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www.cinemateca.gov.br revista da cinemateca brasileira revista da cinemateca brasileira 1 O PONTO DE VISTA DA MORTE José Antônio Pasta Jr. O CINEMA NO SÉCULO Mateus Araújo Silva ARQUIVO, CINEMA E HISTÓRIA François Albera VISITA A PEDRO LIMA Paulo Emilio Salles Gomes M A I O D E 2 0 1 2 NÚMERO 1 | MAIO DE 2012

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revista da cinemateca brasileira

revistada cinemateca

brasileira

1

O PONTO DE VISTA DA MORTEJosé Antônio Pasta Jr.

O CINEMA NO SÉCULOMateus Araújo Silva

ARQUIVO, CINEMA E HISTÓRIAFrançois Albera

VISITA A PEDRO LIMAPaulo Emilio Salles Gomes

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N Ú M E R O 1 | M A I O D E 2 0 1 2

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Aos colaboradoresOs artigos e resenhas enviados à Revista da Cinemateca Brasileira são submetidos ao Conselho Editorial e ao Conselho Científico, além de pareceristas ad hoc. Os Conselhos Editorial e Científico reservam-se o direito de propor modificações de forma, com o objetivo de adequar as contribuições às dimensões da revista ou ao seu padrão editorial e gráfico.

AgradecimentosFátima Sebastiana Gomes Lisboa

Ilona RechlinGoethe Institut - São Paulo

Julien Prévotaux

Lúcia Telles

Lúcia Riff

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Eva Nil e Pedro Lima no arquivo pessoal do crítico.

12 de maio de 1928

A Cinemateca inicia a publicação regular de um periódico sobre a cultura cinematográfica, tomando

a expressão em suas várias manifestações. Uma revista com um programa plural para discutir o fato

cinematográfico ou, a partir dele, questões diversas em torno da arte e da sociedade contemporâneas.

Ao longo de sua acidentada história, a instituição perseverou na difusão e na preservação de seu

acervo, e hoje dá mais um passo no cumprimento de suas funções. Além de salvaguardar e difundir

seu vasto acervo fílmico, fotográfico e de documentação correlata, a Cinemateca aposta na constante

transformação do debate do audiovisual, que tanto necessita de um Arquivo de Filmes ativo.

A Revista da Cinemateca Brasileira abre espaço para a discussão do presente em variadas formas,

seja ela a intervenção crítica, a opinião bem informada, a especulação erudita, ou o gesto criador in-

ventivo. Busca-se uma perspectiva renovada sobre o audiovisual, cujo debate, nas últimas décadas, se

concentrou nos relatórios oficiais, nos estudos universitários ou na imprensa opinativa. Em uma socie-

dade definida pela sua produção de imagens e sons, uma cinemateca criadora é ainda mais necessária.

Neste primeiro número, ao lado de ensaios, artigos, depoimentos e críticas, o Guia de Arquivos Pesso-

ais e Institucionais, como resultado e subsídio das propostas de renovação dos olhares sobre o cinema

e o audiovisual no Brasil, apresenta a diversidade de fontes documentais, decisivas para o estudo

e a reflexão. A seção fixa Pauloemiliana merece destaque por apresentar as diversas facetas de nosso

crítico maior. Polígrafo interessado nas coisas de cinema, Paulo Emilio Salles Gomes praticou o diário,

a epistolografia, o ensaio crítico, o político, o texto didático, o discurso, o escrito de intervenção do

militante, a crônica, o artigo jornalístico e a novela. Seu arquivo, depositado na Cinemateca, graças à

clarividência de Lygia Fagundes Telles, ajuda a desvendar essa obra viva e fornece elementos impor-

tantes para a história do cinema brasileiro.

Com imagens do acervo da Cinemateca e documentos dos arquivos, a proposta é oferecer análises,

debates, descrições, interpretações e invenções que revigorem continuamente o debate – e, como

desdobramento propulsor, a própria instituição e sua Revista.

Cinemateca Brasileira

editorial

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ensaios

O ponto de vista da morteJosé Antônio Pasta Jr.

Glauber crítico: notas sobre O Século do CinemaMateus Araújo Silva

Nas trilhas da políticaManoel Dourado Bastos

Nota sobre a formação do Cinema Novo – O caso Arraial do CaboRafael Morato Zanatto

A biblioteca de Paulo EmilioAdilson Mendes

dossiê – arquivos pessoais e institucionais

Arquivo, História e Cinema: Entrevista com François Albera

Ozualdo Candeias, o fotógrafo da Boca do LixoFábio Uchoa

Trajetórias do arquivo Pedro LimaJair Leal Piantino

O papel dos cinejornais: os documentos da Atlântida Cinematográfica e do Canal 100Rodrigo Archangelo

pauloemilianaVisita a Pedro Lima Paulo Emilio Salles Gomes

resenhaResgate do Cinema Silencioso Brasileiro – 5 DVDs, 27 filmes, 1 catálogoAdilson Mendes

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nesta edição

Jaime Redondo em intervalo das filmagens de Coisas nossas

(1931), de Wallace Downey.

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O que apresentamos aqui de maneira abreviada é parte de um trabalho mais extenso, em vias de preparação, que trata das constantes estruturais do romance brasileiro. Este texto se liga, portanto, sob aspectos essenciais, a outras partes desse trabalho e, de modo mais direto, ao estudo da conjunção de volubilidade e ideia fixa. Enquan-to partes de um mesmo trabalho, o seu eixo central é necessariamente idêntico, mas cada um deles trata de aspectos diferentes de uma só e mesma problemática da cultura brasileira. Trata-se aqui, portanto, de tentar identifi-car e interpretar mais uma estrutura ou uma figura que pertence a um conjunto complexo e sempre enigmático que, acredito, merece ser desenvolvido.

A estrutura da qual se trata aqui, eu a chamo, há bastante tempo, de o ponto de vista da morte.2 Reduzida a seu as-pecto mais elementar, ela consiste em contar uma história ou em desenvolver uma narrativa a partir da morte do próprio narrador ou, na sua ausência (como é o caso para o teatro “dramático” e, mais frequentemente, também para o cinema), trata-se de desenvolver a narração a partir da decomposição da própria consciência que fornece os dados essenciais da narrativa. O ponto de vista ao qual faço refe-rência é, portanto, o ponto de vista narrativo, propriamente dito, e o momento-chave da narração, o ponto paradoxal do

qual ele brota, é a hora da morte ou, mais precisamente, o instante mortal. São, portanto, narrativas in articulo mortis, se assim posso dizer.

Seja inteiramente desenvolvida, ou até figurada de ma-neira chamativa e, mesmo, provocadora, seja em estado ainda mais ou menos larvar ou disfarçado, essa estrutura apresenta-se com frequência bastante notável na literatura brasileira, e, mesmo, em domínios vizinhos, como o cinema e o teatro, ao longo de aproximadamente um século.

Ao menos desde as Memórias póstumas de Brás Cubas (1880), de Machado de Assis, até A hora da estrela (1977), de Clarice Lispector, passando por O Ateneu (1888), de Raul Pompeia, e Macunaíma (1928), de Mário de Andrade, entre outros, no domínio da literatura, e em Glauber Rocha e Nel-son Rodrigues, no domínio do cinema e do teatro, essa estru-tura do ponto de vista da morte – consideradas as diferenças – não cessa de se manifestar nas narrativas brasileiras.

Essa pregnância, tendo a vê-la como algo que salta aos olhos, tanto mais que ela modela algumas das obras decisi-vas da arte brasileira. Entretanto, até onde eu saiba, trata-se de uma homologia estrutural que nunca foi assinalada, enquanto tal, pela crítica.

O ponto de vista da morte

Jardel Filho em Terra em transe (1967),

de Glauber Rocha.

Uma estrutura recorrente da cultura brasileira1

José Antônio Pasta JrProfessor de Literatura Brasileira

da Universidade de São Paulo

ensaio

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É justamente sobre três obras francamente decisivas em seus respectivos domínios que me vou debruçar um pouco aqui, para tentar indicar essa estrutura e interrogar as suas determinações. Trata-se das Memórias póstumas de Brás Cubas, da peça de teatro Vestido de noiva (1943), de Nelson Rodrigues, e do filme Terra em transe (1967), de Glauber Rocha. Devo alongar-me um pouco a respeito da primeira dessas obras, limitando-me, aqui, a indicar a projeção da mesma estrutura nas duas outras.

De fato, não se trata de obras quaisquer. Cada uma delas assinala o momento de uma síntese fulgurante e, ao mesmo tempo, o ponto de uma reviravolta decisiva seja na obra do autor, seja no domínio artístico que lhe é próprio. Memórias póstumas, é sabido, representa a uma só vez uma síntese e uma ultrapassagem da obra anterior de seu autor, e mesmo do conjunto da literatura brasileira que a precedeu, e na qual inaugura, por isso mesmo, uma nova era. Em Vestido de noiva, Nelson Rodrigues eleva a sua obra e o teatro brasileiro a um nível de complexidade ou de ambição que ele não tinha conhecido antes, assinalando ao mesmo tempo o começo do teatro moderno no Brasil. Terra em transe, por sua vez, é uma obra central do cinema brasileiro, na medida em que se coloca no coração da obra de Glauber Rocha, onde ela assi-nala também uma síntese e uma guinada radical do Cinema Novo. Que as apreciemos ou não, essas obras tornaram-se inevitáveis na história da cultura brasileira.

Ora, é justamente nessas obras capitais que o ponto de vista da morte se manifestou da maneira mais desenvolvida e com mais força. De minha parte, não penso que seja por acaso. Ao contrário, tudo se passa como se, nesses artistas, em momentos decisivos, um mergulho radical nos impas-ses fundamentais da matéria histórica brasileira pedisse o recurso a um conjunto de formas-limite, no coração do qual se encontra o ponto de vista da morte. A diferença dos pe-ríodos e dos domínios artísticos a que pertencem as obras,

longe de limitá-la, na minha opinião não faz senão reforçar a pregnância desse fenômeno de reiteração das formas. A mesma coisa vale, acredito, para as diferenças políticas e subjetivas entre os autores, que, aliás, nem sempre se apreciavam muito. Tais diferenças de perspectiva não fazem senão sublinhar e tornar mais evidente a força objetiva do encontro entre a matéria histórica e a forma das obras.

Com efeito, essas três narrativas encontram na morte da consciência narrativa o seu ponto de partida. As Memórias póstumas de Brás Cubas, como assinala já o título, são memórias escritas depois da morte do narrador. Trata-se, portanto, de memórias de além-túmulo, no sentido literal da expressão, e o narrador não é um “autor defunto”, coisa banal, como ele se empenha em sublinhar, mas um “defunto autor”, coisa nova e original, conforme ele se gaba. Ao título sucede a dedicatória do livro, feita “ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver”, dedicatória disposta na página à maneira de um epitáfio. Em seguida, depois de uma sucessão de fanfarronices do narrador, ele nos conta a sua morte – isso é, a sua agonia, seu enterro e decompo-sição. Ele quer morrer “metodicamente”, como diz, e é, com efeito, de uma maneira escandida, minuciosa, que ele morre e se decompõe diante de nós: “A vida estrebuchava-me no peito, com uns ímpetos de vaga marinha, esvaía-se-me a consciência, eu descia à imobilidade física e moral, e o corpo fazia-se-me planta, e pedra, e lodo, e cousa nenhuma”.

Todo o extenso incipit do romance, constituído de oito capítulos, em geral breves, é escandido pelas circunstâncias da morte do narrador, às quais se juntam relatos de estados-limite da cons-ciência, principalmente os que se referem à mania ou à ideia fixa e aquele, extenso e célebre, que relata o seu delírio. Depois disso, ele pode nascer: de fato, ele nos conta sua vida desde o nascimento até os últimos acontecimentos, quando a morte retorna, e o círculo do romance se fecha. Pode-se dizer, então, que ele acede à condição de narrador pela morte, e, portanto,

que ele nasce morrendo ou que ele morre nascendo, fazendo assim passar uma na outra a vida e a morte. De fato, é desse limiar que ele narra, do limite entre a vida e a morte.

Para manter a ordem cronológica, Vestido de noiva (1943), a peça de Nelson Rodrigues, começa na escuridão total, quan-do então se ouvem, fortes, uma buzina de automóvel e o rumor de uma derrapagem violenta, seguida de barulho de vidro quebrando-se. A luz que volta pouco a pouco revela, em cena, o que o dramaturgo chama de “plano da alucinação”, cujas imagens são as que produz o cérebro da personagem principal, Alaíde, que acabara de ser atropelada por um carro. Trata-se, é claro, do acidente de trânsito cujo barulho se ouviu. É dessa personagem mergulhada no coma, entre a vida e a

morte, que provêm as imagens que preenchem, em cena, o plano da alucinação e o plano da memória, aos quais se acrescenta um terceiro plano – o da “realidade” –, inicialmente ocupado por repórteres e também pelos médicos que se in-clinam sobre o corpo da moribunda. As fronteiras entre esses planos, aliás, não são bem nítidas, e com frequência a aluci-nação, a memória e a realidade se misturam. A sucessão e o cruzamento das imagens dos três planos ocupam toda a peça, que termina por uma luz intensa e exclusiva sobre o túmulo de Alaíde, ao som de uma combinação “funeral e festiva”, rubrica do autor, da marcha nupcial e da marcha fúnebre.

No filme de Glauber Rocha, Terra em transe (1967), o ponto de vista narrativo se revela ser o de Paulo, poeta e militante político, que está, também ele, morrendo. Desesperado dian-te da revolução popular abortada e da subida ao poder dos poderosos retrógrados, ele lança seu carro contra a barreira instalada pela polícia, e é baleado. É de seu cérebro de agoni-zante que jorram então as imagens do filme, compostas de elementos de delírio, de memória, de volição, nem sempre fáceis de discernir. Antes tudo, aliás, imagens de amplo sobrevôo dão a ver o mesmo mar que bate na costa desde Ulisses e antes, ritmando visualmente, ao som hipnótico de um ponto de Candomblé, o transe que se avizinha. As imagens do rosto do protagonista agonizante encontram--se no começo e no fim do filme, encerrando a narração.

Fotogramas de Terra em transe.

–Jardel Filho em Terra em transe.

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contra o universalismo de pacotilha para identificar um outro, desta vez bem determinado, o da história mundial do capitalismo –, ele, que denunciou e analisou os abusos e armadilhas do narrador e revelou, como nenhum outro, a presença da mediação brasileira nas Memórias póstumas, considerou o defunto autor como uma das provocações desse narrador infame, que, na procura perpétua de uma supremacia qualquer, não poupa nada nem ninguém. De minha parte, acredito que a provocação, de fato, está lá, e que era preciso pô-la em evidência para fazer face ao universalismo factício que se associa quase secularmente à figura do defunto autor. Mas, no que me concerne, acredito que é preciso dar seguimento a essas considerações, ob-servando que não se trata apenas de uma provocação nem, principalmente, de uma simples provocação entre tantas outras. Na realidade, acredito que estamos diante de uma dessas questões propriamente elementares que, no entanto, a crítica nunca realmente se colocou: com efeito, por que Brás Cubas é um defunto autor? Não tenho a pretensão de responder de maneira completa a essa questão, mas, para melhor compreendê-la, seria preciso desdobrá-la em duas.

Primeiramente, Machado de Assis teria feito correr tanta tinta para dar lugar a uma simples provocação entre outras? O conjunto em que se encontra a parte mais importante do motivo da morte do narrador, isto é, todo o longo início do romance, não o sugere. Ele está cheio, como bem mostrou Schwarz, de gabolices, de manobras, de abusos, mas todos esses torneios arbitrários, que ditam o ritmo dessa prosa volúvel, dão também lugar à produção de uma sequência de imagens ou de figuras que se encadeiam e se articulam de

maneira sistemática, segundo uma lógica toda particular, de maneira a precipitar a constituição de um conjunto de figuras com andamento de alegoria. É assim que são expostos a morte do autor, a sua decomposição, os estados-limite da consciência, o trapézio de movimentos pendulares, a ideia fixa e o X, ou o enigma do qual ela é portadora, o emplastro Brás Cubas, a forma-mercadoria – figuras muito nítidas e muito enfáticas, que se associam na formação de uma es-pécie de pequeno sistema de imagens regido por uma lógica interna. É esse aspecto de sistema fechado, constituído por figuras encadeadas, cujo caráter enigmático desafia o leitor, que faz pensar numa configuração alegórica.

Talvez nos digam que não se pode levar a sério esse conjunto, porque Brás Cubas não é de se levar a sério. De acordo, mas o sério, em Brás Cubas, não está justamente na sua falta de seriedade? Não é o seu deslocamento perpétuo, sua labilidade, isto é, sua falta de seriedade, que confere um ritmo peculiar a esse conjunto e ao próprio romance, cuja seriedade, no entanto, é talvez a mais rigorosa das letras brasileiras? Ora, o ponto de vista da morte é parte integrante e talvez também a chave desse conjunto enigmático.

Além disso, e esta é uma segunda questão, por que Macha-do de Assis teria escolhido um início tão irrealista para um romance cujo espírito é, no entanto, o de um realismo encar-niçado, se não era para indicar uma dimensão significativa do fenômeno que ele põe em pauta?

Essas questões, aliás, nos levam naturalmente a duas outras considerações ligadas ao lugar em que se situa, no romance,

Quando das suas primeiras aparições, surgem superpostos, à maneira de epitáfio, versos do poeta Mário Faustino:

Não conseguiu firmar o nobre pacto Entre o cosmos sangrento e a alma pura. Gladiador defunto mas intacto, Quanta violência mas quanta ternura.

Essa breve exposição de alguns traços das obras em questão permite recuperar nelas, espero, apesar de todas as diferenças, elementos de uma semelhança flagrante. Não apenas as três narrativas se desenvolvem a partir da morte da consciência narrativa, como também misturam a percepção do real aos dados da consciência perturbada, des-dobrando, ao mesmo tempo, em tonalidades diversas, toda uma espécie de estética da morte: a agonia, os presságios, a fixidez, a repetição, a solenidade e a pompa, o cadáver, os vermes, os epitáfios, as alegorias, o túmulo, etc.

A mim talvez bastasse simplesmente chamar a atenção para essas analogias e propor a questão da sua natureza e alcance. Tanto mais que, como já sublinhei, não tenho co-nhecimento de que tenham sido assinaladas. Mas, longe de qualquer preocupação de originalidade, é esse fato mesmo que me intriga, e por isso gostaria de colocar uma primeira hipótese a esse respeito.

Se não estou enganado, penso que o conjunto não foi perce-bido sobretudo porque se desconsiderou, sob esse aspecto, o primeiro e talvez mais importante dos termos da série, as Memórias póstumas de Brás Cubas. Tudo indica que a pre-sença da morte nesse livro ou bem foi ignorada, ou bem não foi considerada no sentido e extensão que lhe são próprios. Entre aqueles que lhe deram alguma atenção, pode-se dis-tinguir duas atitudes principais. Uma, tradicional, leva a sério o que diz o próprio narrador, e considera sua condição de morto como o garante de sua imediata universalidade. Com efeito, haverá algo mais universal que a morte? Visto dessa maneira, na verdade insustentável, o livro assume principal-mente ares metafísicos. Desse modo, não apenas se cai na armadilha do narrador, como também – e principalmente – se apaga o Brasil, o que significa ignorar por completo a impregnação metódica, sistemática, estrutural, dos dados da matéria histórica brasileira no livro, do qual ela constitui a mediação por excelência. Será preciso lembrar mais uma vez que Brás é o Brasil?

Já na outra ponta do espectro, Roberto Schwarz (cujo tra-balho informa em boa parte estas notas)–,3 que se levantou

Paulo Autran. Foto de cena

de Terra em transe.–

José Marinho. Detalhe de fotograma de Terra em transe.

–Jardel Filho e Paulo Autran. Fotogramas de Terra em transe.

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o motivo da morte do autor. Com efeito, ele não está situado em um lugar qualquer: primeiramente, ele constitui, como foi dito acima, o incipit do livro e, enquanto tal, ele subordina toda a sequência da narrativa; em segundo lugar, ele se vincula a nada menos que à caracterização do ponto de vista narrativo, isto é, à pedra angular de toda a construção do romance.

Todavia, além das questões mais ou menos gerais que tentei colocar aqui, é sobretudo a reaparição dessa estrutura do ponto de vista da morte em outras obras capitais da cultura brasileira que, na minha opinião, a aponta com o dedo e a impõe à consideração da crítica. Salvo erro, acredito que, dan-do corpo entre nós ao ponto de vista da morte, Machado de Assis descobriu e deu forma, pela primeira vez e de maneira já completa, exaustiva mesmo, a uma estrutura simbólica profunda, engendrada no núcleo mais essencial da matéria histórica brasileira, à qual aliás toda a sua obra romanesca procura dar voz. É por essa qualidade que a vemos vir rei-teradamente à superfície, essa forma narrativa, justamente em momentos-chave, quando crises históricas decisivas entreabrem os subsolos dessa história e deixam entrever suas estruturas profundas. Se for permitida a imagem, nesses momentos esses artistas são como sismógrafos privilegiados, aptos a captar e a traduzir o que esses abalos revelam. Não foi senão muito tempo depois de escritas as obras de Machado de Assis que a historiografia, a sociologia, a psicologia social, etc., começaram a se dar conta de muito do que em seus romances já tomara forma.

Enquanto estrutura profunda da matéria histórica mesma, considerada no seu conjunto, o ponto de vista da morte cor-responde a uma forma fundamental que modela ao mesmo tempo, de maneira homológica, as três instâncias principais que performam no romance machadiano: ela corresponde à forma do sujeito individual, à forma da obra literária e à forma da história nela incorporada. Dessa maneira, essas três ins-tâncias entram em correspondência, ou em homologia es-trutural, fato que confere ao romance sua profunda unidade.

Pode-se começar a vê-lo dando seguimento a uma obser-vação fundamental de Roberto Schwarz sobre o livro. É por essa via, acredito, que se pode caminhar para a incorpora-ção dos aspectos ditos “metafísicos” da obra de Machado de Assis à sua explicação materialista. Deixados a si mesmos, esses aspectos “metafísicos”, aliás bastante encontradiços na literatura brasileira, na qual formam uma espécie nada negligenciável de metafísica esquisita das letras nacionais, tais aspectos são a porta aberta a todos os abusos críticos e a todas as formas de regressão.

Na sua célebre análise das Memórias póstumas, o crítico diz que o traço mais saliente do narrador é a sua volubilidade: ele muda sem parar; de uma página a outra e mesmo de uma linha à seguinte, ele se metamorfoseia, se desidentifica de si mesmo, tornando-se um outro. A todo momento muda de atitude, de opinião, de tom, de nível, de caráter, etc. Esse mo-vimento vertiginoso desorienta o leitor, que o narrador, desse modo, procura submeter a seus caprichos. Isso é o que se passa do lado do leitor. Mas o que se passa do lado da subje-tividade que aí está figurada, a do narrador? Para ser breve, se ele se metamorfoseia sem cessar, se todo o tempo ele se torna outro, isso significa que ele vem a ser desaparecendo, ou ainda que ele se forma suprimindo-se. Dito de outra ma-neira, se ele vem a ser cessando de ser, ele nasce pela morte. Seu momento de nascimento é ao mesmo tempo o de sua morte: como ele mesmo diz, “eu sou um defunto autor, para quem a campa foi outro berço”. Com efeito, é pela morte que ele vem a ser o que é, isto é, o narrador. Ele se constitui en-quanto tal pelo ato mesmo do seu desaparecimento. É assim que ele não pode narrar senão a partir da morte. O instante mortal é seu “ponto epistemológico” por excelência. O ritmo da labilidade é também o rictus da “contração cadavérica”, conjugando-se no romance vida e morte, animação e fastio, movimento e parada, volubilidade e ideia fixa.

Pode-se, assim, verificar que a percepção crítica da volu-bilidade de Brás Cubas não exclui a consideração de sua condição de defunto autor. Bem ao contrário, esses dois aspectos remetem um ao outro, encontram-se em relação de implicação recíproca. A fórmula que a exprime de forma mais sintética é esta: se o mesmo é o outro, o ser é o não-ser.

A esse propósito, é impossível não lembrar a célebre for-mulação de Paulo Emilio Salles Gomes, crítico e historiador central do cinema brasileiro, que, a propósito das vicissitudes da formação cultural no Brasil, disse: “A penosa construção de nós mesmos se desenvolve na dialética rarefeita entre o não-ser e ser outro”.4 No Brasil, são muitos os que admiram, a justo título, a fórmula de Paulo Emilio, na qual se vê uma espécie de oráculo nacional, mas nem sempre se quer, entretanto, tirar dela as conclusões necessárias, percebendo a mesma “dialética rarefeita” na oscilação perpétua de Brás Cubas entre o ser e o não-ser –, provavelmente sua primeira e mais fulgurante formulação.

Mas de onde provém, no Brasil, esse caráter intercambiável das ordens do mesmo e do outro? Dito de outra maneira, qual é seu alcance expressivo, quando modela as formas artísticas e, mais geralmente, as manifestações simbólicas?

Paulo Gracindo. Foto de cena

de Terra em transe.

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Se é possível ser tão breve falando de assunto tão complexo, proporia a seguinte formulação:

Como se sabe, do fato de ter conhecido a longa persistência, quatro vezes secular, da escravidão moderna – ou seja, da escravidão engendrada na periferia do sistema pela expan-são mesma do capitalismo –, o Brasil conheceu, sempre, duas formas contraditórias da concepção do sujeito: uma, mais “moderna”, concebe o indivíduo isolado, o sujeito indi-vidual, enquanto sujeito autônomo, isto é, como fundamen-talmente e por definição distinto do outro; associada a essa, uma outra forma, tributária da presença da escravidão, torna muito simplesmente inconcebível essa autonomia,

pois ela não é apta a conceber a distinção entre o mesmo e o outro. Desse fato, o mesmo se concebe simultaneamente como distinto do outro e como idêntico a ele, isto é, ele é ele mesmo, sendo o outro, ao mesmo tempo. Ora, é essa passagem constante do mesmo no outro, passagem aliás cheia de virtualidades perversas, que faz girar a roda da volubilidade de Brás Cubas, e que o precipita na estrutura da formação supressiva, pela qual ele se forma suprimin-do-se, na qual ele nasce pela morte. Dessa maneira, o ponto de vista da morte é também a forma de um processo particular e infinitamente contraditório da constituição do eu, processo profundamente enraizado no núcleo mesmo da formação histórica do país.

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1 Este texto retoma uma conferência pronunciada em 2005, na Université Sorbonne Nouvelle, de Paris. Guarda, por isso, aspectos de comunicação oral para público estrangeiro, além do andamento um pouco forçado, comum em traduções. Foi publicado originalmente sob o título de “Le point de vue de la mort (une estructure récurrente de la culture brésilienne)”, no n.14 dos Cahiers du CREPAL, Paris, Presses Sorbonne Nouvelle, em 2007. Para a presente publicação, recebeu, além, é claro, da tradução, somente pequenas modificações.

2 Alguns aspectos deste trabalho foram indevidamente publicados, no Brasil, é verdade que de maneira bastante estropiada e sem referência a sua origem, por indivíduos que não são seus autores. Compreende-se que não me sinta obrigado a citá-los.

3 SCHWARZ, Roberto. Machado de Assis. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Duas Cidades, 1990. Do mesmo autor, Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades, 1977; Duas Meninas. São Paulo: Cia. das Letras, 1997.

4 GOMES, Paulo Emilio Salles. Cinema: trajetória no subdesenvolvi-mento. São Paulo: Paz e Terra, 1996. p. 90.

Se se observa esse mesmo fenômeno sob o ângulo da forma literária, o da constituição formal do romance, vê-se o ponto de vista da morte tomar ainda um outro sentido: visto que o narrador se forma desaparecendo, ele deve, a rigor, narrar a sua história de um ponto de vista que não se constituiu. Esse é bem o paradoxo constitutivo dessa forma do romance: ele deve, evidentemente, ser narrado, mas de um ponto de vista que não existe. Como ele dá “solução” a esse paradoxo? Ele se irá desdo-brar desde um ponto de vista que se forma pela sua supressão, portanto, do ponto de vista da morte. Dessa maneira, as Memó-rias póstumas são a formalização de um impasse fundamental do romance brasileiro: o de produzir romances a partir de uma matéria histórica hostil às exigências dessa forma literária. É sabido que o fundamento prático mais geral da forma-romance é, justamente, o indivíduo moderno, ou seja, o indivíduo isolado e o sujeito autônomo. No Brasil, em virtude da escravidão moderna, o sujeito constitutivo do romance era, a uma só vez, exigido, digamos, por nossa “atualidade”, e interdito pelo nosso atraso constitutivo e reiterado; é isso também o ponto de vista da morte: a figuração do ponto de vista impossível. Como se sabe, a morte concentra todos os tópicos do inexprimível, a começar pelo fato de que se pode narrar tudo, exceto a própria morte. É justamente aí que começa Brás Cubas – pelo tour de force de realizar o impossível, ao contar a sua morte. Machado de Assis estava então em pleno processo de reconhecimento dos paradoxos da forma-romance no Brasil, e não é por acaso que, na apresentação do livro, ele diz que as Memórias póstu-mas são bem um romance e, ao mesmo tempo, não o são.

E a que concepções do tempo, e mesmo da história, se dirigem essas formações paradoxais do sujeito e da forma?

Com certeza, a uma história que, por sua vez, é propriamen-te histórica e que, no entanto, não o é inteiramente. Para dizê--lo sucintamente: Brás Cubas vive e morre, o que significa que ele conhece a distinção entre os tempos, isto é, entre o passado e o presente. Mas, como ele nasce morrendo, ou seja, como não morre para valer, ao mesmo tempo ele não conhece essa distinção dos tempos: ele está dentro do tempo e, igualmente, fora dele, mergulhado numa espécie de eternidade degradada ou de má infinidade.

Reencontra-se aí, de maneira flagrante, uma transposição narrativa do ritmo peculiar da formação do Brasil, que sob aspectos essenciais se desenvolve como uma história paradoxal, que ao mesmo tempo conhece e não conhece a distinção entre o tempo passado e o tempo presente. Como se sabe, no que se chamou de modernização conservadora, um período é diferente do período que o precedeu, sendo entretanto “a mesma coisa”. Aí também, na história, as or-dens do mesmo e do outro se acham perturbadas. A análise dessa perturbação tomará corpo, aliás, de maneira sistemá-tica, nos romances que Machado de Assis escreverá depois de Memórias póstumas. O momento mais explícito dessa figuração será, sem dúvida, Esaú e Jacó. Nesses romances, a dimensão temporal se apresenta, ao mesmo tempo sob a forma da história, no sentido forte do termo, e sob a forma de uma espécie de eterno retorno do mesmo, que se asse-melha antes à recorrência própria da ordem do mito.

Na peça Vestido de noiva, essa mesma percepção do sujeito, da forma e, de maneira mais mediatizada, da história do país, assume também as formas de uma perturbação

sistemática das ordens do mesmo e do outro. Alaíde é ela mesma e a projeção do seu desejo recalcado de belle du jour, isso é, de Mme. Clessi; a “mulher de véu” é tanto sua irmã quanto rival; seu marido se multiplica, durante a peça, numa miríade de duplos: uma tal proliferação de formas em perpétuo desdobramento não poderia ser formalmente aco-lhida senão pelo ponto de vista “onicompreensivo” da morte, que preside a representação. Ao longo da obra de Nelson Rodrigues, esse mesmo motivo da morta ou da moribunda que fala se reproduzirá na peça Valsa no 6. De todo modo, a oscilação entre história e mito, tempo literário e eterno retor-no, se imporá como a forma por excelência de seu teatro.

Evidentemente, não posso estender-me muito, mas devo acrescentar ainda que Terra em transe é a formalização paradoxal – ao mesmo tempo sistemática e frenética – do mo-mento da modernização conservadora mais decisivo do Século XX no Brasil: o momento em que todas as esperanças, aliás ilusórias, de modernização do país foram substituídas pela violenta subida ao poder das suas forças mais retrógradas. Mas a constatação mais central do filme é talvez a da identidade fundamental das partes em confronto: Paulo, o poeta, o porta-dor das esperanças da revolução, em sua retórica, suas ideias fixas, sua volubilidade, sua demanda de absoluto, revela-se o duplo de seu adversário por excelência, Diaz, que será o ditador. Aí, de novo, o outro é o mesmo, e nenhuma transformação verdadeira pode produzir-se a partir de tal interversão. Esta não pode dar lugar senão à oscilação interminável e hipnótica entre os dois polos, ou a essa passagem perturbadora do mesmo ao outro que é o transe, forma aparentada à morte. A terra em transe é também a terra prometida do ponto de vista da morte.

Notas

Glauce Rocha e Jardel Filho. Fotogramas

de Terra em Transe.

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Jean Renoir e Glauber Rocha, Montreal, 1967.

Até bem pouco tempo atrás, os leitores francófonos não conheciam, da vasta obra escrita de Glauber Rocha, mais do que uma trintena de artigos traduzidos, ao longo dos anos, em revistas de cinema (Cahiers du Cinéma, Positif, Cinéma, Trafic), em livros consagrados ao cineasta, a 13 anos de intervalo, por René Gardies (Glauber Rocha, Seghers, 1974) e Sylvie Pierre (Glauber Rocha, Cahiers du Cinéma, 1987) e, mais recentemente, num livro que Dominique Bax, Cyril Béghin e eu mesmo organizamos (Glauber Rocha / Nelson Rodrigues, Coleção Théâtres au Cinéma, Tomo 16, Bobigny, Magic Cinéma, 2005, 215p.) por ocasião de uma retrospec-tiva integral de Glauber, em março de 2005, no 16o festival anual “Teatros no Cinema”, dirigido por Dominique no Magic Cinéma de Bobigny, na periferia de Paris. Por mais represen-tativa que fosse, tal amostragem não chegava a dar a justa medida da envergadura do Glauber escritor e da exube-rante produção textual e crítica que sempre acompanhou e alimentou seu trabalho de cineasta. Foi assim que, numa ousada iniciativa editorial da mesma Dominique Bax, secun-dada pelas editoras Yellow Now na Bélgica e Cosac Naify no Brasil, e graças à cumplicidade fraterna de Ismail Xavier (que nos cedeu seu notável prefácio e conseguiu junto a Augusto Massi a parceria preciosa da Cosac), eu e Cyril estabelece-mos a primeira edição francesa integral de um livro de Glau-ber. Seguindo nisto um desejo do próprio cineasta, escolhe-

mos O Século do Cinema, que nos parecia o mais pertinente para o leitor cinéfilo francês, por abordar em suas páginas o cinema mundial. O texto que se lerá aqui, ainda inédito em português, refunde com ligeiros retoques nossa apresenta-ção inicial daquele volume e nosso posfácio mais específico sobre três dimensões do pensamento de Glauber que coexistem no livro: a crítica, a histórica e a teórica.1 Evitando modificar muito os textos aqui refundidos (a maior mudança consistiu em deslocar para o fim uma breve indicação sobre os princípios que nortearam nossa tradução), oferecemos assim ao leitor brasileiro um documento de primeira mão sobre a recepção recente de Glauber na França.

Glauber escritor

Escritor precoce e prolífico, Glauber (1939-1981) nunca deixou de escrever – e de publicar seus textos –, no Brasil e no exterior, desde os 16 anos (sua primeira publicação sobre o cinema remonta a 1955) até a sua morte, que o colheu cedo demais, aos 42 anos. Teatro, literatura, jornalismo, roteiros de filmes, críticas cinematográficas, romances, manifes-tos, entrevistas, artigos sobre a política conviviam em sua atividade de escritor bulímico e multiforme, que privilegiava o cinema sem a ele se restringir. Ao mesmo tempo em que intervinha ativamente no debate público (na imprensa

Glauber crítico: notas sobre O Século do Cinema

ensaio

A Cyril Béghin

Mateus Araújo SIlvaDoutor em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais

e pela Universidade de Paris I

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escrita, nos festivais de cinema, na televisão), Glauber deixou também uma massa imponente de inéditos, dos quais os arquivos da Associação Tempo Glauber no Rio de Janeiro vinha garantindo até recentemente a conservação, e cuja publicação virá um dia completar seu retrato já complexo. Ao adquirir em 2011 estes arquivos, a Cinemateca Brasileira permite esperar que eles suscitem um novo ciclo de pesqui-sas e publicações em torno do nosso cineasta maior.

Ultrapassando portanto os limites do cinema, sua obra publi-cada compreende hoje centenas de artigos e de entrevistas dispersos em toda parte,2 e nove livros: três volumes com roteiros e materiais diretamente ligados aos seus filmes,3 o romance Riverão Sussuarana (Rio, Record, 1977), uma peque-na coletânea póstuma de Poemas Eskolhydos (Rio, Alhambra, 1989), um grosso volume também póstumo de suas Cartas ao Mundo, selecionadas e organizadas por Ivana Bentes (São Paulo, Companhia das Letras, 1997) e seus três livros fundamentais que reúnem, retrabalham e completam seus principais ensaios e artigos sobre o cinema: Revisão crítica do Cinema brasileiro (Rio, Civilização Brasileira, 1963), Revolução do cinema novo (Rio, Alhambra / Embrafilme, 1981) e O Século do Cinema (Rio, Alhambra / Embrafilme, 1983).4

Estes três últimos livros da lista acima constituem hoje os pilares fundamentais sobre os quais repousa o essencial de sua contribuição crítico-teórica ao debate cinematográfico brasileiro e mundial. Cada um dos três exprime a seu modo a curva de um pensamento original e exigente do cinema. Revisão crítica a intercepta nos seus inícios, Revolução e O Século a acompanham em sua evolução ao longo de três décadas. Naturalmente, este pensamento constituído nos textos de Glauber ganha ao ser confrontado a seus filmes, com os quais mantém laços estreitos, mas isto não lhe retira sua relativa autonomia, nem nos desobriga de examiná-lo por si mesmo como uma outra contribuição específica de Glauber ao primeiro século do cinema.

Livro de juventude finalizado pouco antes da produção de Deus e o Diabo na terra do sol (1963-64), Revisão crítica pro-punha em oito capítulos veementes um balanço polêmico da história do cinema brasileiro, de Humberto Mauro às origens (Nelson Pereira dos Santos) e inícios do Cinema Novo (Paulo César Saraceni, Ruy Guerra, Joaquim Pedro de Andrade), que estava nascendo. Ele procurava sobretudo reorganizar a tradição do cinema brasileiro na perspectiva de um cinema de autor, de modo que o movimento plural do Cinema Novo pudesse ganhar todo o seu sentido e aparecer, numa clara teleologia, como seu coroamento, ganhando assim, de cara,

uma legitimação cultural de que dependeria sua eficácia e sua sobrevivência enquanto movimento estético. Dialogando abertamente com a “política dos autores” francesa, da qual oferecia uma versão singular e mais politizada, e tomando partido num debate brasileiro então efervescente, o livro sintetizava também todo um programa do jovem Glauber para o cinema brasileiro por vir.

Na outra ponta do trajeto de Glauber, Revolução do Cinema Novo foi lançado pouco antes de sua morte. Neste volume imponente de quase 500 páginas carregadas, o cineasta recolhia uns cinquenta de seus principais textos (artigos, entrevistas, manifestos, dentre os quais os célebres e essen-ciais “Estética da fome” e “Estética do sonho”) publicados no Brasil e no mundo. Ele acrescentava ainda cerca de 80 ou-tros, inéditos, na maioria escritos de um jato, especialmente para o volume, e tratando das personalidades principais do Cinema Novo ou, mais geralmente, do cinema e da cultura brasileiros dos anos 1960-1970. O sumário dispunha estes quase 130 textos bastante heterogêneos em ordem cronoló-gica de sua redação, dando corpo a uma estrutura singular, uma espécie de história do Cinema Novo sob a forma de um diário de bordo, prismático e centrífugo, de seu cineasta maior. Se Revisão crítica tentava em 1963 preparar o terreno para o surgimento do Cinema Novo por meio de uma história interna do cinema brasileiro, Revolução, entre outras coisas, sugeria em 1981, com o recuo permitido pelo declínio do movimento (que ele qualificava, em jargão althusseriano, de “corte epistemológico nos cinemas civilizados e coloniza-dores”),5 um inventário exuberante de seu aporte ao cinema mundial do pós-guerra.

Esta passagem de uma história interna do cinema brasileiro a uma história mundial do cinema do ponto de vista de um cineasta brasileiro, que se esboça e se insinua entre as linhas de Revolução, se completa no Século do Cinema. Este livro vem acrescentar um elo essencial ao pensamento de Glau-ber sobre o cinema: ele fecha cronologicamente e post-mor-tem o conjunto das publicações que o cineasta pôde preparar e levar a cabo dos 16 aos 42 anos, mas sobretudo opera uma articulação lógica fundamental de sua intervenção no debate mundial, sem a qual seu projeto não ganharia todo o seu alcance: para Glauber, a condição de cineasta de um país na periferia do capitalismo lhe proporcionava um ponto de vista diferenciado e original sobre a história do cinema mundial.

Guardadas as diferenças, a operação do pensador aqui não deixa de duplicar a inversão operada concretamente pelo cineasta em seus filmes e tematizada em sua “estética da

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Documento datilografado com

anotações manuscritas de Glauber Rocha para o artigo Pasolini, do livro O Século do Cinema.

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fome”: assim como a carência de meios permitia ao cineas-ta do terceiro mundo escapar das pretensões normativas da técnica made in Hollywood para redefinir em bases novas e mais livres as relações entre técnica, estilo e expressão (transformando assim a fraqueza econômica em força expressiva), o crítico que observa à distância o cinema dos países desenvolvidos talvez esteja melhor situado para escapar ao círculo de giz da pura cinefilia e para dimensio-nar os desafios do cinema em suas relações com a História, com o Século, com a crise do Ocidente. A ausência de uma tradição solidamente enraizada de produção e discussão dos filmes no Brasil, país cuja própria formação histórica permanecia problemática, forçava o crítico a inventar seu ponto de vista e a buscar por conta própria as articulações entre o cinema e as outras esferas da vida social, escapan-do assim dos hábitos mentais da instituição cinematográ-fica nos países em que ela já se consolidara. E foi precisa-mente desta renovação das articulações entre os discursos políticos e estéticos na crítica dos filmes, dos cineastas ou dos gêneros, que veio a originalidade de Glauber em relação, por exemplo, a seus homólogos franceses (Rivette, Rohmer, Truffaut, e até mesmo Godard).

