SacerdoteS 09

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A escolha da besta

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A e s c o l h a d a b e s t aA e s c o l h a d a b e s t aA e s c o l h a d a b e s t aA e s c o l h a d a b e s t a

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Capítulo 9 – A escolha da besta Dez minutos antes dos primeiros raios de sol surgirem, não mais que isso, os demônios finalmente recuaram. Passaram o resto da noite cer-cando Elkens e Kanoles, mas a proteção do misterioso círculo de pedra no meio da floresta os salvou. Quem quer que tivesse feito aquilo, Ka-noles era imensamente grato a ele. Os demônios se retiraram sem se manifestarem; nenhum grito de fúria ou de ameaça, apenas sumiram silenciosamente, como se já soubessem que a guerra estava perdida. Teriam de esperar até anoitecer para atacarem novamente, mas não haveria presa alguma aquela noite, pois todos estavam de partida. Já haviam ultrapassado aquele obstáculo, aquele que acreditaram errone-amente ser o último; Elkens e os outros já caminhavam para um novo obstáculo, talvez o mais difícil daquela missão: o resgate de Mifitrin. Mesmo após os demônios terem partido (para uma caverna ou qual-quer outro abrigo que os protegesse da luz do dia) Elkens e Kanoles não ousaram sair do interior do círculo de proteção. Esperaram por quase meia hora para ter certeza de que eles não voltariam. — Quer fazer o desjejum? – perguntou Kanoles em tom irônico, mas já com sua bolsa nas costas. — Não enquanto estiver nesta floresta – o Sacerdote também colocou sua bolsa nas costas e se preparou para partir. Não se preocuparam em apagar os vestígios de que passaram a noite ali, acharam isso com-pletamente desnecessário. Para falar a verdade, nenhum dos dois se lembrou disso. Tudo o que queriam era sair dali o quanto antes. Hesi-taram um breve instante antes de deixarem o círculo de proteção para trás, mas Kanoles deu o primeiro passo e Elkens o seguiu de perto. Estava tudo bem agora, estavam em segurança.

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O caçador de recompensas segurou sua pedra com o formato de flecha sobre a palma da mão aberta. A pedra levitou alguns centímetros no ar e apontou em direção à montanha Monaltag. Eles não podiam ver a montanha, mas sabiam que ela estava naquela direção, pois era para lá que estavam seguindo. Era Laserin, Elkens sabia. Havia dado a proteção do escudo da Alma para ela durante toda a noite, e assim ti-nha certeza de que ela havia saído em segurança da floresta. Era para ela que a pedra estava apontando; só desejava que Meithel estivesse junto com ela.

♦ — Muitas vezes só reconhecemos o verdadeiro valor de algo quando o perdemos. Era a voz de Kalimuns que estava em sua mente, mais uma das sábias frases de seu querido tutor. E agora, mais do que nunca antes, Elkens entendia o quanto ele estava correto. Quando Mifitrin foi tirada de-les, quando foi levada por Mudriack, Elkens perdeu o chão, seu pilar de sustentação. Até aquele momento não acreditava que fosse sentir isso, mas precisou sentir na pele para compreender, precisou perdê-la para reconhecer o verdadeiro valor que tinha para ele. Um peso se ins-talou em seu coração, uma angústia que, assim como um veneno mor-tal, se alastra para todo o corpo. Por favor, Mifitrin, não esteja… ele não conseguia nem pensar. Por favor, esteja viva. Mifitrin era a líder do grupo. Sem ela, Elkens estava sem rumo. Não sabia em que direção seguir, não sabia o que fazer. Estava perdido. A missão da qual fazia parte foi interrompida, pois não seria capaz de concluí-la sem Mifi-trin. Precisava da líder novamente; talvez Meithel não precisasse,

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talvez fosse capaz de prosseguir sem a Guerreira e ser bem sucedido, mas Elkens não. Precisa dela. Não sabe direito por que, mas precisa. Elkens é tão bom em entender os sentimentos alheios, mas terrivel-mente cego quando se trata dos seus próprios. Não sabe se está tão de-sesperado para rever Mifitrin para ter de volta sua líder, sua amiga, ou qualquer outra coisa. Na verdade está tão longe da resposta, tão longe que levará muito tempo para compreender, um tempo que talvez nem tenha. O fato é que gosta de estar com ela, gosta da sua lideran-ça, do seu pessimismo, do jeito como parece ser capaz de estralar todos os ossos do corpo, das palavras frias que diz, da sua seriedade, da sua falta de compaixão, da sua indelicadeza e do jeito como menospreza a amizade. Gosta principalmente do modo como tenta fazer tudo isso parecer real, embora ele, e somente ele, possa enxergar quem realmente está por trás de tudo isso, por trás de todas as máscaras e escudos que ela cria a sua volta. E é dessa Mifitrin, esta personalidade oculta que ela tanto preserva escondida, que ele tanto gosta. E por causa disso tudo ele só consegue pensar em uma coisa: Preciso resgatá-la. Preciso lhe dizer tantas coisas, ainda não sei exatamente o que, mas preciso ter a chance de descobrir. Preciso descobrir o que que-ro dizer e preciso ter a chance de fazer isso. Vou resgatá-la, Mifitrin. Pode esperar… Caminhou ao lado de Kanoles por duas horas, talvez um pouco mais, então finalmente saíram da floresta. Sentiu alívio por isso, sua respi-ração ficou mais leve e finalmente teve coragem de fechar os olhos. Fechou os olhos e apreciou o toque macio dos raios de Tunmá, assim como o vento que lhe acariciava. Como era prazeroso poder fazer isso. Não havia mais demônios, poderia ficar mais tranqüilo agora. Sentiu grande parte da tensão fluir do seu corpo para o chão…

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Quando abriu os olhos, a primeira coisa que viu foi uma cadeia de montanhas que crescia não muitos quilômetros além de onde se encon-trava, mas Monaltag se destacou. A maior, muito maior do que as ou-tras que a cercavam. E atrás daquelas montanhas estava o lago Lus-hizar, de onde teriam acesso ao portal que, com a ajuda do cristal de Laserin, os levaria para dentro dos Domínios da Magia. Quando fi-nalmente desviou os olhos de Monaltag foi que viu algo que ele sabia que ia encontrar ali, embora o alívio por ter saído da floresta o tenha feito se esquecer disso por um breve instante: Laserin. A garota estava lá, trinta metros diante deles, e Meithel estava com ela. Como ele fi-cou contente por vê-los ali, são e salvos. Meithel estava com a palma da mão aberta, obviamente segurando a minúscula pedra branca em forma de flecha que, com toda certeza, apontava para onde Elkens e Kanoles estavam. — Elkens! – Laserin gritou contente ao vê-lo e correu em sua direção. Suas vestes estavam rasgadas, sujas e molhadas, e ela estava cheia de pequenos arranhões por todo o corpo. A noite na floresta também não havia sido fácil para a jovem garota. – Kanoles! Que bom ver vocês… Mas então a jovem ficou muda e procurou por alguém atrás de El-kens, como se esperasse que mais alguém saísse detrás das árvores. Como mais ninguém apareceu, Laserin olhou assustada para Elkens e perguntou: — Onde está a Mifitrin? Elkens e Kanoles se encararam, receosos em dar a notícia. Laserin e Meithel ficaram preocupados com a reação dos dois, mas então Elkens disse algo para tranqüilizá-los: — Ela ainda está viva!

