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RESPONSABILIDADE CIVIL DO PROVEDOR DE SERVIÇOS P2P NO ORDENAMENTO BRASILEIRO. CIVIL LIABILITY OF P2P SERVICES PROVIDER UNDER THE BRAZILIAN LAW. Marcos Wachowicz Alexandre Pesserl RESUMO A emergência da sociedade informacional e a crise do direito autoral são fenômenos amplos e com diversas consequências, em especial para as indústrias estabelecidas na difusão de conteúdo. Observa-se uma dissensão doutrinária, com o interesse estabelecido defendendo um direito autoral máximo, fundado em limites taxativos e na interpretação restritiva. É possível identificar a presença de vários dos fatores intrínsecos dessa crise na análise do conceito de redes ponto a ponto (P2P), e como estas estão relacionadas à forma de acesso aos bens culturais e ao conhecimento. Este artigo examina a responsabilidade civil do provedor de serviços P2P, à luz da legislação brasileira, bem como algumas consequências do uso dessa tecnologia junto ao mercado fonográfico. PALAVRAS-CHAVES: DIREITO AUTORAL, SOCIEDADE INFORMACIONAL, PROVEDORES DE CONTEÚDO, RESPONSABILIDADE CIVIL, PROVEDOR DE SERVIÇOS, REDE PONTO A PONTO. ABSTRACT The emergence of the informational society and the copyright crisis are both wide phenomenons with multiple consequences, especially for content-distribution industries. There is a doctrinaire dissension on the subject, with the established interests defending a maximum copyright, centered on straight limits and restrictive interpretation on the subject. It is possible to identify the presence of several of their intrinsical factors through the analysis of peer-to-peer (P2P) networks, and how do they relate to means of access to knowledge and cultural goods. This paper exams the civil liability of the P2P services provider under the scope of Brazilian law, as well as some of the consequences of the usage of this technology for the music industry. KEYWORDS: COPYRIGHT, INFORMATIONAL SOCIETY, CONTENT PROVIDERS, CIVIL LIABILITY, SERVICES PROVIDER, PEER TO PEER NETWORKS 6912

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RESPONSABILIDADE CIVIL DO PROVEDOR DE SERVIÇOS P2P NO ORDENAMENTO BRASILEIRO.

CIVIL LIABILITY OF P2P SERVICES PROVIDER UNDER THE BRAZILIAN LAW.

Marcos Wachowicz Alexandre Pesserl

RESUMO

A emergência da sociedade informacional e a crise do direito autoral são fenômenos amplos e com diversas consequências, em especial para as indústrias estabelecidas na difusão de conteúdo. Observa-se uma dissensão doutrinária, com o interesse estabelecido defendendo um direito autoral máximo, fundado em limites taxativos e na interpretação restritiva. É possível identificar a presença de vários dos fatores intrínsecos dessa crise na análise do conceito de redes ponto a ponto (P2P), e como estas estão relacionadas à forma de acesso aos bens culturais e ao conhecimento. Este artigo examina a responsabilidade civil do provedor de serviços P2P, à luz da legislação brasileira, bem como algumas consequências do uso dessa tecnologia junto ao mercado fonográfico.

PALAVRAS-CHAVES: DIREITO AUTORAL, SOCIEDADE INFORMACIONAL, PROVEDORES DE CONTEÚDO, RESPONSABILIDADE CIVIL, PROVEDOR DE SERVIÇOS, REDE PONTO A PONTO.

ABSTRACT

The emergence of the informational society and the copyright crisis are both wide phenomenons with multiple consequences, especially for content-distribution industries. There is a doctrinaire dissension on the subject, with the established interests defending a maximum copyright, centered on straight limits and restrictive interpretation on the subject. It is possible to identify the presence of several of their intrinsical factors through the analysis of peer-to-peer (P2P) networks, and how do they relate to means of access to knowledge and cultural goods. This paper exams the civil liability of the P2P services provider under the scope of Brazilian law, as well as some of the consequences of the usage of this technology for the music industry.