O Século do Cinema, gênese e estrutura

Traduzido em francês quase um quarto de século depois de sua publicação póstuma no Brasil, O Século do Cinema recolhe um conjunto substancial de 73 textos sobre o cinema americano e europeu, escritos por Glauber de 1957 a 1981, enriquecido por uma entrevista concedida por ele no ano de sua morte. Este conjunto não recobre a totalidade do que ele havia publicado sobre o assunto (sem falar dos inéditos que teriam podido completar o dossiê), mas constitui uma seleção de peso, preparada por ele mesmo, que chegou a escolher os textos, a refundir ou cortar alguns e a esboçar um sumário dividido em três grandes seções: “Hollywood” (41 textos), “Neo-realismo” (24 textos), “Nouvelle vague” (8 textos mais a entrevista).

Não conhecemos bem a gênese desta primeira edição póstuma. Em suas cartas publicadas, Glauber fala desde 1976 dos livros de cinema que estava preparando e propondo a editores, mas as primeiras referências precisas ao projeto do Século só aparecem em dezembro de 1980, quando volta mais seriamente ao assunto com Carlos Augusto Calil, então diretor da Cinemateca Brasileira, a quem ele enviara um primeiro conjunto de textos que deveriam figurar no livro, esperando fixar definitivamente seu sumário e sua estrutu-ra para arrematá-lo até o fim de 1981.6 Dois anos depois da

morte do cineasta, em 22 de agosto de 1981, o livro acabou sendo lançado, a partir de suas indicações iniciais, mas sem sua supervisão e sem o prefácio que ele teria feito. Resta saber se o conjunto dos textos incluídos e o sumário adotado correspondem exatamente ao que Glauber previu, se suas indicações de 1980-1981 desciam aos detalhes da seleção e da disposição dos textos na ordem que eles acabaram ganhan-do no livro pronto, e se o autor chegou a seguir, de perto ou de longe, as etapas preliminares do trabalho propriamente editorial do volume.

A elucidação destas questões nos ajudaria a dissipar algu-mas estranhezas da primeira edição de 1983:7 Um desenho de Glauber usado na capa sugeria um subtítulo tripartite para o volume: “Hollywood, Europa, terceiro mundo”, que nos fazia esperar uma estrutura igualmente tripartite das suas matérias. A tripartição se confirmou, mas no sumário do vo-lume publicado nenhuma das suas três partes correspondia mais à rubrica “Terceiro mundo”, aquela intitulada “Europa” se dividindo agora em duas, “Neo-realismo” e “Nouvelle Vague”. A distribuição das matérias apresentava também algumas desordens entre as partes e mesmo no interior de cada uma, e seu critério aparente nem sempre era seguido à risca. Um texto sobre Pasolini (“Paso Sado Maso Salo”) e um outro sobre Eisenstein (“É preciso voltar a Eisenstein”), por exemplo, aparecem deslocados longe de seus homó-logos. Os textos sobre René Clair e Jean Renoir pareciam perdidos na seção “Neo-realismo”, em vez de integrarem a constelação francesa dos cineastas agrupados sob a rubrica “Nouvelle Vague”. Esta, em compensação, incluía, depois da palavra “FYM”, impressa no fim do artigo sobre Pasolini já deslocado, uma entrevista de Glauber sobre assuntos varia-dos, espécie de coda, claramente distinta do resto do volume, mas não no sumário, que a colocava na seção “Nouvelle Vague”. Na nossa edição francesa, suprimimos a entrevista (já traduzida em francês por Sylvie Pierre em seu Glauber Rocha, op. cit., p.183-93)8 e recolocamos os textos citados acima sobre Pasolini, Eisenstein, Clair e Renoir naquele que nos parecia ser seu lugar natural no sumário, esperando assim consolidar a coerência geral do volume.

Ao longo, portanto, de seus quase 80 textos escritos entre 1957 e 1981, este livro desenha a curva de um verdadeiro pensamento do cinema. Tal pensamento se constituiu no exercício da crítica de filmes na segunda metade dos anos 1950; nos anos 1960, ele adotou uma forma mais madura, tendendo ao ensaio e enriquecido pela atividade de cineasta de Glauber, da qual foi coextensiva. Ele desembocou, parti-cularmente a partir dos anos 1970, em textos muito livres e

pessoais na forma e no tom, nos quais uma visão aguda e exigente do cinema ia de par com um afastamento definitivo das amarras da cinefilia para dar corpo a uma reflexão ampla sobre a História e a civilização, informada pelo cinema mas ultrapassando seus limites. Estes três momentos ou maneiras de sua escrita crítica se distribuem de modo desigual pelas três partes do livro.

Na seção “Hollywood” predominam os artigos curtos pu-blicados em jornais, sobretudo baianos, nos anos 1950 por um Glauber então jovem crítico e ainda não cineasta. Dos 40 textos que a compõem, Glauber publicou 31 entre 1956 e 1961, antes mesmo de estrear em longa-metragem. Quator-ze eram resenhas (oito favoráveis, cinco desfavoráveis) de filmes medianos do cinema industrial americano dos anos 50 (com duas ou três exceções), lançados na época em Sal-vador. Onze eram retratos críticos de cineastas que Glauber admirava (Chaplin, Stroheim, Wyler, Huston e Kubrick, entre outros), e oito ainda tratavam de gêneros, subgêneros ou te-mas do cinema industrial (o Western, o filme policial, o filme de suspense ou de violência juvenil). Neste momento de sua atividade crítica, Glauber não comentava necessariamente filmes e assuntos que lhe eram caros, mas cobria os lan-çamentos para o público, sobretudo de Salvador, adaptando sua intervenção à dinâmica do mercado local e introduzindo em seu tom e seu estilo elementos dissonantes que deviam transtornar um pouco os hábitos mentais dos leitores. Seis outros textos, escritos e publicados (ou não) entre 1968 e 1973, em revistas semanais ou mensais do Rio ou de São Paulo, tratavam de cineastas ou de filmes que o autor já consagrado de Deus e o Diabo e de Terra em transe deve ter escolhido espontaneamente por ocasião de festivais ou de estadas no exterior: quatro retratos de cineastas encontra-dos em Montreal, Nova York ou Paris (Lang, Ford, Kazan e um certo Timothy Anger), dois elogios curtos de Easy rider, revisto em Paris. Sentimos neles uma simpatia de Glauber para com a agitação contracultural, à qual ele parece aderir, associando a disponibilidade existencial a um ponto de vista político sobre os debates da época (Guerra do Vietnã, movi-mento hippie, etc.). Em dois outros textos de 1978 e 1980 (aos quais poderíamos talvez acrescentar aquele sobre Welles), publicados em grandes jornais, Glauber retoma a discussão de questões políticas a propósito da obra de Griffith e de Apocalypse now de Coppola. Conjugando a análise estética e a abordagem política, Glauber discute (com serenidade e ponderação) a História dos Estados Unidos em Griffith e (num tom polêmico) a Guerra do Vietnã em Coppola. Estes textos constituem assim uma espécie de acerto de contas de Glauber com o cinema americano.

Anotações manuscritas de Glauber Rocha para a confecção de artigos

incluídos no livro O Século do Cinema.

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também como o relato de um encontro, quando das filma-gens do longa de Godard e Gorin em 1969). Uma evocação muito admirativa de Jean Renoir e um ensaio de fundo de 1967 sobre a obra de Godard completam este conjunto um pouco desequilibrado entre uma metade tratando de cineas-tas que contaram pouco para Glauber (Clair, Dassin, Vadim, Truffaut e mesmo Renoir) e a outra discutindo o trabalho de Godard, um dos dois ou três que mais contou para ele. Muito diversos na forma e no estilo, os quatro textos de Glauber sobre Godard são todos representativos de sua admiração e de seu interesse pela obra e pela figura do autor de Pierrot le fou. Em todo caso, a magreza desta seção e o relativo deslei-xo com o qual Glauber a intitula e alinha seus objetos, sem se preocupar com as distinções internas nem com possíveis acréscimos – mesmo o de textos que ele já havia publicado antes –,9 sem falar de seu gesto de cortar drasticamente dois de seus melhores textos sobre Godard (“Alphaville” e “Você gosta de Jean-Luc Godard?”), tudo isso parece confirmar suas notórias reservas em relação à Nouvelle Vague.

Assim organizado, e apesar dos eventuais desequilíbrios e inacabamentos, O Século do Cinema segue sendo o livro mais rico sobre as relações complexas de Glauber com o cinema mundial. A ausência de outros vinte ou trinta textos que poderiam completar um pouco seu panorama10 não o impede de dizer muito sobre os gostos, o panteão e os métodos críticos de Glauber. Entre outras coisas, vemos nesse livro sua maneira singular e enviesada de se filiar à “política dos autores” de seus colegas franceses mais velhos (conjugando uma noção bem mais radical da política com um uso porém menos audacioso da noção de autor, que ele reserva a cineastas já consagrados).11 Vemos também sua predileção por um cinema moderno de autor, na sua versão do pós-guerra, em cujo seio sentimos claramente o privi-légio que ele concede ao cinema italiano em detrimento do francês. Vemos enfim, no seu modo de pensar os destinos do século XX ao refletir sobre o destino do cinema (anteci-pando assim sob certos aspectos a empreitada de Godard nas suas História(s) do Cinema), as tensões que atravessam seu pensamento cinematográfico, dividido entre a cultura ci-nefílica e uma certa ideia de crise da civilização: “a civilização está morta e o cinema não pode salvá-la!”(p.252).

Três faces do Século do Cinema: crítica, história e teoria

Embora profusa, a obra crítica de Glauber foi, no Brasil como em toda parte, bem menos comentada do que seus filmes. Dada a envergadura do cineasta, a atenção a estes últimos é

mais do que justificada. Mas ainda resta um longo caminho para dimensionarmos a força de seu pensamento crítico, que não é menos importante.12

Uma primeira dificuldade diante deste pensamento decorre da aparente heterogeneidade dos textos nos quais ele se exprime. Os que compõem O Século do Cinema, por exemplo, parecem adotar estilos e estratégias argumentativas tão variados quanto seus propósitos e seus destinatários visados. O leitor que acaba de atravessar sua selva selvagem tem a impressão de ter encontrado em seu caminho um pouco de tudo: de notas curtas ou resenhas jornalísticas até os ensaios densos e meditados, passando pelo poema, a prosa poética, a diatribe implacável, a evocação admirativa na primeira pessoa ou mesmo o relato protoficcional à la Borges. Esta diversi-dade não nos impede porém – se é que ela não nos obriga – de procurar constantes e de explorar as linhas de força que percorrem todo o conjunto. Examinando-os de perto, vemos que os textos adotam quatro formas ou modalidades principais: trinta e três textos se apresentam sob a forma de críticas de filmes particulares, trinta e um como ensaios de fundo ou visões de conjunto sobre a obra de certos cineastas, quatorze como ensaios sobre gêneros, subgêneros, temas ou movimentos cinematográficos e doze como relatos de encon-tros ou evocações de cineastas. Estas modalidades podem se conjugar em certos textos. Em todo caso, se a abordagem crítica parece predominar ao longo do livro, ela coexiste com uma abordagem histórica, e as duas não excluem uma visada propriamente teórica que se insinua vez por outra. Caracteri-zemos estas três dimensões – crítica, histórica e teórica – do pensamento de Glauber, tais como aparecem no Século.

Quando, na segunda metade dos anos 1950, o jovem Glauber consagra artigos a filmes particulares, os que ele escolhe resenhar formam um conjunto que não nos parece, hoje, es-pecialmente rico. Os filmes americanos ou franceses daquela década que ele estava discutindo não tinham nada de excep-cional ou de “estratégico”, com a única exceção de Rastros de ódio (1956), de John Ford, que força a admiração do jovem crítico e o obriga a reconsiderar seus juízos sobre o que lhe parecia um declínio daquele cineasta. A discussão dos filmes dos anos 1950 lhe permite formular claramente suas críticas a certos aspectos do capitalismo e do cinema americano – fetichismo da técnica, mercantilismo de Hollywood e de sua Indústria do Sonho, que “se identificou com a opressão capitalista” e “esterilizou” o público, como ele dirá num texto posterior (cf. p.250). Na época, sua abordagem combinava a cinefilia com preocupações políticas já presentes (sua atenção à História e seu léxico protomarxista, por exemplo,

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Fritz Lang e Glauber Rocha, Montreal, 1968.

A seção “Neo-realismo”, espinha dorsal do volume e seu núcleo mais interessante, se compõe de 24 textos sensivel-mente diferentes daqueles que predominam em “Hollywood”: quase duas vezes mais longos na média, mais livres na forma, mais originais em seus argumentos e perspicazes em seus juízos, voltados para um auditório mais largo (frequen-temente internacional), estes textos saíram por vezes em jornais, mas também em revistas e livros de cinema. Eles foram escritos e publicados por Glauber com regularidade e constância, de 1959 a 1981, cobrindo quase todo o período de sua atividade de crítico e coexistindo com a de cineasta. Glauber deve ter escolhido livremente seus objetos, e a voz que ouvimos neles é basicamente a de um cineasta já consagrado, que se pronuncia com segurança e familiarida-de sobre seus companheiros do cinema moderno. Os textos aqui reunidos discutem um grupo seleto de uma dezena de grandes cineastas europeus com os quais Glauber manteve relações marcantes: de influência (Eisenstein, Buñuel), de admiração na diferença (Rossellini, Visconti, Antonioni), de convergência (Pasolini, Bertolucci), de irritação transformada em entusiasmo (Fellini) ou não (Bergman). Dezesseis textos se apresentam como visões de conjunto sobre a obra de Ei-senstein, Buñuel, Rossellini, Visconti, Antonioni, Fellini, Paso-

lini e Bertolucci; cinco textos são críticas de filmes (Rocco de Visconti, O eclipse de Antonioni, Gritos e sussurros e Cenas de um casamento de Bergman); seis textos nos oferecem evoca-ções ou relatos de encontros com cineastas (Buñuel, Visconti, Fellini, Pasolini, Bertolucci e Marco Bellocchio). Designada num sentido largo e algo impreciso pelo título “Neo-realis-mo”, mas apresentando a estrutura mais bem equilibrada e algumas das discussões estéticas e políticas mais densas do volume, esta seção atesta também um privilégio evidente do cinema italiano moderno no panteão de Glauber.

A seção “Nouvelle Vague”, a menos desenvolvida e cuida-da do volume (por decisão de Glauber ou por vicissitudes editoriais?), traz nove textos escritos entre 1958 e 1972. É a única que não foi aumentada com textos tardios de Glauber sobre o universo em questão. Os textos vão de 1958 a 1972, mas foram escritos sobretudo nos anos 1960, com três exce-ções: duas resenhas de filmes de Clair e Dassin publicadas em 1958, uma nota brevíssima sobre Tout va bien de Godard escrita em 1972. Há ainda duas outras resenhas de filmes de Vadim e de Truffaut (esta última, desfavorável, sobre La peau douce), e duas críticas mais desenvolvidas sobre Alphaville e Vento do Leste de Godard (esta segunda se apresentando

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começam a aparecer, ainda que de modo balbuciante). Os filmes dos anos 60 e 70 que ele aborda já são, esteticamente falando, mais consistentes (Rocco de Visconti, O eclipse de Antonioni, La peau douce de Truffaut, Alphaville, Vento do Leste e Tout va bien de Godard, Easy rider de Dennis Hopper, Gritos e sussurros e Cenas de um casamento de Bergman, Apocalypse now de Coppola), permitindo-lhe aprofundar questões estéti-cas e temas políticos que lhe interessavam, como a alienação do homem contemporâneo, a crise da civilização ocidental burguesa e o neo-colonialismo, entre outros.

Por outro lado, quando Glauber consagra ensaios de con-junto a cineastas americanos ou europeus que ele admira (e ele o faz regularmente dos anos 1950 até a sua morte, em 1981), suas escolhas e seus textos se tornam muito mais interessantes: Griffith, Chaplin, Eisenstein, Buñuel, Welles, Rossellini, Kazan, Visconti, Kubrick, Antonioni, Fellini, Godard, Pasolini e Bertolucci, entre outros, são objetos de discussões estéticas e ideológicas penetrantes. É nesta vertente de sua produção textual que podemos encontrar sua contribuição mais sólida à crítica de cinema. Nos textos mais felizes deste grupo, encontramos sempre uma discussão fina da obra des-tes cineastas: a atenção dada a seus filmes, amiúde comen-tados cronologicamente, não impede o crítico de enriquecer sua argumentação com vários parênteses (ora límpidos, ora elípticos) trazendo questões conceituais, genealogias de cineastas, considerações sobre a história do cinema–13 ou mesmo a história tout court, como veremos. Ancorada no exame propriamente estético das obras, a argumentação de Glauber (atravessada pelo marxismo e por vezes tingida de psicanálise) as relaciona sempre com domínios mais vastos da experiência, sejam eles a política, a história, as outras artes ou o pensamento filosófico. A esta argumentação múltipla, variada – e frequentemente brusca –, correspondem juízos peremptórios e violentos. Glauber não poupa comparações hierárquicas nem superlativos, dos quais seu livro apresenta um verdadeiro festival:

Orson Welles é o mais fílmico dos cineastas depois de Eisenstein, e “se Eisenstein foi o maior intérprete da revo-lução soviética e das transformações radicais trazidas pelo socialismo, OW é o maior intérprete da tragédia imperialista” (p.50); John Ford “é o maior criador desta fase [do cinema clássico americano]” (p.123); Studs Lonigan (Irving Lerner, 1960) é o “o maior filme americano, a obra que ultrapassou Orson Welles e Stanley Kubrick e que se integra ao lado de Hiroshima mon amour, de Alain Resnais” (p.133); Jean Renoir é “o maior cineasta francês da velha geração” (p.198); Visconti é o “maior cineasta vivo do Ocidente” (p.223); o cinema

italiano “é a maior indústria cinematográfica da Europa e concorrente de Hollywood porque dispõe dos melhores cine-astas do mundo” (p.242); Fellini é um dos maiores gênios do cinema, o maior segundo Buñuel e Pasolini (cf. p.255 e 268), ele é “o maior Pintor Móvel do Século, um dos maiores da história da humanidade” (p.274), além de ser “o maior fenô-meno da Imaginação Viva” (Ibid.). “Pasolini considera Godard e Bertolucci os maiores cineastas do mundo. Ele porém, sem querer dizê-lo, forma com o franco-alemão Jean-Marie Straub, autor do filme Não reconciliados […], outra dupla que completa o quarteto dos grandes de hoje” (p.281); Godard é “o maior cineasta depois de Eisenstein” (p.317) e aquele “que mais influencia o cinema socialista de hoje” (p.313).

A partir do fim dos anos 1960, algum tempo depois dos iní-cios de sua frequentação dos gigantes do cinema mundial, por ocasião dos festivais internacionais que o consagraram como o autor de Barravento e, depois, de Deus e o Diabo, evo-cações e testemunhos de encontros com grandes cineastas (Lang, Ford, Kazan, Buñuel, Pasolini, Straub, Godard, Vis-conti, Bertolucci) aparecem sob sua pluma e completam o conjunto de suas contribuições críticas. Este grupo de textos permite a Glauber constituir um debate interno à comunida-de de criadores – da qual fazia parte, e da qual constrói ou fixa uma imagem que o inclui. A cada retrato de cineasta (ou entrevista) que Glauber propõe, ele encena um espaço co-mum, de relativa intimidade, no qual fala de igual para igual com seu interlocutor, o efeito de acumulação dos encontros lhe permitindo aparecer também como um protagonista do cinema mundial. Na verdade, os seus são sempre retratos de família, dele ao lado do outro cineasta. Observemos, a esse respeito, as fotos que ilustram a reedição do Século (de Glauber com Renoir, Lang, Buñuel, Rossellini) e pensemos também no uso constante por Glauber – com efeitos estilís-ticos por vezes intensos – dos prenomes dos cineastas: Dom Luis (Buñuel), Roberto (Rossellini), Michelangelo (Antonioni), Pier Paolo ou “Pasô” (Pasolini), Jean-Luc (Godard), Luchino (Visconti), Bernardo ou “Bernô” (Bertolucci), Francis (Coppo-la). Seria redutor ver nisso um mero sinal de cabotinismo, trata-se mais de um desejo espontâneo de pôr em cena sua subjetividade e seus afetos sem se preocupar com as convenções, e talvez também de um uso tático da imagem como fator de legitimação cultural de uma palavra liberada.

O melhor da crítica em Glauber começa portanto com uma escolha rigorosa dos objetos, passa por uma argumentação rica e desemboca em juízos veementes. Mas ela comporta também uma gama variada de estilos e registros. Alguns textos abordam seus objetos de um ponto de vista exterior e

Esboços dos artigos O barroco viscontiano e Tudo bem, ambos

incluídos em O século do cinema.

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analítico, ao modo do comentário; outros escolhem questões precisas em função das quais certos filmes são invocados e discutidos (a dramaturgia fílmica em “Dramaturgia fílmica: Visconti”; o zoom em “Esplendor de um Deus”); outros beiram a diatribe (“Elia Kazan”, “Apocoppolakalypse” sobre Coppola, “O Cristo-Édipo” sobre Pasolini, “Gritos e Sussurros” sobre Bergman); outros propõem panoramas informativos mais ou menos largos (“Pregação da violência”, “Delinquência juvenil”, “Do novo western”, “O novo cinema no mundo”, “Neo-realismo: inspiração falida” e “Concluindo sobre neo-realismo”); outros nos oferecem um testemunho de admiração tingido de afei-ção (“O cacique da Irlanda” sobre Ford, “El” sobre Buñuel, “Ma-estro Visconti”, “Jean Renoir”). Outros, enfim, particularmente criativos, procuram dialogar, em sua própria forma, com os objetos que discutem, mimetizando de algum modo aquilo de que tratam. No longo texto “Glauber Fellini”, por exemplo, a prosa de Glauber tenta prolongar o gesto do autor de Oito e meio, levando ao extremo a liberdade da imaginação feliniana, da qual faz um elogio enfático: anedotas sexuais, evocações pessoais, fofocas inverossímeis, licenças criativas, parênteses arbitrários e metáforas extravagantes se associam ali às observações de natureza histórica e aos comentários sobre os filmes, o conjunto heteróclito formando assim um turbilhão animado por uma “ féerie crítica” que atualiza na prosa o regi-me da fantasia liberada, presente nos filmes de Fellini.

História do cinema e história do século

O Século do Cinema, livro de crítica portanto. Mas livro de história também, e de várias maneiras. Em primeiro lugar, a própria organização de suas matérias faz desta coletânea um documento de História do Cinema. A relativa negligên-cia com a qual Glauber divide e intitula suas três seções (“Hollywood” comporta, além do cinema americano, alguns materiais do cinema inglês e francês, “Neo-realismo” englo-ba também Eisenstein, Buñuel e Bergman, “Nouvelle Vague” põe no mesmo saco Dassin, Vadim e Godard) é compensada por seu cuidado em dispor os textos de cada uma segundo uma ordem cronológica de cineastas ou de seus filmes, de modo a desenhar, mesmo que por amostragem parcial, percursos históricos no interior de três séries: o cinema americano de Griffith a Coppola (ou do Gênesis ao Apocalip-se), o cinema europeu de autor, de Eisenstein a Bertolucci, e o cinema francês moderno, de Dassin (ou, no nosso sumário francês, ligeiramente modificado, de Renoir) a Godard.

Aqui, as contribuições respectivas de cada seção nos parecem desiguais. No que concerne ao cinema america-no, o percurso histórico ficou incompleto e suas lacunas

são numerosas – mesmo se nos restringimos aos anos 1950, privilegiados nos textos do jovem Glauber.14 Quanto ao cinema francês moderno, a abordagem parece magra, Glauber negligenciando uma série de cineastas (alguns dos quais ele conhecia bem e chegou mesmo a discutir em textos),15 ignorando toda distinção interna ao movimento da Nouvelle Vague, e se calando sobre a “querela dos antigos e dos modernos” desencadeada pelo célebre artigo de Truffaut.16 Em compensação, no que concerne ao cinema europeu (extra-francês) de autor, e notadamente o do pós-guerra, o percurso desenhado pelos textos de Glauber parece muito sólido (apesar de algumas ausências). Sobre o grupo de cineastas que ele discutiu na seção “Neo--realismo”, seus textos não devem nada em consistência e profundidade aos dos melhores críticos brasileiros que foram seus mestres desde os anos 50 (o baiano Walter da Silveira e o paulista Paulo Emilio Salles Gomes),17 ou aos dos outros grandes cineastas modernos que exerceram atividade crítica regular (Rivette, Godard, Rohmer, Truffaut, Antonioni, Satyajit Ray, Pasolini). Feitas as contas, se este livro não pode ser considerado como uma verdadeira história do cinema no sentido dos historiadores, ele pode ser considerado porém como uma verdadeira “Introdução a uma verdadeira história do cinema” no sentido que Godard deu à expressão em seu livro lançado em 1980, um ano antes da morte de Glauber.18

Num outro sentido, menos evidente mas não menos visado por seu autor, O Século do Cinema pode ser lido como uma meditação, pelo viés do cinema, sobre a história do século XX. Falando deste volume no prefácio de 1980 (não publica-do) ao Revolução do Cinema Novo, Glauber escreve: “editarei outro livro, O Século do Cinema, onde exerço minha crítica ao cineprocesso mundial essencializado na produção da URSS, USA, Itália e França – a representação metafórica da luta de classes no espelho máximo da humanidade: o sonho materializado no audiovizual kynotelevisivo” (Revolução do Cinema Novo, reed. 2004, p.515). Se tomamos a expressão “o Século do cinema”, ela pode denotar, em sua ambiguidade, tanto o primeiro Século de existência do cinema quanto uma característica do Século XX, que terá sido talvez o do cinema (outros poderiam defini-lo como o das “Revoluções traídas”, ou o da barbárie nazista, ou o da bomba atômica, ou o das guerras de descolonização, ou o das conquistas espaciais, etc.). Esta superposição do século de vida do cinema e do século marcado pelo surgimento do cinema, esta articula-ção entre as duas ordens de questões nos parece antecipar o esforço de reflexão empreendido por Godard em seu ciclo posterior da(s) História(s) do Cinema.

À articulação entre o cinema e o século vem se associar uma outra, bem paradoxal, que se desenvolve nos textos de Glauber em paralelo com o que ocorre nos seus filmes dos anos 1970: ele se permite expor cada vez mais, nestes como naqueles, suas experiências pessoais e seu espaço íntimo, no momento mesmo em que o esforço de totalização da sua reflexão sobre o mundo ganha proporções desmesuradas. Estas fazem-na exceder o quadro do século XX para revisitar personagens históricos tão antigos quanto Ciro da Pérsia e Alexandre, o Grande, ou momentos históricos igualmente distantes como a crise do Império romano, invocada para pensar os impasses do capitalismo contemporâneo. No Século do Cinema, esta oscilação das escalas espacial e temporal, entre a intimidade do cineasta e a história univer-sal, reaparece amiúde. Lembremos, por exemplo, a brusca alusão íntima inserida no relato sobre um festival do Colum-bianum em torno do terceiro mundo realizado em 1965 em Gênova, “onde eu e L. fizemos um filho” (p.255) ou, no outro polo do espectro, o resumo vertiginoso de vários séculos de história da humanidade, desde as Cruzadas até a Revolução iraniana, presente em pouco mais de vinte linhas do ensaio “Apocoppolakalypse” (p.153-4). Tais linhas fazem pensar nos vastos monólogos over de Glauber em seus filmes Claro (1975) e A idade da Terra (1980),19 que oferecem resumos históricos comparáveis. Este duplo movimento de radicaliza-ção (do privado e do cósmico, da intimidade e das totaliza-ções históricas) se condensa aliás no curioso neologismo “Heustória”, usado por Glauber sob diferentes formas em alguns textos do Século para articular subjetividade e História, e dissolver as fronteiras entre o individual e o coletivo.20

Estilhaços teóricos

Nos textos que compõem O Século, a visada crítica e histórica prepondera sobre uma dimensão estritamente teórica, que não é muito saliente e nunca surge em estado puro. Glauber não parece propenso a discutir em abstrato princípios e ca-tegorias cinematográficos gerais, e se vez por outra ele o faz, é sempre em parênteses a propósito de tal filme ou tal cine-asta. Seria difícil imaginá-lo escrevendo um tratado de teoria ou de estética do cinema, embora ele tenha assinado artigos mais próximos de uma “teoria pura”, como “Da cinestética” (1958), “O processo cinema” (1961) e “O autor” (1966).21

Por esse gênero de artigo ser menos frequente e menos conhecido do público, não é raro que se minimize o aporte teórico de Glauber, como, por exemplo, em páginas recentes, aliás finas e elogiosas, de Jacques Aumont: “Com Glauber Rocha, a reflexão se aproxima ainda mais de um posiciona-

mento político em estado puro. Em seus numerosos artigos de crítica e entrevistas, o cineasta brasileiro desenvolve uma ideia fundamental, que não é teórica e não concerne principalmente o cinema: é preciso romper com a estética dominante do cinema […], assim como é preciso combater o imperialismo dominante. Ruptura com a tutela ameri-cana, portanto com o modelo hollywoodiano de produção; ruptura com o estilo clássico; ruptura também com a Nouvelle Vague, ‘modelo’ obsedante e indesejável no qual Rocha vê consciência política de menos e cinema demais […]. Influenciado por Eisenstein (de quem retoma o fascínio pela dialética hegelo-marxista), mas também por Rossellini (com quem partilha o absolutismo quanto aos poderes do cinema), Rocha cuidou sobretudo de traduzir as ideias e as ideologias dos cineastas europeus ‘de esquerda’ em termos adaptados à situação da América latina” (La théorie des cinéastes, Paris, Nathan: 2002, p.102, trad. nossa).

Numa tal formulação, a desatenção às mediações propria-mente teóricas através das quais Glauber desenvolve sua “ideia fundamental” de uma estética anti-hollywoodiana, aliada à afirmação discutível (para não dizer insustentável) segundo a qual ele procurava sobretudo transplantar na América Latina as ideias de cineastas europeus de esquerda, corre o risco de produzir uma visão rasa de um Glauber mili-tante político voluntarista e de subestimar a espessura de seu esforço de reflexão especificamente estética. Ora, sem nunca negar suas admirações e suas dívidas de influência para com cineastas e artistas europeus, Glauber diz várias vezes que o modelo deles não serve ao cinema brasileiro. A este respeito, baste-nos citar dois textos sobre o Cinema Novo, separados por um intervalo de 20 anos que enquadra temporalmente todo o movimento. No primeiro, de 1962, intitulado “Cinema Novo”, ele dizia: “Nós não queremos Eisenstein, Rossellini, Bergman, Fellini, John Ford, ninguém. [...]. Nosso cinema é novo porque o homem brasileiro é novo e a problemática do Brasil é nova e nossa luz é nova e por isto nossos filmes nascem diferentes dos cinemas da Europa” (RCN, 2004, p.52). No segundo, o prefácio de 1980 (não publicado) ao Revolução do Cinema Novo, já citado aqui, Glauber qualifica o Cinema Novo de “corte epistemológico com os cinemas civilizados e colonizadores [= americano e europeu]” (RCN, p.518).

Haveria pelo menos duas maneiras de mostrar que a di-mensão teórica não está ausente dos textos do Século: pela enumeração dos temas teóricos explícitos no livro, ou pela exploração das sugestões teóricas que ele traz sem chegar a desenvolver. Nós nos contentaremos aqui em dar algumas indicações para cada uma destas duas vias.

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Luis Buñuel e Glauber Rocha,

Veneza, 1968.

As questões e discussões teóricas presentes ao longo do vo-lume podem ser organizadas em torno de dois eixos princi-pais: 1) as relações do cinema com as outras artes (notada-mente a literatura, mas também o teatro, a ópera, a música, a pintura) ou com o pensamento filosófico, discutidas com frequência por Glauber, ora para sugerir convergências, ora para salientar especificidades irredutíveis do cinema; 2) os elementos propriamente constitutivos da estética do cinema (montagem, composição, ritmo, mise en scène, zoom, ceno-grafia, enquadramento, trabalho de câmera, etc.), objeto de um esforço constante de invenção e elucidação conceituais por parte de Glauber.

Em contextos bem variados, Glauber volta com frequência à questão da relação do cinema com a literatura. Ele comenta as afinidades entre o trabalho de certos cineastas e o universo de certos escritores, mas em geral tende a criticar

os filmes que permanecem tributários da literatura, e a defender a especificidade e a autonomia estética do cinema, à qual alguns cineastas teriam feito plena justiça (Eisens-tein, Welles, Antonioni, entre outros). A relação do cinema com as outras artes e com o pensamento aparece no mais das vezes à margem dos comentários de filmes particula-res, e o pressuposto é semelhante: tal relação enriquece o cinema, mas não o reduz às artes que lhe precederam nem a um pensamento que lhe é exterior. Em vez de se reduzir a eles, o cinema os incorpora num nível superior. Deste gêne-ro de considerações espalhadas por todo o livro, guardemos um só exemplo, uma ampla tipologia, que ecoa duas outras sugeridas pelo jovem Godard na abertura de dois elogios dos anos 1950 a Nicholas Ray,22 e cujo desenvolvimento (que Glauber não empreende) se aparentaria a um sistema, como diria Étienne Souriau, de correspondência das artes: “Há, no cinema, os que fazem escultura (como Resnais),

os que fazem pintura (como Eisenstein), os que filosofam (como Rossellini), os que fazem cinema (como Chaplin), os que fazem romances (como Visconti), os que fazem poemas (como Godard), os que fazem teatro (como Bergman), os que fazem circo (como Fellini), os que fazem música (como Antonioni), os que fazem ensaios (como Andrzej Munk e Rosi) e os que, dialética e violentamente, materializam o sonho: este é Buñuel” (p.187).

Quanto aos elementos constitutivos de uma estética cinematográfica, constatamos ao longo do livro um esforço constante de Glauber para estabelecer distinções conceituais (entre dramaturgia fílmica, teatral e romanesca, entre ima-gem cinematográfica, fotográfica e pictórica, entre “técnica física” e “técnica estética”) que lhe permitem circunscrever melhor o que há de específico ao cinema em sua relação permanente e nutritiva com as outras artes. Este gosto pela distinção (paradoxal num estilo de pensamento impuro como o seu) aparece também em suas considerações sobre o uso do zoom nos cineastas italianos, e chega a tomar a forma de uma tipologia pletórica da montagem, na qual Glauber multiplica os qualificativos para pensá-la ao longo dos textos: ele fala em montagem tonal, dramática, narrativa, “kubexpressionista”, de choque, de encadeamen-to, interna, externa, vertical, subjetiva, harmônica, métrica, rítmico-tonal, sem esquecer da “antimontagem”.

Da outra maneira possível de extrair e explorar os elemen-tos teóricos dispersos ao longo do livro, concentremo-nos aqui num único exemplo, invocando o verbo “materializar” (ou seu substantivo correlato “materialização”), que Glauber usou para definir a operação à qual o cinema submete seus materiais, venham eles de uma realidade externa a representar ou transfigurar, venham de uma “matéria psí-quica” a exprimir. Incorporada de vez no vocabulário crítico de Glauber a partir dos anos 1970, esta noção de “materia-lização” é invocada de modo claro pelo cineasta numa en-trevista de 1975 a Judith Hribar, na qual ele define o cinema como “um meio de materialização” e o filme como “uma materialização audiovisual de ideias” ou de sonhos.23

Numa série de textos do Século (bem como de Revolução do Cinema Novo), Glauber volta à noção para designar a operação pela qual o cinema representa a realidade ou trans-põe e dá forma artística a conteúdos psíquicos conscientes ou inconscientes, a formações imaginárias individuais ou coletivas: ideias, ideologias, pulsões, desejos, sonhos. Assim, o cinema como arte de materialização pode materializar ideias (no rastro de Pudovkin, o estilo de Visconti penderia

para “a corporificação da ideia”, p.216), concepções da História (“a montagem Kubexpressionista de Kane materializa uma concepção circular da História cheia de som e fúria contada por um idiota [e] que não significa nada”, p.52), pulsões ou processos inconscientes (“primeira materialização do incons-ciente – o cinema é o interconsciente”, p.151; “A materialização do inconsciente é anterior à consciência”, p.165; no cinema, há “os que, dialética e violentamente, materializam o sonho: este é o Buñuel” p.187; “Fellini, tocado também pelo surrealismo francês... jorra consciência pura... artérias do inconsciente rompidas pelo Fluxo Nada que se materializa em criações... filme... matéria do sonho...”, p.262; “Fellini filma seu interior refletido no espelho de sua encenação. Todo cineasta filma a si mesmo, neste processo de materialização, mas Fellini é o único que ultrapassa as ‘ruínas historicistas’, projeta seu êxtase”, p.258; “Anita Ekberg vestida de cardeal subindinfinita-mentescadas da Khatedral de São Pedro é a materialização de um desejo Felliniano de ser Mulher Sensual e Cardeal”, p.262; “Deus e o Diabo, Terra em transe e todos esses filmes são materialização de sonhos culturais”, p.331).

Mas o cinema materializa também realidades externas extrapsíquicas – sociais ou históricas: “Entre o realismo dos irmãos Lumière e a fantasia de Georges Méliès (criadores da Técnica e da Estética do filme), o cinema revolucionou a primeira metade do século XX, materializando a História em busca de transformar sonho em realidade” (p.206). Esta mate-rialização da realidade ou da História caracterizaria o cinema todo, mas poderia definir também, mais particularmente, o trabalho de certos cineastas como Rossellini ou Visconti: “O difícil em Rossellini é que a materialização da realidade subju-ga seu talento” (p.215). Em certos filmes, Visconti “materializa a história dos camponeses, marginais e operários italianos”, noutros ele “materializa a história da burguesia” desde as guerras antinapoleônicas até o século XX (cf. p.243).

Para o teórico do cinema, esta noção de materialização parece fecunda, pois vem ao mesmo tempo adensar a ideia de uma expressão da subjetividade do artista (que era no fim das contas um dos pressupostos filosóficos de base da “política dos autores”) e substituir, num nível não meramente lexical, a ideia de representação da realidade (postulado incontornável das estéticas realistas). Nossa hipótese é a de que ela se tornou um dos operadores conceituais de Glauber, um dos seus instrumentos propriamente teóricos,24 que lhe permitiram escapar dos modelos realistas25 para pensar noutras bases uma estética do cinema em geral, e sobretudo para formular sua própria poética, na qual uma pesquisa de linguagem permanente e radical nunca perde

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uma relação – sinuosa e tensa – com as múltiplas realida-des que ela teima em enfrentar.

Crítica, história e (um pouco de) teoria, três faces do Século do Cinema. Há outras, naturalmente. Glauber lançou este livro como uma garrafa ao mar em 1981, pouco antes de morrer. Os leitores brasileiros puderam descobri-lo em 1983 (numa edição estropiada), os italianos em 1986, numa versão diferente. Vinte e cinco anos depois, ele ganhou uma reedição brasileira à altura da sua importância, em cujo rastro sua tradução chegou enfim à França, quando o século e o cinema já não eram mais os mesmos. Em que pese o esforço da empreitada, a autoridade intelectual dos seus coordenadores e a excelência dos seus resultados, esta reedição está longe de fechar o debate sobre a relação de Glauber com o cinema mundial. O exame e a publicação de outros textos glauberianos ainda não recolhidos sobre este universo (e cujo poder de sugestão permanece intacto) serão uma das vias de ampliação deste debate que ainda tem muito a nos ensinar. À Cinemateca Brasileira cabe não só organizar e preservar os arquivos do cineasta trazidos da Associação Tempo Glauber, à qual devemos sua existência, mas também completá-los e ajudar a garantir sua difusão.

Nota sobre o texto glauberiano e a nossa tradução francesa de 2006

Traduzimos obviamente o texto da reedição do Século do Cinema pela Cosac Naify, e não aquele, muito defeituoso, da primeira edição da Alhambra. Além de introduzir inúmeras correções, a reedição brasileira estabelece a datação dos artigos, indica sua primeira publicação, propõe um consi-derável aparato de notas (aumentado na edição francesa), um apêndice com quatro textos de Glauber (dos quais traduzimos três) e uma fortuna crítica do livro no Brasil (que julgamos desnecessária para o leitor francês). Ela apre-senta também um prefácio de Ismail Xavier (incorporado à edição francesa), coordenador das reedições de Glauber pela Cosac Naify, e considerado hoje, consensualmente, o mais eminente intérprete da sua obra, sobre a qual publicou uma série de estudos já clássicos.26 Num ponto, a edição francesa foi além da reedição brasileira, ao incluir no índice de nomes, ao final, 138 conceitos, noções ou assuntos que permitem ao leitor francófono uma pesquisa temática avançada pelas páginas do grosso volume.

Em nossa tradução, tentamos encontrar em francês o estilo mais próximo daquele, criativo e tumultuoso, da prosa de Glauber, que avança por espasmos, a exemplo do que ve-

mos também em seus filmes. Nos seus textos, a constante invenção lexical, as palavras-valise, as licenças tipográficas (itálicos, maiúsculas e pontuação), as brusquidões sintáticas, o recurso às alusões e à elipse, a preocupação permanen-te de evitar as soluções de linguagem e de pensamento usitadas – já automatizadas pelo leitor –, a exploração da diversidade de registros da língua, tudo isso dá corpo àquilo que o crítico de arte brasileiro Mário Pedrosa (1900-1981) chamava de “exercício experimental da liberdade”.27 Tudo isso, ao mesmo tempo, convivia com uma certa negligência, que devia caracterizar também a relação de Glauber com os textos (mal revisados, por vezes defeituosos e obscuros), fundada provavelmente numa aposta segundo a qual essa prática permanente da liberdade importa mais do que a letra de um texto a gravar no mármore.28

O resultado pode soar às vezes desconcertante para o leitor e quase sempre difícil para o tradutor, que deve dis-tinguir o tempo todo aquilo que vem da invenção estilística (que se deve a todo custo preservar na língua de destino) e aquilo que decorre apenas da negligência. Seja como for, não se deve nunca esquecer que Glauber tinha uma consciência aguda do estilo: em seus filmes, em seu modo de falar, em seus textos escritos, sempre foi muito atento aos efeitos do seu discurso. Em sua escrita, ele quis num dado momento radicalizar as dissonâncias ortográficas pela inserção de X, Y e Z na grafia (efeito espetacular que se comenta frequentemente sem acrescentar que tal inserção não passa de uma figura a mais de um mesmo gesto de provocação estilística que foi sempre o seu), sabendo muito bem o quanto isso podia transtornar seus leitores. Ora, o tradutor não poderia privar Glauber desse gesto, sob pena de desfigurar a natureza mesma do pacto que ele instaurou – à força talvez, mas de modo refletido – com seus leitores capazes de jogar o jogo. Por este pacto, os leitores se tornam cúmplices de uma violência contra o uso corrente da língua,29 violência que, como nota Ismail Xavier em seu prefácio, transforma em “fato de estilo” as convicções ideológicas do autor.

