forma de política pública eleita pelo detentor da competência legislativa. A
consideração do meio eleito como mais ou menos gravoso pode ferir o princípio
democrático, especialmente quando se consideram as leis como atos de soberania
popular. Da mesma forma, a apreciação das “vantagens decorrentes da promoção da
finalidade extrafiscal” em relação às “desvantagens advindas da desigualdade” também
poderia ferir a discricionariedade que é própria na eleição das políticas fiscais, o que
encontraria óbice no princípio da separação dos poderes, previsto no art. 2º da
Constituição de 1988. Ambos os elementos da proporcionalidade citados poderiam levar
ao denominado “ativismo judicial”, em que a função expressa na norma poderia ser
substituída pela função que cada julgador entende menos gravosa ou mais vantajosa no
caso concreto.
Isso não significa, por outro lado, que tal poder deve adotar uma postura passiva
ou positivista diante das normas.
Concorda-se com a apuração da legitimidade da norma extrafiscal através de
uma análise de adequação entre meios e fins, o que foi objeto da seção 4.4.2, na qual foi
indicada a obrigatoriedade da norma ser apta para produzir os resultados almejados, o
que, sem dúvidas, pode ser realizado sem se conduzir a uma apreciação subjetivista do
julgador. Outrossim, a legitimidade deve ser apurada através da conformação do bem
jurídico protegido pela norma com os ditames da Constituição de 1988.
Entende-se que o critério da razoabilidade, entendido como o não arbítrio ou a
proibição do excesso é, ainda, elemento que deve ser apreciado na legitimação das
normas extrafiscais em relação ao princípio da igualdade.
Daí que se concorda com Godoi (2004, p. 251), o qual adverte sobre a
necessidade das medidas extrafiscais passarem pelo crivo da razoabilidade e adequação
a fim de não infringirem o princípio da igualdade:
Como as possibilidades de diferenciação nas cargas tributárias são maiores nesse campo, é preciso redobrada atenção para a necessária razoabilidade ou não arbitrariedade das diferenças de trato, buscando sua justificação em algum preceito ou valor constitucional e verificando a adequação da medida fiscal intervencionista para o êxito de sua finalidade (2004, p. 251, tradução nossa)109.
109 Como las posibilidades de diferenciación en las cargas tributarias son mayores en ese campo, es necesario redoblada atención para la necesaria razonabilidad o no-arbitrariedad de las diferencias de trato,
131
Ainda que o Supremo Tribunal Federal fundamente os seus acórdãos no
princípio da razoabilidade (e não na proporcionalidade), razão assiste a Ávila de criticar
que, embora a Corte afirme que é necessário um fundamento para justificar a não
arbitrariedade, por vezes não há determinação de “quando um fundamento é suficiente e
como isso pode ser controlado” (ÁVILA, 2010, p. 350). Outrossim, muitas vezes é
notória a timidez do órgão ao acolher a tese do legislador negativo em situações nas
quais seria necessária a análise do mérito administrativo.
Analisando, porém, o acórdão proferido na ADIMC 1.276 (DJ 15.12.95) e ADI
1.276 (DJ 29.08.2002), verifica-se que o controle da razoabilidade pelo Supremo
Tribunal Federal foi realizado considerando-se a idoneidade do fim pretendido pela
norma extrafiscal, que justificaria a desigualdade de tratamento em relação aos demais
contribuintes. Na decisão foi analisada a constitucionalidade de dispositivo de lei do
Estado de São Paulo que criou incentivo fiscal (emissão de certificados que seriam
utilizados para pagamento de ICMS e IPVA) aos empregadores que possuíssem mais de
30% dos empregados com idade superior a 40 anos. Foi considerado razoável o critério
eleito para a concessão do benefício, que seria o incentivo ao emprego às pessoas de
meia idade e idosas, tendo em vista a dificuldade de inserção econômica no mercado de
trabalho, tentando amenizar a desigualdade social. Considerou o voto da ministra
relatora, Ellen Gracie, no julgamento da ADI, acompanhado à unanimidade pelos
demais ministros, que o incentivo não feriu o princípio da igualdade, sendo mantido em
relação ao IPVA (quanto ao ICMS, declararam a inconstitucionalidade do benefício, por
afrontar o art. 155, § 2º, XII, “g”, da Constituição de 1988). Entende-se que, embora o
fim da norma possa ser utilizado na averiguação de sua não arbitrariedade, nele não se
esgota, devendo ser analisado, ainda, se os elementos do benefício (e agravamento, em
outros casos) não possuem também algum parâmetro arbitrário ou excessivo.