KEYWORDS: COPYRIGHT, INFORMATIONAL SOCIETY, CONTENT PROVIDERS, CIVIL LIABILITY, SERVICES PROVIDER, PEER TO PEER NETWORKS

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1. Introdução

A popularização das redes P2P, ou ponto a ponto, trouxe consigo reflexos diretamente relacionados aos modos de acesso aos bens culturais e ao conhecimento. A invenção de um meio rápido, acessível e barato para a troca de arquivos digitais facilitou e ampliou o acesso público às informações; entretanto, tal se deu muitas vezes ao arrepio da vontade dos titulares de certas porções de informações, notadamente àquelas sujeitas ao direito autoral

A legislação autoral protege de forma especial as corporações que sejam titulares de direitos autorais. Normalmente são empresas com acesso direto à mídia e ao poder político, de alcance multinacional.

O direito autoral está diretamente ligado aos ativos de tais empresas. Assim, não é incomum a realização de campanhas publicitárias por parte de tais empresas, quiçá propositadamente confundindo a população sobre o tema (ao misturar indiscriminadamente conceitos como cópia privada, contrafação, associação com o crime organizado e afins, todos sob a mesma tarja inespecífica da “pirataria”).

Entretanto, o direito autoral, de cunho constitucional, deve ser interpretado sempre em equilíbrio necessário com os demais direitos constitucionalmente previstos, entre os quais os de direito à cultura e à educação. Neste condão, há considerável discussão doutrinária sobre a legalidade da cópia privada, por exemplo, na qual não há um uso econômico do bem cultural em questão. Outro ponto a se levantar são os limites e exceções legalmente previstos, inclusive todo o domínio público, que representam usos legítimos para essa tecnologia (redes P2P).

As associações que reúnem os grandes grupos de mídia têm recorrido ao judiciário em suas tentativas de paralisar a utilização de tais redes, fundamentados na doutrina maximalista do direito autoral. São bem conhecidos os processos (notadamente em território norte-americano) de usuários que supostamente realizaram trocas de arquivos, bem como as diversas críticas que estes atraíram devido a acusações aparentemente aleatórias, processos contra pessoas sem acesso à Internet, e afins.

Essa indústria também dispara suas baterias contra determinadas empresas que mantém ou disponibilizam softwares capazes de auxiliar os usuários da Internet na troca de arquivos. Argumentam, de forma geral, que quem disponibiliza tal tecnologia incorre em violação direta de direitos autorais, manutenção de serviço que reputam ilícito, e principalmente na responsabilização solidária por atos de terceiros, usuários do software em questão.

Pregam que quem as explora comete ato ilícito, ao facilitar a violação por parte de terceiros de direitos autorais de titularidade das empresas que representam. Esses argumentos se manifestam em casos como Napster e Kazaa (EUA), e agora se repetem na Suécia (Pirate Bay), entre outros.

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Cabe portanto a pergunta: tais argumentos são oponíveis no Brasil? É possível a responsabilização civil do provedor de serviços P2P, ao facilitar atos de terceiros potencialmente lesivos a interesses de titulares de direitos autorais?

2. Redes ponto a ponto

Uma rede P2P (peer-to-peer), ou ponto a ponto, também chamada de distribuída ou não hierárquica, é uma topologia de rede caracterizada pela descentralização das funções na rede, onde cada terminal realiza tanto funções de servidor quanto de cliente.

Geralmente, uma rede P2P é constituída por computadores que não possuem um papel fixo de cliente ou servidor; pelo contrário, costumam ser considerados de igual nível e assumem o papel de cliente ou de servidor dependendo da transação sendo iniciada ou recebida de um outro par da mesma rede.

Uma rede P2P, diferentemente de uma rede em estrela (com servidor central), é criada com o intuito de compartilhar dispositivos e dados, e não serviços. Como não existe gerenciamento central, a informação trafega por todos ou muitos dos nós da rede, desde sua origem até o destino, sendo ignorada por todos os nós exceto o destinatário. As estações intermediárias atuam simplesmente como repetidoras da informação.

