PRISÃO E OUTRAS MEDIDAS CAUTELARES PESSOAIS · marianna moura gonÇalves prisÃo e outras medidas...

497
MARIANNA MOURA GONÇALVES PRISÃO E OUTRAS MEDIDAS CAUTELARES PESSOAIS À LUZ DA PROPORCIONALIDADE DISSERTAÇÃO DE MESTRADO ORIENTADOR PROF. DR. GUSTAVO HENRIQUE RIGHI IVAHY BADARÓ FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO SÃO PAULO 2011

Transcript of PRISÃO E OUTRAS MEDIDAS CAUTELARES PESSOAIS · marianna moura gonÇalves prisÃo e outras medidas...

  • MARIANNA MOURA GONALVES

    PRISO E OUTRAS MEDIDAS CAUTELARES PESSOAIS

    LUZ DA PROPORCIONALIDADE

    DISSERTAO DE MESTRADO

    ORIENTADOR PROF. DR. GUSTAVO HENRIQUE RIGHI IVAHY BADAR

    FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    SO PAULO

    2011

  • 1

    MARIANNA MOURA GONALVES

    PRISO E OUTRAS MEDIDAS CAUTELARES PESSOAIS

    LUZ DA PROPORCIONALIDADE

    DISSERTAO DE MESTRADO

    ORIENTADOR PROF. DR. GUSTAVO HENRIQUE RIGHI IVAHY BADAR

    TRABALHO APRESENTADO PARA OBTENO DO TTULO DE MESTRE NO CURSO DE PS-GRADUAO STRICTO SENSU DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    SO PAULO

    2011

  • 2

    Dedico este trabalho a todos aqueles que foram imprescindveis para a formao da pessoa que sou hoje, em especial, aos meus pais e aos meus professores, mestres na vida e na escola. Por fim, fao meno a minha querida irm, em quem sempre encontro apoio.

  • 3

    AGRADECIMENTOS

    A elaborao de uma Dissertao de Mestrado certamente no um

    trabalho que se conclui sem a ajuda de muitas pessoas. Assim, no pequena a lista de

    agradecimentos a ser apresentada logo nas primeiras pginas, em reconhecimento a todo

    empenho compartilhado com aqueles que estiveram ao meu lado ao longo dos anos

    dedicados consecuo deste trabalho acadmico.

    De incio, agradeo ao meu orientador, PROFESSOR GUSTAVO HENRIQUE

    RIGHI IVAHY BADAR, a quem devo todo o norte no desenvolvimento do tema e sem o qual

    seguramente no se poderia ter alcanado os objetivos estipulados para a presente

    Dissertao.

    Igualmente gostaria de agradecer aos demais professores que integraram

    a Banca de Qualificao, PROFESSOR ANTONIO MAGALHES GOMES FILHO e PROFESSOR

    MAURCIO ZANOIDE DE MORAES, pelos seus preciosos conselhos e pelas suas sbias

    observaes.

    Ademais, agradeo aos funcionrios da Faculdade de Direito da

    Universidade de So Paulo, que tanto auxlio me prestaram durante as pesquisas

    desempenhadas para a realizao deste trabalho.

    Por fim, um agradecimento sincero a todos os amigos e a todos os

    familiares que manifestaram apoio irrestrito para a superao das dificuldades que

    surgiram no caminho. Uma singela conversa pode trazer fora e nimo, iluminando os

    problemas e fazendo-nos enxergar novos caminhos.

    A todos os meus agradecimentos.

  • 4

    SUMRIO

    Introduo ...................................................................................................................... 12

    Captulo 1 - A estrutura dos direitos fundamentais e a proporcionalidade como limite

    s restries aos direitos fundamentais: consideraes para o seu exame no processo

    penal .................................................................................................................................. 22

    1.1 A importncia do estudo da teoria dos direitos fundamentais para a anlise da priso e

    das demais medidas cautelares de carter pessoal luz da proporcionalidade ......... 22

    1.2 O conceito de direitos fundamentais ......................................................................... 22

    1.3 A dupla dimenso dos direitos fundamentais ............................................................ 24

    1.4 Os conceitos de regra e de princpio como premissa para a compreenso da teoria dos

    direitos fundamentais ................................................................................................ 26

    1.4.1. As distines entre regras e princpios ............................................................ 27

    1.5 Conflitos normativos ................................................................................................. 32

    1.5.1. Conflitos entre regras ....................................................................................... 33

    1.5.2. Coliso entre princpios ................................................................................... 33

    1.5.3. Coliso entre regras e princpios ..................................................................... 35

    1.6 Suporte ftico dos direitos fundamentais ................................................................. 37

    1.6.1. O conceito de suporte ftico dos direitos fundamentais ................................ 38

    1.6.2. Elementos do suporte ftico dos direitos fundamentais ................................ 40

    1.7 As restries aos direitos fundamentais .................................................................. 42

    1.7.1. Os direitos fundamentais como direitos restringveis ou no restringveis: anlise

    da teoria interna e da teoria externa como teorias sobre as restries a direitos

    fundamentais ........................................................................................................... 44

    1.7.2. Classificao das restries aos direitos fundamentais ................................. 47

    1.7.3. Anlise das espcies de restries a direitos fundamentais luz da teoria interna

    e da teoria externa..................................................................................................... 49

    1.7.4. Os limites aos direitos fundamentais e as atividade normativas correlatas ... 56

    1.8 A proporcionalidade como limite das restries ..................................................... 58

    1.8.1. Aspectos terminolgicos ............................................................................... 60

    1.8.2. Fundamento e funo da proporcionalidade ................................................. 61

    1.8.3. Pressupostos e requisitos da regra da proporcionalidade ............................... 65

  • 5

    1.8.3.1. Pressuposto formal da proporcionalidade: legalidade ............................ 67

    1.8.3.2. Pressuposto material da proporcionalidade: justificao teleolgica ..... 69

    1.8.3.3. Requisito extrnseco da proporcionalidade: judicialidade ..................... 72

    1.8.3.4. Requisito extrnseco da proporcionalidade: motivao .......................... 73

    1.8.3.5. Adequao ou idoneidade ...................................................................... 79

    1.8.3.6. Necessidade ou exigibilidade ................................................................. 90

    1.8.3.7. Proporcionalidade em sentido estrito ...................................................... 92

    1.9 O contedo essencial dos direitos fundamentais como limite s restries ............... 96

    Captulo 2 O princpio da presuno de inocncia como direito fundamental: a

    relao entre a presuno de inocncia e o direito liberdade e os reflexos sobre as

    hipteses de tutela cautelar no processo penal .......................................................... 98

    2.1. Consideraes iniciais sobre o princpio da presuno de inocncia ....................... 98

    2.2. A origem histrica do princpio da presuno de inocncia ......................................100

    2.3. A configurao da presuno de inocncia no direito brasileiro ...............................108

    2.4. A presuno de inocncia no plano infraconstitucional: os reflexos da presuno de

    inocncia no Cdigo de Processo Penal de 1941 ..............................................................115

    2.5. Natureza jurdica da presuno de inocncia .............................................................116

    2.6. Aspectos da presuno de inocncia ..........................................................................118

    2.6.1. A presuno de inocncia e a disciplina da prova no processo penal .........121

    2.6.2. A presuno de inocncia como regra da tratamento do acusado ..............124

    2.6.3. A presuno de inocncia e a priso cautelar .............................................128

    Captulo 3 A Tutela Cautelar no Processo Penal ......................................................132

    3.1. Aspectos introdutrios ................................................................................................132

    3.2. Finalidade das medidas cautelares .............................................................................137

    3.2.1. Finalidade das medidas cautelares: consideraes gerais ............................137

    3.2.2. Conceitos e distines de tutela cautelar e de tutela antecipada .................144

    3.2.3. Cautela instrumental e cautela final .............................................................149

    3.3. Autonomia do processo cautelar ................................................................................152

    3.4. Caractersticas da tutela cautelar ................................................................................158

    3.4.1. Instrumentalidade da tutela cautelar ............................................................159

    3.4.2. Provisoriedade e revogabilidade da tutela cautelar .....................................162

    3.4.3. Acessoriedade ..............................................................................................168

  • 6

    3.4.4. Referibilidade ..............................................................................................169

    3.4.5. Excepcionalidade .........................................................................................171

    3.4.6. Jurisdicionalidade ........................................................................................172

    3.5. Classificao das medidas cautelares .........................................................................173

    3.6. Pressupostos das medidas cautelares ..........................................................................175

    3.6.1. Fumus boni iuris e periculum in mora ........................................................176

    3.6.2. Fumus comissi delicti e periculum libertatis ...............................................182

    3.6.3. Disciplina normativa da priso temporria e da priso preventiva no

    ordenamento jurdico brasileiro .............................................................................188

    3.7. Poder geral de cautela ................................................................................................192

    3.7.1. O poder geral de cautela no sistema processual civil ..................................192

    3.7.2. O poder geral de cautela no sistema processual penal .................................195

    Captulo 4 - Priso cautelar e outras medidas restritivas de carter pessoal no

    Ordenamento Jurdico Comparado ...............................................................................204

    4.1. Sistema processual penal portugus ...........................................................................205

    4.1.1. Disposies constitucionais relacionadas presuno de inocncia e ao

    direito liberdade ..................................................................................................205

    4.1.2. Requisitos e condies de aplicao das medidas de coao admissveis ..206

    4.1.3. Medidas de coao do sistema processual penal portugus ........................208

    4.1.3.1. Termo de identidade e de residncia ............................................209

    4.1.3.2. Cauo ..........................................................................................209

    4.1.3.3. Obrigao de apresentao peridica ...........................................211

    4.1.3.4. Suspenso do exerccio de funes, de profisso ou de direitos ..212

    4.1.3.5. Proibio de permanncia, de ausncia e de contatos ..................213

    4.1.3.6. Obrigao de permanncia na habitao ......................................214

    4.2. Sistema processual penal espanhol ............................................................................216

    4.2.1. Disposies constitucionais relacionadas presuno de inocncia e ao

    direito liberdade ..................................................................................................216

