Rafael Hansen Quinsani cine e revoluçao

10
Anais Eletrônicos do II Encontro História, Imagem e Cultura Visual - 8 e 9 de agosto de 2013 Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Porto Alegre – Brasil GT História, Imagem e Cultura Visual - ANPUH-RS 1 A revolução em película: reflexões sobre a relação Cinema-História e a Revolução Mexicana Rafael Hansen Quinsani 1 Resumo: este trabalho tem por objetivo problematizar as implicações teóricas da relação Cinema-História destacando como os filmes interpretam a História e quais as consequências desse processo para a História como ciência. São utilizados como eixo desta reflexão oito filmes que abordaram um fato histórico marcante do século XX e que produziu impacto em todo mundo: a Revolução Mexicana. Os filmes estão inseridos em três quadros ideológico- temporais de realização: os Estados Unidos da América; a Europa, especialmente Itália e Espanha; e a União das Repúblicas Soviéticas. O primeiro Quadro ideológico-temporal de realização é intitulado “Destinos coletivos, movimentos de conjunto” e enfoca as películas produzidas na URSS. O segundo Quadro ideológico-temporal de realização é “Tudo o que é ideológico se molda no cinematógrafo” destacando as produções dos EUA. O terceiro Quadro ideológico-temporal de realização enfoca as produções da EUROPA e intitula-se “O Western encontra a Revolução: a História com Spaghetti e algumas Tortillas”. Nos primeiros tempos, tempos mágicos e religiosos, a ciência era ao mesmo tempo um elemento de emoção e um elemento de saber coletivo. Depois com o dualismo as coisas se separaram e nós temos de um lado a filosofia especulativa, a abstração pura, do outro, o elemento emocional puro. Devemos agora fazer um regresso, não ao estágio primitivo que era o religioso, mas em direção a uma síntese análoga do elemento emocional e do elemento intelectual. Penso que o cinema é capaz de fazer esta grande síntese, de dar ao elemento intelectual as suas raízes vitais, concretas e emocionais. (Serguei Eisenstein) Quando os irmãos Lumière projetaram as primeiras luzes oriundas do seu cinematógrafo, no final do século XIX, mais do que desenvolver uma nova forma de entretenimento, eles lançaram os alicerces para aquilo que viria a ser uma nova arte, uma nova indústria e uma nova forma de realizar História. A existência humana parece perseguir uma exigência inconsciente de “sonhar com os olhos abertos”, feito que o cinema materializou de forma ímpar. Se a artisticidade do cinema está nos limites impostos pelo homem, centrada na atividade do seu próprio inconsciente, este não é uma entidade abstrata, mas um produto contingente da realidade. Desse modo, a força do cinema está na sua aptidão de determinar a mais aguçada capacidade visual, a ponto de ser capaz de criar uma civilização ótica. 1 UFRGS. Doutorando em História. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]

description

,

Transcript of Rafael Hansen Quinsani cine e revoluçao

Page 1: Rafael Hansen Quinsani cine e revoluçao

Anais Eletrônicos do II Encontro História, Imagem e Cultura Visual - 8 e 9 de agosto de 2013 Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Porto Alegre – Brasil

GT História, Imagem e Cultura Visual - ANPUH-RS

1

A revolução em película: reflexões sobre a relação Cinema-História e a Revolução Mexicana

Rafael Hansen Quinsani1

Resumo: este trabalho tem por objetivo problematizar as implicações teóricas da relação

Cinema-História destacando como os filmes interpretam a História e quais as consequências

desse processo para a História como ciência. São utilizados como eixo desta reflexão oito

filmes que abordaram um fato histórico marcante do século XX e que produziu impacto em

todo mundo: a Revolução Mexicana. Os filmes estão inseridos em três quadros ideológico-

temporais de realização: os Estados Unidos da América; a Europa, especialmente Itália e

Espanha; e a União das Repúblicas Soviéticas. O primeiro Quadro ideológico-temporal de

realização é intitulado “Destinos coletivos, movimentos de conjunto” e enfoca as películas

produzidas na URSS. O segundo Quadro ideológico-temporal de realização é “Tudo o que é

ideológico se molda no cinematógrafo” destacando as produções dos EUA. O terceiro Quadro

ideológico-temporal de realização enfoca as produções da EUROPA e intitula-se “O Western

encontra a Revolução: a História com Spaghetti e algumas Tortillas”.