O termo tornou-se popular com o surgimento de aplicações de compartilhamento de arquivo, em outras palavras, programas que possibilitam a distribuição de arquivos em rede, permitindo o acesso de qualquer usuário dessa rede a este recurso.

Outros tipos de recursos também podem ser compartilhados em redes P2P, tal como capacidade de processamento de máquinas, espaço de armazenamento de arquivos, ou serviços de software.

Dessas afirmações podemos inferir que por serem descentralizadas, as redes P2P são muito difíceis de se “derrubar”; cada computador que instala um software P2P passa a operar como cliente e servidor, simultaneamente. Quando alguém passa a integrar tal rede, cria um nó de rede extra, que passa a repetir a informação.

3. O mercado fonográfico no Brasil

Em 1997, segundo a ABPD, a indústria fonográfica faturou R$ 1,4 bilhão com a venda de 107 milhões de CDs. O Brasil era o sexto mercado mundial. Em 2003 a situação já era completamente diferente. O mercado encolheu para o 13º lugar, com 52 milhões de CDs e 2,5 milhões de DVDs vendidos – os dados também são da ABPD.

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A dilapidação contínua se expressa de forma mais dramática nos números de 2007, recentemente divulgados pela ABPD: 25,4 milhões de CDs e 5,9 milhões de DVDs vendidos. Somando tudo, inclusive a comercialização de downloads, o faturamento obtido não chega a R$ 300 milhões.

Em 10 anos, de acordo com estes dados, perdemos mais do que 75% do nosso mercado fonográfico. As multinacionais responsabilizaram a “pirataria” pela vertiginosa queda.

Mas tais dados, em primeiro lugar, ignoram completamente os números do importante mercado musical independente que se consolidou no país nos últimos anos. Em termos de números absolutos, os lançamentos independentes suplantam os multinacionais numa proporção de 14 para 01, de acordo com a “Carta do Paraná”, redigida durante o 1º Encontro Nacional de Música Independente:

“Durante o ano de 2007, as quatro gravadoras multinacionais que operam no Brasil produziram apenas 130 títulos. Destes, 75 são licenciamentos de música estrangeira e apenas 55 de produção nacional. No mesmo período, 63 gravadoras nacionais independentes colocaram no mercado 784 títulos novos.

De modo inversamente proporcional, a produção de música independente nacional ocupou apenas 9,82% do espaço de veiculação musical, contra 87,37% do espaço ocupado pela produção da indústria multinacional nas rádios comerciais de todo o País.”

As empresas multinacionais adotam a política de reduzir drasticamente a quantidade de títulos lançados para ocupar com eles, pagando ilegalmente e a peso de ouro, todo o espaço da execução pública nos grandes meios de comunicação (“jabá”).

Dentro dessa estratégia de reduzir os lançamentos e massificá-los, a qualidade musical cede seu lugar às jogadas de marketing e já não desempenha qualquer papel no resultado das vendas. Foi assim que os novos talentos, e logo em seguida os grandes nomes já consolidados da MPB, viram as portas das multinacionais se fecharem para eles.

O eixo da produção fonográfica brasileira se deslocou então para as independentes - pequenas gravadoras que mantém vivo o registro da nossa cultura musical, mas não conseguem levá-lo ao grande público porque o espaço dos meios de comunicação foi loteado, comprado e cercado pelo monopólio de acesso às estruturas de distribuição.

A diminuição dos custos de produção permitidos pelas novas tecnologias derrubou o risco inerente ao negócio musical; atualmente, o papel das gravadoras se limita apenas à prensagem e distribuição do produto acabado. O custo inicial – pesquisa, produção, gravação – é cada vez mais suportado pelos próprios artistas.

Tanto é assim, que João Marcelo Boscoli, diretor da gravadora brasileira Trama, em entrevista ao IDG Now afirma:

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“A Trama apóia o P2P e é contra qualquer tecnologia de DRM (Digital Rights Management), sigla que se refere aos sistemas digitais de gerenciamento de direitos autorais capazes de restringir o acesso e a possibilidade de se copiar um CD ou um arquivo de música digital em MP3 ou qualquer outro formato. "Não estou nem aí para a pirataria digital. Podem copiar quantas vezes quiserem".”

