PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO ......Teologia, na intenção de apresentar uma...

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC SP RODRIGO PIRES VILELA DA SILVA O ESTILO HAGIOGRÁFICO NA FIGURA DO PADRE GABRIEL MALAGRIDA: O MODELO DE SANTIDADE NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XVIII MESTRADO EM TEOLOGIA SÃO PAULO 2014

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  • PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

    PUC – SP

    RODRIGO PIRES VILELA DA SILVA

    O ESTILO HAGIOGRÁFICO NA FIGURA DO PADRE GABRIEL

    MALAGRIDA:

    O MODELO DE SANTIDADE NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO

    XVIII

    MESTRADO EM TEOLOGIA

    SÃO PAULO

    2014

  • PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

    PUC – SP

    RODRIGO PIRES VILELA DA SILVA

    O ESTILO HAGIOGRÁFICO NA FIGURA DO PADRE GABRIEL

    MALAGRIDA:

    O MODELO DE SANTIDADE NA SEGUNDA METADE DO

    SÉCULO XVIII

    Dissertação apresentada à Banca

    Examinadora da Pontifícia Universidade

    Católica de São Paulo, como exigência

    parcial para obtenção do título de Mestre

    em Teologia, sob a orientação do Prof.

    Dr. Ney de Souza.

    SÃO PAULO

    2014

  • Banca Examinadora

    __________________________________________

    __________________________________________

    __________________________________________

  • “Aquele homem existiu mesmo! Bem concreto, daquele tamanho que andou com passos

    de gigantes em todo lugar do nordeste, e podemos enfim dizer com base histórica: aqui

    passou Malagrida no século XVIII!”

    Ilário Govoni

  • Aos meus familiares e amigos,

    aos que acreditam que no itinerário da vida,

    vale olhar ao redor e aprender de quem já caminhou por ela.

  • AGRADECIMENTOS

    A Deus pelo dom da vida e pelas possibilidades sempre novas que me concede;

    À minha família, ao meu padrinho Luís Ferreira (in memoriam), meu primeiro

    catequista: pelos ensinamentos que alicerçaram minha história de fé;

    À Arquidiocese de São Paulo: pelo constante apoio e orações;

    A todos com os paroquianos da Área Pastoral Santíssima Trindade, onde tive grandes

    momentos de Alegria;

    À Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, na pessoa de seu Grão-chanceler,

    Cardeal Dom Odilo Pedro Scherer: pelos encaminhamentos na construção de uma

    instituição segundo os valores cristãos;

    Aos meus queridos professores e aos companheiros de estudo no Programa de Mestrado

    em Teologia da PUC-SP: pelo incentivo, exemplo e empenho dispensados;

    Ao Professor Doutor Ney de Souza, meu orientador, cujas paciência e erudição não

    viram obstáculos às minhas limitações.

  • RESUMO

    Esta dissertação desenvolve-se acerca da questão hagiográfica entendida como literatura

    a partir da vida do padre Gabriel Malagrida do qual pretende-se extrair a compreensão

    de santidade da época colonial. Problematiza-se o assunto, tendo como pano de fundo

    da reflexão teológica, questionamentos como: Qual o contexto cultural em que as

    narrativas da vida de Malagrida então inseridas? É possível estabelecer um modelo

    hagiográfico de santidade a partir da investigação das biografias de Malagrida? Qual é a

    relação que podemos estabelecer entre a narrativa de Matias Rodrigues, Vida do padre

    Gabriel Malagrida e a obra hagiográfica mais relevante sobre a vida dos santos,

    Legenda Áurea? O método utilizado é a investigação de fontes literárias, biográficas e

    da literatura hagiográfica da vida de Malagrida e de outros textos que contribuíssem na

    compreensão da temática. A pesquisa pretende com essa abordagem contribuir na

    valorização de um personagem de importância histórica para o Brasil, o jesuíta

    Malagrida. Verificou-se, primeiramente, que o modelo de santidade vigente tem suas

    origens na concepção medieval de matriz portuguesa que impregna toda a Colônia

    brasileira. Em seguida, comprovou-se a hipótese de que uma investigação das obras

    biográficas de Malagrida vistas a partir da compreensão da literatura hagiográfica,

    poderia-nos fornecer elementos suficientes para estabelecer um modelo de santidade

    medieval colonial. E por fim, relacionamos essa concepção com a hagiografia contida

    em Legenda Áurea de modo a delinear esse paradigma de santidade.

    Palavras-chave: Gabriel Malagrida. Hagiografia. Literatura hagiográfica. Santidade.

  • ABSTRACT

    This dissertation develops on the issue seen as hagiographic literature from the life of

    Father Gabriel Malagrida which aims to extract an understanding of holiness from the

    colonial era . Problematizes the subject , with the backdrop of theological reflection ,

    questions such as: What is the cultural context in which the narratives of the life of

    Malagrida then inserted ? You can establish a hagiographic model of holiness from the

    investigation of biographies of Malagrida ? What is the relationship that we establish

    between narrative Matias Rodrigues , Life of Father Gabriel Malagrida and more

    relevant information about the lives of saints hagiographic work , Legenda Aurea ? The

    method used is the investigation of literary , biographical and hagiographic literature of

    life Malagrida and other texts that contribute in understanding the thematic sources. The

    research aims to contribute to this approach in the valuation of a character of historical

    importance to Brazil , Jesuit Malagrida . It was found , first, that the current model of

    holiness has its origins in the medieval conception of Portuguese mother permeates all

    Brazilian colony . Then proved the hypothesis that an investigation of biographical

    works Malagrida views from the understanding of hagiographic literature , could

    provide us sufficient evidence to establish a model of colonial medieval holiness.

    Finally , we relate this concept to the hagiography contained in Legenda Aurea in order

    to delineate this paradigm of holiness .

    Keywords: Gabriel Malagrida . Hagiography . Hagiographic literature. Holiness.

  • SUMÁRIO

    INTRODUÇÃO.............................................................................................................09

    CAPÍTULO I – UMA TENTATIVA DE APROXIMAÇÃO DA COLÔNIA.........12

    1.1 O MUNDO NO QUAL O BRASIL COLONIAL ESTÁ INSERIDO................13

    1.2 OS ASPECTOS DAS RELAÇÕES SÓCIO-POLÍTICAS NA COLÔNIA .......20

    1.2.1 “Encomienda”, “Requerimiento” E “O Estatuto Do Índio”................................21

    1.3 APROXIMAÇÃO DO UNVERSO RELIGIOSO COLONIAL.........................26

    1.4 A VOCAÇÃO DA INQUISIÇÃO E SEU PAPEL NO PERÍODO

    COLONIAL.....................................................................................................................33

    1.5 A OPÇÃO POR UM MODELO DE FORMAÇÃO SACERDOTAL NO

    SÉCULO XVI.................................................................................................................36

    CAPÍTULO II – LEITURAS ACERCA DO PADRE GABRIEL MALAGRIDA..40

    2.1 AS FIGURAS DE MALAGRIDA......................................................................41

    2.1.1 Malagrida de Matias Rodriguez: o Missionário Taumaturgo..............................42

    2.1.2 Malagrida de Camilo Castelo Branco: a irracionalidade do século das Luzes....46

    2.1.3 O Malagrida de Ilário Govoni: Malagrida por ele mesmo e a partir dos seus.....53

    CAPÍTULO III – A HISTÓRIA COMO INSTRUMENTO DA TEOLOGIA NA

    LITERATURA HAGIOGRÁFICA.............................................................................66

    3.1 HAGIOGRAFIA COMO GÊNERO LITERÁRIO.............................................67

    3.1.1 Hagiografia e Teologia........................................................................................72

    3.1.2 Legenda Áurea: modelo hagiográfico medieval..................................................76

    3.1.3 O estilo Hagiográfico de Legenda Áurea presente na obra de Matias

    Rodriguez.........................................................................................................................77

    3.1.4 O Martírio em Vida do padre Gabriel Malagrida a partir do modelo

    hagiográfico em Legenda Áurea......................................................................................85

    CONCLUSÃO................................................................................................................89

    BIBLIOGRAFIA...........................................................................................................93

  • 9

    INTRODUÇÃO

    O nome de Malagrida é reconhecido como Apóstolo do Brasil, tanto entre os Jesuítas

    quanto para os seus conterrâneos. É de chamar atenção a ausência de seu nome junto aos

    manuais de História, junto aos nomes de outros jesuítas como Nóbrega, Anchieta e Vieira,

    sobretudo por ter implantado aqui algumas devoções que vão marcar a identidade do povo

    brasileiro, como a devoção ao Sagrado Coração de Jesus e a Nossa Senhora da Boa Morte1. A

    campanha anti-jesuítica foi deveras forte, sobretudo na historiografia brasileira, que num

    processo de criação de uma História Nacional, dentre as seleções de fatos e personagens, de

    certa forma esquece a figura de Malagrida, que é elemento chave para a proposta espiritual

    para o período que se segue.

    Sendo assim, pretendemos fazer memória à figura de Malagrida e destacar a sua

    importância no processo de formação do Brasil. Além disso, abrimos para a discussão o papel

    da hagiografia na História da Igreja, principalmente no que diz respeito à reconstrução de uma

    mentalidade, de uma cultura, de uma expressão de fé num período que mereceria mais

    atenção para o mundo acadêmico, tanto da Teologia como nas demais áreas do conhecimento.

    O século XVIII foi bem intenso no que diz respeito à relação Igreja-Estado. Tal

    relacionamento nunca fora marcado pela lisura: desde Constantino até o sistema do Padroado.

    No entanto, o surgimento do Iluminismo como um forte movimento intelectual vai abalar a

    hegemonia do poder cultural que os jesuítas haviam construído desde sua fundação. Some-se

    a isso a crescente impopularidade dos inacianos junto às demais ordens religiosas

    contemporâneas2 e o fato de, por força da regra de Santo Inácio, os membros da ordem não

    poderem ocupar sedes episcopais, gerando uma falta de proteção para eles mesmos. As

    consequências da soma destes fatores são conhecidas: a expulsão da Companhia dos domínios

    portugueses e a sua supressão logo em 1773.