Nos primeiros tempos, tempos mágicos e religiosos, a ciência era ao mesmo

tempo um elemento de emoção e um elemento de saber coletivo. Depois

com o dualismo as coisas se separaram e nós temos de um lado a filosofia

especulativa, a abstração pura, do outro, o elemento emocional puro.

Devemos agora fazer um regresso, não ao estágio primitivo que era o

religioso, mas em direção a uma síntese análoga do elemento emocional e do

elemento intelectual. Penso que o cinema é capaz de fazer esta grande

síntese, de dar ao elemento intelectual as suas raízes vitais, concretas e

emocionais.

(Serguei Eisenstein)

Quando os irmãos Lumière projetaram as primeiras luzes oriundas do seu

cinematógrafo, no final do século XIX, mais do que desenvolver uma nova forma de

entretenimento, eles lançaram os alicerces para aquilo que viria a ser uma nova arte, uma nova

indústria e uma nova forma de realizar História. A existência humana parece perseguir uma

exigência inconsciente de “sonhar com os olhos abertos”, feito que o cinema materializou de

forma ímpar. Se a artisticidade do cinema está nos limites impostos pelo homem, centrada na

atividade do seu próprio inconsciente, este não é uma entidade abstrata, mas um produto

contingente da realidade. Desse modo, a força do cinema está na sua aptidão de determinar a

mais aguçada capacidade visual, a ponto de ser capaz de criar uma civilização ótica.

1 UFRGS. Doutorando em História. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]

Page 2: Rafael Hansen Quinsani cine e revoluçao

Anais Eletrônicos do II Encontro História, Imagem e Cultura Visual - 8 e 9 de agosto de 2013 Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Porto Alegre – Brasil

GT História, Imagem e Cultura Visual - ANPUH-RS

2

O cinematógrafo transformou o século XX num gigantesco cenário e laboratório de

experiências para a elaboração de uma linguagem cinematográfica, de uma forma de

expressão histórica. Desse modo, esta pesquisa tem por objetivo problematizar as implicações

teóricas da relação Cinema-História destacando como os filmes interpretam a História e quais

as conseqüências desse processo para a História como ciência. Trata-se de pensar como o

aporte de novas tecnologias constitui uma forma narrativa para a História apresentada e, se a

divulgação da História por imagens filmográficas permite perceber a composição de um novo

paradigma centrado na Razão Poética, que possibilite a reavaliação do próprio paradigma

científico da História.

São utilizados como eixo desta reflexão oito filmes que abordaram um fato histórico

marcante do século XX e que produziu impacto em todo mundo: a Revolução Mexicana. Os

filmes estão inseridos em três quadros ideológico-temporais de realização: os Estados Unidos

da América; a Europa, especialmente Itália e Espanha; e a União das Repúblicas Socialistas

Soviéticas.

A escolha pela Revolução Mexicana se justifica pelo fato dela ser a primeira

Revolução na América Latina no século XX. Ela ocorreu num contexto onde o México, por

um lado, com suas características econômicas e políticas se assemelham com o restante da

América Latina; e, por outro lado, diferencia-se pelo processo como ocorreu seu

desenvolvimento, onde a burguesia rompeu seus laços com a oligarquia fundiária, e o exército

não serviu de braço armado para ela. Ao longo do tempo, a fundamentação dos códigos de

identidade e dos valores culturais de um povo, ou de um Estado, é marcada por fatos humanos

que ganham destaque a partir da construção objetivada por determinados fins. Os conflitos e

guerras por darem destaque a uma parte de determinados setores da população ou da nação

envolvidos nos eventos, ganham relevância na fundamentação dos “mitos fundadores” dos

