Resenha julgar nos Estados Unidos e na França - Roberto dos Santos da Silva

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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA PROF. ARTHUR TRINDADE MARANHÃO COSTA DISCIPLINA VIOLÊNCIA E CONFLITUALIDADES JUSTIÇA CRIMINAL E CULTURA Por Roberto dos Santos da Silva GARAPON, A. e PAPAPOULOS, I. Julgar nos Estados Unidos e na França: Cultura Jurídica Francesa e Commom Law em uma perspectiva comparada. Rio de janeiro: Lumen Juris Editora, 2008. p.1-169. Em Julgar nos Estados Unidos e na França Antoine Garapon e Ioannis Papadopoulos se propõem a estudar a cultura jurídica dessas duas nações que fundamentam seu Direito em tradições diferentes, tidas como opostas, a saber, respectivamente o commom law e o que, entre outros nomes, os autores vão também chamar de civil law. Panorama da obra No capítulo I os autores iniciam com provocações que ao fim pretendem ter desconstruído, em suma simplificações que reduzem a commom law ao avanço da mercantilização globalizante, estando a primeira dissociada da preocupação da preservação de um espaço público. Seu objeto, o sistema de justiça é tratado competentemente como um fato social total, chamando-o mesmo de fenômeno total, ou seja, exibem-no como elemento que se impregna e interage com toas as dimensões culturais que marcam as sociedades em tela. No capítulo II ao examinarem a commom law tratam de sua raiz estar na concepção da anterioridade do direito ante o Governo, abordam a Rule of Law, a singularidade cultural que dificulta sua tradução como ocorre também com due process of law. Mostram como a commom law assenta-se indissociavelmente na história inglesa, comparam o processo de liberação do feudalismo na Inglaterra e França para argumentarem como o caminho trilhado por cada uma levou a uma constituição diferente do Estado de Direito. Descrevem a configuração de justiça estadunidense que

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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA

PROF. ARTHUR TRINDADE MARANHÃO COSTA

DISCIPLINA VIOLÊNCIA E CONFLITUALIDADES

JUSTIÇA CRIMINAL E CULTURA

Por Roberto dos Santos da Silva

GARAPON, A. e PAPAPOULOS, I. Julgar nos Estados Unidos e na França: Cultura

Jurídica Francesa e Commom Law em uma perspectiva comparada. Rio de janeiro:

Lumen Juris Editora, 2008. p.1-169.

Em Julgar nos Estados Unidos e na França Antoine Garapon e Ioannis Papadopoulos

se propõem a estudar a cultura jurídica dessas duas nações que fundamentam seu

Direito em tradições diferentes, tidas como opostas, a saber, respectivamente o commom

law e o que, entre outros nomes, os autores vão também chamar de civil law.

Panorama da obra

No capítulo I os autores iniciam com provocações que ao fim pretendem ter

desconstruído, em suma simplificações que reduzem a commom law ao avanço da

mercantilização globalizante, estando a primeira dissociada da preocupação da

preservação de um espaço público. Seu objeto, o sistema de justiça é tratado

competentemente como um fato social total, chamando-o mesmo de fenômeno total, ou

seja, exibem-no como elemento que se impregna e interage com toas as dimensões

culturais que marcam as sociedades em tela.

No capítulo II ao examinarem a commom law tratam de sua raiz estar na concepção da

anterioridade do direito ante o Governo, abordam a Rule of Law, a singularidade

cultural que dificulta sua tradução como ocorre também com due process of law.

Mostram como a commom law assenta-se indissociavelmente na história inglesa,

comparam o processo de liberação do feudalismo na Inglaterra e França para

argumentarem como o caminho trilhado por cada uma levou a uma constituição

diferente do Estado de Direito. Descrevem a configuração de justiça estadunidense que

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designam como uma síntese que além de herdar a concepção judiciária bretã vai integrar

incorporar novidades como i) a sua Constituição, que vai possuir uma força nessa nação

a que na França só teria paralelo na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão;

ii) a Suprema Corte, instância de papel sem igual em nenhum outro país; iii) a ideia de

civil rights – haja vista ser o país de grandes jornadas dos direitos civis – e, por fim, a

concepção de que são agentes de direito e não obedientes a ele, este emanaria do povo e

não do Estado. Curioso os autores não citarem que é dessa cultura que vai emergir

posições como as defendidas por Henry David Thoreau em sua obra Desobediência

Civil na qual o autor combate o que entende por tirania na forma da lei e do Estado.