4.5 Algumas considerações sobre a vantagem do uso de técnicas indutoras
Não se pode afirmar que a utilização das normas extrafiscais é, em geral,
preferível à utilização das normas fiscais ou mesmo a outras medidas à disposição do
Poder Público como forma de atingir aos fins constitucionais. É intuitiva a necessidade buscando su justificación en algún precepto o valor constitucional y verificando la adecuación de la medida fiscal intervencionista para el logro de su finalidad.
132
de recursos para o funcionamento do Estado e realização do interesse público, base do
Estado Fiscal. Por outro lado, o uso de subvenções públicas é forma de atuação estatal
que atenderá, muitas vezes, de forma também direta e objetiva, o fim almejado pelo ente
público.
Assim, a avaliação da conveniência e eficácia do manejo das normas extrafiscais
como forma de se atingirem os fins buscados pelo Estado deve ser realizada no caso
concreto, sem juízos sintéticos, a priori .
Musgrave, Richard e Musgrave, Peggy (1980) ao mencionarem o método de
análise de sua obra, indagam sobre o critério que seria aplicável para se optar, dentre as
diversas políticas públicas possíveis, pela melhor, em termos de eficiência:
A primeira questão indaga-se a respeito de como avaliar a qualidade das instituições e políticas fiscais, e de como melhorar o desempenho das mesmas. A resposta requer que estabeleçamos padrões “ótimos” de desempenho. Esse tipo de análise corresponde ao estudo, que no jargão profissional é apresentado como “Economia do bem-estar”, que investiga o comportamento eficiente das famílias e firmas no setor privado. Tal enfoque também é conhecido como ‘economia normativa’. Ao considerarmos a questão de como formular adequadamente as medidas fiscais tendo em vista os objetivos do setor público, devemos também analisar como tais objetivos são determinados. Isto transforma a aplicação da economia do bem-estar no setor público em uma tarefa mais difícil de que sua utilização no setor privado (1980, p. 4).
Algumas vantagens do uso do instrumento tributário indutor de comportamentos
foram arroladas por Schoueri (2005, p. 69): contribuição para a cidadania ativa, com a
participação da sociedade civil nos programas de governo, simplicidade da execução, o
que demandaria um menor controle estatal e atratividade aos contribuintes, no sentido
de ser menor a “burocracia” em consideração às subvenções diretas.
Mencionando a doutrina alemã, Schoueri ainda cita a vantagem da
economicidade aos cofres públicos, já que haveria o pagamento de apenas parte dos
custos necessários à implementação do bem jurídico protegido pela norma extrafiscal.
Isso porque efetivado o objetivo da norma, o prestígio do bem é realizado de forma
imediata. Adverte, contudo, que também deve ser considerado o fato de que a adesão
não será absoluta e que a norma extrafiscal não será capaz de resolver, por completo, a
situação que ensejou a sua edição.