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Mas a notícia de que ela ainda estava viva apenas deixou os dois mais preocupados. Foi então Kanoles resolveu esclarecer tudo de uma vez por todas: — Mudriack a pegou na floresta. Foi isso o que aconteceu… Meithel contraiu seu rosto numa expressão de raiva e socou uma mão na outra. — DROGA! Foi minha culpa. Eu sabia que ele poderia nos encontrar se eu conjurasse aquela luz, mas não tinha outro jeito… — Não se torture Meithel – disse Elkens tentando tranqüilizá-lo. – Se você não tivesse conjurado aquela luz todos nós estaríamos mortos agora. Meithel temia que Mudriack estivesse fazendo algo horrível com Mi-fitrin. Ele preferia que Mudriack tivesse pego qualquer um no lugar dela, inclusive ele. Meithel conhecia Mudriack há muitos anos e sabia que ele era vingativo. Temia que o Feiticeiro fizesse algo para se vin-gar de Mifitrin por tê-lo desafiado com o Fogo do Tempo na primeira vez que se encontraram. — Mas ainda podemos encontrá-la – disse Laserin feliz, segurando a pedra branca em forma de flecha sobre a palma da mão. – Podemos encontrá-la com as pedras de Meithel… — Não, não podemos – Kanoles a contrariou. Ele mexeu em um bolso nas suas vestes e pegou duas pedras brancas. Uma delas era a sua própria e a outra era a de Mifitrin. – Mifitrin perdeu a sua pedra na floresta, então não poderemos encontrá-la. Não desta maneira. Algo chamou a atenção de Kanoles e o fez parar de falar. As duas pe-dras que segurava levitaram-se no ar, assim como a de Laserin; logo as pedras de Meithel e Elkens também levitaram e se juntaram às suas companheiras. Por um segundo brilharam, então apontaram umas pa-ra as outras. Brilharam mais uma vez, então se desintegraram, dei-

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xando para trás apenas flocos de luz que logo foram levados pelo vento. As cinco pedras haviam se encontrado depois de terem sido se-paradas; isso completou o feitiço me encontre e por isso ele se extin-guiu, não sendo mais necessário. Kanoles tirou seu cantil que estava preso em seu cinto e tomou um longo gole da água que já estava quase no fim. Tampando o cantil e prendendo-o de volta ao cinto, ele disse calmamente para Elkens: — Mas você pode encontrá-la, não pode? Com aquela máscara… — Não posso! – Elkens respondeu em tom decepcionado. – A Másca-ra Nai-Kanitalen é uma relíquia e só funciona quando é realmente ne-cessária. Para poder usá-la, a alma de Mifitrin teria de me pedir aju-da, assim como a alma de Laserin fez… — O que quer dizer? – a garota perguntou confusa. – Não pedi ajuda a ninguém… — Não você, sua alma. Você iria morrer Laserin, e sua alma sabia disso, mas também sabia que não era a sua hora, por isso me pediu ajuda. Foi assim que consegui descobrir onde você estava e mandar o escudo para protegê-la. Fico contente em ver que o meu escudo tam-bém protegeu o Meithel. Laserin ficou confusa com a resposta de Elkens, mas resolveu não perguntar novamente. Elkens evitou olhar para Meithel, pois sabia que o Sacerdote da Magia estava analisando-o nesse exato momento. Elkens acabou de revelar que tinha uma relíquia consigo e sabia que Meithel estava esperando por respostas. Mas Elkens o evitou e ele percebeu isso. Iria querer respostas, mas ainda era cedo. A prioridade agora era Mifitrin. Elkens olhou para o céu azul, pensando no que deveria ser feito, e mais uma vez seu olhar se voltou para a montanha Monaltag. Esta-

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vam tão perto agora, tão próximos de cumprirem aquela missão, mas agora ele não sabia o que fazer. — Para onde iremos agora? — Para lá – disse Meithel apontando para a montanha Monaltag às suas costas. Elkens olhou surpreso para Meithel, então sentiu uma raiva tomar conta de seu corpo. — Pretende abandonar Mifitrin? – perguntou ele acusando o compa-nheiro. – Não foi isso o que ela fez por você. Não podemos ir embora sem ela… — Não estou dizendo que devemos abandoná-la – Meithel tentou se explicar, mas também sentiu raiva pela acusação do outro. Meithel já estava sentindo-se culpado o bastante por ter atraído Mudriack com a luz que conjurou na floresta e não precisava que ninguém o ajudasse a se sentir ainda pior. – Jamais pensei em abandonar Mifitrin, mas a única coisa que podemos fazer agora é ir até o lago Lushizar. Mifitrin não é importante para Mudriack. O que ele quer é o cristal, então va-mos dar a ele o que ele quer… Kanoles, que até então limpava distraído a lâmina de Sangrini, olhou assustado para Meithel para tentar compreender seu plano. O Sacer-dote da Magia continuou: — Mudriack não desistirá enquanto não conseguir o que veio buscar e ele sabe para onde estamos indo. Ele sabe que levaremos o cristal pa-ra o lago Lushizar e aposto como já está nos esperando lá para armar uma nova emboscada. Aposto como ele tentará uma troca, o cristal por Mifitrin. Meithel tem razão, pensou Elkens. Mais uma vez Mudriack estava em vantagem sobre eles. Não poderiam fazer nada, a não ser ir em di-reção a mais uma armadilha na esperança de resgatar Mifitrin. Sa-

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bendo o risco que estavam correndo novamente, os quatro ficaram de frente para a grandiosa Monaltag e reiniciaram sua jornada. A cada passo que davam tinham a impressão de que Monaltag crescia infini-tamente acima deles. O caminho que os separava da montanha era plano, mas não continha sequer uma árvore. Os cantis de todos esta-vam praticamente vazios, mas eles só poderiam reabastecê-lo quando chegassem ao lago. Felizmente isso aconteceria em poucas horas, pois estavam muito perto. — Precisamos de um plano – Kanoles quebrou o silêncio. – Mudriack vai nos pegar de surpresa mais uma vez, mas agora nós sabemos disso e não podemos ir despreparados. — Eu posso convocar a minha alma-protetora – disse Elkens referin-do-se a Nai-Peleguir. – Funcionou da última vez. — Esse é o problema – Meithel estava preocupado. – Funcionou da última vez. Mudriack não é burro, muito pelo contrário. Quando éra-mos Aprendizes, Mudriack e eu costumávamos treinar juntos e ele sempre foi muito inteligente. Com certeza já tem algo em mente para não repetir o seu fracasso. Diga-me Elkens, o que pode derrotar sua alma-protetora? Elkens pensou. Até o momento não sabia o que poderia derrotar uma alma. Não sabia qual era o verdadeiro poder de Nai-Peleguir, mas sa-bia que ela era limitada ao seu poder. A vantagem de se usar uma al-ma-protetora não é por causa de seu poder, que nem ao menos é gran-dioso, é por causa do seu poder ser desconhecido, assim como suas fra-quezas. — Não conheço nada que possa derrotar uma alma-protetora. Duvi-do que Mudriack conheça. O único problema é que Nai-Peleguir só vi-rá quando eu realmente estiver em perigo e isso pode levar algum tem-po.

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— E Mudriack também pode usar aquele fogo – disse Laserin en-trando na discussão. Todos olharam preocupados para ela, que acari-ciava o recente ferimento provocado pelo fogo mágico. Realmente este era o verdadeiro problema deles. A principal arma de Mudriack é o Fogo da Magia e todos estariam vulneráveis se Mudriack usasse-o novamente, coisa que obviamente faria. — E aquele seu escudo? – Kanoles perguntou, virando-se para El-kens. – Ele não pode nos proteger do fogo? — Não – Elkens respondeu com sinceridade. – É o escudo da Alma. Só nos protege caso alguém tente nos atacar, pois o escudo não deixa a alma passar. Se Mudriack nos atacasse com as próprias mãos meu es-cudo funcionaria, mas isso é completamente ilógico. Mudriack atacará com magia… Nesse momento Elkens olhou para Meithel. Estava óbvio o que deve-riam fazer. Meithel deveria criar um escudo da Magia e todos ficari-am a salvo do Fogo da Magia. Supostamente Meithel percebeu no que Elkens estava pensando, pois disse: — Meu escudo não nos protegeria. O Fogo da Magia é forte o bas-tante para queimar qualquer magia que eu utilize, inclusive o meu es-cudo. Sem que percebessem, todos haviam parado de andar. Estavam tão apreensivos com a perspectiva de enfrentar Mudriack novamente que hesitavam em dar sequer um passo sem saber como se protegeriam do Feiticeiro. — Mas agora eu sei que Mudriack vai nos atacar e também sei que ele pode usar o Fogo da Magia – Meithel parecia confiante. – Não poderei impedi-lo de usar o Fogo da Magia, mas tentarei atrapalhá-lo. Acho que eu descobri a falha do feitiço de Mudriack.