Estados Nação. Esta construção operada com a memória histórica coloca-se em constante

atualização conforme o presente vivido, a favor da legitimação de categorias sociais que

dominam o processo produtivo econômico, cultural e político (ROJAS, 2003, p. 19). No

México esta operação historiográfica vem sendo realizada a partir do início do século XX,

sempre norteado por seus dois baluartes: a Independência e a Revolução Mexicana iniciada

em 1910. O primeiro pela sua afirmação como Nação, caracterizado por uma independência

política, mas não econômica e industrial. O segundo pelo seu referendo a soberania e

modernização dos meios produtivos. O destaque a estes fatores interpretativos produz uma

homogeneização da Revolução, ignorando o caráter local das diversas revoltas e movimentos,

Page 3: Rafael Hansen Quinsani cine e revoluçao

Anais Eletrônicos do II Encontro História, Imagem e Cultura Visual - 8 e 9 de agosto de 2013 Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Porto Alegre – Brasil

GT História, Imagem e Cultura Visual - ANPUH-RS

3

bem como seu maior fator impulsionador: a questão agrária. Esta tendência de harmonização

é oriunda de uma influência dos EUA, no que tange seus elementos civilizatórios, negando

seu caráter indígena (ROJAS, 2003, p. 25), elemento de destaque na formação da cultura

Mexicana. Esta influência dos EUA marca uma nova fase na submissão econômica da

América Latina observada a partir do século XX. Com o crescimento evidenciado no século

XIX de uma economia-mundo, e a crescente disputa das potências européias pelas colônias

africanas, a América Latina passa a exercer um papel de destaque no fornecimento de

matérias primas e produtos agrícolas em escala monopolista. Desse modo, a Revolução

Mexicana atraiu olhares de todo mundo, tornando-se um dos eventos mais retratados

cinematograficamente ao longo do século XX e é no olhar do exterior que a seleção de filmes

para a composição dos quadros ideológicos se baseou.

O primeiro Quadro ideológico-temporal de realização é intitulado “Destinos coletivos,

movimentos de conjunto” e enfoca as películas produzidas na URSS. Serão analisados dois

filmes: Que viva México! de Serguei Eisenstein, realizado em 1932 e México em chamas

(Krasnye kolokola, film pervyy - Meksika v ogne) de Sergey Bondarchuk, 1982.

O segundo Quadro ideológico-temporal de realização é “Tudo o que é ideológico se

molda no cinematógrafo” destacando as produções dos EUA. Os filmes são: Viva Zapata!

realizado em 1952 por Elia Kazan; Pancho Villa (Villa Rides) de Buzz Kulik, 1968; E

estrelando Pancho Villa (And Starring Pancho Villa as Himself) realizado em 2003 por Bruce

Beresford.

O terceiro Quadro ideológico-temporal de realização enfoca as produções da

EUROPA e intitula-se “O Western encontra a Revolução: a História com Spaghetti e

algumas Tortillas”2. Compõe este quadro os filmes Uma bala para o general (Quien Sabe?)

2 O Spaghetti Western. Na década de 1960, o impacto e o fascínio pelo Western não são apagados na Europa.

Num processo de circulação cultural ele é reinventado despontando como um dos gêneros de maior sucesso de

público. Filmados externamente na região da Almeria da Espanha (a grande maioria) e internamente na

Cinnecittá em Roma, este gênero segue a tendência do estúdio de produzir seriados (os épicos sandália e espada,

os filmes de horror e as sátiras de James Bond são alguns exemplos de destaque). Sua influência também se

encontra no Neo-realismo, seja na experiência profissional ou na herança estética. A influência do Neo-realismo

se estende pelo mundo, chegando ao Brasil, onde surge o Cinema Novo e ganha destaque a temática do cangaço.

