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Processos de influência ou de argumentação? Apontamentos sobre a especificidade das estratégias de publicidade no âmbito das campanhas de sensibilização e de desenvolvimento * Eduardo Camilo Universidade da Beira Interior 2006 Índice 1 Campanhas de sensibilização e de desenvolvimento: es- pecificidades estruturais ................. 3 2 Campanhas de sensibilização e de desenvolvimento: es- pecificidades operativas ................. 19 3 Considerações finais ................... 42 4 Bibliografia ....................... 43 * Aula de doutoramento da Disciplina de “Lenguajes y conceptos del dis- curso publicitario para la sensibilización”sob a regência da professora Eloisa Nos Aldas da área de Comunicación Audiovisual y Publicidad, Universitat Jaume I de Castellón – Castellón, Espanha.

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Processos de influência ou deargumentação?

Apontamentos sobre a especificidade das estratégiasde publicidade no âmbito das campanhas de

sensibilização e de desenvolvimento∗

Eduardo CamiloUniversidade da Beira Interior

2006

Índice

1 Campanhas de sensibilização e de desenvolvimento: es-pecificidades estruturais. . . . . . . . . . . . . . . . . 3

2 Campanhas de sensibilização e de desenvolvimento: es-pecificidades operativas. . . . . . . . . . . . . . . . . 19

3 Considerações finais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 424 Bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43

∗Aula de doutoramento da Disciplina de “Lenguajes y conceptos del dis-curso publicitario para la sensibilización”sob a regência da professora EloisaNos Aldas da área de Comunicación Audiovisual y Publicidad, UniversitatJaume I de Castellón – Castellón, Espanha.

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Breve introdução à lição

Nesta lição, pretendemos reflectir sobre a publicidade de causascívicas, sobre campanhas publicitárias de sensibilização e de de-senvolvimento, propondo um modelo de análise específico e com-plementar aos que habitualmente estão subjacentes ao estudo dapublicidade comercial. Trata-se de um modelo de análise que sefundamenta em paradigmas que valorizam as dimensões discur-siva, intercompreensiva e argumentativa dos processos comunica-cionais. Estas dimensões são importantes porque são as que estãomelhor adaptadas às especificidades cívicas e públicas das causaspromovidas por este tipo de campanhas publicitárias.

Esta reflexão constitui a matéria relativa à lição de 28 de Ja-neiro de 2006 da disciplina de “Lenguajes y conceptos del dis-curso publicitario para la sensibilización” da responsabilidade daprofessora Eloísa Nos Aldas, integrada no curso de doutoramentoda Universidad Jaume I, Castellón, Espanha.

A sessão, com a duração de três horas, encontra-se estrutu-rada em duas partes principais. Na primeira, explicitaremos anossa concepção de campanhas de sensibilização e de desenvolvi-mento, procurando demonstrar em que medida são caracterizadaspor especificidades estruturais cuja operacionalização remete, ne-cessariamente, para certos paradigmas teóricos da comunicaçãohumana, cuja especificidade não pode ser confundida com a queestá subjacente à dos que fundamentam as estratégias publicitá-rias de produtos de cariz comercial. Na segunda parte, identifi-caremos quais são esses paradigmas da comunicação a partir deduas referências epistemológicas centrais: Jürgen Habermas (teo-ria do ‘agir comunicacional’) e Mikaïl Bakhtine (conceito de dia-logismo, baptizado por Julia Kristeva de ‘intertextualidade’ e porGérard Genette de ‘transtextualidade’).

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1 Campanhas de sensibilização e dedesenvolvimento: especificidades estruturais

Nesta lição, iremos reflectir sobre a possibilidade de se conceberum modelo de comunicação publicitária que esteja adequado àpublicitação de causas sociais e à sensibilização para a adopçãode comportamentos cívicos (campanhas publicitárias de sensibi-lização e de desenvolvimento). Estamos a referir-nos, em parti-cular, às campanhas de saúde pública (higiene e segurança no tra-balho, prevenção de doenças infecto-contagiosas, como é o casodo SIDA, etc.), de prevenção rodoviária (sensibilização para umacondução segura, de combate ao alcoolismo) e, de uma forma ge-ral, a todas as campanhas de publicidade que estão relacionadascom o progresso e o desenvolvimento da sociedade. Por exem-plo, as de implementação da agricultura biológica, as campanhasde combate ao analfabetismo, de formação de hábitos de leitura,etc.. Na Internet, encontram-se disponibilizadas numerosas cam-panhas de publicidade que se inscrevem nestas e noutras catego-rias similares. Confira-se, a este propósito, os sítiosAd councileLa nuit des publivores1.

Passamos, de seguida, a discriminar as características maisrelevantes que estão subjacentes a este tipo de publicidade social.Esta inventariação é importante, pois os parâmetros que serão re-censeados estão relacionados com uma reivindicação da especi-ficidade destes processos de comunicação que não deve ser con-fundida com a que está subjacente às estratégias de publicidadecomercial. Esta classificação remete, portanto, para uma con-ceptualização própria, que é alternativa às teorias da publicidadecomercial. Quando nos referimos a uma conceptualização alter-nativa, estamo-nos a reportar à necessidade de contribuir para oesboço de um modelo de comunicação que seja característico, no

1 [Em linha]: Advertising Council, http://www.adcouncil.or/campaigns[consulta: 6 de Janeiro de 2006].

[Em linha]: La nuit des publivores, http://www.publivores.com [consulta sobregisto e código de acesso: 6 de Janeiro de 2006].

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sentido de estar adaptado, das estratégias de sensibilização e dedesenvolvimento e que apresente um valor complementar aos queestão subjacentes às estratégias de publicidade comercial e quesuportam as suas especificidades.

a) A temática das mensagens: a causa públicaUm parâmetro fundamental, no sentido de ser decisivo para a ca-racterização das singularidades basilares das campanhas publici-tárias de sensibilização e de desenvolvimento, consiste na especi-ficidade formal das temáticas que são publicitadas, promovidas.

Se é certo que, de um ponto de vista substancial, elas se re-portam aos mais variados assuntos, estes encontram o seu funda-mento formal num denominador referencial comum: o da causapública. Por ‘causa pública’ concebemos tudo aquilo que é espe-cífico da sociedade civil, isto é, que não só apresenta uma abran-gência pública (a protecção do ambiente), mas também uma rele-vância pública (por exemplo, a promoção da dignidade das mu-lheres e a luta contra a violência urbana).

Nesta dimensão pública das campanhas publicitárias de sensi-bilização e de desenvolvimento, descobrimos interessantes pontosde contacto entre os seus princípios e os que estavam subjacentesao exercício da retórica aristotélica. Independentemente de serconcebida como uma técnica de persuasão, ela só era exercida,e tinha razão de ser, no domínio dapolis; no âmbito do espaçopúblico da cidade, relativamente a polémicas e a conflitos decor-rentes das interacções públicas relativas à vida dos cidadãos nacidade. Como sabemos, tais polémicas e conflitos eram de trêstipos: de cariz judicial (em que o que estava em jogo era a per-suasão sobre a realização ou não realização de um determinadoacto), de índole deliberativa (em que o que se polemizava era aviabilidade de uma decisão) e de cariz epidíctico (através do qualo discurso incidia no repúdio ou no elogio das virtudes ou dosdefeitos públicos dos cidadãos). Seria interessante, mas não seintegra no âmbito desta aula, reflectir sobre o género retórico no

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qual se integram preferencialmente as campanhas publicitárias desensibilização e de desenvolvimento, uma tarefa importante paradescobrir a especificidade das suas mensagens.

A questão da causa pública, que determina a especificidadedas temáticas das também chamadas campanhas de solidariedade,impõe-se como central, sendo o fundamento da tese que defende-remos nesta aula. Na nossa opinião, constitui um erro estratégicograve a produção de campanhas de solidariedade e de desenvolvi-mento a partir de critérios operativos e por intermédio de aborda-gens que são específicas das campanhas de publicidade comercial.

Subjacente à publicidade das marcas comerciais encontram-se causas privadas fundamentadas em interesses unilaterais (rela-tivos à esfera de produção de bens e de serviços) que, na sua di-mensão mais fundamental, são puramente arbitrárias porque sãodecorrentes de interesses estritamente conjunturais, não perma-nentes, nem essenciais. Por exemplo, no referente a uma marcade automóveis, tanto se promove o conforto e a sua segurançacomo, a seguir, a agressividade do seudesign,o poder da suaperformance, mesmo que o substrato lógico subjacente a argu-mentos tão diversos possa ser contraditório. Por outro lado, napublicidade tradicional, nunca está em jogo a temática da rele-vância pública das causas comerciais, com excepção de todas assituações conjunturais em que essa relevância possa ser um ar-gumento comunicacional efectivo para a afirmação de interessesprivados. É o que se constata nalgumas campanhas demarketingsocial fundamentadas numa reputação das marcas relativamentea um alegado activismo cívico, comunitário, ecológico, cultural.Na actividade publicitária comercial encontra-se a mentalidade te-leológica do espírito do capitalismo: no âmbito da esfera da pro-dução estão interesses e expectativas que deverão ser imperiosa-mente realizadas; do lado do consumo existem carências egoístas,isto é, que são sentidas privadamente (independentemente da suaabrangência pública). Neste jogo de conveniências, a publicidadecomercial visa persuadir sobre a adequabilidade de um determi-nado produto para satisfazer esses mesmos interesses. A existir

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alguma dimensão pública, ela encontra-se fundamentada no do-mínio da abrangência e não da relevância: com o objectivo deamortizar custos relativos à capacidade instalada das unidades deprodução, torna-se essencial produzir a máxima quantidade pos-sível de bens, o que implica ter de os comercializar e publicitarpara o maior número de pessoas. Complementarmente, no querespeita aos consumidores, estes tendem a estar agregados numamassa uniforme de indivíduos dotados das mesmas necessidadese hábitos de consumo privados. A ponderação das suas especifici-dades não se fundamenta numa conceptualização da sua comple-xidade enquanto actores sociais, cidadãos, mas apenas nos seusatributos decorrentes de comportamentos concretos de consumo.

