Ponto Final

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Leia um trecho do livro Ponto Final, de Rubem Amorese

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Ficar ou ficarQuando ficar é o oposto de permanecer

Houve um tempo em que o verbo ficar significava o contrário de partir, assim como o adjetivo maçante significava entediante. Mas as coisas mu-dam e os sentidos das palavras têm de se ajustar, para poder descrever as novas realidades. Surge, por exemplo, entre os jovens, o adjetivo-gíria massa, que significa algo positivo, superlativo: muito bom. Daí, um filme “massante” é um filme maravilhoso.

O verbo ficar significava permanecer, não partir. Mas as relações se transformam, se superficializam, se utilitarizam e se irresponsabilizam de tal forma que os jovens precisavam de um termo mais apropriado para o que antes se chamava de compromisso, de namoro, de noivado. Por ironia, o termo escolhido foi ficar, que quer dizer “cair dentro, amassar e sair fora”. Dispensam-se conversas, nomes, gostos, ideais, compartilhamentos, sonhos, projetos de vida, compromissos, família, personalidades e outras “caretices”. Isso não tem nada a ver. A gente se encontra numa festa, “fica” e se manda. Parte pra outra(o).

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PARtE tRêS – NA RUA

Mas não nos iludamos. A prática de ficar não é um fenômeno exclusivamente jovem. É muito mais que isso: é um sintoma social. O jovem fica porque a sociedade onde ele vive cria o ambiente onde esse comportamento é normal. Nessa sociedade, o sócio fica na sociedade, o marido fica com a esposa, o fiel e o pastor ficam na igreja, o profis-sional fica no cargo, e assim por diante. Imagine os efeitos devastadores dessa volubilidade toda sobre uma alma solitária, que sonha com um lugar para habitar. Refiro-me ao conforto, ao colo de um ambiente social; ao aconchego de um grupo, com o qual compartilhar sua vida, seus valores, temores, aspirações e perspectivas. Tudo é terrivelmente eterno — enquanto dura!

Nossa sociedade desaprendeu a ficar. Está sempre partindo. Com-pulsivamente, como que empurrada para fora de relações estáveis e duradouras por uma força invisível e irresistível. Nossos corações não têm mais onde descansar; nossas mentes não têm mais lares, nossas consciências são nômades, avulsas, autônomas. Autonomia, aqui, as-sume a forma de algoz: quer dizer que somos nossa própria lei, nosso próprio padrão, nosso próprio juiz.

Precisamos encontrar o caminho de volta. Precisamos reaprender a ficar.