Quanto a esse último ponto, Checa González (1983) afirma a vantagem
“orçamentária” do manejo das normas extrafiscais, ainda que haja diminuição dos
ingressos tributários:
133
A diminuição de ingressos que tem lugar nos impostos com fins não fiscais costuma supor para a Fazenda Pública uma carga orçamentária per saldo menor que a que suporia o gasto destinado a alcançar essa mesma finalidade, pois, evidentemente, quando se utiliza o instrumento impositivo de acordo com sua tradicional finalidade de prévia obtenção de ingressos para posteriormente aplicá-los aos gastos públicos, gerar-se-á um maior custo, devido à necessidade existente de intercalar instâncias burocráticas encarregadas de arrecadar e depois controlar o destino dos fundos, que diretamente, se concedem isenções ou bonificações àquelas pessoas que tenham contribuído com sua atividade e meios econômicos à feliz consecução dos objetivos pretendidos pelos entes públicos, que deste modo se veem exonerados de grande parte da carga a que, em caso contrário, se veriam obrigados a assumir. (CHECA GONZALÉZ, 1983, p. 508, tradução nossa).110
O controle dos incentivos fiscais (não apenas aqueles advindos em razão de
normas extrafiscais) é fundamental para a verificação real da vantagem da concessão do
benefício. A Constituição de 1988, no art. 165, § 6º, exige que sejam identificados os
benefícios fiscais no projeto de lei orçamentária bem como seja acompanhado de
demonstrativo regionalizado do efeito sobre as receitas e despesas. O art. 150, § 6º da
Constituição de 1988 determina que a concessão de benefícios fiscais deverá ser
realizada através de lei específica do ente competente e que trate de forma exclusiva a
questão dos benefícios ou do tributo a que se refere. A Lei Complementar nº 101/2000,
em seu art. 14, determina que a renúncia fiscal decorrente de incentivo ou benefício de
natureza tributária deve ser acompanhada da estimativa de impacto orçamentário-
financeiro.
Alguns dos argumentos citados sobre as vantagens da adoção da extrafiscalidade
não se limitam aos incentivos fiscais. Também na utilização das normas extrafiscais de
agravamento verifica-se que, ao ser atingido, de forma imediata e positiva, o bem a que
a norma jurídica visa proteger, restará caracterizada a economicidade aos cofres
públicos e incentivada a cidadania ativa.
110 La disminución de ingresos que tiene lugar en los impuestos con fines no fiscales suele suponer para la Hacienda una carga presupuestaria per saldo menor que la que supondría el gasto destinado a lograr esa misma finalidad, y es que, evidentemente, cuando el instrumento impositivo se utiliza de acuerdo con su tradicional finalidad de previa obtención de ingresos para posteriormente aplicarlos a los gastos públicos, se generará un mayor coste, debido a la necesidad que existe de intercalar instancias burocráticas encargadas de recaudar y después de controlar el destino de los fondos, que si directamente se conceden exenciones o bonificaciones a aquellas personas que hayan contribuido con su actividad y sus medios económicos a la feliz consecución de los objetivos pretendidos por los entes públicos, que de este modo se ven exonerados de gran parte de la carga a la que, en caso contrario, se veían obligados a hacer frente.
134
Becker (1972), ao tratar da extrafiscalidade, sinaliza uma nova era, vivenciada
através das “energias genéticas de uma nova civilização”. Pontua o autor que tal
mudança é necessária e poderá ser realizada através da “rebelião, nos moldes do
comunismo soviético ou da “revolução humanista cristã, que instaurará a democracia
social”, isso através de um direito positivo renovado. O direito tributário, com esse
aspecto de renovação, passaria a utilizar os tributos extrafiscais, in natura e in labore,
de forma que realize a “revolução social pelo impacto dos tributos” e “simultaneamente,
financie a tarefa de reconstrução social disciplinada pelos demais ramos do Direito
Positivo”.
O pensamento expresso por Becker embora pareça mais se referir à função fiscal
do tributo delineada na seção 3 desta investigação, na medida em que sobreleva os
aspectos de justiça social ao direito tributário (já um tanto contraditório com o caráter
positivista de sua obra genericamente considerada, preocupada especialmente com a
postura garantista do direito tributário), revela a possibilidade de uso do tributo
extrafiscal como forma de renovar o tradicionalismo do direito tributário em sua forma
fiscal. Em que pese o fato de as propostas da tributação in natura e in labore não
coadunarem com o conceito de tributo estabelecido pelo art. 3º do CTN, já vigente na
época da publicação da obra, o manejo das normas tributárias de forma indutora é
proposta que deve ser incentivada diante dos inúmeros benefícios que pode trazer como
forma de política pública.
A suposta reconstrução do Direito deveria ser alcançada, também, pela revisão
da própria fiscalidade, já que não se pode admitir que essa possua papel de
simplesmente arrecadar receitas para o Estado no atual paradigma do Estado
Democrático de Direito. Outrossim, o pensamento “renovador” do autor, que revela o
direito tributário como forma de alcance da democracia social, não obstante aponte
sérias e reais celeumas na atuação do Estado no ramo tributário, não percebe o tributo,
na sua face fiscal, como instrumento que atenda às nobres e necessárias funções estatis
de modo a realizar aos anseios sociais frustados pelo Estado Liberal.