Como se poderá, então, produzir campanhas publicitárias desensibilização e de desenvolvimento adequadas quando elas estãofundamentadas frequentemente em pressupostos que são especí-ficos das campanhas de publicidade comercial? Como é possívelconciliar interesses relativos a causas privadas com pretensões as-sociadas a causas públicas? Até que ponto estas publicidades sãosimilares quando os públicos-alvo são estruturalmente distintos:de um lado, os cidadãos, do outro, os consumidores?

Para nós, o querer a todo o custo produzir campanhas publi-citárias de desenvolvimento e de sensibilização como se fossemmeras campanhas comerciais, implica cair no erro de confundirfenómenos relativos a esferas públicas de interacção e de vidacom práticas de consumo cujo fundamento incide em esferas pri-vadas; é não distinguir a sociedade civil do mercado, é sobrepor aoikosàpolis.

As causas públicas, que se assumem como o fundamento dapublicidade social, impõem que os processos de comunicação te-nham de apresentar um valor duplamente público.

Em primeiro lugar, as campanhas são públicas porque incidemsobre assuntos que dizem respeito à totalidade da população, istoé, que são decorrentes da vida em colectividade, apresentando,por isso, uma abrangência pública. Remetem para dificuldadesque são sentidas por todos, já que põem em risco a existência da

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própria sociedade civil. São ameaças relacionadas com a saúdepública, a limpeza pública, a segurança pública, etc.. É certo quepodem ser problemas sentidos ou vividos individualmente, comoé o caso do tabagismo; todavia, as campanhas publicitárias in-cidem nos reflexos que as vivências privadas desses problemaspodem ter para o desenvolvimento e o progresso da própria co-lectividade. É por isso que as campanhas de sensibilização e dedesenvolvimento incidem estruturalmente sobre problemas de ci-dadania.

Em segundo lugar, estas campanhas são públicas porque in-cidem sobre assuntos indiscutivelmente importantes para todos.Deverão apresentar um valor consensual relativamente à sua per-tinência, sendo precisamente nesse consenso que reside o valorda relevância pública. Esta particularidade é importante porqueos problemas publicitados só se transformam numa causa públicade luta se a sua solução resultar da participação dos públicos queos protagonizam e, simultaneamente, do próprio empenho de to-dos os membros da sociedade civil. Tal requisito vai reflectir-sena própria especificidade das campanhas publicitárias que deve-rão englobar processos de comunicação dotados de um valor inte-ractivo, dialógico. São compostas por dispositivos que permitama participação dos públicos quer na resolução desses problemas,quer na configuração das mensagens mais adequadas, isto é, asque estejam conforme aos seus quadros de valores e experiênciasvividas. Esta questão da participação dos públicos nas campanhase da adequação das mensagens aos seus valores e experiências,conduz a que estas estratégias publicitárias não só apresentem umcunho processual e intercompreensivo, mas também um grau de‘elasticidade’ suficiente para se adequarem a circunstâncias e con-textos variados de enunciação, também eles em permanente mo-dificação.

O valor da relevância pública traduz-se, portanto, na necessi-dade de repensar os fenómenos da comunicação publicitária, aespecificidade dos exercícios linguísticos e o estatuto dos pró-prios destinatários. Por um lado, as campanhas já não pode-

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rão ser estritamente unidireccionais, como tradicionalmente aindaacontece na publicidade comercial; por outro, os destinatáriostransformam-se em parceiros activos no âmbito dos fenómenosde concepção e de compreensão das mensagens. Esta situação éimportante pois impede atitudes unilaterais, consubstanciadas emcampanhas chocantes (baseadas na ameaça) ou insinuantes (base-adas no conselho paternalista da celebridade), em que as entidadespromotoras se substituem aos públicos, numa atitude proteccio-nista, não apenas impondo temáticas consideradas como publica-mente relevantes, mas igualmente a maneira como elas devem sercomunicadas.

b ) Processos de comunicação: de dupla dimensãoA natureza pública das causas subjacentes às campanhas de de-senvolvimento e de sensibilização imprime mutações decisivasna especificidade dos processos de comunicação. Como as cau-sas públicas remetem para problemas que, tal como já referimos,apresentam o valor duplamente público da abrangência e da rele-vância, então as campanhas publicitárias deverão integrar proces-sos de comunicação dotados igualmente de uma dupla dimensão:por um lado estarão associados a interacções relativas a uma ‘ra-cionalização pública’, isto é, relacionada com o debate, com areflexão, participativa e participada, sobre a validade pública dascausas cívicas e a melhor forma de as comunicar; por outro, re-metem para a publicitação de propostas cívicas entretanto dotadasde um valor publicamente consensual, precisamente com o objec-tivo de relembrar esses consensos e transformar pré-disposiçõesem comportamentos cívicos efectivos.

É na dimensão da discussão pública sobre a própria essên-cia da causa cívica com os públicos que a protagonizam que sefundamenta uma distinção essencial entre este tipo de publici-dade e a de cariz comercial. Nesta, os objectivos comerciais sãounilaterais e inquestionáveis: a sua validade nunca se encontrasubmetida a debate, pelo que o processo de comunicação se ca-

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racteriza por um exercício retórico, de persuasão pela influência.Em contrapartida, nesta dimensão bilateral e intercompreensivadas campanhas de desenvolvimento e de sensibilização, torna-seessencial submeter a debate - pelo menos com os parceiros queestão envolvidos nos problemas - as razões que estão subjacentesa determinadas propostas de comportamento cívico; o porquê deser necessário alterar certas condutas; a real viabilidade delas se-rem alteradas e/ou sobretudo a pertinência dos comportamentosalternativos. Este procedimento, argumentativo na sua essência,deverá, idealmente, de acordo com as teses de Jürgen Habermas2,ser universal (aberto a todos os públicos envolvidos na temáticaa debater) e não constrangedor (concretizado através de exercí-cios linguísticos de valor pragmático explícito, através dos quaisa persuasão sobre certas propostas se concretiza através da mobi-lização das razões mais adequadas à situação enunciativa e à pre-tensão de validade cívica em questão). Assim se consegue umapersuasão através do melhor argumento, fundamento essencial jánão de um tecnicismo sofista, mas de uma moral humanista da co-municação. Há, portanto, toda uma dinâmica comunicacional quenão se esgota na mera transmissão de mensagens de conteúdo cí-vico através dos meios de comunicação de massa, em mensagensdotadas de um valor fático mais ou menos evidente, isto é, de umcunho espectacular relativamente intenso.

Consideramos essencial esta dimensão bilateral dos processosde comunicação das campanhas de sensibilização e de desenvol-vimento, pois elas deixam de ser caracterizadas por uma simplestransmissão de causas cívicas através dosmass mediapara tam-bém integrarem outros procedimentos de comunicação interpes-soal. A sua realização envolve a tal reflexão participada sobre arelevância pública das causas cívicas, mas por referência a qua-

2HABERMAS, Jürgen -Théorie de l’agir communicationnel. Paris,Fayard, 1987,Col. L’espace du politique, Vol I - Rationalité de l’agir et ra-tionalisation de la société, p. 110-118; 283-345 ;

HABERMAS, Jürgen -Moral et communication. Conscience morale et ac-tivité communicationnelle Paris, CERF, 1996, p. 63-130.

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dros específicos de experiência, isto é, aos ‘mundos vividos’ dospúblicos envolvidos em relação aos quais aquilo que se pretendecomunicar adquire um sentido concreto, palpável. Só assim seconseguirá evitar abordagens autoritárias ou paternalistas ou sim-plesmente absurdas sem qualquer relação relevante com os seuspadrões de vida.

Passemos agora para a segunda dimensão subjacente aos pro-cessos de comunicação das campanhas de sensibilização e de de-senvolvimento que está relacionada com a problemática da abran-gência pública. Salientamos a particularidade desta dimensão serposterior à relativa aos processos comunicacionais de cariz inter-compreensivo e interpessoal (os tais que estão relacionados coma vertente da relevância pública) e visar produzir efeitos pragmá-ticos relacionados com a recordação de conteúdos associados aconselhos, a propostas, a promessas, etc., entretanto dotados deum valor consensual e já anteriormente comunicados e discuti-dos. Assim sendo, é curioso constatar como esta dimensão dascampanhas publicitárias se aproxima de abordagens de cariz retó-rico, dotadas de uma forte componente espectacular, abordagensque são, por tradição, específicas dos processos de publicidadecomercial. Queremos, contudo voltar a salientar a distinção es-truturalmente abissal dos contextos subjacentes a estes dois tiposde actividade comunicacional. Se na publicidade comercial, a re-tórica visa a legitimação de objectivos que são unilaterais e, porisso mesmo, arredios à discussão, nesta vertente da difusão pú-blica das campanhas de sensibilização e de desenvolvimento, aretórica é uma actividade comunicacional que visa recordar ospúblicos sobre os consensos a propósito da relevância das causascívicas e a necessidade de os traduzir em comportamentos efecti-vos.

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c) Meios de comunicação: a conjugação dacomunicação interpessoal com a comunicaçãomediatizadaQuando referimos que as temáticas das campanhas de sensibiliza-ção e de desenvolvimento deverão apresentar uma dimensão du-plamente pública relativamente à abrangência e à relevância, estaduplicidade também se faz reflectir noutras dimensões, incluindoas de cariz mais operativo. Estamo-nos a referir, concretamente,à questão dos meios de comunicação.