    4.2.2. Medidas cautelares em espcie ....................................................................218

    4.2.2.1. A citao cautelar .........................................................................218

    4.2.2.2. A deteno ....................................................................................219

    4.2.2.3. A priso provisria .......................................................................224

    4.2.2.4. A liberdade provisria ..................................................................228

  • 7

    4.2.2.5. O afastamento cautelar .................................................................229

    4.2.2.6. A ordem de proteo ....................................................................230

    4.2.2.7. Outras medidas cautelares ............................................................231

    4.3. Sistema processual penal alemo ...............................................................................232

    4.3.1. Disposies constitucionais .........................................................................232

    4.3.2. Condies gerais de aplicao das medidas cautelares de carter pessoal e

    disciplina da priso preventiva ..............................................................................233

    4.3.3. Outras medidas coercitivas de carter pessoal ............................................238

    4.4. Sistema processual penal italiano ..............................................................................239

    4.4.1. Disposies constitucionais do ordenamento jurdico italiano ....................239

    4.4.2. Condies gerais de aplicao das medidas cautelares ...............................240

    4.4.3. Espcies de medidas cautelares ...................................................................243

    4.5. Os ordenamentos jurdicos estrangeiros e o ordenamento jurdico brasileiro ............245

    Captulo 5 As medidas restritivas de carter pessoal no ordenamento jurdico

    brasileiro ..........................................................................................................................251

    5. 1. Consideraes iniciais sobre a priso no ordenamento jurdico brasileiro ...............251

    5.2. A priso provisria no ordenamento jurdico brasileiro ............................................253

    5.3. Modalidades de priso provisria no ordenamento jurdico brasileiro ......................257

    5.3.1. Priso em flagrante ......................................................................................257

    5.3.2. Conceito .......................................................................................................257

    5.3.3. Situaes de flagrante delito ........................................................................258

    5.3.4. A cautelaridade da priso em flagrante .......................................................261

    5.4. Priso preventiva ........................................................................................................266

    5.4.1. A disciplina da priso preventiva no Cdigo de Processo Penal brasileiro..266

    5.4.2. Pressupostos para decretao da priso preventiva .....................................267

    5.4.3. Garantia da ordem pblica ...........................................................................268

    5.4.4 Garantia da ordem econmica ......................................................................274

    5.4.5. Garantia da aplicao da lei penal ...............................................................275

    5.4.6. Convenincia da instruo criminal ............................................................276

    5.4.7. Requisitos para a decretao da priso preventiva ......................................276

    5.5. Priso temporria ........................................................................................................278

    5.5.1. Consideraes iniciais sobre a priso temporria .......................................278

    5.5.2. Conceito .....................................................................................................280

  • 8

    5.5.3. A natureza jurdica da priso temporria .....................................................280

    5.5.4. A cautelaridade da priso temporria ..........................................................286

    5.6. Liberdade provisria ...................................................................................................292

    5.6.1. Consideraes gerais .................................................................................292

    5.6.2. Crticas expresso liberdade provisria ...............................................293

    5.6.3. Natureza jurdica da liberdade provisria ...................................................294

    5.6.4. Espcies de liberdade provisria ...............................................................296

    5.6.5. Liberdade provisria mediante fiana .......................................................297

    5.6.6. A reforma procedida pela lei n. 6.416./1977 e a relevncia da fiana no

    sistema processual penal vigente ...........................................................................300

    5.6.7. Liberdade provisria vinculada sem fiana ...............................................304

    5.6.8. A liberdade provisria como direito subjetivo do imputado......................305

    5.7. Medidas restritivas a direitos individuais diversas da priso provisria no ordenamento

    jurdico brasileiro ..............................................................................................................306

    5.7.1. A medida restritiva de direitos da Lei n. 9.503, de 23 de setembro de

    1997........................................................................................................................307

    5.7.2. A medida de afastamento do lar da Lei n. 11.340, de 07 de agosto de 2006

    ................................................................................................................................310

    5.7.3. A medida de afastamento do funcionrio pblico de suas atividades da Lei n.

    11.343, de 23 de agosto de 2006 ...........................................................................312

    5.7.4. A medida de afastamento do prefeito do cargo nos crimes de

    responsabilidade do Decreto Lei n. 201/67 ..........................................................314

    5.7.5. A medida de afastamento do agente pblico do cargo, emprego ou funo do

    artigo 20 da Lei n. 8.429, de 02 de junho de 1992 ..............................................315.

    5.8. A necessidade de se investigar outras medidas restritivas de direitos individuais de

    carter pessoal diversas da priso provisria ....................................................................316

    5.8.1. Medidas restritivas a direitos individuais de carter pessoal diversas da priso

    provisria: medidas alternativas, medidas substitutivas e medidas autnomas

    priso provisria ....................................................................................................321

    5.9. Propostas de reforma do sistema processual penal brasileiro relativas s medidas

    cautelares de carter pessoal no ordenamento jurdico brasileiro .....................................326

    5.9.1. Os objetivos da reforma processual no campo das medidas cautelares de

    carter pessoal ......................................................................................................327

    5.9.2. Comentrios ao Projeto de Lei n. 111/2008 ..............................................330

  • 9

    5.9.3. Comentrios ao Projeto de Lei do Senado n. 156, de 2009 ......................337

    5.9.3.1. A estrutura do livro das medidas cautelares do Projeto de Lei do

    Senado n. 156, de 2009 .............................................................................340

    5.9.3.2. As espcies de medidas cautelares de carter pessoal no Projeto de

    Lei do Senado n. 156, de 2009 .................................................................343

    5.9.3.3. O monitoramento eletrnico como medida cautelar no Projeto de

    Lei do Senado n. 156, de 2009 .................................................................348

    5.9.3.4. Comentrios s mudanas do Projeto de Lei n. 156, de 2009,

    quanto s medidas cautelares de carter pessoal no processo penal luz das

    caractersticas da tutela cautelar ................................................................350

    5.9.3.5. As medidas cautelares de carter pessoal e a jurisdicionalidade ..351

    5.9.3.6. A convalidao da priso em flagrante delito pela autoridade

    jurisdicional ...............................................................................................353

    5.9.3.7. As medidas cautelares de carter pessoal e a motivao das

    decises.......................................................................................................355

    5.9.3.8. As medidas cautelares de carter pessoal e a provisoriedade .......356

    5.9.3.9. A excepcionalidade das medidas cautelares pessoais e o carter

    subsidirio da priso preventiva em face das demais medidas cautelares de

    carter pessoal ...........................................................................................362

    5.9.3.10. As medidas cautelares de carter pessoal e a demonstrao dos

    pressupostos da tutela cautelar ...................................................................363

    5.9.3.11. A manuteno da priso preventiva para a garantia da ordem

    pblica e para a garantia da ordem econmica no Projeto de Lei do Senado

    n. 156, de 2009 .........................................................................................365

    5.9.3.12. Regramentos relativos imposio de medidas cautelares de

    carter pessoal no Projeto de Lei n. 156, de 2009 ....................................368

    5.9.3.13. As medidas cautelares de carter pessoal e a exigncia de

    proporcionalidade nas intervenes nos direitos fundamentais .................369

    Captulo 6 Anlise medidas restritivas a direitos individuais de carter pessoal adotadas no curso da persecuo penal como intervenes liberdade sob o enfoque da presuno de inocncia: controle a partir da proporcionalidade ..........................373

    6.1. Priso e demais medidas restritivas a direitos individuais de carter pessoal luz da proporcionalidade ..............................................................................................................373

  • 10

    6.2. Medidas restritivas a direitos individuais adotadas em mbito processual penal luz da legalidade como pressuposto da proporcionalidade lato sensu .........................................376

    6.2.1. Anlise dos termos genricos empregados pelo legislador no tratamento da priso preventiva e da priso temporria ...............................................................377

    6.2.2. Anlise da decretao da priso temporria: a questo da autonomia dos incisos e a existncia dos pressupostos cautelares .................................................381

    6.2.3. Anlise das medidas restritivas de liberdade inominadas decretadas com base no poder geral de cautela da autoridade jurisdicional ...........................................382

    6.3. Medidas restritivas a direitos individuais adotadas em mbito processual penal luz da justificao constitucional como pressuposto da proporcionalidade lato sensu ...............387

    6.3.1. Anlise da vedao legal absoluta concesso de liberdade provisria .....389

    6.3.2. Anlise da vedao absoluta concesso de liberdade provisria na Lei n. 11.343, de 2006 .....................................................................................................396

    6.4. Medidas restritivas a direitos individuais adotadas em mbito processual penal luz da judicialidade como requisito extrnseco da proporcionalidade lato sensu ........................400

    6.5. Medidas restritivas a direitos individuais adotadas em mbito processual penal luz da motivao como requisito extrnseco da proporcionalidade lato sensu ............................402

    6.6. Medidas restritivas a direitos individuais adotadas em mbito processual penal luz da adequao como requisito intrnseco da proporcionalidade lato sensu ............................410

    6.6.1. Anlise da sub-regra da adequao ou da idoneidade: a adequao qualitativa ................................................................................................................................414

    6.6.2. Anlise da sub-regra da adequao ou da idoneidade: a adequao quantitativa ...........................................................................................................426

    6.6.3. Anlise da sub-regra da adequao ou da idoneidade: a adequao subjetiva..................................................................................................................429

    6.7. Medidas restritivas a direitos individuais adotadas em mbito processual penal luz da necessidade como requisito intrnseco da proporcionalidade lato sensu ..........................430

    6.8. Medidas restritivas a direitos individuais adotadas em mbito processual penal luz da proporcionalidade em sentido estrito como requisito intrnseco da proporcionalidade lato sensu ..................................................................................................................................439

    6.8.1. Fim imediato da persecuo penal ...............................................................444

    6.8.2. Fins mediatos: o direito manuteno da ordem social e da segurana social.......................................................................................................................448

  • 11

    6.8.3. Medidas restritivas de carter pessoal no sistema processual penal: a natureza cautelar destas restries .......................................................................................455

    6.8.4. Finalidades no cautelares atribudas priso provisria ...........................458

    6.8.4.1. Priso provisria com finalidade de preveno geral ...................458

    6.8.4.2. Priso provisria com finalidade de preveno especial ..............461

    6.8.4.3. Priso provisria com finalidade de atender ao clamor pblico ...463

    6.9. Medidas restritivas de carter pessoal no sistema processual penal: as finalidades materiais destas restries e a presuno de inocncia .....................................................465

    6.10. A atuao jurisdicional no controle da proporcionalidade .......................................470

    Concluso .........................................................................................................................475

    Bibliografia .......................................................................................................................478

    Resumo .............................................................................................................................495

    Abstract ............................................................................................................................496

  • 12

    INTRODUO

    A proposta deste trabalho acadmico consiste em discutir e em reavaliar

    as principais indagaes em torno da priso e da liberdade no processo penal brasileiro,

    tendo por objetivo investigar o fundamento da decretao de medidas restritivas a direitos

    individuais no curso da persecuo penal e a legitimidade destas intervenes estatais luz

    da proporcionalidade no ordenamento jurdico nacional.