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Todos olharam para Meithel esperançosos e viram a sombra de um sorriso no rosto do Sacerdote. — Da última vez Mudriack nos pegou porque estávamos todos jun-tos, assim foi fácil nos prender. Mas ele está trapaceando, pois não deveria saber utilizar o Fogo da Magia ainda, então creio que ele não possa acender mais de um fogo. Se estivermos todos separados, ele só poderá prender um de nós. Por um momento todos ficaram encarando Meithel admirados com es-sa vantagem que tinham, mas foi então que Elkens disse algo que os desanimou: — Mas desta vez ele não precisa esperar. Ele pode queimar qualquer um de nós em um segundo. Ele não pode acender mais de um fogo, mas pode acender um de cada vez e assim matar a todos, exceto Kano-les, a quem o fogo é inofensivo. — Você tem razão, mas enquanto um de nós estiver preso, os outros poderão enfrentar Mudriack e ele será obrigado a se defender ou ata-car. De qualquer forma ele terá de usar mais que um feitiço e assim não estará completamente concentrado no Fogo da Magia. Se isso acontecer, tenho certeza que posso deter o fogo e impedir que ele quei-me um de nós. Elkens pensava numa possível falha para o plano de Meithel, mas pa-recia não haver falhas. Mudriack dominava um poderoso feitiço, mas inclusive o Fogo da Magia tinha inúmeras falhas. Desta vez Mudri-ack não estaria completamente protegido fora das chamas brancas, pois não estaria sozinho. — Então quando Mudriack prender um de nós dentro do fogo – disse Meithel repassando o plano – eu detenho o fogo e enquanto isso El-kens chama Nai-Peleguir. Kanoles pode atacar Mudriack para dis-traí-lo por algum tempo – Meithel olhou para o caçador de recompen-

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sas e sorriu: – Não sabemos qual o verdadeiro poder que Sangrini tem agora, mas talvez você possa descobrir hoje. Animados com um plano para enfrentar Mudriack, eles recomeçaram a caminhar em direção à montanha Monaltag, mas Kanoles ficou pa-ra trás e disse: — Há uma pequena falha no plano. — Qual? — Vamos, não é tão difícil assim. A falha é óbvia. Todos estamos de-pendendo de Elkens para chamar sua alma-protetora e derrotar Mu-driack, portanto Elkens é o elo fraco do plano. Se Mudriack meditou um pouco já deve saber disso, então tenho certeza de que irá atacá-lo com todas as suas forças. A esperança que Meithel fez surgir no coração de Laserin com aquele plano foi arrancada com as palavras de Kanoles. Elkens não disse na-da, também estava preocupado, mas Meithel não se abalou nem um pouco com o que Kanoles disse: — Eu sou um protetor da Magia – disse simplesmente. – Sou capaz de sentir a magia de forma mais intensa que Elkens ou Mifitrin. As-sim que ela começar a se manifestar, e quando Mudriack atacar El-kens, eu perceberei em tempo de protegê-lo. Então finalmente a discussão foi encerrada e todos voltaram a cami-nhar em direção à Monaltag. A floresta atrás e as montanhas à frente os protegiam do vento, e Tunmá, mesmo não estando alta no céu, já produzia um calor insuportável, aumentando a sede e o cansaço do grupo. Os cantis logo estavam todos vazios e a garganta dos quatro estava seca. Pouco mais de uma hora depois estavam há apenas al-guns metros da montanha Monaltag e eles pararam aos seus pés para apreciar sua incrível altura. As outras montanhas que rodeavam o la-go quase nem eram notadas.

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Elkens tem uma boa memória. Lembra de coisas que haviam aconteci-do há tantos anos como se as tivesse vivido ontem. Lembra-se dos seus primeiros aprendizados como Aprendiz da Alma, lembra-se dos pri-meiros dias de treinamento com Kalimuns. Lembra-se dessas coisas que aconteceram dez, quinze anos atrás, e lembra-se perfeitamente dos detalhes. Lembra-se do que sentiu naquele exato momento, lembra-se de cada palavra dita. E justamente agora havia algo em sua mente, uma lembrança que aflorou, uma lembrança cujo significado ele ainda não compreendia. Por que estou me lembrando disso? Foi há mais de dez anos. Elkens não era nada além de um mero Aprendiz, não havia nada de especial nele, não era o aluno mais pro-missor, tampouco tinha talentos que chamavam a atenção. E nunca se importou com isso, nunca gostou de ser aclamado, e os únicos elogios a que realmente desse valor vinham de Kalimuns. Se outra pessoa o elo-giasse, ou mesmo o criticasse, isso não significava praticamente nada para ele. Mas havia algo que o perturbava: o fato de Kalimuns não permitir que ele saísse dos Domínios da Alma. Queria tanto conhecer Gardwen, queria tanto sair dos Domínios e ver o que havia lá fora, mas Kalimuns não lhe permitia. Os outros Aprendizes, todos os ou-tros Aprendizes, absolutamente todos tinham autorização para sair, exceto ele. Mas mesmo nessa época, tantos e tantos anos atrás, já ha-via aprendido que não adiantava perguntar ao seu tutor por que não podia sair. Por isso raramente tocava no assunto, mesmo que isso o perturbasse incomensuravelmente. Certo dia Lana veio lhe encontrar no Bosque da alma. Lana era uma Aprendiz da Alma, assim como ele. Ela era Aprendiz do Mago da Alma Nai-Jasuel, mas costumava compartilhar os ensinamentos de Kalimuns com ele em certas épocas. E por esse motivo se tornaram

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próximos, não exatamente amigos, mas quase isso. Esse tipo de rela-cionamento é meio raro entre protetores, pois o contínuo treinamento não permite que tenham muito tempo para fazer amizades. Mas se ti-vesse que indicar alguém como amigo, Lana seria esta pessoa para El-kens. — Vim me despedir – ela disse com seu belo sorriso infantil. Seus ca-belos lisos e castanhos batiam pelo ombro e seu rosto era cheio de sar-das. Em suas costas trazia uma bolsa de viagem. ‒ Vou para Gar-dwen! Elkens se recorda de como sentiu ciúmes de Lana. Não era um senti-mento ruim, estava feliz por ela, mas é que não conseguia entender por que ele não podia ir. Se Kalimuns ao menos lhe desse um moti-vo… — O senhor Jasuel está partindo em um missão no reino de Kadhar-ran, e me permitiu que vá junto para auxiliá-lo. Não é demais? Elkens concordou forçando um sorriso. Lana estava muito entusias-mada e ele não queria estragar sua alegria com o seu ciúme. — Sabe quando volta? — Não. Nai-Jasuel me disse que talvez fiquemos dois ou três meses fora. É uma missão para coletar informações, por isso é demorada. Vou sentir sua falta. — Eu também. Então Lana se foi. Dois meses se passaram e ainda não tinha notícias dela. Seu treinamento prosseguia como sempre; Kalimuns sempre exi-gindo o máximo dele e ainda insistindo que ele não poderia sair dos Domínios da Alma. Mais um mês se passou e Kalimuns também teve de partir em uma missão, deixando Elkens treinando sua concentração sob os cuidados de um Bruxo da Alma. Assim Elkens ficou sem as du-as pessoas com quem gostava de conversar, e focou todo o tempo que

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tinha no seu treinamento. Então, ao fim do quarto mês, Lana fi-nalmente retornou. Voltou cheia de histórias para contar a Elkens sobre Gardwen, e ele se deliciava com os detalhes que ela lhe contava, embora ainda sentis-se ciúmes. Ela contou que passaram os quatro meses na Grande Cida-de Condarin, capital do reino de Kadharran. Contou muitas coisas, falou de feitiços novos que aprendeu, e também de situações perigosas em que se meteu. Mas guardou o melhor para o final. Quando termi-nou de contar suas histórias, tirou de dentro da bolsa uma fita verme-lha, então a entregou à Elkens. — Isso é para você. Sei que Kalimuns ainda não lhe deu permissão para ir ver Gardwen, então trouxe algo lá de fora para você. Comprei em Condarin. Os moradores de lá usam muito dessas fitas, dizem que trás sorte. É claro que é só superstição, mas… — Obrigado – disse Elkens admirado, pegando a fita da mão de La-na. Achou a fita extraordinária, embora não fosse nada além de uma fita vermelha, sem nenhum detalhe. Mas ela vinha de Gardwen, e is-so, para Elkens, já era suficiente para transformar uma simples fita em algo digno de admiração. Podia ser uma pedra, uma folha, ou qualquer outra coisa insignificante, mas o fato de ser algo de Gar-dwen transformava aquilo no melhor presente que Elkens já ganhou em toda sua vida. Lana amarrou a fita em seu pulso direito e se foi, deixando que El-kens prosseguisse com seus treinamentos. Mais duas semanas se pas-saram e Kalimuns ainda não havia retornado de sua missão, embora Elkens estivesse progredindo bastante com sua concentração. — Você tem muito talento – disse o Bruxo que estava supervisionan-do seu treinamento. – Progrediu o equivalente a anos em apenas al-gumas semanas. A concentração é o seu grande ponto forte.