Para Boscoli, filho de Elis Regina, "as independentes se aproveitam desse novo método", referindo-se ao formato digital. Para ele o MP3 é uma nova versão do single ou da música no rádio, pois ajuda a divulgar o artista e assim incentiva a compra do disco e o agendamento de shows.

Em 2003, a Trama realizou uma promoção para divulgar o disco da cantora Fernanda Porto que premiava usuários "flagrados" oferecendo a música da artista para que terceiros a baixassem. A blitz virtual recompensava aqueles que distribuíssem o arquivo na web. A posição da Trama é também a adotada pela Associação de Música Independente (ADMI), da qual é integrante.

4. Da tecnologia de cópia

A posição da doutrina maximalista, no sentido de que a exploração comercial de redes P2P é essencialmente um serviço que permite que seus usuários infrinjam direitos autorais em larga escala, pode muito bem se referir à conduta da empresa Xerox, quando comercializa uma máquina de fotocópias, ou da Sony, quando vende um gravador de CDs. Ou ainda das diversas empresas que vendem CDs e DVDs virgens, ou tocadores de MP3, ou pen-drives.

A partir do momento em que são comercializados, todos estes produtos têm uma finalidade em comum: permitir reprodução de informações, que podem ou não ser protegidas pelo direito autoral.

O usuário de uma rede P2P pode realizar o download de arquivos, tanto aqueles legítimos (cuja distribuição foi autorizada, caídos no domínio público ou em situações de exceção ao exclusivo do autor) quanto ilícitos (obras protegidas, sem autorização). Da mesma forma que quem utiliza uma fotocopiadora pode copiar o texto ou as imagens que escolher, lícita ou ilicitamente.

A posição maximalista, ao optar pela via do litígio judicial, consegue apenas afastar os empreendedores honestos, na legalidade, que tentam criar modelos de negócios inovadores. De forma indireta, estimulam a criação de redes cada vez mais despersonalizadas e descentralizadas, tornando cada vez mais difícil a tarefa de construir um esquema que agregue as potencialidades da nova tecnologia com o necessário estímulo aos trabalhadores criativos.

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Esta miopia da indústria ecoa as tentativas de se matar a tecnologia do vídeo-cassete, no início dos anos 80. No paradigmático caso “Betamax” (Sony v Universal), examinado pela Suprema Corte norte-americana, também se tentou condenar uma tecnologia de cópia (sem sucesso).

A mesma tecnologia que se tornou, anos mais tarde, salvadora dos estúdios de Hollywood, graças ao sucesso das fitas de vídeo e às generosas rendas dali advindas.

Tal decisão reconhece que as leis de direito autoral não são feitas para desencorajar ou controlar a emergência de novas tecnologias, inclusive (talvez especialmente) aquelas que ajudam a disseminar informações e idéias com maior alcance ou com mais eficiência.

5. Do potencial lesivo das redes P2P

Os papers divulgados pelos representantes desses grupos detentores de direitos autorais, quando abordam as redes P2P, usualmente assumem que há uma correlação direta entre o número de arquivos trocados (nestas redes) e o número de vendas de determinado CD. Logo, se houve troca de arquivos, ela deve ser reparada monetariamente.

Mas tais assertivas não se sustentam; estudos científicos demonstram que muitas vezes quem baixa arquivos musicais são justamente as pessoas que mais consomem música, o que pode levar ao conhecimento de novos artistas, aumento na freqüência em shows e a um aumento geral no volume de vendas, incluindo merchandising.

O principal trabalho acadêmico sobre o tema é dos professores Oberholzer e Strumpf (2005), da Harvard Business School e da UNC Chapel Hill, respectivamente. É intitulado “The Effect of File Sharing on Record Sales – An Empirical Analysis” (“Os efeitos da troca de arquivos na venda de discos – uma análise empírica”).