Para quem compreende dessa maneira as implicações do estilo no escritor Glauber, não se poderia normalizar sua prosa, nem lhe dar uma elegância neutra que ela nunca almejou. O esforço do tradutor deve ser antes o de preservar em francês o efeito de estranheza que ela suscita no leitor lusófono. Assim, a cada vez que precisamos escolher entre a elegância e a fidelidade, pendemos para a fidelidade, evitan-do ao máximo arredondar as asperezas dessa prosa. Não se penteia impunemente os cabelos de Corisco.

Anotação manuscrita de Glauber Rocha para a composição do artigo

O Cristo-Édipo, incluído no livro O Século do Cinema.

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comparação poderia ser feita com os volumes de ensaios de An-

tônio Moniz Viana, José Lino Grunewald ou Enéas de Souza. Basta

comparar para ver.

18 Livro fascinante que, aliás, à diferença do que acontece no de

Glauber (que cita Godard mais de cento e trinta vezes), só mencio-

nava o cineasta brasileiro uma única vez, numa enumeração trivial

sem relação direta com seus filmes. Cf. Jean-Luc Godard. Introduc-

tion à une véritable histoire du cinéma. Paris: Albatros, 1980, p.324.

19 Ver a transcrição de ambos em Glauber Rocha. Roteiros do

terceyro mundo, p.430 e 462-3, respectivamente.

20 Usamos aqui uma formulação de Ivana Bentes em sua introdu-

ção (O devorador de mitos) ao volume de Glauber por ela organizado

das Cartas ao Mundo, p.10.

21 Da cinestética, Revista Ângulos, Salvador, ano 8, n. 13, jul. 1958

(deste artigo foram extraídos os textos sobre John Huston e sobre

René Clair incluídos no Século); O Processo cinema (1961, recolhido

em RCN, p.43-50); O autor, já citado na nota 12 supra.

22 No primeiro (Rien que le cinéma, Cahiers du Cinéma, n.68, fev.

1957), Godard nota que “enquanto imaginamos bem John Ford

almirante, Robert Aldrich em Wall Street, Anthony Mann no rastro

de Belliou Fumaça, Raoul Walsh novo Henry Morgan sob o céu

das Caraíbas, vemos mal em compensação o que o cineasta de

Run for cover [Nicholas Ray] daria em qualquer outra atividade

além do cinema. Um Logan, por exemplo, ou um Tashlin, podem

dar certo no teatro ou no musical, um Preminger no romance,

um Brooks no ensino primário, um Fuller na política, um Cukor

na publicidade, mas não um Nicholas Ray”. No segundo (Au-delà

des étoiles , Cahiers du cinéma, n.79, jan. 1958), ainda mais direto,

ele diz: “Havia o teatro (Griffith), a poesia (Murnau), a pintura

(Rossellini), a dança (Eisenstein), a música (Renoir). Mas há agora

o cinema. E o cinema é Nicholas Ray.” (artigos recolhidos em

Jean-Luc Godard par Jean-Luc Godard. Paris: Cahiers du Cinéma,

1985, p.96 e 119, respectivamente).

23 Cf. Filmcritica 75, incluído em RCN, p.298, 301 e 302.

24 Como a noção do “épico-didático”, de ressonâncias brechtianas,

com a qual ele definia às vezes seu próprio projeto cinematográfico.

25 Glauber sempre invocou ou discutiu os modelos realistas a

propósito dos filmes dos outros, mas sempre os recusou nos seus.

Esta recusa assume por vezes formas veementes, como nas duras

críticas que ele faz aqui às estéticas cinematográficas tributárias

do modelo marxista de Lukács ou daquele, que ele qualifica de

“fenomenológico”, de Bazin, ambos chamados de “desastres” numa

entrevista italiana de 1969 (cf. p.275 do Século) e novamente critica-

dos com veemência numa entrevista portuguesa de 1974 (cf. RCN,

p.271-2).

26 Cf. XAVIER, Ismail. Sertão Mar: Glauber Rocha e a estética da fome.

São Paulo: Brasiliense, 1983. Terra em transe: alegoria e ironia e O

Dragão da maldade contra o santo guerreiro, em Alegorias do sub-

desenvolvimento. São Paulo: Brasiliense, 1993; Evangelho, terceiro

mundo e as irradiações do planalto [sobre A Idade da Terra] In: Filme

cultura, n.38/39, ago./nov. 1981; A idade da terra e sua visão mítica da

decadência, In: Cinemais, n.13, set./out. 1998, p.153-184, além do es-

plêndido artigo de síntese Glauber Rocha: o desejo da história [1987]

In: O Cinema brasileiro moderno. São Paulo: Paz e Terra, 2001.

27 Pedrosa forjou a expressão para falar do trabalho dos artistas

neoconcretos no Brasil (com o qual o primeiro curta de Glauber,

O pátio, de 1958-59, dialogava abertamente), sobretudo o de Hélio

Oiticica – que atuou em Câncer, de Glauber, filmado em 1968.

28 Seu biógrafo João Carlos Teixeira Gomes nota, por exemplo, que

Glauber batia mal à máquina, à qual ele tinha de resto o hábito de

escrever sempre de um jato, sem se preocupar com a correção

gramatical (cf. Glauber Rocha, esse vulcão. Rio de Janeiro: Nova

Fronteira, 1997, p.172).

29 Nisto, a escrita de Glauber parece se aproximar (guardadas as

devidas proporções, inclusive de envergadura) daquela de uma ver-

tente inventiva da literatura moderna à qual ele não era insensível.

Pensemos por exemplo num James Joyce (objeto de discussões

e traduções de alto nível no Brasil) ou num Guimarães Rosa, com

os quais ele dialogava às vezes, notadamente em seu romance

Riverão Sussuarana (a palavra “riverão” constituindo uma variante

portuguesa da célebre palavra-valise “riverun” usada por Joyce em

seu Finnegan’s Wake).

1 Cf. SILVA, Mateus Araújo e BÉGHIN, Cyril. “Avant-propos” e “La

glace à trois faces du Siècle du cinéma : critique, histoire et théorie”. In:

ROCHA, Glauber. Le Siècle du Cinéma, op. cit., p.7-16 e p. 305-316.

2 E em boa medida nunca recolhida em livro. Segundo as bibliogra-

fias mais confiáveis de que dispomos, conta-se mais de 300 artigos

e 100 entrevistas publicados, mas uma pesquisa mais completa

chegaria a números mais altos.

3 ROCHA, Glauber. Deus e o Diabo na terra do Sol, Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 1965; ROCHA, Glauber. Roteiros do terceyro

mundo. Orlando Senna (org.). Rio de Janeiro: Alhambra ; Embra-

filme, 1985; ROCHA, Glauber. La Nascita degli dei, Torino: ERI, 1981.

Lembremos ainda o volume de Augusto M. Torres. Glauber Rocha y

Cabezas Cortadas. Barcelona: Anagrama, 1970.

4 Reeditados pela Ed. Cosac Naify em 2003, 2004 e 2006, respecti-

vamente, em versões largamente melhoradas, que citaremos aqui

sob as abreviaturas RCCB, RCN e SC.

5 Num prefácio para RCN (não incluído na 1a edição, mas publicado

em apêndice na reed. de 2004, cf. p.518).

6 Cf. as cartas de Glauber a Calil de 2 e 28 dez. e a Celso Amorim de

29 e 30 dez. 1980 (Cartas ao Mundo, p.669, 674 e 677).

7 Que era, de resto, muito descuidada: nenhuma apresentação

geral e nenhum prefácio aos textos, transcritos sem nenhuma

indicação de fontes nem de datação; nenhum aparato de notas, uma

legião de erros de revisão, etc.

8 Afora esta entrevista, a única real supressão em nossa edição

francesa foi a do artigo “From New York to Paulo Francis”, evoca-

ção por Glauber de uma viagem a Nova York, quase sem relação

com o cinema.

9 Pensemos, entre outros, nos três artigos de jornal sobre Hiroshi-

ma mon amour (de outubro de 1960 e maio de 1961), num sobre

Louis Malle (de agosto de 1960) e num outro ainda sobre o cinema

verdade cheio de considerações sobre Jean Rouch e Chris Marker

(1965), que Glauber preferiu incluir em RCN (p.71-77).

10 Neste volume, não há nada sobre o cinema japonês, quase nada

sobre o cinema alemão (exceto Lang e o austríaco Stroheim), bem

pouco sobre o cinema soviético (salvo Eisenstein), escandinavo (salvo

Bergman) ou ibérico (salvo Buñuel). O terceiro mundo sobretudo fi-

cou ausente, apesar do desenho original de Glauber para a capa, que

o incluía numa espécie de tríade ao lado de Hollywood e da Europa.

11 Sobre este ponto, ver a introdução de Glauber a RCCB, p.35-41, e

seu ensaio “O autor”, publicado no volume coletivo Cinema Moderno

Cinema Novo. Rio de Janeiro: José Álvaro Editor, 1966.

12 Como observava Lino Miccichè em sua introdução a um dos

volumes italianos de traduções dos escritos de Glauber, Scritti sul

Cinema, Ed. de la Biennale di Venezia, 1986, p.13-28 (“Un cineasta

tricontinentale” ). No nosso volume Glauber Rocha / Nelson Rodri-

gues, op. cit., p.55-58, incluímos uma tradução francesa parcial deste

texto, o melhor que conhecemos publicado na Europa sobre a obra

escrita de Glauber. Quanto aos estudos brasileiros, mais numero-

sos, as reedições da Cosac Naify de Revisão crítica, Revolução e O

Século do Cinema fornecem elementos preciosos da fortuna crítica

suscitada por cada um destes livros. E os três prefácios de Ismail

Xavier a estas reedições nos parecem desde já um ponto de partida

incontornável para os estudos vindouros.

13 Pensemos por exemplo nos condensados de história do cinema

presentes na seção IV de “Os doze mandamentos de Nosso Senhor

Buñuel” (p.173-4) ou nos parágrafos iniciais de “A moral de um novo

Cristo” (p.186-8) e de “Esplendor de um Deus” (p.237-8).

14 Pensemos, entre outros, em Hawks, Preminger, Fuller ou Sirk,

sem falar dos Keaton, Flaherty, Sternberg, Lubitsch, etc., e para

não cobrar um tratamento mais desenvolvido de um Hitchcock,

por exemplo.

15 Pensemos, entre outros, em Bresson, Cocteau, Tati, Max Ophuls,

Rivette, Rohmer, Varda, Demy, Eustache, Garrel, Pialat ou Duras,

sem esquecer os casos de Resnais, Rouch e Marker, sobre os quais

Glauber já tinha publicado textos desde 1960, e notando de passa-

gem o entusiasmo que lhe causou L’amour fou (1968) de Rivette (de

quem ele dizia num artigo de 1969 acompanhar a obra com muito

interesse) quando de uma projeção em 1969 evocada por Sylvie

Pierre em seu Glauber Rocha, op. cit., p.139, n. 8, e na sua entrevista

“Glauber en exil” em Glauber Rocha / Nelson Rodrigues, op. cit., p. 14.

16 Curiosamente, se procuramos no corpus de Glauber algo próxi-

mo das ideias e posições de Truffaut em “Une certaine tendance du

cinéma français”, nós o encontramos mais em seu livro polêmico de

juventude propondo uma Revisão crítica do cinema brasileiro (1963),

mas não em seus textos sobre o cinema francês.

17 Ver as coletâneas de ensaios de Walter (Fronteiras do Cinema.

Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1966.) e de Paulo Emilio (Crítica de

Cinema no Suplemento Literário. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981-82,

2 vols. recolhendo postumamente ensaios publicados entre 1956

e 1965), de cujo sumário o de Glauber não fica atrás. A mesma

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A pedra no meio da trilha

Segundo certo senso comum moderno, o ponto definidor da crise da experiência musical burguesa nos umbrais do breve século XX seria a reconfiguração do “belo musical” que teria dominado o longo século XIX. Os termos do “belo musical”, postulados principalmente por Eduard Hanslick,1 buscavam o reconhecimento da autonomia musical, de maneira que a música, qualificada como absoluta, pudesse ser observada e apreciada como tal, sem nada que a precisasse explicar desde fora ou, mais ainda, sem que ela fosse um mero acompanhamento ou suporte para expressões litúrgicas, literárias ou cênicas. Enfim, o senso comum (pretensamen-te) moderno sugere que a experiência musical burguesa e sua crise podem ser compreendidas tão-somente acom-panhando seus próprios termos técnicos e estéticos, num desenrolar imanente que, por outro lado, coloca qualquer articulação ou colaboração entre a música e outras lingua-gens artísticas como menor, em geral ignorando-as. Assim, a crise da experiência musical burguesa seria caracterizada como o ponto em que os termos da autonomia musical, identificados com o desenvolvimento e manutenção de um sistema (tonal), teriam chegado a uma aporia – quando o sistema teria chegado a um ponto de saturação, quando suas questões técnicas teriam chegado a um limite ou, o

que dá no mesmo, quando os compositores perceberam que tal sistema funcionava como uma “segunda natureza”, com resultados variados na tentativa de lidar com esta des-coberta. A consequente solução desta crise, que teria dado o andamento da música ao longo do século XX desde Arnold Schoenberg, estaria relacionada com a fixação apenas em questões musicais técnicas que apontariam para além do sistema tonal, com certo esteticismo que aprofundaria o en-gessamento da música como uma caixa hermética, de sorte que, em fim de contas, da autonomia da música perante as outras linguagens artísticas resultaria também sua autono-mia ante a política e a sociedade.

Mas, e se, ao contrário do que diz o senso comum sobre a experiência musical burguesa, uma resposta das mais profí-cuas à crise da experiência musical burguesa tiver aparecido justamente na articulação entre linguagens artísticas, como, por exemplo, na função desempenhada pela música na construção do discurso cinematográfico? E se, junto a isso, o postulado da autonomia musical tiver sido apenas uma face das correlações, tanto profundas quanto contingentes, entre música e política? E se, portanto, a relação da música com a política tiver sido um de seus aspectos não só necessários como dos mais importantes, iluminado justamente pelo recurso da articulação da música com outras linguagens

Nas trilhas da política: a “música aplicada” de Hanns Eisler

O cinema como mediador entre música de vanguarda e política radical

Fotograma de Kuhle Wampe (1932),

de Slaton Dudow. (Praesens-Film)

ensaio

Manoel Dourado BastosProfessor da Universidade do Estado de Santa Catarina,

possui doutorado em História pela Unesp

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artísticas? A ideia de que a crise da experiência musical burguesa foi tão-somente o resultado do desenvolvimento do sistema tonal, que por si só chegou a um colapso de seus pressupostos, apresenta o processo como uma dinâmica fundamentada em antinomias imanentes, sem reconhecer os aspectos dialéticos, internos e externos, que presidem sua história, perdendo assim a importância das articulações, nem sempre pacíficas, entre a linguagem musical com a literatura, o teatro e as artes visuais. Perde com isso o peso estético das formas musicais assumidas pelas lutas políticas ao longo dos séculos XIX e XX. Pensada assim, a compreensão do sistema tonal e as grandes formas musicais desenvolvidas em seu seio ficam a meio caminho, reforçando ainda mais o hermetismo que transformou a música em assunto de poucos. O cinema, enfim, apresenta--se como a saída para esse beco político.

No presente texto, pretendemos observar como o trabalho musical de Hanns Eisler,2 particularmente sua produção (crítica e artística) para o cinema, apresentou respostas relevantes para a crise da experiência musical burguesa. Mais especificamente, pretendemos sugerir que Eisler produziu, em se tratando de música, uma fundamental conjunção da arte de vanguarda com projetos políticos radicais, apresentando importantes caminhos para a su-peração de dicotomias entre princípios estéticos modernos e política de massas. A partir de comentários sobre os projetos de Eisler para o cinema, poderemos reconhecer como aquele senso comum (pretensamente) moderno sobre a experiência musical burguesa está ele também determinado pelos termos dos antagonismos sociais a que ainda podemos dar o nome de luta de classes.

Para tanto, o texto contará com dois movimentos: o pri-meiro deles dará notícia sobre Hanns Eisler, trazendo mais informações sobre as atividades musicais e políticas em que esteve envolvido, contando um pouco de sua contur-bada trajetória pessoal. Em seguida, confrontaremos a noção de “música aplicada” (angewandte Musik) de Eisler com a hipótese levantada por Adorno e Eisler em seu livro sobre a música e o cinema (1976), que sugere a correlação entre elementos musicais da Neue Musik e o cinema, a fim de reconhecer a política como o eixo determinante dessa correlação. A figura de Adorno aparecerá como contraste, capaz de dar mais força ao argumento aqui desenvolvido. Para concretizar as ideias apresentadas nesse segundo movimento, faremos breves análises de músicas compostas por Eisler para os filmes Kuhle Wampe e Hangmen also die (Os carrascos também morrem).

Notícia sobre Hanns Eisler3

A historiografia sobre o cinema inicialmente se lembra de Eisler como o coautor, ao lado de Theodor Adorno, do livro pioneiro sobre música e cinema4. Lembra ainda que Eisler foi indicado ao Oscar duas vezes, pela música para os filmes Hangmen also die! (Os carrascos também morrem) (1942), com texto de Brecht e dirigido por Fritz Lang e None but the lonely heart (Apenas um coração solitário) (1944), com texto e direção de Clifford Odets. Recorda também que Eisler compôs a música para o filme de Brecht, Kuhle wampe, dirigido por Slatan Dudow em 1931. Já seria bastante coisa para lembrar-se de Eisler como um nome importante para a história do cinema. A biografia do músico, contudo, é rechea-da de elementos que tornam ainda mais interessantes suas relações mais conhecidas com o cinema.

Hanns Eisler nasceu em Leipzig, na Alemanha, no ano de 1898. Quando ainda tinha três anos, mudou-se junto com seus pais e seus dois irmãos mais velhos para Viena. Seu pai, o professor de filosofia Rudolf Eisler, era austríaco e havia mudado para a Alemanha, onde defendeu doutorado versando sobre Kant e deu aulas na Universidade de Leipzig. Lá, Rudolf casou-se com Ida Maria Fischer, com quem teve três filhos: além de Hanns, o casal teve Gehart Eisler, que posteriormente ficou conhecido como militante comunista, e Ruth Fischer, uma das fundadoras do Partido Comunista na Áustria, depois líder no KPD (Partido Comunista da Alema-nha), bem como agente da CIA.

Em Viena, Eisler viveu numa situação de poucos recursos, tendo em vista que seu pai já não dava mais aulas na uni-versidade, se virando como professor privado e outras ativi-dades intelectuais. Mesmo assim, desenvolveu habilidades musicais, estudando e compondo em casa e executando, de favor, em pianos na casa de amigos mais abastados. Já mais velho, entre 1919 e 1923, foi aluno regular do curso que Arnold Schoenberg promovia. O salto qualitativo, do ponto de vista musical, foi grande, tendo em vista que Eisler se somou a Alban Berg e Anton Von Webern e se tornou um dos principais discípulos do mestre da assim chamada Segunda Escola de Viena – inclusive, é reconhecido como o primeiro dos pupilos de Schoenberg a usar a técnica dodecafônica. A partir da intervenção de Schoenberg, Eisler conseguiu emprego na Universal Edition (UE), a casa edito-rial que publicava os principais compositores da música mo-derna e, também graças à colaboração de seu mestre, pu-blicou suas primeiras composições por essa mesma casa. Contudo, Eisler mantinha-se como aluno rebelde, ao afrontar publicamente a postura moral e política do mestre. Enfim, ele estava entre a estética musical e a política – encontrava

na técnica composicional desenvolvida por Schoenberg e seus principais discípulos o ponto mais avançado da música de sua época, ao mesmo tempo em que reconhecia nela um corolário de uma postura moral e política burguesa.

Em 1925, mudou-se para Berlim. E lá, o que se apresentava até então como uma questão antinômica começou a ganhar resolução dialética. Eisler encontrou em Berlim uma cidade em grande ebulição política e estética. Eram os anos fre-mentes da República de Weimar (1918-1933). No mesmo ano em que chegou à capital alemã, iniciou um ciclo de canções chamado Zeitungsausschnitten op. 11 (Recortes de Jornal). Com títulos apresentados como se fossem manchetes, as canções do ciclo foram compostas a partir de trechos de jornal, demonstrando o estado das preocupações estéticas de Eisler em articular posicionamento sociopolítico, reno-vação do recurso literário (lírico) e uso radical das técnicas musicais diante da crise do sistema tonal (o que tinha que ver, entre outras coisas, com distanciamento das grandes formas). É da mesma época o Tagebuch des Hanns Eisler (Diário de Hanns Eisler).5 Com essas experiências, Eisler

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buscava romper a barreira que o incomodava na música moderna – o hermetismo técnico que torna a música assun-to de iniciados. Contudo, elas ainda mantinham a dificuldade musical como um muro que o incomodava.

Em Berlim, ele encontrou os meios que lhe abriram novas possibilidades compositivas, alargando a compreensão da crise da música moderna. Por meio dos corais do movimento musical de trabalhadores, do teatro político e do cinema, Eisler pôde exercitar possibilidades criativas que pretendiam romper o hermetismo em que se sentia enredado. O movimento musical de trabalhadores foi um fenômeno histórico de grande importância para a música alemã. A Associação Alemã de Corais de Trabalhadores (Deutsche Arbeiter Sängerbund - DASB) contou com mais de 300 mil associados na década de 1920, o que a tornava uma das principais organizações político-culturais da Alema-nha.6 Mesmo sem ser uma organização radical (tendo em vista sua relação estreita com o Partido Social-Democrata alemão, o SPD) e com repertório francamente antiquado, a DASB se apresentava como um espaço de experimentação para Eisler. A maneira que ele encontrou para disputar esse espaço passava por sua relação com o KPD e seus apare-lhos culturais, como os espaços escolares e os jornais. Em 1927, a turnê da trupe de agitprop soviética “Os Blusas Azuis” pela Alemanha mexeu com o ambiente de arte política. A importância da agitação e propaganda cresceu depois des-sa turnê e se tornou mote para Eisler desenvolver seu ponto de vista sobre o movimento musical de trabalhadores. Seu

envolvimento com o agitprop colocou-o mais próximo de outra atividade artística relevante no contexto da República de Weimar, que era o teatro político. E essa aproximação o levou a encontrar Bertolt Brecht, momento fundamental para a arte do século XX. Na produção de teatro musical com Brecht, Eisler reconheceu na Lehrstück (peça didática) as possibilidades que a angewandte Musik (música aplicada) apresentava para o compositor, principalmente no que diz respeito à discussão sobre o caráter “gestual” da música (gestischen Charakter der Musik).

Observados desde um ponto de vista materialista, movi-mento musical de trabalhadores e teatro político buscavam lidar com a sociedade de massas que se desdobrava na Alemanha daquela época, o que se compreendia por meio dos conceitos de forças produtivas e relações de produção. Falando de arte, uma das linguagens privilegiadas para ativar os conceitos marxistas de maneira mais contundente era o cinema. O cinema atiçava as mentes dos artistas que buscavam articular política e estética. Dinâmica coletiva de produção, características industriais do processo produtivo, apelo de massas latente, tudo isso se tornava elemento de experiência artística, mesmo quando a fatura não apa-recesse em linguagem cinematográfica. As discussões de Brecht se pautavam pelo cinema, a ponto de tornar-se realidade com a filmagem de Kuhle Wampe. Eisler estava envolvido nos principais projetos de Brecht desde a radica-lização na concepção de peça didática, com Die Massnahme (A decisão) e Die Mutter (A mãe). E Kuhle Wampe fazia parte

dessa radicalização. Eisler já havia feito música para cine-ma. Naquele momento, a antinomia entre estética musical e política assumiu contornos tais que a técnica musical de vanguarda não jogava papel relevante, sendo mesmo cri-ticada por Eisler. Obviamente, Eisler mantinha funcionando o chamamento geral de Schoenberg para a autonomia da dissonância, mas não a ponto de adentrar num jogo musi-cal hermético.7 Todo o potencial criativo Eisler depositava na produção de Kampfmusik (música de luta) e o cinema era um meio propício para sua apresentação, tendo em vista o esforço de desmobilizar a música como mera ornamenta-ção das imagens em movimento.

Esse ambiente criativo foi desativado à força com a ascensão de Hitler ao poder em 1933. A partir de então, Eisler migrou por diversos países europeus até que em 1938 fixou residên-cia nos Estados Unidos. Lá, deu aulas na New School of Social Research. Mas sua atividade principal esteve diretamente

ligada ao cinema. Entre Nova York e Hollywood, conheceu a indústria cinematográfica estadunidense por dentro. Contudo, o contexto político e social já não era mais o mesmo dos anos de República de Weimar. O vigor com que a luta de classes se desenrolava nos anos 1920 na Alemanha dava lugar a um ambiente pouco conhecido, à prioridade da luta contra o fascismo, à reorganização de vínculos pessoais e intelectuais em terra estrangeira. A produção de música para o cinema e o raciocínio crítico sobre essa produção tornaram-se os ca-talisadores de Eisler no período de exílio nos Estados Unidos. Sem o mesmo contexto histórico, o cinema se apresentava a Eisler como o vínculo possível entre pressupostos políticos e estéticos. Comentaremos adiante a questão, a partir de algumas observações sobre as dimensões composicio-nais que Eisler acreditava importantes para o cinema. Por agora, cumpre lembrar que a estadia nos EUA foi bastante atribulada, ao mesmo tempo em que produtiva. Surpre-endentemente, concorreu duas vezes ao Oscar. Conheceu

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pessoas importantes do cenário cultural de esquerda dos EUA. Retomou vínculos estremecidos na Alemanha, como foi o caso com Schoenberg. Mas, principalmente, se viu metido num imbróglio político de grandes proporções.

No final da década de 1940, Eisler foi alvo de perseguições pelo Comitê de Atividades Antiestadunidenses (House Committee on Un-American Activities), acusado de ser agente soviético em Hollywood. Desde o início da década de 1940, ele tinha seus passos seguidos pelo FBI, como pode ser visto agora nos documentos tornados públicos e acessíveis na internet.8 Após um extenso processo, em que não falta-ram tentativas de dissuasão por parte de Eisler diante das acusações de que ele seria o “Karl Marx da música”, em 1948 ele foi deportado. Sua irmã Ruth Fischer, que, hoje sabemos, era agente da CIA, foi peça fundamental na conspiração para proibi-lo de permanecer nos EUA. Ele e seu irmão Gerhart foram perseguidos implacavelmente. Mesmo com o empenho de artistas como Chaplin e Orson Welles, em 1948 Eisler deixou os EUA. Em meio a esse processo, ele e Adorno estavam finalizando os trabalhos para a publicação de um livro sobre música e cinema que também apresenta-va os resultados da pesquisa para a qual Eisler estava sendo financiado pela Fundação Rockfeller.9 Para que não tivesse seu nome apresentado ao lado de figuras perseguidas por atividades políticas das quais não compartilhava, Adorno resolve não assinar a coautoria do livro, que é lançado em 1947 apenas com o nome de Eisler. Apesar dessa história burlesca, o livro contém um compromisso possível entre o filósofo da nova música e o músico da luta de classes. Acresce que Adorno tinha todas as reservas com relação ao cinema – à mesma época, trabalha no conceito de “indús-tria cultural” com Horkheimer. A suspensão dos termos da luta de classes tal qual se apresentavam na Alemanha dos anos 1920 permitiram a Eisler uma pausa para a reflexão mais detida sobre os elementos da música moderna sem uma rejeição a priori. Costuma-se sugerir que Komposition für den Film é um livro em que a política está ausente, o que teria permitido a conjunção de pensamentos díspares como o raciocínio filosófico de Adorno, em sua parceria com Horkheimer em torno da Dialética do Esclarecimento, e a prática musical de Eisler, estreitamente desenvolvida a partir de premissas do pensamento teatral de Brecht. Seria prova desse caráter apolítico do livro de Eisler e Adorno o fato de que, quando Eisler resolveu publicá-lo na República Demo-crática da Alemanha, para onde ele enfim se mudou quando de sua deportação, o texto teria sido enxertado com uma série de elementos de apologia ao regime soviético, além de um pendor antiamericanista.

Mas, e se o cinema, enfim, estivesse cumprindo exatamente esse papel de presença do debate político?

Música de vanguarda, música aplicada: o cinema, as massas e a política radical

Uma das teses centrais do argumento de Adorno e Eisler em Komposition für den Film afirma que a música moderna (Neue musik) é aquela que está mais de acordo com as técnicas da montagem cinematográfica. O texto é categórico: “[...] no desenvolvimento da música autônoma nas últimas décadas surgiram muitos elementos e técnicas que corres-pondem verdadeiramente à técnica do filme”.10

É bastante surpreendente ver Adorno endossando uma aproximação tão categórica entre música moderna e cine-ma. Contudo, afirma o texto, essa aproximação não se deve a nenhum artificialismo, mas a uma compreensão exata das possibilidades técnicas do cinema e o reconhecimento de sua correspondência com as modernas técnicas musicais. Dizem Adorno e Eisler:

Não se trata de estar up to date em abstrato: seria muito pouco pedir da nova música no cinema que fos-se apenas nova. A necessidade do uso de novos meios musicais resulta do fato de que eles cumprem sua função corretamente e melhor do que o preenchimen-to musical aleatório com o qual se está contente hoje.11

As aparentes contradições que se apresentam nessas afirmações são evidentes. Inicialmente, fala-se de “de-senvolvimento da música autônoma”. Após a indicação da correspondência entre técnicas musicais modernas e técnica do filme, os autores passam a referendar “o uso de novos meios musicais”, necessários porque “cumprem sua função”. De um ponto de vista lógico, a correspondên-cia entre música moderna e cinema não poderia passar ao ato da articulação entre ambas, tendo em vista que a autonomia musical decide-se basicamente por sua aver-são ao uso e função, que são os pré-requisitos da música para cinema. Mas é justamente esse o ponto contraditório que Eisler e Adorno pretendem consagrar – o uso das técnicas da música autônoma como necessário para o cumprimento da função musical na produção cine-matográfica. Na prática, o livro inteiro é um desenrolar dessas contradições, posto que ora os autores criticam as técnicas cinematográficas, ora observam suas possibili-dades; ora generalizam as técnicas musicais modernas (incluindo Stravinsky como compositor importante), ora reverenciam apenas a superioridade de Schoenberg. Con-

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tudo, a tese polêmica – da correspondência e necessária articulação entre música moderna e cinema – mostra--se como a apresentação dialética daquilo que até então aparecia para Eisler como antinomias.

Para solucionar o impasse, o argumento de Eisler e Adorno desdobra-se a partir de uma incrível definição do caráter cen-tral das técnicas musicais modernas. “O retorno da música à necessidade construtiva, a liquidação dos clichês e floreios podem ser qualificados como objetividade. É compatível com as potencialidades do cinema” (idem, p. 40). Intentando des-mobilizar um mal-entendido possível, os autores afirmam que a objetividade (Sachlichkeit) a que eles se referem não diz respeito, por exemplo, ao ideal estilístico neo-objetivo de Stravinsky (que linhas antes é referido como um modelo de elementos e técnicas de música moderna). Completam o argumento definindo o que vem a ser a objetividade caracte-rística da técnica musical moderna:

Compor música objetiva para cinema não significa adotar a qualquer preço uma postura distanciada, mas sim, conscientemente, escolher a postura musi-cal necessária em cada situação ao invés de sucum-bir a clichês e afetações musicais. O material musical deve estar exatamente subordinado a cada uma das respectivas tarefas dramatúrgicas. A isso se dirige a tendência evolutiva da própria música moderna.12

A objetividade musical, então, responde aos desígnios do desdobramento estético que é regido pelos aspectos estruturais definidos pela própria obra. Diante do quadro apresentado, podemos dizer que as exigências da técnica cinematográfica abrem as portas para o uso consciente das técnicas musicais, superando os clichês. Mas, quais são essas exigências?

Eisler e Adorno apresentam o filme como um amálgama entre drama e romance, determinado, portanto, por uma articulação entre o imediato e o reflexivo. Com isso, eles querem observar que a forma fílmica desdobra-se na articulação entre eventos que se apresentam imediatamen-te ao espectador e o caráter épico de fundo, cujo centro se define pelo gesto narrativo da exposição. A música, então, se coloca aí como o elemento que conjuga os elementos épicos e dramáticos do cinema.

Os autores apresentam alguns exemplos para demonstrar as ideias centrais do texto, sendo que aqueles que recebem uma avaliação mais detida são retirados de composições de

Eisler. É interessante observar que aparecem interpretados exemplos de momentos diferentes da trajetória musical de Eisler. A música para o filme Kuhle Wampe está significativa-mente baseada na produção da Kampfmusik de fins da Repú-blica de Weimar, quando o contato com o movimento musical de trabalhadores, a atuação junto aos grupos de agitprop e os termos das peças didáticas de Brecht definiam os interesses de Eisler. Os aspectos compositivos definidos por Eisler para a Kampfmusic passavam longe da adoção de clichês – mesmo em se tratando de canções, com escopo compositivo menos complexo, o trabalho de Eisler se orientava pelo esforço reflexivo diante do material que se apresentava para ele. Isso respondia de maneira mais do que satisfatória ao interesse por articular ao material dramático uma música que não intentasse voo próprio, mas que também não se resumia à aplicação de estratagemas visando meramente endossar o aparente na cena. Por exemplo, em Komposition für den Film, faz-se referência à Kuhle Wampe como um exemplo do uso da música, em sentido contrário à aparência da cena, para a captação plena de seu sentido. Trata-se da música demons-trando movimento frente à calma da imagem.

Tristes casas suburbanas em ruínas, favelas em toda a sua miséria e sujeira. A “atmosfera” da imagem é passiva, deprimente: convida à melan-colia. Ao contrário, a música é ágil e cortante, um prelúdio polifônico de caráter marcado. O contraste da música – a dureza de sua forma, bem como de seu tom – com as imagens meramente montadas provoca uma espécie de choque que, intencional-mente, causa mais resistência do que sentimentalis-mo compreensivo.13

Podemos rever a cena final de Kuhler Wampe, em que as pessoas saem indiscriminadamente do vagão do trem em que discutiam a crise mundial e a queima de café no Brasil. A coesão política daquele grupo de pessoas que anda em fren-te, mas sem rumo definido (ou, se se quiser, sua consciência de classe) não está na imagem da cena, mas na música. A canção responde à afirmação ao fim da discussão: “quem en-tão vai mudar o mundo? Aqueles que não estão satisfeitos!”, conclamando a solidariedade de classes. A leitura tradicional aplaina a imagem e a música, supondo que a canção busca dar um sentido imediato à cena. Mas, nos termos apresenta-dos para a música do filme, estamos diante de um contraste, pois as pessoas em cena não correspondem imediatamente ao que conclama a canção (“Avante! E não se esqueça, onde nossa força está”). O uso de uma Kampfmusic não faz Eisler descuidar das necessidades dramáticas do filme, tampouco

o leva à aplicação de clichês musicais – o decurso melódico e a construção rítmica da “Canção da solidariedade” não são convencionais. A música, determinando-se por meio da consciência e da organização de classe, comenta a passivi-dade total da cena e o andar indiscriminado das pessoas que acabaram de discutir as vicissitudes da crise mundial.

É bem possível que Adorno não estivesse de acordo com esse argumento. Mas estaria mais próximo de aceitar as ideias apresentadas sobre Os carrascos também morrem. Os autores lembram como na primeiríssima cena, logo após os créditos iniciais, apresenta-se um enorme retrato de Hitler. A música que acompanha a cena finaliza com um acorde de dez vozes, comparada à cena da morte de Lulu na ópera de Alban Berg. Segundo os autores, só um acorde que fugisse aos aspectos domesticados da música tradicional poderia dar o verdadeiro caráter de tensão que a imagem de Hitler, de resto imponente na cena, precisava apresentar num filme de crítica ao regime nazista.

O que congrega, então, o recurso a um elemento harmônico desdobrado da música moderna com o uso da Kampmusik como dois elementos correspondentes aos desafios da técnica cinematográfica? Justamente a noção de objetivi-dade apresentada pelos autores. Essa definição de objeti-vidade fica mais bem compreendida a partir do conceito de angewandte Musik. Segundo Günther Mayer, estudioso da obra de Eisler, a ideia de música aplicada é central em seu pensamento e prática.

Em seu conceito de “música aplicada”, Eisler estava preocupado com uma ampla alternativa à crise na cultura musical burguesa e à organização capitalista dos meios de comunicação. Através da “música aplicada”, o crescente isolamento e esvaziamento da música de concerto burguesa – em si mesma cada vez mais incompreensível para as massas – seria quebrado e algo novo combateria os crescentes clichês de efeito massivo da música de entreteni-

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Notas

1 HANSLICK, Eduard. O belo musical. Lisboa: Edições 70, 2002.

2 EISLER, Hanns. Gesammelte Schriften, 1921-1935. Wiesbaden: Breitkopf & Härtel, 2007.

3 BETZ, Albrecht. Hanns Eisler Political Musician. Cambridge: Cambridge University Press, 2006; SCHEBERA, Jurgen. Eisler: Eine Biographie in Texten, Bildern und Dokumenten. Mainz: Schot Musik International, 1998.

4 ADORNO, Theodor; EISLER, Hanns. Kompostion für den Film. Frankfurt: Suhrkamp Verlag, 1976. A edição crítica de 2006 em alemão, além de republicar a edição de 1969 em alemão (que já contava com o nome de Adorno como coautor, além de manter o texto original escrito pelos dois, ou seja, excluindo os trechos que Eisler adicionou quando da publicação na República Democrática Alemã, em 1949), apresenta ainda um DVD contendo material inédito, tido até então como perdido, mais espe-cificamente a gravação das partituras que Eisler escreveu para As vinhas da ira como estudo crítico. Para mais detalhes dessa história, vale ver, além do posfácio de Johannes Carl Gall, organizador da edição crítica, o trabalho de Breixo Viejo. Cf. VIEJO, Breixo. Musica moderna para un nuevo cine: Eisler, Adorno y The Film Music Project. Madri: Akal, 2008.

5 Contamos com uma dissertação de mestrado sobre o assunto, do professor e maestro Ricciardi (1995), um dos poucos trabalhos em português sobre a obra de Eisler. RICCIARDI, Rubens Russomano. Tagebuch de Hanns Eisler: Implica-ções estético-ideológicas analíticas sobre uma cantata. Dissertação de Mestrado em Artes. São Paulo: Departamento de Música da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo - ECA/USP, 1995.

6 Tomo liberdade para sugerir minha contribuição, ainda incomple-ta, para a discussão da importância da DASB e a posição de Eisler em fins da República de Weimar. Cf. BASTOS, Manoel Dourado. Tons da luta: celebrar, comemo-rar, combater – Hanns Eisler e a música como política em fins da República de Weimar (excerto). In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 26 - ANPUH: 50 ANOS. Anais eletrônicos... São Paulo, 2011. Disponível em: <http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1300892554_ARQUIVO_Celebrar,comemorar,combater--paraenvio.pdf>. Ver também BODEK, Richard, Proletarian perfor-mance in Weimar Berlin Agitprop, Chorus, and Brecht. Columbia: Camden, 1997. Considerado o trabalho mais importante sobre o assunto, ainda que com franca simpatia social-democrata e clara antipatia contra os comunistas.

7 Inclusive, nada mais equivocado do que classificar essa fase da produção de Eisler como neoclássica, assim como é absurda a classificação de seu período na República Democrática Alemã como jdanovista...

8 Trata-se de um impressionante conjunto de documentos secretos (mais de 600) do FBI. Disponível em: <http://vault.fbi.gov/Hanns%20Eisler>.

9 A história atribulada de Eisler, sua pesquisa para a Fundação Rockfeller e o livro sobre a composição para filmes está bem narrada em VIEJO, op. cit.

10 ADORNO; EISLER. Ibid., p. 39

11 Id. Ibid. , p.39

12 Id. Ibid. , p.39

13 Id. Ibid. , p. 35

14 MAYER, Günther. Eisler and Adorno. In: BLAKE, David. Hanns eisler: a miscellany. Luxemburgo: Harwood Academic Publishers GmbH, 1995. p.152

mento burguesa. O objetivo era, portanto, estreitar a lacuna entre nova música e a experiência massiva progressiva. Eisler estava tentando resolver o percep-tível problema básico de uma nova cultura musical e um novo estilo musical, centrando-os na situação e na perspectiva histórica da classe mais intimamente associada com os modernos meios de produção, com a produção de massa, ação política de massa e comunicação de massa, aquela classe que substitui formas burguesas de vida com novas formas de viver e que necessita novas prática e teoria artísticas.14

Eisler encontra no cinema o meio exato para o desenvolvi-mento de suas preocupações com a “música aplicada”. Era a linguagem artística massiva por excelência. Seus aspectos técnicos correspondiam aos desdobramentos da música moderna. Seu trabalho com cinema era a continuação das preocupações políticas por outros meios. Colocava, com suas hipóteses, questões que radicalizavam perspecti-vas críticas anteriores ao cinema, como, por exemplo, a

premissa de Walter Benjamin sobre o público, o cinema e a arte de vanguarda. Benjamin, que afirmava em A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica que o público, reacionário diante de Picasso, tornava-se progressista diante de Chaplin. Eisler opera um curto-circuito, pois reconhece as articulações possíveis e necessárias entre música moderna e cinema – o cinema como o meio que articularia massa e vanguarda artística, política e estética radicais.

A relação entre música e cinema, som e imagem, costuma ser assunto para poucos. Os estudiosos de cinema tendem a dar à questão uma importância secundária. Os músicos observam essa relação como um aspecto menor. Não vivemos mais o contexto de Eisler. Mas seus argumentos ainda podem nos indicar que, ao observar a relação entre esses dois aspectos do discurso cinematográfico, que não se reduzem imediatamente um ao outro, estaremos diante das trilhas da política, tão necessárias em tempo de incertezas das lutas populares.