    A figura do Pe. Gabriel Malagrida se encontra neste conturbado contexto. Quis, no seu

    entender, seguir a Jesus Cristo de perto, construindo uma vida santa. Em seus escritos tal

    propósito transparece, como em várias de suas biografias. Tal estilo de evangelização a que se

    propõe será adotada por outros religiosos nos séculos seguintes, como o Pe. Ibiapina, o beato

    1 Cf. FENZL, Andrea; BARBIERI, Renato. Malagrida. [documentário-video]. Produção de Andrea Fenzl,

    direção de Renato Barbieri. São Paulo, Videografia Criação, 2001. 1 DVD/NSTC, 73 min. color. som. 2 Cf. DOMINGUES, Beatriz Helena. Disputas entre “Cientistas Jesuítas” e “Cientistas Iluministas” no mundo

    Ibero-Americano. Numen. Revista de estudos e pesquisas da Religião. pp 130-131.

  • 10

    Antônio Conselheiro, Frei Damião, entre outros3. Uma santificação que parece estar associada

    à missão itinerante. E assim, faz sentido questionar o que, no século XVIII do Brasil Colonial,

    se entende por “santidade” ou qual era o modelo de santidade vigente.

    Visto que contra Malagrida, que viveu para as missões, houve uma clara perseguição

    de Marquês de Pombal, acarretando na sua execução pela Inquisição, a Companhia de Jesus

    logo começa a produzir material de cunho apologético para fazer justiça ao mais novo mártir

    inaciano. Tais escritos são produzidos dentro de um esquema já conhecido no mundo

    medieval e bem presente no mundo de então: o estilo de Legenda Áurea, ou seja, nos moldes

    da vida de um santo. Assim, a visão de santidade no século XVIII do Brasil Colonial pode ser

    descoberta sob os contornos da vida de Malagrida.

    Os modos de vida e de morte narrados pelos seus hagiógrafos reproduzem várias feitas

    de santos contidos na obra de Jacopo de Varazze. Para o momento, é possível apontar tais

    elementos na vida de Malagrida. Este esquema hagiográfico poderia ser um padrão. A base

    disso é que todas as biografias do Pe. Malagrida obedecem ao mesmo esquema tetrapartido,

    como a do Matias Rodrigues, do Paul Mury, a do Ilário Govoni – todos jesuítas – mostrando

    um mundo no qual “há uma constante luta entre o bem e o mal, da qual nada e ninguém pode

    ficar alheio”4. No entanto, ainda que seja sabido que com a chegada do Iluminismo tal

    espiritualidade tenha não atendido mais a necessidade tanto do clero quanto do povo, é

    importante notar que o que acontece na redação da história de Malagrida segue o esquema

    apontado pelo Hilário Franco Jr. no modelo hagiográfico.

    Tal modelo não poderia ser resumido por uma pergunta simplista como: “é verdade o

    que o texto diz?” Ou “tudo isso foi inventado?”, pois o que interessa aqui é a mentalidade, o

    simbolismo daquela geração; as representações de mundo. Em outras palavras, como que o

    mundo é visto pelos jesuítas e, de certo modo, pela população evangelizada por eles naquele

    período tão conturbado.

    Para tal argumento, a utilização de textos da época é sentida, tanto em forma da língua

    arcaica, quanto editados no vernáculo contemporâneo, sempre de acordo com a fonte

    encontrada. A extensão de algumas citações de autores dos séculos XVIII e XIX não tem

    outra razão que apresentar a noção presente nas entrelinhas, visto que não trabalham com

    3 Cf. COMBLIN, José. Padre Ibiapina. São Paulo:Paulus, 2011. Neste livro o autor faz uma breve apresentação

    sobre o modo como Ibiapina desenvolve seu ministério no sertão nordestino. Faz parte de uma série que visa

    apresentar história da evangelização no Nordeste. Outro volume do mesmo autor se refere a Pe. Cícero. 4 Cf. VARAZZE, Jacoppo de. Legenda Áurea: Vidas de Santos. São Paulo: Companhia das Letras.. 2011. p 18.

  • 11

    conceitos enciclopédicos, mas por meio de estilos e imagens literárias próprias de seu

    contexto barroco, de modo que cortar um pedaço poderia custar à compreensão do conteúdo.

    O sentido do trabalho é, através de elementos históricos, literários e teológicos em

    torno de um personagem concreto, propor uma leitura sobre a figura de Gabriel Malagrida.

    Assim, o caminho a ser percorrido fará três paradas, com passagem pela História, Literatura e

    Teologia, na intenção de apresentar uma interdisciplinaridade entre elas, oferecendo subsídios

    para a compreensão do relacionamento entre o Homem e a Revelação.

    Sendo assim, a primeira parte do nosso estudo intenta justamente apresentar de forma

    sistemática os elementos que marcam o período histórico em que o padre Malagrida viveu, de

    modo a contextualizar o Brasil colonial e identificar suas principais influências, sobretudo as

    referentes à Coroa. De fato, é a partir de uma perspectiva histórica da época que podemos

    situar que é inerente à vida de Gabriel Malagrida e de seus contemporâneos biógrafos.

    A segunda parte desse trabalho está dedicada a uma breve análise das mais relevantes

    biografias de Malagrida. Nosso intuito é demonstrar com precisão que tais narrativas contém

    como pano de fundo comum os elementos que estão presentes na compreensão do que é

    santidade em meados do século XVIII.

    Por fim, corroboramos a reflexão, uma aproximação à literatura hagiográfica. As

    narrativas da vida de santidade de padre Malagrida estão nos moldes das narrativas da vida de

    santos produzidas na Idade Média e ainda vigentes em sua época. Tal afirmação verificar-se

    através da aproximação da tradicional obra medieval da vida de santos, Legenda Áurea e a

    biografia da vida de Gabriel Malagrida que parece mais relevante, Vida do padre Gabriel

    Malagrida, de Matias Rodriguez. De fato, a partir dessa aproximação é possível delinear o

    modelo de santidade desse período.

  • 12

    CAPÍTULO I – UMA TENTATIVA DE APROXIMAÇÃO DA COLÔNIA

    “Os lusos mores coisas atentando

    Novos mundos ao mundo irão mostrando ”5

    “O objeto próprio, o constituinte essencial do cristianismo não é

    uma ideia, ideologia, nem uma moral, mas uma Pessoa. Em última

    instância, não é senão uma relação entre as pessoas criadas e

    históricas, que participam existencialmente da mesma

    interpessoalidade divina. Por isso, o cristianismo compromete toda a

    pessoa, a um nível concreto, absoluto e radical”.6

    Qualquer coisa que possamos dizer a respeito do passado, não é capaz de abarcar sua

    totalidade, quando muito faz uma aproximação. A partir deste ponto de vista, numa primeira

    delimitação de nossa abordagem histórica, é que apresentamos a compreensão de que o século

    XVIII foi bem intenso no que diz respeito à relação Igreja-Estado. Tal relacionamento nunca

    fora marcado pela lisura: desde Constantino, nos primórdios do cristianismo quando o tornou

    religião oficial do estado, até o sistema do Padroado, em que os nomes para cargos

    eclesiásticos eram indicados pelo governante de Portugal. No entanto, o surgimento do

    Iluminismo7 como um forte movimento intelectual abala a hegemonia do poder cultural da

    Igreja Católica, sobretudo da Companhia de Jesus, uma vez que os jesuítas haviam construído

    desde sua fundação grande influência nesse campo.

    No que diz respeito à história do Brasil, este século está dentro do período que

    didaticamente é chamado de colonial. São trezentos anos em que pouco se muda no contexto

    brasileiro. É praticamente a mesma paisagem desde quando o processo de colonização se

    5 Cf. CAMÕES, Luis Vaz de. Os Lusíadas. II, 39-40. São Paulo: Saraiva, 2010. p.46.

    6 DUSSEL, Enrique. Caminhos de libertação latino-americana. V. II. São Paulo: Paulinas, 1985. p. 32.

    7 “O Iluminismo é a saída do homem de um estado de menoridade que deve ser imputado a ele próprio.

    Menoridade é a incapacidade de servir-se do próprio intelecto sem a guia de outro. Imputável a si próprio é esta

    menoridade se a causa dela não depende de um defeito da inteligência, mas da falta de decisão e da coragem de

    servir-se do próprio intelecto sem ser guiado por outro. Sapere aude! (Ter a coragem de saber) Tenha a coragem

    de servir-te da própria inteligência! – é, portanto, o lema do Iluminismo” cf. FOUCAULT, Michel; KANT,

    Immanuel. Che cos’è l’Illuminismo?. Milano-Udine: Mimesis, 2012. pp. 7-8.

  • 13

    estabeleceu. Como se demonstrará a seguir, isto ocorreu porque a colônia e seus problemas

    eram encarados da mesma forma que os problemas em Portugal. As políticas e as medidas

    econômicas adotadas para esta porção do mundo são basicamente as mesmas, por princípio, o

    de relação metrópole-colônia. Haverá movimentos de reivindicação de políticas econômicas

    nos século XVIII que remontam ao século XVI.

    1.1 O mundo no qual o Brasil colonial está inserido

    Obviamente não podemos falar do século XVIII sem considerarmos os séculos

    anteriores e os movimentos que ali foram desenvolvidos. Toda a questão que tem como palco

    esse momento histórico é justamente em relação às potências marítimas (Portugal e Espanha)

    e o seu expansionismo que para dar fôlego as suas metrópoles e sair da saturada luta contra os

    árabes (mouros) que os cruzados, empenhados em conquistar o território onde estes residem e

    a Terra Santa, não conseguiram realizar. De fato, o embate com o mundo mulçumano

    provocou grande desgaste e uma necessidade de “navegar” em outros mares em busca de

    riquezas e da expansão da fé católica. Da mesma forma, a posterior questão com os

    protestantes gerou tantos confrontos que acabou por repaginar o mundo da fé e a visão do

    mesmo.

    A aritmética neste sentido era muito simples, quanto mais índios convertidos, mesmo

    que à força, no Novo Mundo, mais “civilizados” e cristãos para a coroa-metrópole. Além

    disso, havia também uma grande possibilidade de que uma vez “civilizados” e cristãos, eles se

    tornassem aptos para o trabalho que era necessário na colônia, tendo em vista um melhor

    aproveitamento das riquezas contidas no Brasil, além de evitar também um gasto muito alto

    com a compra de escravos vindos da África.

