Robert Bellah - Lealdades Constitutivas

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ROBERT BELLAH LEALDADES CONSTITUTIVAS DA SOCIEDADE

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Robert Bellah - Lealdades Constitutivas

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ROBERT

BELLAH

LEALDADES

CONSTITUTIVAS

DA SOCIEDADE

Robert Bellah1 oferece algumas pistas que gostaríamos de

explorar. Segundo ele, a década de 60 presenciou distúrbios e explosões de

violência registrados nos Estados Unidos que foram únicos na historia

moderna porque eles questionaram os valores comuns da cultura e da

sociedade americanas. Ele descreve pois quais foram os dois pilares

principais que fundamentam as lealdades constitutivas da sociedade nos

Estados Unidos:

— A religião bíblica que sustentava a visão que os primeiros

colonos tinham deles mesmos como “o novo Israel de

Deus”; esse entendimento era expresso pelo símbolo bíblico

de um pacto significando um relacionamento especial entre

Deus e o povo. Este aspecto bíblico do auto-entendimento

nacional possuía um caráter fortemente social e coletivo

muito embora contivesse um elemento de voluntarismo

proveniente de suas raízes protestantes.

— A segunda interpretação subjacente da realidade que foi

influente na história americana – o individualismo autoritário

– nunca foi totalmente compatível com a tradição bíblica,

sendo complexas as relações de atração e repulsão entre

as duas.

Enquanto o termo central para a compreensão da motivação

individual era, na tradição bíblica, a “consciência”, o termo central na tradição

utilitária era o “interesse”. A compreensão bíblica da vida nacional era

baseada na noção de comunidade com caridade para todos os membros,

uma comunidade apoiada pela virtude pública e privada. A tradição utilitária

acreditava num Estado neutro em que os indivíduos teriam permissão de

buscar a maximização de seus próprios interesses, em que o produto seria

público e a prosperidade privada.

A tradição bíblica prometia recompensas terrenas e no outro

mundo pela prática de ações virtuosas. A tradição utilitária requeria

autocontrole e “moralidade”, se não como fim, pelo menos como meio.

Porém, o mecanismo mais difundido para a harmonização das duas tradições

1 BELLAH, Robert, A nova consciência religiosa e a crise na modernidade, em Religião &

Sociedade 13/2 , Rio de Janeiro, julho 1996

foi a corrupção da tradição bíblica pelo individualismo utilitário, de tal modo

que finalmente a própria religião tornou-se, para muitos, um meio para a

maximização dos interesses particulares, sem nenhum elo efetivo com a

virtude, a caridade ou a comunidade. Isto levou também ao prestígio

ascendente da ciência, da tecnologia e da organização burocrática. Por outro

lado, a tradição do individualismo utilitário não manifestou nenhum interesse

em compartilhar valores ou objetivos, uma vez que considerava como único

fim significativo a maximização do interesse individual, e os fins individuais

são essencialmente aleatórios. O utilitarismo tendia, conseqüentemente, a

concentrar-se unicamente na racionalização de meios, na racionalização

técnica. Como resultado, a racionalização dos meios tornou-se um fim em si

mesmo.

Embora o individualismo utilitário não tivesse nenhum interesse na

sociedade, como um fim em si mesmo, certamente não deixava de perceber

a importância dela. Como tudo mais, a sociedade devia ser usada

instrumentalmente. O termo chave era “organização”, o uso instrumental das

relações sociais. A “organização efetiva”, da mesma forma que a

inventividade tecnológica, era um traço distintivo do ethos americano.

O valor fundamental para o individualismo utilitário era “liberdade”,

um termo que podia ser usado igualmente para obscurecer a brecha entre as

tradições utilitária e bíblica, visto que é também um termo bíblico

fundamental. Para a religião bíblica, liberdade significava libertação das

conseqüências do pecado, liberdade para agir corretamente e era quase

equivalente à virtude. Para o utilitarismo, significava a liberdade para o

homem buscar seus próprios fins. Tudo devia ser subordinado a isso: a

natureza, as relações sociais e mesmo os sentimentos pessoais.

Existem três enredos possíveis para a sociedade americana como

um todo: o liberal, o autoritário tradicional e o revolucionário.

1. a sociedade americana continuaria a dedicar-se à

acumulação de riqueza e de poder. A racionalização

descuidada de meios e a falta de preocupação com os fins

só aumentariam, enquanto a religião e a moralidade bíblicas

continuariam a se desgastar. O individualismo utilitário, com

menos restrições ou fachadas bíblicas, continuaria sendo a

ideologia dominante. Sua forma econômica – o capitalismo

– sua forma política – a burocracia – e sua forma ideológica

– o cientificismo – dominariam cada vez, cada uma delas,

sua esfera respectiva. Entre a elite, o cientificismo – a

idolatria da razão técnica tomada isoladamente – forneceria

algum significado coerente depois da saída de cena da

religião e da moralidade tradicionais. Porém, a razão técnica

dificilmente seria um substituto suficiente da religião para as

massas. Não aceitando mais a sociedade como legítima em

quaisquer termos ideais, as massas teriam de ser levadas a

aquiescer, com relutância, através de uma combinação de

coerção e de recompensa material. Numa sociedade como

essa, pode-se vislumbrar um certo papel para os grupos

religiosos orientais e para o movimento pelo potencial

humano – talvez mesmo para uma pequena franja política

radical. Todos eles poderiam receber permissão, dentro de

limites, para operar e oferecer a possibilidade de expressar

a frustração e a raiva que o sistema gera, mas de tal modo

que os indivíduos envolvidos fiquem isolados e que o

próprio sistema não seja ameaçado.

2. o colapso da razão subjetiva – que é o que, em última

análise, a razão técnica é – traria em sua trilha um

renascimento da razão objetiva numa forma particularmente

fechada e reificada. A razão técnica – por não ser

relacionada à verdade ou à realidade, mas apenas aos

resultados (não com o que é, mas apenas com o que

funciona) – é, em última instância, completamente subjetiva.

Essa sua atitude dominante e manipuladora da realidade, a

serviço do sujeito, leva, em última instância, à destruição de

qualquer subjetividade verdadeira, e essa é apenas uma de

suas muitas ironias. Um novo autoritarismo tradicional

acarretaria alguma versão ortodoxa isolada de que verdade

e realidade são e reforçam a conformidade. Deste modo, a

coerência social e pessoal seria atingida, mas em última

análise às expensas de qualquer objetividade real. Os

prováveis candidatos para a tarefa de fornecer uma nova

ortodoxia poderiam ser tirados da ala direita do

fundamentalismo protestante.

3. a terceira alternativa poderia ser revolucionária, não no

sentido de uma rebelião sangrenta, mas porque traria

mudanças estruturais fundamentais em termos sociais e

culturais. Essa cultura revolucionária teria um firme

compromisso com a busca da realidade última. A ciência,

que em última instância teria de ser impedida de agir num

regime autoritário tradicional, continuaria a ser perseguida

na cultura revolucionária, mas não seria idolatrada como no

modelo liberal.