Com Glauber Rocha verificamos uma ruptura estética e temática, ao abordar o cangaceiro como o indivíduo

passível de protagonizar a Revolução pela sua experiência rebelde. Também do oriente, principalmente de Akira

Kurosawa, compõem-se o arcabouço estético. A abordagem desvelada pelo Western do Oeste, moldou uma

imagem atrativa aos europeus, seja pela imigração, pelo sonho de acumulação de dinheiro ou por uma utopia

agrária de fazendeiros livres, que já se encontrava propagada desde o século XIX, com a literatura de Fenimore

Cooper e Karl May. A abordagem européia do oeste destaca o contexto fronteiriço, enfocando o México e a

Revolução Mexicana. Dentro do Western Spaghetti esses filmes ficaram conhecidos como Zapata Western

Nesse contexto olhava-se para o Terceiro Mundo, devido aos inúmeros movimentos revolucionários que se

construíam naqueles anos. No contexto europeu, marcado por uma americanização do âmbito cultural, pela

urbanização e pelo fim do campesinato, forjava-se um estilo de filme que evidenciava e refletia esses elementos.

Page 4: Rafael Hansen Quinsani cine e revoluçao

Anais Eletrônicos do II Encontro História, Imagem e Cultura Visual - 8 e 9 de agosto de 2013 Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Porto Alegre – Brasil

GT História, Imagem e Cultura Visual - ANPUH-RS

4

de Damiano Damiani, 1966; Tepepa de Giulio Petroni, 1968; e Compañeros! realizado em

1970 por Sergio Corbucci.

A análise destes filmes, realizados em diferentes quadros ideológico-temporais

permite comparar as diversas visões dentro do mesmo quadro e entre os três quadros. As

películas apresentam os principais personagens da Revolução (Pancho Villa, Emiliano Zapata,

Francisco Madero, Victoriano Huerta, Porfírio Diaz) representados na história narrada ou por

referenciais e paralelos com outros personagens inventados. Estes cruzamentos permitem

evidenciar a organização dos fatos retratados, os motivos desta organização e sua

diferenciação e constituição estética. Desse modo, poderemos refletir sobre como estas

películas operam, constroem e apresentam uma visão histórica.

Esta pesquisa tem como objetivo geral versar sobre as possibilidades de representação

da História que a relação Cinema-História apresenta, enfocando até que ponto a narrativa

cinematográfica pode recuperar e representar com precisão o conteúdo do passado através de

sua linguagem estética. Os demais objetivos compõem-se na realização de uma síntese que

estabeleça uma crítica histórico-orgânica sobre alguns autores que refletiram sobre as

implicações teóricas da produção do conhecimento histórico. Serão aplicadas estas reflexões

sobre a história apresentada por imagens filmográficas destacando aproximações e

distanciamentos. Buscar-se-á identificar como a história apresentada por imagens

filmográficas pode constituir um novo paradigma ancorado na Razão Poética, discutindo de

que modo o uso do cinema como fonte histórica pode ser refletido e quais suas influências no

trabalho do historiador.

A ampla produção de obras históricas em diversas esferas da sociedade é um

fenômeno crescente nas últimas décadas. O cinema é um dos protagonistas dessas visões

históricas empreendidas por diversos filmes. Contudo, dentro do âmbito científico e mesmo

fora dele, referendou-se que escrever a História é uma tarefa atribuída aos historiadores. Ao

refletir sobre a constituição de seu paradigma científico, sobre a constituição do saber

histórico, os métodos de pesquisa encabeçam o topo destas reflexões. Dedicar-se as formas e

funções do saber histórico parece um desvio de teoria, levando a evasão o caráter científico do

trabalho do historiador (RÜSEN, 2007, p. 9-16). As regras da escrita historiográfica, a