Neste paper, afirmam logo na introdução (em tradução livre):

“Neste artigo, estudamos o impacto de tecnologias de trocas de arquivos na indústria musical. Em particular, analisamos se a troca de arquivos reduziu as vendas lícitas de música. Enquanto esta questão têm recebido considerável atenção na academia, indústria e no Congresso, nós somos os primeiros a estudar o fenômeno utilizando dados sobre o download realizado de arquivos musicais. (...) Os downloads têm um efeito nas vendas que é estatisticamente indistinguível de zero. Além disso, estimamos que tenham uma significância econômica moderada e que as alegações de que a troca de arquivos pode explicar o declínio na venda de músicas durante o período de estudo são inconsistentes.”

Argumentam ainda que, provavelmente, aquele que “baixou” músicas provavelmente não as teria comprado em primeiro lugar. E prosseguem:

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“A troca de arquivos permite que os usuários descubram nova músicas a que de outra forma não seriam expostos. Na comunidade de trocas de arquivos, é prática comum navegar pelos arquivos de outros usuários e discutir música em salas de bate-papo. Tal conhecimento pode promover novas vendas.”

Em suas conclusões, os estudiosos apontam que, apesar de haver alguma evidência no sentido que os discos mais trabalhados podem vender menos cópias como resultado das redes P2P, o impacto econômico é pequeno, menos de 10% de vendas até para os mais populares.

Por outro lado, as estimativas indicam que artistas menos populares, que vendem menos discos, provavelmente não são afetados, ou são afetados positivamente pela troca de arquivos, deixando os incentivos para se entrar na indústria não-modificados ou talvez melhorados.

Para o Prof. Yokai Benkler (Professor for Entrepreneurial Legal Studies at Harvard Law School), em seu seminal livro “The Wealth of Networks” (A Riqueza das Redes), esta crise não é sentida por quem deveria ser de fato protegido pelos direitos autorais (os artistas):

“Músicos e compositores parecem estar relativamente insulados dos efeitos de redes P2P, e no geral, são provavelmente afetados positivamente. Os melhores dados de pesquisas disponíveis, de fins de 2004, demonstram que 35% de músicos e compositores disseram que downloads gratuitos ajudaram suas carreiras. Apenas 5% disse que isso os prejudicou. Trinta por cento disse que isto aumentou a freqüência em shows, 21% que ajudou na venda de CDs e outros produtos, e 19% que ajudou a ganhar presença nas rádios”.

Benkler, ao analisar esta mudança de mercado, assim afirma

“A distribuição, que já foi o domínio solitário de empresas baseadas no mercado, agora pode se dar por redes descentralizadas de usuários, compartilhando músicas que consideram atrativas com outros usuários, usando equipamentos que lhe pertencem e conexões genéricas de redes. Essa rede de distribuição, por sua vez, permite que um escopo muito mais diverso de músicos possa alcançar audiências muito mais específicas do que aquelas necessárias à produção industrial e distribuição física da música nos formatos de vinil ou CD. A batalha legal reflete um esforço de uma indústria estabelecida para preservar seu modelo de negócios amplamente lucrativo”. (grifo nosso)

Neste prisma, deixam de fazer sentido as alegações de prejuízo sofrido pela autora; conclui-se que o P2P funciona de fato como ferramenta de divulgação para os artistas.

Não custa lembrar que uma das fundamentações ideológicas dos direitos autorais é a proteção da parte hipossuficiente da relação de mercado, qual seja, o trabalhador criativo. E é esse trabalhador quem historicamente batalha por direitos básicos seus, constantemente desrespeitados pelos grandes grupos de mídia (por exemplo, a numeração das cópias de um CD).

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6. Infração direta e indireta a direitos autorais

Passemos então à análise da legalidade da conduta do provedor de serviços P2P. É possível o reconhecimento da culpa in vigilando? Pode tal provedor ser diretamente responsabilizado por infração ao direito autoral cometida por usuários de seus serviços?

Não nos parece possível a aplicação de tal tese, a não ser que reste provado que tal provedor disponibilizava pessoalmente arquivos digitais com conteúdo protegido – e mesmo assim, com as ressalvas relativas à cópia privada.