No capítulo III tratam do plea bargaining, que se trata do acordo feito entre acusação e

indiciado em que o primeiro cede em assumir a culpa que lhe foi imputada ou de parte

das imputações que lhe tenham sido dirigidas em troca de abrandamento na sanção.

Ainda é tematizada a abordagem econômica do Direito, as controvérsias internas desta e

a questão da inocência em cada tradição. No que concerne ao plea bargaining é

afirmado que nele está presente mesmo uma ideia de política criminal e, penso, que

pode ter como uma de suas consequências o maior índice de encarceramentos, mesmo

que por pouco tempo, na medida em que esse mecanismo aumenta as confissões de

culpa. No entanto os autores não chegam a indagar se esta prática não implica,

associada a outros fatores, no aumento da população carcerária norte-americana.

No capitulo VI é discutido o processo judiciário, o trial e a audiência na cultura jurídica

romanista, as diferenças de forma e de conteúdo simbológico de cada. São contrapostos

o caráter excepcional do tribunal do júri e a sistematicidade da audiência no modelo

continental. Ainda são assinaladas outras particularidades do trial como sua

temporalidade de evento único, contínuo, marcado pela oralidade, seu aspecto

performático em que a linguagem corporal também argumenta. Discutem também a

questão do recurso, que vai marcar a cultura judiciária de civil law, o princípio do

contraditório, a questão da produção da verdade em cada modelo, entre outros pontos.

No capítulo V vai se defender que a produção de prova em cada tradição vai

ser fortemente influenciada por concepções de fundo religioso, implicando nesse processo as

marcas distintivas entre protestantismo e catolicismo associados à história das nações em causa.

Examinam o direito da prova, a diferença da confissão entre católicos e

protestantes como elemento esclarecedor para essa análise, a formalização

processual, a unicidade e variação da verdade em níveis, cada uma dessas

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perspectivas correspondendo respectivamente ao padrão anglo-americano e

francês.

No capítulo VI os autores diferenciam os papéis dos juízes nas duas culturas, a questão

da concentração, separação ou neutralização de poder dessa personagem em cada

contexto e suas raízes históricas.

No capítulo VII examinam o instituto do júri, sua constituição na época da conquista

normanda em 1066, desenvolvimento ulterior até as controvérsias que o cercam na

modernidade, incluindo as críticas que sofre e as alternativas que surgem de tentativa de

sua reforma. Também ganha relevo o debate dos princípios que envolvem essa

instituição e sua base ideológica.

Método

Os autores realizam uma abordagem da cultura jurídica articulando sua busca por

entendê-la ao recurso à história, à dimensão antropológica, política, a uma filosofia e

sociologia do direito, considerando dimensões como a religião e a economia.

Defendem uma abordagem cultural sobre o objeto proposto e traçam um debate inicial

para clarear como entendem cultura, distanciando-a de uma visão fixista, como uma

ossatura que constrangeria pensar processos, dinâmicas, definindo-a como um campo de

tensões, um dado contexto que mais pode favorecer ou dificultar que determinadas

ações sejam efetivadas, que caminhos sejam trilhados, do que propriamente ser ela

própria uma causa em si. Os autores, penso, chegam a ser confusos na escolha das

palavras para fazer tal distinção – a cultura “não constrange”, porém “impede”, “não

paralisa”, “mas retarda”...

A chave analítica de cultura jurídica será movimentada para perscrutar o modo de

produção da verdade e como estas correspondem a configurações políticas singulares.