    Para a consecuo desse escopo, objetiva-se a anlise da

    proporcionalidade, em seus pressupostos e em seus requisitos, revelando-se esta tarefa de

    notvel importncia para a investigao da legitimidade da priso provisria, bem como

    para a anlise da ponderao entre o direito de liberdade individual e o reconhecimento do

    estado de inocncia do imputado e os imperativos de ordem coletiva.

    Ademais, atravs deste exame, procurar-se- identificar as justificativas

    para o recurso constante priso provisria, sem dvida, a restrio de magnitude intensa

    liberdade individual, compulsando as alternativas a esta providncia e apresentando uma

    releitura do balanceamento entre a segurana social e o direito de liberdade individual.

    De fato, a anlise da ponderao entre uma proteo penal eficiente e o

    resguardo dos direitos individuais conduz, inevitavelmente, a uma necessria investigao

    de medidas restritivas a direitos individuais diversas da priso provisria.1 Assim, almeja-

    se um estudo das propostas legislativas constantes do nosso sistema jurdico e de sistemas

    processuais estrangeiros.

    O recurso s medidas cautelares de carter pessoal revela-se uma

    constante nos sistemas processuais penais contemporneos e renova importantes

    discusses acerca dos limites da pretenso punitiva estatal. Sem dvida, entre estas

    providncias, a priso provisria destaca-se por sua extrema gravidade e por sua particular

    eficincia no resguardo dos escopos processuais. No entanto, os efeitos deletrios

    acarretados pela permanncia precoce no crcere e impostos ao indivduo presumidamente

    inocente justificam uma reviso do tratamento direcionado a esta temtica, assim como

    1 Neste sentido, O. SANGUIN, Prisin provisional y derechos fundamentales, Valencia, Tirant lo Blanch, 2003, p. 656-658.

  • 13

    demandam uma nova leitura da ponderao que se tem feito entre a garantia de segurana

    social e o direito de liberdade individual e a presuno de inocncia.

    Ora, o questionamento central aos ordenamentos jurdicos

    contemporneos, quando a temtica envolve aspectos substanciais da pretenso punitiva

    estatal, consiste em encontrar reais e eficientes alternativas tradicional sano punitiva,

    em especial a pena privativa de liberdade.2 De fato, notria a inadequao deste instituto

    aos seus proclamados e controversos objetivos de retribuir, de intimidar e de ressocializar

    os condenados.3

    A pena privativa de liberdade, em seu carter punitivo e expiatrio,

    atende to-somente convenincia da sociedade em se ver alijada dos males representados

    por aqueles que delinquiram, alm de proporcionar, como j destacado, uma degradao

    ainda mais intensa esfera subjetiva dos apenados, o que torna absolutamente contraditria

    a pretenso de ressocializar atravs do crcere. 4 Os malefcios da priso, assim como do

    fenmeno da prisionizao decorrente do cotidiano carcerrio, apresentam-se de tal forma

    incisivos, que tm sido objeto de constante e de uniforme alerta por parte da doutrina.5

    Sem dvida, as perspectivas da submisso de indivduos semelhante

    restrio de liberdade, s condies deletrias do sistema penitencirio e ao completo

    distanciamento dos valores sociais vigentes na realidade externa 6 no acenam para o xito

    do instituto, ao contrrio, revelam a verdadeira experincia de abandono e de

    marginalizao social a que so entregues no cotidiano dos estabelecimentos

    penitencirios. E, ao contrrio do que se poderia concluir, esta realidade, h muito

    constatada, coloca-se como uma decorrncia natural de uma instituio marcada por um

    2 Neste sentido, N. G. C. SERRANO, Proporcionalidad y derechos fundamentales en el proceso penal, Madrid, Colex, 1990, p. 204; O. SANGUIN, Prisin provisional y ..., op. cit., p. 658; D. H. OBLIGADO, Las medidas cautelares del proceso penal, in C. A. C. DAZ e D. H. OBLIGADO (coord.), Garantas, medidas cautelares e impugnaciones en el proceso penal, Rosario, Jurdica Nova Tesis, 2005, p. 342-343; R. S. M. CRUZ, Priso cautelar dramas, princpios e alternativas, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2006, p. 132. 3 Cf. A. A. DE S, Prisionizao um dilema para o crcere e um desafio para a comunidade, in Revista Brasileira de Cincias Criminais, ano 6, n. 21, jan./mar1998, p. 117. 4 Cf. A. A. DE S, Algumas ponderaes acerca da reintegrao social dos condenados pena privativa de liberdade, in Revista da Escola Superior da Magistratura do Estado de Pernambuco, v. 5, n. 11, 2000, p. 28. 5 Cf. A. A. DE S, Prisionizao um dilema ..., in Revista Brasileira de Cincias Criminais, op. cit., p. 117; A. BARATTA, Por um concepto crtico de reintegracion social del condenado, in Oliveira, E., Criminologia Crtica (Frum Internacional de Criminologia Crtica), Belm, CEJUP, 1990, p. 141-157; MOURA, M. T. R. de A., Execuo Penal e Falncia do Sistema Carcerrio, in Revista Brasileira de Cincias Criminais, n. 29, jan.-mar.2000, p. 351-363. 6 Ou realidade extra-muro, como refere Augusto Thompson em A Questo Penitenciria, 5. ed., Rio de Janeiro, Forense, 2002, p. 11-15.

  • 14

    antagonismo evidente, em que se busca a integrao aos valores sociais atravs do

    isolamento em face da comunidade.

    Nesta esteira, natural que as discusses em torno de alternativas pena

    privativa de liberdade estendam-se, com maior razo, priso provisria. As restries

    liberdade individual e os inconvenientes aspectos da realidade carcerria emergem ainda

    mais agressivos aos direitos individuais, quando se tem em vista a sua adoo em carter

    provisrio, alm de suscitarem a indiscutvel necessidade de se conceber providncias

    menos gravosas para se alcanar equivalente eficincia processual.7

    E, de fato, torna-se ainda mais incisiva a inadequao do crcere, quando

    se tem em vista a priso provisria. Esta providncia, ainda quando atue de modo

    estritamente processual e isenta de quaisquer antecipaes dos efeitos de eventual

    condenao, como se quer sustentar em teoria, apresenta efeitos prticos de extrema

    gravidade e que no podem ser negligenciados pela doutrina.8

    Em primeiro lugar, a limitao cautelar liberdade impe ao preso

    provisrio uma experincia prematura na realidade carcerria, uma vez que de

    conhecimento que, em face das inmeras dificuldades e das insuficincias materiais

    enfrentadas pelo sistema penitencirio, a segregao entre presos j condenados e aqueles

    que ainda se encontram sujeitos a um processo revela-se absolutamente impraticvel.9

    7 Neste sentido, destacando os efeitos colaterais perversos da priso cautelar, Odone Sanguin assinala que a antecipao dos efeitos da pena que a priso provisria implica mais gravosa para o sujeito do que o cumprimento da prpria pena mesma, j que se encontra submetido incerteza derivada do desconhecimento do tempo real em que estar privado de liberdade. Mais adiante, o autor reconhece que, em parte, o recurso excessivo priso provisria resulta de um cruzamento perverso de vrios fatores, entre os quais se situa o culto judicirio da priso preventiva que pode ter sido induzido ou facilitado, entre outros aspectos, pela ausncia ou pelo elenco limitado de medidas alternativas (...) (Efeitos perversos da priso cautelar, in Revista Brasileira de Cincias Criminais, ano 18, n.86, set.-out./2010, p. 292-293). 8 Como ser demonstrado ao longo da exposio, a atuao estritamente instrumental da priso provisria, no sentido de voltar-se to-somente ao resguardo dos escopos processuais como ntida providncia cautelar, convive com posturas diversas, as quais, em outro extremo, admitem a priso provisria por razes materiais (Cf. M. Z. DE MORAES, Presuno de inocncia no processo penal brasileiro anlise de sua estrutura normativa para a elaborao legislativa e para a deciso judicial, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2010, p. 338). 9 Como destaca Odone Sanguin, uma das principais objees apontadas pela doutrina priso provisria consiste no grave perigo de contgio criminal, resultante do amontoamento da populao presa em virtude da escassez de recursos materiais e financeiros para se resguardar o isolamento adequado dos presos provisrios do restante da massa reclusa. (Priso provisria e princpios constitucionais, in Fascculos de Cincias Penais, v.5, n.2, abr.-jun./1992, p. 96). Neste sentido, a crtica de Weber Martins Batista: Um dos principais problemas dos presos provisoriamente a vida promscua com os condenados, s vezes, criminosos perigosos. Apesar disso, em razo das dificuldades materiais que enfrentamos, o legislador ptrio s pode dizer que, sempre que possvel, as pessoas provisoriamente presas ficaro separadas das que j estiverem

  • 15

    Alm disso, em uma perspectiva criminolgica crtica, a segregao

    imposta em carter provisrio apresenta-se notoriamente estigmatizante, assim como a

    priso com carter de pena, o que imprime ao indivduo um trao marcante que condiciona

    e determina as suas interaes sociais, colaborando para um recrudescimento do abismo

    social em que j se encontrava inserido. 10

    Por todas essas consideraes, a imposio da priso em carter

    provisrio consiste em uma medida odiosa, a qual se deve recorrer em casos de extrema

    necessidade e com a devida ponderao. Ocorre que o recurso a este instrumento tem se

    demonstrado constante nos sistemas processuais penais contemporneos. Mais do que isto:

    a utilizao indiscriminada da priso provisria demonstra que esta se revela a principal e a

    mais eficaz providncia, no somente para assegurar a utilidade de eventual

    pronunciamento condenatrio, finalidade comum a toda medida cautelar, mas tambm para

    o imediato contraste aos crimes de maior incidncia social, j que denuncia uma postura

    repressiva e enrgica que atende aos anseios da coletividade incapaz de tolerar uma

    resposta punitiva to-somente anos aps o cometimento do delito.