Fotograma de Kuhle Wampe. (Praesens-Film)

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A história do Cinema Novo foi constituída essencialmente a partir da análise dos filmes, oferecendo importantes contribuições ao aprofundamento dos estudos da estética cinematográfica. Entretanto, a investigação que leve em conta uma documentação complementar – críticas, cor-respondências, anotações manuscritas – pode abalar, ou fortalecer, algumas noções estabelecidas. O levantamento de uma série de artigos publicados na imprensa brasileira e cartas pessoais de alguns críticos e realizadores sobre o documentário Arraial do Cabo (1959), de Paulo César Saraceni e Mário Carneiro, permite avançar algumas hipóteses nessa direção.

Compreendidas em conjunto, as críticas sobre Arraial oferecem um depoimento importante sobre a formação do Cinema Novo, na medida em que reúnem publicamente o grupo de jovens interessados em legitimar no Brasil um tipo de cinema de autor, independente e de baixo custo. Os protagonistas da polêmica são Glauber Rocha,1 David Neves,2 Cláudio Mello e Souza,3 Jean-Claude Bernardet,4 Gustavo Dahl,5 Joaquim Pedro de Andrade6 e o próprio Paulo César Saraceni,7 um dos diretores do filme junto com Mário Carneiro. Além desses jovens, Paulo Emilio Sal-les Gomes8 e o crítico português Novais Teixeira9 surgem como incentivadores do debate.

O primeiro a comentar o documentário foi Glauber Rocha. Resoluto, o jovem crítico afirma a inexistência do documen-tário no cinema brasileiro, ou algo de verdadeiramente sig-nificativo. Para ele, o documentário brasileiro se reduziria a meia dúzia de filmes impressionistas sofríveis nos quesitos técnicos e plásticos, realizados por amadores.10

Para Glauber, os documentaristas brasileiros teriam suas grandes pretensões estéticas arrefecidas pela incapacidade de encontrar o foco em segundo plano; no quesito monta-gem, ele se recusa a falar do mais primário: a coordenação narrativa. A exceção era Humberto Mauro, “um cineasta atrás da câmera”, ao contrário do produtor Jean Manzon,11 apontado como responsável pelo monopólio “anticultural” envolvendo o documentário no Brasil. Para o crítico baiano, o documentário no Brasil estava sendo explorado de fato apenas por cineastas independentes. O baixo custo de produção abriria a oportunidade aos jovens realizadores, pois que ainda nos encontrávamos na fase do mais primitivo pioneirismo e somente um levante de consciência intelectual – o que para ele era impossível – permitiria superar a crise do cinema brasileiro, situação que estaria obrigando muitos cineastas a trabalhar em publicidade. Diante dos muitos impedimentos, o cinema brasileiro estaria nascendo do fruto do trabalho de dois grupos de jovens cineastas, um do Rio

Nota sobre a formação do Cinema Novo -

O caso Arraial do Cabo

Fotograma de Arraial do Cabo (1959), de Paulo César Saraceni

e Mário Carneiro.

ensaio

Rafael Morato ZanattoMestrando em História pela Universidade Estadual Paulista

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e o outro da “longínqua e árida” Paraíba do Norte. O grupo sediado no Rio de Janeiro aglutinava as colaborações em desenvolvimento na Bahia, em Minas, Paraíba e, mais cedo ou mais tarde, no Rio Grande do Sul.

Depois do panorama difícil, Glauber distingue Arraial do Cabo de seus antecessores pela forma, adotando como ponto de partida a apreciação de algumas sequências em que pode identificar o que chamou de “denúncia básica do cineasta”: a imagem-expressão e a montagem criativa. Destacando-se pela ausência na imagem de narrativa, literatura e descrição, a panorâmica é evitada como recurso discursivo (comum à escola de Figueroa). Ao procedimento técnico rotinizado, os cineastas dariam preferência à câmera fixa para registrar o material que seria trabalhado na sala de montagem. Glauber destaca ainda que o defeito estrutural de Arraial do Cabo é o fato de possuir três filmes no mesmo filme, três fases distintas, isoladas, mas que em conjunto resultam falhos por condicionar a monotonia ao máximo.

Os tais três filmes são descritos: o primeiro, começando nas gravuras de Goeldi sobre os pescadores, se estende na sequência de cortes rápidos, onde a cidade é reambientada na montagem, ressaltando os planos de conflito. Segundo sua ótica, surgiria um pequeno universo com a invasão dos ruídos da fábrica, quando caminhões pesados adentram as ruas primitivas da cidade. O conflito se desenvolve em sequências precisas e o operário “cresce” no elevador que sobe a sinistra arquitetura da fábrica. O segundo filme é definido como um cine-poema total: a pescaria. O impacto inicial é dado com a morte dos peixes, quando os primeiros planos ultrapassam o caráter ilustrativo e ganham a condi-ção de conhecimento. A salga do peixe é realizada por uma velha de face cortada por rugas que depõe sobre o convívio com o sal, com o mar. Um plano registra os peixes pulando em direção à morte trágica nas redes. Por fim, uma criança anda entre as pernas dos pescadores, dissolvida em plano curto. A análise da sequência empreendida por Glauber Rocha estaria em sua memória ao realizar Barravento, na emocionante luta de Aruã, filho de Iemanjá, contra o mar bravio e o trabalho maligno de Firmino.

Na esteira de Glauber, em Arraial o mar é um desafio para os pescadores, mas o filme abdica da epopeia e converte-se em lirismo. Neste ponto dúbio – a insistência nos homens e no mar – o filme adquire universo poético, embora a câmera procure apenas uma analítica antropológica dos pescadores. A excelência dos recursos visuais, inventivos a cada tomada, e a montagem, cujo ritmo não se deixa levar pela demagogia

Fotograma de Arraial do Cabo.

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do corte efeito, plasmariam o novo mundo marítimo. Afirma ainda que os realizadores “erram” na música e ainda sugere cortes: “Um violão monocórdico arrebenta os nervos depois de cinco minutos de mar e segue por mais oito minutos, para só quebrar a melodia na sequência da morte dos peixes. O que liquida também a sequência são alguns atores (ou pescadores), evidentemente mal dirigidos: um homem olha o mar em três tempos, com os olhos aos trancos e barrancos. O plano deve ser cortado”.

Glauber sublinha que os atores de Arraial do Cabo andam duros, como se andassem sobre uma linha fixa, imputando a responsabilidade à maioria dos diretores brasileiros de teatro e de cinema, habituados a colocar seus atores em função mecânica, quando a sua existência é orgânica, quer em uma ou outra modalidade de histrionismo. Porém, em Arraial, o mar deixa de ser decorativo, de ser limite. Esses jovens cineastas não estavam filiados a nenhuma escola de documentário clássico. O crítico afirma que, no desejo de seus realizadores romperem com o academicismo, de não respeitarem a continuidade tradicional, produziram um problema cuja resolução seria condição vital para seu êxito: “Caso o filme volte à moviola e seja cortado no que há de ruim (os atores andando e a repetição de dois ou três ângu-los) a obra-prima estará confirmada. A montagem – isto não mais se discute – é a criação do filme. E o material recolhido por Mário Carneiro, cuja plasticidade é moderna e depurada, longe de Figueroa e dos crepúsculos silhuetados, suporta ainda a muitos e muitos cortes”.

Recomendados os cortes nos planos da pescaria, o crítico passa a se dedicar ao que chamou de “terceiro filme”. Esta fase teria início no encontro dos operários com os pescado-res e, para Glauber, é a melhor de todas. “É certo que os ato-res continuam ainda mal dirigidos, mas já então o homem

está organicamente ligado ao fato e a câmara está livre de compromissos. Enquanto os homens dançam no bar, um corte mostra em plano curto um homem que, sozinho, discursa na praça. Sua voz é dissolvida pelos ruídos e pela música. Mas sabemos que ele concentra em sua anomalia o drama da cidade, o pathos da civilização primitiva, invadida pela máquina. É um clima fantástico que, por si só, diploma Paulo Saraceni como cineasta”.

Assegurando os méritos, Glauber Rocha destaca que o problema fundamental de Arraial é a montagem destas três partes em um único filme. Apresenta como exemplo a pescaria e o corte do operário subindo o elevador da fábrica que, segundo ele, antecipariam o conflito criado entre peixe e máquina. O erro estaria nesta parte, pois o mar teria seduzido os autores, tendo ele preferido a reverberação plástico-rítmica, o que o faz abandonar a espinha dorsal de sua narrativa. A validade estética do mar não garantiria o funcionamento da dramaturgia, e é a partir deste ponto que Glauber Rocha elucida o surgimento da contradição entre os próprios valores estéticos do mar, que garante sua realização poética, mas o condenaria ao fra-casso como documentário antropológico. O que garantiria a poética também seria responsável pelo enfado. O valor de Arraial do Cabo estaria na economia de close-ups e na rigidez arquitetônica do enquadramento e da composição. Os amadores não seriam experimentais, embora a grande duração do segundo ato carregado de lirismo prejudicaria a força total do filme, como elo entre a primeira e terceira divisão que estabelece em sua análise.

Glauber Rocha destaca ainda a necessidade de nacionalizar a arte a partir de sua linguagem, de sua forma ou expressão, argumentando que os temas nacionais seriam apenas os temas do artista. Para cumprir esses requisitos, o crítico

Fotogramas de Arraial do Cabo.

acentua a necessidade de se realizar boas tomadas, bons versos, e uma prosa de alta qualidade para criar inovações essencialmente nacionais. Ele acrescenta ainda que este “pequeno filme” é exemplar, porque sua modernidade estaria na inventiva em progresso, “na autenticidade dos criado-res que esqueceram os mestres, apesar de Paulo e Mário Carneiro, como cada um de seus colegas, terem seus ídolos de cinemateca; estes não interessam, foram engavetados. É desta independência cultural que nasce o filme brasileiro. Não porque tem temas nacionais, como diriam os teóricos do nacionalismo, repetindo fórmulas desde o passado indianista de Gonçalves Dias. A arte brasileira precisa se nacionalizar através de sua expressão.”12 Como se vê, Glauber Rocha bus-ca legitimar Arraial do Cabo no cenário cultural brasileiro a

partir de sua análise formal. Encontramos o mesmo interes-se pela forma em sua “revisão crítica do cinema brasileiro.13

Um outro artigo, sobre a recepção parisiense ao filme, traz para o debate uma figura decisiva. Trata-se do experiente crítico português Joaquim Novais Teixeira, presidente de júri nos principais festivais europeus.14 Novais Teixeira também destaca as qualidades formais do filme, mas concentra seu foco na transcrição das boas impressões francesas. Em constante diálogo com Paulo Emilio,15 o crí-tico procura divulgar o sucesso dos jovens cineastas bra-sileiros na Europa e comenta a sessão na Sala de Cinema da Unesco, onde viu Arraial do Cabo e O mestre de Apipucos e o poeta do Castelo. Para ele, o cinema brasileiro nunca

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Fotogramas de Arraial do Cabo.

teria se apresentado na Europa de maneira tão ambiciosa, exprimindo-se com naturalidade e simplicidade. O grupo de jovens impressionara o crítico pela ausência de fórmulas e intelectualismos, e já com estilos definidos. Embora fosse a primeira vez que Novais Teixeira assistia ao Arraial do Cabo, aponta que já havia lhe chegado aos ouvidos as impressões entusiásticas do historiador de cinema Carlos Fernando Cuenca, membro do júri em Bilbao, que premiou o documentário com a medalha de ouro no Festival de Documentário Hispano-Americano. O crítico termina cheio de expectativas e aguarda as próximas realizações.

As premiações iam se somando e o documentário ressur-ge na imprensa, nas páginas do Correio da Manhã, em 21 de julho de 1961, em artigo de David Neves. Em Arraial do Cabo – um documentário premiado, o jovem crítico descre-ve a história do cinema brasileiro a partir do que chamou de momentos interessantes, aliados à continuidade da produção de longas-metragens comerciais. David Neves comenta que os cineastas independentes eram jovens com um leve desprezo pela reversibilidade financeira, e que invariavelmente se dedicam a produzir curtas-metragens, categoria inteiramente desprezada por distribuidores e exibidores brasileiros. Essas são as principais condições que definiam o laboratório onde estes jovens cineastas desenvolviam suas teses artísticas, encadeando seu aper-feiçoamento à espera de nova oportunidade, que, no caso de Arraial, chegara com o trabalho antropológico custeado pelo Museu Nacional, por intermédio de Heloísa Alberto Torres, realizadora de pesquisas sociológicas na área.

David Neves aponta que o sistema de produção de Arraial do Cabo obedecia a esta limitação de recursos e, quando seus realizadores decidiram encampar o projeto, já deveriam pressentir a triste sina comercial de seu documentário. Ocorre que o filme conquistara três prêmios internacionais, competindo na Europa, reduto do gênero curto. E, segundo testemunhos, o crítico afirma que a produção foi o sustentá-culo moral do cinema brasileiro exibido no Festival de Santa Margherita Ligure, na Itália, onde a representação brasileira teria primado pelo mau gosto, perdendo fragorosamente para a coesa e promissora seleção argentina.16

Além de documentar um pensamento sobre a produção independente, oposto à visão mais industrialista do Geicine,17 o texto de David também é rico em informações sobre a produção, como a fatura do roteiro, que aconteceu após uns poucos dias de observação in loco e mais outros no Rio de Janeiro, onde se realizaram os trabalhos complementares.

O crítico se vale do testemunho de Mário Carneiro para elucidar uma faceta da produção: “Quando nos dispusemos a iniciar a rodagem, voltamos ao Arraial com toda a produção desenhada”. Carneiro estreou na direção de fotografia com o curta e trouxe para o trabalho sua experiência de gravador plástico, com a justa homenagem a Goeldi.

Em sua avaliação do mercado cinematográfico brasileiro, David Neves considerou que os independentes que aspi-ram a uma escalada progressiva na ladeira da produção têm de arcar com suas responsabilidades, dada a ausência de uma legislação favorável. Outro texto significativo, com-plementar ao de David Neves, é o de Cláudio Mello e Souza. Nele, o jovem crítico discute em profundidade a produção do cinema brasileiro independente e relata em detalhes o impacto do Arraial no cenário cultural brasileiro. O debate sempre tem um alvo preciso: o Geicine.

A primeira exibição do filme em Botafogo, para um grupo de amigos, foi da primeira versão de Arraial do Cabo, que contava com vinte e quatro minutos de duração. Saraceni e Mário Carneiro teriam reagido como zelosos criadores diante das restrições mais veementes. A gota d’água para o filme voltar à moviola foi a forte rejeição por parte dos exibidores cariocas. Solitariamente, já que Saraceni estava em Roma estudando no Centro Sperimentale de Cinematografia, Mário Carneiro voltou com o filme à sala de corte e o reduziu de vinte e quatro para dezessete minutos. Sempre segundo David, o filme teria ganhado unidade e precisão.18

Não sabemos se Glauber Rocha estava presente na pri-meira apresentação do filme, ou ainda se teria recomenda-do pessoalmente o que sugere em seu artigo. O fato é que suas sugestões foram seguidas. Assim como o primado da forma, já se evidencia a ascendência de Glauber sobre o grupo que, em grande medida, foi apresentado ao baiano por Saraceni.19 Voltando ao Arraial, segundo informações de Cláudio Mello e Souza, as duas versões foram reconhe-cidas no exterior. A mais longa recebeu o primeiro prêmio em Florença e a segunda, depois dos cortes realizados por Mário Carneiro, ganharia o Festival de Bilbao e o de Santa Margherita Ligure. Apesar disso, o filme, em qualquer de suas versões, permanecia desconhecido do público brasi-leiro, como reclama o crítico.

Para ele, um cinema moderno necessita de uma crítica a sua altura, que se mantenha inteirada de suas transforma-ções. Sua interpretação sobre o silêncio em torno de Arraial

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se relacionava com a rejeição por parte dos partidários do sistema industrial de produção, leia-se Geicine. Apesar da simpatia imediata pelo filme, o jovem crítico reconhece a preponderância do interesse ideológico em contraposição à recriação equilibrada da realidade da região de Arraial do Cabo. Mas a culpa por este desequilíbrio não estaria na com-posição no interior da parte relativa à pesca. O problema estaria no efeito que esta composição equilibrada produziria quando alinhada à precariedade das tomadas da fábrica, agravando a dissociação entre as duas unidades do drama. O melhor que poderíamos encontrar em Arraial do Cabo, segundo a compreensão de Cláudio Mello e Souza, estaria nas sequências da pesca. Como documentário de infor-

mação antropológica, os valores cinematográficos eram indiscutíveis, além de se constituir como um depoimento de coragem e talento. A sensibilidade artística de Sara-ceni e de Carneiro levou-os a selecionar, na paisagem do drama, o que se lhes apresentava como mais significativo. Os realizadores de Arraial do Cabo, entre os quais se inclui o próprio Cláudio (roteirista), mesmo tendo a consciência da precariedade de algumas tomadas e o domínio das técnicas necessárias para repará-las, não dispunham dos meios ma-teriais para fazê-los. Diante destas condições da produção do documentário, Cláudio Mello e Souza conclui que o filme é resultado do talento, da inexperiência e da falta de recursos de seus idealizadores.

A história de Arraial do Cabo, segundo seu roteirista, apre-senta alguns capítulos dramáticos e outros melancólicos, com certas passagens alegres ou levianas, dois ou três pensamentos profundos, como conviria a um romance de cinema brasileiro. O documentário nascera com uma obriga-ção de ordem científica, o que lhe impunha certos objetivos, e com uma preocupação estética e cultural elaborada pela visão pessoal e comum de seus realizadores. Mas a vontade de ser literatura não poderia se harmonizar com a pretensão de “fazer ciência”, e poderia resultar em seu fracasso científi-co em contraposição ao seu sucesso lírico.

Por sua vez, Glauber Rocha, envolvido como estava com o fil-me, volta mais uma vez a ele.20 O cineasta posiciona Saraceni entre grandes nomes do cinema brasileiro, entre Lima Bar-reto com seus documentários e O cangaceiro; Nelson Pereira dos Santos com Rio 40 graus e Walter Hugo Khouri com Na garganta do Diabo. Como critério, estaria a falar dos filmes brasileiros que romperam as barreiras tímidas do colonialis-mo cultural a partir da conquista de prêmios internacionais. Segundo Glauber, se antes o documentário de Gerson Tavares,

O grande rio, havia deslocado olhares para o “selvagem” Brasil, agora quem estaria a prestar esse serviço era a du-pla Saraceni e Carneiro. “Mesmo menosprezada no Brasil, a obra desses dois jovens conquistara com facilidade três prêmios importantes, em Bilbao, Firenzi e Santa Margherita. Na Cinemateca Francesa, obteve 5 minutos ininterruptos de aplausos e na Academia de Cinema da Itália, é distinguido pela professora Rosada21 como exemplo”. Glauber afirma que com Arraial do Cabo a descompostura intelectual do cinema brasileiro tinha motivos para levantar a cabeça. Era o mais importante acontecimento para o cinema nacio-nal, desbaratando as ideologias de outros grupos: “as brigui-nhas, a euforia industrialista, o culto do ouro corrompido que viria com a coprodução”. Já sabemos quem é o alvo.

Glauber afirma que o documentário poderia atemorizar certos tabus humanos e profissionais do mal iluminado palco cinematográfico de nossa terra, provando que não se necessita de milhões para fazer um bom filme. O cinema moderno seria um problema de inteligência, coragem, vivência e, sobretudo, sentido de profissionalismo. As mar-

Fotogramas de Arraial do Cabo.

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cas do subdesenvolvimento estavam impressas por todo o filme e, como Cláudio Mello e Souza, Glauber Rocha as destacaria como limite e possibilidade. O primeiro lamenta as inúmeras significações sepultadas na caixa de sobras na sala de montagem e reconhece que, apesar da chancela internacional, Arraial do Cabo estaria longe da genialidade, mas é um filme cheio de boas intenções e sutilezas, pode-roso e digno. Seu exemplo era contrário à frágil e amarga história do cinema brasileiro.

Após a resolução das primeiras divergências entre os en-volvidos em sua produção, restou-lhes a tarefa de criar um filme que não mentisse aos seus objetivos, que não fosse empolgado a ponto de transformar-se numa série de ima-gens essencialmente documentais. As questões suscitadas por Mello e Souza se concentraram nos problemas estéticos

e nas limitações financeiras, conjunção de fatores que pro-porcionaria aos realizadores o cumprimento da maior parte de seus objetivos dentro de um estrito e severo regime de economia. O que para Glauber Rocha seria exemplo de que cinema brasileiro poderia ser produzido com baixos custos, por cineastas jovens e corajosos, também constituíra um problema para seus produtores. As despesas imprevistas se amontoavam e alguns tropeços não cessavam de retardar a conclusão do trabalho. “A verba minguava e para restaurá--la apelou-se à inspiração e ao bolso, à improvisação e às economias domésticas”. Este problema, específico do cinema, relacionava-se às estruturas viciadas do subde-senvolvimento e não desanimou Mário Carneiro, que soube compreender que a realidade humana e social da região deveria ser constatada ao vivo. A partir desta perspectiva, se existissem aparatos técnicos, seriam desnecessários e pre-

Fotograma de Arraial do Cabo.

judiciais à captação das verdades dinâmicas. Este problema de produção, sob a ótica de Mário Carneiro, se transformaria em um novo modo de produzir. Por exemplo, a substituição do tripé pela câmera no ombro não conferia ao filme apenas uma grande agilidade; era uma saída ao precário proces-so de industrialização do cinema brasileiro. Mas se este procedimento escolhido para o documentário evidenciou sua eficiência, não se poderia aplicá-lo para a grande maioria dos documentários produzidos no Brasil.

Voz dissonante, Jean-Claude Bernardet comenta Arraial do Cabo e se contrapõe ao filme, abordando o problema do na-turalismo, prejudicado pelo esteticismo de seus realizadores. Segundo o crítico, a montagem adotada estaria embebida de metáforas. Esta modalidade do passado (montagem eisens-teiniana), evidenciada com a repetição do plano, dava aos espectadores a impressão de uma composição procurada, o que não combinaria com o desejo de mostrar a realidade tal como ela é. Pelo contrário, a realidade apareceria manipu-lada, forçada, e, com isso, o filme perderia o seu vigor. Para Bernardet, a manipulação na reconstituição da realidade é problemática por estar em função de um ideal estético que lhe é superior, e não em função desta mesma realidade, tendo este simbolismo a responsabilidade pela abstração de qualquer visão social.22

O emprego da montagem paralela – os planos da fábrica e os planos do mar – provocava a mesma impressão de reali-dade contrafeita, mas reduzia o problema social a um clichê, por explorar algo que possuíra validade quando o cinema estava num período de procura expressiva. Os contrastes entre a cidade e o campo, a pobreza e a riqueza, por seu em-prego excessivo, haviam deixado de ser significativos para o público. O filme como um todo estaria mergulhado em uma atmosfera de realidade superficial. Essa falsa naturalidade se deveria ao fato de os pescadores sentirem constante-mente a presença da câmera e de, o público, a presença dos realizadores, com os últimos a pedirem aos homens que se movimentassem, virassem a cabeça, sorrissem, etc. As preocupações estéticas aliadas à beleza de certas fotografias eram as responsáveis por criar uma barreira que impedia a compreensão da realidade, transformando a preocupação em piedade para com o destino dos pescadores.

Por último, Bernardet ressalta que o baixo recurso emprega-do na confecção do filme, de problema, se torna sistema de produção, semelhante ao que ocorria na Itália, França e EUA. Esta limitação atuaria diretamente sobre o estilo e o conteúdo cinematográficos, já que deixa de lado as filmagens em

estúdio, os elencos caros, cenografias e vestuários originais, assim como iluminações complexas. As filmagens em exte-rior, com o mínimo de atores, aproximaria o filme do real e do povo. Uma fotografia mais rudimentar teria transmitido mais diretamente o realismo, e Arraial do Cabo seria o exemplo de que uma produção pobre não engendra automaticamente trabalhos significativos e populares. Seria preciso seu bom emprego, assim como um ambiente propício, para atingir es-ses resultados. Intervindo no debate, Gustavo Dahl se posicio-na a favor dos realizadores e conclui que, embora Bernardet não tivesse gostado de Arraial do Cabo, seu texto possui uma contradição interna ao apreciar Aruanda, filme que, segundo Dahl, se aproxima do modo de produção de Arraial.

Depois do posicionamento dos jovens empenhados na reno-vação, restava ao próprio Saraceni emitir seu ponto de vista. E o cineasta o faz de maneira polêmica, redigindo uma carta pública a Bernardet. Saraceni contesta alguns apontamentos de Bernardet apoiando-se no sistema de produção do do-cumentário. Devido à carência de recursos, o realizador não pôde contar com mais de 20 minutos. Eliminou os travellings, as panorâmicas – o que o salva do figueroismo – e a narra-ção didática, tendo preferido a câmera fixa não porque gos-tasse da montagem de Eisenstein, mas porque queria dizer muito em pouco tempo. Saraceni argumenta que não partiu de ideias preconcebidas e, embora empregue o choque entre as imagens, em nada se prejudicaria o retrato da realidade de uma cidadezinha primitiva que estava a lutar contra a “monstruosa” fábrica de Alcális. Rebatendo as considerações essencialmente estéticas de Bernardet, Saraceni afirma que o filme não flerta com o naturalismo. O esteticismo presente no documentário foi realizado com a câmera na mão, sem nenhuma preocupação estética de antemão. Não teria ele “culpa de Mário Carneiro ser genial”. Quanto à encenação, Saraceni afirma que não dirigira ninguém, ao contrário do que supunha Bernardet, e Glauber também.

O debate é de alto nível e rico em detalhes e tem um grande significado para a formação de um grupo e o estabeleci-mento de uma plataforma: um cinema de autor, de baixo custo, empenhado estética e socialmente e com um registro documental. Impulsionado pela premiação internacional, o grupo ocupa um espaço decisivo nos suplementos de cultu-ra dos grandes jornais, partindo para a defesa estética e do sistema de produção, e demonstrando aptidões para com-preender o que havia de novo no cinema brasileiro. Paulo Emilio relembraria ainda que somente após a conquista dos prêmios o filme pôde contar com o reconhecimento de seu valor pelos centros de cultura cinematográfica do Brasil,

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1 Dois documentários: Arraial do Cabo e Aruanda, de Glauber Rocha. Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, Salvador, 06 ago. 1960 e Arraial do Cabo, Cinema Novo, Câmera na Mão, de Glauber Rocha. Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, Salvador, 12 ago. 1961.

2 Arraial do Cabo – um documentário premiado, de David Neves. Correio da Manhã, 21 jul. 1961.

3 A Condenação do Talento, de Cláudio Mello e Souza. Suplemento Literário d’O Estado de S. Paulo, 05 ago. 1961.

4 Dois documentários, de Jean-Claude Bernardet. Suplemento Literário d’O Estado de S. Paulo, 12 ago. 1961 e Modificação crítica, de Jean-Claude Bernardet. Suplemento Literário d’O Estado de S. Paulo, 05 jan. 1963.

5 Algo de novo entre nós, de Gustavo Dahl. Suplemento Literário d’O Estado de S. Paulo, 07 out. 1961.

6 1961 – Festival de Cinema Latino-americano em Santa Margherita Ligure, carta geral de Joaquim Pedro de Andrade. In: ROCHA, Glau-ber. Revisão Crítica do Cinema Brasileiro. São Paulo: Cosac Naify, 2003, p. 126-127.

7 Temos a carta de Saraceni em resposta ao artigo de Bernardet, publicada em 14 out. 1961 no jornal O Estado de S. Paulo.

8 Porto das Caixas tem horas mas não tem telas, de Paulo Emilio Salles Gomes. Revista Visão, 14 jun. 1963; Paulo Emilio é um articu-lador de todo o debate. Sua ascendência sobre o grupo se reflete no trabalho da Cinemateca, do qual faziam parte Dahl e Bernardet, e na divulgação dos primeiros passos do Cinema Novo em sua tribuna

no Suplemento Literário. No caso específico de Arraial do Cabo,

interveio recomendando o filme a Novais Teixeira e debatendo com

Saraceni por meio de cartas.

9 Dois filmes realizados por brasileiros em Paris, de Novais Teixeira.

O Estado de S. Paulo, 20 jan. 1961.

10 O alvo de Glauber é especialmente Magia Verde, de Gian Gaspare

Napolitano, filme sobre a Amazônia premiado no Festival de Berlim.

11 Fotógrafo francês radicado no Brasil. Trabalhou no Departamen-

to de Imprensa e Propaganda. Produziu muitos documentários a

serviço do IPES – Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, ficando

conhecido no período militar pelo tom elogioso ao regime.

12 Documentários: Arraial do Cabo e Aruanda – Jornal do Brasil –

06 ago. 1960.

13 Segundo Ismail Xavier, além da crítica ao projeto industrial de

cinema levado à frente pela Vera Cruz, próprio do ideário vindo

dos anos 1950, o diferencial decisivo de sua abordagem seria a

intensidade e a natureza de seu compromisso estético, sua maior

análise do estilo e a invenção de uma linguagem ajustada à carência

de recursos. A constante referência à tradição literária seria a raiz

de uma forte tensão que enriqueceu o Cinema Novo. XAVIER, Ismail.

Prefácio. In: ROCHA, Glauber. Revisão Crítica do Cinema Brasileiro. São Paulo: Cosac Naify, 2003, p. 10.

14 Escritor português, jornalista, ativista político, crítico literário,

cinéfilo, Novais Teixeira, antes da guinada cinéfila, exerceu, na

Espanha revolucionária, o cargo de chefe do serviço de imprensa.

Com a iminência da vitória franquista, exila-se em 1938 na Fran-

ça. A investida nazista força-o a um exílio no Brasil, onde dirige a

Interamericana, o serviço de propaganda dos aliados no Brasil. O

fim da guerra marca o retorno a Paris e a colaboração constante

n’O Estado de S. Paulo.

15 Cf. correspondência trocada entre os dois críticos e depositada na

Cinemateca Brasileira.

16 ANDRADE, Joaquim Pedro. 1961 – Festival de Cinema Latino--americano em Santa Margherita Ligure. In: ROCHA, Glauber. Revisão Crítica do Cinema Brasileiro. [1963] São Paulo: Cosac Naify, 2003, p.

126-127.

Joaquim Pedro de Andrade, em carta sobre o festival, afirma que

fora o Arraial, os filmes brasileiros (Moral em concordata, A primeira missa e Cidade ameaçada) deixaram impressão lamentável. O vexa-

me teria se completado com as declarações de Fernando de Barros,

representante do Geicine, que se posicionou a favor da distribuição

compulsória. No debate, Barros teria sido humilhado publicamente

por portugueses antissalazaristas conhecedores da questão, e a

Alberto Cavalcanti restaria o pessimismo sobre o futuro do cinema

brasileiro. Restou a Novais Teixeira distribuir alguns panfletos

informativos diante do despreparo de pessoas como Fernando de

Barros e o produtor J. A. Orsini. In: ROCHA, Glauber. Revisão Crítica do Cinema Brasileiro. São Paulo: Cosac Naify, 2003.

17 O Grupo Executivo da Indústria Cinematográfica foi um órgão

federal criado no governo Jânio Quadros (1961) para adequar

a competição desigual entre o cinema nacional e o estran-

geiro. Entre suas propostas, estavam a recuperação da Vera

Cruz, financiamentos junto ao Banco do Brasil e o incentivo à

coprodução. Para mais informações cf. RAMOS, José Mário Ortiz.

Cinema, Estado e lutas culturais. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.

Ver também SIMIS, Anita. Estado e Cinema no Brasil. São Paulo:

Annablume/FAPESP, 1996.

18 David Neves afirma que os cortes se concentraram especial-

mente nos momentos de encenação. Pelo texto de David, pode-se

concluir que as reduções seguiram as indicações de Glauber Ro-

cha. Mas Arraial ainda receberia outras propostas de remontagem,

como consta na carta de Saraceni a Paulo Emilio. A proposta teria

partido de Vera Sauer, ligada ao Itamaraty, que estaria disposta a

adquirir dez cópias do curta se a parte da indústria fosse desloca-

da para o final.

19 Durante as filmagens de Arraial do Cabo, Glauber Rocha realizava

Cruz na praça, e já conhecia Saraceni. O encontro inicial ocorreu

no Rio de Janeiro, em 1959, quando montava Pátio, no Laboratório

Líder. Conhecera Saraceni no Alcazar, onde o diretor estava em uma

mesa com Leon Hirszman, Miguel Borges, Cláudio Bueno Rocha e

Carlos Peres. Encontraram-se novamente na Líder, quando Sarace-

ni foi pedir ajuda ao técnico Sousa Júnior para criar um efeito espe-

cial capaz de fazer a lua sair das nuvens. O diretor de Arraial levava

Glauber para as noites festivas de Copacabana e Ipanema, onde

conheceria Lúcio Cardoso, Cláudio Mello e Souza, Mário Carneiro,

atores, atrizes, diretores teatrais, críticos, intelectuais e marginais.

Cf. ROCHA, Glauber. Revolução do Cinema Novo. São Paulo: Cosac

Naify, 2004. p. 435-436.

20 ROCHA, Glauber. Arraial, Cinema Novo e Câmera na Mão. In:

Suplemento Dominical do Jornal do Brasil. 12 ago. 1961.

21 Montadora de Don Camillo (1952), de Julien Duvivier; Cani e Gatti (1952), de Leonardo De Mitri; La Bela Addormentata (1942), de Luigi

Chiarini, entre outros.

22 A consideração de Bernardet quanto à filiação dos cineastas se

distingue da análise de Glauber Rocha, que afirma que os realizado-

res haviam se esquecido de seus ídolos de cinemateca.

23 GOMES, Paulo Emilio Salles. Porto das Caixas tem horas mas não tem telas. Revista Visão, 14 jun. 1963.

24 GOMES, Paulo Emilio Salles. Primavera em Florianópolis. In:

Suplemento Literário d’O Estado de S. Paulo, 06 out. 1962.

Notas

mas que sua audiência não teria superado o público das cinematecas, museus, clubes e escolas, por não ter sido distribuído na rede comercial de salas de cinema.23

O esforço crítico em legitimar o Cinema Novo tem em Arraial do Cabo uma síntese das propostas de transfor-mação da maneira de se conceber e de fazer cinema no Brasil. Um cinema criativo, de baixo orçamento, reco-nhecido internacionalmente e apoiado por uma crítica local militante. O protagonismo de Glauber e seu sentido do “moderno”, a concretude de David Neves, as ques-tões ideológicas em Jean-Claude Bernardet e Cláudio de Mello e Souza, reforçadas pela defesa de Gustavo Dahl e o lirismo de Paulo César Saraceni e Mário Carneiro impulsionam o que já aparecia isoladamente em cada indivíduo. O caso Arraial ilustra assim as possibilidades de uma história social do Cinema Novo, que não nega uma análise interna ou estética dos filmes, nem tampouco os vê como reflexo do real, mas procura delinear o espaço da produção dos filmes do movimento artístico e o discurso sobre as obras. Um espaço específico, um microcosmo onde os filmes se realizam, se diferenciam e se hierar-quizam. Evidentemente, esse microcosmo está ligado à realidade social, apesar de suas especificidades. Nossa intenção aqui foi fornecer subsídios para a compreensão do momento em que os indivíduos ganham consciência

desse espaço e passam a produzi-lo. É no coração desse debate que Paulo Emilio pode concluir:

O Cinema Novo Brasileiro propriamente ainda não existe, o que não impede que já tenha adquirido certa celebridade e, sobretudo, esteja cumprindo plena-mente sua missão. Cinema Novo é um grito de guerra à procura das guerras que mais lhe convém. É uma bandeira indiscutivelmente revolucionária que ainda não encontrou a sua revolução. Aliás, na hora do en-contro não será uma mas muitas revoluções que se lhe oferecerão no campo ético, social e estético. Isso significa que no momento de sua vitalidade maior o Cinema Novo será ainda mais indefinível do que hoje. Ainda bem, pois a sua força emana dessa indefinição e da liberdade decorrente. Cinema Novo, hoje, é muito mais manifestação do que manifesto ou programa, e oxalá no futuro ele escape às configurações dos rela-tórios e balanços dos livros de história e permaneça imagem de um tempo vivido e sentido intensamente. Na medida em que se procura identificar com o fluir e o fruir do tempo presente o Cinema Novo envolve todos nós. O mecanismo e participação no Cinema Novo não é o de aceitação de ideias ou filmes, mas o da descoberta de que nossas emoções, ações e pala-vras são parte integrante de um processo em curso.24

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“A Gomes, Paulo, que passará à posteridade por ter sido

o Engels desta obra-prima. Muito afetuosamente, Antonio

Kandido. Março de 1945.” Dedicatória de Antonio Candido

a Paulo Emilio na página de rosto de O método crítico

de Silvio Romero (São Paulo: Revista dos Tribunais, 1945).

Em uma crônica do início da década de 1960, Paulo Emilio evoca um sonho recorrente que o atormentava há alguns anos. O sonho é relembrado a propósito de um filme de terror norte-americano, mas o que o inconsciente recupera é um pesadelo de verdade numa época de medo: a fuga através do túnel de um presídio varguista.2 Esse processo em que um elemento de ficção permite a enunciação de uma realidade é um procedimento recorrente em Pau-lo Emilio. Mas o que nos interessa agora é a figura do soterrado. É provável que nosso autor tenha tido o mesmo sonho, de maneira variada e em diferentes situações. Uma delas bem poderia ter sido um soterramento por livros, uma avalanche de obras clássicas que se precipitaria sobre a cabeça do estudioso concentrado num romance. Paulo Emilio tinha fascínio pelos livros, desde menino acumulava diferentes edições das obras completas de Eça de Queiroz, volumes de literatura brasileira romântica, literatura france-sa e espanhola, além dos manuais de direito e de medicina, sem contar as inúmeras revistas culturais. Na sua primeira estada na França, gastava quase todo o dinheiro enviado pelos pais com livros obscuros de política e sobre o cinema de vanguarda e Chaplin. Em sua segunda estada não foi diferente, e os pequenos trabalhos que lhe rendiam alguns cobres, como o de locutor da Rádio Paris Mondial substituin-do Di Cavalcanti, além de uma bolsa de estudos do governo

francês, complementavam o orçamento. Paulo Emilio lia ao longo de toda a madrugada, dormia pela manhã e de tarde dividia o tempo entre a compra de livros e as visitas à Biblioteca Nacional e à Cinemateca de Langlois. Quando voltou ao Brasil em 1954, assim como seu ilustre homô-nimo – que, após a vitória, transportou toda a biblioteca do rei da Macedônia –, Paulo Emilio trouxe centenas de livros e foi obrigado a pagar uma “multa enorme” por excesso de bagagem. Seu retorno ao Brasil foi marcado pela definição de um grande projeto intelectual: uma cinemateca fortale-cida, o desenvolvimento dos estudos históricos do cinema local e o comentário emancipado do cinema contemporâ-neo. Projeto que se traduz na grande biblioteca, diversificada e cheia de curiosidades sobre o seu titular e sua época. No início de 1962, para armazenar parte dessa biblioteca, foi necessário alugar um apartamento na rua Mário Cardim, próximo à Cinemateca Brasileira, pessimamente instalada no Parque do Ibirapuera. Escritório-biblioteca, “os sapos”, como foi batizado o apartamento, era um lugar de retiro para a concentração e a introspecção que a tranquilidade da Vila Mariana favorecia. A constante atualização bibliográfica especializada exigia uma série de encomendas, que as notas fiscais do arquivo pessoal de Paulo Emilio confirmam. Esse homem cercado de livros bem que poderia ter sonhado com o músico Charles-Valentin Alkan, o “Berlioz do piano” que,

A biblioteca de Paulo Emilio

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“Mais la vérité et la vie sont désordre; les filiations et les parentés qui ne sont pas surprenantes ne sont pas réelles...”1

Paul Valéry. Stendhal. In: Varieté II. Trecho grifado por Paulo Emilio

ensaio

Para Laurent Segalini

Adilson MendesDoutor em Ciências da Comunicação pela ECA-USP.

Pesquisador da Cinemateca Brasileira

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em certa manhã de 1868, foi encontrado esmagado por sua própria biblioteca.

O trabalho em torno de uma biblioteca é uma incursão em um livro, que se transforma em mergulho de um livro a outro e dos livros para o mundo. Mas essa investida é marcada por errâncias labirínticas, árduas passagens que podem dar em nada, mas que também podem desembocar em momentos de grande júbilo intelectual.

Sem dúvida, trata-se de um aprofundamento nos diferentes caminhos da memória e do conhecimento, em que o jogo livre da digressão funda um lugar de encontros utópicos, anacrônicos e ucrônicos, que revelam afinidades eletivas, divergências, escolhas, recusas e opções definidas. Enfim, pela sua história, organização, ordem e público que escolhe, toda biblioteca traz consigo uma concepção da cultura, que informa sobre a sociedade que a gerou.

Mas toda biblioteca também encerra um conjunto de segre-dos de seu fundador: indo de uma estante a outra e tecendo entre os livros uma proximidade estranha aos volumes que os separam, estabelecendo uma ordem que um terceiro não poderia jamais penetrar ou reproduzir. Por isso, o esforço aqui é traçar algumas linhas, conexões entre alguns autores e a permanência de algumas ideias na obra de Paulo Emilio. Como nos informa Enis Batur, uma biblioteca não permite que um leitor se equipare a ela. Daí que o esforço não é ler tudo o que leu nosso autor, o empenho é incluir sua bibliote-ca como elemento revelador de seu trabalho. Claro está que ninguém jamais poderia ler um livro como Paulo Emilio o leu, como ele o viveu. O que nos interessa é procurar influ-ências que mostrem entradas pouco utilizadas na análise da obra do crítico. Como o saber é cumulativo e se sustenta no que o precede, na tradição, a biblioteca necessita de uma exploração contínua que a impulsione para o presente.

Tal como a conhecemos hoje, a biblioteca de Paulo Emilio não é apenas uma coleção de livros, ela também é um catálogo de problemas. Quando Ernst Cassirer falou coisa parecida sobre a Biblioteca Warburg, ele não se referiu à série de temas que os milhares de volumes encerravam, mas à maneira como diferentes linhas de pensamento se entrecruzavam e se interpenetravam, vinculando-se a um único centro ideal. Mudando o que se deve mudar, a maior dificuldade de quem percorre as estantes da biblioteca de Paulo Emilio é estabelecer conexões, nexos, relações, “leis de boa vizinhança” que criem sentidos e que auxiliem na decifração do pensamento de seu titular. Numa espécie de

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Livro de Flávio de Carvalho. Experiência número 2: realizada sobre uma procissão

de Corpus Christi, uma possível teoria e uma

experiência. (São Paulo: Irmãos Ferraz, 1931)

–Livro de Leon Trotski. La révolution permanente.