Quais são os meios de comunicação mais adequados às cam-panhas publicitárias de solidariedade? Será que também se fun-damentam nos meios de comunicação de massa, tal como acon-tece na publicidade comercial? Estas questões são facilmente res-pondidas se, por um lado, nos posicionarmos a partir de paradig-mas de comunicação de cariz argumentativo e intercompreensivo(relacionados com a tal fundamentação da relevância pública dascausas cívicas); e se, por outro, estiverem adaptados a operaçõesde rememoração (que visam assegurar a abrangência pública dascausas cívicas), actividades que os anglo-saxónicos designam por‘iniciativas reminder’.

Como será de calcular, nos paradigmas relativos a procedi-mentos intercompreensivos e argumentativos, os meios de comu-nicação são principalmente de cariz interpessoal e estão relaciona-dos com iniciativas de educação cívica. São suportados por meiosde comunicação orais, visuais e audiovisuais, mas relativos a inte-racções comunicacionais que se realizam no âmbito de uma esferade reflexão e de debate público. Nesta conceptualização, inter-pessoal das campanhas de sensibilização e de desenvolvimento,inspirámo-nos em duas teorias: na do Agir Comunicacional apli-cada ao período do iluminismo de Jürgen Habermas3 e na teoriados Usos e das Gratificações de Blumer e Katz4.

3HABERMAS, Jürgen –Mudança estrutural na esfera pública. Rio deJaneiro, Tempo Brasileiro, 1984.

4BLUMER, J. G. e KATZ E. (Ed.) -The uses of Mass Communication.

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Da teoria do Agir Comunicacional aplicada ao período do Ilu-minismo, interessa-nos particularmente o conceito de ‘esfera pú-blica’, concebida como um domínio de interacção comunicacio-nal cujo acesso é público, dotado de um funcionamento relativa-mente regular, no âmbito do qual se submete a debate a relevân-cia de uma multiplicidade de pretensões (que, durante os períodosdecorrentes entre os séculos XVIII e XX, eram de cariz essenci-almente cultural ou político-jurídico). No âmbito das campanhasde sensibilização e de desenvolvimento, a aplicação deste con-ceito consubstancia-se num conjunto de iniciativas comunicacio-nais que se desenvolvem em certos espaços públicos (a escola,a sociedade recreativa, o café, o sindicato, o grémio cultural),mas na condição de serem frequentados pelos públicos envolvi-dos. Isto significa que, por vezes, estes espaços públicos ficamreduzidos às ruas onde estão as prostitutas e os toxicodependen-tes, aos cafés e aos bares frequentados pelos alcoólicos, aos locaisonde se reúnem emigrantes à espera de trabalho, às praças ondedormem os camionistas, etc.. Todo o local é viável desde que váao encontro dos públicos e os envolva nas causas cívicas a promo-ver. O objectivo é o de criar ou explorar estruturas do tecido socialnas quais se reúnem, num público, os actores sociais que são alvoda campanha social. Que se pretende concretizar nestas esferaspúblicas? Verificar a efectiva pertinência das causas que estãosubjacentes às temáticas das campanhas e, sobretudo, descobriraté que ponto os conteúdos veiculados, são válidos, consensuais,isto é, estão de acordo com os quadros de valores e de experiên-cias vividas pelos públicos envolvidos. Numa fase posterior das

Sage, Beverly Hills, CA, 1974, citado por : MCQUAIL, Denis e WINDAHL,Sven - Modelos de comunicação para o estado da comunicação de massas.Lisboa, Editorial Notícias, 2003, p. 116-117.

A perspectiva ‘culturalista’ deste modelo encontra-se em : MCQUAIL, De-nis – “With benefict of hindsight: reflexions on uses and gratification research”,in: Critical studies in mass communication, 1, 2, p.177-93, citado por: MC-QUAIL, Denis e WINDAHL, Sven -Modelos de comunicação para o estadoda comunicação de massas, p. 120-123.

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campanhas, os objectivos são distintos: procurar transformar pré-disposições em comportamentos cívicos efectivos.

Passemos agora para a aplicação da Teoria dos Usos e dasGratificações.

Como é sabido, esta teoria está relacionada com uma aná-lise dos efeitos dos meios de comunicação de massa e postulaque a eficácia cognitiva e performativa daquilo que é transmitido,é tanto maior quanto as mensagens melhor reforçarem valores,atitudes e comportamentos pré-existentes. Aparentemente, estateoria, por se inscrever numa reflexão sobre as potencialidadesfuncionais dos meios de comunicação de massa, poderá ser desa-dequada a práticas comunicacionais fundamentadas nas tais ini-ciativas de educação cívica e em processos de intercompreensãode cariz interpessoal, argumentativo e demonstrativo suportados,principalmente, por meios de comunicação interpessoal. Con-tudo, o que concebemos de mais relevante na teoria dos Usos edas Gratificações é a importância que os autores atribuem a qua-dros axiológicos, de pré-disposições e de comportamentos, quedesempenham um papel decisivo na recepção e na compreensãodas mensagens. Ora bem, consideramos que esses quadros axi-ológicos correspondem, de acordo com a nossa interpretação deJürgen Habermas, a uma espécie de ‘mundo vivido’ que é comumaos interlocutores e que possibilita sustentar a eficácia intercom-preensiva das actividades comunicacionais. Constitui-se comoum saber implícito, fundamentado em usos, interesses e cumpli-cidades, valores, gostos, mesmo até numa competência comuni-cacional; apresenta-se como o horizonte de um agir quotidiano,no qual se investe o saber explícito relativo a certas tomadas deposição cívica, a algumas pretensões de comportamento social5

. É precisamente por referência a esse mundo vivido que se de-cide a relevância pública das campanhas de sensibilização e dedesenvolvimento baseadas numa dimensão intercompreensiva einterpessoal, tal como, na óptica da Teoria dos Usos e das Grati-ficações, se decide a eficácia cognitiva das mensagens difundidas

5HABERMAS, Jürgen -Théorie de l’agir communicationnel,p. 342 e ss.

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pelos meios de comunicação de massa e a viabilidade perfoma-tiva das propostas, dos conselhos, das promessas, de campanhasde informação, sensibilização, etc. suportadas por uma dimensãomediatizada.

De tudo ao que até agora foi constituído surge-nos, todavia,uma questão de complexa solução: até que ponto esta situação dosusos a partir das gratificações, dos consensos que se fundamentamem estruturas de saber implícito, não se assume como um obstá-culo de difícil superação quando as causas cívicas a sensibilizarsão incompatíveis com essas estruturas? Não haverá riscos efec-tivos de as campanhas publicitárias falharem porque os destinatá-rios não as recebem ou recebem defeituosamente (numa espéciede percepção selectiva) ou, recebendo-as, não as compreendem?Explicando este problema com exemplos práticos: como apelar àprevenção rodoviária, a uma condução segura, quando os padrõesde vida ocidentais cada vez mais se encontram fundamentados nainstantaneidade, no imediatismo, no delírio da velocidade? Comosensibilizar para o uso do preservativo quando a sua utilizaçãopode colidir com a manutenção de valores éticos e religiosos?Não temos solução concreta para esta questão; todavia, formu-lamos a hipótese de ser no âmbito do próprio agir comunicaci-onal, da tal reflexão sobre a relevância pública das causas, quesurgirão necessariamente soluções de compromisso entre a suaespecificidade cívica e as estruturas de cariz social, psicológico,axiológico, etc., que as permitem enquadrar. Nesta perspectiva,as iniciativas de educação cívica e de cariz demonstrativo sobre aquestão da prevenção das doenças sexualmente transmissíveis te-rão tanto mais probabilidades de sucesso quanto melhor consegui-rem reforçar, no sentido de não interferirem, quadros axiológicosexistentes, de cariz sexual ou não, de forma a gerir expectativas epré-disposições positivas relativamente àquilo que é comunicado.

Já referimos que as campanhas publicitárias de solidariedadesão caracterizadas por processos de comunicação de cariz argu-mentativo e de especificidade mnemónica, isto é, processos quevisam recordar as significações relativas aos que apresentam a tal

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especificidade argumentativa e intercompreensiva. No que res-peita aos processos de comunicação de natureza mnésica, elesestão relacionados com acções de comunicação suportadas pormeios de comunicação de massa que já não visam assegurar a re-levância pública das causas sociais, mas sim a sua abrangência e,sobretudo, a recordação e o aprofundamento dos conceitos-chaveanteriormente debatidos e publicamente aprovados. Os proces-sos de comunicação já não são mais de cariz interpessoal, masmediatizado e o objectivo é o de gerir permanentemente o ‘agen-damento’ de certos conteúdos cívicos. Nesta perspectiva, o para-digma comunicacional subjacente remete para a teoria doAgendaSettingde McCommbs e Shaw6 convenientemente adaptado aosprocessos de comunicação publicitária em geral7, e às especifici-dades das estratégias de desenvolvimento e de sensibilização, emparticular.

A partir da adaptação desta teoria do agendamento, defende-mos a importância dos meios de comunicação de massa comoessenciais para a banalização e a inculcação de certas temáticascívicas. O objectivo é o de gerir os conhecimentos e os consensosanteriormente desencadeados a partir da forma como alguns tó-picos de cariz social, certas temáticas, são enfatizados nos meiosde comunicação de massa através de uma estratégia de meios ede um plano de inserções adequado. Nesta perspectiva, os meiosde comunicação de massa, naquilo que os publicitários designampor acções‘above the line’, são determinantes para gerir um es-tado de opinião pública adequado, consolidando aquilo que, num

6MCCOMBS; Malcom e SHAW, D.L. – “The agenda-setting function ofmass media” in:Public Opinion Quarterly, 1972, (36), p. 176-187;

MCCOMBS; Malcom e SHAW, D.L. – “Structuring the “unseen environ-ment”” in: Journal of Communication, 1976, p. 18-22

MCQUAIL, Denis e WINDAHL, Sven –Modelos de comunicação,p. 93-98.

WOLF, Mauro –Teorias da comunicação.Lisboa, Editorial Presença, 1987,Col. Textos de Apoio (12).

