Revista Cult » Judith Butler_ Feminismo como provocação

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Gênero não é um problema do campo da sexualidade

TAGS: gênero, Judith Butler, Marcia Tiburi

Marcia Tiburi

É bem possível que aquele que se disponha a conhecer a obra de Judith Butler a receba, em umprimeiro momento, como uma provocação. Os livros publicados até agora pela filósofa norte-americana, nascida em 1956, não são fáceis de ler. De um lado, a espontaneidade irônica comque ela escreve não é comum no meio do debate acadêmico e intelectual; de outro, osconteúdos de seu pensamento são os mais desafiadores, os mais sagrados e os mais caros paratoda uma tradição. Verdade que o tema central da obra de Butler é o “gênero”, mas, olhando deperto, gênero não é um problema do campo da “sexualidade”, é um problema político e, maisperigosamente, um problema ontológico. Isso quer dizer que o seu feminismo é, de todos osque surgiram até agora, o que levou mais a sério as potencialidades críticas do própriofeminismo. Butler não tem medo do feminismo, tampouco de sua crítica ou de seus efeitosteóricos e práticos.

Nas mãos da pensadora, o feminismo é, sem dúvida, uma luta pelos direitos das mulheres,como sempre foi, mas é também uma desmontagem do que chamamos de “mulheres”. Por fim,dos homens e, no extremo, do gênero como um todo. A questão de gênero não será apenas umproblema do ativismo, o que já seria demais para o pensamento da dominação masculinista,mas também, e mais gravemente, um questionamento da identidade e do princípio que regesua lógica.

A riqueza da obra de Butler consiste justamente no caráter provocativo que tem movido umaquantidade considerável de estudiosos pelo mundo afora. Esse caráter é, ao mesmo tempo,uma maneira de traduzir aquilo que entenderemos a partir de um dos seus conceitos maisimportantes. Trata-se da questão da “performatividade”. Assim, a primeira coisa que devemossaber para entender do que Judith Butler está falando é que as palavras provocam ações eatuações. Que as palavras agem. Que todas as teorias existentes causam algo em sujeitosconcretos. E que a teoria da própria Butler faz o mesmo, mas não esconde que o faz. Nessesentido, ela sabe que está provocando. E quem ela provoca? O poder, enquanto este seconfunde com a “verdade” sobre algo como identidade sexual de gênero.

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A filósofa norte-americana, que também é judia e lésbica, vem, portanto, provocando umamudança radical no cenário dos estudos de gênero, e no feminismo de um modo geral. Semdeixar de ser feminista, Butler é uma teórica crítica que critica justamente certos aspectos dofeminismo ao qual se filia. Para quem pensa que as feministas não podem ser críticas dofeminismo, essa posição pode parecer uma contradição, o que, na verdade, apenas demonstraque a questão da crítica imanente do feminismo – aquela crítica que supera seu objeto aomesmo tempo que guarda algo dele – ainda não foi bem compreendida. O ponto central dacrítica de Butler reside no fato de que o feminismo que ainda trabalha com o “binarismo” degênero – com a ideia de que “homem” e “mulher”, “masculino” e “feminino” são a verdade dasexualidade – incorre na reprodução daquilo mesmo que quer criticar. Neste sentido, ofeminismo da filósofa apenas pode ser pensado em seu sentido expandido. Não como umadefesa de algo como “feminino”, nem como uma simples defesa das “mulheres” cuja identidadede gênero ela questionará. O feminismo de Butler é a defesa de uma desmontagem de todo tipode identidade de gênero que oprime as singularidades humanas que não se encaixam, que nãosão “adequadas” ou “corretas” no cenário da bipolaridade no qual acostumamo-nos a entenderas relações entre pessoas concretas. É justamente a adequação que estará na mira de Butler,enquanto todo o esforço da filosofia tradicional, que pesa sobre a questão do sexo e do gênero,se deu na direção de uma supressão das singularidades.