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Mas os elogios não lhe significavam nada se não viessem da boca de Kalimuns. Onde estava seu tutor? A questão é que Kalimuns ainda levaria semanas para voltar e mesmo assim o Bruxo da Alma o dis-pensou do seu treinamento de concentração, dizendo que ele já havia atingido o limite. — Este é o máximo que pode fazer agora – disse o Bruxo. ‒ Ka-limuns esperava voltar antes de você terminar este treinamento, mas não posso segura-lo até Kalimuns voltar; você já foi muito além de onde ele esperava que fosse. Agora precisa focar seu treinamento para outras áreas, até que esteja pronto para aperfeiçoar ainda mais sua concentração. Assim Elkens foi novamente passado para a supervisão de outros pro-tetores. Desta vez foi treinar com Sacerdotes da Alma, um grupo co-nhecido como caçadores de almas, pois eram os responsáveis por en-contrar e capturar almas que estavam perdidas por Gardwen e não encontravam o caminho de volta. Elkens seria um Sacerdote um dia, por isso precisava ser capaz de encontrar almas que estivessem perdi-das. Teve esperanças de que tivesse que ir para Gardwen com os caça-dores para aprender na prática, mas essa esperança lhe foi arrancada antes de começar o treinamento: — Kalimuns deixou ordens expressas de que você não pode sair dos Domínios – disse um dos caçadores. – Por isso iremos treinar aqui dentro mesmo. Apesar disso, foi um dos treinamentos mais divertidos que teve. Aprendeu a localizar as almas, aprendeu a fechar os olhos e sentir on-de elas estavam. Semanas se passaram e ele já conseguia saber quantas almas haviam por perto mesmo sem precisar enxergá-las. Treinou tan-to que passou a sentir as almas involuntariamente. Era como se as

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almas fizessem parte dele agora, ele podia senti-las. Depois disso treinou como capturar uma alma sem feri-la, e foi aí que aconteceu. Passava o dia todo com os caçadores, encontrando, perseguindo e cap-turando almas. Corria para todos os cantos dos Domínios da Alma e foi ao final de mais um dia de treinamento que sentiu falta de algo. Sua fita vermelha, a fita de Gardwen que ganhara de Lana, havia de-saparecido. No pulso onde estava amarrada havia apenas um arra-nhão. Provavelmente Elkens havia perdido a fita durante um tombo, ou talvez quando se arranhou em uma árvore, o fato é que perdeu a fita e não havia meios de encontrá-la novamente. A fita de Gardwen foi o melhor presente que já havia ganhado, mas agora o havia perdido para sempre. Por que estou me lembrando disso?, Elkens ainda se perguntava. Es-tavam caminhando em direção a uma nova armadilha de Mudriack, estavam tentando resgatar Mifitrin, então por que ficava se lembran-do de coisas fúteis como esta? Ele ainda não sabia a resposta.

Quando se depararam com a montanha, ficaram sem saber o que fazer. Havia vários caminhos a se seguir, dezenas de caminhos que contor-navam as montanhas diante deles e davam acesso ao lago logo atrás, portanto ninguém sabia por onde seguir. Não tinham sequer uma pis-ta do caminho que Mudriack havia escolhido, e esta era uma vanta-gem para o Feiticeiro. Teria a chance de chegar ao lago muito tempo antes deles e assim poderia planejar uma armadilha perfeita. Deram mais alguns passos em direção à montanha, ainda sem saber qual caminho escolher, mas então Laserin viu alguma coisa no chão.

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— Minha faixa – ela exclamou enquanto corria em direção à sua faixa de cabelo azul. – Eu a perdi na floresta. Mas assim que tocou a faixa perdida, algo aconteceu. Meithel sentiu alguma forma de magia se manifestando. — CUIDADO! Mas não havia perigo algum. Achou que a magia que sentiu fosse de algum ataque, mas a magia sequer era de Mudriack. A magia que es-tava se manifestando não tinha nada a ver com o Feiticeiro. Houve um lampejo de luz, então o céu escureceu-se de repente, trans-formando-se em noite. Diante deles, não mais que cinco metros à fren-te, havia um homem vestido de branco, e este estava levando uma mu-lher de armadura anil com os braços presos atrás do corpo, imobiliza-da. Em seu pescoço havia uma corda feita de luz sólida, branca, e o homem a puxava como se fosse um animal. — MIFITRIN! Elkens correu em direção à ela, sem ainda compreender o que estava acontecendo. Viu quando a Guerreira deixou cair algo no chão, a mesma faixa que Laserin havia acabado de pegar. Mas tão rápido quanto a visão surgiu, logo desapareceu. Mifitrin e Mudriack haviam desaparecido e o céu voltou a brilhar com os raios do sol. — O que foi isso? – Laserin perguntou, segurando sua faixa de cabe-lo com certo medo. — Uma fenda do Tempo – Meithel respondeu. – Já li sobre elas. Al-guns protetores do Tempo são capazes de usá-la para criar uma liga-ção entre dois pontos distintos do tempo, então Mifitrin é uma deles. A faixa de cabelo foi o elo que Mifitrin usou para ligar esses dois pon-tos do tempo, e quando você a tocou o feitiço foi ativado. O que vimos foi o que aconteceu algumas horas atrás. Mifitrin nos deixou uma pis-ta.

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— Mas se Mudriack está a mantendo consciente, por que ela não usou algum feitiço para atacá-lo? Kanoles encarava Meithel, esperando uma resposta plausível. — Por que com certeza ela não está com seu colar. Mudriack deve ter pego o colar dela, isso é óbvio. Mas de qualquer modo eles estão muito próximos, por isso Mifitrin conseguiu se concentrar no colar e criar a fenda do Tempo. — E se pôde fazer isso, por que não o atacou? — Porque a concentração de Mifitrin é seu ponto fraco – disse El-kens, respondendo a pergunta que Meithel não soube responder. – Ela tem dificuldades para se concentrar. Separada do seu colar como está, e impossibilitada de tocá-lo, ela só consegue realizar feitiços simples, e isso com um tremendo esforço. Não seria capaz de machucá-lo, quanto menos de fugir. Com certeza Mudriack nem percebeu que ela nos dei-xou esta pista. — Pista? – disse Kanoles rindo, debochando-se. ‒ Só vimos Mudri-ack puxando ela como um animal. Pista para o quê? Meithel sorriu e apontou para a frente, onde havia uma entrada na base da Monaltag: uma caverna. — Era para lá que Mudriack estava seguindo. Eu devia imaginar, o caminho mais curto para o lago é por dentro da montanha. A caverna era completamente escura. Assim que entraram, Meithel conjurou luz alva do seu colar e assim iluminou o caminho. Mas não conjurou uma luz muito forte, pois não queria chamar a atenção de muito longe. Não iria cometer o mesmo erro duas vezes. A caverna era muito úmida, o que deixava o chão muito escorregadio. Havia várias poças d’água; Meithel provou e disse que era água fresca, possivel-mente da tempestade que os pegou dias atrás. A água podia ter verti-

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do pelas paredes da caverna e graças a isso reabasteceram seus cantis e saciaram a sede. Sabiam que Mudriack estava horas de vantagens a frente deles, mas ainda assim estavam atentos a qualquer ruído; a ca-verna era o lugar ideal para uma armadilha, pois não tinham para on-de fugir. Elkens caminhava à frente, puxando o grupo. Estava tão empenhado em resgatar Mifitrin que nem percebia que estava se expondo ao peri-go. De repente viu algo brilhando a sua frente. Era o brilho frio de al-guma superfície lisa, como uma jóia, que apenas refletia a fraca luz emitida pelo colar de Meithel. Ele ainda não era capaz de identificar o que era. É algo pequeno, Elkens reparou. Aproximando-se de forma lenta e cautelosa, Elkens descobriu o que era e correu de encontro ao objeto. — Pare Elkens! – disse Meithel assustado ao ver o que o companhei-ro estava fazendo. ‒ Pode ser uma magia armadilha. Mas Elkens não deu ouvidos, pois já sabia o que era. Ele chegou ao objeto e agachou-se para pegá-lo. Era um belo colar de safira; o colar de algum protetor do Tempo. — Mifitrin… ‒ sussurrou Elkens pegando o colar da Guerreira. Mas quando Meithel se aproximou com sua luz e iluminou o colar nas mãos de Elkens, este o reconheceu. Não era o colar de uma Guerreira, mas sim o colar de um Mago do Tempo. Era o colar de Morton, o colar que Mifitrin carregava consigo desde que seu tutor morreu. ‒ Não é uma armadilha – disse por fim, mostrando o colar aos companheiros. ‒ É mais uma pista. O colar de Morton! Kanoles se aproximou de Meithel e o puxou violentamente para trás, afastando-o de Elkens. Depois soltou o Sacerdote da Magia e se afas-tou dele também. Meithel levou apenas um breve segundo para enten-der a reação do caçador de recompensas. Que descuido o meu, pensou.