7CAMILO, Eduardo J. M. -Sebenta da disciplina de publicidade I. Covi-lhã, edição policopiada, 2005, p. 36-38.

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determinado momento, pode e deve constituir-se como uma con-duta civicamente relevante.

Esta teoria do agendamento complementa-se com mais uma:a dos efeitos cumulativos. Não é suficiente desenvolver campa-nhas de comunicação cada vez mais espectaculares, cujo objec-tivo é simplesmente o da manutenção, em termos de notoriedade,de um determinado tópico social dotado de um valor previamenteconsensual. Também é necessário incrementar a qualidade dosconteúdos veiculados, aprofundando-os, no sentido de respondera necessidades de consumo de informação cada vez mais detalha-das sobre as causas cívicas que se pretendem implementar. Nanossa opinião, este incremento da qualidade dos processos de co-municação mediatizada é resultante de dois factores: por um lado,as mensagens vão ao encontro de expectativas de consumo in-formativo que são decorrentes dos processos de comunicação decariz intercompreensivo anteriormente implementados, por outro,elas apresentam uma função suplementar nas campanhas de sensi-bilização e de desenvolvimento - a de transformar pré-disposiçõesem condutas efectivas.

d) Actividade comunicacional: compreensiva eargumentativaAs campanhas publicitárias de sensibilização e desenvolvimentosão caracterizadas por uma dimensão simultaneamente compre-ensiva e argumentativa, particularidade que nem sempre está pre-sente na publicidade comercial.

A ‘dimensão compreensiva’ está relacionada com o facto deas mensagens reflectirem (idealmente, numa perspectiva não ins-trumental, isto é, não manipulativa) a existência de um auditórioactivo. Assim sendo, elas apresentam um cunho processual, rela-cionado com a compreensão, com o entendimento mútuo, sobrecertas orientações de acção cívica. Daí que, na sua dimensão maisbásica, estas campanhas publicitárias sejam caracterizadas estru-turalmente por um dialogismo comunicacional, por um diálogo

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com um destinatário, real ou fictício, através do qual não só seexplicitam linguisticamente pretensões de orientação cívica mastambém as razões que as sustentam a partir de determinados cri-térios de validade. O auditório, concebido nesta perspectiva, nãoé só uma construção formal (um auditório idealizado), nem umtarget, um alvo a atingir, como ainda acontece nalgumas estraté-gias subjacentes à publicidade comercial e à propaganda políticafundamentadas nas teorias behavioristas e hipodérmicas da co-municação de massa8. Pelo contrário, é um sujeito de linguagemactivo, concreto, uma entidade comunicacional que interroga, queproblematiza, que solicita esclarecimentos a partir do tal quadrode experiências vividas anteriormente referido e por referênciaa circunstâncias e a contextos concretos de enunciação. Daí queesta ‘dimensão compreensiva’ se consubstancie num processo co-municacional que é tudo menos linear e faseado: está fundamen-tado em tentativas, como se os actos de fala fossem lances ins-critos em jogos de linguagem; está sujeito a avanços e a recuos,a actos de fala infelizes na perspectiva de terem falhado ou se-rem abusivos. Nestes jogos de linguagem, embora os resultadosidealizados só possam ser de um tipo (remetem para consensosparticipados e participativos) não existem fórmulas linguísticaspara os alcançar. Em suma: é na dimensão compreensiva dosprocessos de comunicação que as estratégias publicitárias de sen-

8LE BON, Gustave –Lois psychologiques de l’evolution des peuples. Paris,Alcan, 1984;

WATSON, John B. –Behaviour: an introduction to comparative psychology.New York, Holt;

PAVLOV- Leçons sur l’activité du cortex cérébral.Paris, Legrand;TCHAKHOTINE, Serge - “El secreto del éxito de Hitler: la violencia psí-

quica” in: MORAGAS, M. de (Ed.) -Sociologia de la comunicación de masas,3a Ed.. Barcelona, Editorial Gustavo Gili, ,1993, Vol. III- Propaganda políticay opinión pública, p.154-191;

FREUD, Sigmund –Psicologia de las masas, 14a Ed.. Madrid, AlianzaEditorial, 1993;

MCDOLUGALL, W. – The group mind. Cambridge, University Press.

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sibilização e de desenvolvimento encontram um valor pragmáticoincontornável.

Ainda no âmbito da dimensão compreensiva destes processoscomunicacionais, salientamos também a importância da dimen-são histórica da própria linguagem e a forma como essa dimensãopode ser gerida intencionalmente para produzir efeitos pragmáti-cos. Subjacente aos processos de intercompreensão, através dosquais os sentidos são negociados, isto é, racionalizados pelos in-terlocutores por referência a circunstâncias e a contextos espe-cíficos de enunciação, os signos transmitidos apresentam não sóum valor gramatical, mas também uma dimensão sócio-históricadecorrente da sua utilização noutros processos de comunicação.Esta ‘espessura’ histórica, que se assume como o fundamentodos fenómenos de intertextualidade, afigura-se-nos como essen-cial pois constitui-se como uma marca pragmática a partir da qualos signos adquirem uma fundamentação cultural consensual (ounão) aos interlocutores. Nesta dimensão compreensiva e dialógicainspiramo-nos principalmente nas contribuições de Mikaïl Bakh-tine e, indirectamente, de Gérard Genette9.

Quanto à dimensão argumentativa dos processos de comuni-cação, salientamos que ela está relacionada com a própria natu-reza dos exercícios linguísticos que, do ponto de vista pragmá-tico, é estritamente transparente, fundamentada no valor ilocutó-rio e não perlocutório dos actos de fala10. Remete para um pro-cesso caracterizado pela troca dos argumentos mais adequados à

9BAKHTINE, Mikaïl - Le marxisme et la philosophie du langage. Paris,Les Éditions de Minuit,1977;

TODOROV, Tzvetan - Mikhaïl Bakhtine, le principe dialogique suivi deÉcrits du Cercle de Bakhtine. Paris, Seuil, 1981;

GENETTE, Gérard -Palimpsestes. Paris, Seuil, 1982;RODRÍGUEZ, Raúl e MORA, Kiko -Frankenstein y el cirujano plástico.

Alicante, Universidad de Alicante, 2002, Col. Publicaciones Universidad deAlicante/Textos Docentes.

10No que respeita às implicações desta distinção no âmbito do agir comu-nicacional, cf: HABERMAS, Jürgen -Théorie de l’agir communicationnel,p.300-327.

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legitimação de pretensões de acção cívica, assumindo-se como ofundamento de consensos participados e participativos, isto é, queobedecem ao que Jürgen Habermas designa por ‘princípio da uni-versalização’. São acordos decorrentes da adesão qualificada detodas as pessoas envolvidas nos processos comunicacionais e que,idealmente, deverão exprimir uma vontade geral11. Resultam deprocedimentos que visam que o auditório adira ao melhor argu-mento. Como se poderá verificar, esta dimensão argumentativaencontra-se especialmente adequada às fases mais interpessoais ede educação cívica das campanhas de sensibilização e de desen-volvimento, através das quais se procura fundamentar a relevân-cia pública, moral, das causas que se pretendem implementar nasociedade civil.

Relativamente a esta dimensão argumentativa, a nossa refe-rência epistemológica incide na Teoria do Agir Comunicacionalde Jürgen Habermas12.

2 Campanhas de sensibilização e dedesenvolvimento: especificidades operativas

A primeira parte da matéria desta aula incidiu numa caracteriza-ção sumária das características mais relevantes que estão subja-centes às campanhas publicitárias de sensibilização e de desen-volvimento. Interessa, seguidamente, averiguar em que medidaelas produzem implicações no ‘fazer publicitário’, na operaciona-lização das campanhas.

Nesta matéria surgem dois autores que são referências incon-tornáveis no estudo destas implicações: Jürgen Habermas, MikaïlBakhtine.

11HABERMAS, Jürgen -Moral et communication. Conscience morale etactivité communicationnelle,p. 84-97.

12HABERMAS, Jürgen -Théorie de l’agir communicationnel.

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a) Jürgen Habermas e a importância do ‘agircomunicacional’

Parâmetros

Conceptuais

1- Processocomunicacional

Bilateral;Simétrico;Transparente;Argumentativo.

2- Pressupostos Princípio da universalização;Princípio da discussão;Existência de quadros de valores e de experiências(mundos vividos).

3- Meiosutilizados

Interpessoais e interactivos (Bellow the line).

4- Exercícioslinguísticos

De cariz essencialmente verbal;Há uma dimensão explícita do valor ilocutório dosenunciados.

5- Regras(disposiçõesinstitucionais)

a) Ordenação dos temas;b) Definição do início e do fim dos debates;c)Garantia dos domínios de pertinência;d) Avaliação das competências.

6- Potencialida-des estratégicas

Importante para averiguar a relevância pública dascausas cívicas junto dos públicos que nelas estão en-volvidos, tendo por referência os seus quadros devalores e experiências vividas, permitindo um incre-mento da qualidade das iniciativas comunicacionaisque são veiculadas pelos meios de comunicação demassa em fases posteriores da campanha;.

Quadro no 1: Sistematização dos principais conceitos subjacentes à teo-ria do Agir Comunicacional e respectiva adaptação a contextos relativosà produção de campanhas publicitárias de sensibilização e de desenvolvi-mento.

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Passamos para a apresentação de algumas considerações rela-tivas aos parâmetros consagrados no quadro no 1.

1- Processo comunicacional

Relativamente ao processo de comunicação, é de destacar que abilateralidade e a simetria são requisitos que implicam que os in-terlocutores apresentem um estatuto paritário. Esta particulari-dade é importante: remete para a ausência de atitudes que pos-sam, de alguma forma, influenciar a especificidade argumentativados exercícios linguísticos. É o caso das atitudes paternalistas porparte das entidades promotoras das causas, como só elas soubes-sem o que é melhor para os que nelas estão envolvidos ou são pro-tagonistas dos problemas; é igualmente o caso dos comportamen-tos de resistência, de boicote, activo ou passivo, dos destinatáriosdas iniciativas, como se só eles conhecessem a real dimensão dosseus problemas ou dos seus estilos de vida.