    Desta forma, como ressalta Roberto Delmanto Jnior, a priso provisria

    assume aspectos de verdadeira justia sumria e prematura. Vale-se do crcere

    provisrio com o propsito primordial de se alcanar a exigncia de justia, tendo em vista

    ser esta uma providncia cmoda, que, aliada a celeridade com que decretvel,

    proporciona comunidade uma sensao de eficcia do sistema penal, de resposta

    definitivamente condenadas (...) O nosso sempre que possvel significa, na realidade prtica, um nunca possvel. O comum ver rus apenas processados junto com criminosos j condenados (...). (Liberdade provisria, op. cit., p. 19). Esta a crtica de Fernando da Costa Tourinho Filho: Embora o art. 300 do CPP diga que sempre que possvel, as pessoas presas provisoriamente ficaro separadas das que j estiverem definitivamente condenadas, o certo que, na prtica, dificilmente se observa tal preceito, por absoluta impossibilidade material. A lei, nesse particular no passou de uma promessa v e platnica. E, assim, pessoas ainda no reconhecidamente culpadas ficam em irritante promiscuidade com rus j condenados e cujos antecedentes espelham uma velha e reiterada atuao nas esferas do vcio e do crime. (Da Priso e da Liberdade Provisria, in Revista Brasileira de Cincias Criminais, n. 7, jul.-set. 1994, p. 73). 10 Cf. A. A. DE S, Prisionizao um dilema ..., in Revista Brasileira de Cincias Criminais, op. cit., p. 117-118. Luiz Flvio Gomes e Antonio Garcia-Pablos de Molina, em suas consideraes acerca da Teoria do Etiquetamento, destacam o efeito crimingeno da pena e sua capacidade de potencializar o conflito social ao invs de resolv-lo; potencia e perpetua a desviao, consolida o desviado em seu status de delinqente e gera os esteretipos e etiologias que supem que pretende evitar, ensejando, deste modo, um lamentvel crculo vicioso (self-fulfilling profhecy). (Criminologia, 3. ed., so Paulo, Revista dos Tribunais, 2000, p. 322).

  • 16

    jurisdicional rpida e severa, uma vez que a priso , antes de tudo, a maior dentre as

    humilhaes que o processo penal pode impor a uma pessoa.11

    O recurso insistente priso provisria, com propsitos que notoriamente

    escapam ao seu carter cautelar, demonstra que a utilidade prtica das providncias

    cautelares assume uma feio extremamente problemtica no campo processual penal, em

    especial no tocante s medidas de carter pessoal. Em que pesem as inmeras crticas, no

    h como deixar de reconhecer a funo essencial desempenhada pela tutela cautelar e sua

    importncia para o efetivo e o til desempenho da atividade jurisdicional atravs do

    processo.

    Com efeito, a soluo imediata dos litgios atravs dos mecanismos

    jurisdicionais institudos pelo Estado remete a um ordenamento jurdico obviamente ideal,

    em que as demandas promovidas pudessem ser prontamente atendidas e, de forma justa e

    adequada, devidamente solucionados os inmeros e os diversos conflitos sociais. Esta, no

    entanto, no se mostrou a opo vivel aos sistemas jurdicos contemporneos, em que se

    mostra presente o reconhecimento de uma considervel gama de direitos e de garantias

    processuais, sem as quais no se concebe a realizao do que se convencionou chamar

    devido processo legal.12

    Nesta esteira, h que se concluir que a instrumentalidade do processo

    encontra, em mbito processual penal, uma conotao verdadeiramente especial e

    diferenciada, o que orienta a interpretao e a compreenso de seus institutos.13 Logo, no

    h dvida de que os ordenamentos jurdicos modernos - to zelosos pelo resguardo dos

    direitos e das garantias individuais - no podero jamais descurar da estrutura processual

    penal delineada por suas normas, uma vez que os institutos processuais so determinantes

    para conduzir a ndole democrtica ou autoritria de um determinado sistema jurdico.

    11 As modalidades de priso provisria e seu prazo de durao, 2. ed., Rio de Janeiro, Renovar, 2001, p. 11. Neste sentido, W. HASSEMER, Crtica al derecho penal de hoy - norma, interpretacin, procedimiento lmites de la prisin preventiva, 2. ed., trad. por P. S. ZIFFER, Buenos Aires, Ad Hoc, 1998, p. 119; O. SANGUIN, A inconstitucionalidade do clamor pblico como fundamento da priso preventiva, in S. S. SHECAIRA (org,), Estudos em homenagem a Evandro Lins e Silva criminalista do sculo, So Paulo, Mtodo, 2001, p. 267; L. S. FERRAZ, Priso preventiva e direitos e garantias individuais, Dissertao (Mestrado), Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo, 2003, p. 28. 12 Nos termos do artigo 5., inciso LIV, da Constituio brasileira de 1988: ningum ser privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;. 13 Cf. A. LOPES JNIOR, A instrumentalidade garantista do processo penal, in Revista Ibero-americana de Cincias Penais, ano 2, n. 2, jan.-abr./2001, p. 17-19; A. T. DE CARVALHO, Sucesso de leis penais, 2. ed., Coimbra, Coimbra, 1997, p. 262.

  • 17

    Ocorre que a observncia desses preceitos demanda um considervel

    decurso de tempo, o que nem sempre se coaduna com os demais objetivos estatais. Desta

    forma, uma estrutura processual adequada aos propsitos de assegurar o mximo grau de

    racionalidade e de confiabilidade do juzo, bem como tutelar o indivduo em face da

    arbitrariedade estatal,14 deve contar, necessariamente, com o exerccio da tutela cautelar.

    As medidas cautelares ou providncias assecuratrias emergem, portanto,

    como um instrumento para se assegurar o aproveitamento da atividade jurisdicional, de

    modo a que o seu desempenho se mostre til e efetivo aos indivduos a que se destinam,

    evitando uma atuao meramente simblica do ordenamento jurdico. Em notas

    tradicionalmente apontadas pela doutrina, as medidas cautelares consistem na conciliao

    entre dois valores essenciais e nsitos atuao jurisdicional: a efetividade da tutela e a

    segurana quanto justia da deciso.15

    O acesso justia e o direito a todos estendido tutela jurisdicional do

    Estado compreende no somente uma atuao tempestiva, mas tambm a correta e a

    adequada valorao da realidade substancial que se coloca frente do magistrado. De nada

    valeria uma resposta jurisdicional pronta e imediata, se no fosse devidamente embasada

    em uma ampla discusso dos fatos e das disposies normativas sob o crivo do

    contraditrio, com a possibilidade de instruo probatria e de impugnao das decises

    judiciais.

    certo, porm, que todas essas circunstncias demandam tempo, o que

    faz com a deciso judicial chegue, na maioria das vezes, em um momento muito posterior

    ao qual foi requerida e encontre, destarte, um estado de coisas completamente diverso

    daquele que motivou a sua atuao. Justamente esse o campo que motiva a atuao das

    providncias cautelares: trata-se de um daqueles casos, como afirma Piero Calamandrei,

    em que se confrontam a necessidade entre a prestao jurisdicional adequada e de modo

    clere.16

    14 Caractersticas do modelo garantista elaborado por Luigi Ferrajoli, Direito e razo teoria do garantismo penal, 2. ed., So Paulo, Revista dos Tribunais, 2006, p. 494. 15 Cf. J. R. DOS S. BEDAQUE, Tutela Cautelar e Tutela Antecipada, Tutelas Sumrias e de Urgncia Tentativa de Sistematizao, 5. ed., So Paulo, Malheiros, 2009, p. 311. 16 Introduzione allo studio sistematico dei provvedimenti cautelari, Padova, CEDAM, 1936, in Opere giuridiche, vol. IX, Napoli, Morano, 1983, p. 175.

  • 18

    A tutela cautelar vem atender, desta forma, ao perigo derivado da demora

    na obteno do pronunciamento jurisdicional principal e promove uma garantia dos

    escopos processuais, j que volta a sua atuao apenas e to-somente ao processo. Como

    providncias motivadas pela urgncia, as medidas cautelares no demandam atividades

    cognitivas amplas ou juzos de certeza, contentando-se, no mais das vezes, com meros

    juzos de probabilidade. Sendo assim, resta evidente que a satisfao do direito material

    no se encontra entre os propsitos da medida cautelar, nem ao menos em carter

    provisrio, devendo-se afastar de sua estrutura quaisquer pretenses de antecipao dos

    efeitos da tutela jurisdicional principal.

    Estas particularidades da estrutura cautelar revelam-se demasiadamente

    essenciais, quando de sua sistematizao no processo penal. Em face da consagrao da

    presuno de inocncia, a priso em carter cautelar deve ser devidamente extremada da

    priso com carter de pena, no obstante esta tarefa se demonstre em muito complexa em

    virtude das circunstncias prticas.

    Como questiona Rogrio Schietti Machado Cruz, poderia a priso

    cautelar revestir este carter nitidamente material e punitivo, distanciando-se de suas

    exigncias cautelares e protegendo outros bens e interesses que no aqueles expressamente

    indicados na legislao processual penal?.17 Logicamente, no.