    O doze de outubro de 1492 sai de seu marasmo, se desprende do calendário e vai

    retomar seu “lugar ao sol”, de esperanças e sonhos. A história que rompe com as camuflagens

    oficiais e se desfaz das correntes ideológicas vira um admirável desdobrar de liberdades, com

    efeitos épicos das grandes proezas, sem, no entanto, esquecer as atrocidades e vilezas. Dois

    olhares se cruzam, tendo como ideais festivos ambições realizadas, almejando sempre mais,

    novos desejos de grandezas. Cristóvão Colombo e a rainha Isabel se encontram, tendo

    pensamentos semelhantes, confrontam aspirações, fazem previsões e projetos. Cristóvão

    Colombo se dirige aos reis Fernando e Isabel (reis católicos) com uma linguagem solene e

  • 14

    religiosa. Ele sentira desde o começo de seus Diários8 que o momento da expansão marítima

    chegara quando se realizava e comemorava a Reconquista9.

    Colombo concatenou bem todos os acontecimentos e viu com muita lucidez a

    hora certa que abria espaço para o lançamento de sua tão almejada expedição. Era sempre

    uma grande aventura inusitada. Todo esse entrelaçamento de pessoas, de fatos, foi o que veio

    a tornar viável a descoberta da América e a determinar as condições de sua colonização.

    Aumenta a vaidade de ter construído a uniformidade interior, que resultou da força da

    ortodoxia e da valia dos “cristãos velhos”, dos espanhóis de boa casta. É o tempo de ir em

    frente com o expansionismo político e econômico. A unidade forte leva a propagar a fé e o

    império. Todavia, nos séculos subsequentes, o propagar assume o pleno significado de sua

    ambição histórica. Esta mentalidade impõe aos outros a fé cristã, levando a um processo de

    inchaço compreensível que concentra muita vaidade, instigando a ocupação de novos espaços,

    supostamente vazios de seus donos. O poder econômico, político e militar dá aos povos

    colonizadores, em relação aos seus dominados, força para dizer que todas essas terras estavam

    reservadas desde sempre aos “novos senhores do universo”.

    Nós, pensando com a devida meditação em todas e cada uma das coisas

    indicadas, e levando em conta que, anteriormente, ao citado rei Alfonso foi

    concedido por outras cartas nossas, entre outras coisas, faculdade plena e

    livre para invadir, conquistar, combater, vencer e submeter a quaisquer

    sarracenos e pagãos e outros inimigos de Cristo, em qualquer parte que

    estivessem, e aos reinos, ducados, principados, domínios, possessões e bens

    móveis e imóveis tidos e possuídos por eles; e reduzir á servidão perpétua as

    pessoas dos mesmos, e destinar para si e seus sucessores os reinos, ducados,

    condados, principados, domínios, possessões e bens deles. Seus sucessores e

    o Infante, nas províncias, ilhas e lugares já adquiridos ou a serem adquiridos

    por eles, possam fundar e construir igrejas, mosteiros e outros lugares

    piedosos; e ao citado rei Afonso e seus sucessores, os que forem reis de

    Portugal doravante, e ao citado Infante, o concedemos e o permitimos.10

    8 Diários da descoberta da América: era o diário de suas viagens. Cf. JOSAPHAT, F. Carlos. Las Casas, todos os

    direitos para todos. São Paulo: Loyola, 2000. p. 20. 9 Os mouros (infiéis) foram definitivamente vencidos e expulsos da Espanha: a última batalha fora em Granada,

    em 1492. Cf. Ibidem. 10

    SUESS, Paulo. A Conquista Espiritual da América Espanhola. Petrópolis: Vozes, 1992. pp. 227-229.

  • 15

    A visão de um mundo a ser conquistado não é exclusividade do povo ibérico. O

    desejo de tal façanha já era contado desde Homero, Vergílio, e neste ínterim, por Camões em

    Os Lusíadas. O expansionismo deste povo é reflexo da própria natureza humana, como que

    num esquema de projeção, no qual o desejo de dominar está ligado à ideia de prosperidade

    que, não se queira ser simplista, em todos os tempos, esteve ligada à vontade divina, ao

    favorecimento dos deuses. O texto, como se percebe, mostra primeiramente o desejo de ir

    além; doravante, segue-se um embasamento, se não teológico, pelo menos devocional:

    Nós, confiantes na misericórdia do próprio Deus todo-poderoso, e na

    autoridade dos seus santos apóstolos Pedro e Paulo, e nas palavras d’aquele

    que é o caminho, a verdade e a vida, e nos disse, na pessoa do mesmo bem-

    aventurado Pedro, de quem somos sucessor com igual autoridade, embora

    não iguais méritos: ‘o que ligares na terra ficará ligado nos céus’; e

    [confiante] na plenitude do poder que Nos foi dado pelos céus: concedemos

    igualmente e damos a todos e mesmo fiéis que com suas próprias pessoas se

    engajarem no exército dos mesmos Rei e Rainha para guerrear contra os

    mesmos sarracenos para conquista do dito reino de Granada, e que

    permanecerem [na tropa] pelo tempo que for estabelecido pelos tesoureiros

    de coletas dessa santa Expedição, designados conforme as circunstâncias, a

    remissão de todos os seus pecados e a indulgência como foi costume ser

    dada pelos Nossos Predecessores aos que partiram para reforço [dos

    combatentes] na Terra Santa, e como foi concedida em Ano Jubilar pelos

    mesmos Predecessores e por nós mesmo.

    Decidimos sejam para sempre preservadas ao regaço dos santos Anjos, no

    céu, para permanecerem na felicidade eterna, as almas de todos aqueles a

    quem couber partir para essa santa Expedição. De tal modo que, se vier a

    acontecer que alguns deles partam desta vida se puserem a caminho para o

    prosseguimento de tão santa obra, poderão eles adquirir integralmente essa

    indulgência.11

    A expansão portuguesa se dará nos moldes da espanhola, uma vez que ambas eram

    potências marítimas na sua época; a honra de lançar-se ao mar e apresentar novos mundos ao

    mundo conhecido é tema trabalhado por Camões, que explora, numa retomada de elementos

    11

    Ib., p. 234.

  • 16

    clássicos do paganismo, somados a um pessimismo em relação à pequenez humana diante do

    vasto mundo, em versos de enaltecimento ao povo português. Pelo tamanho da obra, é

    perceptível que o orgulho dilatado deste povo era maior do que quaisquer princípios

    humanitários em relação aos povos indígenas, ou de outras terras conquistados.

    No mar tanta tormenta, tanto dano

    Tantas vezes a morte apercebida

    Na terra tanta guerra, tanto engano

    Tanta necessidade aborrecida

    Onde pode acolher-se um fraco humano?

    Onde terá segura a curta vida ?

    Que este céu sereno não se arme

    Contra um bicho da terra tão pequeno12

    (...)

    Sempre eu cuidei, ó Padre poderoso,

    Que para as coisas que eu do peito amasse

    Tu fosses brando, afável e amoroso

    Posto que algum contrário lhe pesasse

    Mas, pois que contra mim te vejo iroso

    Sem que eu merecesse, nem te errasse

    Faça-se como Baco determina

    Aceitarei, enfim, que fui mofina

    Este povo, que é meu, por quem derramo

    As lágrimas que em vão caídas vejo

    Que assaz de mal lhe quero, pois que o amo

    Sendo tu tanto contra o meu desejo

    Por ele a ti rogando, choro e bramo

    E contra a minha dita, enfim, pelejo

    Ora pois, porque o amo, é maltratado,

    Quero-lhe querer mal: será guardado.13

    (...)

    Os vossos mores coisas atentando

    Novos mundos ao mundo irão mostrando14

    12

    Cf. CAMÕES, Luiz Vaz de. Os Lusíadas. I, 106. São Paulo: Saraiva. 2010. p.35 13

    Cf. CAMÕES, Luis Vaz de. Os Lusíadas. II, 39-40. São Paulo: Saraiva. 2010. p. 46.

  • 17

    A história é cantada numa epopeia marcada pelos sacrifícios que justificam a vida. O

    mundo quinhentista é lugar do sagrado, um espaço de epifania. Por esse motivo, a expansão

    não pode deixar de ser lida como um fenômeno teológico. Ora, como missão é campo da

    Teologia. Foram estas nações que, com seu espírito desbravador, conseguiram levar a

    “civilização” e a fé católica ao continente americano, promovendo assim, o choque de

    culturas e visões de mundo totalmente diversas, que não se entenderam muito bem, sobretudo

    no início.

    Evidentemente que, como colônia portuguesa, e mesmo mostrando sinais de

    crescimento econômico, “especialmente após 1570, o Brasil, oitenta anos depois de

    descoberto, continuava a ser os fundos do Império”15

    , não podia nem se gabar de ter

    universidades ou imprensa, tendo pouquíssimos edifícios nobres e quase nada de riqueza

    mineral que fosse visível. Já o pau-brasil permaneceu até o século XVIII um importante

    produto para a atividade econômica, porém, não podia por si só, sustentar a colônia.16

    A união

    de Portugal com a Espanha em 1580 sob uma única coroa, que trouxera moedas peruanas ao

    Brasil em meados de 1585, favoreceu a vida econômica. No entanto, com o seu rompimento

    em 1640, ficou clara a dependência econômica do Brasil desta fonte de dinheiro. Assim, os

    portugueses retornaram novamente a prática do escambo.17

    Todavia, os germes do futuro já haviam sido lançados na forma da cana-de-açúcar

    vinda de São Tomé no início do século XVI. Em meados do século XVII o Brasil, por ter

    algumas características favoráveis, como o clima e o solo, fará do açúcar o seu alicerce

    econômico.18

    Os senhores de engenho se tornarão os homens ricos da colônia, pois o Brasil

    não tinha uma população indígena grande assentada e pagadora de impostos, e as riquezas

    minerais ainda estavam num futuro distante. Toda a produção de açúcar dependia dos

    colonos, que mesmo assim viam os custos agrícolas e industriais cair diretamente sobre si. Os

    senhores de engenho fizeram assim do Brasil uma colônia muito valiosa, e sem eles não

    haveria muita coisa para sustentar a região.

    Assim, em 1609-11 e, como veremos, também em 1626, a Coroa adotou

    uma posição mais leniente do que deveria em relação às demandas dos

    14

    Cf. CAMÕES, Luis Vaz de. Os Lusíadas. II, 39-40. São Paulo: Saraiva. 2010. p. 46. 15

    SCHWARTZ, Stuart B., Burocracia e sociedade no Brasil Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

    p. 94. 16

    Cf. Ibidem. 17

    Cf. Ib. p. 95. 18

    Cf. Ib. pp. 94-99; 124.