A transparência corresponde a um requisito subjacente aosprocessos de comunicação que consiste no facto de as pretensõesque constituem as causas cívicas terem de se encontrar explicita-das como uma espécie de tópico, de tema de discussão. Este pre-ceito é importante porque no âmbito dos exercícios linguísticosconsubstancia-se numa valorização da dimensão ilocutória dosenunciados. Complementarmente, a especificidade argumenta-tiva remete para a própria natureza dos processos de comunicaçãoque assenta numa dinâmica persuasiva relativa à fundamentaçãodo tema em discussão. Esta argumentação não deve ser confun-dida com as práticas de manipulação, procedimentos pelos quaisa persuasão não se baseia na validade dos melhores argumentosrelativamente a determinadas pretensões de actuação cívica, massomente numa actividade estratégica de influência.

2- Pressupostos

A operacionalização efectiva de uma estratégia de comunicaçãocaracterizada pelos requisitos anteriormente estabelecidos só é

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efectiva, isto é, ela só adquire uma dimensão efectivamente moral,se se fixar em três pressupostos decisivos: o princípio da univer-salização, o princípio da discussão e a existência de quadros devalores e de experiências vividas.

Na nossa opinião, os dois primeiros pressupostos estão rela-cionados com a dimensão simétrica e bilateral dos processos decomunicação: os efeitos decorrentes desta fase da campanha pu-blicitária são de cariz participado e participativo e apresentama dupla particularidade de satisfazer, sem constrangimentos dequalquer tipo, os interesses de todos (princípio da universaliza-ção) os que se encontraram envolvidos no processo comunicaci-onal, isto é, os que submeteram ao debate, a uma racionalizaçãopública, uma pretensão de validade cívica concreta (princípio dadiscussão). Complementarmente, a aplicação destes dois prin-cípios só é efectiva a partir da mobilização de certas dimensõesrelativas a quadros de sentido e de experiência que são comunsaos participantes do processo de comunicação. Este pressupostoé importante, pois determina que as campanhas de operacionali-zação e desenvolvimento sejam concretizadas apenas por pessoalqualificado, não só numa perspectiva técnica, no que respeita àoperacionalização dos procedimentos de comunicação, mas es-sencialmente numa perspectiva cultural e social, relativamente aodomínio das estruturas de valores, culturas e experiências dos pú-blicos envolvidos.

3- Meios utilizados

As especificidades argumentativa e bilateral dos processos de co-municação impõem que esta dimensão mais intercompreensiva edialógica das campanhas de sensibilização e de desenvolvimentoseja suportada por meios de comunicação de cunho interactivoe não mediatizado relacionados com estratégias de comunicaçãointerpessoal: é o caso da comunicação face a face, no que res-peita às sessões de esclarecimento, às conferências, às palestras,aos discursos, às demonstrações, aos fóruns de discussão e de

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debate; é também o caso do telefone relativamente às linhas deatendimento, de orientação ou de esclarecimento. Estes meiosde comunicação de comunicação oral, podem ser complementa-dos por meios de comunicação escrita ou audiovisual. Todavia,os objectivos de comunicação subjacentes à sua utilização já nãose encontram adstritos a um processo de comunicação bilaterale simétrico, absolutamente interactivo, mas relativamente lineare unidireccional relacionado com a consolidação e a recordaçãodos consensos anteriormente alcançados.

As características subjacentes ao processo comunicacional, bemcomo o cumprimento dos pressupostos e das regras que lhe estãosubjacentes, determinam que a operacionalização desta dimensãodialógica das campanhas de sensibilização e de desenvolvimento,esteja preferencialmente adaptada a um auditório restrito, vistoque os meios de comunicação explorados se integram em proces-sos de comunicação interpessoal. Esta particularidade conduz aque a actividade comunicacional esteja, numa perspectiva ope-rativa, inscrita no que os publicitários designam por operações‘bellow the line’: iniciativas integradas em técnicas de vendas oude promoções de vendas (concebidas estas, como estratégias decomunicação interpessoal).

4- Exercícios linguísticos

Se é certo que os princípios dialógicos subjacentes aos processosde comunicação, bem como os seus pressupostos e regras, favore-cem a adopção de meios de comunicação interpessoal, não é lícitoconsiderar que as mensagens se fundamentem apenas em matériasexpressivas de cariz verbal, como à primeira poderá ser de espe-rar. Certamente que nestes processos de comunicação o signoverbal tem primazia sobre outras categorias sígnicas derivado àssuas potencialidades para a explicitação objectiva dos significa-dos e do valor ilocutório dos enunciados. Contudo, para lá da deespecificidade verbal, outras modalidades expressivas igualmenteimportantes existem que não podem ser descuradas, pois o seu

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valor semântico e pragmático também é relevante: as entoações(modalidades paralinguísticas), os gestos e as expressões corpo-rais e faciais mais ou menos fundamentados num protocolo (mo-dalidades cinésicas), as disposições espaciais dos interlocutores(modalidades proxémicas), etc.. Explicando esta ideia por outraspalavras: não é porque os processos de comunicação são de carizintercompreensivo que os signos necessariamente terão de apre-sentar uma materialidade verbal, como nos parece encontrar-seimplícito na Teoria do Agir Comunicacional, de Jürgen Habermasfundamentada nas dos actos de fala de Austin e de Searle13 . Se écerto que os signos verbais apresentam um papel central nos exer-cícios linguísticos, as outras categorias expressivas não deixam deser menos importantes. Efectivamente, consideramo-las decisivaspara incrementar a eficácia do próprio processo argumentativo, jáque são essenciais para complementar e para aprofundar a inteli-gibilidade das significações verbais.

Quando referimos que nos exercícios linguísticos existe umadimensão ilocutória explícita dos enunciados, queremos enfatizaro valor da transparência do processo comunicacional. Esta par-ticularidade é importante e está relacionada com o pressupostorelativo ao princípio da discussão, segundo o qual uma causa so-cial só é adaptada após uma reflexão participada e participativasobre a sua relevância pública.

5- Regras (disposições institucionais)

Apesar de os processos de compreensão serem intercompreensi-vos, transparentes, não constrangedores, eles não deixam de serregulados de acordo com estatutos associados a uma espécie de‘princípio da eficácia comunicacional’. Estão relacionados coma necessidade de gerir os processos de comunicação a partir de

13AUSTIN, J. L. –How to do things with words. Oxford, Oxford UniversiityPress, 1975.

SEARLE, John R . –The Philosophy of language. Oxford, Oxford Univer-sity Press.

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uma finalidade: a relativa à produção de um consenso sobre umapretensão de actuação cívica. Tal particularidade significa que,na operacionalização das fases mais intercompreensivas e argu-mentativas das campanhas de comunicação, devem existir indi-víduos dotados de uma competência comunicacional específica(uma espécie de mediadores), cuja função é a de gerir e de regu-lar processos de comunicação na perspectiva de optimização dasua dinâmica.

6- Potencialidades estratégicas

Este parâmetro remete para aspectos relacionados com a viabili-dade operativa dos processos de comunicação intercompreensivosno âmbito das campanhas de sensibilização e de desenvolvimento.O que pretendemos com ele é demonstrar a funcionalidade des-tes processos de comunicação, funcionalidade essa que talvez nãotenha ficado totalmente explicitada a partir da descrição dos parâ-metros anteriores: para quê investir numa fase específica de carizintercompreensivo e dialógico destas campanhas de publicidade,quando os públicos envolvidos são restritos e as causas sociaissubjacentes remetem para problemas que envolvem a globalidadedas sociedades civis? Porquê concretizar estes processos comuni-cacionais caracterizados por pressupostos que, no limite, podemquestionar a própria relevância pública das causas sociais subja-centes às campanhas? Qual a razão para operacionalizar procedi-mentos de comunicação baseados em iniciativas de comunicaçãointerpessoal que são relativamente complexas, demoradas e dis-pendiosas?

Em resposta a todas estas questões, defendemos a tese deque, devido à complexidade dos problemas e das causas cívi-cas, qualquer campanha de sensibilização e de desenvolvimentodeve apresentar, nas suas fases iniciais de intervenção, uma di-mensão educativa e de reflexão pautada por uma vertente de es-clarecimento, mas também de argumentação, no âmbito da qualse atesta a relevância das causas sociais ou a sua adequação aos

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hábitos, aos usos, às experiências e aos quadros mentais dos pro-tagonistas que estão envolvidos nos problemas. Reconhecemosque este é um processo comunicacional relativamente complexo,dispendioso, sem a certeza de se alcançarem resultados adequa-dos. Fundamenta-se num quadro estritamente delimitado de pré-disposições dos interlocutores para uma actividade comunicaci-onal não constrangedora, nem manipulativa, que frequentementenão é adoptado. Por outro lado, o próprio processo argumentativoé problemático, está sujeito ao erro, pode falhar. Esta particulari-dade significa que a viabilidade destes processos de comunicaçãosó é possível se eles forem periodicamente concretizados.

Se é certo que esta actividade comunicacional é trabalhosa,problemática, apresenta uma margem de erro, consideramos, con-tudo, que a sua implementação é essencial, já que possibilita op-timizar as iniciativas de comunicação relativas a fases posterio-res da campanha. São caracterizadas pela produção de conteúdosveiculados por meios de comunicação de massa que visam re-lembrar os consensos entretanto alcançados e suscitar condutascívicas adequadas.

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b) Mikaïl Bakhtine e a importância do dialogismo

Parâmetros

Conceptuais

1- Processocomunicacional

Bilateral.