Sua abertura estética, com movimentos de câmera ousados e uma intensa criatividade, somaram-se à construção

de uma imagem diferente daquela dos Westerns estadunidenses. Um pistoleiro que agora é atormentado,

marcado pela solidão e pelo individualismo, cuja sujeira e a barba por fazer o descaracterizam da imagem de

bom-moço. Suas feições são marcadas pela dureza do dia-a-dia, pelo seu olhar petrificado. Um gênero que

influenciará o próprio cinema estadunidense de Sam Peckimpah (Meu ódio será sua herança (The Wild Bunch),

Pat Garret e Billy the Kid) a Quentin Tarantino (Cães de Aluguel (Reservoir Dogs) e Kill Bill) e que dentro de

um processo de circulação cultural resgatou os mitos de uma fronteira imaginária a oeste.

Page 5: Rafael Hansen Quinsani cine e revoluçao

Anais Eletrônicos do II Encontro História, Imagem e Cultura Visual - 8 e 9 de agosto de 2013 Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Porto Alegre – Brasil

GT História, Imagem e Cultura Visual - ANPUH-RS

5

“poética normativa” do trabalho historiográfico estavam à margem, ou mesmo fora do olhar

do profissional de História. Para muitos profissionais, escrever a História é um processo

realizado com naturalidade, onde a competência literária não é discutida. A narrativa

produzida pelos historiadores é encarada como uma conseqüência automática das regras da

pesquisa histórica. Entretanto, a História precisa ser escrita de uma maneira, e como

demonstra Jörn Rüsen, este processo faz parte da constituição da Matriz Disciplinar da

História (RÜSEN, 2001, p. 26-38).

Nas décadas recentes, questões e debates levantados no campo da teoria literária

obrigaram historiadores a refletir e questionar diversos elementos da escrita e da constituição

da narrativa histórica: a articulação da garantia discursiva da validade de sua interpretação

com a recepção de seus destinatários e o interesse das possibilidades estéticas da narrativa são

alguns exemplos. Esta análise empreendida pela teoria literária insere a ficcionalidade no

próprio fundamento da História, ela não é mais “o outro”, seu oposto binário da facticidade.

Numa outra posição extremada a facticidade conferiu ao contexto construído pela

interpretação histórica realizada a partir dos fatos, sustentados pelas fontes, uma facticidade

semelhante aos próprios fatos. Isto ocorreu devido ao forte empirismo embasado no prestígio

das ciências naturais oriundo do século XIX.

Os fundadores da História na Antiguidade, Heródoto e Tucídides, não deixaram

indicação nas suas obras sobre qual a forma adequada de uma narração histórica. Esta estava

atrelada à eloqüência judiciária. A reabilitação da herança greco-romana empreendida a partir

do século XIV foi escolha entre outras possíveis. As diferentes visões sobre o caráter da

narrativa demonstram que a consolidação do paradigma científico não se fez de modo rápido

e consensual (CEZAR, 2004, p. 11-34). W. Humboldt é considerado por muitos um dos

fundadores da História científica atribuindo ao trabalho do historiador “expor aquilo que

aconteceu”. As faculdades imaginativas devem estar subordinadas a experiência e a

investigação da realidade. Por outro lado, G. Droysen busca responder por que a história é

necessária e quais as implicações quando se pensa historicamente (CALDAS, 2004). Este

recuo ao século XIX, demonstra como a propagada crítica interna e a tomada de consciência

atribuída ao (Pós)Modernismo (MULSLOW, 2009, p. 9-29), não era uma inquietação nova,

nem somente oriunda das áreas exteriores da disciplina histórica.