Performatividade do gênero

Para sustentar sua crítica, Butler precisa, portanto, desmontar algumas ideias, e a principaldelas será a de gênero. Quando, nos anos 1960, se começou a falar em gênero, o termo erausado para se referir ao “papel” social e cultural que se dispunha sobre o sexo, como que paraexplicá-lo. O sexo era ainda tomado como natural no sentido de ser um destino que acabariapor fundar o gênero. O sexo era a verdade da natureza, como muitos ainda pensam no âmbitodo senso comum. A ideia de gênero veio dar conta do caráter produzido da sexualidade. Oessencialismo com que se costumava ver o sexo já havia sido posto em questão quandoBeauvoir disse, em O segundo sexo, que ninguém nasce mulher, mas se torna mulher.Foucault, igualmente importante para Judith Butler, mostrou, em sua História da sexualidade,que até mesmo o sexo, tanto quanto a sexualidade, foi produzido por um tipo de discurso. Nemsexualidade, nem sexo seriam verdades essenciais, mas apenas construções históricas. Tratar ohistórico como natural sempre é estratégia do poder. O esforço da teoria de Butler, nestecontexto, foi o da desnaturalização como uma desmistificação do sexo e do gênero, que seriam,em momentos diferentes, tratados como destino. A partir de então, eles seriam construçõesdiscursivas entre as quais não haveria diferença. A ideia fundamental da pensadora é a de queo discurso habita o corpo e que, de certo modo, faz esse corpo, confunde-se com ele. Por isso, adiferença entre sexo e gênero não seria mais o caminho para a luta feminista. Mas o respeitoaos corpos cuja liberdade depende, em última instância, de serem livres do discurso que osconstitui. Ou de simplesmente poderem existir em um mundo que os nega, e que os nega pelodiscurso que não é, de modo algum, apenas uma fala qualquer.

O que ela chama de performatividade do gênero, partindo de aspectos da teoria da linguagemde J. L. Austin, famoso autor da teoria dos atos de fala, diz respeito ao caráter ativo da relaçãoentre o sujeito e a sociedade, enquanto esta última é organizada dentro de normas e de leis quefuncionam pelo discurso. É impossível, neste sentido, ser “generificado”, ou seja, sofrer osefeitos do gênero fora do discurso. Pois não há gênero sem discurso, e o discurso é, justamente,o que infunde, como um dispositivo, aquilo que é o gênero. Se antes os corpos eram vítimas daciência da anatomia que legislava sobre eles, agora passaram a ser vítima da generificaçãocomo uma espécie de segunda natureza que se diz como verdade quanto ao “gênero”.

Por meio das análises de Butler, podemos empreender a reflexão sobre o que é ser homem e sermulher, hétero ou homossexual, desde que se torne possível questionar não apenas asidentidades “homem” e “mulher”, ou outras, mas também o próprio sentido do verbo “ser”quando se diz que alguém “é” isso ou aquilo. No momento em que alguém se identifica ou sedeixa hétero-identificar, esse alguém está se inscrevendo apenas em um cenário ontológico,que é promovido pelo discurso e toda a sua materialidade no âmbito da ação e da vida. Masisso quer dizer também que tudo poderia ser diferente em um cenário democrático, em que as

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pessoas concretas pudessem se expressar livremente, também por meio de seus corpos, paraalém dos discursos que os controlam sob a produção daquilo que Butler chama de “efeitosontológicos”. Nesse sentido, em sua prática teórica, ela agirá fazendo “abusos” ontológicoscontra o status quo. A filosofia é, em sua visão, a chance de produzir um contraimaginário aoprivilégio ontológico de uns – como se um modo de existir fosse o único correto – contra osimplesmente ser dos outros, que, na contramão da “norma” ontológica, são tratados comoaberração ou anomalia. A prática de enviar crianças e jovens ao psiquiatra ou ao padre paracorreção, por exemplo, é um mecanismo de exclusão. Ao mesmo tempo, aquele quesimplesmente assume uma identidade contra a exclusão corre o risco de ficar preso a ela. Umdos problemas que a filosofia de Butler nos lega se refere justamente a essa identidade quandosabemos que ela serve, em certos momentos, para libertar, como, por exemplo, no momentoem que alguém se arma mulher, no âmbito do feminismo, na luta por direitos, mas tambémpara excluir esse mesmo sujeito, colocando-o de volta num lugar de opressão e escravidão ondeo próprio feminismo prometia emancipar seu sujeito. Neste sentido, podemos dizer que ofeminismo da filósofa é negativo e, ainda assim, dialético.