  • 18

    fazendeiros. Os acontecimentos desses anos de fato deixaram claro,

    entretanto, que a Relação, que fora saudada pelos fazendeiros como uma

    aliada contra os comerciantes, era um órgão do governo real e, portanto, uma

    possível ameaça à elite canavieira.19

    Posto isto, a figura dos jesuítas aparece no Brasil colônia como uma realidade vital,

    cuja notoriedade e estilo orientou a vida do Novo Mundo. Eles foram os desbravadores de um

    lugar tido por selvagem em suas terras. Por aproximadamente trezentos anos, a única estrutura

    de civilização presente na colônia era a Igreja. E em muitos casos, a representação da Igreja se

    dava pela presença jesuíta, pois onde chegavam se preocupavam logo em criar escolas,

    igrejas, oficinas, etc. Assim, a presença inaciana se dá justamente pela ausência do Estado de

    direito. Mesmo que possa soar como um Estado dentro de outro, na verdade o que parece é

    que num terreno onde não há um Estado de direito e as distâncias são continentais, os

    habitantes acabam por se organizar da forma que conseguirem, com as leis que conhecem.

    O crescimento jesuíta vem acompanhado de dinheiro e poder, justamente por terem

    consigo a mão-de-obra indígena e controle sobre suas terras e produções. Com isso, os

    administradores da metrópole tinham o desejo de secularizar a atuação jesuíta, pois tendo

    isenções alfandegárias e controle da mão de obra, eles tinham a balança do mercado a seu

    favor.20

    Para resolver esta organização indígena de domínio da Companhia de Jesus, é lançado

    o Diretório do Índio em 1757, cuja orientação é secularizar o território, a mão de obra e

    escoação dos índios, tirando dos religiosos esta receita e obrigando-os a viver de suas

    côngruas, além de passar a eles o direito de civilizar estes povos bárbaros.

    Ao desenvolver a tese do estado ‘arruinado21

    ’ Mendonça Furtado22

    coloca em

    movimento o espírito iluminista que fora assimilado por Marquês de Pombal. Pois fora desejo

    deste a supressão dos jesuítas de todas as colônias portuguesas, uma vez que via neles um

    entrave para o desenvolvimento e prosperidade de Portugal. Contudo, não é exagero lembrar

    que o iluminismo pombalino não passou de um despotismo esclarecido. Tanto ele, quanto

    19

    Ib., p. 124. 20

    Cf. RAYMUNDO, Letícia de Oliveira. http://www.almanack.usp.br/PDFS/3/03_informes_1.pdf. Último

    acesso em 15/03/2013. 21

    ‘Tal ruína’ aparece sempre associada ao poder temporal dos eclesiásticos, os quais, ao contrário dos colonos,

    possuiriam produtivas fazendas, grossos cabedais e se destacariam na extração das drogas do sertão em virtude

    de dominarem a principal mão-de-obra do estado, o índio. E no mais eram isentos do pagamento de impostos,

    fazendo com que esta prosperidade não revertesse em benefício aos cofres públicos’ cf. RAYMUNDO, Letícia

    de Oliveira http://www.almanack.usp.br/PDFS/3/03_informes_1.pdf. 22

    Sendo governador do Pará, acolherá as indicações da Metrópole portuguesa, neste caso contra o modo de

    proceder dos jesuítas que detinham a principal mão de obra da colônia: o índio.

  • 19

    Mendonça de Furtado, seu irmão, não negam a utilidade dos inacianos, visto que do Rio de

    Janeiro à foz amazônica as missões jesuítas tinham bons resultados, pois conseguiam

    converter gentios. O problema é que o campo de atuação deles era maior do que a sacristia:

    Eram conselheiros das principais autoridades administrativas, construtores

    das maiores bibliotecas da Colônia, exploradores dos sertões, linguistas,

    médicos, arquitetos e artesãos dos mais diversos tipos, horticultores,

    criadores de gado, superintendentes de fazenda e administradores de imóveis

    urbanos. Por fim, foram os criadores do teatro brasileiro e os cronistas de

    todos os acontecimentos registrados na época.23

    As funções de um Estado de direito se resumem em garantir a base para o

    desenvolvimento de seu povo, o que pode ser encontrado em filósofos iluministas chamados

    de contratualistas, como Locke, Hume, Rousseau, Voltaire, entre outros. No entanto, por mais

    de trezentos anos, este papel foi sendo feito nas colônias portuguesas pelas ordens religiosas

    e, de modo muito particular, pelos jesuítas.

    Em poucos países da América uma língua indígena teve tanta difusão que o

    tupi antigo conheceu. Chegou a ser por séculos a língua da maioria dos

    membros do sistema colonial brasileiro, de índios, negros africanos e

    europeus, contribuindo para a unidade política do Brasil.(...) Em formas

    evoluídas, foi falada durante a metade da nossa história, mais que a língua

    portuguesa, até cerca de 1750, que só se impôs nacionalmente após a

    segunda metade do século XVIII.24

    A influência foi tamanha que, diga-se de passagem, a língua comum, o nheengatu, era

    o tupi, não mais tal e qual falado pelos índios quinhentistas, mas transformado em língua

    literária pelos “soldados de Cristo”. O quadro só foi alterado com a ascensão de Pombal ao

    poder e a expulsão dos jesuítas de seus domínios.

    Assim, a colonização do Novo Mundo dá significado ao desejo de expansão dos

    ibéricos e, para tanto, fornece elementos para a visão teológica do universo e para a

    construção de um mundo que tenha a Europa como centro. Neste aspecto, a sujeição de povos

    23

    SROUR, A. C. Introdução. In: MURY, P. História de Gabriel Malagrida. São Paulo: Loyola. 1992 p. XIV –

    XV. 24

    NAVARRO, E. A., Método moderno de Tupi Antigo. Petrópolis: Vozes. 1998. p. XI-XIII.

  • 20

    e de suas culturas acaba sendo justificável, se não necessária. É neste contexto que a Igreja

    está inserida.

    1. 2 Os aspectos das relações sócio-políticas na colônia

    O projeto político e econômico da metrópole é estabelecer em seus domínios um

    modelo humano e proveitoso de boa colonização, de modo que tanto mais servos trabalhando

    de boa vontade seriam menos difíceis de controlar e mais lucrativos para os donos de aquém e

    além-mar. Todavia, devido aos abusos para com os índios se fez necessário, tanto na América

    espanhola como no Brasil, fazer leis que dessem algumas garantias a estes, livrando-os de

    todo tipo de maus tratos, conferindo-lhes alguns direitos. Isso, no entanto, não era fiscalizado,

    até porque era devido, fazendo com que a situação permanecesse sem evolução.

    Os escravos forneciam a mão de obra das fazendas de cana-de-açúcar, e

    adquiri-los representava grande despesa. De início, os índios cativos

    forneciam braços para as plantações, e na verdade continuaram a ser usados

    durante todo o século XVII, mas os escravos negros importados da África

    ganhavam cada vez mais importância como mão de obra nos engenhos. Em

    1600, uma escrava negra era vendida na Bahia por cerca de 30 mil-réis e um

    escravo negro, por 40 mil-réis. Portanto, um engenho com 150 escravos

    comprometia cerca de seis contos de réis com sua força de trabalho. A união

    com a Espanha acabou provocando uma escassez de escravos negros na

    Bahia e os preços subiram. Contratadores portugueses importavam cargas de

    africanos para a América Espanhola, onde alcançavam ótimos preços. Com

    isso, o número de escravos disponíveis no Brasil caiu e, consequentemente,

    os preços aumentaram. A falta de negros no Brasil levou à volta do índio

    como trabalhador cativo e estimulou novos ataques às populações indígenas,

    especialmente na área de São Paulo. Os infelizes índios que caíam nas mãos

    dos paulistas eram vendidos a fazendeiros do Recôncavo e de Pernambuco.25

    A base da economia e da política aqui no continente, evidentemente, não é a mesma da

    metrópole: a mão-de-obra escrava. A administração de assuntos referentes a esses e a outros

    temas será feita na metrópole, numa tentativa como que de controle à distância. Como se verá,

    25

    SCHWARTZ, Stuart B., Burocracia e sociedade no Brasil Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

    p. 107.

  • 21

    as medidas serão tomadas por quem nunca aqui esteve, com as armas próprias exigidas pela

    lonjura: a força e a burocracia. No meio de tudo isso, a Igreja.

    1. 2. 1 “Encomienda”26

    , “Requerimiento”27

    e o Estatuto do Índio28

    Tendo formado um “grupo de trabalho”, denominado “junta de Burgos”,

    ordenando, entre outros, por seus conselheiros Palácios Rúbios, Juan Rodríguez de Fonseca29

    e alguns teólogos, o rei da Espanha procurou encaminhar a situação dos índios, encaminhando

    também a situação da escassez de mão-de-obra na América espanhola.30

    A “junta de Burgos” vai elaborar sete Proposições que servirão como princípios

    para a conclusão das Leis de Burgos. Tanto nas Proposições como depois nas Leis permanece

    a contradição entre a liberdade dos índios proclamada e o trabalho forçado exigido. Já em seu

    preâmbulo as ordenanças de Burgos dizem que os índios são “por natureza inclinados à

    ociosidade e maus vícios (...), sem nenhuma virtude ou doutrina”.

    “A primeira Lei indigenista vai forçar o deslocamento dos índios para os

    povoados dos espanhóis” e vai também ratificar a Encomienda. O superior dos dominicanos,

    Pedro de Córdoba, viu nas Leis de Burgos “a perdição dos índios” e teve um susto em saber

    que tais Leis haviam sido feitas por tantas e tais pessoas de tanta autoridade, solenidade e com

    tamanho consenso, fazendo parecer que ninguém podia realizar coisa alguma em contrário, a

    não ser que fosse tido como presunçoso e atrevido ou insano.

    No entanto, por intervenção de Pedro de Córdoba, fora redigido em Valladolid

    quatro “moderações”, com medidas protecionistas que, em 28 de julho de 1513, foram

    anexadas às Leis de Burgos.

    Ordenanças para o tratamento legal dos índios inclinados à ociosidade e aos

    maus vícios: as Leis de Burgos (Burgos, 27. 12. 1512/23. 1. 1513).