No bojo destas inquietações e questionamentos, apontou-se a possibilidade de

compreensão dos significados de um texto desconsiderando sua realidade externa. Noções

como verdade, objetividade e realidade foram postas em dúvida, bem como o caráter

Page 6: Rafael Hansen Quinsani cine e revoluçao

Anais Eletrônicos do II Encontro História, Imagem e Cultura Visual - 8 e 9 de agosto de 2013 Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Porto Alegre – Brasil

GT História, Imagem e Cultura Visual - ANPUH-RS

6

científico da disciplina histórica. No prolongamento (e como resposta) a estas questões,

Rüsen, ao investigar a pretensão de racionalidade que a ciência da História possui com relação

ao seu modo específico de pensar historicamente busca analisar como se constitui o

pensamento sobre a História que se apresenta como científica. Para o autor uma reflexão

histórica sobre a História permite que se obtenha um conhecimento histórico que situe alguém

no tempo. Teoria, para o autor, corresponde a análise de um conteúdo em busca de

determinações racionais manifestas. O campo da Teoria da História produz um pensamento

histórico que expande sua capacidade de fundamentar-se e criticar-se. Ela vai além da práxis

dos historiadores, uma vez que a coloca em evidência como objeto de conhecimento.

Ultrapassando o campo da Teoria da História uma Meta-Teoria realizaria o pensamento sobre

o pensamento histórico. Ela seria uma Teoria da História externa à práxis da pesquisa

investigando a ciência da história como fator da própria História. O autor busca se diferenciar

das análises que utilizam à teoria como um simples instrumento de trabalho com as fontes.

Constitui um requisito básico para qualquer ciência que os cientistas prestem contas a si

mesmo e aos demais sobre seu modo de pensar. Nesta prestação de contas, a principal tarefa

seria a inserção das reflexões metateóricas na ciência da História, não bastando apenas uma

simples classificação dos problemas, mas sim, a análise dos princípios que constituem o

pensamento histórico. Ao sistematizar a função da teoria da história, Rüsen destaca a razão

como força motora do pensamento histórico na História científica. Assim, é racional todo

aquele pensamento que exprime uma forma de argumentação.

A Matriz Disciplinar da História permite que se identifique e demonstre a

interdependência dos fatores determinantes do conhecimento histórico que delimitam o

campo da pesquisa. O primeiro destes fatores são os interesses que os homens possuem de

orientar-se no fluxo do tempo e assenhorar-se do passado. Estas carências de orientação da

prática humana da vida no tempo são o ponto de partida do pensamento histórico antes da sua

constituição como ciência. O segundo fator são as idéias, pontos de vistas supra-ordenados

que articulam estas carências com o interesse de conhecimento do passado. O terceiro fator

constitui-se nos métodos, que ditam as regras da pesquisa empírica. Estes métodos

influenciam o modo pelo qual as idéias são concebidas. O quarto fator são as formas de

apresentação, ponto de desembarque dos processos da pesquisa do conhecimento histórico

regulados metodicamente. Por fim, no quinto fator, as funções compõem a orientação

existencial. Estes cincos fatores aparecem em todo pensamento histórico e encontram-se

articulados no interior da matriz disciplinar da ciência da história (RÜSEN, 2001, p. 26-38).

Page 7: Rafael Hansen Quinsani cine e revoluçao

Anais Eletrônicos do II Encontro História, Imagem e Cultura Visual - 8 e 9 de agosto de 2013 Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Porto Alegre – Brasil

GT História, Imagem e Cultura Visual - ANPUH-RS

7

Ilustração 1 Extraído de RÜSEN, Jörn. 2001, p. 164.

A produção histórica não se limita somente àquela produzida no âmbito científico. A

História designa operações elementares e gerais da consciência histórica humana. Estas

operações embasam os modos de pensar da história como ciência, bem como orientam os

interesses e carências dos homens, sua ação e percepção dos efeitos da ação do tempo

(RÜSEN, 2001. p. 26-38 e 161-65). Desta matriz de carências e operações, o cinema também

extrai seu embasamento para a construção de suas narrativas, mas as apresenta de forma

diferenciada e utiliza outros métodos além daqueles empreendidos pelos historiadores.