    Sem dvida, a priso cautelar revela-se um instituto processual que afeta

    inmeros direitos fundamentais insculpidos em nosso ordenamento constitucional e em

    documentos internacionais. A principiar pelo direito liberdade de locomoo do cidado,

    os direitos vida, integridade fsica e moral, segurana, intimidade e vida privada,

    honra e imagem tambm resultam afrontados pelas medidas coercitivas adotadas em

    carter cautelar.18

    Como demonstrado, a segregao ao ius libertatis motivada pela priso,

    seja em carter provisrio, seja em carter definitivo, revela-se um pesado gravame ao

    indivduo, visto que fere o seu direito fundamental de liberdade. Ademais, a providncia

    restritiva promove uma degradao sua dignidade enquanto membro do corpo social.

    17 Priso cautelar dramas ..., op. cit., p. XI. 18 Priso provisria e princpios constitucionais, in Fascculos de Cincias Penais, v.5, n.2, abr.-jun. 1992, p. 96-97.

  • 19

    Como destaca Odone Sanguin, em sua perspectiva cautelar, a priso

    provisria constitui uma ofensa ao prprio postulado da igualdade, no somente em face da

    considerao distante de serem os infratores da lei penal, sobretudo, cidados pertencentes

    a classes sociais menos favorecidas, mas tambm e, principalmente, em face das margens

    de arbtrio judicial que acarretam contnuas ofensas comparativas. Alm disso, o estigma

    impresso ao indivduo devido sua passagem pela priso, ainda que em carter provisrio,

    acarreta quele um critrio de desigualdade perante os demais.19

    Alm disso, advindo o resultado final do processo penal condenatrio,

    sendo este indivduo absolvido, no h como apreciar o prejuzo sua esfera subjetiva

    decorrente de uma priso cautelar injusta. Ainda que o provimento jurisdicional final

    reconhea a improcedncia da imputao formulada, a honra objetiva do acusado, ou seja,

    sua honra e sua reputao perante a coletividade, culmina sensivelmente abalada.20

    Ademais, em termos prticos, torna-se extremamente problemtica a questo sobre a quem

    poderia recorrer o indivduo ao final, absolvido para obter a devida e a justa

    indenizao pelos padecimentos, bem como pelos prejuzos materiais, fsicos e morais

    ocasionados por uma priso provisria. 21

    Em suma, a priso provisria, em termos prticos, termina por escapar ao

    seu carter estritamente instrumental, revelando, de modo antecipado, os aspectos

    negativos da segregao e a feio aflitiva da sano penal propriamente dita, ainda que

    sob a mscara da provisoriedade.

    Em que pese o teor de tais consideraes, o recurso priso provisria

    revela-se constante em diversos ordenamentos jurdicos, sendo esta admitida, em maior ou

    menor intensidade, como um mal necessrio, por implicar restrio considervel ao ius

    libertatis do cidado, resguardado por diversos preceitos de nossa Constituio, mas se

    demonstrar indispensvel efetiva consecuo do devido processo legal.

    Justamente por isto, no se pode adotar um exame simplista, quando se

    trata de aferir a as decises judiciais em torno de medidas restritivas a direitos individuais.

    A relevncia dos valores e dos bens jurdicos em jogo, bem como os efeitos deletrios da 19 Priso provisria e ..., in Fascculos de Cincias Penais, op. cit., p. 96. 20 Cf. R. DELMANTO JNIOR, As modalidades de ..., op. cit., p. 13. 21 Cf. F. C. TOURINHO FILHO, Da priso e da liberdade provisria, in Revista Brasileira de Cincias Criminais, n.7, jul.-set. 1994, p. 73; E. L. E SILVA, A Liberdade Provisria no Processo Penal, in Revista de Direito Penal, n. 15/16, jul.-dez. 1974, p. 46.

  • 20

    passagem pelo sistema penitencirio, reclama uma maior sensibilidade por parte dos

    intrpretes do sistema jurdico face ao drama humano que se encontra por trs dessas

    decises.

    Esta linha de raciocnio tambm se estende para a anlise da elaborao

    normativa das medidas de limitao aos direitos individuais no curso da persecuo penal.

    Em que medida o legislador impe estas intervenes e quais os valores ou os interesses

    em confronto com os direitos fundamentais e, em especial, a presuno de inocncia e a

    liberdade pessoal, so as indagaes que devem predominar neste estudo.

    Esta anlise parte da considerao que a priso provisria, assim como

    demais medidas de carter pessoal adotadas no curso da persecuo penal, revela-se uma

    interveno estatal em direitos fundamentais, que tem por escopo promover a realizao de

    objetivos associados ao interesse social na persecuo penal dos delitos e na manuteno

    da ordem e da segurana coletivas.

    O estudo da teoria dos direitos fundamentais demonstra que, a partir do

    carter principiolgico destes direitos, resulta no somente a possibilidade de interveno,

    quando vista de princpios colidentes, mas tambm a concluso de que essas limitaes

    so passveis de observar certos limites.22 Neste campo, de limites s intervenes, a

    proporcionalidade desempenha um papel fundamental para o equacionamento de colises

    entre direitos de ndole fundamental, acenando em que medida a interveno se apresenta

    como legtima, ou restrio aos direitos fundamentais, ou coloca-se como limitao

    ilegtima, ou violao a estes direitos.23

    Desta forma, o objetivo ser apresentar as medidas restritivas a direitos

    fundamentais adotadas no curso da persecuo penal e aferir, em que medida, estas

    intervenes estatais aos direitos individuais revelam-se legtimas, por isso, restries, ou,

    ao contrrio, ilegtimas, e, por isso, violaes.24 O instrumento para este controle ser a

    proporcionalidade, identificada pela teoria constitucional dos direitos fundamentais como

    uma forma de limitao s intervenes.

    22 Cf. S. DE T. BARROS, O princpio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais, Braslia, Braslia Jurdica, 1996, p. 158. 23 O princpio da ..., op. cit., p. 155. 24 A meno a medidas restritivas tem por objetivo demonstrar que se trata de intervenes que limitam os direitos individuais. Ademais, adota-se o termo restries para as intervenes nos direitos fundamentais legtimas, e o termo violaes para as intervenes estatais ilegtimas.

  • 21

    Este trabalho limita-se s medidas restritivas a direitos individuais do

    sistema processual penal brasileiro. No obstante, sero registradas as experincias de

    alguns sistemas processuais penais estrangeiros. O estudo comparado desses ordenamentos

    jurdicos revela-se de grande valia para a presente pesquisa, notadamente por apresentar

    vetores que iluminaram as propostas de reformas legislativas no Brasil.

    Assim, no captulo 1, sero tecidas consideraes sobre a estrutura dos

    direitos fundamentais e a proporcionalidade como limite s intervenes em direitos

    fundamentais. No captulo 2, parte-se para o exame do princpio da presuno de inocncia

    como direito fundamental. Em seguida, no captulo 3, tem-se como objetivo a anlise da

    tutela cautelar no processo penal, em seus fundamentos e seus pressupostos. Ademais, no

    captulo 4, segue-se o estudo comparado das medidas restritivas a direitos individuais

    adotadas no processo penal em alguns ordenamentos jurdicos estrangeiros, o que

    possibilitar uma compreenso mais profunda acerca destas medidas no ordenamento

    jurdico brasileiro. O captulo 5 volta-se apresentao da priso e de outras medidas

    adotadas no curso da persecuo penal no ordenamento jurdico brasileiro, destacando-se o

    direito positivo e os Projetos de Lei sobre a matria. Por fim, no captulo 6, conclui-se o

    estudo com a anlise das medidas de carter pessoal adotadas no curso da persecuo penal

    como intervenes liberdade sob o enfoque da presuno de inocncia. O objetivo deste

    exame ser aferir em quais circunstncias uma medida de interveno nos direitos

    fundamentais ter natureza cautelar, apresentando justificao constitucional que legitime a

    sua proporcionalidade em face do princpio da presuno de inocncia e da liberdade

    individual.

  • 22

    CAPTULO I A ESTRUTURA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E A PROPORCIONALIDADE

    COMO LIMITE S RESTRIES AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS: CONSIDERAES PARA O

    SEU EXAME NO PROCESSO PENAL

    1.1. A IMPORTNCIA DO ESTUDO DA TEORIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS PARA A

    ANLISE DA PRISO E DAS DEMAIS MEDIDAS CAUTELARES DE CARTER PESSOAL LUZ

    DA PROPORCIONALIDADE

    O estudo da priso e das demais medidas cautelares pessoais processuais

    penais luz da proporcionalidade impe como premissa o exame da estrutura dos direitos

    fundamentais, ainda que esta anlise no se apresente de forma exauriente por colocar-se

    alm da proposta deste trabalho. De fato, os institutos processuais penais, em especial a

    priso cautelar e as demais medidas assecuratrias de carter pessoal, encontram-se

    intimamente relacionados ao tema dos direitos fundamentais, uma vez que extraem a

    justificativa de sua existncia e a sua finalidade da ordem constitucional, em seu captulo

    especialmente dedicado aos direitos fundamentais.25

    1.2. O CONCEITO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS 26

    Os direitos fundamentais exercem um compreensvel domnio nos

    debates da doutrina e da jurisprudncia nacionais, sendo a eles remetida a soluo de

    inmeras controvrsias. A concepo de que os direitos fundamentais so dotados de um

    contedo essencial, bem como de que as intervenes impostas a esses direitos encontram

    limites, mostra-se cada vez mais frequente no cenrio nacional.27 No obstante, a definio

    dos direitos fundamentais ainda se apresenta problemtica.28

    O reconhecimento progressivo dos direitos fundamentais pelas ordens

    jurdicas nacionais algo que pde ser observado ao longo dos anos, tendo sido

    25 Cf. M. Z. DE MORAES, Presuno de inocncia ..., op. cit., p. 225. 26 O que interessa para o presente trabalho um conceito de direitos fundamentais que permita o estudo da parcela destes direitos orientada ao processo penal, sempre com a finalidade de compreender a sistemtica das medidas cautelares de carter pessoal. Justamente por isto, a apresentao do conceito dos direitos fundamentais no rene, de modo exaustivo, as consideraes sobre o tema desenvolvidas na teoria dos direitos fundamentais, limitando-se ao que for essencial para a compreenso do objeto de estudo. 27 Cf. V. A. DA SILVA, Direitos fundamentais contedo essencial, restries e eficcia, 2. ed., So Paulo, Malheiros, 2010, p. 21. 28 Cf. C. M. M. QUEIROZ, Direitos fundamentais teoria geral, Coimbra, Coimbra, 2002, p. 13.