(Paris: Rieder, 1932)–

Livro de Victor Serge. Destin d’une révolu-tion: U.R.S.S 1917-

1937. (Paris: Bernard Grasset, 1937)

–Exemplares da Revista

Esprit, dirigida por Emmanuel Mounier.

montagem de atrações, essa biblioteca é um conjunto de as-sociações que geram uma nova imagem ou um texto novo.

Para isso, faremos uma breve descrição desse acervo e, com a dose de subjetividade que a tarefa envolve, esco-lheremos algumas preferências do titular. O leitor pode se perguntar qual a validade dessa enumeração de obras sem um critério muito seguro. Pode-se perguntar qual a validade desse tipo de observação, pois muitas vezes temos livros que nunca chegamos a ler. Terá Paulo Emilio lido esse ou aquele livro? Será que tal autor é mesmo significativo para uma exegese? Sem dúvida, é difícil afirmar, e por isso a proposta possui uma considerável carga de arbitrariedade. Porém, a influência de alguns autores é evidente, enquanto outros são pontos significativos em determinados momen-tos da biografia de nosso autor. Uns são peças importan-tes para desvendar a constituição do estilo, outros são documentos que informam sobre as referências históricas para determinadas investigações. Quanto à questão se Paulo Emilio leu ou não todos os livros de sua biblioteca, poderíamos responder com as palavras de Anatole France que, inquirido sobre o mesmo problema, teria respondido: “Nem sequer a décima parte. Ou, por acaso, o senhor usa diariamente sua porcelana de Sèvres?”

O que importa aqui é a presença de determinados títulos, pois ela já evidencia a topografia bibliográfica de toda uma época. Certamente, essa biblioteca, por sua história singular, abriga

um grande fantasma, um número espectral de ausências que também importam, mas que são impossíveis de serem recuperadas. Resta-nos trabalhar com os títulos que sobre-viveram até os dias de hoje e interrogá-los. Apesar da grande dose de acaso, a tarefa procura algum realismo e objetividade.

A biblioteca de Paulo Emilio é tomada aqui como porta de acesso ao seu pensamento. As características dos livros informam um programa de leituras e formas de estudo. Os volumes guardam marcas importantes, rastros de um leitor criterioso, que deixou traços de caminhos percorridos e indicações de desvios. Folheando os livros é muito comum encontrarmos, no final de cada volume, anotações dos números das páginas mais significativas. Esse sistema de referência indica não somente a leitura atenta, mas também uma forma de remeter para um lugar já visitado, o que facilita a releitura. Outra particularidade desses livros são os grifos e as anotações marginais, estas últimas, raras e, por isso mesmo, significativas. Paulo Emilio tinha grande zelo por seus livros, um zelo de colecionador, que faz indicações na página com muita parcimônia. As páginas cortadas com precisão também mostram o cuidado pelos livros. Aqueles não lidos ou os parcialmente lidos, com apenas parte das páginas cortadas, também são numerosos.

Os 5 mil volumes que chegaram até nossos dias têm uma história marcada pelos percalços de seu titular, mas também pela particularidade da instituição que a abriga, a Cinemateca

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Brasileira. Quando o crítico retornou ao Brasil, em 1954, após sua segunda estada na França, um de seus propósitos era fortalecer uma instituição recém-emancipada (1956) do Mu-seu de Arte Moderna de Ciccilo Matarazzo. Entretanto, todos os esforços para sensibilizar o poder público e conseguir uma dotação compatível com suas necessidades deram com os burros n’água. A penúria era compensada pelo grande entusiasmo de Paulo Emilio e de toda equipe, que o carisma do crítico conquistava para a causa do desenvolvimento da cultura cinematográfica local. Nessas condições, Paulo Emi-lio doou praticamente toda a sua biblioteca de cinema para a instituição, afinal a Cinemateca era quase uma continuidade de sua residência. A biblioteca continha o que havia de melhor no mercado editorial sobre cinema: os pioneiros da história do cinema,3 as principais revistas,4 as biografias de cine-astas e astros, os grandes nomes da teoria.5 E junto com os livros de cinema, também estava uma biblioteca de ciências humanas, constituída a partir dos anos de 1930 e repleta de volumes de história, política, sociologia, psicologia e literatura. No início da década de 1960, Paulo Emilio, empenhado como estava na transformação do cinema local em todas as suas dimensões (público, produção, crítica), doou para o histo-riador Edgar Carone grande parte dos livros de história do movimento operário europeu que acumulara na época de sua intensa militância política e quando realizava o estudo sobre os Vigo. Carone precisou realizar várias viagens de jipe para transportar esses livros.6 O que ficou na Cinemateca eram as principais referências do discurso cinematográfico, ao lado de livros sobre os socialismos, obras de Paul Valéry, Karl Marx, André Gide. Entretanto, com o passar dos anos e o aprofundamento da crise da Cinemateca na década de 1970, o crítico foi forçado a doar, por meio de um convênio, grande parte desse acervo ao Museu Lasar Segall, antes que ele se deteriorasse completamente em razão das péssimas condições de seu armazenamento.

Assim, em 1974, a Cinemateca Brasileira transferiu ao Museu Lasar Segall quase todo o seu acervo bibliográfico de cinema, restando apenas algumas obras de referências, duplicatas das obras enviadas ao Museu, e todos os livros de ciências humanas que sobraram após os jipes de Carone. Em 1977, com a morte de Paulo Emilio, Lygia Fagundes Telles doou o arquivo pessoal do crítico para a Cinemateca, toda sua produção intelectual, correspondência, recortes de jornais e todos os livros que estavam na Cinemateca, nos “sapos” e na residência do crítico. Na década de 1980, a Cinemateca iniciou a sistematização do arquivo pessoal do crítico, e os livros de cinema foram separados dos demais que, a partir de então, passaram a ocupar um lugar reservado, recebendo

o nome de Biblioteca Pessoal de Paulo Emilio, um conjunto destacado da biblioteca especializada em cinema. Como tal, permaneceu como um material praticamente sem consultas e, à exceção dos poucos técnicos da própria Cinemateca que iniciaram um inventário e depois a catalogação em base de dados, leram alguns volumes, ninguém nunca se deteve nesse conjunto. Em meados de 2008, ao trabalhar com esses livros, encontrei uma carta de Antonio Candido entre páginas muito deterioradas de Proust; em outro volume de gramáti-ca francesa achei um pequeno bilhete de um companheiro anônimo do Presídio Maria Zélia; em um livro sobre a história do socialismo (Max Beer) me deparei com um marcador de páginas anunciando obras de Lênin, sem falar nas anotações, grifos, páginas indicadas no final dos volumes, marcas de café e, numa página de Gide, a própria impressão digital de Paulo Emilio que, por acidente ou falta de hábito, molhou o dedo com tinta de caneta esferográfica e gravou uma folha em branco com sua marca pessoal.

Folhear esses livros, trinta e três anos depois do contacto de Paulo Emilio, foi uma experiência que fundiu reflexão e curio-sidade com fascínio, nem sempre de maneira equilibrada.

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Em comentário sobre a amizade com Oswald de Andrade, dez anos após sua morte, Paulo Emilio relembra a própria curiosidade insaciável que, de alguma forma, nunca o aban-donou. Diz o crítico: “Lá pelos dezoito anos tudo, com exce-ção do cinema e de qualquer ciência exata, me interessava tão vivamente quanto confusa e superficialmente: política, literatura, psicanálise, teatro, arquitetura, sociologia, pintura. O critério era um só: Tudo que me parecesse moderno tinha valor.”7 E nessa fome de conhecimento entrava um cipoal de referências, que iam do comunismo ao aprismo,8 de Lasar Segall, Flávio de Carvalho, Mário de Andrade, Gilberto Freyre e Anita Malfatti a Lênin, Stálin, Trotsky, Meyerhold e até Renato Viana. O aspecto caleidoscópico positivo, espécie de samba do crioulo doido do espírito, é fruto de uma época de engajamento artístico-político e de fascínio pelas novida-des das ciências humanas na Universidade de São Paulo, disposições que permanecem ao longo dos anos e que se refletem também em sua biblioteca.

Como marca da província, essa biblioteca apresenta certo atraso de gosto que se mescla à novidade. No meio de tantos volumes de Eça de Queiroz e Romain Rolland, surgem

André Gide, Jean-Paul Sartre, Antonio Candido e uma cole-tânea de estudos estruturalistas. As presenças de Du Bos, Taine, Anatole France, Valéry Larbaud e Paul Bourget são exemplos de uma biblioteca feita na província, pois esses autores nada mais significam para nosso tempo e envelhe-ceram irremediavelmente. A ideia aqui não é realizar uma descrição exaustiva do acervo, mas apenas destacar alguns autores para compor uma descaracterização criativa.

A biblioteca de Paulo Emilio constitui um mapa de sua geo-grafia espiritual e intelectual, o desenho e a trama do cami-nho percorrido, com inúmeras bifurcações, cheio de novas pistas. Ao mesmo tempo, ela é uma espécie de topografia bibliográfica do mundo intelectual brasileiro das décadas de 1940 a 1970. A grande presença de autores franceses é um fato em toda biblioteca de um intelectual brasileiro do perío-do, e são notórias a marca do existencialismo, a “paixão pela Rússia”, o modernismo, os mitos literários estrangeiros e a vontade de abarcar a cultura ocidental em sua vastidão. Aos nossos olhos contemporâneos de “especialistas”, para quem a tão apregoada interdisciplinaridade só fez delimitar melhor as fronteiras de cada área de conhecimento, essa biblioteca demonstra um leitor eclético demais, sem a personalidade definida que uma obra coesa exige. Mas no exame da biblio-teca de Paulo Emilio, o que se percebe é uma ligação entre

cada estante, cada livro, que ora remete a um aspecto pre-ciso, ora a questões gerais de interesse para a análise. Para isso, a descrição dos volumes deve acompanhar de perto a biografia e, quando possível, remeter à obra do crítico.

As revistas também ajudam a delinear o poder dessa biblioteca. Segundo Benjamin, elas compõem as orlas prismáticas de uma biblioteca. Preciosidades como a revista Ion, do místico Isidore Isou, e a revista Clima fazem parte desse acervo. Como leitor atento ao debate intelectual de sua época, Paulo Emilio acompanhou tanto as revistas Les temps modernes, de Sartre, como a La France libre, de Ray-mond Aron; tanto Maintenant, do socialista Henri Poulaille, como Esprit, do católico Emmanuel Mounier. O bastião da moderna literatura francesa, a revista Mercure de France, a modernista Klaxon, a paulista Anhembi, em que Paulo Emilio escreveu seus primeiros textos em sua volta definitiva ao Brasil, a Revue d’Esthétique, do professor Etienne Souriau, a Communications, dos estudos estruturalistas, a Table ronde, tribuna do existencialismo, a Civilização Brasileira, a mais im-portante revista da década de 1960 e espaço dos cinemano-vistas, a Revista Brasiliense, de Caio Prado, a Tempo presente, de Nicola Chiaromonte, discípulo de Andrea Cafi, todos esses periódicos encontraram em Paulo Emilio o leitor versátil, in-teressado na cultura brasileira e no debate contemporâneo.

Uma das várias edições de A la recherche du temps perdu da biblioteca de Paulo Emilio.

(Quebec: Gallimard, 1944)

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dá por meio da vida interior, o “pensar solitariamente conduz a pensar solidariamente”. O desdobramento desse egocentrismo desemboca no nacionalismo que, com o caso Dreyfus, revela sua disposição xenófoba, se aproximando de Maurras. Em Les déracinés (1897) aparece plenamente o culto ao solo pátrio, as injustiças sociais, o antiintelectualismo, a partir de uma narra-tiva íntima das desventuras em Paris de migrantes da Lorena. Tudo é envolvido por uma prosa entusiástica e inteligente. A projeção nacional torna-o uma referência e cada vez mais a política vai ofuscar a literatura. Com o advento da Grande Guer-ra, participa da campanha nacionalista generalizada e, como símbolo de sua ação concreta, escreve artigos diários no jornal L’Echo de Paris. A reunião desses escritos receberá o nome de Chronique de la Grande Guerre (1919), em que prevalece o as-pecto documental, em detrimento da literatura. Barrès foi um escritor de renome em vida – muito traduzido na Alemanha – e sua ideologia protofascista foi bastante cultuada pela extrema direita francesa. Com o fim da Guerra confirmou, segundo Maurras, sua “incessante metamorfose”, ao adotar o ideário republicano de Clemenceau. Para entender seu pensamento e sua importância no mundo de Almereyda, Paulo Emilio se ser-viu de comentadores como Henri Massis, em seu Jugements.

Bardèche, por sua vez, aparece com alguns volumes que tratam de política e literatura. Coautor de uma importante história do cinema,9 Bardèche se afastou gradativamente do cinema para se consagrar ao fascismo e produzir biografias de grandes literatos, entre eles uma das preferências de Paulo Emilio: Stendhal. Já Henri Barbusse encontra-se no outro lado da trincheira e interessa menos o escritor do que o polemista, autor de uma biografia de Stálin e um relato co-movente sobre a experiência histórica do comunismo russo.

Os livros seguem essa lógica, ora apontam para questões específicas do trabalho de Paulo Emilio, ora revelam dados significativos para se entender sua obra, mas também indicam momentos precisos de sua trajetória, como é o caso da Historia do socialismo e das luctas sociaes, de Max Beer, publicado em dois volumes pela Livraria Cultura Brasileira e lido no ano de seu aparecimento, 1934. O mesmo acontece com René Fülöp-Miller e seu Espírito e physionomia do bolche-vismo: descripção e crítica da vida cultural da Rússia soviética (Porto Alegre: Globo, 1935). A “paixão pela Rússia” de que fala Paulo Emilio em seu depoimento para a Plataforma da nova geração abrange não apenas os livros sobre a Revolução de Outubro (Max Eastman, Max Beer, Isaac Deutscher, entre tan-tos outros), mas também a arte produzida nesse país. Além dos clássicos da história da literatura russa (Dostoievski, Go-gol, Puchkin, Lermontov, Turgêniev, Saltykov, Korolenko, Gar-

shin, Sologub, entre outros), constam também desse acervo autores contemporâneos da grande convulsão social, como Alexandre Blok, cuja miséria material aparece num dos mais inspirados textos do Suplemento Literário (Revolução, cinema e amor). Essénin, Maiakovski e Babel, todos são fundamentais para o delineamento de Eisenstein e seu contexto.

Agripino Grieco e Lucio Cardoso foram lidos no contexto dos anos de 1930, onde esses autores aparecem no campo oposto do modernismo que Paulo Emilio frequentava. Do primeiro, há na biblioteca a Evolução da prosa brasileira, em que se louva um tipo de prosa mais intimista contra o romance social. Do segundo, se destacam Novas poesias e A luz no subsolo com dedicatória (“cordial homenagem”) e anotação da data de leitura (“Presídio Paraíso. SPaulo. Agosto 1936). Nesse mesmo período, Caio Prado Jr. é uma leitura mais significativa para se entender o comunista neófito Paulo Emilio. Em URSS, um novo mundo, o jovem militante Paulo Emilio grifou o trecho: “[...] de todos, segundo suas possibilidades, a todos, segundo suas necessidades.” O livro foi lido no ano de sua publicação e, provavelmente, Paulo Emilio assistiu à conferência de Caio Prado no Clube dos Artistas Modernos - CAM, que também deu espaço para Oswald falar de O Homem e o cavalo, peça teatral que rendeu uma boa polêmica entre o modernista e Paulo Emilio, que ao invés do formalismo preferia a prosa social de Moleque Ricardo, de José Lins do Rego.10 A leitura de Formação do Brasil Contemporâneo também é importante e o depoimento para a Plataforma da Nova Geração destaca o papel da investigação histórica para sua geração.

O livro The pocket book of mystery stories indica o gosto pelo romance de detetive, cuja atmosfera surge em alguns dos artigos do Suplemento Literário e no livro Três mulheres de Três Pppês. O filósofo Julien Benda, de quem Paulo Emilio pegou emprestado o título Exercice d’un enterré vif para a crônica mencionada acima (ou teria sido de um poema de Drummond?), comparece com um volume em que o autor faz um retrospecto de sua trajetória de maneira mais livre que em suas defesas do racionalismo e em seus ataques ao existencialismo. O teólogo Nicolas Berdyaeff e sua defesa de um cristianismo social, que rejeita a experiência da revolu-ção russa, despertou a curiosidade e foi lido em várias obras, especialmente seu Esprit et Liberté, cujo volume na biblioteca pertenceu a Mario Schemberg e contém partes grifadas no capítulo sobre a teosofia de Blavatsky. A coletânea Intro-duction à l’étude scientifique du rire (Paris: Flamarion, 1959) sem dúvida ajudou Paulo Emilio a entender com precisão o “libertador acesso de riso” de Jeanne em Os amantes. O texto de Etienne Souriau, que encerra o volume, trata do

A revista Movimento, criada por Paulo Emilio

e Décio de Almeida Prado em 1935.

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Quanto aos livros, autores como Anatole France, Jacques Bainville, Maurice Barrès, Henri Barbusse e Maurice Bardèche, são exemplos que reiteram essa noção ampla do trabalho do crítico da cultura. Paulo Emilio provavelmente encontrou em Anatole France a cumplicidade em torno dos livros. Como bom filho de livreiro-editor, France soube transpor essa paixão para seus romances. Em O crime de Silvestre Bonnard, o protagonis-ta viaja para muito longe, apenas para consultar um manuscri-to raro. Em La rôtisserie de la reine pédauque há a ambientação na grande biblioteca “Astaracienne”, que termina consumida pelo fogo. Já n’A revolta dos anjos também uma biblioteca é um espaço importante para o drama. Por sua vez, Bainville, o con-servador historiador da França e militante da Action Française,

serve para a definição do universo de Almereyda. O mesmo acontece com Maurice Barrès. O escritor do “culto do eu” interessa tanto quanto o publicista de extrema direita. Homem muito representativo de seu tempo, muito lido no fim do século XIX até sua morte em 1924, Barrès, “o príncipe da juventude”, foi uma influência muito forte para os renovadores da literatura francesa. De Henri Massis a Breton e Aragon, de Mauriac a Maurras e Léon Blum, os admiradores de Barrès formavam legiões e, em 1921, quando os dadaístas da revista Littérature desferiram um de seus ataques contra a ordem, foi Barrès o “réu” do julgamento fictício. Sua primeira trilogia O culto do eu, publicada na década de 1880, era marcada por um individualis-mo radical e anárquico, em que a descoberta da vida social se

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problema estético do riso e usa termos dos quais o crítico se serviu para seu estudo sobre o filme de Louis Malle. Souriau também aparece nos vários manuais de cursos de estética acompanhados por Paulo Emílio na Sorbonne, quando de sua segunda estada na França. Souriau recuperou a noção de “diegese”, que Paulo Emilio utilizará em Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte. O conceito seria depois reconhecido pela crítica literária (Cf. Gérard Genette. Figures III). Comen-tando ainda o riso, vale notar os livros sobre a história do circo, de Serge, e o palhaço Rámon Goméz de La Serna.

Livros como Histoire du Guépéou (1933), Stalin (1933), ambos de Essad Bey – um exilado que denunciou a barbárie esta-linista –, The history of American trotskyism (1944), Mamma Svetlana Nono Stalin (1967) e Qué silenció la hija de Stalin? (1967) e Les bolcheviks et la révolution d’octobre – procès ver-baux du comité central du parti ouvrier social-démocrate russe (bolchevique) (1964), confirmam o interesse pela experiência histórica da Rússia em diferentes momentos. Os primeiros colocam em xeque o deslumbramento do comunista neófito na medida em que informam sobre a burocratização da revolução já na década de 1930, enquanto que as últimas são indícios da “paixão pela Rússia”, que nunca deixou de pulsar.

A coerência política não impede o distanciamento artístico, e a heterodoxia surge como marca dessa biblioteca. Ao lado de marxistas ortodoxos, aparece um escritor como Céline. Seu Mea culpa será importante para se compreender o clima político da época de Almereyda. E apesar do panfleto antissemita, Bagatelles pour un massacre, seu estilo deliran-te e sua fúria autodestrutiva tem seu lugar na estante. Assim como Pirandello, apesar de seu telegrama em solidariedade a Mussolini depois do assassinato de Matteotti; ou Hamsun, apesar de sua adesão ao nazismo; e Éluard e Aragon, apesar da aprovação aos processos e execuções estalinistas. Esses grandes autores do século interessam pela profundidade de suas obras, menos por suas escolhas políticas; ora como cultura geral, ora por razões específicas, como é o caso de Comte. As obras completas do filósofo servem para a feitura do artigo O positivismo brasileiro na Sorbonne, sobre o traba-lho do professor Paul Arbusse-Bastide.11 O mesmo acontece com Léon Daudet, o eterno inimigo de Almereyda.

Antonio Candido comparece na biblioteca de Paulo Emilio com inúmeras obras e todas com dedicatórias significati-vas. Em Introdução ao método crítico de Silvio Romero (1945) temos a declaração da grande amizade, que passa pela compreensão das condições econômicas e a solidariedade do filho de secretário de estado não tem limites. Em uma

conversa por telefone, Antonio Candido me confirmou que Paulo Emilio lhe emprestou dinheiro para imprimir sua tese. A dedicatória bem humorada confirma os laços de afeto e a proximidade das ideias: “A Gomes, que passará à posteridade por ter sido o Engels desta obra-prima, muito afetuosamen-te. Antonio Kandido. Março de 1945”. Já em Vários escritos (1970), encontramos a seguinte dedicatória: “Ao Paulo (herói de umas partes deste livro) com afetuoso abraço do A.C.” A presença de Paulo Emilio no livro aparece nominalmente em alguns ensaios e, quando o livro foi relançado em 1995, Antonio Candido incluiu um ensaio inteiramente dedicado ao amigo. Mas na edição de 1970, Paulo Emilio aparece na série de ensaios dedicados a Oswald e em especial em Digressão sentimental de Oswald de Andrade. Na frase “No começo do decênio de 40, Oswald fez em sua casa mais de uma leitura de capítulos prontos, segundo me contou quem ouviu.” O “quem ouviu” certamente é Paulo Emilio, que naquela época era o protégé do poeta modernista, que cultivava um clima amistoso (pontuado por muita pilhéria) com o jovem desinibido. Quando Antonio Candido comenta a expectativa em torno da Trilogia do exílio, aguardada como a grande obra do poeta e que viria para lançar por terra as dúvidas em torno de suas qualidades artísticas, ele afirma: “Todavia eu (nós) esperava(mos) por uma confirmação, com coroamento que ele [Oswald] teimava em anunciar como tal.” Certamente, quando se refere a um “nós”, o crítico literário está evocando sua geração – a geração Clima –, que acompanhou com inte-resse renovado os rumos do modernismo. Mas, sem dúvida, esse “nós” se refere particularmente a ele e Paulo Emilio que, entre os “chato-boys”12 era o mais próximo do poeta. No mo-mento em que o ensaio descreve a recepção de Oswald pela geração Clima, Paulo Emilio ocupa um lugar de destaque e é alvo de provocação. “Paulo Emilio andava pelos dezoito anos, era muito combativo e cheio de iniciativas, com certo gosto pelo barulho que depois perdeu.” Ainda sem entender o sentido da provocação, descrevo-a aqui para evidenciar a troca de ideias, a cumplicidade e as proposições em torno de uma interpretação da cultura, que passa também pela memória de uma geração. Em Antonio Candido, essa inter-pretação da experiência brasileira está inteira já em 1959 na sua Formação da Literatura Brasileira, publicada no mesmo ano da Introdução ao Cinema Brasileiro, de Alex Viany. Paulo Emilio será muito sensível a essas duas obras; a segunda receberá severa crítica, enquanto a primeira é um modelo de investigação decisivo para a compreensão da história do cinema brasileiro que está em Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte. Da leitura atenta de Formação destaca-se uma ideia-força, grifada com caneta esferográfica: “[...] o desejo de mostrar que também nós, brasileiros, homens de uma terra

inculta, éramos capazes de fazer como os europeus” (p.79). E Antonio Candido ressalta como essa atitude é de grandes consequências não só para a literatura, mas para toda a “vida mental do país”. O fenômeno chega tardiamente ao cinema, e será Paulo Emilio quem o recuperará quando salientar o papel histórico da revista Cinearte.

Seguindo essa tradição de crítica de obras e análise da sociedade, vale a pena mencionar Ao vencedor as batatas, de Roberto Schwarz. O volume da biblioteca de Paulo Emilio tem a curiosa dedicatória: “A Sallès Gomès, um eminente colonizador e trípede paulista. De um seu colono. Roberto. 11.jul.1977”. A referência à grafia francesa do nome de Paulo Emilio e a indicação do colonizador paulista revelam tanto o conhecimento de Jean Vigo, como o impacto do texto Uma situação colonial? – que será retomado anos depois para introduzir um balanço de um ciclo econômico –, assim como uma brincadeira entre o local e o universal sugere, em tom de brincadeira, a leitura de Cinema: trajetória no subdesen-volvimento. O termo “trípede” certamente se refere ao título das ficções do crítico de cinema, que na época ocupavam o crítico literário. A vontade é continuar tecendo conjecturas, mas por ora basta indicar o contato pessoal. Mesmo que pu-ramente documental, a menção é significativa, pois o autor é dos raros que tem destacado em profundidade o trabalho de Paulo Emilio e sua contribuição crítica e artística.13

Percorrendo as estantes dessa biblioteca, encontramos várias obras de Edgar Carone, que se define como “amigo e discípulo”. E, seguindo a ordem alfabética, temos alguns trabalhos de Otto Maria Carpeaux. O cosmopolitismo do crítico austríaco, radicado no Brasil, se confirma nos dois vo-lumes de ensaios A cinza do purgatório (1942) e Origens e fins (1943) e na fantástica Pequena bibliografia crítica da literatura brasileira (1955), gênero raro em nosso mundo intelectual muito habituado a “interpretar”. O interesse por Carpeaux se verifica não apenas nos volumes da biblioteca, mas também na defesa feita pelo grupo Clima, quando o grande crítico foi atacado por Carlos Lacerda, Guilherme Figueiredo e Vitor Espírito Santo que, em campanha difamatória na imprensa, o chamam de “cripto-fascista”.14

Outra personalidade marcante na biblioteca é Leon Trotsky, e as diferentes edições da biografia escrita por Isaac Deutscher (O profeta armado, O profeta desarmado, O profeta fora da lei) mostram o estrategista político pela trajetória e obra. Deutscher, um antigo militante trotskista da década de 1930, logra um distanciamento crítico de seu personagem e, com certo ressentimento, realiza um

“Exemplar do congressista Paulo Emilio. Com o abraço do Oswald 1945”. Dedicatória de Oswald de Andrade para

Paulo Emilio, que participava do I Congresso Nacional de Escritores.

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acerto de contas com seu antigo mestre. A prosa clara e a pesquisa bem realizada criam uma atmosfera convincente e lhe valeram notoriedade. Mas ele não é um historiador e, muitas vezes, sua imaginação preenche as lacunas não resolvidas pela investigação. Esse fato, que pode vir a ser uma qualidade, não impede o posicionamento desfavo-rável contra Trotsky, o que se confirmaria mais tarde na biografia sobre Stálin.

Assim como Paul Morand e Jean Giraudoux, que formam uma dupla importante da literatura francesa moderna, o pri-meiro voltado ao mundo em sua exterioridade, e o segundo mais intimista, dedicado à aventura interior, Jean-Paul Sar-tre ocupa espaço considerável. As peças teatrais e A crítica da razão dialética são obras para se compreender a principal corrente filosófica do período, assim como o Esquisse pour une histoire de l’existentialisme, de Jean Wahl. O autor de La nausée é uma referência incontornável para os interessados na renovação do marxismo, principalmente depois de Ma-térialisme et Révolution, texto publicado na revista Les temps modernes, em que Sartre inicia o esforço de superação de uma filosofia da consciência em direção a uma filosofia da práxis. Sartre interessa por sua vontade em superar o beco sem saída do marxismo vulgar.

Diversos volumes da Maspero são encontrados na biblioteca. Da editora engajada destacam-se as Oeuvres révolutionnaires, de Che Guevara, e autores como Victor Serge, Arthur Koestler e Soljénitsin. Este último comparece com seus fundamen-tais Arquipélago Gulag, O carvalho e o bezerro e Agosto 1914, e por meio dos comentários de Lukács e Pierre Daix. Já Victor Serge surge como fonte importante para a criação de Almereyda, e sua disposição em mesclar relato político com invenção literária será muito cara a Paulo Emilio. Seus romances, principalmente L’Affaire Toulaev, possuem uma grandeza histórica e humana inspiradora.

Montaigne em três edições antigas. Em um dos volumes há marcas de grafite no ensaio De três boas mulheres. Teria, por acaso, Paulo Emilio lido essa saborosa peça a respeito do casamento moderno? Montaigne escolhe três esposas exemplares para comentar: uma é a vizinha de Plínio, o moço; outra é a rica esposa de Peto; e a terceira é Pompéia Paulina. Todas renunciam à vida em nome da fidelidade aos maridos. Teria o crítico brasileiro dado o título de suas novelas, Três mulheres de três Pppês, em referência paródica a este ensaio? Há dúvidas, pois as marcas de grafite que aparecem no livro não lembram a escrita de Paulo Emilio.

O curso de estética de Hegel é um rastro das fases de esfor-ço sistemático de estudo da filosofia. Já Paul Léautaud, esse esquecido autor de diários, interessa pelo esforço em “fazer estilo”. Sua obra é a busca incessante por um estilo literário original, a partir de anotações da vida cotidiana e literária. Outras presenças são André Malraux e Octave Mirbeau, este último um desconhecido cujo teatro anarquista foi recente-mente redescoberto. Esse teatro de combate, incoerente e violento, deve ter fascinado Paulo Emilio.

Giorgio Vasari, o primeiro autor a formular uma história autônoma para a arte, comparece na biblioteca com suas célebres e estranhas descrições. Na introdução da segun-da parte, ele expõe seu método, procurando destacar as intenções e as ações de cada artista, mas principalmente “[...] descobrir as causas e as raízes de cada um dos estilos e expor o desenvolvimento e o declínio das artes.” Além de seu Le Opere, há também um volume com os Studi Vasariani, em que diversos autores discutem o legado do primeiro historiador da arte, entre eles Bernard Berenson, o autor de biografias notáveis de pintores renascentistas, que articulava descrição do estilo e comentário histórico. Como bom beylista, Paulo Emilio tinha, além das obras completas, os comentários de Stefan Zweig, Maurice Bardèche, Henri Malo e Henri Martineau. A filosofia da arte, de Hippolite Taine, também tem seu lugar, e por mais que a obra ilustre teses sobre o determinismo da raça e do meio e do momento, em alguns momentos surge o crítico arguto com grande talento para a descrição de uma obra.

A amizade com Giuseppe Ungaretti, nascida na década de 1940, quando o poeta ministrou cursos na Universidade de São Paulo, perdurou por toda a vida. Além de uma grande correspondência, nos livros temos dedicatórias com “affeto paterno”. Para encerrar esta etapa descritiva, resta citar Simone Weil que, por seus escritos históricos e políticos, mas sobretudo por sua mística da vida operária, deve ter interessado o nosso autor.

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Após essa apreciação dos livros como dados documentais, é preciso se deter em alguns autores de maneira mais aprofundada, mestres ou modelos cujos livros evidenciam a leitura sistemática feita por Paulo Emilio e que, de alguma maneira e sempre à socapa, estão presentes no desenrolar do trabalho do crítico.

Degas Danse Dessin, de Paul Valéry (1949).

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Comecemos pela obra de Alain, que fora professor de Jean Maugüé, de quem Paulo Emilio foi aluno. O filósofo foi um dos intelectuais mais famosos da França na década de 1930. Conhecido por seus escritos na grande imprensa, inventou um gênero de crítica que tratava dos mais diversos assuntos em textos curtos e profundos. Esse gênero se chamou Propos e suas características são a síntese, a diversidade temática e seu aspecto democrático para qualquer leitor. Como uma lição de filosofia aplicada, os propos versavam sobre temas gerais para introduzir o pensamento filosófico. O Propos sur le bonheur é o mais célebre de todos, em que temas dos fait-divers servem para uma profunda reflexão sobre o conceito de felicidade nos mais diferentes filósofos. A forma concisa, que coexiste com os volteios da exposição, o tema geral que evoca outros em profundidade, tudo isso certamente serviu para o crítico do Suplemento Literário forjar seu estilo de intervenção.

André Gide é outro autor importante nesse panteão. Paulo Emilio considera-o um parente de Montaigne,15 e as inúmeras obras presentes na biblioteca, lidas e grifadas, e a quantidade de biógrafos e comentadores do escritor, colocam o autor de Nourritures terrestres entre as presen-ças mais fortes. Gide é um problema literário da época. Sua obra multifacetada, cheia de variações de ângulos, de posicionamentos e de temas, muito marcada pela maneira como vida e arte vibram em conjunto, inquieta Paulo Emilio desde a década de 1930, quando lia De volta da URSS, em que Gide apresenta suas reservas ao comunismo que há pouco o seduzira. A escrita justa, tributária dos clássicos da literatura francesa, serve para explorar diferentes testemu-nhos de si mesmo, em que a liberdade e a disponibilidade desempenham papéis preponderantes.16 Paulo Emilio, como leitor atento do Journal, a obra máxima de Gide, percebe esse método compositivo em que tudo se desenrola a partir do eu. Essa descoberta de um método que reduz o mundo à individualidade, um método em que obra e vida se imis-cuem uma na outra de maneira não redutora, acompanhará Paulo Emilio ao longo de todo seu trabalho crítico. E esse entrecruzamento renderá em Gide uma obra de grande elaboração estética, como constatou Jean Hytier, cujo livro aparece numa das estantes da biblioteca do crítico brasileiro. Numa passagem rápida para explicar seu método que não privilegia a relação entre vida e obra para se concentrar mais nas obras, Hytier aponta que Gide constrói seu estilo no de-sejo de criar uma figura ideal, que tem pouco a ver com sua vida íntima, e quem investigar a criação desse eu imaginário estará formando um novo capítulo da história da arte, que ele denomina l’esthétique de la personnalité.

Inúmeros são os comentadores que amparam a leitura de Gide por Paulo Emilio e, dentre eles, chama nossa atenção o nome de René Schwob, o esteta muito referenciado nas críticas da revista Clima, e por quem Paulo Emilio sempre manteve certo interesse.17 Gide nunca deixou de inquietar Paulo Emilio, e um volume em torno do centenário do escri-tor, editado pela Association des Amis d’André Gide em 1972, reitera esse interesse, que surge na década de 1930 e se intensifica na segunda metade da década seguinte, quando da redação de Jean Vigo.

Por sua vez, Paul Valéry é uma presença emblemática. Os livros da biblioteca mostram uma leitura sistemática de parte da obra dedicada ao discurso estético. Os inúmeros trechos grifados, as anotações marginais, e sobretudo a marcação das páginas mais significativas no final de cada volume, confirmam a leitura e, principalmente, a releitura e a consulta em momentos diferentes. Na crítica de Paulo Emilio, o escritor francês é mencionado em um artigo que discute a tensão entre arte e erotismo.18 Essa referência pontual revela conhecimento de todo o trajeto do autor da Introdução ao método de Leonardo da Vinci. Apesar da apari-ção única, Valéry é presença forte na concepção do trabalho crítico de Paulo Emilio. Valéry construiu sua obra crítica por meio de ensaios, conferências e notas, todos marcados pelo método e pela fantasia. Seus escritos possuem explicações gerais sobre a arte e se preocupam com a formação das obras. Para ele, o estilo, a expressão, a obra, são o indivíduo em ação e toda a filosofia é uma questão de forma. E sua descrição criativa supera a interpretação, na medida em que procura captar a ação poética mais do que o indivíduo cria-dor. “A descrição dispensa toda conexão; admite tudo o que os olhos admitem, permite a introdução de novos termos a cada instante.”19 Para esse tipo de análise crítica, a intuição contribui na constituição de um método que incorpora impulsos e decisões inesperadas. Essa concepção formal ganha, no estudo de Leonardo da Vinci, uma síntese que será revisitada ao longo da vida, tanto por Valéry como por Paulo Emilio. Na Introdução ao método de Leonardo da Vinci, lida pelo crítico brasileiro, encontra-se a primeira versão do texto (redigida em 1894), a Nota e digressão (anexada em 1919), o ensaio Leonardo e os filósofos (de 1929) e as notas marginais (incluídas em 1930). Esses dados indicam como Valéry projetou em Leonardo questões que o perseguiram ao longo dos anos. Assim como fez com Mallarmé, trata-se da reconstituição de um drama intelectual e da constru-ção de um tipo espiritual. Desse trabalho surge a ideia de “Comédia intelectual”, que poderia ser considerada como o ponto alto da crítica de Valéry. Ele voltou ao estudo de Leo-

nardo diversas vezes e, em 1919, após a longa reformulação de suas ideias – seu período de grande silêncio (1892-1917) – retoma seu texto de juventude e reitera seus pontos de vista. “Portanto, nem amantes, nem credores, nem anedotas, nem aventuras – somos conduzidos ao sistema mais honesto: imaginar, excluindo todos os detalhes exteriores, um ser teórico, um modelo psicológico mais ou menos grosseiro, mas que representa, de alguma forma, nossa capacidade de reconstruir a obra que decidimos explicar a nós mesmos. O sucesso é bastante duvidoso, mas o trabalho não é ingra-to: se não resolve os problemas insolúveis da partenogênese intelectual, ao menos os apresenta, e com uma clareza in-comparável.”20 A maneira como Paulo Emilio pensa o estudo biográfico o aproxima muito de Valéry e, em um dos vários volumes lidos, temos a seguinte anotação a lápis: « Talvez Leonard visse nas obras um meio – ou, melhor, uma manei-ra de especular pelos atos – espécie de filosofia necessaria-mente superior à que se limita a combinações formadas por termos não definidos e desprovidos de sanções positivas.”

Essa anotação, síntese de Leonardo, certamente se deve ao comentário à tese de Décio Pignatari. Em 1973, ele defendeu seu doutorado na Universidade de São Paulo, tendo na banca Paulo Emilio. Em uma arguição memorável, Paulo Emilio

marcou as diferenças de enfoques de geração e demonstrou, como nunca antes, toda a familiaridade com Valéry. Com bom humor, o comentário se inicia com a provocação: “[...] nem tudo o que Décio Pignatari diz é claro para mim, mas estou convencido de que vale muito a pena tentar esclarecer tudo o que ele diz.” E continua, selecionando alguns autores para o comentário. A lembrança de Peirce é uma obra-prima do humor pauloemiliano, mas vamos nos concentrar em Valéry: “Respeitoso e intimidado eu me afasto de Peirce e procuro no panteon um personagem menos ameaçador.”

“Como todos de minha geração universitária fui um pouco francês e vou naturalmente ao encontro daqueles que repre-sentam para mim um mundo mais familiar do que outros. Entre os franceses, o que predomina em sua tese é Valéry, com quem também não me encontrava há três décadas mas de quem nunca esquecera. O reencontro, que lhe fico devendo, me alegrou muito.”

Em seguida temos uma aula sobre Valéry e sua construção de um modelo de biografia: “O Leonardo de Valéry, com efeito, é e não é Leonardo. O descaso de Valéry pela história e o seu desprezo pela biografia sempre existiram, e foram se acentuando com a passagem do tempo. A história era para

A célebre revista Clima, que emprestou seu

nome a uma geração de intérpretes do Brasil.

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ele uma impossibilidade e a biografia, anedotas, no sentido francês21 (no nosso sentido ele as apreciou e soube utilizá-las de forma reveladora na análise dos contemporâneos). As personagens propriamente históricas ainda aparecem um pouco nos escritos juvenis de Valéry [...].” “Valéry arrancou Leonardo de sua biografia e de seu tempo, se ateve às suas obras e procurou reconstruir o homem que as produziu. Foi levado naturalmente a inventar um Leonardo adequado às obras de Leonardo e a si próprio. Eu penso que haveria motivos para você se interessar de perto por essa operação. Valéry com efeito fabricou conscientemente um modelo [...]. Numa primeira fase ele o considerou grosseiro, mas preferí-vel em todo o caso a uma série de anedotas duvidosas. Mais tarde contemplou com melhores olhos a sua construção, ex-plicando que uma função de seu modelo de Leonardo fora a de ajudar o jovem Valéry a enfrentar suas perplexidades. Era falso, diz ele, mas vivo. (...) O Leonardo de Valéry, em suma e como era de se esperar, permanece fiel a Valéry.”

E Paulo Emilio continua com sua aula, descrevendo o indiví-duo, um falador contumaz, que Gide, no seu Journal, afirma ser um de seus melhores amigos e seria o melhor se fosse mudo e surdo. Mas, sobretudo, para além das anedotas (no nosso sentido), Paulo Emilio descreve a teoria artística de Valéry e termina salientando o entusiasmo de Pignatari pelo mundo nascido da Revolução Industrial: “Mas acontece que é precisamente você quem nos adverte contra a leitura das palavras apenas de acordo com as regras da lógica discur-siva. Será que o poder contagiante da sua modernidade se exerce através da simples vizinhança tipográfica entre Valéry e tantas ideias, nomes e palavras modernas? Ainda não sei responder. Por enquanto só posso acrescentar que nessas ocasiões o Valéry, que a partir da I Guerra Mundial não ces-sou de manifestar o seu horror pelo mundo moderno, esse Valéry se debate no Panteon em que você o encerrou.”22

A análise e o conhecimento do trabalho crítico de Valéry influenciaram Paulo Emilio mais do que se supõe. Eviden-temente, a conexão não é fácil nem imediata, pois como diria o Monsieur Teste: “Encontrar não é nada. O difícil é se somar ao que encontramos.” Mas podemos encontrar pontos comuns, principalmente se pensamos nos traba-lhos Jean Vigo e Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte. Não resta dúvida de que esses trabalhos necessitam de abordagens internas que apresentem as maneiras como o crítico trabalha com cada cineasta e seu tempo, mas a indicação de ideias inspiradoras para esses livros, e para toda a obra de Paulo Emilio, não deixa de ter alguma importância. Quando Paulo Emilio realiza a “biografia” de Jean Vigo, ele parte de sua obra para investigar a vida, e constrói um ser teórico, em que o inconformismo da obra e seu lirismo deixam marcas decisivas. Já em Humberto Mauro, a criação de um cineasta significa a tentativa de síntese de toda a história do cinema brasileiro. O Hum-berto Mauro de Paulo Emilio também não deixa de ser uma invenção, na medida em que serve para evidenciar os problemas de uma formação cultural periférica, que se inspira nos modelos centrais para deles forjar uma nova expressão. Essas observações gerais, quando feitas com a obra de Valéry em mente, ganham mais consistência e mostram como o estudo da biblioteca de Paulo Emilio fornece dados para a compreensão de sua obra.