2- Pressupostos Existência de quadros de valores e de experiências(mundos vividos) - dimensão contextual dos proces-sos de comunicação.

3- Meiosutilizados

Interpessoais (‘bellow the line’) ou mediatizados(‘above the line’).

4- Exercícioslinguísticos

Suportados por qualquer tipo de matéria expressiva(visual, audiovisual, gráfica, cinésica, acústica, etc.).Os exercícios linguísticos podem centrar-se no desti-natário enquanto entidade comunicacional, no temaou no contexto (dimensão intertextual).

5- Potencialida-des estratégicas

a)Os exercícios linguísticos apresentam um valorpragmático incontornável na gestão dos quadros devalores e de experiências vividas dos interlocutoresque sustentam a legitimidade e a viabilidade das cau-sas cívicas comunicadas.b) É útil nas fases relacionadas com a gestão depré-disposições relativas às campanhas de esclareci-mento e de aprendizagem.

Quadro no 2: Adaptação de alguns conceitos subjacentes ás teorias deMi-kaïl Bakhtinea contextos relativos à produção de campanhas publicitáriasde sensibilização e de desenvolvimento.

Antes de procedermos à apresentação das implicações paraa implementação de campanhas de sensibilização e de desenvol-vimento de alguns parâmetros conceptuais decorrentes das teo-rias de Mikaïl Bakhtine, gostaríamos de sublinhar que, relativa-mente a este autor, apenas estamos interessados nas suas consi-derações relativas à especificidade dialógica dos enunciados, aoseu valor contextual, que está associado a uma teoria da intertex-tualidade. Este ângulo de análise não esgota a riqueza concep-tual deste autor, concretamente ao nível de uma conceptualizaçãoalternativa dos processos de comunicação (de cariz discursivo,

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explicitamente pragmático) à que estava patente no formalismorusso da época. É igualmente decisivo para o enquadramento crí-tico do modelo estrutural-funcionalista das funções da linguagemde Roman Jakobson, fundamentado, por sua vez, no paradigmada Teoria Matemática da Informação de Shannon e Weaver14.

1- Processo comunicacional

Mikaïl Bakhtine concebe a comunicação como um processo ondeexiste bilateralidade. Este conceito deverá ser entendido por refe-rência ao protagonismo dos interlocutores no processo de comu-nicação que está relacionado com a adopção de comportamentosassociados a fenómenos de compreensão e de questionamento dosentido dos enunciados. Salientamos que, ao contrário do que severificava com os parâmetros relativos ao processo comunicaci-onal subjacentes ao agir comunicacacional ‘habermasiano’, estabilateralidade já não é mais estritamente simétrica, fundamen-tada numa absoluta paridade estatutária dos interlocutores, comtodas as implicações relativas ao valor ético-moral de relevân-cia do que é comunicado. Podem existir desequilíbrios exógenosao processo de comunicação que nele se encontram reflectidos,no sentido de se consagrarem ou, pelo contrário, se anularem;tais desequilíbrios são geridos comunicacionalmente pelos inter-locutores através de estratégias discursivas. Esta particularidadesignifica que a bilateralidade é sobretudo processual. Não se as-sume como um dadoa priori: não se encontra regulada por regraspragmáticas formais, prévias ao processo de comunicação; vai-seconstruindo na medida do possível, a partir das circunstâncias edos contextos relativos a cada processo de enunciação. Tal situa-ção conduz a que estes processos comunicacionais estejam prin-cipalmente adequados a fases das campanhas que são posteriores

14CAMILO, Eduardo J. M. –Sebenta da disciplina de publicidade I, p. 60-71.

TODOROV, Tzvetan -Mikaïl Bakhtine, le principe dialogique suivi deÉcrits du Crecle de Bakhtine. Paris Seuil, 1981.

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àquelas durante as quais se concretizou uma actividade comuni-cacional reflexiva com vista à emergência de consensos sobre arelevância pública das causas cívicas. Efectivamente, no âmbitodestes processos de comunicação já não se procura consagrar arelevância das causas cívicas, mas gerir consensos e transformarpré-disposições em condutas cívicas efectivas.

2- Pressupostos

Os sentidos dos enunciados transmitidos durante os processos decomunicação apresentam um valor contextual que é partilhado,que é comum, aos interlocutores. Mas o que se entende por ‘va-lor contextual’? Essencialmente, uma estrutura cultural, um qua-dro de experiências vividas caracteriza-se objectivamente por trêsdimensões: a) a relativa aos horizontes espaciais, referenciais einstitucionais comuns aos protagonistas do processo comunicaci-onal; b) a referente ao conhecimento partilhado, à compreensãodesses mesmos horizontes e, c), a que está relacionada com umaavaliação, também ela comum, sobre a importância a dar a essasperspectivas espaciais, referenciais e institucionais. Há, portanto,uma dimensão intersubjectiva omnipresente.

O dialogismo comunicacional não é mais do que uma gestãodos sentidos explícitos das mensagens (a sua dimensão linguís-tica) relativamente a quadros contextuais que estão implícitos aosprocessos de enunciação (a dimensão discursiva dos enunciados).Ora bem, estes quadros podem apresentar uma dupla dimensãoconforme a sua especificidade: estão subjacentes a um processocomunicacional específico, concreto ou, então, são quadros queapresentam um valor mais abrangente, no sentido de remeterempara outros processos de comunicação. É por isso que podere-mos considerar que os fenómenos dialógicos apresentam uma di-mensão intrínseca e extrínseca. No primeiro caso, os enunciadostraduzem as situações, sob a forma de circunstâncias e contex-tos, que estão subjacentes a processos comunicacionais especí-ficos. Por exemplo, no caso da implementação das campanhas

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de sensibilização e de desenvolvimento, as mensagens reflectemas posturas, as atitudes, os comportamentos precedentes e pro-cedentes (na medida em que o dialogismo não é apenas reactivo,mas também pode ser pró-activo, quando as mensagens antecipamcomportamentos e reacções comunicacionais) dos interlocutoresrelativamente a determinadas causas sociais (independentementeda sua relevância). No segundo caso, quando o dialogismo apre-senta uma dimensão extrínseca, os processos de comunicação sãocompostos por enunciados que podem ser concebidos como umaespécie de tomada de posição relativamente a situações, circuns-tâncias e contextos de enunciação relativos a outros processos decomunicação que não são parte integrante de uma campanha desolidariedade. Nesta perspectiva, os enunciados reflectem temáti-cas e interlocutores que, aparentemente, não apresentam relaçãocom os das causas sociais promovidas. Contudo, este dialogismoé estratégico e criterioso, na medida em que a remissão para es-ses enunciados se concretiza com o objectivo de melhor promoveressas causas. Por exemplo, pode explorar-se, através de uma cita-ção, um discurso de Martin Luther King para melhor sensibilizaros públicos para assuntos que integram uma campanha contra aviolência doméstica.

3- Meios utilizados

Ao contrário do que sucede com o agir comunicacional ‘haber-masiano’ que sustenta uma actividade argumentativa com o pro-pósito de averiguar a relevância de pretensões de actuação, estepressuposto já não se verifica mais. Em contrapartida, a dimensãoda bilateralidade, da necessidade dos enunciados reflectirem umatomada de posição relativamente à existência de um interlocutorconstitui-se como um fundamento essencial na teoria de MikaïlBakhtine. Porém, este reflexo pragmático não obriga a que os pro-cessos comunicacionais sejam de cariz interpessoal como pareceestar implícito na teoria do Agir Comunicacional de Jürgen Ha-bermas, podendo apresentar um cunho mediatizado. Neste caso,

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as mensagens reflectem enunciados anteriormente produzidos ouantecipam, e essa é uma dimensão central na teoria deste autorrusso, outros que ainda se encontram virtualmente por produzir.

Como nada impede que os fenómenos de dialogismo comuni-cacional possam integrar-se em processos suportados por meiosde comunicação de massa, então eles podem inserir-se naquelasiniciativas que os publicitários designam por ‘above the line’: es-tratégias de comunicação difundidas por televisão, imprensa, rá-dio eoutdoors.

No âmbito das campanhas de sensibilização e de desenvol-vimento, os fenómenos de dialogismo integrados em processosde comunicação suportados por meios de comunicação de massaapresentam uma tripla dimensão: por um lado, os enunciadossão caracterizados por mensagens que visam reproduzir, relem-brando, os conteúdos relativos aos consensos entretanto alcan-çados noutras fases da campanha publicitária caracterizadas porprocessos de comunicação interpessoal; por outro lado, tambémpodem conter mensagens que antecipem reacções discursivas quepodem acompanhar a concretização dos comportamentos subja-centes às causas sociais que se pretendem implementar; por fim,os mesmos enunciados podem igualmente comportar mensagenscaracterizadas por uma espécie de tomadas de posição relativas amensagens produzidas no âmbito de outros processos de comuni-cação cuja temática não tem relação directa com a que está sub-jacente à campanha de publicidade de solidariedade. No primeirocaso, o dialogismo visa gerir uma espécie degood will social;no segundo, está relacionado com estratégias que visam transfor-mar as pré-disposições em comportamentos sociais e, no terceirocaso, remete para procedimentos que tem por função gerir a noto-riedade, a reputação da causa social, estando, por isso, associadoa fenómenos de ‘agenda setting’ de cariz publicitário e índole cí-vica.