  • 23

    determinante no processo de organizao dos Estados.29 Isto, no entanto, no elimina as

    controvrsias em torno do conceito dos direitos fundamentais; ao contrrio, a doutrina

    constitucional se mostra cada vez mais impulsionada a ampliar os conceitos e a buscar

    mtodos para proporcionar a melhor eficcia desses direitos.30

    possvel formular um conceito formal, um conceito material e um

    conceito procedimental de direitos fundamentais, tendo como base as estruturas das

    posies jurdicas fundamentais, a saber: direitos a algo, liberdades e competncias,31 bem

    como a relao entre enunciado normativo e norma de direito fundamental.32

    Entre os conceitos de direitos fundamentais enunciados, nota-se a eleio

    de critrios distintos. O conceito formal de direitos fundamentais orienta-se por um critrio

    de idntica qualidade, delimitando os direitos fundamentais como aqueles inseridos no

    catlogo de direitos admitidos pela Constituio.33 Por sua vez, o conceito material de

    direitos fundamentais vem revelar que estes direitos buscam concretizar o propsito de

    transformar direitos humanos em direito positivo, em especial, em direito positivo de

    29 Neste sentido, Cristina M. M. Queiroz recorda a Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado, de 1789, que, em seu artigo 16., dispe: Toda a sociedade na qual a garantia dos direitos no resulte assegurada (...) no tem Constituio (Direitos fundamentais teoria geral, Coimbra, Coimbra, 2002, p. 13). Os direitos fundamentais reconhecidos nas constituies nacionais dos Estados Democrticos de Direito representam, como destaca Martin Borowski, o ideal de transformar os direitos humanos, que se colocam como direitos morais, de ndole abstrata e de validade universal, em direito positivo. Nesta esteira, os direitos fundamentais ingressam no estrato hierrquico mximo do ordenamento jurdico e recebem a tutela jurisdicional (La estructura de los derechos fundamentales, trad. por C. B. Pulido, Universidad Externado de Colombia, Bogot, 2003, p. 33). 30 Cf. M. Z. DE MORAES, Presuno de inocncia ..., op. cit., p. 226. 31 Neste ponto, importante ressaltar a polmica em torno do conceito de direito subjetivo, que suscita questes analticas, empricas e normativas. Entre as questes analticas deste debate, Robert Alexy destaca a anlise e a classificao dos direitos subjetivos, que, na verdade, trata das diferenciaes entre as posies fundamentais efetivamente criadas por um ordenamento jurdico. Aps enumerar as distines entre direitos subjetivos adotadas por diversos autores, entre os quais Jellinek, Kelsen, Windscheid, Bucher, Robert Alexy conclui que estas (...) do ensejo suposio de que as posies resumidas sob esse conceito poderiam ser mais complexas do que as respectivas classificaes, diferenciaes e distines permitem reconhecer; isso poderia explicar as dificuldades que o conceito de direito subjetivo sempre suscitou e ainda suscita para sua anlise. Como destacado acima, Robert Alexy prope como a base da teoria analtica dos direitos a diviso das posies jurdicas fundamentais, que devem ser designadas como direitos, em (1) direitos a algo, (2) liberdades e (3) competncias. (Teoria dos direitos fundamentais, trad. por V. A. DA SILVA, So Paulo, Malheiros, 2008, p. 190-193). A posio jurdica bsica referente a um direito a algo compreende: o titular deste direito, o destinatrio deste direito e o objeto deste direito. Por sua vez, a posio jurdica fundamental relativa s liberdades compreende: o titular desta liberdade, o obstculo para a liberdade e a conduta que deve ser empreendida ou omitida. Por fim, a competncia tem por caracterstica o fato de que a conduta do titular desta competncia pode alterar a situao jurdica (Cf. M. BOROWSKI, La estructura de..., op. cit., p. 25-26). 32 Cf. M. BOROWSKI, La estructura de ..., op. cit., p. 33-37. 33 Cf. M. BOROWSKI, La estructura de ..., op. cit., p. 34. Na realidade, o conceito formal de direitos fundamentais adota um critrio formal para identificar os direitos fundamentais. Em geral, o critrio formal que tem sido utilizado aquele apontado no texto: a participao de um direito no rol de direitos fundamentais inserido na Constituio.

  • 24

    carter constitucional.34 Por ltimo, o conceito procedimental de direitos fundamentais

    preocupa-se com a competncia para a deciso em resguardar ou no estes direitos, sendo

    esta reservada com exclusividade ao constituinte.35

    Alm das indagaes em torno de seu conceito, o estudo dos direitos

    fundamentais como categoria jurdica revela que a principal investigao que se coloca

    neste mbito consiste em ressaltar a dimenso subjetiva e a dimenso objetiva dos direitos

    fundamentais.36 Atualmente, d-se relevo no somente constatao de que direitos

    fundamentais comportam-se como direitos subjetivos e aos resultados derivados desta

    natureza. De igual maneira, a doutrina constitucional passou a reconhecer a relevncia da

    dimenso objetiva destes direitos e as decorrncias deste contedo para o sistema jurdico

    como um todo. Trata-se, portanto, do reconhecimento da dupla dimenso dos direitos

    fundamentais.

    1.3. A DUPLA DIMENSO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

    Em matria de direitos fundamentais, a doutrina constitucional tem

    dedicado especial ateno dupla dimenso destes direitos. Com efeito, no

    constitucionalismo atual, entende-se que os direitos fundamentais desempenham uma

    dplice funo, uma vez que tanto podem servir como garantias da liberdade do indivduo,

    quanto assumir um carter institucional voltado para os fins e os valores consagrados pela

    Constituio.37 A compreenso exata de sua dimenso objetiva e de sua dimenso subjetiva

    coloca-se, atualmente, como premissa intransponvel para o correto equacionamento das

    questes em torno dos direitos fundamentais.

    O reconhecimento dos direitos fundamentais como direitos subjetivos,

    colocando em evidncia a relao entre o titular destes direitos e os seus destinatrios,

    34 Cf. M. BOROWSKI, La estructura de ..., op. cit., p. 35-36. 35 Cf. M. BOROWSKI, La estructura de ..., op. cit., p. 37. 36 Cf. J. C. V. DE ANDRADE, Os direitos fundamentais na constituio portuguesa de 1976, Coimbra, Almedina, 1998, p. 144; M. Z. DE MORAES, Presuno de inocncia ..., op. cit., p. 226; I. W. SARLET, A eficcia dos direitos fundamentais uma teoria geral dos direitos fundamenatis na perspectiva constitucional, 10 ed., Porto Alegre, Livraria do advogado, 2009, p. 166. Como destaca Jos Carlos Vieira de Andrade, os autores mencionam a existncia de uma dupla dimenso, de uma dupla natureza, de uma dupla funo ou de um duplo carter, em todos os casos subjetivo e objetivo, dos direitos fundamentais (Os direitos fundamentais ..., op. cit., p. 144). 37Cf. A. E. P. LUO, Los derechos fundamentales, 7 ed., Madrid, Tecnos, 1998, p.25.

  • 25

    dominou, por muitos anos, o centro das indagaes nesta matria.38 A dimenso subjetiva

    dos direitos fundamentais confere especial relevo ao sentido da norma de direito

    fundamental para o indivduo, para os seus interesses e os seus ideais.39

    Na realidade, atualmente, ao lado desta dimenso subjetiva dos direitos

    fundamentais coloca-se uma dimenso objetiva. Quando se fala em dimenso objetiva se

    est a reconhecer a relevncia da norma de direito fundamental para a coletividade, o

    sentido desta norma na vida comunitria e os seus reflexos no interesse pblico.40 Esta

    nova perspectiva tem por referncia a viso lateral e simplista em se compreender os

    direitos fundamentais apenas e to-somente do ponto de vista dos indivduos, quando estes

    direitos tambm se destacam, juridicamente, do ponto de vista da comunidade, como

    valores ou fins que esta se prope prosseguir.41 Esta dimenso objetiva dos direitos

    fundamentais revela-se, por sua vez, em dois aspectos distintos: a dimenso valorativa ou

    funcional, e a dimenso jurdica estrutural dos direitos fundamentais.42

    38 Neste sentido, por direito subjetivo considera-se o direito a um determinado ato que o seu titular tem face ao destinatrio, cabendo a este ltimo o dever de praticar este ato. Este conceito de direito subjetivo, apresentado por Jos Joaquim Gomes Canotilho, remete a uma relao trilateral entre o titular, o destinatrio e o objeto do direito (Direito constitucional e teoria da constituio, 4. ed., Coimbra, Almedina, 1997, p. 1214). 39 Cf. J. J. G. CANOTILHO, Direito constitucional e ..., op. cit., p. 1214. 40 Como destaca Jos Carlos Vieira de Andrade, o reconhecimento de que os direitos fundamentais apresentam uma dupla dimenso, colocando-se no somente como direitos subjetivos, mas tambm como direitos objetivos, no significa que as posies jurdicas subjetivas encontram-se previstas em uma norma de direito objetivo. De fato, identificar a dimenso objetiva com a previso em um preceito de direito objetivo consiste em uma banalidade e, de certo modo, em uma incorreo, (...) porque poderia dar a entender que o direito objectivo viria depois, quando a prioridade, no plano da existncia, , pela natureza das coisas, a inversa (Os direitos fundamentais ..., op. cit., p. 144). 41 Cf. J. C. V. DE ANDRADE, Os direitos fundamentais ..., op. cit., p. 145. Como destaca Nicolas Gonzales-Cuellar Serrano, a dimenso objetiva dos direitos fundamentais permite reconhec-los como um interesse estatal e genrico, (...) de la comunidad constituida en Estado de Derecho (art. 1 C. E.). Desta forma, a concepo dos direitos individuais de ndole fundamental como um interesse geral a ser tutelado pelo Estado essencial para avaliar a proporcionalidade de intervenes estatais em direitos fundamentais: slo teniendo presente que tambin la defensa de los derechos constitucionalmente tutelados es inters general puede ser utilizada la expresin inters individual en contraposicin con inters general o estatal. De otro modo no podra justificarse su oposicin y, menos an, que los individuales alcancen, en ocasiones, preferncia (Proporcionalidad y derechos ... , op. cit., p. 246). 42 Cf. J. C. V. DE ANDRADE, Os direitos fundamentais ..., op. cit., p. 145.