De outra forma, como isentar a Xerox de culpa pelo mau uso de fotocopiadoras? Como isentar a Maxwell pelo fato de que vende CDs e DVDs virgens, se se sabe que provavelmente neles serão apostas obras protegidas? Como proteger a Apple por comercializar iPods no Brasil, país no qual não se podem ainda comprar músicas pelo sistema iTunes? Ou a Sony, por seus aparelhos de MP3?

A principal tese maximalista, entretanto, parece ser pela aplicabilidade de instituto próprio da common law: a responsabilização por “secondary copyright infringement”, ou seja, a responsabilização solidária do provedor de tecnologia que permita a troca de arquivos.

Em matéria de direito autoral brasileiro, a responsabilidade solidária pode derivar da participação direta de diversos agentes, caracterizando a co-autoria, o que determina a aplicação do preceito contido no parágrafo único do Art. 942 do Código Civil, segundo o qual “são solidariamente responsáveis com os autores os co-autores e as pessoas designadas no art. 932”.

Assim, tal tese somente pode ser aplicada é quando puder ser demonstrada a responsabilidade do provedor de serviços P2P por qualquer contrafação ipso facto.

Existem, porém, casos de responsabilidade por atos praticados por terceiros. A regra básica dessa responsabilidade solidária está codificada no Art. 104 da Lei 9.610/98 (Lei de Direitos Autorais – LDA), segundo a qual quem comercializa ou auxilia na comercialização de obra reproduzida fraudulentamente (i.e., oculta, tem em depósito ou importa), com a finalidade de obter ganho ou lucro direto ou indireto, para si ou para outrem, é solidariamente responsável com o contrafator. Normas adicionais estão contidas nos Arts. 86, 107, IV, e 110 da LDA.

A jurisprudência tem entendido que a regra geral não estabelece uma responsabilidade objetiva, mas sim dependente da comprovação de culpa, o que pressupõe pelo menos a ciência de que se trata de obra fraudulentamente reproduzida.

Assim decidiu a 3ª. Turma do STJ em acórdão proferido em sede de Recurso Especial, ainda na vigência da Lei 5.988/73. O requisito de ciência da contrafação tem sido acolhido pela jurisprudência, embora hajam decisões aplicando uma forma de responsabilidade objetiva em casos de infração pela imprensa.

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No que se refere ao provedor de hospedagem, a jurisprudência também não tem reconhecido a responsabilidade objetiva do mesmo pela inserção, por parte do assinante do serviço, de material ilícito em página hospedada em seu servidor, a não ser na hipótese de flagrante ilegalidade.

É o que decidiu o Tribunal de Justiça do Paraná em acórdão de 2002, com grifos nossos:

“Em contrato de hospedagem de página na Internet, ao provedor incumbe abrir ao assinante o espaço virtual de inserção na rede, não lhe competindo interferir na composição da página e seu conteúdo, ressalvada a hipótese de flagrante ilegalidade. O sistema jurídico brasileiro atual não preconiza a responsabilidade civil do provedor hospedeiro, solidária ou objetiva, por danos morais decorrentes da inserção pelo assinante, em sua página virtual, de matéria ofensiva à honra de terceiro.” – AC 130075-8-Londrina – 5ª. Câmara Cível – TJPR – 19.11.2002.

Ou seja: para nossos tribunais, parece ser requisito para aceitação da tese da responsabilização solidária que a conduta imputada a terceiro seja flagrantemente ilícita.

É a conduta de terceiro fazer o download de arquivos para cópia privada ilícito flagrante? Para a empresa Sony, grande titular de direitos autorais, parece que não. Em data de 22 de abril de 2009, o seguinte texto podia ser encontrado no seguinte endereço eletrônico, pertencente à Sony, ”

E quanto à questão dos provedores de serviços P2P estarem explorando comercialmente tal serviço, visando lucro? Pergunta-se: há uma diferença fundamental entre tal conduta e a da empresa Xerox, que não seja o meio em que operam suas ferramentas? A Xerox, ao que se saiba, visa o lucro com a venda de suas fotocopiadoras, que também podem ser acusadas de uso “predominantemente infringente”. Tanto quanto a própria Sony lucrou com a venda de aparelhos de VHS, ou como lucraram os vendedores de fitas K-7, e continuam lucrando com DVRs, CDRs, iPods, MP3s...