Enfim, por todos esses motivos, a extrafiscalidade é uma opção útil e relevante
no manejo do sistema tributário, desde que realizada de forma a respeitar a natureza
jurídica própria que o instituto requer, bem como os aspectos que lhe conferem
legitimidade. Aos detentores da competência de implementação das políticas públicas e
ao legislador é oportunizado o seu manejo. Almeja-se que seja realizado de forma
transparente, efetiva e eficaz, adequando-se aos fundamentos do Estado Democrático de
135
Direito. Dos aplicadores do Direito, espera-se a atenção devida para verificar tal
conformação e, em caso negativo, a atitude concreta de se afastar dos desvios e excessos
injustificados na aplicação do instituto.
136
5 CONCLUSÕES
É necessária uma adequada distinção entre as normas fiscais e extrafiscais no
contexto da Constituição de 1988, inserida no atual paradigma de um Estado
Democrático de Direito.
A formulação dos conceitos de fiscalidade e extrafiscalidade no âmbito de
grande parcela da doutrina parte de um grave equívoco metodológico, que contraria
frontalmente os fundamentos da ordem constitucional democrática vigente. A doutrina
brasileira estudada nesta pesquisa considera, de forma unânime, a fiscalidade como o
uso do tributo com fins “meramente” arrecadatórios, raciocínio ligado à teoria do
“interesse tutelado” pelo direito tributário, que por sua vez, é baseado em concepções do
superado Estado Liberal. Disso decorre o “mito” do tributo como instrumento de
simples abastecimento dos cofres públicos. Por outro lado, a mesma doutrina conceitua
as normas extrafiscais através de um critério de contraposição, como o que está “fora”
da referida noção de fiscalidade. O próprio sentido etimológico do prefixo “extrafiscal”
induz o distorcido entendimento. É corrente integrar na função extrafiscal do tributo
qualquer medida que interfira no meio econômico e social, especialmente medidas de
justiça fiscal, como as que protegem o mínimo existencial, o que não é propriamente o
que caracteriza as normas extrafiscais.
Desse equívoco metodológico e conceitual decorre a afirmação de que todo e
qualquer tributo terá, ao mesmo tempo, uma face fiscal e outra extrafiscal. Nesse ponto,
a problematização se ramifica para o questionamento da necessidade da efetiva
distinção entre normas fiscais e extrafiscais. Partilha-se o entendimento de que, muitas
vezes, uma mesma exação terá a função fiscal e extrafiscal, mas não se pode
universalizar a afirmação quando se aplicam os conceitos adequados dos institutos em
questão, que serão citados ao final desta conclusão.
A distinção entre a fiscalidade e a extrafiscalidade é melhor compreendida
quando se adota o critério da função da norma tributária, baseado na eficácia da norma
para produzir resultados, em enfoque pragmático. A função fiscal compreende o
conteúdo arrecadatório (na forma em que é delineado na seção 3) e a distribuição justa
da carga tributária no meio social. A função extrafiscal é compreendida pela indução de
comportamentos de forma a influir em algum bem ou direito tutelado pela Constituição.
Já a função simplificadora, pode estar presente tanto na fiscalidade quanto na
extrafiscalidade.
137
A revisão dos conceitos da fiscalidade e extrafiscalidade é medida necessária
quando se identificam as tarefas do Estado contemporâneo o que, consequentemente,
reflete diretamente no papel do sistema tributário e do tributo, instrumentos essenciais
no exercício das funções estatais.
Atualmente, o Estado tem o papel de promover o bem-estar, as condições
objetivas de desenvolvimento da liberdade e personalidade individuais e o poder de
autodeterminação democrática da sociedade; tem o papel de intervir na economia, de
buscar a redução das desigualdades entre os indivíduos através da redistribuição de
rendas e de promover a justiça social, nos moldes da teoria liberal, tal como exposta por
Menéndez (2001). A figura neutra do Estado há muito foi afastada.