    26

    Trabalho forçado em regime de semi-escravidão cf. Ibidem. pp. 112-124. 27

    É uma declaração de guerra ritualizada com o intuito de explicar a “razão da conquista” aos índios da América

    Central (1524), de Yucatán (1527), da Guatemala (1530), do Peru (1532), da Venezuela (1534), do Panamá

    (1535), de Nova Granada (1537) e do Rio da Prata (1540), praticamente até a promulgação das Leis Novas, de

    1542/43. Existem várias versões e adaptações do Requerimiento. 28

    Datado de 1757. 29

    Bispo de Palencia e depois, encomendeiro de 800 índios nas Antilhas. 30

    No momento dos descobrimentos, durante todo o século XVI, a Espanha passa por uma crise econômica, e a

    população tem alguma esperança que das Índias Ocidentais lhe venha algum alívio. Ocupados com os seus

    problemas, não se inquietam com a sorte dos índios de além-mar. A maior parte, se não todos do clero, era

    solidária com os seus fiéis, e viviam preocupados com o pão de cada dia para si, para os seus, aqui e agora.

  • 22

    Dom Fernando, (...). Eu e a sereníssima Rainha dona Isabel, minha cara e

    muito amada mulher, a santa glória tenha, sempre tivemos muita vontade

    que os caciques e índios da Ilha de San Juan chegassem ao conhecimento de

    nossa fé católica, e para mandamos fazer e foram feitas algumas ordenanças

    tanto por nós como por nossa ordem pelo comendador Bobadilla e pelo

    comendador maior de Alcântara, Governadores que foram à ilha de San

    Juan, e depois dom Diego Colombo, nosso Almirante, Vice-rei e Governador

    da ilha espanhola a das outras ilhas que foram descobertas pelo Almirante

    seu pai e por sua indústria, e nossos oficiais que residem na dita ilha, e

    segundo se viu por longa experiência, diz que tudo não basta para que os

    ditos caciques e índios tenham o conhecimento de nossa fé, que seria

    necessária, para sua salvação porque são naturalmente inclinados para à

    ociosidade e maus vícios de que nosso Senhor é desservido e não há

    nenhuma maneira de virtude nem doutrina, e o principal empecilho que têm

    para não se emendarem de seus vícios e de não lhes de ser útil nem impressa

    neles a doutrina, nem aceitam, é terem seus povoados e moradia tão longe

    como têm e afastados dos lugares onde vivem os espanhóis que daqui foram

    e vão povoar a dita ilha, (...)

    Como se vê, o argumento utilizado aqui para justificar a domesticação do povo

    selvagem é a lógica militar do divide et impera, separando os indígenas de suas famílias e, sob

    o pretexto de incutir neles a fé católica. E como é perigosa uma mente ociosa, a proposta é

    preencher este tempo com trabalhos, ainda que contra a vontade deles (dos índios). E como o

    melhor modo de evangelização, segundo El-Rey, é o da proximidade aos povos já cristãos,

    seria oportuno que estes índios se ocupassem com os afazeres propostos pelos espanhóis,

    numa relação não de servidão como na Europa, mas de senhor-escravo. Assim é que se segue

    o teor do texto,

    (...) porque, posto que durante o tempo que vêm para servir os doutrinem e

    lhes ensinem as coisas da nossa fé, depois de terem servido aos seus

    povoados, devido ao fato de estarem afastados e á má inclinação que têm,

    esquecem logo tudo o que lhes ensinaram e voltam á sua costumeira

    ociosidade e vícios e, quando outra vez tornam a servir, são tão novos na

    doutrina como da primeira vez porque, embora o espanhol que vai com eles

  • 23

    a seus povoados conforme está ordenado lhes recorde e repreenda, como não

    têm temor dele, não é útil e respondem que os deixem folgar pois para isso

    vão as suas casas, e todo seu fim e desejo é ter liberdade de fazerem o que

    têm vontade, sem respeitar a nenhuma virtude, e vendo que isso é tão

    contrário a nossa fé e quanto somos obrigados, por todos os modos e

    maneiras do mundo possíveis, a que se busque algum remédio, tendo nós

    alguns membros do nosso conselho e pessoas de boa vida, letras e

    consciência, e obtida informação do outros que tinham muita notícia e

    experiência das coisas da dita ilha e da vida e maneira dos ditos índios,

    pareceu por muitas considerações que o mais proveitoso que no momento se

    poderia prover seria mandar mudar a moradia dos caciques e índios para

    perto dos vilarejos e povoados dos espanhóis, tanto porque com o contato

    contínuo que com eles terão como pelo fato de ir ás igrejas nos dias de festa,

    ouvir missa e os ofícios divinos e ver como os espanhóis o fazem e a

    disposição e cuidado que têm consigo, terão de lhes ensinar e exercitar nas

    coisas de nossa santa fé católica, está claro que mais depressa aprenderão e

    depois de aprendidas não as esquecerão como agora, e se algum índio

    adoecer, será brevemente socorrido e curado e se dará vida com ajuda de

    nosso Senhor a muitos que por não saber deles e por não curá-los morrem, e

    todos se livrarão do trabalho das idas e vindas que, por serem suas casas

    longes dos povoados dos espanhóis, serão muito aliviados e não morrerão os

    que morrem nos caminhos tanto por enfermidade como por falta de

    mantimentos, e os tais não podem receber os sacramentos que como cristãos

    são obrigados e lhes será dado se adoecerem nos ditos povoados, e as

    crianças que nascerem serão logo batizadas e todos servirão com menos

    trabalho e para maior proveito dos espanhóis por estarem mais

    continuamente em suas casas, e os visitadores encarregados de visitá-los o

    farão melhor e mais frequentemente e os proverão de tudo o que lhes falta e

    não permitirão que tomem suas mulheres e filhos como fazem estando em

    seus ditos povoados afastados e cessarão outros muitos males e danos que

    aos ditos índios são feitos por estarem afastados que, porque lá são notórios,

    aqui não são ditos, e lhes será muito útil tanto para a salvação de suas almas

    como para o proveito e utilidade de suas pessoas e conservação de suas

    vidas, por causa destas coisas e por outras muitas que poderiam ser ditas a

    esse respeito, foi decidido que para o bem e remédio de todo o sobredito

    sejam logo trazidos os ditos caciques para perto dos povoados dos ditos

  • 24

    espanhóis que há na dita ilha e para que ali sejam tratados, instruídos e

    olhados como se deve e sempre desejamos, mando que doravante se guarde e

    cumpra o conteúdo que segue.31

    A lei de Burgos aparece essencialmente negativa, devido ao fato de que a

    colonização é uma conquista com os “direitos” das guerras de conquista, a começar pela

    escravidão. A escravidão era vista com “bons olhos”, justamente porque se tinha em mente

    que os índios eram incapazes de assumir suas responsabilidades e seu autodomínio.

    Já o Requerimiento era dirigido ao povo e seus caciques antes do confronto

    militar, para estabelecer os “critérios” de sujeição ou guerra justa. A intimação era dada,

    exigindo que se tais se sujeitassem à autoridade do Papa e do Rei da Espanha e abraçassem a

    fé cristã. A leitura do Requerimiento lhes era feita em latim ou em espanhol, só depois disso o

    imperativo, a intimação é dada aos índios. Tal Requerimento é oficializado em nome de

    “Fernão V da Espanha domador de povos bárbaros”. É esse divino domador que denota e faz

    saber que “Deus uno e eterno criou o céu e a terra, e escolheu Pedro, para que de todos os

    homens do mundo fosse senhor e superior (...) lhe dando todo o mundo como seu reino,

    domínio e jurisdição”. E mais: “um dos pontífices passados32

    fez a doação destas Ilhas e da

    Terra Firme do mar oceano aos ditos Rei e Rainha”.33

    Se assim fizerdes, fareis bem, e aquilo a que sois tidos e obrigados, e Suas

    Altezas, e eu em seu nome, vos receberão com todo amor e caridade, e vos

    deixarão vossas mulheres, filhos e bens livres sem servidão, para que deles e

    de vós façais livremente tudo o que quiserdes e considerardes bom e não vos

    compelirão a vos tornardes cristãos, salvo se vós, informados da verdade,

    vos quiserdes converter á nossa fé católica, como fizeram quase todos os

    habitantes das outras ilhas e, além disto, Sua Alteza vos dará muitos

    privilégios e isenções, e vos fará muitas mercês. Se não fizerdes isso, ou

    maliciosamente vos demorardes, certifico-vos que com a ajuda de Deus eu

    entrarei com poder contra vós e vos farei guerra por todas as partes e

    maneiras que eu puder, e vos sujeitarei ao jugo e obediência da Igreja e de

    Suas Altezas, e tomarei vossas pessoas e as de vossas mulheres e filhos eu os

    farei escravos, e como tais os venderei e disporei deles como Sua Alteza

    31

    SUESS, Paulo. A Conquista Espiritual da América. Petrópolis: Vozes, 1992. pp. 657-658. 32

    Alexandre VI. 33

    Da Espanha.

  • 25

    mandar, e tomarei vossos bens e vos farei todos os males e danos que puder,

    como a vassalos que não obedecem nem querem receber a seu senhor e a ele

    resistem e contradizem; e protesto que as mortes e danos que resultarem

    disso sejam por culpa vossa e não de Sua Alteza, nem minha, nem destes

    cavaleiros que comigo vieram, e de como digo e requeiro peço ao escrivão

    presente que mo dê por testemunho e assinado, e aos presentes rogo que

    disso sejam testemunhas. Assinado pelo bispo de Palencia, pelo bispo frei

    Bernardo, pelos membros do conselho e pelos frades dominicanos.34

    Já o Diretório dos índios obviamente é posterior, mas vem no contexto de garantir

    a liberdade para os índios no Brasil. Liberdade essa que maldosamente é tida por Mendonça

    Furtado num linguajar malicioso que, ao defender a liberdade dos índios, não o faz por lhes

    querer bem, mas para quebrar a “cadeia” que se encontra nas mãos dos jesuítas e inviabiliza o

    progresso da colônia. No século XVIII a coroa portuguesa procurou reverter essa situação,

    convertendo essa dinâmica econômica em benefício do reino, bem como ampliá-la, inserindo-

    a no sistema de tráfico africano, e consequentemente, no sistema mercantil do Atlântico Sul.35

    A questão indígena transforma o Brasil em um turbilhão dos interesses da Coroa

    portuguesa, dos jesuítas e dos colonos. A Relação36

    é instaurada à Bahia e imediatamente “o

    caldeirão transbordou”. Os colonos portugueses conheciam de modo superficial as bases

    morais e teológicas da política indígena, e mesmo a Coroa tentando limitar a encomienda e

    reformar o repartimiento nas Índias espanholas, os senhores de engenho brasileiros ainda

    achavam que a encomienda, em sua forma pura, poderia ser estabelecida no Brasil. Tal

    opinião significava ignorar a defesa cada vez mais resoluta da liberdade indígena pela Coroa,

    como expressavam as leis de 1587, 1595 e 1605.37

    Por estes motivos, fica difícil estudar o século XVIII sem levar em conta os processos

    de colonização desde a chegada dos europeus em solo americano. A mentalidade pouco

    mudou em trezentos anos, a ponto de senhores de engenho, desconexos da realidade

    internacional de sua época desejarem medidas políticas e econômicas em situações que

    poderíamos chamar de anacrônicas, pois só seriam válidas duzentos anos antes,

    aproximadamente.