Rigorosamente o mesmo potencial de ilícito pode ser impingido a todas essas empresas e produtos. Não há diferença real entre o que fazem e os atos dos provedores de serviços P2P.

7. Conclusões

A sociedade informacional trouxe consigo consequências de grande impacto para determinados setores, especialmente aqueles estabelecidos nos setores de produção e distribuição de conteúdo. A digitalização de tais informações permite seu livre trânsito, muitas vezes em detrimento dos interesses de seus titulares – os quais têm invocado o ordenamento legal como forma de reprimenda de tais condutas.

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Esse movimento se sustenta na doutrina maximalista do direito autoral, que prega a interpretação absolutamente restritiva dos negócios jurídicos na área, bem como na existência de limites taxativos – situação positivada na legislação brasileira.

Porém, o ambiente digital não se coaduna com tais limites e restrições. É preciso um balanceamento entre os direitos individuais dos titulares e os direitos coletivos ao conhecimento e à cultura, que se preocupe com a devida remuneração aos trabalhadores criativos.

A incapacidade em reconhecer e assimilar essa mudança de paradigma leva os doutrinadores maximalistas a esbravejarem contra tudo o que chamam de “pirataria”, enquadrando sob essa tarja qualquer conduta que signifique um declínio dos poderes estabelecidos na estrutura de disseminação de conteúdo.

Nesse condão, procuram responsabilizar civilmente empresas ou indivíduos que mantém serviços de conexão às redes ponto a ponto (P2P), redes de topologia descentralizadas que permitem a troca de arquivos online, por suposta facilitação de atividades de terceiros potencialmente lesivas à seus interesses.

Existe vasta discussão doutrinária a respeito da licitude do direito de cópia privada, bem como usos manifestamente legítimos para tal tecnologia (obras licenciadas e informações sob o domínio público); e a jurisprudência pátria sobre o tema tem estabelecido que a responsabilização solidária, em matéria autoral, só se dá quando existe uma conduta flagrantemente ilícita, por exemplo na comercialização de material “pirateado” (contrafeito).

Assim, não nos parece admissível responsabilizar o provedor de tais tecnologias por eventuais condutas ilícitas cometidas por usuários de tais redes; mormente que é impossível fazer cessar o uso dessas redes, por sua própria característica de descentralização.

Enquanto a lei não disser expressamente que devem ser reprimidas tais condutas, elas são lícitas. Qualquer decisão em sentido contrario será, s.m.j., contrarium legem, verdadeiro pronunciamento legiferante, em afronta à expressa disposição legal e à tripartição de poderes.

Referências Bibliográficas:

BENKLER, Yochai, The Wealth of Networks, How Social Production Transforms Markets and Freedom, Yale University Press, 2006.

GIL, Gilberto. “O Direito Autoral no Brasil hoje”. Artigo pubicado no jornal "O Globo", em 23/06/2008

OBERHOLZER, Felix; STRUMPF, Koleman. The Effect of File Sharing on Record Sales – An Empirical Analysis.

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TRABUCO, Claudia. O Direito de Reprodução de Obras Literárias e Artísticas no Ambiente Digital. Coimbra Editora: 2006.

Referências Adicionais:

http://www.lessig.org/blog/eldredcc/

http://www.abpd.org.br/estatisticas_mercado_brasil.asp

http://www.musicnews.art.br/Produtos/pdf/encontro_abmi.pdf

Ver Eldred vs Ashcroft. Informações detalhadas pela equipe do Prof. Lawrence Lessig em Ver TRABUCO, Claudia. O Direito de Reprodução de Obras Literárias e Artísticas no Ambiente Digital. Coimbra Editora: 2006.