A Constituição de 1988 apresenta notável distinção estrutural e normativa em
relação às anteriores, sendo nela inseridas diversas normas principiológicas e
programáticas de cunho social, visando a amenizar a influência liberal dominante nos
séculos XIX e XX e a implementar a necessária intervenção do Estado na economia, o
que não exclui as conquistas advindas das épocas referidas, no tocante à positivação dos
valores da liberdade. Contudo, ao ser prestigiado o Estado Social, restou claro que a
tutela das liberdades é qualificada pela busca da concretização da igualdade, da justiça
social. O desenvolvimento deve ser buscado de forma sustentável, através da
intervenção do Estado em uma economia capitalista. A liberdade e a solidariedade se
tensionam dialeticamente, de forma complementar, o que se extrai, por exemplo, dos
diversos princípios da ordem econômica esparsos na Constituição de 1988. O art. 170 é
o exemplo mais claro, ao determinar que “a ordem econômica tem por fim assegurar a
todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”.
Como Constituição dirigente, caracterizada pela preocupação de se descreverem
as premissas básicas, políticas, e não apenas as ligadas à separação e à organização de
poderes regentes do Estado e da sociedade, foram traçados em seu texto metas concretas
e objetivos sociais a serem alcançados pelo Estado, sob a forma de normas-princípios.
Os valores, acrescidos de conteúdo normativo deontológico, são ideias centrais da
Constituição de 1988, vinculando o legislador futuro e o comportamento do Estado e da
sociedade àquelas premissas eleitas pelo poder constituinte, independente do momento
político e histórico que vier a se formar.
Há que se irradiarem os comandos positivados na Constituição de 1988 para
todas as fontes de atuação do Estado, e no que concerne ao presente estudo, ao sistema
138
tributário, que deve implementar o que foi estatuído como alicerces da República
Federativa do Brasil.
Como instrumento preferencial à disposição do Estado para que esse possa
atingir os pretendidos objetivos das constituições contemporâneas, ao sistema tributário
incumbe, através de suas receitas, financiar as despesas do Estado e o fornecimento dos
serviços públicos básicos, mas não apenas isso. É também forma de se universalizar
serviços como os da saúde e da educação em todos os níveis, proporcionar segurança
efetiva e a adequada e justa distribuição da carga tributária no seio da comunidade.
Enfim, cabe ao sistema tributário atuar na implementação das diretrizes constitucionais,
especialmente as que dizem respeito aos direitos fundamentais.
Certamente o papel que é reservado ao sistema tributário na Constituição de
1988 deve observar a realidade econômica e social do país e buscar atingir a igualdade
material e equitativa de oportunidades. Não se pode admitir (como ocorria no antigo
Estado Liberal) que lhe seja reservado apenas a função limitada e objetiva de prover os
gastos burocráticos de Estado e os bens públicos básicos à população (segurança,
judiciário, proteção externa e, no máximo, educação básica). Essa postura jamais levaria
a uma sociedade justa, solidária, permeada pela igualdade no sentido material, conforme
previsto no art. 3º (BRASIL, 1988) do texto constitucional.
O vínculo jurídico da relação obrigacional tributária no paradigma do Estado
Democrático de Direito deve ser caracterizado como um “dever fundamental”. Esse não
corresponde à simples obrigação negativa de respeitar algum direito, mas à ideia de que
cada direito garantido ao cidadão possui, necessariamente, um custo para a sua
implementação, custo esse que será financiado, no Estado Tributário, pelas receitas
advindas dos tributos. A solidariedade social é vista como fundamento do dever de
pagar tributos. A “cidadania fiscal” significa que todos devem suportar os custos do
Estado na medida de sua capacidade contributiva.
O capítulo do sistema tributário na Constituição de 1988, embora de forma
tímida, prevê algumas diretrizes específicas relacionadas à justiça fiscal: o princípio da
igualdade e o da capacidade contributiva têm caráter deontológico ao serem positivados
nos artigos 145, § 1º e art. 150, II (BRASIL, 1988), esse último na forma de limitação
ao poder de tributar.