    34

    SUESS, Paulo. A Conquista Espiritual da América. Petrópolis: Vozes, 1992. p. 674. 35

    Cf. RAYMUNDO, Letícia de Oliveira. http://www.almanack.usp.br/PDFS/3/03_informes_1.pdf. Último

    acesso em 15/03/2013. 36

    Tribunal Superior da Bahia, instituição judiciária e administrativamente estabelecida no Brasil em 1609. 37

    SCHWARTZ, Stuart B., Burocracia e sociedade no Brasil Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

    p. 120.

  • 26

    Enfim, a Igreja aparece nesta parte da História pela “porta” da economia e da política,

    quando organiza o primeiro corpo de leis escritas nesta parte do mundo, mas fazendo uma

    leitura a partir da doutrina, ou seja, sua influência está agora inserida principalmente no

    campo político, mas também no econômico em que a partir dos princípios da fé cristã

    católica, as leis que dizem relação a essas áreas são elaboradas. Em 1707 são promulgadas as

    Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, que tem por objetivo, a partir da legislação

    canônica, regulamentar a vida colonial em todos os seus setores, mas a partir da realidade

    eclesial. Sua capacidade de normatização abrange até a gana dos senhores de escravos, negros

    ou índios, proibindo o trabalho escravo em dias de domingo e dias santos38

    . Ora, se tal

    mandamento foi feito, é porque havia abusos. Se chega a virar lei, é por haver senhores que

    obrigassem escravos a violar o dia do Senhor. No entanto, por não haver uma forma de

    executar civilmente tais determinações, na defesa dos direitos fundamentais dos índios e

    negros, é uma lei difícil de por em prática. Em certa medida, por meio de abstração, é notória

    a busca pela legitimação do trabalho escravo indígena.

    Assim, é também neste contexto que se entende, num Estado a ser construído, a

    mudança da Inquisição de um departamento eclesial para um braço armado do poder civil.

    Além disso, a ausência de forças controladoras da ordem social na Colônia era um problema a

    ser resolvido.

    1. 3 aproximação do universo religioso colonial

    A partir do século XVIII, uma santa ganhou um prestígio muito especial na

    colônia luso-brasileira: Rita de Cássia, a santa das ‘causas impossíveis’. Seu

    culto se espalhou rapidamente em várias vilas e cidades, onde surgiram

    capelas e igrejas em seu nome; diversas localidades também foram

    colocadas sob sua proteção.39

    A mentalidade religiosa do século XVIII não se dá de forma homogenia no mundo

    católico. Enquanto na metrópole o tom é dado pelo Iluminismo, nas colônias a questão é de

    sobrevivência. A devoção aos santos na colônia é bastante difundida a ponto de surgir uma

    38

    Cf. VIDE, S. M. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. São Paulo: Edusp. 2010. Título XIII §379. 39

    AZZI, Riolando. A teologia católica na formação da sociedade colonial brasileira. Rio de Janeiro: Vozes,

    2005. p. 264.

  • 27

    ‘teologia do favor’40

    que consiste justamente no fato de acreditar que em razão dos santos

    estar mais perto de Deus, eles podem assim, obter com mais facilidade os favores celestes ou

    graças para os pobres mortais.41

    Condenados a viver na terra devido ao pecado original, os

    homens tinham perdido qualquer direito de serem beneficiados por Deus durante esta vida e

    depois da morte.42

    De acordo com Arilda Inês Miranda Ribeiro, fora a confusão étnica dada no período

    colonial, por aproximadamente trezentos anos, a população feminina branca era composta de

    “órfãs, ladras, prostitutas, assassinas, alcoólatras, entre outras. As que não fariam falta em

    Portugal” 43

    . Soma-se a isso o fato de homens e mulheres vindo com a intenção de voltar

    depois de explorar a terra, sem a intenção de criar vínculos44

    . A colônia pode ser encarada, a

    partir daí, com um imenso purgatório.

    Um testemunho sobre a situação da vida colonial, de modo particular no Nordeste, que

    é objeto desta parte do estudo, vem da pena de d. Joaquim Ferreira de Carvalho, de 1799,

    encontrado no rico trabalho de Pollyanna Gouveia de Mendonça45

    : “Tenho passado pelo

    desgosto de não achar neste bispado nem letras, nem religião, nem costumes, e não havendo

    as primeiras, a falta da segunda e da terceira é consequência, sendo entre todos os mais

    escandalosos os religiosos”.

    O Concílio de Trento46

    que tocara em questões delicadas que foram levantadas

    pela Reforma Protestante e também pretendia tomar pulso de todo um conjunto de reformas

    práticas, cuja falta, dolorosa e ressentida tinha gerado ou ao menos motivado o rompimento

    da cristandade após a grande crise que se delongava pelos séculos XIV- XVI. Entre essas

    questões nasceu a preocupação com vida do clero, que nem sempre se revelava como a mais

    40

    Cf. ib., p. 266. 41

    Ibidem. 42

    . AZZI, Riolando. A teologia católica na formação da sociedade colonial brasileira. Rio de Janeiro: Vozes,

    2005. p. 267. 43

    RIBEIRO, Arilda Inês Miranda. Mulheres e Educação no Brasil colônia. Campinas: Ed. UNICAMP. 1987. p.

    17. 44

    Ib. p. 33. 45

    MENDONÇA, P. G. Parochos imperfeitos. 2 Tese de Doutorado em História UFF. Rio de Janeiro 2011. 341

    p. 35 46

    “A reforma moral e intelectual do clero constitui uma das preocupações que mobilizam os sacerdotes reunidos

    no Concílio de Trento (1545-1563). Nesse campo, a resposta à doutrina do sacerdócio universal, defendida pelos

    seguidores de Lutero, foi a revalorização da figura do padre e a reiteração do celibato clerical, instituído para

    toda a Igreja pelo IV Concílio de Latrão (1215). Procurava-se, assim, promover a formação de um clero mais

    austero em seus costumes, mais bem preparado intelectualmente, mais coeso enquanto corpo social

    hierarquizado e mais obediente a Roma. Para realizar essa tarefa foram mobilizados os bispos, que tiveram poder

    reforçado, e acionadas as justiças eclesiástica e inquisitorial, para punir as condutas consideradas desviantes.

    Como afirmou Delameau, ‘a história da Reforma católica demonstra que o novo esforço realizado para

    evangelizar as massas não foi frutífero até que o episcopado decidisse velar mais ativamente que antes pelo clero

    paroquial’”. FEITER, Bruno, SOUZA, Evergton S., A Igreja no Brasil, Normas e práticas durante a vigência das

    Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. São Paulo: Editora Unifesp, 2011. p. 147.

  • 28

    católica. Assim, nasce com Trento o seminário para a formação do clero. Questão essa que

    acompanha a Igreja praticamente, por assim dizer, desde sempre, pois os limites do clero

    sempre foram motivo de grandes sofrimentos e cismas para a Igreja.

    Apesar dos esforços de membros da Companhia de Jesus, o Concílio de

    Trento não teve quase nos dois primeiros séculos de vida colonial luso-

    brasileiro. Apenas na primeira metade do século XVIII surgiu um novo

    impulso por promover a doutrina tridentina, especialmente através das

    Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, promulgadas em 1707

    por D. Sebastião Monteiro da Vide; alguns anos depois também o moralista

    baiano Nuno Marques Pereira tentou difundir esses princípios em sua obra

    Compêndio Narrativo do Peregrino da América; mas os resultados não

    foram muito expressivos.47

    No fundo das questões do Concílio a questão crucial era a da centralização da

    hierarquia católica, num mundo moderno que se expandia, processo esse que hoje

    denominamos solenemente de globalização. Os bispos começaram a se ocupar de sua própria

    reforma. Começaram abandonando o dever de “residência” na diocese. Pois em geral os

    bispos nobres viviam em seus castelos, palácios ou vilas familiares, governando e extorquindo

    as dioceses, tendo como mediador, administradores convenientes e submissos. Visavam ainda

    à questão de que os pastores deveriam estar junto de seus rebanhos, assumindo diretamente a

    responsabilidade da pregação, da catequese e da administração dos sacramentos. Esse era o

    modelo mínimo de assiduidade que o Concílio Tridentino visou implantar.

    Com essa impostação tridentina, a formação da sociedade brasileira continuou

    tendo uma inspiração de viés medieval, isto é, recebendo uma tradição teológica que tem

    como base a noção de Cristandade, com a qual passou a ser identificado também o reino

    lusitano. Igreja e Estado são apresentados como duas realidades que devem permanecer

    juntas. Portanto, neste momento a reflexão teológica passa a ser feita com “o chão lusitano”

    sendo este uma expressão da face católica.48

    Esse estilo de teologia sendo assimilada a um

    reino católico, traz consigo a ideia do monarca ser alguém destinado por Deus e também uma

    47

    AZZI, Riolando. A teologia católica na formação da sociedade colonial brasileira. Rio de Janeiro: Vozes,

    2005. p. 8. 48

    Cf. Ibidem.

  • 29

    concepção de eleição49

    do povo português, isto é, povo eleito por Deus para levar a fé católica

    até o fim do mundo.50

    A concepção da Igreja como Cristandade constitui a base de toda a

    construção teológica vigente no reino lusitano, e transplantada para a colônia

    brasileira. Ao longo dos três primeiros séculos de colonização lusitana

    perdurou no Brasil o modelo de Igreja – Cristandade. Tratava-se de uma

    reviviscência da concepção de Igreja que perdurara na Idade Média, e cujas

    origens remontavam ao século IV, quando Constantino assumira o governo

    do Império Romano, e se constituiu como um defensor e promotor da

    religião cristã.51

    Tendo como ponto alto de sua expansão colonizadora a história lusitana fora

    iniciada através do território africano. Tendo um projeto de conquista territorial que tinha

    raízes profundas na tradição ibérica, quando os espanhóis iniciaram a reconquista do território

    dominado pelos árabes. Tanto o projeto hispânico como o lusitano de expansão territorial

    foram identificados com o conceito teológico de expansão da fé, principalmente através da

    luta contra os mouros, tidos como inimigos de Cristo.52

    Portugal assumirá a vertente teológica da Península Ibérica que afirma que a

    propagação da fé deve ser feita para que os infiéis tenham acesso à salvação e nenhum venha

    a se perder, mesmo que isto signifique que seja necessário ser realizado a força pelos reinos

    católicos.53

    Sob essa perspectiva, a vitória sobre os mouros era a vitória da cruz que se

    sobrepunha à meia-lua islâmica, difundindo assim ao mesmo tempo a civilização cristã.54

    Então, aqueles da Península Ibérica são tidos como defensores da fé cristã e lutadores

    corajosos, merecendo deste modo todo o apoio da Santa Sé.