  • 26

    Neste sentido, os direitos fundamentais correspondem a valores ou a

    interesses vetores da ordenao social, colocando em evidncia na comunidade o valor

    solidariedade. 43 Os direitos fundamentais ingressam, portanto, em um novo patamar, em

    que no mais esperam da comunidade uma conduta passiva de reconhecimento, de respeito

    e de resguardo de condies para o exerccio pleno da autonomia individual. A dimenso

    objetiva dos direitos fundamentais denuncia uma atuao participativa dos indivduos, uma

    responsabilidade comunitria para a reunio de condies favorveis ao efetivo exerccio

    desses direitos.

    1.4. OS CONCEITOS DE REGRA E DE PRINCPIO COMO PREMISSA PARA A COMPREENSO

    DA TEORIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

    Como destacado preliminarmente, o objetivo deste primeiro captulo

    consiste em tratar de consideraes gerais sobre a teoria dos direitos fundamentais, a fim

    de introduzir a anlise da proporcionalidade em sua verdadeira funo: uma forma de

    limite aos limites dos direitos fundamentais.44 No cenrio nacional, como destaca Virglio

    Afonso da Silva, a proporcionalidade tem sido referida, comumente, pela doutrina como

    um princpio.45 Todavia, a questo no se apresenta to simples e incontroversa como pode

    parecer primeira vista. Esta crtica ressaltada nos estudos de Humberto Bergmann

    vila, que indica uma grande resistncia utilizao do termo princpio, demonstrando

    que a disputa terminolgica torna-se ainda mais acirrada, quando se adota a teoria dos

    princpios de Robert Alexy, em que o conceito de norma-princpio contrape-se ao de

    norma-regra.46

    43 Jos Carlos Vieira de Andrade ressalta que a dimenso objetiva dos direitos fundamentais acentua a dimenso social destes direitos. Neste ponto, no se trata apenas de (...) negar o carcter absoluto e incondicional dos direitos individuais, possibilitando o seu condicionamento e at a sua restrio para salvaguarda de interesses da comunidade ou dos direitos dos outros. A objectivizao dos direitos vai alm da possibilidade de compresso que resulta do seu enquadramento social, atinge-os na sua interioridade, j que a dimenso objectiva tambm pode contribuir para definir (delimitar) partida a extenso e o alcance do contedo que, por interpretao dos preceitos constitucionais, lhes deve ser atribudo (Os direitos fundamentais ..., op. cit., p. 146). 44 Cf. G. F. MENDES, I. M. COELHO, P. G. G. BRANCO, Curso de direito constitucional, 4. ed., So Paulo, Saraiva, 2009, p. 348; J. R. NOVAIS, Os princpios constitucionais estruturantes da Repblica Portuguesa, Coimbra, Coimbra, 2004, p. 161; V. A. da SILVA, Direitos fundamentais ..., op. cit., p. 181; I. W. SARLET, A eficcia dos ..., op. cit., p. 395. 45 O proporcional e o razovel, in Revista dos Tribunais, n.798, abr./2002, ano 91, p. 24. 46 A distino entre princpios e regras e a redefinio do dever de proporcionalidade, in Revista Dilogo Jurdico, ano 1, vol. 1, n. 4, jul.2001, p. 23.

  • 27

    Desta forma, ainda que o objetivo proposto para o presente captulo no

    seja investigar os conceitos de regra e de princpio, cumpre sucintamente abordar algumas

    consideraes sobre a discusso, j que h uma diferena estrutural e de modo de aplicao

    entre ambos. A distino entre regras e princpios, embora no se apresente como o ponto

    central deste trabalho, coloca-se como premissa fundamental para o correto

    desenvolvimento do tema. Ora, o conceito e a estrutura dos direitos fundamentais, bem

    como a identificao de seu contedo essencial e o controle das restries que lhe so

    dirigidas, encontram-se diretamente vinculados a esta premissa terica.47

    Assim, pretende-se uma breve exposio acerca da distino entre regras

    e princpios, apontando os principais entendimentos doutrinrios nesta matria e a opo

    pelo conceito de princpio que guiar o presente estudo.

    1.4.1. AS DISTINES ENTRE REGRAS E PRINCPIOS

    Em primeiro lugar, regras e princpios so espcies de normas.48 Isto ,

    regras e princpios colocam-se como uma forma de classificao das normas jurdicas,

    elementos que constituem o ordenamento jurdico de um Estado.49 J se foi dito que no h

    grande valia em apontar classificaes como certas ou erradas, sendo, antes, relevante

    aferir a sua utilidade para a interpretao e a aplicao dos institutos jurdicos.50 No caso

    em tela, a classificao das normas em regras ou princpios de extrema relevncia para a

    anlise da estrutura dos direitos fundamentais, de seus elementos constitutivos e para se

    alcanar um conceito tcnico de proporcionalidade.

    47 Cf. V. A. da SILVA, Direitos fundamentais ..., op. cit., p. 43. 48 Cf. M. Z. DE MORAES, Presuno de inocncia ..., op. cit., p. 269. 49 Cf. J. J. G. CANOTILHO, Direito constitucional e ..., op. cit., p. 1124. Robert Alexy reconhece que o carter fundamental do conceito de norma para a Cincia do Direito, sendo, talvez, (...) o mais fundamental de todos. Desta forma, prossegue o autor, no de se surpreender que a discusso acerca do conceito de norma como conceito fundamental da Cincia do Direito no tenha fim (Teoria dos direitos ..., op. cit., p. 51-52). Como destaca Virglio Afonso da Silva, o conceito de norma e o debate sobre as espcies normativas so controversos, no se vislumbrando entre os doutrinadores o esboo de um (...) denominador comum acerca do objeto de sua disciplina. Alis, a dificuldade em torno do conceito de norma, conforme salienta o autor, o contexto para outra discusso, que interessa ao presente trabalho: a distino entre regras e princpios. Justamente por isso, no se pretende ingressar, neste momento, nas polmicas em torno do conceito de norma jurdica. No entanto, para o desenvolvimento do tema, interessa, ao menos, uma distino entre norma e enunciado normativo. Como apresenta Virglio Afonso da Silva, (...) texto e norma no se confundem. De fato, o enunciado normativo o enunciado lingstico, o texto normativo, que constri o dispositivo legal. Por sua vez, a norma o que se extrai deste enunciado normativo, o seu significado, (...) o produto da interpretao desse enunciado. Esta considerao importante, porque, quando se tem em vista a distino entre regras e princpios, como ser explorada, se trabalha com (...) uma distino entre dois tipos de normas e no entre dois tipos de textos. (Princpios e regras mitos e equvocos acerca de uma

  • 28

    A teoria dos direitos fundamentais apresenta diversas concepes acerca

    da distino entre regras e princpios, encontrando em cada autor que se dedica ao estudo

    do tema nuances prprias e particulares. Em geral, os autores agrupam-se entre aqueles que

    sustentam uma distino lgica e qualitativa entre princpios e regras, e aqueles que

    defendem uma diferena de grau de importncia.51

    Neste sentido, h autores que assumem os princpios como as normas

    mais importantes de um ordenamento jurdico, a julgar pelo papel que estes desempenham

    na interpretao e na efetivao deste sistema.52 As regras, por sua vez, revelar-se-iam

    como normas de importncia secundria, tendo por finalidade concretizar os princpios de

    um ordenamento jurdico.53

    distino, in Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais, n. 1, jan.-jul/2003, p. 607, 616-617). Neste sentido, sobre o conceito de norma e as distines entre enunciado normativo e norma, R. ALEXY, Teoria dos direitos ..., op. cit., p. 53-58; H. VILA, Op. cit., p. 30. 50 Cf. V. A. da SILVA, Direitos fundamentais ..., op. cit., p. 44; Princpios e regras mitos e equvocos acerca de uma distino, in Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais, n. 1, jan.-jul/2003, p. 608. 51 Cf. R. B. VARALDA, Restrio ao princpio da presuno de inocncia priso preventiva e ordem pblica, Porto Alegre, Srgio Antonio Fabris, 2007, p. 181; V. A. DA SILVA, Direitos fundamentais ..., op. cit., p. 44. Para uma distino entre regras e princpios em H. VILA, Op. cit., p. 78-84. 52 Neste sentido, ver C. A. B. de MELLO, Curso de direito administrativo, 25. ed., So Paulo, Malheiros, 2008, p. 53, 942-943. 53 Pelo critrio grau de importncia, Celso Antnio Bandeira de Mello destaca que princpio (...) mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposio fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o esprito e servindo de critrio para a sua exata compreenso e inteligncia exatamente por definir a lgica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tnica e lhe d sentido harmnico. Justamente por isso, prossegue o autor, violar um princpio muito mais grave que transgredir norma qualquer (Curso de direito administrativo, 25. ed., So Paulo, Malheiros, 2008, p. 53, 942-943). Jos Afonso da Silva, Curso de direito constitucional positivo, 30ed., So Paulo, Malheiros, 2010. Pelo grau de abstrao e de generalidade: Luis Roberto Barroso, Interpretao e aplicao da constituio- fundamentos de uma dogmtica constitucional, 6 ed., So Paulo, Saraiva, 2008.