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Se ficarmos juntos Mudriack pode nos prender no Fogo da Magia. O colar podia ter sido uma distração para nos aproximarmos… Elkens segurou o colar de Morton com carinho, esperando que uma nova fenda do Tempo fosse ativada, mas nada aconteceu. Passou o colar pelo pescoço e se surpreendeu com o seu peso, pois era muito mais pesado que o colar de um Sacerdote. O colar não foi deixado como uma pista, Elkens logo percebeu. Na verdade aquele colar era muito impor-tante, pois pertenceu a Morton, e o motivo de ter sido deixado para trás era que Mifitrin queria protegê-lo. Impedir que Mudriack colo-casse suas mãos nele. Realmente não era uma pista. Logo estavam todos andando novamente. Elkens sempre à frente, an-dando o mais rápido que podia, embora Meithel chamasse sua atenção a todo instante para que parasse de correr e prestasse atenção em pos-síveis armadilhas. Mas ele estava obcecado; precisava recuperar sua líder o quanto antes. Precisava de Mifitrin. Estavam andando todos afastados, com medo de ficarem presos pelo Fogo da Magia; Meithel vinha logo atrás de Elkens; Laserin e Kanoles vinham por último. Os dois podiam ficar juntos, pois o fogo era inofensivo para um humano comum como Kanoles, que não tem magia correndo em suas veias, por isso não pode ser queimado. Por este motivo ele foi escolhido para acompanhar Laserin. Andaram por uma hora sem qualquer acontecimento, mas estavam na trilha de Mudriack e Meithel sabia que o amigo lhes deixaria uma ar-madilha. Mas cedo ou mais tarde isso aconteceria, mas aconteceu tão cedo que pegou Meithel desprevenido. Ele percebeu que havia magia se manifestando, mas percebeu tarde demais. Uma labareda branca surgiu a sua frente e correu para os lados em segundos, prendendo-o no interior de uma nova armadilha.

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— ELKENS – ele gritou apavorado ao ver-se preso dentro das cha-chamas do antigo amigo. – SUA ALMA-PROTETORA! Enquanto gritava para Elkens, Meithel levantou seus dois braços pa-ra os lado, deixando-os paralelos ao chão, então concentrou-se em seu colar. Estava usando suas energias para tentar manter o fogo afasta-do dele, tentando impedir que o fogo se aproximasse e o queimasse em segundos. Nai-Peleguir, Elkens chamava com sua mente. Preciso da sua ajuda mais uma vez… Assim como tinham combinado, Kanoles deixou Laserin afastada da confusão e correu para frente, passando por Meithel, passando por Elkens, e procurando o esconderijo de Mudriack. Precisava distraí-lo enquanto Laserin se afastava sorrateiramente e procurava algum lu-gar onde pudesse ficar escondida. Mas a garota estava carregando o cristal, e Mudriack sabia disso. Como ele poderia ser distraído dela sendo que a coisa que ele mais queria estava em posse da garota? — Vai acontecer alguma coisa – Meithel preveniu os outros quando sentiu um lampejo de magia se manifestando. Mas não aconteceu na-da a eles. Nem a Meithel, nem a Elkens e tampouco a Kanoles, que procurava pelo Feiticeiro. Eles não eram o alvo, era Laserin. Eles ouviram os gritos assustados da garota, e no segundo seguinte ela corria de volta para eles. — NÃO, LASERIN – Meithel gritou. Não havia nada no fundo da caverna, mas ainda assim a garota corria assustada; Meithel sabia por que, afinal de contas era a especialidade de Mudriack. Ele próprio havia caído várias vezes naquele truque. ‒ NÃO SEI O QUE VOCÊ ESTÁ VENDO, MAS NÃO É REAL. É UMA ILUSÃO! Mas Laserin não lhe deu atenção. Seja lá qual for a ilusão de Mudri-ack, deixou a garota assustada o bastante para fazê-la correr em dire-

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ção ao perigo real. Laserin passou por Meithel, que estava preso nas chamas, passou por Elkens que estava completamente concentrado em sua alma-protetora, e foi buscar a proteção de Kanoles. — Ele irá atacá-los – Meithel advertiu mais uma vez – a qualquer momento… Mas antes que ele terminasse de dar seu aviso ficou provado que esta-va certo. Toda a caverna começou a tremer como se um grande terre-moto ameaçasse desmoronar o teto sobre eles. Meithel ficou apavora-do, mas precisou pensar apenas por um segundo para descobrir que a intenção de Mudriack não era matá-los soterrados. Isso dificultaria muito que o Feiticeiro encontrasse o cristal sob as pedras. Não era a alternativa mais sábia para matá-los e Mudriack com certeza sabia disso. Luzes alvas envolveram as paredes dos dois lados e em instantes vá-rias pedras foram arrancadas. A perfeição do feitiço de Mudriack dei-xou Meithel assustado. Cada pedra foi escolhida com cuidado antes de ser arrancada, pois arrancar a pedra errada poderia resultar num desmoronamento. Mas isso não aconteceu. Mudriack estava domi-nando a magia com tamanha facilidade que Meithel chegava a sentir inveja. Os dois sempre competiram um com o outro, e Meithel prevale-cia em apenas metade das vezes. Eram bons rivais, sempre igualados, equilibrados, mas Meithel duvidou que pudesse realizar aquele feitiço tão bem quanto Mudriack. Com certeza derrubaria a montanha sobre eles caso tentasse fazer. Ficou obvio assim que o poder que concede-ram ao seu amigo não era pequeno. Realmente só podia ser coisa dos Cavaleiros da Magia, não havia mais dúvidas. Mas as novas habilidades de Mudriack surpreenderam Meithel ainda mais quando ele viu o que aconteceu a seguir. As pedras arrancadas passaram a se juntar; este feitiço era um dos passatempos do Feiticei-

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ro, mas em proporções muito menores. Meithel jamais havia visto ele fazer algo semelhante e sabia que ele não era capaz disso até alguns dias atrás. As pedras se aproximaram uma das outras, como se fossem carregadas por mãos invisíveis, e logo havia três estátuas de pedra em pé diante deles. Três estátuas de pedra enormes! As estátuas ficaram lado a lado, bloqueando o caminho. Sem se des-concentrar de Nai-Peleguir enquanto a guiava até eles, Elkens tocou seu colar e conjurou o turbilhão de esferas. Dezenas de esferas rubras giraram num grande turbilhão, então avançaram contra as estátuas. Houve uma sucessão de explosões que abalou as estruturas da Monal-tag, mas as estátuas nada sofreram. — Não adianta atacar as estátuas – disse Meithel de dentro das chamas. – É preciso atacar a fonte da magia. Mudriack não pode es-tar muito longe. — Aquele desgraçado… ‒ sussurrou Kanoles irritado, percebendo a simples engenhosidade do plano. Para derrotar as estátuas era neces-sário derrotar Mudriack, mas para derrotá-lo precisavam primeiro passar pelas malditas estátuas. Às vezes o melhor meio de nos defendermos é atacando, Elkens ouvia em sua mente o conselho dado por Kalimuns. Mais uma verdade, co-mo sempre. E ironicamente era Mudriack quem estava provando a Elkens que o conselho de seu tutor era verdadeiro. Ele próprio estava fazendo isso. As estátuas eram para atacar sim, e eram fortes, mas o objetivo principal de Mudriack ao conjurá-las era garantir a sua pro-teção. Ele não era um adversário comum, Elkens admitia isso. Era in-teligente, muito inteligente. O resgate de Mifitrin seria mais difícil do que eles imaginavam. Lado a lado, as três estátuas ocupavam todo o espaço à frente, impe-dindo que qualquer um passasse por elas. Quatro metros de altura,

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talvez mais. Aos olhos dos outros, uma muralha viva, embora essa visão não se aplique à Elkens. Só há magia ali, nada de vida. É um feitiço como qualquer outro. Mas não mudava o fato de ser pratica-mente irracional tentar passar por elas e chegar até Mudriack. Por al-guns segundos as três estátuas ficaram imóveis lado a lado, como se pretendessem apenas bloquear o caminho. Mas apenas por alguns se-gundos… Logo avançaram contra Elkens, Kanoles e Laserin fazendo a caverna tremer. Cada passo era um novo tremor. Como ele conseguiu tanto poder em tão pouco tempo? Meithel não conseguia compreender. Não entendia que motivo seria forte o bastan-te para fazer seu grande amigo se voltar contra todos os seus princí-pios de uma hora para outra. Se Meithel não estivesse nesse exato momento gastando suas energias para impedir que Mudriack o quei-masse vivo, ele mesmo não acreditaria no que estava vendo. Mas Mu-driack estava tentando matá-lo e isso mudava completamente as coi-sas. Meithel e Mudriack, os eternos amigos, agora eram inimigos mor-tais. Não eram mais rivais, como sempre foram, eram inimigos, e isso é uma grande diferença. O Feiticeiro sempre foi muito ganancioso por poder, mas igualmente incapaz de prejudicar os outros para conseguir qualquer coisa. Sempre quis conquistar o poder que sempre desejou com treinamento duro. Então a promessa de poder não era o verdadei-ro motivo por trás daquela mudança, Meithel tinha certeza disso. Mas então o que era? Que motivo era forte o bastante? Ou não havia motivo? Meithel estava incapacitado de ajudar seus amigos. Qualquer magia que lançasse seria queimada antes de atravessar as chamas brancas, embora estivesse usando todas as suas forças para manter as chamas afastadas de si próprio que nem conseguiria realizar feitiço algum.