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4- Exercícios linguísticos

Se é certo que Mikaïl Bakhtine, mas igualmente Julia Kristeva15 eGérard Genette se interessou sobretudo pelo fenómeno do dialo-gismo (baptizado por Kristeva de ‘intertextual’ e por Genette de‘transtextual’) subjacente ao texto literário, nada obsta que estefenómeno também seja suportado por outras dimensões expres-sivas que não a de cariz verbal. Esta particularidade encontra-seclaramente especificada, no que concerne ao discurso publicitáriocomercial, em Raúl Rodriguez e Kiko Mora16, onde se demons-tra como os fenómenos dialógicos para além de verbais, tambémpodem ser visuais e audiovisuais. Ora bem, esta particularidade éimportante: se os processos comunicacionais de especificidade ar-gumentativa se fundamentavam em matérias expressivas verbais,decisivas no ‘esgrimir das razões’ e na emergência de consensosparticipados e participativos, já no que respeita aos processos bi-laterais e dialógicos, em que o importante é o reflexo nos enuncia-dos dos interlocutores e das circunstâncias e contextos que estive-ram subjacentes à sua produção, passam a ser essenciais outrasmatérias expressivas: visuais, audiovisuais, gráficas, cinésicas,acústicas, etc.. Esta é uma característica decisiva no âmbito daprodução de abordagens criativas e com potencial de impacto.

Pelo facto de o dialogismo se assumir como um conceito cen-tral nas teorias pragmáticas (ou sociolinguísticas) de Mikaïl Bakh-tine, torna-se importante entender de que forma as mensagens po-dem ser classificadas a partir da maneira como os destinadoresgerem estrategicamente esta tal dinâmica dialógica. Por exem-plo, o enunciado pode reflectir opções discursivas pautadas pelavalorização das temáticas a publicitar ou relativas ao estatuto dointerlocutor no processo de comunicação no respeitante às suasatitudes e comportamentos discursivos (reais ou virtuais). Nestecaso, as mensagens revelam, através de uma espécie de ‘tomada

15KRISTEVA, Julia -Semiótica, 4 a.Ed. Madrid, Ed. Madrid Espiral, 2001,Col. Ensaio (25), 2o Vol.

16RODRÍGUEZ, Raúl e MORA, Kiko -Frankenstein y el cirujano plástico.

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de posição’ por parte do locutor, a existência comunicacional dodestinatário.

A produção de exercícios linguísticos relativos a um tema con-jugados com outras práticas de linguagem que reflectem o inter-locutor, possibilita entender a especificidade das mensagens dealgumas campanhas publicitárias de sensibilização e de desenvol-vimento (o mesmo se verificando nas que apresentam um cunhocomercial). Por exemplo, o destinador, numa estratégia de idola-tria do destinatário, idealiza a causa social posicionando-a positi-vamente por referência aos parâmetros subjacentes aos seus qua-dros de experiência: a segurança pública, os valores do pacifismo,da ecologia, da democracia, da igualdade, da fraternidade, da so-lidariedade, etc.. Nesta estratégia dialógica, consideramos que elaé prometida e legitimada como se fosse uma tentação para o des-tinatário, através de um processo de sedução ou de conselho. Emcontrapartida, numa estratégia de desprezo ou de afrontamentodo destinatário, o destinador promove o tema a partir das dimen-sões negativas dos parâmetros pertencentes aos mesmos quadrosde experiência, posicionando-o como algo abjecto ou perigoso,através de um processo que se integra no âmbito da ameaça ou doaviso. “Os signos publicitários reflectem estas estratégias inter-subjectivas de desprezo ou de idolatração, de elevação ou de re-baixamento: não apenas as palavras ou as imagens, mas tambémas entoações, os gestos, os grafismos, os cromatismos, etc.”17.

Já referimos que os fenómenos de dialogismo podem apresen-tar um âmbito intrínseco ou extrínseco conforme os enunciadosreflectem práticas discursivas que pertencem a distintas fases domesmo processo comunicacional (dimensão intrínseca) ou reme-tem para exercícios linguísticos que são característicos de outrosprocessos de comunicação (dimensão extrínseca).

O dialogismo de âmbito intrínseco está adstrito ao processode comunicação das próprias campanhas publicitárias de sensibi-lização e de desenvolvimento, apresentando, por isso, uma espe-cificidade estritamente cívica. Assim sendo, as práticas linguís-

17CAMILO, Eduardo J. M. -Sebenta da disciplina de publicidade I., p. 85.

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ticas reflectem comportamentos discursivos por parte dos interlo-cutores relativamente à causa social que se pretende promover (otema). As mensagens não só indiciam atitudes e comportamentosdiscursivos passados (referentes a mensagens entretanto produzi-das noutras fases da campanha, inclusivamente aquelas que apre-sentam a tal dimensão argumentativa e um âmbito interpessoal),como se reportam a condutas discursivas virtuais (isto é, relati-vas a processos de comunicação que ainda estão por se realizar).Nesta perspectiva, os fenómenos dialógicos não só apresentamuma dimensão reactiva como também pró-activa.

Para além desta dimensão diacrónica, as dinâmicas dialógi-cas de cariz intrínseco também se distinguem a partir da formacomo os interlocutores se posicionam relativamente aos enuncia-dos com os quais estabelecem uma relação dialógica. Ora bem,este reflexo dialógico (intertextual, nas palavras de Kristeva) podeconcretizar-se de vários modos conforme o ‘grau de intensidade’do processo de reprodução/apropriação dos enunciados que sãoobjecto do processo dialógico. Torna-se, então, possível estabe-lecer ‘escalas de intensidade dialógica’ conforme os enunciados,que são objecto de toda esta actividade, se encontram mais oumenos explicitamente reproduzidos ou se assumem como merosquadros de referência.

No quadro no 2.1 sistematizamos as diferentes categorias dedialogismo/intertextualidade de âmbito intrínseco, procurando a-daptá-las aos contextos comunicacionais que são típicos das cam-panhas de publicidade e sensibilização.

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Dimensão diacrónica

Valor de

intensidade

dialógica

Reactiva Pró-activa

Activo Os enunciadoscaracterizam-se poruma ‘tomada deposição’ discursivarelativamente a men-sagens anteriores quese assumem como umquadro de referência.Essa tomada de posiçãopode ser conver-gente ou divergente(polémica).

Os enunciados também con-sistem numa tomada de po-sição discursiva, mas relativa-mente a mensagens decorren-tes de processos de comunicaçãoque apresentam um valor virtual,pois ainda não se concretizaram.A previsão discursiva de certasmensagens influencia a configu-ração dos enunciados enquantoquadro de referência.

Passivo Os enunciados reprodu-zem, numa perspectivaconvergente (imitação)ou divergente (citaçãoou paródia), as mensa-gens de enunciados an-teriores.

Os enunciados antecipam a pro-dução de comportamentos dis-cursivos estereotipados, quernuma perspectiva convergente(parametrização do discurso),quer divergente (paródia).

Observações Na perspectiva reactiva,o processo dialógicoremete para situaçõesinterlocutivas anteri-ores que se reportama distintas fases damesma campanha, porexemplo, as de carizinterpessoal e de cunhoargumentativo.A gestão dos valoresde intensidade dialó-gica (activos ou passi-vos) pode estar relacio-nada com a necessidadede produzir diferentesefeitos de sentido.

Na perspectiva pró-activa, o pro-cesso dialógico prepara, atra-vés de uma espécie de tomadade posição discursiva, práticasdiscursivas que são específicasde outras fases das campanhasde sensibilização e de desenvol-vimento, concretamente as quese assumem como o suporteda adopção de certos comporta-mentos cívicos.Numa perspectiva passiva de ca-riz convergente, os enunciadospodem assumir a forma de ‘ma-nuais de instruções’, estrutura-dos na perspectiva da ‘pergunta-resposta’.

Quadro 2.1- categorização dos fenómenos de dialogismo intrínseco

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Os fenómenos da convergência ou da divergência reportam-se à natureza das tomadas de posição dos interlocutores relativa-mente aos enunciados com os quais estabelecem relações dialó-gicas. Se estas tomadas de posição discursiva apresentarem umvalor positivo relativo ao facto de o interlocutor se rever, de tomaruma posição a favor relativamente às significações, mas tambémperante as circunstâncias e os contextos subjacentes à produçãodos enunciados com os quais estabelece relações dialógicas, en-tão essas relações apresentam um valor convergente. Caso con-trário, a sua especificidade é divergente originando configuraçõesinteressantes: desde a demarcação dialógica através da citação,aos fenómenos de paródia aos conteúdos e aos sujeitos que osenunciaram.

Como os processos de comunicação se inscrevem em fases es-pecíficas das campanhas de sensibilização e de desenvolvimentoque são posteriores àquelas que são suportadas por processos decomunicação interpessoal de cariz intercompreensivo e argumen-tativo e, ao mesmo tempo, prévias às de especificidade perfor-mativa, durante as quais se procura transformar pré-disposiçõesem comportamentos cívicos, a especificidade dos fenómenos di-alógicos é simultaneamente convergente e divergente. É necessá-rio não ignorar que estes processos de comunicação se inscrevemem momentos concretos das campanhas publicitárias nas quais seprocuram gerir apetências de actuação cívica decorrentes de con-sensos cognitivos e, ao mesmo tempo, transformá-las em com-portamentos consequentes. Assim sendo, os fenómenos dialógi-cos reflectem estes contextos: no âmbito da consolidação dos taisconsensos cognitivos, o dialogismo tende a ser de cariz reactivocom um valor activo ou passivo e uma especificidade necessari-amente convergente, pois é essencial que os públicos não esque-çam os conteúdos anteriormente transmitidos. Já no que respeita àtransformação das pré-disposições em comportamentos, as dinâ-micas dialógicas alteram-se estruturalmente: os enunciados sãoconstituídos por mensagens que traduzem comportamentos dis-cursivos que estão associados à concretização de uma determi-

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nada conduta cívica. Nesta medida, as significações das mensa-gens apresentam um cunho pró-activo, procurando desdramatizarreceios, sugerindo conselhos, solucionando dúvidas, fazendo ul-trapassar impasses e indecisões. A dinâmica dialógica dos enun-ciados apresenta, então, uma especificidade preferencialmente di-vergente, conduzindo a que sejam perpassados por abordagensbaseadas na polémica (por exemplo, através de uma espécie desimulacro de debate) e, até mesmo, pela encenação paródica dascausas cívicas publicitadas e/ou das próprias atitudes (de eventualmedo, preconceito, etc.) que os interlocutores ainda apresentamrelativamente a elas.