  • 29

    Por outra vertente seguem os autores que enxergam regras e princpios

    como normas distintas por sua abstrao, por sua generalidade e por sua fundamentalidade:

    ora, os princpios so normas mais abstratas e genricas, ao passo que as regras se mostram

    mais especficas, ensejando, de modo automtico, as conseqncias previstas quando as

    condies por elas exigidas encontram-se aperfeioadas. Isto porque as regras, ao contrrio

    dos princpios, so concebidas para serem aplicadas em situaes concretas e

    determinadas. Pelo carter de fundamentalidade, os princpios so normas com destaque no

    ordenamento jurdico em razo de sua posio hierrquica no sistema das fontes, bem

    como de sua importncia estruturante dentro do sistema jurdico.54

    A acepo de princpio encontrada nas formulaes de Ronald Dworkin e

    de Robert Alexy, em ambos, fundamentada em uma distino qualitativa e de carter

    lgico entre regras e princpios, conferiu uma nova verso ao debate clssico.55 Em linhas

    gerais, Ronald Dworkin reconhece que o sistema jurdico no formado to-somente por

    regras, j que estas no se mostram suficientes para fundamentar as solues para os casos

    jurdicos mais complexos.56 O sistema jurdico possui, paralelamente s regras jurdicas, os

    princpios, as polticas e outros padres normativos.57

    54 Cf. J. J. G. CANOTILHO, Direito constitucional e ..., op. cit., p. 1124; V. A. DA SILVA, Princpios e regras ..., in Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais, op. cit., p. 609. 55 Cf. V. A. DA SILVA, Princpios e regras ..., in Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais, op. cit., p. 609; R. ALEXY, Teoria dos direitos ..., op. cit., p. 86. Em Ronald Dworkin, o critrio lgico de distino entre regras jurdicas e princpios jurdicos ressaltado em Levando os direitos a srio, trad. por N. BOEIRA, So Paulo, Martins Fontes, 2002, p. 39. Em Robert Alexy, a concepo de princpios como mandados de otimizao o aspecto determinante na distino entre regras e princpios. Em sua obra, a distino entre regras e princpios qualitativa, e no de grau (Teoria dos direitos ..., op. cit., p. 90-91). 56 Ronald Dworkin, ao apresentar a sua crtica ao positivismo, valendo-se da verso proposta por H. L. A. Hart, destaca que (...) quando os juristas raciocinam ou debatem a respeito de direitos e obrigaes jurdicos, particularmente naqueles casos difceis nos quais nossos problemas com esses conceitos parecem mais agudos, eles recorrem a padres que no funcionam como regras, mas operam diferentemente, como princpios, polticas e outros tipos de padres. O objetivo do autor, portanto, destacar a importncia de padres que no se apresentam como regras e que tambm participam do sistema jurdico (Levando os direitos a srio, trad. por N. BOEIRA, So Paulo, Martins Fontes, 2002, p. 35-36). 57 O decisivo para o desenvolvimento do presente item o conceito de princpio formulado por Ronald Dworkin. Atente-se apenas para a ressalva do prprio autor, de que, s vezes, este emprega o termo princpio de modo genrico, como todos os padres que no so regras (princpios e polticas), mas tambm estabelece uma distino entre polticas e princpios. Isto, no entanto, no ser objeto de anlise no presente momento, por no se inserir nos propsitos do item. Interessa a distino entre regras e princpios, no sentido genrico (Levando os direitos a srio, trad. por N. BOEIRA, So Paulo, Martins Fontes, 2002, p. 36-37).

  • 30

    As regras jurdicas seguem o parmetro do tudo ou nada, j que

    apresentam somente a dimenso da validade: ou as regras valem e so aplicveis por

    inteiro, ou as regras no valem, e sua aplicao resta excluda do caso concreto.58 J os

    princpios obedecem a outros critrios, pois a dimenso que prepondera a do peso ou da

    importncia, e no a da validade.59 Justamente por isto, em uma coliso de princpios, a

    prevalncia se d pelo princpio de maior peso ou de maior importncia no caso concreto,

    estando esta deciso submetida a debate. O princpio que no tem prevalncia no perde,

    no entanto, a sua validade. Este o ponto fundamental: a coliso entre princpios no trata da

    dimenso validade, de modo que o princpio no prevalente no deixa de ter validade,

    apenas no ser aplicado naquele caso concreto.60

    No obstante, a distino entre regras e princpios que mais se coaduna

    com a teoria dos direitos fundamentais ora utilizada para o desenvolvimento do presente

    trabalho, a que se orienta por um critrio de estrutura lgica conforme proposto por

    Robert Alexy.61 Assim, nos termos da teoria dos princpios, o principal vetor de

    diferenciao entre regras e princpios adota por base a estrutura dos direitos que estas

    normas visam a garantir.62 Nesta esteira, os princpios impem deveres e garantem direitos

    prima facie, enquanto as regras expressam deveres e asseguram direitos em definitivo.63

    Robert Alexy traz, portanto, a ideia de regras como determinaes no mbito das

    possibilidades fticas e jurdicas, ao lado da concepo de princpios como mandamentos

    de otimimizao.64

    58Cf. R. DWORKIN, Levando os direitos a srio, trad. por N. BOEIRA, So Paulo, Martins Fontes, 2002, p. 39 e 43. 59 Como destaca Ronald Dworkin, os princpios possuem uma dimenso que as regras no tm a dimenso do peso ou importncia. Isto acarreta srias consequncias quanto soluo de conflitos entre princpios. O intrprete deve considerar a fora relativa de cada princpio e apresentar uma soluo relativa, pois no h uma mensurao exata e o julgamento que determina que um princpio ou uma poltica particular mais importante que outra frequentemente ser objeto de controvrsia (Levando os direitos a srio, trad. por N. BOEIRA, So Paulo, Martins Fontes, 2002, p. 42). 60 Levando os direitos a srio, trad. por N. BOEIRA, So Paulo, Martins Fontes, 2002, p. 43. 61 Robert Alexy, assim como Ronald Dworkin, traa uma distino qualitativa entre princpios e regras, e no uma distino de grau. O critrio utilizado por ambos o lgico. 62 Cf. V. A. DA SILVA, Direitos fundamentais ..., op. cit., p. 45. 63 Como destaca Maurcio Zanoide de Moraes, ao enunciar direito ou dever, parte-se de perspectivas de anlise da norma distintas: a aluso a direito coloca em evidncia o titular do direito garantido pela norma, ao passo que a meno a dever pe em relevo responsvel pelo cumprimento do direito garantido pela norma (Presuno de inocncia ..., op. cit., p. 270, nt. 23). Neste sentido, V. A. da SILVA, Direitos fundamentais..., op. cit., p. 45. 64 Teoria dos direitos ..., op. cit., p. 94 e 104.

  • 31

    Desta forma, ao direito assegurado por uma norma com estrutura de regra

    jurdica relacionam-se as seguintes concluses: este direito garantido por uma regra

    definitivo e, como tal, deve ser sempre realizado ou no, de forma integral, no caso

    concreto.65 Isto , a regra, enquanto modelo normativo descritivo de uma conduta,

    aplicada por inteiro e na forma prevista, se o caso sob anlise a ela se subsumir. Por meio

    de regras so garantidos direitos ou impostos deveres que no admitem ponderao com

    outras normas, de modo a terem sua eficcia parcialmente afastada.66 Trata-se, portanto, da

    subsuno como forma de aplicao das normas.67 Neste sentido, os conflitos entre regras

    jurdicas solucionam-se por meio de clusulas de exceo ou por critrio de validade.68

    Por sua vez, a estrutura dos direitos assegurados atravs de princpios

    remete a outro nvel de consideraes, uma vez que, em terreno dos princpios, no se

    imperam determinaes ou mandamentos definitivos. Desta forma, quando se trata de

    princpios, constata-se uma ntida diferena entre aquilo que imposto prima facie e aquilo

    que imposto definitivamente, o que revela o carter dos princpios como verdadeiros

    mandamentos de otimizao, no sentido de que a sua satisfao deve ser realizada na maior

    medida possvel em face das condies fticas e das condies jurdicas existentes.69

    Assim, os princpios, ao contrrio das regras, admitem graus de

    realizao, os quais se encontram em uma relao direta com as condies fticas e as

    condies jurdicas sob as quais atuam.70 Por certo, o grau de realizao mxima encontra-

    se distante na maior parte dos casos, uma vez que a existncia de condies fticas e de

    condies jurdicas ideais resta, dificilmente, constatada. A realizao de um princpio,

    nesta esteira, remete a outra forma de aplicao das normas jurdicas: o sopesamento,

    destacando a quase inevitvel coliso com a proteo de outros princpios a ser enfrentada

    pelo intrprete.71

    65 Cf. R. ALEXY, Teoria dos direitos ..., op. cit., p. 91 e 104. 66 Cf. M. Z. de MORAES, Presuno de inocncia ..., op. cit., p. 271. 67 Cf. R. ALEXY, Teoria dos direitos ..., op. cit., p. 104. 68 Cf. R. ALEXY, Teoria dos direitos ..., op. cit., p. 92-93. 69 Cf. R. ALEXY, Teoria dos direitos ..., op. cit., p. 90. 70 Cf. R. ALEXY, Teoria dos direitos ..., op. cit., p. 90. 71 Cf. V. A. DA SILVA, Direitos fundamentais ..., op. cit., p. 46; ainda deste mesmo autor Princpios e regras ..., in Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais, op. cit., p. 610-611.

  • 32

    Nestes termos, o conceito de princpio desenvolvido por Robert Alexy

    em muito se distancia das concepes tradicionais de princpio, como norma de papel

    fundamental e de importncia estruturante em um ordenamento jurdico.72 Na teoria dos

    princpios, formulada pelo mencionado autor, no o critrio de fundamentalidade, mas a

    estrutura normativa que determina o carter da norma como regra ou como princpio.73

    Trata-se, portanto, de um conceito axiologicamente neutro, como anota Virglio Afonso da

    Silva.74

    Estas consideraes abrem caminho para outro tpico de importncia

    para o desenvolvimento do presente trabalho: as colises entre princpios e os conflitos

    entre regras. Este o campo, em que as distines entre regras e princpios mostram maior

    evidncia.75 O estudo dos conflitos normativos tambm se mostra essencial, pois de se

    supor que em um ordenamento jurdico permeado por inmeras normas, regras jurdicas ou

    princpios jurdicos, estas entrem em conflito. deste tema que trata o item a seguir.

    1.5. CONFLITOS NORMATIVOS

    O objetivo do presente item apresentar um conceito de conflitos

    normativos que permita realar as distines entre regras e princpios. No s