Nesse sentido, há que se inserir na instituição e aplicação do sistema tributário o
manejo do princípio da capacidade contributiva, inclusive através da progressividade, o
que certamente levará a uma melhor e mais justa distribuição da carga tributária. Na
139
atual ordem capitalista mundial e especialmente em um país socialmente deficitário
como o Brasil, este é um instrumento fundamental para se alcançar a vida digna para
todos, o que, frise-se, é fundamento expresso na Constituição de 1988.
Nesse contexto, que afasta por completo as premissas em geral utilizadas pela
doutrina para definir a fiscalidade, pode-se concluir pelo seu conceito.
A fiscalidade é a função do tributo que compreende vários aspectos. A princípio,
refere-se à arrecadação, mas não uma arrecadação autorreferente ou com um fim em si
mesma. No conceito deve ser compreendido que a arrecadação não é meio para
“alimentar a máquina estatal” e sim, um instrumento essencial para realizar e tornar
efetivos os direitos individuais e sociais que uma Constituição dirigente impõe ao
Estado implementar. Envolve, ainda, obrigatoriamente, a função distributiva, no sentido
de distribuir de forma justa a carga tributária na sociedade, para tanto sendo de
aplicação necessária o princípio da capacidade contributiva e técnicas como a da
progressividade. Diz-se aplicação necessária do princípio da capacidade contributiva e
não obrigatória, já que há casos em que as normas terão função fiscal sem que se
verifique fundamento no princípio elencado. Exemplo de tal situação é a isenção do
IRPF aos portadores de doenças graves e do Imposto sobre a Propriedade de Veículos
Automotores (IPVA) aos portadores de deficiência física.
Em nosso ordenamento jurídico, a arrecadação de dinheiro é meio para cumprir
os fundamentos e objetivos da República, previstos no art. 1º e 3º da Constituição de
1988: implementar uma sociedade livre, justa e solidária, erradicar a pobreza e a
marginalidade, garantir a dignidade da pessoa humana, reduzir as desigualdades sociais
e regionais, prestigiar o valor social do trabalho e da livre iniciativa, o pluralismo
político, dentre outros desidérios estampados em outras partes do texto constitucional. A
interpretação sistêmica e o princípio da unidade da Constituição conjugam,
necessariamente, o sistema tributário com todos os princípios e valores prestigiados pela
Constituição.
Quanto à extrafiscalidade, o estudo considera a sua natureza jurídico-tributária.
É expressiva a doutrina que elabora a natureza jurídica de tais normas como afetas ao
direito econômico, ou mesmo à economia, o que evidencia o apego à ideologia do
interesse tutelado, já insuficiente para fundamentar a tributação no contexto da nossa
realidade constitucional. Frise-se novamente que o tributo não tem por único fim a
arrecadação, o que ficou claro no próprio conceito da fiscalidade. Obviamente,
conforme o objeto da tributação extrafiscal interferir, de forma específica, nas relações
140
econômicas stricto sensu, as regras da disciplina atuarão de forma acidental na
interpretação e aplicação dos institutos. Deve-se frisar que a extrafiscalidade pode atuar,
também, nos campos social, cultural, desportivo e educacional, sem que o fator
econômico (no sentido de regulação do mercado) seja relevante. Assim, além do
tratamento tributário, conforme o objeto da norma, serão aplicados, acidentalmente, os
princípios e regras de outras disciplinas.
A extrafiscalidade pode ser definida como uma função da norma tributária eleita
pelo detentor da competência tributária, como alternativa ao uso do tributo em sua
função fiscal. A aptidão para influenciar o comportamento do contribuinte é a essência
da norma extrafiscal (e a base do critério funcional, eleito como critério diferenciador
entre as normas fiscais e extrafiscais), devendo ser capaz de produzir efeitos indutores
de comportamento. A conduta desejada deverá influir, positivamente, para o alcance da
proteção ao bem jurídico prestigiado pela norma como, por exemplo, o mercado, o meio
ambiente, o consumo, o estimulo à produção nacional, à pesquisa. A extrafiscalidade se
caracteriza, outrossim, por não se prestar a punir a ilicitude. As condutas permitidas
devem ser lícitas no ordenamento positivo.