A produção de um filme também tem início nos dois fatores que delimitam o

conhecimento histórico científico (Interesses e Idéias). Pesquisa, coleta de dados, entrevistas,

cotejo de fontes são realizados, com métodos diferentes ou semelhantes aos dos historiadores.

A principal diferença está na forma de representação e sua estratégica estética. Ao projetar

imagens em movimento de um fato histórico reconstituído, de personagens, de suas emoções

e sentimentos, o cinema ultrapassa o grau de subjetividade aceito no meio científico. Recriar,

interpretar e emocionar são fatores que estão correlacionados nas formas de apresentação

cinematográfica.

Tal como na escrita da história, o cinema agrega os elementos subjetivos e

Page 8: Rafael Hansen Quinsani cine e revoluçao

Anais Eletrônicos do II Encontro História, Imagem e Cultura Visual - 8 e 9 de agosto de 2013 Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Porto Alegre – Brasil

GT História, Imagem e Cultura Visual - ANPUH-RS

8

emocionais, mas muitas vezes o que é visto na tela é tomado como real, como verdadeiro. O

grande poder do cinema está na força do seu efeito de real, na sua representação do real. O

fazer científico da História está calcado em uma idéia de racionalidade e, principalmente, de

determinados métodos. Entretanto, a história não se limita somente à ciência da história, ela

também designa operações elementares e gerais da consciência histórica humana. Nestas

operações se baseiam os modos de pensar a história como ciência. Portanto, nesse sentido,

pensar a ficção histórica produzida pelo cinema permite ao historiador refletir, a partir de um

âmbito teórico, as finalidades da pesquisa empírica, além de examinar sua própria pesquisa e

as teorias que esta pesquisa utiliza para chegar ao seu objetivo.

Cinema-História pensado como conceito articulado, abre um novo campo

metodológico. Qual documento se impôs de tal maneira a ter seu nome associado à história?

Este conceito caracteriza-se por construir uma problemática com objeto e uma epistemologia

específica. Segundo Jorge Nóvoa, esta relação corresponde à articulação de uma Razão

Poética que leva em conta o valor epistemológico da imaginação. Insere-se aqui a questão de

como o racionalismo cartesiano pode dar conta do sentimento e da emoção na produção de

um conhecimento. Pesquisas recentes realizadas pela neurobiologia apontam que a redução

das emoções pode constituir uma fonte de comportamento irracional. O “Erro de Descartes”

consiste em separar corpo e mente, vendo o ato de pensar como uma atividade separada do

corpo (DAMÁSIO, 2009, p. 279). A constituição e desenvolvimento da linguagem

cinematográfica desenvolveu imagens com poder de substituir a realidade que se exibe diante

de nós. Pensar no novo paradigma da Razão Poética permite estabelecer uma alavanca para a

reconstrução do paradigma científico da História. Um filme narra, explica e apreende

acontecimentos individuais, coletivos, sociais, psicológicos e históricos. Seu objetivo é

entreter, mas na sua constituição faz uso de argumentos racionais e todos os ingredientes da

vida, das carências de orientação. Quando procura representar, traduzir e interpretar a

complexidade do real, o cinema trai, mente e altera. Mas os documentos falsos ou

enganadores têm utilidade, uma vez que eles podem ensinar sobre o objeto de sua mentira, ou

falsificação, e até mesmo o porquê, de suas intenções neste procedimento. O conteúdo de um

documento ultrapassa a intenção de quem o registrou. Como lembrou Koselleck, “o controle

das fontes assegura a exclusão daquilo que não deve ser dito. Mas esse mesmo controle não

prescreve aquilo que pode ser dito” (KOSELLECK, 2006, p. 141). Assim, a escrita

cinematográfica possibilita uma linguagem capaz de, na sua exposição, fundir dialeticamente

a multiplicidade dos tempos históricos, auxiliando os historiadores a ampliar sua capacidade

Page 9: Rafael Hansen Quinsani cine e revoluçao

Anais Eletrônicos do II Encontro História, Imagem e Cultura Visual - 8 e 9 de agosto de 2013 Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Porto Alegre – Brasil

GT História, Imagem e Cultura Visual - ANPUH-RS

9

de produzir conhecimento e potencializar sua transmissibilidade (NÓVOA, 2009, p. 159-190).