A aproximação a essa biblioteca, em relação com seu arquivo pessoal, mostra afinidades surpreendentes. E reforça ainda mais a disposição crítica de nosso autor em relacionar o cinema com outras esferas da cultura. Algumas hipóteses foram lançadas, e é preciso voltar à discussão dos livros de Paulo Emilio que, insatisfeito com os livros de sua biblioteca, escreveu seus próprios, que é a forma mais louvável de obtê-los.

1 Mas a verdade e a vida são desordem; as filiações e parentescos que não surpreendem não são reais...

2 Cf. GOMES, Paulo Emilio Salles. Variação de enterrado vivo. [14 abr. 1963] In: CALIL, Carlos Augusto; MACHADO, Maria Teresa. Paulo Emilio: um intelectual na linha de frente. São Paulo: Brasiliense; Rio de Janeiro: Embrafilme, 1986.

3 Cf. Georges Charensol. Panorama du cinéma (Paris, 1930); Ettore Margadonna. Cinema ieri e oggi (Milão, 1932); Maurice Bardèche e Robert Brasillach. Histoire du cinéma (Paris, 1935); Carl Vincent. Histoire de l’Art Cinématographique (Paris, 1939); Francesco Pasinetti. Storia del cinema dalle origini a oggi (Roma, 1939); Carlos Fernandez Cuenca. Historia del cine (Madri, 1949); Marcel Lapierre. Les cents visages du cinéma. (Paris, 1948).

4 Revue du cinéma, Sight and Sound, Bianco e Nero entre outras de menor relevo.

5 Eisenstein, Moussinac e os teóricos da avant-garde Bazin, Morin, Kracauer, Leyda, Mitry, etc.

6 O acervo do historiador se encontra no Museu Republicano de Itu.

7 GOMES, Paulo Emilio Salles. Um discípulo de Oswald. In: ________. Crítica de cinema no Suplemento Literário: volume I. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.

8 Aprismo é o movimento político criado pelo peruano Victor Raúl Haya de la Torre. A Alianza Popular Revolucionaria (APRA) é um partido de centro-esquerda de destaque na virada de 1920 para 1930. Como leitura heterodoxa do marxismo, o aprismo interessou alguns brasileiros dispostos a renovar as referências e romper com o dogmatismo do Partido Comunista. Mário Pedrosa, em seu exílio nos Estados Unidos, publicou uma longa entrevista com Haya de la Torre. Cf. PEDROSA, Mário. The voice of America. Common Sense, v. 10, n.3, mar. 1941.

9 A Histoire du cinéma, de Maurice Bardèche e Robert Bra-sillach, escrita principalmente pelo último, surgiu em plena Ocupação e em sua primeira edição (1943) há opiniões antisse-mitas. Na edição de 1964, essas referências foram excluídas por Bardèche, já que o segundo foi fuzilado em 1945 em razão de seu colaboracionismo.

10 GOMES, Paulo Emilio Salles. O Moleque Ricardo e a Aliança Nacio-nal Libertadora. In: CALIL, Carlos Augusto; MACHADO, Maria Teresa (orgs.). Op.cit.

11 Cf. GOMES, Paulo Emilio Salles. O positivismo brasileiro na Sor-bonne. Anhembi, n.30, vol.10, p.538.

12 “Chato-boy” foi o apelido sarcástico que Oswald aplicou a toda a geração Clima para caracterizar seu discurso acadêmico moderno e científico. Uma geração que, segundo o poeta, “(...) lê desde os três anos. Aos vinte tem Spengler no intestino. E perde cada coisa!” A crítica ao jargão acadêmico, à vontade de superar a geração anterior pelo apego à ciência, foi amenizada com a adoção pelos próprios membros da geração de Clima do apelido que, de crítico, passou a ser mais um chiste do modernista.

13 Cf. SCHWARZ, Roberto. Sobre as Três mulheres de Três Pppês. In: _______. O pai de família e outros estudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978 (Incluído posteriormente na segunda edição do livro de Paulo Emilio.); SCHWARZ, Roberto. A imaginação como elemento político. In: CALIL, Carlos Augusto; MACHADO, Maria Teresa. Paulo Emilio: um intelectual na linha de frente. São Paulo: Brasiliense; Rio de Janeiro: Embrafilme, 1986. (Incluído posteriormente em Que horas são. São Paulo: Cia. das Letras, 1987.) e SCHWARZ, Roberto.

Fim de século. In: _______ . Sequências brasileiras. São Paulo: Cia das Letras, 1999.

14 Cf. a correspondência entre Otto Maria Carpeaux e Paulo Emilio. (PE/CP. 0371).

15 Cf. GOMES, Paulo Emilio Salles. Autor, personagem e ator. [01 nov. 1958] In: _______. Crítica de cinema no Suplemento Literário: volume I. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.

16 Sobre a importância da noção de disponibilidade gideana cf. GOMES, Paulo Emilio Salles. A descoberta da cama. [02 abr. 1960] In: _______. Crítica de cinema no Suplemento Literário: volume II. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.

17 Uma carta da filha de René Schwob para Paulo Emilio [20 ago. 1962] confirma o interesse do crítico pelo esteta. Cf. PE/CP. 1677.

18 Cf. GOMES, Paulo Emilio Salles. Erotismo e humanismo. [23. ago. 1958]. In: _______. Crítica de cinema no Suplemento Literário: volume I. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.

19 VALÉRY, Paul. Stendhal. In: Varieté II. Paris: Gallimard, 1930. [Tre-cho grifado por Paulo Emilio].

20 VALÉRY, Paul. Introduction à la méthode de Leonard de Vinci. In: Variété. Paris: Gallimard, 1930 p.200 [Trecho grifado por Paulo Emilio].

21 A anedota em francês ressalta as particularidades históricas do indivíduo e não as historietas divertidas.

22 GOMES, Paulo Emilio Salles. (Semiótica e literatura). PE/PI. 0343. O documento é composto por um texto de 10 páginas para ser lido como arguição, e mais 30 páginas repletas de transcrições de trechos das obras de Valéry.

Notas

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Arquivo, história e cinema:Entrevista com François Albera

O Dossiê Arquivos pessoais e institucionais traz diferentes aná-lises sobre a contribuição desses conjuntos de documentos pessoais para a reformulação dos estudos de cinema. Ao de-linear o modo de produção do filme, ao destacar sua recepção crítica e revelar a construção de um discurso sobre a obra, os arquivos e institucionais são fontes privilegiadas para o interessado na investigação que não se contenta apenas com a análise do material fílmico e vê, no documento extra-fílmico, uma fonte preciosa para se entender o fato cinematográfico. O convidado da Revista da Cinemateca Brasileira para tratar do assunto é François Albera. Professor de História e Estética do Cinema na Universidade de Lausanne, Albera é um dos mais renomados historiadores do cinema na atualidade. Seu trabalho em torno de Sergei Eisenstein renovou o debate so-bre o cineasta e ampliou o campo do cinema ao relacioná-lo com os questionamentos das vanguardas históricas e seus desdobramentos cinematográficos. Seu trabalho se ampara na investigação empírica exaustiva e na reflexão teórica mais avançada. Suas intervenções na revista 1895, órgão da Association Française de Recherche sur l’Histoire du Cinéma (AFRHC), são referências importantes para o interessado nas questões da história do cinema.

Na entrevista abaixo, o autor comenta as diferenças entre a historiografia tradicional e a moderna, destacando a contri-

buição do passado para a atual renovação dos estudos de cinema, alertando para os perigos no presente do trabalho histórico que se pensa como original e mais avançado em relação ao passado, que não leva em conta uma investigação rigorosa do que foi acumulado pelas gerações anteriores.

Qual a importância dos arquivos de filmes para a atual renovação das pesquisas históricas do cinema?

Ela é vital, pois as pesquisas históricas não podem ser feitas sem que sejam considerados os materiais que são seu objeto: o filme e o não-fílmico. Apesar de sermos claramen-te levados a recorrer a outros arquivos (literários, sociais, econômicos, etc.), a outras fontes, o trabalho do historiador consiste em cotejá-las, em toda a sua diversidade, iluminan-do todas elas, recorrendo a fontes até então inexploradas.

Poderíamos então considerar o acréscimo desse tipo de arquivo na pesquisa histórica como a principal diferença entre as historiografias tradicional e contemporânea?

Inicialmente, devemos fazer uma distinção no seio da historiografia chamada tradicional, pois ela não é homo-gênea: por exemplo, no livro de Friedrich von Zglinicki Der Weg des Films (1956), há um grande número de documentos Andrea Bayard,

dezembro de 1956.

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não-fílmicos reproduzidos, e o autor considera todas essas fontes. Evidentemente, o mesmo é válido para Sadoul, que chegou a “teorizar” esta preeminência das fontes escritas segundo as épocas que estudou (colocando-se, segundo ele, na posição do historiador ou do arqueólogo que pesquisa objetos desaparecidos). Poderíamos dizer que, atualmente, a sistematização do recurso ao arquivo não-fílmico tornou--se uma regra, principalmente porque o objeto do trabalho historiográfico foi redefinido: Sadoul, em seu texto metodoló-gico de 1964 (retomado na introdução das últimas edições de História do cinema mundial),1 proferido durante um colóquio em Veneza, enumera perfeitamente os diferentes níveis de arquivos, mas sem dúvida conserva uma prioridade para “o filme”. Ora, este último, tomado apenas em sua dimensão empírica, foi redefinido como objeto teórico ou de conheci-mento, não se limitando – mais – às bobinas que assistimos: a recepção, as condições de produção, as fontes documen-tais do roteiro, etc. entram em sua definição.

Inversamente, Godard defende o filme como única fonte de história e, no entanto, esta posição “insustentável” do ponto de vista de um historiador, de um ponto de vista “científi-co”, é retomada por alguns – como de Baecque, na França (L’histoire-caméra),2 sem falar dos partidários da abordagem estética (figurativa e outras…).

Quais as consequências do Congresso da FIAF de 1978 para esta mudança de perspectiva na história do cinema?

Sem dúvida alguma, o Congresso da FIAF de 1978 teve um papel importante para o desenvolvimento dos estudos de filmes nas universidades (especialmente norte-americanas), fazendo surgir como um objeto novo o cinema chamado dos primeiros tempos. Mas, quanto mais o tempo passa, mais me parece que deveríamos voltar a questionar esse evento do ponto de vista do historiador, inserindo-o em uma história

mais longa das relações entre arquivistas, historiadores e críticos. Na realidade, faz falta um histórico dos diferentes congressos da FIAF e a análise das trocas que eles podem ter provocado.3 Por exemplo, de 31 de outubro a 4 de no-vembro de 1957, aconteceu um Congresso Internacional de Historiadores do Cinema na sala do Museu Pedagógico da Cinemateca Francesa, que reuniu representantes da maior parte dos países membros da FIAF, entre os quais J. Toeplitz, da Polônia; J. Leyda, dos Estados Unidos; Fernando Cuenca, da Espanha; Senhora Kawakita, do Japão; R. Lebediev, da União Soviética; Paulo Emilio Salles Gomes, do Brasil; Gerard Lamprecht, da Alemanha; G. Sadoul, da França. Tratava-se de estabelecer um relatório nacional sobre a aparição do cinema em cada um dos países representados e sobre a história do fato cinematográfico em cada um deles. O Congresso começou com uma peregrinação a Montreuil, seguindo os passos do estúdio de Méliès. No ano seguinte, é criado em Paris o BIRHC (Bureau International de Recherche sur l’Histoire du Cinéma – Agência Internacional de Pesquisa sobre a História do Cinema), ao qual pertencem Sadoul, Mitry, Toeplitz, Jacobs e muitos outros. Sabemos que um projeto coletivo da história do cinema mundial esteve em mente durante muito tempo (Cf. correspondência Mitry--Amengual publicada na revista 1895).

É preciso, sem dúvida, voltar a se concentrar no efeito “acadêmico” (no bom sentido do termo) do Congresso de 1978, que teve um papel estruturante no discurso histórico dos acadêmicos. A rejeição a seus predecessores em um conjunto indistinto e o desejo de dar à sua iniciativa uma dimensão fundadora “absoluta” merece novo exame.

Por outro lado, esse Congresso de Brighton foi também a ocasião de criar laços entre acervos e universidades, e permitiu a contratação de acadêmicos nos acervos (como Cerchi Usai, Sudendorf, etc.).

O que ele representa com relação às pesquisas históricas é, antes de mais nada, a ênfase do cinema dos primeiros tempos. Esse cinema não tinha deixado de ser exibido e co-mentado (especialmente por Langlois, cujo levantamento dos programas da Cinemateca Francesa desde 1945 surpreende-ria, sem dúvida, os que acreditam na emergência do cinema dos primeiros tempos em 1978), mas, em uma perspectiva diferente, não possibilitava a sua análise (restam os desafios: a “linguagem cinematográfica” e “a evolução do cinema”).

De fato, muitos dos “novíssimos” se surpreenderiam com uma avaliação histórica do debate das cinematecas.

Legenda de Pedro Lima: “Na foto vemos Ronaldo Lupo, Luis de

Barros e Aluizio T. de Carvalho, respectivamente produtor-ator,

diretor técnico e diretor, de Genival é de morte, a nova produção do cinema nacional que foi

surpreendida pelas chamas no momento da filmagem nos estúdios

da Sacra Filmes. Os três homens que continuaram seus trabalhos

mesmo sob toldos de lona, contemplam os destroços causados pelo incêndio. Suas fisionomias são

de tristeza porque só os homens de cinema do Brasil sabem o que é

perder-se um estudio.”–

Verso de fotografia de Andrea Bayard.

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O próprio Langlois sairia renovado, e o estereótipo do “gordo trapalhão” poderia ser substituído pelo idealiza-dor de uma história não cronológica do cinema. Acredito que um olhar mais teórico e inventivo (como o de Dominique Païni) pode favorecer novas incursões nesta história particular, frequentemente tratada de maneira factual (como fez Laurent Mannoni em sua história da Cinemateca Francesa).

Concordo com o que diz respeito a Langlois e com a inventividade de uma história não cronológica, mas guardo alguma reserva no que diz respeito aos “atalhos” que pode-mos fazer no tema para falar de “coincidências”, “aproxima-ções”, etc., e que revelam mais sobre aquele que os faz do que sobre seu objeto. Neste sentido, tenho alguma cautela com relação aos “sobrevoos” de Païni que, se por vezes é inspirado, procede com frequência por asserções e “golpes”. Digamos, para encontrar um terreno de entendimento, que somente com base em um conhecimento sólido, em verdadeira erudição, é possível depois fazer “inversões”. Para citar aquele a quem muitos se referem de segunda mão, por não o terem lido, Aby Warburg é um connoissoir, um erudito que elabora seu projeto “Mnémosyne” em um segundo momento. Optar sem mais por ele é condenar-se a cair no mundo das ideias preconcebidas ou das gratui-dades. Opomos facilmente Warburg a Panofsky, mas se o arcabouço de interpretação deste último pode ser julgado simplista ou empobrecedor (sua metodologia iconológica: uma pedagogia, em suma), sua prática analítica das obras não o é. Idem para Gombrich. Seus discursos, hoje, particu-larmente em relação a Warburg, causam irritação, mas sua prática teórica não está contida nesse discurso teórico (para retomar a distinção althusseriana).

Como a documentação em papel pode ajudar na consti-tuição de um quadro teórico mais consistente?

A documentação em papel – imprensa, cartazes, cenários, contratos, correspondência, etc. – é vital, como já havia dito há muito Georges Sadoul: por um lado, é a única documen-tação que trata da alta porcentagem de filmes desapareci-dos do início do cinema e dos períodos seguintes, mesmo se a perda é menor; por outro, representa toda a parte não visível no âmbito do fenômeno cinematográfico (economia, comércio, trabalho de preparação, trocas, traços do trabalho efetuado, etc.), do qual o filme é um efeito. Em terceiro lugar, a documentação em papel é a fonte principal de uma abor-dagem não do fenômeno fílmico (para retomar a terminolo-gia de Cohen-Séat), mas somente do fenômeno cinemato-gráfico: frequentação das salas, sua implantação segundo os bairros, socialidade e sociabilidade do cinema, dimensões econômicas, sociológicas, políticas… Somente quando a levamos em conta podemos desenhar um quadro conceitual da história do cinema que não seja suscetível a contamina-ção pelas questões de “gosto”, de “ponto de vista” (categorias que pertencem à crítica avaliativa e não ao historiador).

No caso de Eisenstein (Eisenstein e o construtivismo russo),4 você parte de um manuscrito quase desco-nhecido para analisar a obra cinematográfica e seu contexto histórico-cultural...

Com Eisenstein, deparamo-nos com um cineasta cuja obra se exprime amplamente para além dos filmes realizados (e conservados), dos filmes que realizou (e foram conservados): ele dirigiu peças de teatro, foi teórico, polemista, autor de diários, desenhista, professor, e a parte de seus filmes “em papel” é esmagadora, sem que seja preciso falar de fracassos ou de renúncia (mesmo se alguns casos pertencem a essas categorias), como poderíamos dizer dos roteiros ou das cenas não rodadas de Stroheim ou Grémillon. Em Eisenstein, a atividade cinematográfica acontece também fora do filme, e os projetos de filmes – como eu disse a respeito de Glass

House ou do Capital – são menos tentativas abortadas ou impedidas do que projetos de cinema, ou do cinema como projeto (a esse respeito, podemos evidentemente comparar o lugar do projeto na obra de inúmeros arquitetos e a teoria do projeto sem finalidade construtiva de alguns). No entanto, o “caso” Eisenstein talvez comporte uma ambiguidade para argumentação num plano mais geral, pois nada impede que seja considerada no plano somente da escrita ou do desenho, planos relativamente autônomos. Este caso não pode ser generalizado, até porque, provavelmente, uma abordagem de grande parte da atividade dos cineastas, vista sob esse ângulo – quase conceitual – mostraria que ele não é único no gênero.

Quanto ao caso específico que você cita, interessei-me pelo Eisenstein teórico, e pelo teórico além do cinema: o texto Dramaturgie der filmform pretende formular uma teoria da arte no seio da qual o cinema existe e é talvez o inspirador (considerando-se a particularidade que representa com relação às artes tradicionais – tecnologia, coletivo, mídia de massa, vetor de uma possível ação política, etc.).

No que concerne a Einsenstein, não apenas um animal teórico, mas também alguém ligado ao debate das artes plásticas em plena convulsão social, como foi circular por estas instâncias tão diferenciadas? Além disso, a reflexão teórica de Eisenstein, especialmente a noção de “atração”, forneceu elementos de reflexão do cinema dos primeiros tempos. Como a discussão das expe-rimentações teóricas do início do século XX pode contri-buir com o pensamento contemporâneo do cinema?

Estabeleci meus próprios limites, demarcando um período a partir de uma convicção (digamos “marxista”) segundo a qual Eisenstein era um devedor de seu tempo, daqueles que encontrava, que o formaram ou aos quais se opôs, e era pre-ciso situá-lo nesse contexto e nesses debates, qualquer que

fosse sua grandeza e genialidade. Assim, obriguei-me a não considerá-lo como um “todo” e relacionar A greve (1924) e Ivã, o terrível (1944 e 45), por exemplo. Isso não quer dizer que seja impossível fazê-lo, mas é preciso começar (“dúvida sistemá-tica”, como dizia Descartes) a deixar de considerar homem-e--obra como um bloco, a encarar o autor como uma constru-ção (Bourdieu), uma função (Foucault), e não uma coincidência com o indivíduo de carne e osso. Se considerarmos esta obra como inscrita em um contexto, vemos surgir as relações que ela mantém com os artistas plásticos, os diretores de teatro e muitos outros, intuição reforçada pelos fatos: Eisenstein tra-balhou com eles, eles com Eisenstein – por exemplo, Aseiev, membro da Lef,5 poeta futurista, escreveu o roteiro de Mr. West no país dos bolcheviques (1924), de Kuléchov, depois redigiu os letreiros de O encouraçado Potemkin (1925). Axionov escre-ve sobre Eisenstein quando este colabora com Meyerhold, Rodchenko cria os cartazetes de O encouraçado Potemkin, Lissitzky atua em uma sequência (não preservada) de A linha geral (1929), Malévitch faz parte do júri de Jubileu da Revolução de 1905 que escolhe Eisenstein para filmar O ano de 1905, que se torna O encouraçado Potemkin, etc.

Tenho a impressão de que, depois de ter “afastado” esta questão em nome de outros valores (o plano sequência, a continuidade, o fluxo temporal – de Bazin e Kracauer a De-leuze, mais ou menos), reencontramos a potência constru-tiva da montagem que, ao lado da colagem, são as grandes inovações do início do século XX. Vemos a importância que essa noção toma para diversos ensaístas que pensam a arte contemporânea (como Didi-Huberman, por exem-plo, que a encontra nos trabalhos de Warburg, Eisenstein, Benjamin…). A arte contemporânea se apropriou da noção de “dispositivo”, que supõe a prática de agenciamento, de combinação: a montagem. O digital, eliminando um certo número de mitologias epifanistas e vitalistas (continuidade entre o objeto e seu rastro, indicialidade da imagem, Santo-

Storyboard de Eles não usam black tie,

de Leon Hirszman (1981).

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-Sudário…) permite a volta dos processos e procedimentos de montagem que, não muito tempo atrás, rejeitávamos como “publicitárias” ou “propagandistas”, embora cineastas importantes não deixassem de usá-las (Godard).

No Brasil, onde os arquivos de filmes têm um desen-volvimento difícil, o filme é um material colocado na primeira fila da hierarquia do historiador. Como vê a problemática segundo a qual a documentação em papel ocupa um lugar secundário na pesquisa?

Não conheço suficientemente a produção teórica brasileira, mas suponho que esta focalização exclusiva do filme possa provir de uma preponderância da abordagem estética ou interpretativa (apreciativa e analítica). Os cultural studies não escapam a essa distorção por não investigarem as condições de produção dos filmes, as relações sociais que os ligam a outros setores da sociedade, etc.

No caso brasileiro, isso se deve certamente ao estado precário dos arquivos, apesar das transformações recentes. Por outro lado, existe o risco de uma investi-gação inflacionada de documentos, mas pobre do ponto de vista da análise imanente dos materiais estéticos e da metodologia. Me parece que um livro como O cinema e a invenção da vida moderna, apesar de alguns artigos importantes, sofre claramente deste problema.

É evidente que a reviravolta em favor do arquivo, do docu-mento ou da contextualização, leva ao risco de diluição do objeto “cinema” e “filme” ou da criação de uma certa confusão: a obra citada, com efeito, recai em parte neste aspecto. Como o necrotério e as exposições de cadáveres no final do século XIX em Paris, relacionados com o Museu Grévin são “explicati-vos” da emergência do cinema?6 Seria preciso ir além e definir, como fez Foucault ao distinguir os epistemas, eixos que cruzam tanto o necrotério quanto as histórias em quadrinhos ou o café-concerto, mas isso exigiria que não nos restringís-semos ao mundo cultural. Podemos nos referir ao livro de Anson Rabinbach, The Human Motor.7 Ao mesmo tempo, não acredito que seja tempo de soar o alarme a esse respeito, pois estamos longe de ver este tipo de abordagem dominar e deformar as coisas. No estágio atual, ainda é produtivo inves-tigar outras áreas culturais ou sociais que cruzam o cinema: a medicina, por exemplo. A psicologia, a fisiologia (e só estamos no começo); ou, em um outro registro, o ilusionismo, as má-gicas teatrais que sugerem temas que o cinema retomará, por vezes com grande proximidade. Tenho alguma reserva no que se refere à expressão “análise imanente”; para dizer

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Zezé Macedo em Trabalhou bem, Genival

(1955), de Luiz de Barros.–

O destino da humanidade: projeto cinematográfico não realizado de Glauber

Rocha, escrito entre 1979 e 1981, enviado a Dona Lucia Rocha, mãe de Glauber, por Claude

Antoine, cineasta francês.

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correto no plano institucional (cada um em seu lugar) mas, por outro lado, devemos observar que regularmente, desde o início do cinema e de maneira crescente desde os anos 70 (com Deleuze representando uma espécie de “sinal” a esse respeito), os filósofos, estetas, sociólogos, etc. se preocu-pam com cinema, escrevem sobre cinema de maneira importante, sem deixar de dialogar com os “especialistas” do cinema! Deleuze explorou principalmente o discurso crítico (ele não discute com Metz, por exemplo, e não se interessa pelos historiadores), como se este fornecesse um tipo de material bruto, de testemunho (às vezes elaborado) sobre o qual ele próprio poderia refletir enquanto filósofo e edificar um sistema pessoal. Em sua esteira – na França ao menos – encontramos um grande número de filósofos que falam de cinema (Rancière, Badiou, During, Bonfand…). A instituição universitária francesa admitiu que o cinema era um objeto legítimo para os filósofos (teses, aulas, edição, revistas, etc.). Portanto, a teoria do cinema deslocou-se do campo dos intraestudos cinematográficos para esta exte-rioridade sem que tenha havido um movimento de troca (ao contrário, há uma submissão dos especialistas do cinema que pouco discutiram Deleuze, por exemplo, a despeito das gafes que ele cometia no plano histórico). Em particular, sem que haja “escuta” por parte dos filósofos com relação aos rearranjos da subdisciplina História do Cinema: os filó-sofos se atêm, portanto, em matéria de História do Cinema, a uma vulgata que é um tecido de aproximações e até de erros. Ora, nessa área, como na da estética do cinema, não acredito que possamos nos isentar da passagem pela História, pois os contornos de nosso objeto “cinema” não po-dem estar limitados unicamente pela investigação histórica, mesmo que isso leve, num segundo momento, a teorias e modelos teóricos.

Você fala de História da Arte. Seria preciso ter certeza de que a disciplina, que possui uma coerência institucional ligada a suas atividades sociais – museus, pesquisas arqueológicas, identificações de quadros, restaurações, mercado de arte, exposição, feira de arte, curadoria, etc. –, e que, portanto, dá a aparência de uma grande solidez (tradição, metodologia, saber, etc., com repercussões em matéria de cadeiras nas universidades, institutos, bolsas, publicações, etc.), não está em crise em seus fundamentos! Hans Belting pode dizer que ela tinha alcançado o seu fim em razão das mutações dos suportes, práticas e modos de circulação do objeto da arte. Ele fala principalmente de imagem, e uma corrente visa incluir a História da Arte (passado) como um subconjunto de visual studies que não represente um impasse sobre a realidade midiática, aparelhada, da arte hoje.

Se acompanharmos o raciocínio de Belting, podemos concluir que a História do Cinema também desapare-ceu, ou seja, a historiografia clássica perdeu sua valida-de, na medida em que as bases do cinema (distribuição, exibição, forma) se transformaram. Para que uma outra historiografia ocupe seu lugar é preciso um trabalho de reinserção da história do cinema na história e na história dos mass media. Por outro lado, como a Histó-ria do Cinema não é um objeto de conceituação forte e rigoroso, é frequentemente tomada pelos estudos de história e de cinema.

Ao final é, sem dúvida, “isso”, mas, contrariamente aos histo-riadores da arte, não dispomos atualmente de uma História ou de histórias do cinema: ela continua incompleta, ainda a construir e, atualmente, estamos justamente buscando no passado do cinema, do qual não se sabe o suficiente ou grande coisa. Portanto, a História do Cinema não “acabou”, pois deve se constituir sem saber até onde deve ir (esse já era o problema de Sadoul, em 1938, “quando ele começa: 1840, 1860?” Com certeza não 1895... Segundo a escolha que fazemos, construímos uma outra história).

Por outro lado, o “desaparecimento” do objeto da História da Arte segundo Belting se deve a mudanças de supor-tes, materiais, práticas, etc. no campo da “arte”, mas sob reserva que os historiadores da arte venham a reconsiderar a História da Arte segundo outros parâmetros que os que até então prevaleciam, quer dizer, iluminem a História da Arte a partir da situação presente da arte e não segundo a tradição acadêmica legada pelos dois séculos precedentes. Primeiramente, ela nasce no final do século XIX em uma sociedade (industrial, de comunicação e de transportes) que a torna possível apesar dela questionar a arte tradicional. Em segundo lugar, possui natureza tecnológica e, portanto, destinada a transformações de suportes e técnicas. Parece claro que, na fotografia, o digital assusta menos, apesar de anunciar a morte do analógico pois, desde 1840, mudou os processos, os suportes, etc.: do daguerreótipo (sem negati-vo) ao calótipo (negativo de papel a partir do qual se produzia o positivo por contato), ao ambrótipo (negativo de vidro cujo positivo aparece sobre fundo negro), do betume ao colódio, etc., não há estabilidade, mas revolução contínua (nas câme-ras, nas lentes, etc.). As transformações do cinema, ou ainda da indústria do cinema, foram sucessivamente “bloqueadas” por razões de rentabilidade (Sadoul evidencia isso bem em seus primeiros textos: a indústria diminuiu a “invenção”, empobrecendo-a com a supressão do som, da cor; arriscan-do-se a retomar estes aspectos mais tarde, quando tem os

Rompimento do Discurso - Estrutura dramática em vias de destruição - Poética - Crise da palavra - (Poeta / Cineasta): notas de Paulo Emilio

sobre Terra em transe. 1967.

a verdade, não acredito mais nela. Mas que seja necessário conservar um local – importante – para a análise das obras, isso sim! Até mesmo partir da análise das obras, mas talvez como Carlo Guinzburg faz em uma outra área.

A História do Cinema é vista em geral como uma subdisciplina da História, como a História Medieval, a História Moderna, etc. Por que a disciplina não alcançou o status da História da Arte, por exemplo? Essa condi-ção marginal é resultado imediato da ausência de uma reflexão que ultrapassa as fronteiras da disciplina e influencia outros domínios do conhecimento, ou apenas

o resultado da frágil articulação entre instituições de saber e instituições museológicas?

Sem dúvida existe, no fenômeno que você descreve, uma responsabilidade que deve ser atribuída à “resistência” ins-titucional, à defesa de sua área e das situações adquiridas (tradição), à especialização, etc., mas há também a natureza dos estudos fílmicos, frequentemente dominados por abordagens “gustativas” ou de livre interpretação, aspectos contemporâneos daquilo que, antes, chamávamos de cine-filia (hoje transformados em obstáculos ao conhecimento do cinema). O fenômeno que você descreve é, com certeza,

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meios de padronizá-los e a necessidade de posicioná-los em oposição a outra mídia). De alguma forma, é da “natureza” do cinema modificar-se, e devemos fazer sua história.

Quais são as especificidades do trabalho do historiador do cinema, como seu trabalho pode se constituir em uma disciplina autônoma?

São as especificidades de objeto(s). É evidente que o historia-dor do cinema deve ser, antes de mais nada, um historiador; mas, num segundo momento, deve adaptar seus métodos e sua epistemologia a este objeto singular, complexo, que é o cinema. Para mim, sua autonomia é bastante relativa; deve manter suas relações intensas e contínuas com as outras “histórias”. Usando como exemplo uma recente tese em Histó-ria do Cinema sobre as trocas de processos e técnicas entre a mágica, o ilusionismo e o cinema dos primórdios (com desta-que para Méliès), o candidato fez pesquisas novas em fontes até então não exploradas e obteve resultados importantes. Mas no júri uma especialista em História do Teatro aponta que esses procedimentos e técnicas também são utilizados no teatro do século XIX (nas fééries, por exemplo); um especia-

lista em fotografia aponta que as trucagens mélièsianas são processos das fotografias “para divertir”, e que não foram sufi-cientemente exploradas as relações entre fotografia recreativa e filmes; um especialista em psicologia e medicina da época dirá que as ligações entre magia/ilusionismo e psicologia das alucinações, sonhos acordados, histeria, etc., são estreitas, etc. As trocas são primordiais e reforçam a necessidade de consti-tuir competências “regionais” para, em seguida, confrontá-las e abordá-las sob todos os ângulos.

Parece-me que uma tese como esta correria o sério risco de dissolver o trabalho específico em outras disciplinas.

Voltamos às questões levantadas acima e, de maneira pragmática, a meu ver, respondo novamente que estamos longe desse risco de dissolução pois, atualmente, essas investigações alimentam o conhecimento do cinema em sua complexidade, uma complexidade que não se imaginava. Participei sucessivamente de três números especiais da revista 1895, um sobre Émile Cohl, o outro sobre o Film d’Art, e o terceiro sobre os cômicos franceses dos primeiros tempos.

Nos três casos, fui levado, como os outros colaboradores des-ses números, a estudar áreas conexas ao cinema (o desenho humorístico, os grupos em torno do cabaré Chat noir, como os Hirsutos, Zutistas, etc., para Cohl;8 os autores de teatro, o Grand Guignol, etc., para o Film d’Art, os acrobatas de cena, para os cômicos). Ora, esses campos se revelam formadores do próprio cinema: Cohl é originário dos movimentos Zutistas, onde foi formado seu humor absurdo, o Film d’Art apela para esses escritores (Lavedan, etc.), os comediantes perpetuam os acróbatas, etc. Não é possível retomar, prosseguir, traduzir, sem levar em conta esses antecedentes. Seria ilusório querer retirar da análise interna dos filmes as informações que encontramos no exterior. Não concordo com Gaudreault que, com sua teoria das “séries culturais”, liga o primeiro cinema a essas séries e muda a emergência do cinema para mais tarde (1913…). Com esse raciocínio, corremos efetivamente o risco de diluir o cinema. De modo contrário, se estabelecermos es-ses pré-requisitos, esses antecedentes, e não nos esquecer-mos (!) de estudar com a mesma intensidade o que acontece no âmbito da máquina cinema e com o dispositivo social do cinema, reencontramos o filme expandido por tudo o que ele herdou e por aquilo de que se reapropria. Assim, Méliès conta com as particularidades técnicas do aparelho (interrupção da imagem/montagem) para obter os efeitos que deseja levar da

cena à tela (escamotagem, uma cabeça que infla, etc.); assim como os comediantes utilizam seus truques, os recursos da câmera fotográfica para retomar e aumentar esses espetácu-los de acrobatas, etc.

É possível que pesquisadores “esqueçam” a segunda etapa; mas isso não impede que tenham fornecido dados, conheci-mento, que pertencerá àqueles que navegam nas margens da exploração e da retomada.

No Brasil, país de tradição colonial, os estudos universi-tários têm ignorado em geral os resultados das pesqui-sas anteriores e adotam métodos abstratos surgidos nos principais centros europeus e norte-americanos, muitas vezes ignorando o que foi acumulado a duras penas. Como você vê esse desprezo pelo trabalho das gerações precedentes, que resulta num eterno recomeçar?

Discuti e compreendi esse problema na Europa, mas estou pronto para fazer a denúncia, mesmo no Brasil, apesar de não conhecer o terreno e os protagonistas. De toda forma, me parece que o trabalho histórico só pode ser feito por brasileiros, e a História de sua História do Cinema (ou aquela da crítica, da preservação, etc.) deve ser feito.

1 SADOUL, Georges. História do cinema mundial. São Paulo: Mar-tins, 1963. (Trad. Sônia Salles Gomes).

2 BAECQUE, Antoine. L’histoire caméra. Paris: Gallimard, 2008.

3 Há, no contexto brasileiro, uma tese sobre o debate interno da FIAF, desde sua criação em 1938 até 1960. Cf. CORREIA JR., Faustos Douglas. O cinema como instituição. (Tese de doutoramento) São Paulo: UNESP, 2012.

4 Cf. ALBERA, François. Eisenstein e o construtivismo russo. São Paulo: Cosac Naify, 2002.

5 Lef é a revista da Frente de Esquerda das Artes (“Levyi Front Iskuss-tv”), associação de artistas de vanguarda na União Soviética. Fundada por Osip Brik e Vladimir Maiakovski, a revista teve duas fases (1923-5 e 1927-8) e tinha entre seus associados artistas como Alexander

Rodtchenko, Várvara Stiepánova e Anton Lavinski, os cineastas Dziga Viertov e Serguei Eisenstein, e escritores e críticos como Serguei Tretiakov, Nikolai Aseiev, Victor Chklovski e Semeon Kirsanov.

6 Albera se refere ao artigo O espectador cinematográfico antes do aparato do cinema: o gosto do público pela realidade na Paris fim-de--século, de Vanessa Schwartz, coorganizadora com Leo Charney do livro O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac Naify, 2001.

7 RABINBACH, Anson. The human motor – energy, fatigue and the origins of modernity. California: University of California Press, 1992.

8 Sobre Émile Cohl e os círculos vanguardistas da belle époque cf. MARINONE, Isabelle. Cinema e Anarquia – uma história “obscura” do cinema na França (1895-1935). São Paulo: Cinemateca Brasileira; Azougue, 2009.

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O destino da humanidade: projeto cinematográfico não realizado de Glauber

Rocha, escrito entre 1979 e 1981.

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É rara a referência a Ozualdo Candeias como fotógrafo. Cineasta singular, tem seu trabalho cinematográfico muito voltado para a vida na cidade moderna, palco do esgarça-mento das tradições e valores rurais populares. No entanto, seu trabalho fotográfico, muito menor em volume, possui grande significado e apresenta vestígios de um estilo e merece atenção.1

O começo das atividades de Candeias como fotógrafo é incerto. Não existem dados exatos a respeito de possíveis in-fluências ou do aprendizado técnico. As informações aqui ex-postas baseiam-se em entrevistas concedidas pelo cineasta e no artigo de Ricardo Mendes, Candeias fotógrafo.2 Ao que parece, o primeiro trabalho profissional do fotógrafo Can-deias foi com o filme inacabado Mulheres modernas (1958), de Alberto Cunha. Quanto à primeira máquina, Candeias afirma ter sido uma Exacta, comprada por recomendação de Ody Fraga na época das filmagens de A margem (1967), o primeiro longa do diretor. Em sua iniciação à fotografia, sem-pre segundo Candeias, as dicas de Jacques Deheizelin foram preciosas, mas o aprendizado de fato se deu de maneira autodidata e na intensa prática experimental. No arquivo do produtor Plinio Sanchez há um currículo do realizador que informa seus primeiros passos na fotografia. Consta que, entre os anos 1964-1967, ele fez uma viagem por países

vizinhos, levantando dados para a realização de América do Sul (1965), um dos inúmeros documentários de encomenda que serviram para seu aprimoramento como cineasta. De acordo com o documento, cerca de 3 mil fotografias foram realizadas durante a viagem. Essas versões controversas ajudam a entender um aspecto de seu trabalho, importante para a compreensão dos filmes: a construção de um mito biográfico. Candeias foi um inventor de um personagem que sempre confundiu seus críticos.

Na década de 1970, encontramos o cineasta trabalhando a técnica fotográfica como uma etapa da realização de filmes. A fotografia aparece em sua forma de still, documentando os filmes em processo (Meu nome é Tonho e Aopção), e a tensão que carregam, sempre entre o improviso e a concentração temática. Em paralelo ao still, ele também realiza uma docu-mentação fotográfica da própria Boca do Lixo, destacando as-pectos da vida cotidiana: o lumpesinato, os pivetes, malandros, mendigos, prostitutas, policiais e os próprios trabalhadores do cinema. Todos têm como fundo a decrepitude acelerada da região recém-destronada de sua condição “central”, e das construções tornadas incaracterísticas pela falta de investi-mentos e de manutenção, e apertadas à sombra de imponen-tes edificações, cuja importância estratégica para a cidade se encolhia no momento dos registros, como a Estação da Luz.

Ozualdo Candeias, fotógrafo da Boca do Lixo

Prostitutas da Boca do Lixo. Álbum de cineastas

e personalidades de Ozualdo Candeias.

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Fábio UchôaDoutorando em Ciências da Comunicação pela ECA-USP

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Cristina e o diversificado cardápio da Boca do Lixo.

–Ozualdo Candeias ao lado

de um grupo indígena.

Para trazer para o debate novas fontes que sugiram outras aproximações ao trabalho de Candeias, chamamos atenção para a documentação fotográfica depositada pelo cineasta na Cinemateca Brasileira, que contém os temas identificados acima, trabalhados em um tipo de elaboração artística que supera o puro registro e aponta para os próprios filmes: são retratos e composições da região, seus frequentadores, seus edifícios e sua luz. Entre os documentos, há duas pastas, con-tendo cada uma 50 fotografias; um álbum de fotografias de ci-neastas brasileiros, com 110 páginas; uma coleção de retratos de diretores de cinema emoldurados em pequenos quadros, com 9 retratos; um conjunto de retratos também de cineastas, feitos com o uso da fotomontagem, além das fotos de still.

Apesar de Candeias ter se referido mais de uma vez a esse trabalho como um exercício diletante e sem compromisso, podemos ver nesses álbuns um empenho criativo que ul-trapassa a mera documentação. Para além da função social evidente de álbum, um único álbum da família Boca do Lixo formando uma comunidade de pertencimento, esse material evidencia um processo construtivo que se configura nas intervenções na imagem, na confecção das legendas, na ordenação das personagens e dos edifícios.

Na coleção depositada na Cinemateca Brasileira se destaca um curioso álbum de fotografias de cineastas e celebrida-des, muitos deles distantes, no tempo e no espaço, do uni-

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Loucos, prostitutas e anões. Álbum de cineas-tas e personalidades de

Ozualdo Candeias. –

Durvalino “Zapata” de Souza e Walter “Sancho”

Portella.

verso da Boca. Figuras como os precursores José Medina, os irmãos Del Picchia, Vittorio Capelaro, e os modernos Tri-gueirinho Neto e Abílio Pereira de Almeida, todos mesclados às referências do bairro e sua ambiência, como se a história do cinema brasileiro fosse reorganizada no espaço da Boca.

Procedimentos construtivos são percebidos na composição do espaço e dos corpos, assim como nas ações posteriores à revelação da imagem, como a criação de verticalidades; a manutenção ou produção de um halo que remete a uma atmosfera onírica ou “suspensa”; e o uso da colagem para aproximar técnicos e cineastas do espaço da Boca ou para agrupar figuras no mesmo plano. Uma fotografia merece destaque. Em uma homenagem à população do lugar, Candeias reúne num mesmo plano prostitutas, transeuntes, mendigos e um anão. A legenda é explícita: Pygocentros Piraya. O nome científico da piranha ironiza a figura da prostituta e a composição sugere uma visão dos vários tipos que por ali circulam. O título douto e a organização da ima-gem expõem um traço de estilo importante em Candeias, presente num filme como Zézero (1974): a ridicularização da abordagem de tipo sociológico, pretensamente objetivo, mas distante do universo tematizado.