O direito financeiro não pode ser desprezado quando se trata das normas
extrafiscais. Contudo, não é a relação receita/despesa que define a natureza da norma
extrafiscal, pois a sua essência é a de privilegiar um bem constitucionalmente protegido
através da indução positiva ou negativa de comportamentos. O produto arrecadado, se
houver, por óbvio, será utilizado para concretizar as funções do Estado e os desígnios
constitucionais, mas no exercício da função fiscal. Assim, é equivocada a doutrina que
pretende legitimar o uso das normas extrafiscais pela afetação da receita do tributo.
Deve-se frisar que a extrafiscalidade também se presta à promoção da justiça,
pois sempre deverá almejar o alcance de um fim legítimo, prestigiado pelo ordenamento
jurídico. A justiça tributária não pode ter por conteúdo exclusivo a capacidade
contributiva diante da variedade de fins previstos na Constituição, o que possibilita ao
tributo se prestar a funções diversas, inclusive extrafiscais.
Importante questão sobre a distinção entre as normas fiscais e extrafiscais, e que
destaca a sua relevância, se relaciona aos limites constitucionais ao poder de tributar. A
Constituição de 1988 já flexibiliza o princípio da legalidade e da anterioridade em se
tratando de determinados tributos extrafiscais. Contudo, entende-se que o princípio da
legalidade, do não confisco e da capacidade contributiva podem ser mitigados ou
141
mesmo afastados (considerando o último princípio) a fim de que as normas extrafiscais
possam produzir os resultados almejados pelo legislador.
No que concerne à legitimidade, entende-se que essa é atingida pela correição
dos fins buscados pela norma extrafiscal e sua conformidade com o ordenamento
jurídico, pela aptidão para induzir comportamentos e produzir resultados quanto ao
bem jurídico prestigiado e pelo controle de razoabilidade relacionado ao princípio da
igualdade.
Apesar dos riscos apontados especialmente pela doutrina espanhola sobre os
excessos no manejo do tributo extrafiscal, que poderia retirar o elemento de justiça do
ordenamento, há que se ponderar o seguinte: as normas extrafiscais, como instrumentos
de política pública, devem ser analisadas e fiscalizadas pelos detentores da competência
material, sendo certo que, não correspondendo aos fins objetivados no seu manejo,
devem ser revistas de forma a não justificar tratamentos arbitrários. Outrossim, não
podem os benefícios fiscais serem encarados como contrários ao interesse público e à
justiça fiscal, já que a capacidade contributiva não é o único fundamento do tributo nem
da justiça do sistema tributário, podendo outros fins justificarem plenamente a presença
ou não do princípio na exação.
Embora não se possa afirmar que a utilização das normas extrafiscais é, em geral
e a priori , preferível à utilização das normas fiscais ou mesmo de outras medidas à
disposição do Poder Público como forma de atingir os fins constitucionais (como as
subvenções, por exemplo), podem-se citar alguns aspectos vantajosos na sua utilização.
A adoção de normas indutoras contribui para a cidadania ativa, ao incentivar a
participação da sociedade civil nos programas de governo. Verifica-se a simplicidade da
execução das referidas normas ao demandar um menor controle estatal. É também
constatada a atratividade aos contribuintes, no sentido de ser menor a “burocracia” em
consideração às subvenções diretas. Por fim, a utilização das normas extrafiscais traria
economia aos cofres públicos, por haver o custeio de apenas parte dos gastos
necessários à implementação do bem jurídico protegido pela norma extrafiscal; isso ao
considerar-se que, efetivado o objetivo da norma, o prestígio do bem é realizado de
forma imediata.
Após essas considerações e a clarificação dos conceitos da fiscalidade e da
extrafiscalidade, considera-se que o trabalho atingiu o fim proposto ao apontar os
amplos e possíveis papéis do sistema tributário no Estado Democrático de Direito,
buscando desmistificar a visão do tributo como instrumento puro e simples de
142
arrecadação, bem como analisando o uso da tributação através da indução de
comportamentos. Ao problematizar as funções fiscal e extrafiscal do tributo deseja-se
que o estudo contribua para a discussão jurídica do direito tributário no atual paradigma
de Estado e de acordo com a Constituição de 1988 e para uma visão sociopolítica do
sistema tributário.
143
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