Porém estas são perpassadas por problemas comuns, ontem e hoje, como o desafio de

oferecer justiça que atenda a agenda democrática, como articular o poder judiciário, de

tom aristocrático com o poder político liberal e como fazê-lo sob as crescentes novas

pressões, como o advento da democracia de opinião com o papel desempenhado pela

mídia de massa e pelo processo de globalização entre outros. Esta perspectiva é o tempo

inteiro presente, apresentar como culturas jurídicas diferentes encontraram e encontram

diferentes formas de responder a problemas comuns.

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Conceituações

A analogia religiosa para pensar a política, tão cara aos antropólogos, é

frequente em praticamente todo o texto e mais do que analogia compõe parte

da argumentação explicativa mesma dos autores.

Ponto fundamental de sua exposição é a definição-diferencial de cada modo de fazer

justiça. A Commom Law anglo-americana, segundo eles, é um sistema de inspiração

liberal, marcada por pragmatismo, valorizando a preservação do indivíduo ante o poder

despótico do Estado e os fatos como base de interpretação, fortemente calcada numa

desconfiança de leis abstratas e do domínio de uma autoridade centralizadora que vai

resvalar na figura estatal, receio este de inspiração protestante. Esse seria um modelo

que reduziria, portanto, ao máximo o poder da representação estatal, o juiz, passando a

iniciativa para os indivíduos, num modelo de justiça de quadro concorrencial em que as

partes litigantes poderiam se confrontar em condições equânimes. Suprindo o poder

negado ao juiz aparece como sujeito que dá o veredito uma personagem coletiva, o júri,

como representante da soberania popular e de uma justiça de base comunal. Enquanto

que a civil law funda-se justamente no espírito católico de uma centralização de

autoridade sagrada, que de cima opera em todos os momentos como força motriz no

fazer justiça. Esse poder se baseia na soberania da lei, do Estado, mais particularmente a

República, cuja majestade repousa na figura de juízes detentores de muitos poderes

numa orquestração de linha mais “socialista” ou “socialdemocrata”, de funcionários,

mais administrativa, burocrática e paternalista.

Os autores vão associar diferentes princípios e escolhas em termos de práticas para cada

tradição. Assim a commom law possui como traços i) o precedente e a jurisprudência

como fontes de produção do direito; a adoção do regime de prova e a verossimilhança, o

argumento mais convincente, a evidency e não a busca pela verdade como definidor de

vereditos. E como marca distintiva dessa cultura jurídica o tribunal do júri ou trial. Os

autores vão apontar esse tipo de julgamento como evento imediatizado, lúdico – no

sentido do jogo mesmo – performático, caracterizado pela dramaturgia e do qual não

estão excluídas as emoções.

Os autores tem o mérito de articularem uma exposição fundamentada em práticas,

exemplificando o que apresentam a partir de casos concretos, realizando ao longo dos

capítulos uma interessante revisão da produção sobre o assunto desde clássicos como

Tocqueville e Montesquieu, mas também destacando os discursos e o exame dos

imaginários de cada tradição, como quando abordam a produção cinematográfica.

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Conclusões

Por fim abordam o debate hodierno no cenário estadunidense, as controvérsias a

respeito do júri, quais fatos novos e interesses têm motivado isso, como o referido

instituto do jury ter sido responsável por uma avalanche de decisões em favor do

pagamento de indenizações punitivas ao big business por danos massivos, agressões ao

meio ambiente. Relatam também quais tentativas têm sido feitas para contornar e

solucionar os problemas elencados de forma a incrementar a eficácia desse sistema

judiciário sem abrir mão de uma de suas instituições judiciárias que gozam de maior

credibilidade e tradição.

Os autores efetuam em muitos momentos uma crítica ao modelo de justiça seguido por

seu país, a França, e, apesar de apontarem muitos pontos controversos da commom law,

em linhas gerais tecem uma leitura muito elogiosa a ela, no tocante ao júri, em

particular, diria que sua análise chega a ser em muitos momentos apologética,

entusiasta. Isso, contudo, coexiste no texto com um exercício ao mesmo tempo

minucioso e exaustivo em generalização relativista no estudo comparado entre as duas

culturas jurídicas.