O projeto contido nessas fotografias será mais organiza-do nos dois filmes de mesmo título, Uma rua chamada Triumpho (1971 e 1972). A análise mais aprofundada desses álbuns, o reconhecimento das personalidades, a montagem fotográfica proposta e os temas escolhidos podem iluminar o trabalho deste cineasta ainda tão obscuro, além de evocar uma fase importante do cinema paulista e brasileiro.

Notas

1 Para mais informações Cf. UCHOA, Fábio Raddi. Cidade e a deam-bulação nos filmes de Ozualdo Candeias. (Dissertação de mestrado). São Paulo: ECA-USP, 2008.

2 MENDES, Ricardo. Candeias fotógrafo. In: ALBUQUERQUE, Heloísa C.; PUPPO, Eugênio (org.). Ozualdo R. Candeias: 80 anos. São Paulo: Heco Produções, 2002.

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Nos anos de 1950, a descoberta da existência de arquivos pessoais dedicados ao cinema é comemorada com bastante entusiasmo, pois trazem à luz das pesquisas históricas a reunião de documentos que vinham de três ou quatro déca-das anteriores. O crítico e historiador Paulo Emilio Salles Go-mes escreve então: “Quando no Brasil se cogita de arquivos de documentação cinematográfica ou de história do cinema brasileiro, os primeiros nomes que ocorrem são Adhemar Gonzaga, Pery Ribas e Pedro Lima. Sem o material reunido por esses três homens dificilmente poderá ser delineada a história de nosso cinema”.1 Também alerta: “se os traba-lhos de pesquisa não forem ativados [...] serão dispersados arquivos de documentos sem os quais dificilmente poderá ser traçada uma história autêntica do cinema brasileiro das origens até a invenção do falado”.2

O tom pessimista na profecia não se cumpriu plenamente por conta de outros desdobramentos na pesquisa historiográfica sobre o cinema brasileiro; no entanto, sabemos que a docu-mentação reunida por Adhemar Gonzaga somente sobrevi-veu graças aos esforços contínuos de sua filha, que o mantém até hoje sob a posse familiar, e da de Pery Ribas sobrou ape-nas uma parcela preservada pelo Departamento de Cinema e Vídeo da Secretaria Municipal de Cultura de Porto Alegre. A coleção de Pedro Lima percorreu uma trajetória de dispersão

e de perda que vale a pena descrever, como subsídio para a reflexão sobre os fundamentos que distinguem a aquisição e a disseminação de um arquivo público e um privado, entre um patrimônio coletivo e um patrimônio particular.

Pedro Mallet de Lima nasceu no Rio de Janeiro a 20 de setembro de 1902 e foi cronista de filmes, pesquisador, jornalista e autor de documentários cinematográficos. Não chegou a terminar o curso de Direito pois, já nos tempos de estudante pré-universitário, começara a dedicar-se ao cinema. Na revista Selecta, em 1924, criou a primeira seção permanente sobre cinema brasileiro de que se tem notícia. Chegou a participar como ator de alguns filmes do período silencioso, mas sua prática cinematográfica ocorreu no Serviço de Informação Agrícola do Ministério da Agricultura, sob o patrocínio do qual chegou a realizar 27 documentá-rios curtos. Em paralelo, escreveu sistematicamente sobre cinema nas principais revistas cariocas e nos jornais A Noite, Correio da Manhã e Diário da Noite, tendo sempre especial predileção para os filmes brasileiros e para as intensas po-lêmicas sobre a consolidação econômica de uma indústria cinematográfica nacional.

O espírito de colecionador teve início desde a tenra idade, mas o registro que fundamenta a existência de sua coleção

Trajetórias do arquivo Pedro Lima

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Rosa de Maio sendo dirigida por José Medina

em Gigi (1926).

Jair Leal PiantinoPesquisador da Cinemateca Brasileira

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data de 1955, quando Pedro Lima começa a organizá-la, com o suporte técnico de um documentalista dos Diários Associados, empresa na qual mantinha colunas diárias. A organização era imprescindível pois o acervo se acumulara desordenadamente em sua casa à rua São Luís Gonzaga, 800, e necessitava portanto de um tratamento arquivístico mais profissional. Consistia tal coleção numa “quantidade considerável de fotos”, “livros em diversas línguas, recortes, revistas e jornais”, “máquinas de projeção” (pelo menos cinco) e alguns “filmes mudos e falados”, como inventaria o Chefe do Serviço em um relatório de agosto daquele ano a ser enviado aos seus superiores.3 Recomenda ele a seleção e classificação do material, a organização em pastas e os modelos de fichas a serem preenchidas. Dois auxiliares de-veriam ser contratados para a execução da tarefa e, quanto ao material permanente, 4 arquivos tamanho ofício com 4

gavetas deveriam se somar aos já existentes 6 arquivos de aço de igual configuração.

Paulo Emilio, quando de sua visita em 1957 ao jornalista e aprendiz de arquivista, cerca de um ano e meio depois, con-firma o andamento do trabalho conforme o documentalista recomendara: “aos sábados e domingos [Pedro Lima] em-prega em classificar, ajudado por duas secretárias, a massa de documentos que possui. Os antigos armários de madeira onde [...] guardava a papelada e as fotografias, muitas de valor inestimável, foram atingidos por um desbarrancamen-to. Perderam-se muitos documentos, mas a maior parte está sendo cuidadosamente transportada para arquivos de aço colocados em locais novos”.4 O visitante parece contente com o que vê e faz questão de descrever um desenho que Pedro Lima, deixando transparecer sua paixão pelo passado,

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Anita Henrys, Adolfo Nery, Alberto Traversa. Fotografia de cena de Risos e lágrimas

(1926), de A. Traversa. –

Legenda de Pedro Lima: “Carlos Caváco com sua

gentil filhinha Eva – Musa, cujo talento artístico

provocou o enthusiasmo da grade actriz japoneza

Tsang Tapolis.”

coloca em suas mãos ou menciona com muita ênfase: “o menino que em 1914 já era fã de cinema há alguns anos é o mesmo que logo após a deflagração da guerra envia para o Kaiser, que muito admirava, um projeto de torpedo aéreo acompanhado do seguinte recado: ‘Não repare eu não pintar o resto do canhão, pois não sei (fica ao cuidado do senhor)’.”5

Os interesses em relação ao processamento do arquivo, tanto da empresa jornalística quanto do colecionador, não eram conflitantes: “o sr. Pedro Lima, ao que me declara rei-teradamente, está pronto a permitir que se extraia cópia das fichas concernentes ao Cinema Estrangeiro, cujo material não se recusa a entregar-nos caso o desejemos. Mas quanto ao Cinema Nacional considera o sr. Pedro Lima patrimônio seu, do qual não deseja privar-se.” Para os Diários Associa-dos, “o vulto dos elementos de publicidade que encerra o arquivo Pedro Lima” valia o investimento de incorporação do material estrangeiro ao seu Serviço de Documentação, área de Arquivo – Biblioteca e Cadastro. Para Pedro Lima, supõe--se, o material brasileiro era motivo de um ardente amor e merecia sobreviver sob a sua guarda, embora o colocasse à disposição para difundi-lo pouco a pouco “nas secções que mantém nas revistas desta Empresa”.6

Nada sabemos sobre essa continuidade de organização sistemática do arquivo, a despeito de seu crescimento natural. Trinta anos depois, exatamente a 2 de outubro de 1987, morria seu titular. Como acontece com frequência, dois herdeiros, seus sobrinhos Frederico e Fernando Soares, colocam à venda o patrimônio do tio, entre o qual se inclui o arquivo de documentação cinematográfica. Meses depois, Miguel Pereira, coordenador da área de pesquisa da Embra-filme, recebe a incumbência de avaliar o acervo de Pedro Lima visando uma possível compra pela empresa paraesta-tal, subordinada ao Ministério da Educação e Cultura. “Uma de suas características principais é a continuidade histórica, que vai dos anos 1910 à década de 1980. Tudo indica que se trata do maior arquivo particular especializado em cinema que se tem notícia” – escreve ele em 1988, repetindo não apenas a visita como o entusiasmo que sentira Paulo Emilio décadas atrás.7 A coleção ocupa então um quarto, com cerca de 60 m2, no 3o andar de uma casa na Ilha do Governador e encontra-se “em estado precário” (excesso de poeira, chapas de vidro estragadas, diafilmes completamente inutilizados, volume muito grande de recortes de jornais da Agência Lux armazenados em péssimas condições e colados em papel extremamente ácido), ao ponto de Jorge Edson Garcia, um pesquisador que acompanha a avaliação, comentar no seu parecer: “considerando-se o estado de armazenamento e

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Álbum de Pedro Lima com retratos de

Julio A. Oliveira, circa 1927.

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conservação do acervo, creio que 20% deverá ser descar-tado de imediato (...). Dos 80% restantes, considerando-se o que já existe em outras instituições e o que não está intima-mente ligado ao cinema, sobram 40% para serem tratados”.8

O que compõe a coleção nesse momento? Segundo a equipe de avaliação da Embrafilme, o acervo é estimado em cerca de 250.000 unidades, cuja “análise preliminar” indica a “existência de uma grande biblioteca composta por livros (...) e coleções de revistas completas e encadernadas, como O Cruzeiro, Cinelândia, Filmelândia, A Scena Muda, Cinearte, Para Todos, Selecta”, ou seja, entre elas muitas fontes capitais para o conhecimento do cinema brasileiro até 1950. Compreende ainda enorme quantidade de recortes de jornais que se encontram empilhados sobre os arquivos e móveis, correspondência e artigos escritos pelo titular, fotografias e negativos originais de filmes e de artistas da década de 30 a 60 e cerca de 20 filmes e um conjunto de documentos pessoais que, segundo a família, estão deposi-tados em outro local, na residência de São Cristóvão.

O projeto propõe o pagamento de cerca de 70.000 dólares aos familiares de Pedro Lima.9 No entanto, a Embrafilme, embora empenhada na salvaguarda da memória do cinema nacional, não efetiva a compra. A Cinemateca do MAM do Rio de Janeiro reapresenta o mesmo projeto para financiamento da Fundação Banco do Brasil, mas de igual maneira não obtém os recursos necessários para a aquisição.

Cabe a um particular fechar o negócio, provavelmente numa data próxima a outubro de 1989.10 Haroldo Silva Filho, que se apresenta com o pseudônimo de Haroldo Coronel, banca a compra por 400.000 dólares e, em junho de 1990, inaugura sua loja Souvenirs de Cinema, em Copacabana.11 Um levan-tamento sem autoria mencionada mas bastante preciso pode revelar o estado do acervo no momento da compra. Tudo se encontrava em uma sala de mais ou menos 25 m2, acondicionado “em 32 arquivos (29 de aço e 3 de madeira), 2 armários de madeira, um conjunto de estantes, algumas mesas e uma cama”.12

Começa então a grande dispersão do Arquivo Pedro Lima. O material estrangeiro, que ocupa 12 arquivos com fotos de artistas e de filmes e 400 livros sobre cinema, é colocado à venda peça a peça, no mercado dos coleciona-dores internacionais.

As flâmulas de companhias e de eventos cinematográficos, os diplomas diversos, os esboços em desenho para o filme Barro

humano e as fotos autografadas de artistas brasileiros, talvez tenham encontrado seu valor no mercado local, bem como edições avulsas dos periódicos Palcos e Telas, Cine-Rádio--Jornal, Jornal do Cinema e Cine Repórter, entre outras.

No que se refere aos filmes, uma suposta cópia perdida de By the sea (1915), de Charles Chaplin, poderia interessar ao American Film Institute e render 50.000 dólares, e um lote de 34 filmes e fragmentos acaba adquirido em 1996 pela RioFilmes, da Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro, por 320.000 reais ou mais ou menos 280.000 dólares, o que serviu para salvaguardar pelo menos alguns títulos brasileiros.13

As notícias sobre o comércio efetuado, provavelmente trans-mitidas à imprensa pelo próprio Haroldo Coronel, servem para demonstrar a estratégia de marketing na revenda da documentação de Pedro Lima: peça a peça, unidade por uni-dade, dentro de um perfil adequado aos propósitos de lucro e, portanto, bastante distinto das preocupações arquivísticas gerais em relação à manutenção orgânica de um acervo ou fundo pessoal, empresarial ou institucional. Com efeito, foi igualmente com esse espírito que, para cerca dos restantes 16 arquivos aparentemente mantidos em sua íntegra, uma outra tática de revenda é colocada em ação, envolvendo ago-ra o comprador com a Cinemateca Brasileira, que na época já estava vinculada ao Ministério da Cultura.

Não cabe aqui relatar os métodos de pressão ou de persua-são utilizados por ele em sucessivos encontros para alcan-çar seus objetivos; o principal deles consiste em dizer que já havia um comprador internacional para um documento específico que ele oferece em troca de outros do acervo da Cinemateca sobre os quais tem grande interesse. É certo que a permuta – se esta for uma palavra adequada para o tipo de negócio que foi utilizado – rendeu à Cinemateca, peça a peça, a aquisição de 6 cartazes e de 5 cartazetes originais de filmes brasileiros da década de 1920,14 em troca de 43 cartazes de época de filmes de Greta Garbo, Rita Hayworth, Charles Chaplin, Fred Astaire, Gene Kelly e Irmãos Marx.

Em 1993, quando o acervo da instituição não comporta mais o interesse imediatista do comerciante, Haroldo Coronel sugere uma última negociata: “em minha ‘coleção particular’ possuo todo o arquivo do grande crítico e produtor cine-matográfico brasileiro Pedro Lima [...] composto de mais de 2.000 (duas mil) pastas, de A a Z, arquivadas em 4 arquivos de 4 gavetas cada um [...]. Proponho a troca desse magnífico acervo, principalmente para que ele se mantenha em nosso

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Carlos Modesto e Eva Nil. Fotografia de cena de Barro humano (1929), de Adhemar Gonzaga.

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“Luiz de Barros recebendo os cumprimentos de Mr. Harry Kremp,

após ter cinematografado pessoalmente

O parafuso da morte.” –

Legenda de Pedro Lima: “Esta foi uma feijoada nos escombros da

Sacra Filmes. Está falando o cap. Serick, gerente dos estúdios, estão ouvindo entre outros Ronaldo Lupo,

que lamenta a perda irreparável para o cinema nacional e Luiz

de Barros, como é do seu hábito, para concentrar-se põe o polegar entre os lábios. Ambos homens de cinema sabem o que custa a perda

de um estúdio que é a oficina de trabalho; o lugar onde eles ganham

o pão de cada dia. Mas Ronaldo Lupo não desanimou apesar da expressão carregada continuou a filmar seu Genival é de morte [1956, de Aluizio T. de Carvalho], sob toldo de lona e agora o filme

está quase pronto.”–

Candidatas ao concurso de Miss Galveston. Junho de 1929.

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Notas

1 GOMES, Paulo Emilio Salles. Visita a Pedro Lima. [19 jan. 1957]. In: Crítica de cinema no Suplemento Literário. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. v.1, p.66. Ver a seção Pauloemiliana desta edição.

2 GOMES, Paulo Emilio Salles. Dramas e enigmas gaúchos. [29 dez. 1956] In: Crítica de cinema no Suplemento Literário. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. v.1, p.54.

3 FORTUNA, Djalma. Em relatório ao gerente, de 19 ago. 1955. Entre os filmes, a 1ª edição de Violetas imperiais, da Pathé, Fuga de Napoleão (1926) e a coleção completa de Carlitos/Charles Chaplin.

4 GOMES, Paulo Emilio Salles, op. cit., v.1, p.66

5 GOMES, Paulo Emilio Salles, op. cit, v.1, p. 67

6 FORTUNA, Djalma , op. cit.

7 PEREIRA, Miguel. Arquivo Pedro Lima – relatório parcial. Rio de Janeiro, 24 abr. 1988.

8 GARCIA, Jorge Edson. Considerações a propósito do Arquivo Pedro Lima. Rio de Janeiro, [24 abr. 1988].

País [...] por ‘10 cartazes americanos, à minha escolha, perten-centes ao próprio acervo da Mapoteca da Biblioteca da Cine-mateca Brasileira’”.15 Fica explícito o sensível encolhimento do Arquivo Pedro Lima e, durante as negociações, a Cinema-teca exige um pouco mais, Haroldo Coronel barganha outro tanto, e dentro do possível procura-se obter, por meio de um acordo verbal, a maior parte da coleção Pedro Lima em troca de mais 30 cartazes americanos de livre escolha do comerciante.16 Dessa maneira tortuosa e torturante, uma pequena parte da coleção de Pedro Lima entra para o acervo da Cinemateca Brasileira, onde, ao longo dos últimos anos, foi processado e hoje está disponível à consulta pública.17

O que ainda subsiste reunido no fragmento de acervo que foi enviado à Cinemateca Brasileira e que sobreestimamos ao chamá-lo de arquivo? Chegaram 7 arquivos de aço com 4 gavetas cada, cujas pastas continham fotografias, recortes de jornais, cartas ou peças publicitárias de filmes. Arthur Autran, o historiador que nele se detém em primeiro lugar, reclama a ausência de pelo menos 5 outros arquivos, todos referentes a filmes brasileiros, que jamais teriam sido entregues. “O grosso do material concentra-se na década de 1950 – escreve – (mas) certamente o acervo fotográfico, principalmente aquele refe-rente aos anos 1920, é extremamente valioso”.18

Uma avaliação posterior descobre um conjunto mais signifi-cativo. Além das fotos, os recortes de jornais cobrem uma boa parcela das décadas de 1930 e 1940, sobre as quais inexistiam informações no acervo geral da Documentação da Cinemate-ca (que teve início a partir dos anos 1950), ampliando assim de

maneira significativa a cobertura jornalística sobre o cinema brasileiro que a instituição vem realizando de maneira siste-mática sob a forma de anuários. Um documento aqui ou ali, uma partitura de Fragmentos da vida, de 1929, um manuscrito remanescente, um caderno de anotações sobre um filme do Ciclo de Recife dos anos 1920, o conjunto da correspondência ativa e passiva, também despertam um imenso prazer para aqueles que tiveram o privilégio de manusear o que restou do Arquivo Pedro Lima.19 Sobra afinal um misto de espanto sobre o universo de coisas que possivelmente o colecionador considerava merecedor da eternidade, e uma boa dose de indignação por saber que a maior parte dessa energia preser-vadora se perdeu pelos mercados afora.20

Se entendermos que o colecionador cuida de preservar e guardar para si mesmo os objetos de seu especial carinho, e que o arquivista profissional cuida dos objetos do carinho dos outros procurando colocá-los à disposição de um públi-co cada vez mais numeroso, talvez Pedro Lima tenha sido o único colecionador-arquivista que o Brasil conheceu, pelo menos no que toca ao cinema brasileiro, porque não apenas procurou reunir os documentos que considerava para si preciosos, como se deu ao trabalho profissional de organizá--los, possivelmente para destacá-los numa perspectiva historiográfica disseminadora e mais ampla.

Em tempo: sob o código APL-V/7 encontra-se arquivado na Cinemateca Brasileira o desenho do torpedo aéreo que o menino Pedro Lima pensou enviar ao Kaiser alemão quando foi deflagrada a I Primeira Guerra Mundial.

9 EMBRAFILME. Projeto Arquivo Pedro Lima. Rio de Janeiro, 12 maio 1988. O projeto menciona 12.188 OTNs e, se nossas contas não estive-rem equivocadas, equivalem em dólares ao valor de maio 2007.

10 Em 24 de outubro desse ano, Haroldo Coronel, já como compra-dor do Arquivo Pedro Lima, entrara em contato com a Cinemateca Brasileira para trocar 1 cartaz e 10 fotografias de cena de Barro hu-mano, pertencentes ao Arquivo, por 23 cartazes norte-americanos dos anos 1930 e 1940, conforme termo de troca assinado entre ele e o diretor da instituição.

11 O que se informa neste momento provém do Jornal do Brasil, 06 maio 1992 e de O Globo, 10 abr. 1994, p.10; o valor da compra foi mencionado em um dos encontros entre Haroldo e o autor deste artigo. Pode ser apenas bravata de um ótimo comerciante.

12 Esta lista, denominada de Descrição por Amostragem do Arquivo Pe-dro Lima, de 30 jan. 1989, deve ter sido obra de Hernani Heffner em nome da Cinédia, quando a família de Pedro Lima ainda procurava comprador.

13 Jornal do Brasil, 06 out. 1992, p.6, cad. B, e Jornal do Brasil, 01 out. 1996, p.1, cad. B. A listagem do lote é exaustiva, mas esclarecedora. Continha ele “as primeiras produções em technicolor feitas em 1941 no Brasil e a primeira expedição do Marechal Rondon à Amazônia na década de 10”, dois minutos do lendário Barro humano, alguns foto-gramas de Morfina, de 1928, quatro filmes de Paulo Benedetti, trechos de Gigolette, de 1925, 30 minutos de imagens das Cataratas do Iguaçu em 1930 e “um documentário de 29 sobre o Edifício Seabra, que mos-tra a inauguração do cine Pathé e a Cinelândia no seu apogeu”. Antes disso, Haroldo Coronel também teria vendido aos estúdios Disney um documentário sobre a visita de Walt Disney ao Brasil; Favela dos meus amores, de 1935, teria sido comprado pelo American Film Institute; cenas da inauguração do Cristo Redentor e das visitas de Edith Piaf, Josephine Baker e Marlene Dietrich, no Copabana Palace, teriam sido adquiridas pelo Museu Henri Langlois, na França.

14 Ao Jornal do Brasil, 06 mar. 1992, Haroldo Coronel afirmara que, antes mesmo de ter comprado o Arquivo Pedro Lima, os cartazes de Alô, alô, carnaval e de Limite haviam sido vendidos ao MoMA, de Nova York, por um preço entre 20.000 e 25.000 dólares. Entre as peças originais recebidas pela Cinemateca em permuta constam os cartazes dos filmes Tesouro perdido (1927), Brasa dormida (1928), O Guarani (1920) e dos cartazetes dos filmes Hei de vencer (1924), Gigi (1925) e O garimpeiro (1920), entre outros.

15 Carta dirigida à diretora Tânia Savietto, 12 abr.1993; os itálicos e aspas são do proponente.

16 Do total de 73 cartazes norte-americanos permutados pela Cinemateca com Haroldo Coronel, destacamos: The lady of the lake (1947), Strangers on a train (1951), The picture of Dorian Gray (1945), Monsieur Verdoux (1947), An American in Paris (1951), Ninotchka (1939), Queen Christina (1936), The postman always rings twice (1946),

Tarzan finds a son (1939), Royal wedding (1951), A night at the Opera (1935), The asphalt jungle (1950), etc.

17 Dois anos depois da venda de cópias para a RioFilme e cinco anos da permuta parcial com a Cinemateca Brasileira, ou seja, em 1998, Haroldo Coronel ainda procurava comprador, por meio da lei Roua-net, de 1.000 latas de filmes, 100 mil fotografias, coleções completas de revistas especializadas, negativos em vidro, uma coleção de “fo-tos raras, de Carmen Miranda, ainda sem turbante, mostrando sua trajetória na Argentina (...) entre 1931 e 1938” e “dois baús particula-res (...), o da musa do cinema mudo, a atriz Carmen Santos, e o do precursor do cinema nacional, o italiano Paulo Benedetti”, tudo por 650.000 reais, nos valores da época, cerca de 560.000 dólares. Não sabemos se os documentos citados faziam parte ou não do acervo de Pedro Lima. A bem da verdade, segundo a reportagem de Marke-ting Cultural, n.15, set. 1998, p. 42-43, o intento de Haroldo Coronel era repassar esse acervo para uma instituição pública, logo após a sua compra por uma empresa patrocinadora. Se tal fato ocorreu, a Cine-mateca Brasileira não foi a instituição pública escolhida.

18 AUTRAN, Arthur. Relatório sobre a organização do Arquivo Pedro Lima. São Paulo, 12 abr. 1994. A constituição original das pastas dentro das gavetas de cada arquivo de aço agrupava cinco grandes grupos: Personalidades (o maior deles), Companhias (produtoras, distribuidoras, exibidoras e laboratórios), Assuntos Gerais (festivais, entidades, técnica cinematográfica, concursos de beleza, entre outros), Pessoal (correspondência, artigos originais de Pedro Lima, documentação particular), e Filmes Estrangeiros (grupo que não fizera parte da negociação e deve ter vindo por engano). Cada grupo continha pastas em ordem alfabética por sobrenomes das personalidades, por nomes das entidades, por títulos dos filmes, ou por cabeçalhos de assunto. Dentro das pastas, algumas bastante confusas a ponto de merecer uma reclassificação, havia todos os tipos de material, em outras apenas recortes de jornais (a maior parte dos casos).

19 O que chegou até a Cinemateca Brasileira recebeu rearmaze-namento adequado, com separação entre os diferentes suportes, visando sua conservação, mas mantendo, na medida do possível, a estrutura original que o documentalista de 1955 estabelecera de comum acordo com Pedro Lima.

20 A legislação atual, pelo Decreto n. 4073, de 03 jan. 2002, se aplicada ao caso do Arquivo Pedro Lima, teria minimizado bastante os efeitos negativos aqui relatados. Segundo o capítulo V, artigos 22 a 28, um arquivo privado pode ser declarado de “interesse público e social”, cabendo ao proprietário dar direito de preferência à União na compra do arquivo ou responder ao controle do Conarq – Conselho Nacional de Arquivos, com o qual pode firmar acordos para a “orga-nização, preservação e divulgação do acervo”.

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O chafariz: a marca registrada das produções da Atlântida, sob o comando de

Luiz Severiano Ribeiro Jr.

Lembrado como imagem e voz dos donos do poder no sécu-lo XX, o cinejornal foi pouco utilizado para a releitura históri-ca, embora possua grande potencial enquanto fonte para o estudo do passado. A multiplicidade de temas e abordagens que carrega e a evidência primeira em suas representações, o imaginário do poder político, são as suas maiores contri-buições à compreensão das sociedades que representou. As manifestações políticas que noticiou recapitularam outros componentes da atividade social e cultural. Suas lentes mos-traram atos, rostos, gestos e costumes de atores individuais e coletivos; ritos, mitos e crenças que traduziam a vida pública e os fatos culturais de toda uma sociedade nascida com a modernização dos meios de comunicação.

A Cinemateca Brasileira guarda e preserva as principais produções do gênero, como as séries Atualidades Atlânti-da (1942-1986) e Notícias da Semana (1945-1986), ligadas à Atlântida Empresa Cinematográfica do Brasil S.A., e o Canal 100 (1959-1986), da Produções Carlos Niemeyer Filmes Ltda.1 Ainda que não se possa alcançar a completude destas séries de cinejornais, pelo pouco que restou das imagens em movi-mento e em condições de visionamento, é possível “folheá--las”. Ou melhor, investigar quase cinco décadas de noticiários semanais inscritos nas páginas de roteiros, textos de locução, mapas de distribuição, pautas de notícias e programas de

salas, que contemplam tanto assuntos políticos quanto eco-nômicos, sociais e culturais. Neste artigo, trataremos apenas de um recorte, com um caráter prospectivo e com destaque para as possibilidades do cinejornal enquanto fonte privilegia-da para uma viagem à história recente do Brasil.

Uma tradição no cinema brasileiro

Noticieros espanhóis e latino-americanos, newsreels ingle-ses e norte-americanos, actualités franceses, cinegiornali italianos, wochenshau alemães, além das produções sovié-ticas e orientais, são o sinônimo de uma prática audiovisual, a de produzir cinejornais, que serviu a diferentes formas de regime político e representou sociedades diversas. No Brasil, os cinejornais estiveram presentes desde as primeiras décadas do século passado, com um longo percurso até os anos de 1980, quando a profunda massificação da televisão e a legislação cinematográfica brasileira tornaram sua produ-ção insustentável. Além da longevidade desse tipo de filme, o maior recenseamento do cinema brasileiro, realizado na Cinemateca Brasileira, aponta os cinejornais nacionais como um terço dos títulos existentes em nossa cinematografia.2

Numa rápida definição, o cinejornal é um curta-metragem seriado em edições geralmente semanais, e com uma apre-

O papel dos cinejornais:os documentos da Atlântida

Cinematográfica e do Canal 100

dossiê

Rodrigo ArchangeloDoutorando em História pela USP.

Pesquisador da Cinemateca Brasileira

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sentação dos eventos em formato de notícias. Era exibido antes do filme principal, no espaço dedicado ao complemen-to nacional. Após a Primeira Guerra Mundial, aproximou-se da padronização internacional da duração e formato de apre-sentação – com letreiros iniciais, títulos de segmento para a subdivisão das notícias e intertítulos nas séries produzidas antes do cinema sonoro, até meados dos anos 1930.

Ignorados na história do cinema brasileiro, os cinejornais, também chamados atualidades cinematográficas, apresen-taram um paralelo com a nossa história política. Na década de 1920, por exemplo, o Rossi Actualidades, da Rossi Films de São Paulo, foi pioneiro em conseguir uma subvenção junto ao governo local. Nos anos 1930, com a obrigatoriedade de exibição do complemento nacional em vigor desde 1934, o Cine Jornal Brasileiro (1938-1946), produzido pelo Depar-tamento de Imprensa e Propaganda do governo federal, consolidou-se como a primeira propaganda cinematográ-

fica totalmente estatal. Também ocuparam espaços as produções de cinejornais da Cinédia S.A.3 e, nos anos 1940, da Atlântida Cinematográfica com o Atualidades Atlântida e o Notícias da Semana.

Do pós-guerra aos anos 1980, a produção no eixo Rio-São Paulo lidou com a herança das décadas anteriores – sobre-tudo a produção estatal – e a influência da propaganda nor-te-americana, tanto pelo predomínio no mercado cinemato-gráfico mundial como pelo alinhamento político e ideológico no contexto da Guerra Fria. Neste caso, são significativos os governos Eurico Gaspar Dutra (1946-1950) e o Regime Militar (1964-1985) que fizeram uso, por exemplo, do Cine Jornal In-formativo (1946-1969) e do Brasil Hoje (1971-1979), cinejornais produzidos pela Agência Nacional, um órgão federal.

Ainda nos anos 1950, no Estado de São Paulo, foram produzidos a série de cunho partidário Bandeirante da Tela

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Um único documento reúne atividades distintas do Grupo

Severiano Ribeiro: a programação de uma sala do Grupo, a exibição de um

complemento nacional (um de seus telejornais),

a distribuição oferecida pela União Cinematográfica Brasileira (UCB) e a impressão pela Gráfica São Luiz. Programação do Cine

Palacio, Rio de Janeiro, 9 de agosto de 1962.

–A terceira semana de 1957

começou com a confecção de sete cinejornais produzidos pelo

Grupo Severiano Ribeiro. A informação do reuso

de notícias em diferentes séries indica a composição da primeira

montagem da edição do cinejornal. Pauta de notícias

da Cinegráfica São Luiz, 15 de janeiro de 1957.

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Luiz Severiano Ribeiro Jr. (à direita) e Harry Stone (centro), representante da distribuidora norte-

americana Motion Pictures Association. Os parceiros

nos negócios recepcionam seus convidados no Cine

Vitória, de Ribeiro Jr. Compareceram os astros

Oscarito (à esquerda) e Cyll Farney, autoridades civis

e militares, e Ibrahim Suede, importante colunista

social. Atualidades Atlântida. N.61X18.

(1947-1956), da Divulgação Cinematográfica Bandeirante – empresa do político paulista Adhemar de Barros; e os cine-jornais do Primo Carbonari,4 sempre alinhados ao governo local. Nos governos Juscelino Kubitschek (1956-1960), Jânio Quadros (1961) e João Goulart (1961-1964), as séries ligadas à Atlântida Cinematográfica se diversificaram em títulos, com periodicidades distintas e simultâneas e um escopo mais amplo em suas abordagens. Ganhavam espaço, assim, o Jornal da Tela, Esporte na Tela, Cine Atualidades, Resenha da Semana e o Cinelândia Jornal, todos produzidos na Cine-gráfica São Luiz, laboratório pertencente a Luiz Severiano Ribeiro Jr. (1912-1991), presidente da Atlântida Cinematográ-fica a partir de 1947.

Na virada para os anos 1960 tiveram início as séries produzidas por Carlos Niemeyer (1920-1999), conhecidas como o cinejornal Canal 100. Exibido até meados de 1980, ainda hoje ele é uma das lembranças mais vivas de um cinejornal, sobretudo pelas imagens do futebol mostradas nas telas, como veremos adiante.

Um cinema marginalizado

A presença dos cinejornais nos estudos de cinema, e mesmo o seu uso como fonte de pesquisa para temas

da nossa história, ainda é pouca, o que se deve não só ao difícil acesso e estado de conservação das coleções, mas também ao próprio desprestígio dessa categoria de cine-ma. Seu utilitarismo político somado à fragilidade de um tipo de produção marcada pelo uso imediato, que atendeu aos interesses momentâneos de seus produtores, confe-riu aos cinejornais a pecha de registro superficial. Nesse sentido, ficaram relegados a abastecer, como simples ilustrações em movimento, reportagens e documentários na televisão e no cinema.

Vistos como subproduto do espetáculo cinematográfico, curtas-metragens de baixa ou nenhuma qualidade, e meros representantes de interesses políticos e privados, os cinejornais também correram em desvantagem quanto à agilidade da informação. Sempre estiveram desatualizados em relação ao jornal, o rádio e, sobretudo, à televisão, que, de fato, inviabilizou por completo a existência dos cine-jornais ao veicular notícias com imagens animadas e em tempo real. Contudo, por estarem protegidos pelas cotas da legislação vigente, que lhes asseguravam um espaço nas salas de cinema enquanto complemento nacional, os cinejornais serviram de arrimo a companhias produtoras que se apoiavam na sua garantida perenidade para manter suas atividades.5 Soma-se uma tortuosa trajetória dessa

categoria de filme até os acervos onde estão abrigadas algumas coleções. Muitos produtores, premidos pela ur-gência, limitados pelos poucos recursos e reduzida equipe técnica, comprometeram a própria integridade do artefato fílmico. Além das inapropriadas condições de armazena-mento e de eventuais incêndios causados pelas películas em nitrato (material altamente inflamável), suas matrizes eram constantemente remontadas em retrospectivas ou reutilizadas em outras edições ou séries de cinejornais para serem reexibidos, até com grande atraso, em circuitos de outras cidades e estados. Em seu próprio nascedouro, perdiam a unidade de sua primeira montagem. Essa prá-tica, comum à produção de cinejornais, era uma saída às imposições legais para a obtenção de certificados de “boa qualidade” e ao barateamento da produção pela econo-mia de negativos e de mão de obra. Da mesma forma, a demanda de pesquisadores e produtoras por imagens de passagens ou eventos conhecidos também contribuiu para o desmembramento de edições inteiras de cinejornais. Descoladas do conjunto das séries, suas imagens foram “ressignificadas” em outras obras e, não raro, sem o devido crédito ou qualquer dado de origem.

Nesse quadro, as coleções de cinejornais sobreviventes re-presentam uma pequena parte do que foi produzido no país. Grosso modo, podem ser entendidas por três caminhos até o estado atual de preservação: as séries realizadas pelo gover-no federal, que se mantiveram mais coesas, sobretudo por carregarem o rótulo de registros da “história oficial”; algumas poucas coleções privadas que contaram com a sorte de re-pousarem, com relativa segurança, em alguma cinemateca ou museu; e, por último, as séries provenientes de grandes companhias produtoras, tecnicamente mais elaboradas e que não sofreram uma completa desagregação devido à importância, principalmente econômica, que a exploração comercial continuou a propiciar aos seus realizadores ou de-tentores. Por resultarem de um esquema de confecção mais estruturado, em alguns casos seus procedimentos podem ser rastreados por documentos não-fílmicos, como as séries Atualidades Atlântida, Notícias da Semana e Canal 100.

Atualmente, técnicos e pesquisadores da Cinemateca Bra-sileira trabalham na catalogação, acondicionamento, digi-talização e recuperação das informações destas três séries de cinejornais, na montagem de um verdadeiro “quebra--cabeças” que recomponha e preserve o formato original exibido nas salas de cinema – ou o mais próximo disso. Quanto à documentação não-fílmica, são peças-chave, por exemplo, os roteiros datilografados com as locuções de

cada edição, fundamentais para o filme desprovido de sua informação sonora, ou mesmo o único indício de edições, ou notícias, cuja película já não existe; os mapas de notícias que trazem a informação do reuso de materiais fílmicos em outras edições, portanto ricos instrumentos para a reconstituição de edições; e a programação das salas e os mapas de distribuição dos cinejornais, documentos que podem esclarecer o alcance da exibição em diferen-tes cidades e estados. Enfim, uma atividade que requer a conjunção de ações de preservação do artefato fílmico e da promoção do seu acesso, e a pesquisa e sistematização em base de dados da documentação em papel, para a identificação do universo de sua produção.

O papel dos cinejornais Atlântida

Os longas-metragens da Atlântida – marcadamente suas chanchadas dos anos 1950 – são redivivos na memória cole-tiva como traço de uma época lembrada com saudosismo. E a empresa que contava com um grande elenco (com astros populares como Oscarito, Grande Otelo, Anselmo Duarte, Cyll Farney, José Lewgoy, Fada Santoro e outros) e era anun-ciada por charmoso chafariz, também tem sua marca ligada aos pouco glamorosos cinejornais.

Fundada em 1941, a Atlântida Empresa Cinematográfica do Brasil S.A. inaugurou suas atividades com a realização de filmes de “pequena metragem”, conforme o primeiro objetivo previsto nos Estatutos da “Atlântida”. Tratava-se do cinejornal Atualidades Atlântida. Três anos depois, o Notícias da Semana surgia pelas mãos de Luiz Severiano Ribeiro Jr. para compor os programas oferecidos por sua distribuidora, a União Cinematográfica Brasileira. A partir de 1947, quando Severiano Ribeiro Jr. assume o controle majoritário das ações da Atlântida, esses cinejornais pas-sam a ser produzidos pelo Grupo Severiano Ribeiro. Os documentos que registram a confecção desses cine-jornais, bem como as outras atividades de administração, divulgação e exibição, encontram-se no Fundo Atlântida, sob guarda do Centro de Documentação e Pesquisa da Cinemateca Brasileira, desde 2009.

Essas duas longevas séries de atualidades cinematográfi-cas, exibidas por mais de quarenta anos, e com cinquenta e duas edições anuais em média, apresentam um variado caleidoscópio de fatos, personalidades, gestos e aconteci-mentos históricos do país e do mundo. Notícias que foram levadas semanalmente às telas e que, para um pesquisador interessado no século XX, são fonte para uma releitura do

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passado por meio de representações do imaginário daquela época. Com os documentos, é possível reconstituir a cadeia de atividades do Grupo Severiano Ribeiro. Se ela explica, em parte, o sucesso dos longas-metragens da Atlântida Cinematográfica junto ao público, também diz muito sobre a longevidade dos cinejornais: suas imagens eram captadas pelos mesmos cinegrafistas espalhados pelo Brasil, como indicam os roteiros, as ordens de filmagens e de pagamen-tos; foram revelados e montados na Cinegráfica São Luiz, segundo as pautas de notícias deste laboratório; e, conforme os folhetos de programação das salas, impressos em grá-fica própria, eram incluídos como complementos nacionais nos programas distribuídos por Luiz Severiano Ribeiro Jr. e exibidos nos seus cinemas espalhados pelo Rio de Janeiro e em outros estados brasileiros. Enfim, todo um percurso que pode ser rastreado e esclarecido através do cruzamento de informações contidas em diferentes documentos.

Com as pautas de notícias da Cinegráfica São Luiz é possível recompor, por exemplo, os assuntos das séries e conhecer como os cinejornais foram exibidos numa dada semana. Ve-rificam-se lacunas, silêncios e contradições que, em muitos casos, indicam os posicionamentos políticos e o inesperado do próprio contexto histórico. Neste caso, a ocorrência de uma mesma matéria em diversos cinejornais, e mesmo o seu reuso em outras edições ou retrospectivas, pode ser um indicativo do jogo de forças entre os interesses individuais e coletivos de trás das notícias.

Para uma abordagem que aprofunde o conhecimento sobre temas, instituições e personalidades, as séries possuem uma considerável coleção de roteiros. Basicamente, são folhas que trazem a descrição da notícia, organizada na fala de um narrador que, por vezes, tece pequenos comentários que demonstram posicionamentos políticos, morais e cul-turais acerca do tema abordado – por isso são identificados como “texto de locução” e apresentam, a cada parágrafo, a pietagem correspondente junto à narrativa visual. Observar atentamente esses roteiros reconduz o conjunto das ima-gens em movimento ao contexto original de sua significação. Reconstituir o material fílmico e sincronizá-lo é também sintonizá-lo com o seu tempo e sua circunstância. Somente assim é possível entender num cinejornal como o seu en-torno foi representado em símbolos, signos e sensibilidades, muitas vezes mostrados como lugares da memória e do patrimônio sociocultural.

Não faltam “rituais do poder”, disseminados nas efemérides e nos acontecimentos oficiais – o que já justificaria o resgate

das películas pela importância desse tema em nosso cine-ma.6 No arco de acontecimentos dos anos 1950 até meados da década seguinte, episódios e temas políticos descritos em nossos manuais de história foram noticiados: o suicídio de Getúlio Vargas;7 a construção de Brasília8 e o desenvol-vimentismo de Juscelino Kubitschek;9 o curto mandato de Jânio Quadros e as imediatas consequências de sua renún-cia;10 os comícios de João Goulart pelas Reformas de Base11 e o golpe civil-militar em março de 1964.12 Ocorrências que pontuaram a nossa agenda interna da Guerra Fria, como a visita ao Brasil do recém-revolucionário cubano Fidel Castro, 13 mobilizações anticomunistas no Estádio do Mara-canã14 e até uma missa em memória de John Kennedy;15 no plano internacional, as repercussões do Muro de Berlim16 e a crise dos mísseis em Cuba.17

Remontar sequências e ordenar as notícias de duas longas séries de cinejornais amplia a nossa compreensão sobre a sua importância para os próprios produtores. Nesse processo redescobre-se, por exemplo, que as cobertu-ras “cinejornalísticas” vão além das solenidades oficiais e festividades do nosso calendário oficial. Pela pesquisa com a documentação não-fílmica, já é possível notar como as ações políticas representadas no Notícias da Semana e no Atualidades Atlântida se estendem para outros aspectos da vida coletiva. Esses cinejornais dão a ver representações do político articuladas às esferas do econômico, social, cultural e artístico. E, ao mostrá-las em seus complementos nacionais, colocavam o Grupo Severiano Ribeiro e a marca Atlântida ao lado de acontecimentos e movimentos decisó-rios, das manifestações de poder em diferentes instâncias e campos de atividade. Para isso não faltaram notícias sobre federações, associações e instituições do setor financeiro, industrial, comercial e da imprensa. O retrato dos problemas e das soluções nas grandes metrópoles do Brasil, e também os elogios e as críticas no âmbito municipal e estadual, apro-ximavam seus cinejornais das questões cotidianas do es-pectador. Notícias sobre as debutantes e a filantropia da high society brasileira, os novos padrões de consumo da classe média e a carestia dos setores mais pobres dos grandes centros mostravam os comportamentos e as transforma-ções das diferentes camadas da sociedade. Divulgar exposi-ções de obras de arte em museus, peças teatrais, concertos, números de dança e os sucessos musicais do rádio também conectava a Atlântida Cinematográfica diretamente com outras manifestações da arte e do entretenimento. Assim como a apresentação de personalidades artísticas, acadê-micas, políticas, eclesiásticas e militares, também indicavam simpatias e antipatias, dependendo do tom com que eram

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Trecho da apresentação utilizada

na década de 1960. Canal 100 Jornal.