Associação Brasileira de Produtores de Disco, entidade que reúne empresas multinacionais do setor. Dados sobre o mercado disponíveis em Reuniu representantes das sociedades autorais (AMAR e UBC), dos produtores independentes (ABMI), das rádios públicas (ARPUB), artistas e jornalistas, em abril de 2008 em Curitiba/PR. Texto disponível em

Texto disponível em Disponível em “In this paper, we study the impact of filesharing technologies on the music industry. In particular, we analyze if file sharing has reduced the legal sales of music. While this question is receiving considerable attention in academia, industry and in Congress, we are the first to study the phenomenon employing data on actual downloads of music files. (...) Downloads have an effect on sales which is statistically indistinguishable from zero. Moreover, our estimates are of moderate economic significance and are inconsistent with claims that file sharing can explain the decline in music sales during our study period.”

“File sharing allows users to learn about music they would not otherwise be exposed to. In the file sharing community, it is a common practice to browse the files of other users and discuss music in file server chat rooms. This learning may promote new sales.”

BENKLER, Yokai The Wealth of Networks, p. 268. Disponível em “Distribution, once the sole domain of market-based firms, now can be produced by decentralized networks of users, sharing instantiations of music they deem attractive with others,

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using equipment they own and generic network connections. This distribution network, in turn, allows a much more diverse range of musicians to reach much more finely grained audiences than were optimal for industrial production and distribution of mechanical instantiations of music in vinyl or CD formats. The legal battles reflect an effort by an incumbent industry to preserve its very lucrative business model.” BENKLER, Yokai. Op. Cit. p. 296.

Art. 942. Os bens do responsável pela ofensa ou violação do direito de outrem ficam sujeitos à reparação do dano causado; e, se a ofensa tiver mais de um autor, todos responderão solidariamente pela reparação.

Parágrafo único. São solidariamente responsáveis com os autores os co-autores e as pessoas designadas no art. 932.

Art. 932. São também responsáveis pela reparação civil:

I - os pais, pelos filhos menores que estiverem sob sua autoridade e em sua companhia;

II - o tutor e o curador, pelos pupilos e curatelados, que se acharem nas mesmas condições;

III - o empregador ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele;

IV - os donos de hotéis, hospedarias, casas ou estabelecimentos onde se albergue por dinheiro, mesmo para fins de educação, pelos seus hóspedes, moradores e educandos;

V - os que gratuitamente houverem participado nos produtos do crime, até a concorrente quantia.

“Art. 104. Quem vender, expuser à venda, ocultar, adquirir, distribuir, tiver em depósito ou utilizar obra ou fonograma reproduzidos com fraude, com a finalidade de vender, obter ganho, vantagem, proveito, lucro direto ou indireto, para si ou para outrem, será solidariamente responsável com o contrafator, nos termos dos artigos precedentes, respondendo como contrafatores o importador e o distribuidor em caso de reprodução no exterior”.

“À falta de ciência de que a autoria do projeto e da construção da casa fosse de terceiro e não daquele que se apresentou como tal na reportagem publicada, a editora da revista especializada não responde por danos materiais e morais postulados em razão da

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usurpação havida”. Apelação Cível 2001.001.21728 – Rio de Janeiro – 5ª Câmara Cível – T.J.R.J. – 25.3.2002.

“A solidariedade do que vende ou expõe à venda obra reproduzida com fraude não prescinde da comprovação de culpa”. Recurso Especial 6.087 – Minas Gerais – 30.4.1991.

“DIREITO AUTORAL - Edição de obra traduzida, cujos direitos haviam sido objeto de cessão, pelo tradutor. (omissis). Inteligência do artigo 122 da Lei n. 5.988/73, vigente à época - Não caracterização, porém, na espécie, da responsabilidade solidária do livreiro, sob a égide do artigo 124 do mesmo diploma legal - Ciência da origem viciada da edição nem sequer insinuada, no pedido inicial - Carência da demanda, nessa parte - Distribuição conseqüente dos ônus sucumbenciais - Preliminares rejeitadas, recurso da editora não provido e do livreiro, provido”. Apelação Cível n. 78.944-4/8 – São Paulo – 10ª Câmara de Direito Privado – T.J.S.P. – 20.08.99.

GIL, Gilberto. “O Direito Autoral no Brasil hoje”. O Globo, 23/06/2008

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