    A monarquia portuguesa, por conseguinte, é exaltada pelo papa por sua

    atuação nas novas terras conquistadas, no sentido de difundir a fé e

    49

    O conceito de escolha divina não era privilégio dos portugueses, mas uma concepção teológica que fazia parte

    da Península Ibérica. cf. ib., p. 37. 50

    Cf. ib., pp. 9-11. 51

    Ib., pp. 15-34. 52

    Ib., p. 36. 53

    O famoso teólogo espanhol Juan Gines de Sepúlveda defende tal argumentação e a explicita. cf. AZZI,

    Riolando. A teologia católica na formação da sociedade colonial brasileira. Rio de Janeiro: Vozes, 2005. pp.

    39-40. 54

    Ib., p. 41.

  • 30

    promover a salvação das almas, responsabilizando-se, inclusive, pela

    celebração do culto católico. Trata-se, portanto, de uma verdadeira missão

    religiosa, e como tal reconhecida oficialmente pelo supremo magistério

    eclesiástico. Por essa razão, o representante de Cristo confere a D. Afonso e

    ao Infante D. Henrique todo o direito de dominação sobre os sarracenos e

    demais fiéis, bem como sobre as terras por eles habitadas.55

    A conversão do gentil será tida sempre como algo necessário para a sua salvação,

    de modo que aquilo que for feito será compreendido como que para o bem deles. No mesmo

    patamar serão vistos os índios no Brasil, muito embora o Brasil não entenda a concepção de

    infiel como mouro, pois isto foi trazido na mala dos portugueses para a colônia. A expressão

    de fé indígena será vista pelos portugueses como algo de expressão diabólica.56

    Substancialmente, o quadro religioso no Brasil neste sentido é ‘bem calmo’ congregando em

    seu meio diversas realidades de fé que, mesmo perseguidas e condenadas, apontavam para um

    futuro de tolerância aparente inimaginável.

    Tendo também a presença dos cristãos novos57

    que foram enviados para cá, tendo

    em vista que a maioria daqueles que vinham para o Brasil não tinham fama muito boa, isto é,

    não faziam muita falta em Portugal. Todavia, o horizonte de fé do Brasil era todo com tecido

    português que recebera influência dos espanhóis levando adiante a expansão da fé como

    símbolo de um povo, uma nação. Portugal assume então, um caráter escatológico de povo

    eleito a espera da salvação.

    A vida que teologicamente era tida como “dom de Deus” na colônia passou a ser

    “um bem em vista do colonizador”, ou seja, tudo era acomodado com as mais “santas”

    argumentações teológicas para favorecer a vida dos colonos. Para que tudo atingisse o seu

    objetivo de tirar proveito de tudo o máximo possível, mesmo com prejuízo daqueles que eram

    tidos como “imagem e semelhança de Deus”, na colônia a imagem construída de Deus fora

    outra, consistia justamente em uma concepção em detrimento dos povos “gentios”. Para

    legitimar as arbitrariedades se fazia uso do direito de guerra como se tudo ali estivesse à

    disposição dos colonos. Assim sendo, do mesmo modo que se condenou a visão de fé dos

    55

    Ib., pp. 44-62. 56

    Ib., pp. 63-93 57

    “A perseguição e segregação dos judeus por parte das autoridades cristãs teve início em fins do século IV,

    quando a crença em Jesus tornou-se oficial no Império Romano”. ib., p. 109; “Considerados como algozes do

    Filho de Deus, os judeus passaram a ser vistos como a expressão da maldade humana. Por isso, no idioma luso-

    brasileiro criou-se o verbo judiar para indicar a prática de maldade, e o substantivo judiação para definir esse

    próprio ato”. Ib. p. 110.

  • 31

    índios, posteriormente foram feitas as mesmas coisas aos escravos negros e suas religiões de

    matriz africana.

    Pelo que se vê, a paisagem pouco ou nada mudou ao longo do século. Se o campo

    da profissão de fé não encontrava espelho na Europa, no campo da disciplina o procedimento

    não era diferente. Segundo Mendonça, no período de um século, por 63 anos a sede do

    bispado do Maranhão ficou vacante58

    . O material humano é o mesmo, ao menos a grande

    maioria, durante o período colonial inteiro. É diante de um ambiente amplamente hostil que se

    dá a evangelização deste período. Diferentemente da metrópole, onde cada qual tem o seu

    papel definido na sociedade, os elementos novos das etnias negras e indígenas, com ampla

    variedade dentro de seus próprios grupos, são somados a este universo peculiar colonial, pois

    trazem consigo não só sua diferença física, como também o seu imaginário e seus valores

    culturais. Tudo isso se funde por aproximadamente 300 anos na colônia. Uma vida bruta.

    Num lugar em que as pessoas estão para tirar o máximo de proveito da terra,

    longe das autoridades metropolitanas e de vínculos morais familiares, qualquer elemento que

    cheire prejuízo se torna uma séria ameaça. Então, as discussões tidas como iluministas não

    tinham um terreno fértil na colônia, pois a sobrevivência numa terra sem lei exige mesmo

    outro tipo de discurso, ou seja, a vida gritava mais alto.

    A religiosidade popular assumirá um rosto muito particular aqui no Brasil: teremos

    muito santo (devoção) e pouca oração, as novenas terão aqui grande propagação. A religião

    não compreendida ganha ares de práticas supersticiosas. A prática dos jesuítas tinha uma

    mística diversa, isso desde os primeiros colonos. Sobretudo as duas devoções que vão marcar

    a sua pastoral: o Sagrado Coração de Jesus como símbolo da caridade, do amor a Deus e ao

    próximo; e Nossa Senhora da Boa Morte, que oferece um pouco de transcendência às pessoas

    que vivem apenas voltadas ao enriquecimento a qualquer custo, sem levar em conta modo

    como a pessoa deve estar no dia do encontro com Deus na hora da morte. Tais elementos vão

    contribuir para inculcar valores cristãos em sertanejos embrutecidos pela realidade da vida. O

    dado do sagrado é algo que permeia a vida de cada pessoa, pois esta foi criada aberta ao

    transcendente.59

    58

    MENDONÇA, P. G. Parochos imperfeitos. 2 Tese de Doutorado em História UFF. Rio de Janeiro 2011. p. 37. 59

    A fé que um dado antropológico que condiciona a vida de cada pessoa, mesmo que esta diga que não tem fé, ou mesmo que não acreditam em Deus. Deste modo, o crer hoje tem a necessidade de ser re-contextualizado, ou

    seja, não somente se o crer é racional, mas se tem sentido. E para tanto, não partimos do zero, mas de uma

    Tradição, e assim, um crer que cai do céu é impensável hoje. Já que a fé é um dado antropológico, como

    distinguir então, a fé assim chamada natural da fé revelada? Por exemplo, o cristianismo agrega valores a esta fé

    primeira, isto é, agrega um critério e uma forma. Pois, dizer fé somente, é dizer um desenvolvimento

    antropológico, já colocar o adjetivo cristão, significa dar um critério de fé. Essa é uma diferença epistemológica

  • 32

    É possível estabelecer, didaticamente, uma fronteira entre dois universos do Brasil

    Colônia: o campo da civilização (algo que gira em torno de um terreno burocrático, herdado

    da metrópole) e o campo indígena. Alguns missionários começarão a deixar os índios viverem

    a sua vida ‘primitiva’ e irão se dedicar aos colonos. Porém, os índios continuam ali a espera

    de alguém que lhes estenda a mão e não somente queira trazer ‘a verdade’ para eles. Verdade

    esta que em séculos anteriores se mostrou dolorosa para eles e para os negros e por muitos

    anos em diante ainda. Verdade que antes de qualquer coisa não era que os índios estivessem

    pedindo algo, mas somente tentando fazê-los compreender que eles eram índios, nem mais

    nem menos, ou seja, mereciam ao menos um pouco de respeito. As suas expressões não eram

    negação do mundo do branco, nem suas crenças coisa do diabo. A visão de mundo era

    diversa, pois seus valores também eram outros.

    A ocupação do território brasileiro por parte dos lusos não foi feita de forma

    pacífica. Muitas tribos indígenas não se conformaram ao se verem privadas

    das regiões que então ocupavam, e passaram a reagir com violência: ataques

    a engenhos e fazendas, roubo de animais e objetos, morte de colonos.60

    Muitos missionários aprovavam esse modo violento de proceder da ocupação

    portuguesa, e muitas vezes eram eles a incentivar por meio dos governadores e capitães as

    “guerras santas” contra os índios. Já a sobrevivência indígena depois da guerra tinha como

    condição a adesão da catequese e sua posterior conversão à fé católica. A situação era

    conversão e submissão ou a morte, de modo que muitos preferiam a morte para não viver

    naquele pandemônio que se tornara a colônia depois da chegada dos espanhóis e portugueses

    na América. É importante salientar que não foram todos os missionários que tanto na América

    espanhola como na portuguesa eram a favor d’aquilo que se fazia com os índios, alguns

    inclusive lutaram contra todo esse modo miserável de ação.61

    fundamental. Posto isto, se compreende que toda pessoa em todo temo e lugar, é uma pergunta aberta, porém,

    não definitivamente, pois sua resposta se encontra no divino. Para um estudo sobre esta perspectiva, Cf. RUBIO,

    A. G. Elementos de Antropologia Teologica. Petropolis: Vozes. 2009. p.104. 60

    AZZI, Riolando. A teologia católica na formação da sociedade colonial brasileira. Rio de Janeiro: Vozes,

    2005. pp. 128-129. 61

    Desde fins de 1515, sua vida se torna um vaivém entre os dois Mundos, o Velho e o Novo. Os objetivos e

    motivos desses deslocamentos e do total empenho de Las Casas na plena força de seus trinta anos se poderiam

    condensar neste projeto imenso e fecundo: discernir as modalidades e os caminhos de uma colonização

    verdadeiramente humana, para o bem dos espanhóis e sobretudo dos índios, unindo-os numa rede de

    solidariedade fraterna. cf. JOSAPHAT, Frei Carlos. Las Casas: Todos os Direitos para todos.São Paulo: Edições

    Loyola, 2000. p. 70.