Desse modo, o cinema ensina, explica, documenta, constrói uma memória, é agente e

produtor de um discurso sobre a história. Trata-se de uma outra história diferente daquela

escrita nos livros, construída com métodos diferentes e inscrita em outra matriz disciplinar.

Referências bibliográficas

CALDAS, Pedro Spinola Pereira. Que significa pensar historicamente: uma interpretação

da teoria da história de Johann Gustav Droysen. 213 f. Rio de Janeiro PUC-RJ, 2004. Tese

(Doutorado em História), Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura, PUC-

RJ, 2004.

CEZAR, Temístocles. Narrativa, cor local e ciência: notas para um debate sobre o

conhecimento histórico no século XIX. História Unisinos, v 8, n 10, p. 11-34, 2004.

DAMÁSIO, Antonio. O erro de Descartes: emoção, razão e cérebro humano. São Paulo:

Companhia das Letras, 2009.

EISENSTEIN, Serguei. A forma do filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990.

FERRO, Marc. Cinema e História. São Paulo: Paz e Terra, 1992.

KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos.

Rio de Janeiro: Contraponto, 2006.

MULSLOW, Alun. Desconstruindo a História. Petrópolis: Vozes, 2009.

NÓVOA, Jorge; FRESSATO, Soleni Biscouto; FEIGELSON, Kristian. (orgs.).

Cinematógrafo: um olhar sobre a História. Salvador: EDUFBA/UNESP, 2009.

NÓVOA, Jorge. Jorge; BARROS, José D’Assunção. (orgs) Cinema-História: teoria e

representações sociais no cinema. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008.

QUINSANI, Rafael Hansen; GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos. A Revolução Mexicana

e o Western Spaghetti: as disputas e conflitos na construção de uma identidade cultural e

política. In: GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos; PADRÓS, Enrique Serra (orgs.).

Conflitos Periféricos no século XX. Cinema e História. Porto Alegre: Armazém Digital,

2008, p. 227-251.

QUINSANI, Rafael Hansen. A Revolução em película: uma reflexão sobre a relação

Cinema-História e a Guerra Civil Espanhola. 221 f. Porto Alegre, UFRGS, 2010, Dissertação

(Mestrado em História) - Programa de Pós-Graduação em História, UFRGS, Porto Alegre,

2010.

ROJAS, Carlos Antônio Aguirre. De memórias, olvidos e contramemorias: La nueva disputa

por la historia em México. Anos 90, Porto Alegre, n. 18, p. 17-42, 2003.

RÜSEN, Jörn. História Viva. Teoria da História III: formas e funções do conhecimento

histórico. Brasília: UNB, 2007.

______. Narratividade e Objetividade nas Ciências históricas. Textos de história, v.4, n 1,

1996.

______. Razão Histórica. Teoria da História I: os fundamentos da ciência histórica. Brasília:

UNB, 2001.

______. Reconstrução do passado. Teoria da História II: os princípios da pesquisa histórica.

Brasília: UNB, 2007.

Page 10: Rafael Hansen Quinsani cine e revoluçao

Anais Eletrônicos do II Encontro História, Imagem e Cultura Visual - 8 e 9 de agosto de 2013 Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Porto Alegre – Brasil

GT História, Imagem e Cultura Visual - ANPUH-RS

10

WASSERMAN, Cláudia. A revolução mexicana (1910-1940): um caso de hegemonia

burguesa na América Latina.1990. 245 f. Dissertação (Mestrado em história) – Instituto de

Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre,

1990.