O corpo abjeto

Portanto, uma das preocupações centrais do pensamento teórico-prático de Butler se refere aocorpo sexuado enquanto esse corpo é tornado “abjeto”. A categoria do abjeto vem referir-se àexistência corporal daqueles que não são encaixáveis na estrutura binária “homem-mulher”.Neste sentido, a teoria de Butler é, ao mesmo tempo, como deve ser qualquer teoria feminista,uma teoria engajada na defesa de um sujeito oprimido. A propósito, na contramão de Derrida,um dos pensadores que mais a influenciou, Butler acredita que é necessário continuar usandoo conceito de “sujeito”, vendo nesta criticável categoria humanista a chance de colocar ascategorias do humanismo contra ele mesmo. A crítica ao sujeito, promovida por muitos filósofos contemporâneos, diz respeito à ideia de filosofia da consciência de que existe umaconsciência autônoma e livre chamada de sujeito. “Sujeito” é certamente uma categoria insufi-ciente, mas é justamente ela que é negada pelo humanismo aos corpos abjetos, aqueles queseriam, no contexto das definições, menos que humanos. A crítica de Butler ao humanismorefere-se a essa classificação por exclusão.

Neste caso, a diferença de Butler com o feminismo que defende, sobretudo, as “mulheres” éque ela defende, além das mulheres, todos aqueles que não se enquadram nos discursos queinvocam a “natureza” fixa do corpo. Neste sentido, ela defende as potencialidades dos corposfora das teorias ontológicas clássicas que sempre se pautam por uma ideia de naturezafeminina ou masculina. E até mesmo de uma natureza homossexual. Mas a teoria da pensadoravai além da questão da sexualidade e bem pode ajudar a pensar o lugar de todos aqueles quenão se encaixam no padrão do homem branco e europeu. Além dos transexuais, os judeus, osnegros, os árabes e até mesmo os pobres entram no campo de suas preocupações como corposque são considerados, pelo “poder”, como desimportantes, vidas que deveriam ser corrigidasou que não mereceriam serem vividas. Aquele que ataca física ou simbolicamente umhomossexual, uma travesti, um negro, uma prostituta, uma mulher sob uma burca, ou, ainda,uma mulher que não é feminina ou sensual (como se as pessoas estivessem obrigadas aoestereótipo) certamente em sua base um modo de pensar assegurado por essa visão de mundocompartilhada pelo patriarcado, pelo capitalismo, pelo poder em geral. A cultura, em todas asformas de discurso, do jurídico ao científico, e dos meios de comunicação, ajuda na produçãodo “abjeto” como um tipo de diferenciação na qual se confina o excluído. O excluído éproduzido no discurso: seu lugar é o silêncio que, em termos sociais muito concretos, realiza-sena injustiça de não poder existir. Essa diferenciação precisa ser analisada e desmontada.Somente aí é que algo como a liberdade de existir como se é entrará em cena. Não apenasporque existem muitas pessoas fora das classificações, mas porque é preciso desmontar asclassificações para dar lugar à expressão singular contra todo um campo da experiênciasilenciada e, assim, proibida de existir ou condenada à morte.

Os textos que compõem este dossiê centram-se na análise de alguns aspectos da obra de JudithButler. Cada um, a sua maneira, aproxima-nos das reflexões da pensadora, que tem abertocaminhos de reflexão fundamental sobre a vida de nossos corpos “generificados”, identificadoscomo mulheres e presos nas malhas daquilo mesmo que combatem. No texto de Guacira

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Louro, temos a chance de nos aproximar do olhar perturbador de Butler como pensadora dasubversão; no texto de Joana Plaza podemos ver a conexão entre o “performativo”e a“vulnerabilidade” dos corpos à linguagem; Leticia Sabsay nos fará pensar nas “normas degênero” e sua possibilidade de re-significação; por fim, Susana de Castro nos oferece umaleitura sobre Antígona, desde que Butler a leu de um ponto de vista queer. No todo, e em cadauma de suas partes, fica evidente o respeito das autoras e sua dívida para com uma filósofa queestá abalando as estruturas do pensamento ocidental.

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