  • 33

    Então, a condição religiosa do continente é marcada pela confusão do papel da

    Igreja na missão. Mesmo vindo para anunciar a fé católica, sinônimo de evangelização no

    período, a Igreja, em suas diversas instituições religiosas e diocesanas, acabou sendo um

    instrumento de domesticação dos índios, civilizador dos colonos e concorrente econômico da

    Coroa, tomando medidas as mais das vezes contrárias ao próprio Evangelho, como denunciam

    Antônio Vieira, Bartolomé de Las Casas, Gabriel Malagrida, entre outros.

    1.4 A vocação da Inquisição e seu papel no período colonial

    Na Europa do século XIII, não havia a hegemonia cultural por todo o continente.

    Devido às grandes distâncias, à falta de formação do clero, falta de matérias de leitura, enfim,

    por diversos motivos, a cristandade não possuía uma interpretação igual das fontes da fé

    cristã. As interpretações divergentes começaram a ganhar uma proporção que comprometia a

    unidade religiosa. Exemplo disso são os albigenses, uma seita de cunho puritano e dualista

    que não aceitava o matrimônio e a riqueza deste mundo, oriunda do sul da França, em clara

    resposta às condições abusivas que o cristianismo de então se encontrava.

    A heresia, já pelo fim do século XII, começou a propagar-se com rapidez tão

    assustadora, que punha em risco não só a fé cristã, mas também a ordem

    social. (...) Reuniu-se, em 1184, o sínodo de Verona, onde Lúcio III e

    Frederico I baniram os hereges e seus fautores e ordenaram aos bispos que

    fizessem vistorias pelos lugares suspeitos. As decisões de Verona foram

    confirmadas por diversos outros sínodos e, sobretudo, pelo 4º concílio de

    Latrão. 62

    Foi neste século que surgem ordens mendicantes, por inspiração de São Francisco e de

    São Domingos; a reforma dos mosteiros, como a de Cluny, veio pouco antes, mas como

    resposta à decadência da vida regular. Também houve outras iniciativas não muito ortodoxas,

    como os albigenses e as beguinas de reformar o cristianismo. Como evitar tais desvios destas

    iniciativas, muitas das vezes promovidas sem má intenção e motivadas por uma interpretação

    errônea da tradição, já que o acesso à Sagrada Escritura era restrito?

    62

    Cf. ROMAG, D. Compêndio de História da Igreja. V 2. Petrópolis: Vozes, 1950. p 210-211.

  • 34

    A Igreja e o Estado possuem uma interação. As iniciativas eclesiásticas, desde Carlos

    Magno, deveriam ser financiadas pela Coroa. E com esta não poderia ser diferente. As regiões

    dos albigenses não eram caracterizadas pela paz, pois a ideia de Estados nacionais não

    significa uma existência de ordem pública em aldeias e vilarejos, muitas vezes marcados pela

    miséria e pelas pestes. A justiça era feita pelas próprias mãos, com base em julgamentos

    públicos, sem direito de defesa. Assim, tal presença de inquisidores deveria ter o aparato do

    Estado para poder ter acesso a esses lugares.

    Frederico II, por ocasião da sua coroação imperial (1220), ofereceu à Igreja

    o apoio secular e estabeleceu, em diversos decretos, a pena de morte contra

    os hereges. O mesmo fez Luís IX da França (1229). Depois da guerra dos

    albigenses, foi organizado, finalmente, no sínodo de Tolosa (1229), um

    tribunal próprio para atalhar a perversidade herética e, por bula de 1231,

    instituiu o papa Gregório IX a Inquisitio haereticae pravitatis.63

    Henrique Mendes Lucarelli, em seu estudo sobre as visitações do Santo Ofício no

    período colonial, apresenta uma intuição acertada que parece coerente para interpretar até

    mesmo este momento da história. Para ele, “a vida pública aqui é apresentada como sinônimo

    de política, dessa maneira, é nas suas narrativas que encontro a proximidade capaz de unir a

    história e a narração biográfica”64

    Assim, a política é não só um escambo entre forças

    institucionais, mas uma encarnação das escolhas dos sujeitos concretos. Isto para dizer que a

    mancomunação entre interesses Igreja e Impérios vai além de acordos baseados na intenção

    de salvaguardar o Evangelho e seus valores, de modo que as mais das vezes, salvaguardar o

    Evangelho significou ir por cima dele mesmo.

    Se for ver bem, algum tipo de inquisição episcopal, no sentido de buscar aqueles que

    erram e trazê-los à ortodoxia, existia desde o período da Igreja pós-apostólica. Os castigos

    temporais, inclusive a pena de morte, passaram a existir com o Código Justiniano, com

    hereges adeptos do maniqueísmo, do donatismo e do priscilianismo.65

    Contudo, ao longo da Idade Média, tal imagem vai ganhando um corpo e uma

    característica simbólica não projetada no começo, a ponto de que, para ganhar vida, precise se

    63

    Cf. ROMAG, D. Compêndio de História da Igreja. V 2. Petrópolis: Vozes, 1950. p. 210-211. 64

    LUCARELLI, H.M. Notas iniciais sobre a carreira dos Inquisidores que visitaram a America Portuguesa. In

    www.encontro2012.sp.anpuh.org/anais/17/1342391644_ARQUIVO_Anpuhtexto-HenriqueMendes

    Lucarelli.pdf. Último acesso em 23 de abril de 2013. 65

    ROMAG, D. Compêndio de História da Igreja. V 2. Petrópolis: Ed. Vozes, 1950. p 211.

  • 35

    revestir de sistemas e estruturas, além de atribuir significados a seus gestos e ritos, aponto de

    crescer, ganhar vida própria, alcançar a maioridade e se emancipar do seu passado e servindo

    como braço armado do Estado de direito por volta do século XV, de tal modo que algumas

    coroas queiram instituir em seus territórios uma Inquisição própria, mais ligada ao poder do

    Rei do que ao do Papa. Este foi o caso das Inquisições ibéricas: tanto Portugal quanto a

    Espanha vão criar a Inquisição como uma espécie de sérico de inteligência do Estado, não só

    em suas terras como também em seus domínios.

    A diferença é que, ao contrário de sua vizinha Espanha, Portugal não cria em suas

    colônias um tribunal de Inquisição. Aqui no Brasil, por exemplo, não havia um tribunal. O

    que houveram, foram quatro visitas do Santo Ofício. A primeira (1591-1595, na Bahia e em

    Pernambuco) e a segunda (1618, na Bahia), no momento em que Portugal e Espanha estavam

    sob a égide de um monarca espanhol. As outras, como controle das partes mais ao sul da

    colônia e última na segunda metade do século XVIII, no Grão Pará.66

    O trato do Santo Ofício era constituído de todo um ritual, de um processo. Aqui no

    Brasil, geralmente o processo durava cerca de trinta dias. A chegada tinha um algo de teatral.

    Chegava a comitiva com o estandarte à frente, portando em si o letã da Inquisição:

    “Misericórdia e Justiça”. As pessoas teriam um tempo para virem se confessar

    voluntariamente, antes que alguém viesse fazer alguma denúncia à mesa do inquisidor. O

    tema da bandeira inquisitorial poderia ser entendido assim: misericórdia a quem viesse se

    confessar voluntariamente e justiça para quem escondesse algum delito contra a fé, à moral e

    os bons costumes. Ao que parece, o foco da vigilância de consciências era a busca por

    cristãos-novos, e o confisco de seus bens, até pela relação que tinham com o dinheiro e a

    usura.67

    Isso deixou um rastro de delação por onde a visitação passava. 68

    A Inquisição começou na história da Igreja como um movimento de origem acadêmica

    com a finalidade de conter erros e abusos dos albigenses, tanto no nível moral quanto no

    doutrinário. Tal movimento vai ganhando corpo ao longo da Idade Média. Como o contexto é

    66

    Cf. AZZI, Riolando. A teologia católica na formação da sociedade colonial brasileira. Rio de Janeiro:

    Vozes, 2005, p. 117. 67

    KNOWLES D.; OBOLENSK, D. Nova História da Igreja. Petrópolis: Vozes, 1974. p 405-413. Neste

    capítulo, não é exagero transcrever estas informações dos autores: “A raça judaica é um caso único na história da

    Europa, por sua teimosa sobrevivência e difusão em todas as épocas e por sua coesão e caráter fortemente

    marcado. Em determinadas regiões e épocas, como na França merovíngia, os judeus tomaram parte na

    exploração dos recursos naturais dos campos; mas seus talentos naturais em atividades financeiras, o sistema

    feudal da Europa e, mais tarde, as restrições legais e canônicas, se juntaram para levá-los a concentrarem-se nas

    cidades, favorecendo a aplicação de seus talentos em atividades financeiras e, mais tarde mercantis. Sempre que

    gozaram de paz foram, e são ainda hoje, capitalistas e agiotas; bastava este fato para provocar desconfiança e

    inveja numa sociedade que não tinha noções da função e do uso do dinheiro como capital.” p. 409-410. 68

    Cf. ib. p. 118.

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    o da união entre Estado e Igreja, tais iniciativas acontecem com o patrocínio do Estado. O que

    começa como movimento acadêmico vai, aos poucos, se tornando um braço do Estado de

    controle social e político. O desvirtuamento chega a tal ponto, que nos reinos ibéricos, por

    exemplo, a Inquisição ganha autonomia em relação à Igreja, ficando sob comando das Coroas,

    sendo elas conhecidas, principalmente a partir do século XV, por sua violência em métodos

    de arrancar das pessoas o que a Coroa gostaria de ouvir.

    Já no século XVIII, pelo tempo de Pombal, a Inquisição já tinha toda uma estrutura de

    braço armado da Coroa. De modo que Paulo de Carvalho, irmão de Pombal, assume a

    presidência deste órgão estatal, com a intenção, como se verá, de facilitar o uso simbólico

    desta instituição para atacar a Companhia de Jesus na pessoa de Malagrida.

    Assim, a Inquisição servirá como instrumento do Estado para controlar a ordem. A sua

    secularização, sobretudo nas coroas ibéricas, vai se voltar para jul