N.64X51. –

A tomada de poder que tirou o país

<<da beira de um abismo>> e que

baniu a <<corrupção e a subversão>>.

Um acontecimento que <<levou às ruas

tanques e armas, mas não derramou sangue de ninguém>> e que <<reuniu todas as camadas em torno

da mesma ideia>>... Canal 100. N.65x01.

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mostrados.18 Nessas notícias, portanto, encontramos os vestígios de um imaginário do poder, das expectativas e aspirações de grupos, e o sentido para onde os ventos da política sopravam. Elas também permitem uma reconsti-tuição da paisagem social, com a possibilidade de mensurar distâncias entre o cotidiano e o pensamento sobre ele. Esses apontamentos, feitos de seguidas leituras dos documentos textuais não esgotam, obviamente, o conteúdo audiovisual da parte que restou do material fílmico, mas são imprescin-díveis para situá-lo numa perspectiva mais coerente com toda a pauta da série e o seu momento histórico.

E a leitura desses documentos, quando cotejados com o material audiovisual, evidencia a existência de um “ritual do poder” particular que fortalecia alianças com outros seg-mentos. Como numa revista semanal, as notícias autorre-ferenciais cobriam as várias atividades e ligações do Grupo através, por exemplo, do concurso de beleza nacionalmente divulgado como “Miss Cinelândia”, cuja vencedora tornar-se--ia uma estrela no filme seguinte da Atlântida Cinematográ-

fica;19 da visibilidade de políticos aliados das reivindicações do Grupo Severiano Ribeiro;20 de artistas e dirigentes dos gran-des estúdios cinematográficos internacionais que, em visita ao Brasil, eram ciceroneados por representantes do Grupo;21 de astros e estrelas presentes em eventos, passeios, festas e filmagens do próximo “sucesso da Atlântida”.22 E das noites de gala para a avant-première de filmes, inaugurações e melhoramentos das salas de Luiz Severiano Ribeiro Jr., que, como anfitrião, apresentava seu star system e seus contatos do meio político, econômico e social às lentes dos seus cinejornais.23 Nesse sentido, entende-se que as séries de cinejornais ligadas à Atlântida Cinematográfica foram longevas também por desempenhar um papel importante nos negócios de seu realizador.

O outro papel do Canal 100

Fundada em 1959 por Carlos Niemeyer, a Produções Carlos Niemeyer Filmes Ltda. teve como objetivo exclusivo a pro-dução de cinejornais, cujos títulos aludiam a uma frequência

O retorno à vida cotidiana: a saída de torcedores do Maracanã após Botafogo 1 X 0 Flamengo: <<a cidade ficou triste, porque 80% de sua gente deixou de sorrir>>.

Canal 100 Jornal. N.64X51.–

Em primeiro plano, gestos e rostos de uma sociedade que

participava das arquibancadas. No Estádio do Maracanã,

uma partida entre Botafogo X América. Canal 100 N.67X35.

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inatingível na televisão brasileira daquela época, que ainda apresentava poucos canais e estava muito distante dos três dígitos do número cem. Ao menos simbolicamente, o nome Canal 100 oferecia a ideia de um produto para além do que pudesse ser sintonizado e assistido no meio de comunicação que mais rapidamente se difundia.

Exibidos semanalmente no eixo Rio-São Paulo e com certo atraso em outras cidades brasileiras, as séries Canal 100 Jornal, Canal 100 Revista e Canal 100 Atualidades propunham um perfil para cada título, com algumas notícias em comum e sempre divulgando o esporte no fim das edições. Em 1966, as séries se unificaram sob o título Canal 100 Jornal, com notícias apresentadas em seções como “semana”, “gente”, “notícias” e “esporte”, que encerrava as edições quase sem-pre com uma partida de futebol. Foi esta a primeira cons-tatação após o exame da parte não-fílmica do Fundo Canal 100, disponível no Centro de Documentação e Pesquisa da Cinemateca Brasileira desde o final de 2010. Formada por roteiros, mapas (de notícias, de jornais e de distribuição) e listagens com todas as edições, essa documentação registra a produção e a distribuição desse cinejornal.

Atualmente, a trajetória do Canal 100 pode ser folheada em papéis que cobrem quase três décadas de sua existência. E ao pesquisador recomenda-se investigar os mapas de notícias e os mapas de jornais, documentos que, como nos cinejornais do Fundo Atlântida, mostram o controle da distribuição do material fílmico entre várias edições. Além de revelarem um procedimento comum a dois grandes produ-tores de cinejornais – o registro da composição de notícias, com indicações de montagem e de reuso dos materiais –, esses documentos cumprem um papel importante nas ações de restauro do Canal 100 na Cinemateca Brasileira: recompõem as sequências originais das notícias em cada edição e ajudam a reintroduzir materiais fílmicos perdidos, sem identificação. Se confrontadas tais informações com os mapas de distribuição, também é possível percorrer os caminhos da distribuição do Canal 100. Nesse cruzamento de dados, é provável que se compreenda, por exemplo, se a segmentação em níveis municipal, estadual e federal, e os atrasos na exibição em alguns centros atenderam a interes-ses na divulgação de certos assuntos.

Nos cinejornais produzidos por Carlos Niemeyer, os roteiros também apresentam a função de um “texto de locução”, e ganharam vida nas vozes de Cid Moreira e Corrêa Araújo – vozes tão características quanto a inesquecível marca ao fim das edições: a música Na cadência do samba, de Luís Bandei-

ra, tornada célebre com o tema “que bonito é...” das cobertu-ras futebolísticas. A leitura desses roteiros nos dá a ideia da diversidade de temas retratados pelas lentes do Canal 100: os padrões comportamentais da juventude, a exemplo do mo-vimento hippie;24 o sucesso do jovem cantor Wilson Simonal e do programa de auditório do apresentador Chacrinha;25 os melhoramentos nas modernas capitais brasileiras: as obras do metrô em São Paulo e o alargamento da Avenida Atlântica no Rio de Janeiro;26 beldades nacionais e internacionais como a garota de Ipanema Helô Pinheiro e a estrela Brigitte Bardot em visita à badalada cidade maravilhosa;27 a fé católica arre-gimentada contra a “ameaça comunista” em eventos como a Marcha da Família com Deus pela Liberdade;28 e outros eventos esportivos além do futebol, como as corridas de Emerson Fittipaldi, no Grande Prêmio Brasil de Fórmula 1, no Autódromo de Interlagos em São Paulo.29 Enfim, um amplo mosaico de assuntos que, investigado na filigrana, é capaz de romper a aparente superficialidade da notícia e trazer à tona todo um contexto histórico de transformações culturais e políticas, ainda que privado das liberdades democráticas em tempos de Regime Militar.

As aproximações com o poder político, como em outros cinejornais, são constitutivas do Canal 100. As autoridades políticas, sobretudo os presidentes, também foram notí-cias – ainda que recorressem aos seus próprios cinejornais produzidos pela Agência Nacional e à televisão. O apoio ao governo federal foi abertamente demonstrado em mo-mentos decisivos como o golpe civil-militar de 1964,30 em circunstâncias que remetem, inclusive, a práticas antigas no nosso cinema.31 A exaltação do poder político se deslocou das efemérides e das solenidades para o elogio das belezas naturais de um país “bem governado”, em que a cidade do Rio de Janeiro foi o principal objeto para a representação do belo, mesmo em notícias sobre eventos estritamente oficiais ou políticos.32 De maneira mais recorrente, o elogio recaiu sobre uma importante identidade de pertencimento entre os brasi-leiros: o futebol. A cobertura deste esporte colocou, de forma inédita, o governo federal no epicentro das atenções colhidas por uma importante manifestação do imaginário social.

As partidas de futebol registradas pelo Canal 100, o seu verdadeiro carro-chefe, legaram um padrão inovador à representação deste esporte. Para além do próprio cinema, as câmeras de Francisco Torturra, João da Rocha, Liercy de Oliveira e a montagem de Walter Roenick contribuíram para elevar o futebol a um poderoso autoelogio à brasilidade. Por esse cinejornal, dramatizou-se todas as instâncias do espe-táculo com uma narrativa audiovisual: os acertos e os erros

dos jogadores em ângulos e tomadas inéditos; a entrada e a saída de torcedores dos estádios, ligando a experiência do evento esportivo ao cotidiano das cidades e dos cidadãos; e o registro da torcida entusiasmada, com rostos, gestos e comportamentos – captados em primeiro plano – que denotam sensações e a identificação emocional do público com o esporte, seus ídolos e suas equipes. A própria torcida, mostrada das arquibancadas e de outros lugares do estádio, com autoridades e subordinados, pobres e ricos, pretos e brancos, homens e mulheres participando do mesmo even-to, contribuía para fortalecer a integração social no imaginá-rio coletivo. Nas atuações da Seleção Brasileira, recorreu-se à fé e à predestinação da vitória em imagens cinematográfi-cas que foram um reforço à ideia da coletividade unida pelo país. Uma experiência de igualdade e justiça social mostrada semanalmente no cinema, por um cenário com regras sim-ples e personificadas no juiz, autoridade que, inclusive, podia ser contestada e mesmo xingada até pelo povo. No Canal 100 o futebol foi, de fato, exibido como uma representação da democracia: mostrava-se a alternância entre vitoriosos e perdedores, de opostos com chances iguais, uma situação

inexistente na realidade política e social durante quase toda a existência desse cinejornal.

Pensado no contexto político brasileiro de então, as reporta-gens sobre futebol foram a maior contribuição do Canal 100 ao governo brasileiro. As partidas exibidas conectavam uma prá-tica popular aos símbolos do Estado nacional, propriedade da elite e dos militares, em torno dos quais gravitava o poder po-lítico. O futebol encerrava as representações cinematográficas da realidade brasileira que, a cada edição, também noticiava a manifestação do poder em outros assuntos, como mostram os documentos desse cinejornal. Nesse sentido, o Canal 100 ofereceu valiosos elementos à propaganda do governo fede-ral, num claro exemplo de como a política, representada em atualidades cinematográficas, confluiu para outros campos da atividade cultural. Nesta ótica, o avanço do futebol refletia o desenvolvimento do país, o que se viu reforçado na Copa de 1970.33 Na partida final deste evento, o Canal 100 estabeleceu a continuidade entre o Regime Militar e o que o Brasil tinha de melhor a mostrar aos próprios brasileiros. Naquele momento, nenhum cinejornal desempenhou tão bem esse papel.

Na capital da República, o presidente Médici

repete o gesto do capitão da seleção brasileira. Canal 100. N.70X28.

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Notas

1 Assumimos como datas-limites das três séries o ano de tiragem

completa, que geralmente era de cinquenta e duas edições.

2 Informações disponíveis no site da Cinemateca Brasileira pela

contagem de títulos presentes na base de dados Filmografia Brasi-

leira. Cf. Cinemateca Brasileira, Filmografia Brasileira. Disponível em:

<http://www.cinemateca.com.br>. Acesso em: 22 dez. 2011.

3 Produzidas pela Cinédia S.A., as séries Cinédia Atualidades

(1933-1934); Cinédia Jornal (1936-1944); Cinédia Revista (1939-1944);

Esporte em Marcha (1944-1946); e Reportagens Cinédia (1945-1948)

são as de hoje temos notícias. Cf. Cinemateca Brasileira, Filmogra-

fia Brasileira, Op. cit.

4 Na trajetória de Primo Carbonari (1920-2006) no meio cinema-

tográfico, o cinejornal sempre foi o fio condutor do seu trabalho.

Desenvolveu sua versão de Cinemascope: o sistema Amplavisão,

daí o nome (ou Notícias em Amplavisão) dos seus cinejornais.

5 Como a já mencionada Divulgação Cinematográfica Bandeirante

(1940 e 1950) e o produtor Primo Carbonari – que dominou o mercado

paulista de complementos nacionais até o final dos anos 1970; a Car-

riço Film, da cidade mineira de Juiz de Fora, com o Cine Jornal Actuali-

dades (1934-1959); e a companhia carioca Produções Carlos Niemeyer

Filmes Ltda., com o cinejornal Canal 100, analisado neste artigo.

6 O “ritual do poder” ao lado do “berço esplêndido” são aspectos

constitutivos dos filmes não-ficcionais do cinema mudo brasileiro,

conforme observado por Paulo Emilio Salles Gomes. Tais elemen-

Mais que um complemento

As informações contidas na documentação textual dos cinejornais Atualidades Atlântida, Notícias da Semana e Canal 100 dão uma ideia da contribuição que essa categoria de filme oferece à releitura de nossa história. Obviamente, tais documentos não substituem a imagem em movi-mento, mas são peças importantes para a preservação e o restauro de películas que, em muitos casos, são os únicos registros audiovisuais para muitos acontecimentos do século XX. Além disso, são fundamentais ao estudioso desses cinejornais, pois além de referenciá-los com dados técnicos e de conteúdo, são necessários à compreensão das séries que raramente mantiveram sua totalidade. Depois de sistematizados em base de dados, destiladas e aprofundadas as informações, eles configurarão um corpo documental mais consistente, apto a delinear perfis mais específicos para cada série de cinejornais. Como era de se esperar, essa documentação apresenta hiatos. Seus papéis não cobrem igualmente todas as décadas, mas dialogam entre si. Como no quebra-cabeças mencionado anteriormente, os documentos se articulam, se justapõem, e até o contraste entre eles revela significados; colocados lado a lado, ressaltam os traços históricos dos cinejornais e jogam luz sobre toda essa atividade.

Os fundos Atlântida e Canal 100 mostram os bastidores da confecção dos seus cinejornais. Antes da massificação da

televisão, eles eram a crônica audiovisual da semana, muito embora atravessada pelas representações pertinentes aos interesses dos envolvidos em sua encomenda e atenta ao imaginário do público espectador, seu primeiro receptor. Enxergar essas questões exige seguidos visionamentos dos cinejornais, bem como leitura atenta de documentos correlatos. E, para arrancar um sentido dos filmes ou dos papéis transformados em fonte, é preciso indagá-los com interesse, buscar a compreensão e a tradução da alteridade que contêm; recompor a trama dos significados socialmente estabelecidos e não desrespeitar os fatos do passado em favor de uma história preestabelecida. Desta feita, temos um rico patrimônio audiovisual para a compreensão de compor-tamentos e atitudes do universo sociocultural brasileiro. Um valioso manancial para pesquisa e investigação do nosso passado e da nossa cultura audiovisual, assim como para outras interpretações do real e para a elaboração de novos produtos audiovisuais.

Na lida com essa documentação, é com feliz espanto que percebemos como foi possível um subproduto do campo cinematográfico, um mero complemento nacional dentro do espetáculo, que aproximava os interesses de seus produ-tores às movimentações dos campos político, econômico, social e cultural, ter legado uma memória audiovisual para além das representações das elites, dos governos, dos donos do poder. Nesse sentido, o cinejornal cumpriu o seu papel. O nosso é o de preservá-lo.

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tos marcaram presença também nos cinejornais: o primeiro de

maneira elogiosa às autoridades e grandes personalidades nas

ocorrências políticas e comemorações de efemérides; o segundo

por exaltar a beleza brasileira, assumindo diferentes contornos

sobre o tema filmado, podendo variar da pujança nos grandes cen-

tros brasileiros às belezas dos cenários naturais. Cf. “A Expressão

Social dos Filmes Documentais no Cinema Mudo Brasileiro (1898-

1930)”, In: Carlos Augusto Calil (org.). Paulo Emílio: Um Intelectual na

Linha de Frente. São Paulo: Brasiliense; Rio de Janeiro: Embrafil-

me, 1986, p. 323-28.

7 Roteiro do Notícias da Semana. N.54X34 e N.54X35; Roteiro do

Atualidades Atlântida. N.54X36 e N.54X35. Acervo Atlântida. Centro de

Documentação e Pesquisa da Cinemateca Brasileira.

8 Roteiro do Notícias da Semana. N.59X19 e N.59X20. Acervo Atlânti-

da. Centro de Documentação e Pesquisa da Cinemateca Brasileira.

9 Roteiro do Notícias da Semana. N.59X43 e N.59X47. Acervo Atlânti-

da. Centro de Documentação e Pesquisa da Cinemateca Brasileira.

10 Roteiro do Notícias da Semana. N.61X6 e N.61X38. Acervo Atlântida.

Centro de Documentação e Pesquisa da Cinemateca Brasileira.

11 Roteiro do Atualidades Atlântida. N.64X12. Acervo Atlântida. Centro

de Documentação e Pesquisa da Cinemateca Brasileira.

12 Roteiro do Notícias da Semana. N.64X17. Acervo Atlântida. Centro

de Documentação e Pesquisa da Cinemateca Brasileira.

13 Roteiro do Notícias da Semana. N.59X20. Acervo Atlântida. Centro

de Documentação e Pesquisa da Cinemateca Brasileira.

14 Roteiro do Notícias da Semana. N.61X21. Acervo Atlântida. Centro

de Documentação e Pesquisa da Cinemateca Brasileira.

15 Roteiro do Notícias da Semana. N.63X51. Acervo Atlântida. Centro

de Documentação e Pesquisa da Cinemateca Brasileira.

16 Roteiro do Notícias da Semana. N.61X38. Acervo Atlântida. Centro

de Documentação e Pesquisa da Cinemateca Brasileira.

17 Roteiro do Atualidades Atlântida. N.62X46. Acervo Atlântida. Centro

de Documentação e Pesquisa da Cinemateca Brasileira.

18 Roteiro do Notícias da Semana. N.54X36; Atualidades Atlântida.

N.54X44. Acervo Atlântida. Centro de Documentação e Pesquisa da

Cinemateca Brasileira.

19 Roteiro do Notícias da Semana. N.57X27. Acervo Atlântida. Centro

de Documentação e Pesquisa da Cinemateca Brasileira.

20 Roteiro do Notícias da Semana. N.56X01. Acervo Atlântida. Centro

de Documentação e Pesquisa da Cinemateca Brasileira.

21 Roteiro do Notícias da Semana. N.56X21. Acervo Atlântida. Centro

de Documentação e Pesquisa da Cinemateca Brasileira.

22 Roteiro do Atualidades Atlântida N.54X42. Acervo Atlântida. Centro

de Documentação e Pesquisa da Cinemateca Brasileira.

23 Roteiro do Atualidades Atlântida. N.61X18. Acervo Atlântida. Centro

de Documentação e Pesquisa da Cinemateca Brasileira.

24 Roteiro do Canal 100. N.67X39. Acervo Canal 100. Centro de Docu-

mentação e Pesquisa da Cinemateca Brasileira.

25 Roteiro do Canal 100. N.69X41 e N.70X35. Acervo Canal 100. Centro

de Documentação e Pesquisa da Cinemateca Brasileira.

26 Roteiro do Canal 100. N.68X5 e N.70X01. Acervo Canal 100. Centro

de Documentação e Pesquisa da Cinemateca Brasileira.

27 Roteiro do Canal 100 Atualidades. N. 65X01; Canal 100 Revista.

N.64X03. Acervo Canal 100. Centro de Documentação e Pesquisa da

Cinemateca Brasileira.

28 Roteiro do Canal 100 Jornal. N. 65X01. Acervo Canal 100. Centro de

Documentação e Pesquisa da Cinemateca Brasileira.

29 Roteiro do Canal 100. N.73X09. Acervo Canal 100. Centro de Docu-

mentação e Pesquisa da Cinemateca Brasileira.

30 Roteiro do Canal 100 Jornal. N.65X01. Acervo Canal 100. Centro de

Documentação e Pesquisa da Cinemateca Brasileira.

31 Como nos “filme de cavação”, em que realizadores, nas primeiras

décadas do século XX, buscavam apoio financeiro junto à elite

política e econômica. Para Jean-Claude Bernardet, os cinejornais do

Primo Carbonari e o Canal 100 são meros prolongamentos dessa

prática. Cf. Jean-Claude Bernardet, Cinema Brasileiro: Propostas para

uma História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 26.

32 Em que a geografia da Baía de Guanabara e as belas banhistas

cariocas eram os verdadeiros destaques nas imagens. Cf. Roteiro

do Canal 100. N.67X34. Acervo Canal 100. Centro de Documentação e

Pesquisa da Cinemateca Brasileira.

33 Roteiro do Canal 100. N.70X28. Acervo Canal 100. Centro de Docu-

mentação e Pesquisa da Cinemateca Brasileira.

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Quando no Brasil se cogita de arquivos de documentação cinematográfica ou de história do cinema brasileiro, os primeiros nomes que ocorrem são Adhemar Gonzaga, Pery Ribas e Pedro Lima. Sem o material reunido por esses três homens dificilmente poderá ser delineada a história de nosso cinema. Se até hoje nenhum deles se lançou na empreitada deve-se atribuir o fato à falta de estímulo. Mas hoje a situação mudou. O renascimento da produção e a di-fusão do movimento de cultura cinematográfica criaram em nosso país setores cada vez mais amplos que esperam com muito interesse os resultados dos trabalhos de pesquisas históricas. Não falta sequer editor: o Instituto Nacional do Livro decidiu incluir em seu programa a publicação de livros dedicados ao cinema, manifestando um interesse especial pelos originais que cuidem do cinema brasileiro, ou, de modo mais geral, do cinema no Brasil.

Não é fácil visitar Pedro Lima. Durante a semana o seu tempo é tomado por múltiplas ocupações e os sábados e domingos ele emprega em classificar, ajudado por duas secretárias, a massa de documentos que possui. Os antigos armários de madeira onde Pedro Lima guardava a papelada e as fotografias, muitas de valor inestimável, foram atingidos por um desbarrancamento. Perderam-se muitos documentos, mas a maior parte está sendo cuida-

dosamente transportada para arquivos de aço colocados em locais novos.

Se quem visita Pedro Lima dedica-se, mesmo de forma acessória, às pesquisas históricas, o primeiro cuidado do anfitrião, que lê atentamente todas as publicações, é aludir à contribuição, por mais modesta que seja, do visitante; reti-rando de seus arquivos recortes de artigos, a propósito do ci-nema em Campinas ou no Rio Grande do Sul faz retificações de nomes, datas e fatos, esclarecendo pontos ainda obscuros.

Quem nos dez primeiros anos do século se interessou pelo cinema, na Europa ou nos Estados Unidos, e no Brasil até um pouco mais tarde, eram pessoas cujos espíritos estavam voltados para a fascinação das novas invenções. Pedro Lima pertence a essa família. O menino que em 1914 já era fã de cinema há alguns anos é o mesmo que logo após a deflagração da guerra envia para o Kaiser, que muito admirava, um projeto de torpedo aéreo acompanhado do se-guinte recado: “Não repare eu não pintar o resto do canhão, pois não sei (fica ao cuidado do senhor)”.

Se durante algum tempo, a partir dos oito anos de idade, Pedro Lima foi um fã isolado, cujo templo era o cinema Pátria, do Largo da Cancela, em São Cristóvão, logo organizou o seu

Visita a Pedro Lima

Ficha de inscrição de William Schocair

no Concurso de Belleza Photogenica

Feminina e Varonil da Fox

Film. 1926.

Paulo Emilio Salles Gomes1

pauloemiliana

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primeiro grupo, no Colégio Pio Americano. O Nacional Infante Film, criado em 1917, era uma espécie de clube cujos mem-bros não se limitavam a ser fãs. Pedro Lima e seus amigos, Jaime Marques, José Estruc, Edgar Mallet de Lima, certo Henrique, reputado imitador de Billy Ritch, algumas meninas queriam participar ativamente na produção cinematográfica; procuravam com insistência as efêmeras companhias para oferecer seus préstimos artísticos ou técnicos; solicitavam o interesse do diretor Luís de Barros para a mais dotada das quatro estrelas em potencial que faziam parte do Nacional Infante Film; escreviam roteiros em abundância, enviando-os também para o estrangeiro. Para Norma Talmadge enviaram uma história com tema social, o casamento de flagelados da seca no Ceará. O roteiro foi devolvido com uma carta amável da secretária da atriz, explicando que não podiam filmar a história por não conhecerem o local, o que encheu de orgulho todo o grupo. Enquanto não chegavam as esperadas oportu-

nidades cinematográficas, escreviam e montavam peças de teatro, como treino e com a intenção de mais tarde filmá-las.

Lá por 1919, ainda no Colégio Pio Americano, Pedro Lima conheceu Adhemar Gonzaga, e juntamente com Paulo Vanderley e Álvaro Rocha formaram um segundo grupo. Era a época da criação da United Artists por Griffith, Chaplin, Dou-glas e Mary Pickford, e os quatro adolescentes se intitularam big four. A sede era o cinema Iris, no Largo da Carioca, onde as fotografias afixadas eram metodicamente furtadas, início dos célebres arquivos de hoje. Devido talvez aos poucos resul-tados práticos do Nacional Infante Film, os big four limitaram--se durante algum tempo aos prazeres da devoção de fãs. É curioso constatar que a primeira paixão cinematográfica de Pedro Lima não foi uma Lilian Gish, Mae Marsh ou Mary Pick-ford, mas Carmem Santos, que estreará em O Urutau (1919), produzido pela Omega Films. No grupo, Pedro Lima era o

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Lilia Renée e Roberto Batalin em Carnaval

dos deuses. S.d.–

Eva Nil e Pedro Lima no arquivo pessoal do

crítico. 12.05.1928.

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Duas fotografias de Plácio Soave. S.d.

–Verso de fotografia

de Plácido Soave com currículo do ator. S.d.

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especialista de cinema brasileiro; no que se referia aos filmes americanos, particularmente os da Triangle ou da Universal, a competência de Adhemar Gonzaga não era discutida.

Logo Pedro Lima, seguido por seus amigos, procurou reaproximar-se das companhias e dos realizadores. Tentou convencer Luís de Barros a montar um estúdio em São Cristóvão, mas o diretor muito ligado ao cinema primitivo, do qual foi certamente o grande mestre brasileiro (vejam-se as fotografias de Vivo ou Morto2), achava o estúdio um luxo e uma complicação técnica desnecessária.

Nessa ocasião Pedro Lima já iniciara suas atividades de jornalista cinematográfico. Desde 1917, mandava crônicas esparsas que foram publicadas em diferentes jornais. Foi em seguida redator da revista Cinema, de Palcos e Telas, cujas coleções hoje raríssimas são um repositório precioso de informações sobre o cinema brasileiro, A Fita, curioso tipo de jornal hebdomadário, cinematográfico e humorístico, com uma boa parte escrita em versos. Em seguida trabalhou no Fon-Fon e na Seleta, onde criou a primeira seção permanen-te dedicada ao cinema brasileiro. Depois foi Cinearte, onde lançou o slogan: Todo filme brasileiro deve ser visto, ao qual ainda obedece. O êxito de Pedro Lima no jornalismo cinema-tográfico transformou-o no profissional que milita até hoje. Outros ideais da adolescência realizaram-se parcialmente.

Nunca teve grandes ambições de ator e aceitava as oportu-nidades de aparecer em uma ou outra fita sobretudo porque isto lhe permitia uma aproximação maior com o meio cinematográfico. Foi figurante de Vivo ou Morto, trabalhou numa produção nacional chamada Le Film du Diable (sic), fita de espionagem da Omnia Film, teve um papel de croupier na Jóia Maldita, de Luís de Barros, e participou ainda em películas da Pátria Film, de Antônio Tibiriçá.

A contribuição importante de Pedro Lima para a produção cinematográfica foi feita em equipe com os companheiros do grupo big four, Adhemar Gonzaga, Álvaro Rocha e Paulo Vanderley, que haviam fundado o Cinearte Studio. Foi a fita Barro humano. Há dias, numa entrevista para a Rádio, Pery Ribas declarou que o desastre mais irreparável sofrido pelo cinema brasileiro foi o incêndio no Ministério da Agricultura que destruiu o negativo original de Barro Humano em 1943. Até hoje não foi possível localizar nenhuma das várias cópias positivas que tinham sido tiradas. Uma foi distribuída na Argentina com o título de Venenos Sexuales e outra passou na Itália. Como todas as procuras no Brasil foram estéreis, a única esperança que resta é a de que um dia as cinematecas

de Roma, Milão ou Buenos Aires, por um desses milagres felizmente frequentes, descubram uma cópia do filme. Todas as opiniões são concordantes em afirmar que Barro Humano, pela plasticidade da linguagem cinematográfica e pela reso-lução do problema da luz brasileira, significava o amadure-cimento artístico, tão esperado, do cinema mudo brasileiro. Amadurecimento tardio, pois a realização de Barro Humano coincidia com a chegada do cinema falado. A fita teve tam-bém sucesso comercial e o grupo animou-se a continuar. Gonzaga partiu para os Estados Unidos com Eva Schnoor e Carlos Modesto para tentar fazer uma primeira fita falada brasileira, mas a tentativa não logrou êxito. Como o mercado cinematográfico brasileiro ainda não estava empolgado pela nova técnica, o Cinearte Studio resolveu empreender mais uma fita silenciosa, Saudade, para a qual haviam descoberto uma estrela, Didi Viana, linda moça do interior de São Paulo, parecida com Clara Bow. Seus encantos talvez tenham con-tribuído para abalar a harmonia até então reinante entre os big four, o grupo dissolveu-se, Saudade transformou-se em Romance Proibido e o Cinearte Studio em Cinédia. Abriu-se novo capítulo na história do cinema brasileiro.

Hoje Pedro Lima, ao mesmo tempo cético e ardoroso, olha tranquilamente para o passado e continua a participar da luta pelo cinema brasileiro. Não se considera crítico de cine-ma e não sente atração pela discussão de ideias estéticas. Costuma dizer, numa mistura de modéstia e ironia, que desistiu de ser propriamente crítico de cinema quando soube que a montagem podia ser rítmica ou tonal.

O nome de Pedro Lima está ligado a um dos momentos mais importantes da história do cinema brasileiro, e esta depende em boa parte de seus arquivos de aço.

Notas

1 Artigo de Paulo Emilio (1916-1977) publicado no Suplemento Literário do jornal O Estado de S. Paulo, 19.01.1957.

2 Vivo ou morto é uma produção de 1916, o que evidencia a sensi-bilidade de Paulo Emilio para a periodicidade particular do cinema brasileiro, já que 1914, o ano de O nascimento de uma nação, é a data estabelecida pela historiografia clássica para separar o cinema primitivo do cinema narrativo.

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A edição de DVD no Brasil ainda não foi alvo de um estudo mais detido. A circulação dos clássicos da cinematografia mundial e nacional é saudada por estudiosos e cinéfilos, que agora podem ter acesso, com mais facilidade, à história do cinema, local e mundial. Entretanto, a discussão sobre os cri-térios de publicação na nova mídia não tem sido alvo de uma análise crítica mais sistemática. O que resulta da transferên-cia de uma cópia fílmica para um suporte digital? Quais os ajustes necessários para o novo meio? Quais as consequên-cias de uma alteração dos formatos de tela? Qual a relevância dos comentários extras? Essas questões se colocam quando assistimos a um filme antigo, especialmente se o título é nacional. Para promover esse debate específico, a Revista da Cinemateca Brasileira abre espaço para o comentário dessa produção, que tanto pode favorecer o contato com a história do cinema, como falsear uma aproximação.

O lançamento, há dois anos, da caixa Resgate do Cinema Silencioso Brasileiro é um estímulo para se pensar a edição em DVD e a missão de um arquivo de filme. Editada pela Cinemateca Brasileira em parceria com a Caixa Econômica Federal, o conjunto de filmes é um acontecimento para a história do cinema brasileiro, por diversas razões. A obra traz vinte e sete títulos de não-ficção do cinema silencioso brasileiro, recuperados digitalmente, e também transferidos

para o suporte fílmico em poliéster. Quando sabemos da total ausência de padronização ou normas técnicas na fatura desses filmes, temos a dimensão do trabalho de artesão desse tipo de restauro. Cada filme exigindo uma intervenção exclusiva, cada película requerendo um tratamento físico, fotoquímico e digital.

É sabido que a produção mundial do cinema feito nas primeiras décadas do século XX desapareceu quase que inteiramente e, por essa razão, todo registro da vida brasi-leira nesse período possui um significado ainda maior. Com o material difundido pela Cinemateca, é possível a análise direta de títulos apenas mencionados na bibliografia especí-fica e, dessa forma, avançar na reflexão do cinema silencioso brasileiro e seus desdobramentos para a interpretação da vida social. Em razão do desaparecimento de grande parte dessa produção, esse cinema é ainda um mistério para o estudioso. Os estudos históricos ainda se calcam em formulações estabelecidas há pelo menos três décadas e as contribuições recentes ajudam no delineamento de questões sem avançar uma interpretação original que promova o salto qualitativo.1

Em âmbito mundial, está em processo uma reformulação dos estudos cinematográficos, especialmente no que se

Cinemateca Brasileira.Resgate do cinema

silencioso brasileiro

Fotograma de Feira industrial e agrícola de Belo-Horizonte (1932. Bonfioli).

5 dvds, 27 filmes, 1 catálogo - 2010

Adilson Mendes Doutor em Ciências da Comunicação pela ECA-USP.

Pesquisador da Cinemateca Brasileira

resenha

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refere ao cinema realizado nas primeiras décadas do século XX. As metodologias recentes, a análise do filme em sua relação com outras fontes e interpretações originais deram novo alento ao filme antigo. Historiadores, sociólogos, críticos e estetas se voltaram para o dispositivo cinematográfico e lançaram por terra a concepção do cinema apenas como re-sultado de um desenvolvimento lógico-científico das técnicas. Os trabalhos de Tom Gunning, Jonathan Crary, Mirian Hansen, Charles Musser, nos Estados Unidos; Paul Virilio, Laurent Manoni, Christian Pociello, Marta Braun, na França; Gian Piero Brunetta, Silvio Alovisio, na Itália; André Gaudreault, Alain Lacasse, no Canadá; são exemplos importantes desse esforço contemporâneo de renovação.

Visto por ângulos inéditos, o cinema silencioso é descrito em seu contexto cultural, fazendo parte das conexões entre a pesquisa científica sobre o movimento, a indústria militar e o controle dos corpos. “Se soubéssemos em quais condições se obtém o máximo de velocidade, de força ou de trabalho que pode produzir o ser vivo, isto acabaria com tateios deploráveis”, escreve Étienne-Jules Marey em 1873.2 No

princípio, como dispositivo tecnológico, o cinema serve aos interesses do Estado e do Exército (o Ministério da Guerra fi-nancia a estação fisiológica de Marey, berço do cinema). Nos Estados Unidos, as experiências de Eadweard Muybridge se inscrevem no contexto de taylorização do trabalho, enquanto na França as investigações de Marey se inserem no debate sobre a “racionalização” do movimento humano e animal. Nos dois casos, trata-se de uma investida no controle e na rentabilização dos corpos, que começa com a Cronofotogra-fia, passa pelo cinema e se prolonga até os dias de hoje com a produção massiva de imagens por meio da proliferação de câmeras de vigilância. O cinema silencioso aparece assim como um laboratório do aparato cinematográfico que se desenvolverá posteriormente.

Apesar da renovação dos estudos em torno desse cinema, pouco foi feito em solo brasileiro para avançar na reflexão sobre a expressão cinematográfica realizada no país nas três primeiras décadas do primeiro século do cinema. Em um estudo seminal sobre o cinema silencioso documentário brasileiro, Paulo Emilio identifica duas tendências temáticas:

o gosto pela paisagem, que o crítico chama de berço esplên-dido, e um sem-fim de cerimônias oficiais, que ele define diretamente como um ritual do poder. Essas tendências fazem parte da imaginação brasileira que, entre as décadas de 1920 e 1930, se adapta ao espetáculo cinematográfico e procura ressaltar os feitos da burguesia local. Esse pendor pela natureza, forjado no contato com a paisagem local e a pintura acadêmica europeia, reflete bem a passagem da representação nas artes plásticas para a representação cinematográfica do discurso oficial. Esse cinema capta os traços de uma sociedade recém-saída de um regime de escravidão, ao mesmo tempo que enfoca o trabalho no campo, os avanços urbanísticos, as inaugurações solenes e os enterros das grandes autoridades. A diversidade de situ-ações, conflitos e tensões no espaço público, e também no privado, pontuam e permitem novas abordagens que revigo-ram o debate da história do cinema, assim como contribui para outras disciplinas, como os cultural e os visual studies, as análises sobre a cidade, a nova sociologia do trabalho, só para citar as mais evidentes.

Muitos dos filmes da caixa Resgate do Cinema Silencioso Brasi-leiro trazem a marca do berço esplêndido ou do ritual do poder. Porém, essas denominações não são universais e apenas oferecem uma abordagem para um conjunto de filmes, sem

entrar na realidade concreta de cada título. Um filme como As curas do Professor Mozart (1924), da Botelho Film, exige um esforço transdisciplinar para ser compreendido em sua integridade. Em um cinema marcado pela proximidade com o discurso das camadas dirigentes, o filme surge como um con-traponto, na medida em que o elemento popular deixa de ser um aspecto furtivo, que contrasta com a noção de progresso pretendida pelos letreiros e imagens, para protagonizar um discurso que ameaça a ordem estabelecida do catolicismo.

Mozart Dias Teixeira foi um médium de cura de grande popularidade. Ao longo da década de 1920, viajou pelo Brasil realizando suas curas e difundindo com eloquência o espiri-tismo. O filme se insere no processo de constituição de um mercado competitivo de bens de salvação, muito marcado pela perda da hegemonia religiosa da Igreja Católica e pelo advento de outras religiões. As lutas entre médicos e espí-ritas acompanham a consolidação da psiquiatria no campo científico e do espiritismo no campo religioso brasileiro.3 Para se entender o filme, mais do que descrevê-lo, é preciso ampliar a análise e identificar as forças em conflito e o tipo de encomenda cinematográfica.

O exemplo de As curas do Professor Mozart ilustra a riqueza ainda pouco explorada desse cinema para o entendimento

Fotograma de As curas do professor Mozart

(1924. Botelho).–

Fotograma de Força Pública do Estado de São Paulo (1910-12.

Kosmos).

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Fotograma de Companhia Docas

de Santos (1926-29).

da vida social brasileira e a contribuição decisiva da caixa Res-gate do Cinema Silencioso Brasileiro que, junto com os filmes recuperados, traz fichas técnicas e, fato inédito para os ar-quivos de cinema do país, um breve histórico sobre a origem de cada título, cada cópia e sua trajetória até a restauração definitiva. A publicação configura-se, assim, como fonte para um amplo arco de pesquisas; abre-se à abordagem de cará-ter analítico, de cunho investigativo sobre as forças sociais no nosso passado, de identificação dos esquemas de encomen-da e produção, de reflexão sobre os benefícios e, dirão alguns, eventuais perdas promovidas pela tecnologia digital.

A atividade editorial em DVD é primordial para a restituição ao público do trabalho de uma cinemateca. E com a publica-ção da caixa Resgate do Cinema Silencioso Brasileiro, cujos títulos foram escolhidos por Carlos Roberto de Souza, a Cinemateca Brasileira dá mais uma contribuição para o de-senvolvimento de uma política editorial de filmes em âmbito nacional. Que a iniciativa perdure e se expanda.

Notas

1 Os estudos de Vicente Paula Araújo, Paulo Emilio e Maria Rita Galvão permanecem como as principais referências. Recentemen-te, José Inácio de Mello e Souza e Ary Bezerra Leite trouxeram novas contribuições com a ampliação da pesquisa em arquivo. Cf. ARAÚJO, Vicente Paula. A bela época do cinema brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 1976; GOMES, Paulo Emilio Salles. Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte. São Paulo: Perspectiva, 1974 e GOMES, Paulo Emilio Salles. A expressão social dos filmes documentais no cinema mudo brasileiro (1898-1930). [1977] In: CALIL, Carlos Augusto e MA-CHADO, Maria Teresa (orgs.). Paulo Emilio: um intelectual na linha de frente. São Paulo/Rio de Janeiro: Embrafilme/Ministério da Cultura/Brasiliense, 1986; GALVÃO, Maria Rita. Crônica do cinema paulistano. São Paulo: Ática, 1975; SOUZA, José Inácio de. Imagens do passado: São Paulo e Rio de Janeiro nos primórdios do cinema. São Paulo: Senac, 2004; LEITE, Ary Bezerra. Memória do cinema: os ambulantes no Brasil. Fortaleza: Premium, 2011.

2 Étienne-Jules Marey, La machine animale. Locomotion terrestre et aérienne, Paris, Germer Ballière, 1873. Apud. POCIELLO, Christian. La science en mouvements. Étienne Marey et Georges Demenÿ, Paris: PUF, 1999, p. 60.

3 GIUMBELLI, Emerson. O cuidado dos mortos: uma história da condenação e legitimação do espiritismo. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997.

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Revista da Cinemateca Brasileira. São Paulo: Cinemateca Brasileira, 2012 - Semestral.

ISSN 2238-5517

1. Cinema Brasileiro 2. Crítica 3. História do cinema I. Cinemateca Brasileira

© Copyright Mundial Cinemateca BrasileiraCinemateca BrasileiraLargo Senador Raul Cardoso, 20704021-070 São Paulo, SP – BrasilTelefone: +55 11 [email protected]

Tiragem: 1.500 exemplares

Os artigos do n.1 da Revista da Cinemateca Brasileira foram recebidos em setembro de 2011 e aceitos para publicação em janeiro de 2012.