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Não podendo deixar Kanoles enfrentar as estátuas sozinho, Elkens se viu obrigado a desistir de Nai-Peleguir. Precisavam de sua alma-protetora, mas Kanoles estava precisando da sua ajuda nesse exato momento. Teria de parar de guiar Nai-Peleguir até onde estavam e fez isso. Não tinha tempo para invocá-la. — QUAL O PONTO FRACO DAS ESTÁTUAS? – ele gritou para Meithel, que estava muito atrás deles. — AINDA NÃO SEI. MAS SE VOCÊ DERROTAR MUDRIACK O FEITIÇO ACABARÁ! Não tenho outra escolha, pensou o Sacerdote da Alma. Tenho que passar pelas estátuas e encontrar Mudriack. Enquanto se preparava para correr, seu corpo se enchia de adrenalina, o que também fazia su-as pernas pararem de tremer. Viu as estátuas correndo em sua direção ainda fazendo com que a caverna tremesse a cada passo e se pergun-tou se teria coragem para tal feito. Mas afinal de contas estava ali parado, e elas chegariam até ele em alguns segundos. Qual seria a dife-rença se corresse ao encontro delas? E o mais importante: Isso é pela Mifitrin. — Somos mais rápidos que elas – Kanoles observou. Havia compre-endido o plano de Elkens, mesmo sem trocarem palavra alguma sobre isso. Laserin estava atrás do caçador de recompensas, como se isso fos-se o suficiente para protegê-la das estátuas. Sangrini estava na mão do homem, seu brilho frio e mortal desafiando o perigo. As sombras dançavam nas paredes da caverna, acompanhando o movimento do Fogo da Magia. ‒ Afaste-se Laserin – ele disse. – Tenho um plano. Elkens olhou para Kanoles. A confiança inabalável do caçador de re-compensas de alguma forma lhe dizia que aquilo era possível, que po-deriam salvar Mifitrin.

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— Finja que vai voltar com Laserin – Elkens ouvia o plano com atenção, sabendo que havia poucos segundos antes de serem atacados. ‒ Eu vou tentar passar por elas pelo lado esquerdo. Quando elas vie-rem para me pegar e abrirem uma brecha, você passa pelo lado direito e vai em frente. — É arriscado. Não poderá escapar de três delas… — Vai dar certo. Eu já te disse: somos mais rápidos… Mas não havia tempo para pensar em outro plano. Estava decidido. Não havia tempo para perguntas. Não havia tempo para discordar. Só havia tempo para agir. E assim fizeram. Laserin correu para trás, afastando-se do perigo mais uma vez. El-kens correu ao seu lado, como se fosse protegê-la. Kanoles correu de encontro às estátuas. A primeira tentou esmagá-lo, mas Kanoles esta-va certo: ele era mais rápido. A pesada mão de pedra atingiu o chão, abrindo uma pequena cratera. A segunda quase o pegou, mas ele se jo-gou no chão e rolou para o lado. Duas tentativas de esmagá-lo nova-mente, mas no chão, rolou para a direita, depois para a esquerda e por fim ficou em pé, ainda ileso. As estátuas não eram páreas para o re-flexo e a velocidade do caçador de recompensas. Após poucos ataques mal-sucedidos, a primeira falha do feitiço de Mudriack ficou clara: a falta de inteligência das estátuas. As três estátuas atacavam Kanoles ferozmente, mas nem perceberam que haviam deixado uma brecha, uma brecha para a qual Elkens cor-ria na esperança de passar por elas e encontrar a fonte do feitiço: Mudriack. E o plano funcionou. Elkens passou ileso pelas estátuas. A muralha viva de Mudriack foi ultrapassada. Seu plano perfeito que garantiria a sua proteção foi quebrado. Elkens correu o mais rápido que pôde. Seguiu em frente com o único objetivo de ver o Feiticeiro da Magia em pé diante dele, tão concentrado nas estátuas e no Fogo da

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Magia que não ofereceria qualquer resistência. Elkens o derrotaria num segundo, com um único ataque, então libertaria Mifitrin que es-taria amarrada ao seu lado, a ajudaria a ficar em pé, olharia em seus olhos e descobriria o que tanto precisa lhe dizer. Estava preparado para isso. Correu o mais rápido que pôde, cada vez mais rápido. Via sua sombra dançar nas paredes da caverna e conti-nuava correndo. Correu mais um pouco até que finalmente se conven-ceu: — ELE NÃO ESTÁ AQUI! Então parou de correr. Toda a sua esperança murchou com seu grito que ecoou pela caverna. Droga, ele não está aqui. Ela não está aqui.

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Ele não pode estar longe, pensou Meithel com raiva. Não havia co-mo Mudriack estar tão forte a ponto de controlar suas marionetes de longe. Ele tem que estar em algum lugar. Deve estar escondido, talvez invisível ou camuflado, mas sei que este fogo não ofereceria tanta re-sistência se ele estivesse longe. Ele tem que estar por perto… Mas Meithel estava tão focado nas novas habilidades de seu amigo, tão surpreso com o quanto ele se tornou forte em tão pouco tempo que deixou de perceber algo óbvio. Na verdade era tão óbvio que chegava a ser ridículo. Ele estava tão convencido de que Mudriack não comete-ria erros que deixou de perceber o erro mais ordinário que ele poderia ter cometido. A falha do plano de Mudriack estava dançando na cara de Meithel, literalmente. O Fogo da Magia, sua principal arma e pro-vavelmente o que colocaria tudo a perder. O feitiço de Mudriack ser-viria para alguma coisa no fim das contas. — ELKENS – Meithel gritou, estupefato por não ter enxergado aquilo antes. – VOLTE. AGORA! Elkens não respondeu de imediato, não teve qualquer reação. Estava tão desapontado por não ter encontrado Mudriack ali que chegou a perder as esperanças por um momento. — O FOGO DA MAGIA – Meithel voltou a gritar. – NENHUMA MAGIA PODE ATRAVESSÁ-LO, NÃO IMPORTA DE QUE LADO VENHA. E assim Elkens compreendeu, vendo que realmente tudo fazia senti-do. E o feitiço volta contra o feiticeiro. Não precisava ter ido para tão longe das estátuas. Não precisava ter ido tão longe de Meithel. Era para lá que ele precisava voltar. E ele começou a correr. Quando che-gou perto das estátuas, Kanoles estava tendo dificuldades para se desviar de seus contínuos golpes. Ele ainda era mais rápido, disso não havia dúvidas, mas, diferente dele, as estátuas não se cansavam. Ka-

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noles estava exausto. Mas Elkens sorria enquanto assistia a cena, pois já havia aprendido a usar as falhas de Mudriack a seu favor. As estátuas não tinham inteligência, apenas existiam para esmagar qual-quer coisa que se mexesse diante delas. Enunciando um feitiço em voz alta há mais facilidade para executá-lo, por isso Elkens gritou o que tinha em mente enquanto focava sua atenção em Kanoles: — REFLEXOS DA ALMA! Então várias pessoas surgiram na caverna, todas ao mesmo tempo. Pessoas que andavam calmamente pela caverna, que iam e vinham, corriam, ou simplesmente ficavam paradas. Homens, mulheres, crian-ças, inclusive feras, todas as imagens desapareciam e reapareciam, preenchendo todo o espaço vago pela caverna. Isso confundiu as está-tuas e elas atacavam tudo o que viam. Mas eram apenas reflexos da alma de Kanoles. Vidas passadas. Fantasmas. Não havia como feri-las, pois não havia nada para ferir. Eram apenas imagens, ilusões, nada mais que isso. Mas ainda assim as estátuas continuavam ata-cando, o que permitiu que Kanoles se afastasse delas e se juntasse a Elkens. Quando estavam há certa distância delas, Elkens cancelou seu feitiço, o que fez com que as muralhas vivas de Mudriack avan-çassem contra eles mais uma vez, seguindo o instinto de esmagar tudo o que se movesse. A caverna tremia novamente. — Afaste-se de Meithel, Laserin – disse Kanoles para a garota. Ele já havia compreendido o plano, mesmo sem Elkens ter dito nada. – Agora Elkens e eu seremos as iscas. Laserin obedeceu e, de longe, assistiu quando as estátuas finalmente alcançaram os dois homens, que estavam apenas alguns passos a fren-te de Meithel que continuava preso no interior do Fogo da Magia. Uma das estátuas atacou Kanoles e este se jogou para o lado, rolando pelo chão. O braço da estátua não atingiu nada, mas atravessou o Fo-