Para além deste dialogismo intrínseco, adstrito ao próprio pro-cesso comunicacional que sustenta a campanha de sensibilizaçãoe de desenvolvimento e que decorre de circunstâncias e de contex-tos concretos que lhe atribuem uma especificidade, há a salientara existência de outras práticas linguísticas que remetem para umadimensão mais abrangente. É precisamente nesta abrangência quese fundamenta o dialogismo extrínseco.

Para Mikaïl Bakhtine, os signos são sempre habitados pela‘voz do outro’; em conjugação com as significações consagradaslinguisticamente a partir da correlação gramatical entre signifi-cantes e significados, existem outras dimensões semânticas quesão decorrentes do seu valor de uso no âmbito dos mais variadosprocessos de comunicação perpassados por circunstâncias e porcontextos diversificados. Esta particularidade é importante, por-que significa que a utilização estratégica de determinados signos éimportante para produzir efeitos de sentido que podem contribuirpara a concretização dos objectivos cívicos subjacentes à produ-ção das campanhas publicitárias. Ilustramos o nosso raciocíniosobre este assunto, apresentando um exemplo: uma mensagempublicitária relativa a uma campanha publicitária de luta contra otabagismo pode basear o seuheadlinenuma paródia à peça ‘Ham-let’ de William Shakspeare. Assim a máxima “ser ou não ser eisa questão” é reproduzida e transformada na frase “fumar ou nãofumar nem se põe tal questão!”.

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À semelhança do que se verificava no dialogismo intrínseco,também se constatam processos de apropriação numa perspectivade simples reflexo ou de reprodução e estilização. No quadro 2.2encontram-se sistematizados estes fenómenos.

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Processos de influência ou de argumentação? 39

Dimensão diacrónica

Valor de

intensidade

dialógicaReactiva Pró-activa

Activo ‘Tomada de posição’discursiva relativamente amensagens sem qualquerrelação com a temáticadas causas cívicas sub-jacentes às campanhasde desenvolvimento e desensibilização.

(–)

Passivo Reprodução, numa pers-pectiva convergente (imi-tação) ou divergente (pa-ródia), de enunciados an-teriores sem qualquer re-lação com a temática dascausas cívicas subjacentesàs campanhas de desen-volvimento e de sensibili-zação.

(–)

Observações Na perspectiva reactiva, oprocesso dialógico remetepara situações interlocuti-vas que nada têm a vercom as temáticas que es-tão subjacentes às cam-panhas cívicas. Todavia,estas tomadas de posiçãodialógica podem produzirefeitos semânticos e prag-máticos relacionados coma consolidação da relevân-cia pública das causas cí-vicas que se pretendemimplementar.

Os processos dialógicos de di-mensão pró-activa, valores ac-tivo ou passivo, só fazem sen-tido numa perspectiva intrín-seca.Do ponto de vista extrínseco,o dialogismo só é importanteno âmbito da produção demensagens relativas a proces-sos de comunicação que jáse realizaram, fundamentadosnoutros quadros de valores ede experiências vividas dota-dos de uma dimensão legí-tima.

Quadro 2.2- categorização dos fenómenos de dialogismo extrínseco

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5- Potencialidades estratégicas

Nos exercícios linguísticos integrados nestes processos de comu-nicação que apresentam um fundamento bilateral/dialógico, osquadros de valores e de experiências vividas desempenham umpapel central, tal como acontecia, aliás, no âmbito dos processosde comunicação de cariz argumentativo. Para Jürgen Habermas,eles são o fundamento dos consensos alcançados ou dos sentidosinterpretados. Efectivamente, é porque existe um horizonte co-mum, pressuposto como não problemático no seu conjunto, queé possível que os interlocutores cheguem a acordo sobre situa-ções concretas (que remetem para diferentes dimensões da reali-dade: de cariz objectivo, social ou subjectivo). Nesta perspectiva“habermasiana”, os processos argumentativos surgem sempre queexistem projectos distintos de actuação nestas dimensões da rea-lidade. A existência dos processos argumentativos é, portanto,decisiva para integrar/incorporar a interpretação de um interlocu-tor sobre uma certa situação no campo interpretativo do outro,tendo por referência o horizonte de experiências e valores de am-bos18. Por sua vez, na perspectiva de Mikaïl Bakhtine, a situa-ção parece-nos ser um pouco distinta no que respeita ao estatutodestas realidades culturais pressupostas. Ao autor russo não in-teressa a sua função prática enquanto fundamento ético-moral deum projecto de actuação, mas como base de sustentação do su-cesso pragmático dos fenómenos dialógicos (uma espécie de fun-ção estritamente comunicacional). Efectivamente, é porque estasestruturas culturais são comuns aos interlocutores que os fenó-menos dialógicos são reconhecíveis, produzem efeitos de sentidoe, inclusivamente, apresentam implicações performativas. Ora éprecisamente nesta produção de efeitos que se fundamenta a utili-dade do pensamento deste autor para a implementação estratégicadas campanhas sociais. Elas passam a ser pautadas por uma ver-tente ritual, por uma dinâmica de evocação e de exploração de

18HABERMAS, Jürgen -Théorie de l’agir communicationnel, p.116 e ss.

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um património cultural e axiológico que contribui para relembrar,para inculcar e para banalizar certas propostas cívicas.

Complementarmente a esta funcionalidade estratégica de ins-titucionalização, de ritualização de consensos, estes processos decomunicação apresentam ainda mais uma: a da transformaçãode pré-disposições em comportamentos cívicos concretos. Nestafuncionalidade, se é certo que a dimensão dialógica e bilateraldos processos de comunicação permanece estruturalmente, agorajá não se procura mais persuadir os interlocutores sobre a rele-vância das causas cívicas, nem gerir situações de consenso, masconseguir suscitar condutas socialmente relevantes.

Para finalizar esta matéria: reconhecemos que a implementa-ção das campanhas de sensibilização e de desenvolvimento podeenvolver a concretização de outras fases suplementares nas quaisse verifica como que um regresso às abordagens interpessoais, àsactividadesbellow the line. Estão relacionadas com iniciativasde cariz promocional associadas a processos de demonstração ede esclarecimento. Salientamos, contudo, que a especificidadedestas iniciativas, integradas em paradigmas que se reportam àsteorias dotwo steps flowe dos fenómenos dogatekeeping19, jánão é mais de cariz intercompreensivo e dialógico, mas essencial-mente de cunho estratégico e unilateral. Efectivamente, nestas fa-ses já não está mais em questão a emergência de um assentimentoparticipado e participativo sobre a causa cívica (como acontecianas relacionadas com um agir comunicacional de cariz argumen-tativo), mas exclusivamente a sua tradução num comportamentoadequado. Este pressuposto é essencial porque vai produzir impli-cações na especificidade dos exercícios linguísticos. Perpassadaspor uma racionalidade privada, por um princípio de eficácia (ejá não de discussão pública), as práticas linguísticas, se bem quecontinuem a apresentar um cunho mais ou menos interpessoal, são

19Sobre este assunto, cf: LAZARSFELD, Paul Félix ; BERELSON, BernardB; MCPHEE, William N - “Procesos políticos: la misión de los mass-media”in: MORAGAS, M (ed.) –Sociologia de la comunicación de masas, Vol. III –Propaganda política y opinión publica, p. 40-65.

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destituídas de uma dimensão efectivamente argumentativa. Apre-sentam um substrato retórico, já que o que está em jogo é sim-plesmente a influência do interlocutor para implementar condutascuja relevância pública já foi prévia e mutuamente reconhecida.

3 Considerações finais

Nesta aula, procurámos formular algumas considerações sobre aespecificidade comunicacional subjacente às campanhas de sensi-bilização e de desenvolvimento, isto é, às campanhas de promo-ção de causas cívicas.

Os conteúdos apresentados são reveladores de uma tese sub-jacente: a publicidade de solidariedade, de promoção das causassociais, embora seja caracterizada por um discurso que visa con-vencer os interlocutores sobre a importância de se adoptar certoscomportamentos sociais, o seu cunho persuasivo não pode ser, deforma nenhuma, semelhante ao que está subjacente aos exercícioslinguísticos, às abordagens criativas, específicos da publicidadecomercial. Porque sensibilizar para uma condução segura é es-truturalmente distinto de publicitar um detergente, consideramosser um erro crasso transpor para os universos da promoção dascausas cívicas a mentalidade estratégica e retórica que se encon-tra subjacente ao universo da publicitação de bens e de serviçoscomerciais.

Se as causas cívicas apresentam dimensões estruturalmentedistintas das ‘causas comerciais’ que sustentam os objectivos dacomunicação publicitária, então as campanhas de sensibilização ede desenvolvimento terão de ser diferentes porque remeterão paraparadigmas de actividade comunicacional específicos. A naturezapública das causas cívicas, a sua dimensão não apenas abrangentemas também relevante, conduziu-nos à necessidade de nos repor-tarmos a teorias que valorizem a dimensão intercompreensiva eargumentativa dos procedimentos comunicacionais, procurandoverificar em que medida os conceitos subjacentes à teoria do AgirComunicacional de Jürgen Habermas podiam ser adaptados a esta

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matéria. Complementarmente, porque concebemos as campanhasde sensibilização e de desenvolvimento como processos de co-municação que actualizam intertextualmente estruturas culturaise axiológicas vigentes, decisivas para a legitimação das causas cí-vicas, o conceito de dialogismo de Mikaïl Bakhtine revestiu-se desuma importância.

Todas estas matérias são merecedoras de um aprofundamentoe de uma adequada aplicação prática em futuras sessões de formaa verificar a real viabilidade dos conceitos apresentados.

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