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go da Magia de Mudriack. Assim que passou pelo fogo, a magia que fazia o braço se mover foi queimada. Primeiro o fogo aumentou como se alguém jogasse combustível sobre ele, mas no segundo seguinte o braço da estátua se desmanchou em dezenas de pedras soltas. Meithel se agachou para não ser atingido pelas pedras que passavam veloz-mente sobre sua cabeça. O plano estava funcionando. A estátua estava sem um braço, mas ainda tinha o outro. Elkens es-tava parado bem a sua frente, então ela o atacou; o outro braço pas-sou pelo fogo assim como o primeiro, comprovando que elas realmente não tinham inteligência alguma. Cada vez que parte das estátuas pas-sava pelo fogo, ele crepitava enquanto queimava a magia, e mais pe-dras soltas se espalhavam pelo chão. E a medida que mais magia ia sendo queimada, o fogo diminuía cada vez mais seu tamanho. Logo as três estátuas foram completamente queimadas, deixando ape-nas montes de pedras soltas espalhadas pelo chão. Haviam derrotado as estátuas e o fogo que envolvia Meithel estava consideravelmente mais fraco. Embora ainda estivesse preso, ele sorriu. — Acabo de perceber como posso escapar daqui. Agora que não havia mais perigo, Laserin voltou para perto do grupo, embora Elkens nem tivesse percebido. Ele estava olhando para Meithel, pois o amigo ainda continuava preso pelo Fogo da Magia. Meithel sorria, mas Elkens não conseguia entender por quê. — Mudriack pode ter aprendido a usar o Fogo da Magia trapacean-do – disse o Sacerdote explicando-se ‒ mas ele não o domina. Reparem como o fogo enfraqueceu depois de ter queimado toda a magia das es-tátuas. Se fizermos com que ele queime mais magia, irá enfraquecer cada vez mais, até que desapareça completamente. — E o que pretende fazer? – Elkens ainda não compreendia. – O fo-go diminuiu sim, isso é verdade, mas muito pouco. Se quer fazê-lo en-

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fraquecer com a magia que nos resta tudo bem, mas não podemos fi-car o dia todo aqui. Se ficarmos lançando magia para o fogo até que ele se apague Mudriack terá tempo de sobra para nos armar uma nova armadilha. Precisamos resgatar Mifitrin! Mas Meithel já havia pensado nisso. Ele não respondeu a pergunta de Elkens com palavras, pelo contrário, resolveu mostrar. — Laserin – ele chamou. – Pegue o seu cristal. — O que pretende fazer? – Elkens estava receoso. — Não precisa se preocupar, Elkens. O que está me cercando é um Fogo da Magia imperfeito, conjurado por um mero Feiticeiro. Ele ainda não é um Mago. O cristal de Laserin é parte de um das relíquias da Magia mais poderosas. O fogo de Mudriack jamais será forte o su-ficiente para queimar uma relíquia. Laserin tirou o cristal de dentro da bolsa de couro e, hesitante, levou-o em direção ao Fogo da Magia. — Cuidado – Elkens a advertiu. – Agora sabemos que você pode se queimar. Mas ela sabia disso e não precisava de avisos. A queimadura em seu braço ainda ardia. Quando o cristal tocou as chamas, houve uma ex-plosão. As labaredas brancas ganharam uma força incrível, elevando-se até o teto da caverna. Mas foi apenas momentâneo. Não durou mais que dez segundos e o fogo se consumiu. Meithel estava livre e Laserin constatou, feliz, que seu cristal não havia sofrido nada. Es-tava intacto. Passaram pela primeira armadilha de Mudriack.

Novamente as lembranças.

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— Você teve um excelente progresso enquanto estive fora – Ka-limuns lhe dizia, depois de semanas ausente dos Domínios da Alma. ‒ Aprendeu a sentir as almas em um nível que eu jamais acreditaria que você pudesse atingir tão cedo. Já pode senti-las, saber quantas são e onde estão, sabe quando estão precisando de você, sabe de suas neces-sidades e pode sentir os seus sentimentos quando elas assim permitem. Você será um Sacerdote da Alma um dia, por isso a capacidade de sen-tir a essência das almas como você sente agora é um grande passo para atingir seu objetivo. Por isso digo que estou muito orgulhoso em te dar mais um pingente para seu colar de Aprendiz. Agora sim um elogio que ele realmente apreciava. Um elogio de Ka-limuns, após tantas e tantas semanas sem sequer ouvir sua voz. Esta-va na presença de seu tutor apenas há dez minutos e já se sentia com-pensado pelas semanas que foi deixado sozinho, treinando sob a su-pervisão de protetores que mal conhecia. Mas sua alegria por ter ganhado mais um pingente superava qualquer coisa. Estava mais perto de se tornar um Sacerdote; com nove pingen-tes em seu colar de Aprendiz e estaria a um passo de subir na hierar-quia dos protetores. Kalimuns deu à Elkens o resto do dia de folga. Ele aproveitou esse ra-ro momento para ficar no Bosque da Alma, onde havia muitas almas voando e ele gostava muito disso. Lana estava lá também, e passaram o dia todo conversando e olhando as almas que passavam voando por eles. Sua alegria por ter conquistado mais um pingente era contagian-te, e até as almas podiam sentir sua alegria. Elas voavam graciosa-mente, como se estivessem se exibindo ou quisessem chamar sua aten-ção. Almas costumam sentir sentimentos bons e são atraídas por eles. Elkens sabia disso, é claro.

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Os dias estavam passando rápidos. Com os recentes progressos, os treinamentos de Elkens haviam mudado completamente. Estavam mais exaustivos, mais complexos, e exigiam o máximo da sua energia e concentração. Finalmente seu treinamento estava sendo focado para se tornar um Sacerdote. Mesmo após o dia todo treinando e estudan-do, Kalimuns lhe passava tarefas, assim ele passava horas da noite pesquisando pergaminhos antigos. Estudava a língua ancestral, a his-tória de Gardwen, ciclos de vida, rituais, feitiços, simbologia… Um mês passou voando sem que ele percebesse. Estava tão sobrecarregado de treinamentos e tarefas a fazer que nem conseguia contar os dias passando. Ao fim deste primeiro mês de treinamento intenso, Elkens ganhou mais uma tarde de folga. Mas desta vez não iria desperdiçá-la conversando com Lana, iria pôr em prática tudo o que havia aprendi-do, fosse através de Kalimuns ou estudando sozinho. Havia aprendi-do muitas coisas novas e interessantes. Precisava praticar. Mais uma vez foi para o Bosque da Alma, agora sozinho. Concen-trou-se e, com a mente, localizou a alma mais próxima. Então focou sua atenção nela e tentou atraí-la para ele, como os caçadores de al-mas lhe haviam ensinado a fazer. A sua frente havia um pergaminho desenrolado, e um livro aberto ao lado deste. O pergaminho listava um ritual que havia descoberto por acaso na biblioteca do Santuário Ru-bi, e o livro listava uma série de feitiços. Ele estava sentado no chão, com as pernas cruzadas, e havia distribuído à sua volta três pergami-nhos, cada um contendo um único símbolo da língua ancestral. Esta-va no meio de um círculo formado pelos três pergaminhos. Aquele cír-culo seria o campo de ação do ritual que pretendia praticar. Enfim conseguiu atrair a alma para ele. Quando ela penetrou no cír-culo até então oculto, Elkens gritou:

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— SI – o primeiro dos três pergaminhos brilhou. ‒ Eti – o segundo também brilhou. – Noemi! O ritual foi ativado. Os três pergaminhos passaram a brilhar e forma-ram um círculo de luz. O ritual da prisão de almas. A alma que Elkens atraiu se assustou e tentou voar para longe, mas não conseguiu atra-vessar o círculo de luz. Estava presa. Então Elkens olhou para o livro aberto ao seu lado e executou mentalmente o primeiro de uma série de feitiços. A alma, que voava assustada e continuava tentando fugir, aquietou-se. Ficou pairando no ar calmamente, como se tivesse perdi-do todo o medo. Mas na verdade estava apenas hipnotizada. Alter-nando entre as instruções do livro e do pergaminho, Elkens prosseguiu com os feitiços, hora verbais, hora mentais, hora com auxílio de símbo-los ou de algum artefato. Logo estava pronto para entrar na mente da alma. Quando o fez, Elkens sentiu-se como se estivesse deixando seu corpo para trás. Estava nas lembranças da alma, viajando por lembranças de todas as suas vidas passadas. Estava em Gardwen! Não fisica-mente, mas era quase isso. Passou sua vida toda imaginando como era Gardwen, apenas pelos relatos de seus amigos que iam e vinham, mas agora ele podia ver com os seus próprios olhos. Na verdade não era com os seus olhos, e sim com os olhos da alma. Via tudo do ponto de vista de suas vidas passadas, seres que podiam ter vivido há dezenas ou centenas de anos. Mas Elkens estava vendo e era isso que impor-tava. Mergulhou em rios, sobrevoou montanhas, caminhou por cidades e florestas, se perdeu na escuridão de cavernas, percorreu por estradas e esteve inclusive dentro de Domínios de algum Elemento. Conheceu pessoas, viu animais, sentiu cheiros de flores e perfumes, ouviu vozes e canções, sentiu paladares doces, salgados e até mesmo o gosto de san-

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gue. Entendeu o que é o instinto de um animal quando se viu preso dentro de um, sentiu medo quando era a presa e um desejo assassino quando era o predador. Viveu em pequenos vilarejos e em cada uma das doze Grandes Cidades; tocou outras pessoas, tantas pessoas que agora estavam mortas, mas que tiveram uma vida, uma história. Viu-se na vida de um fazendeiro, preocupado com seus afazeres do campo, plantando e colhendo, cuidando de gado, e voltando para uma casa aconchegante após cada dia de serviço sob um sol árduo. Viu-se na vi-da de um guerreiro, treinando com espadas, protegendo aqueles que amava, partindo para uma guerra da qual não voltaria, acabando tu-do com uma lâmina cortando-lhe o pescoço no meio da batalha. Os sentimentos afloravam-lhe com tal intensidade… raiva, amor, ansie-dade, frustração, saudade, alegria, tristeza, dor, tudo era tão real. Viu vidas inteiras e enxergou cada canto de Gardwen. Foi criança, foi adulto, foi idoso, foi cervo, foi falcão, foi inclusive criaturas que des-conhecia. Os sentimentos que sentia da alma se sobressaiam sobre os seus. Estava contente por estar vendo Gardwen de maneira tão real, pelas memórias de uma alma, mas não conseguia sentir-se contente todo o tempo, pois sentia o que a alma sentia, assim como via o que ela via e pensava o que ela pensava. Sentiu alegria ao ver crianças brincando, flores desabrochando, pesso-as sorrindo para ele, dragões voando livres pelo céu e cavalos correndo por campos infinitos. Mas sentiu dor ao ver pessoas morrendo, pessoas que agora ele amava, mas que também não significavam nada para ele, afinal de contas jamais as conhecera. As emoções da alma estavam se misturando as suas, e ele sentia a sua dor. Lembranças tristes esta-vam aflorando e ele participava de todas elas, sofrendo com cada uma delas…

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Até que tudo acabou. Elkens sentiu algo puxando-o de volta para seu corpo. Num segundo estava ali, viajando pelas memórias da alma, no outro estava sentado no Bosque da alma, no interior de um círculo de luz. Estava de volta. — Ritual da prisão de almas – disse a voz de Kalimuns ao seu lado. Elkens reconheceu o tom frio na voz do tutor. ‒ E também o ritual da memória revelada. E você também atraiu esta alma até aqui, tudo muito bem feito, e a hipnotizou com um feitiço de Ynpteu. Realmente muito bem feito. Você demonstrou muita habilidade aqui Elkens, foi perfeito. Absolutamente perfeito ‒ mas o tom frio na voz de Ka-limuns indicava que algo não estava perfeito. ‒ Você executou feitiços que eu sequer tive tempo de lhe ensinar, suponho que deve ter apren-dido tudo sozinho durante suas pesquisas na biblioteca. — Sim senhor – Elkens concordou. Reparou que Kalimuns não ousa-va lhe encarar. Estava lhe evitando. — Usou simbologia – Kalimuns continuou. ‒ E também pergami-nhos especiais. Realmente perfeito Elkens. Perfeito para um usuário de magia com grandes poderes, um usuário de magia que aprende tudo muito rápido, que consegue elevar a concentração para estágios eleva-dos, que consegue balancear e equilibrar o uso simultâneo de vários feitiços. Realmente perfeito para um usuário de magia, mas não para um protetor. Elkens ficou desconcertado. Levantou-se do chão, deixando o livro e pergaminhos jogados. Kalimuns apontou para a alma que Elkens ha-via aprisionado, então finalmente ele compreendeu. Ela estava tre-mendo, algo que nunca viu. Se contorcia, como se estivesse sentindo dor. Mesmo hipnotizada parecia desesperada para se livrar de todos os feitiços que foram lançados sobre ela e voar para longe. E o pior de tudo: estava gritando!

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Esta visão cortou o coração de Elkens. Ele se desconcentrou de to-dos os feitiços e rituais que estava executando. O círculo de luz do ri-tual da prisão de almas se desfez e a alma conseguiu fugir, batendo desesperadamente suas asas. — Eu não havia percebido… ‒ disse Elkens chocado com o que ele próprio fez. ‒ Ela estava sofrendo! — Você me desapontou Elkens. Deixou que seu desejo de conhecer Gardwen se sobressaísse sobre suas obrigações como protetor da Alma. Obrigou uma alma a reviver suas vidas passadas, mesmo contra sua vontade. Você a obrigou a reviver seus medos, suas dores, tudo isso sem seu consentimento. Por isso digo que você não está pronto para conhecer Gardwen. Não está preparado, não ainda. Elkens estava chorando silenciosamente. Não pelas palavras de desa-pontamento de Kalimuns, nem por seu tom de voz frio, mas pelo fato de ter feito uma alma sofrer. Jamais quis fazer aquilo, queria apenas conhecer Gardwen. — Eu sinto muito… — Sentir muito não é o bastante – finalmente Kalimuns olhou para ele. Encarar o desapontamento nos olhos do tutor foi terrível, a pri-meira vez que Elkens o desapontou, que o fez desacreditar nele. ‒ Eu te dei seu último pingente porque acreditei que você havia aprendido a sentir a essência de uma alma, aprendido a compreender os sentimen-tos de uma alma e aprendido a respeitá-las como realmente merecem. Mas me enganei. Você provocou sofrimento em uma alma e foi inca-paz de perceber isso, e ela estava bem na sua frente; você estava den-tro dela e sequer percebeu que ela estava sofrendo. Percebo agora que me enganei profundamente. Foi um erro te dar este pingente, pois ainda não entendeu o que uma alma simboliza, ainda não aprendeu a

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sentir a essência de uma alma ‒ ele estendeu a mão e pediu: ‒ Me devolva um pingente, Elkens. Elkens o encarou por um breve instante, como se achasse que Ka-limuns fosse reconsiderar. Mas seu tutor não mudou de expressão. To-do o desapontamento ainda estava ali. Elkens levou a mão ao colar e retirou dali o último pingente que havia ganhado com seus esforços. Então o entregou a Kalimuns e ele partiu. Elkens havia perdido um pingente. Uma das piores experiências que viveu durante seu aprendizado que ainda estava incompleto. Havia perdido um pingente e isso foi doloroso. Por que estou me lembrando disso?, ele se perguntava. Não conseguia compreender. Essas lembranças não faziam o menor sentido, mas in-sistiam em invadir a sua mente a todo instante. Por quê? Havia uma nascente que brotava das pedras incrustadas na parede da caverna. Águas cristalinas brotavam dali e formavam um pequeno ri-acho que, neste momento, corria ao lado deles. — Estamos perto agora – disse Meithel. Kanoles o encarou e perguntou: — Perto de onde? — Olhe – ele respondeu enquanto apontava para a nascente. – Es-tamos perto da saída. Eles haviam retomado a mesma formação. Elkens corria à frente, ain-da desesperado em encontrar Mifitrin; Meithel logo atrás e Kanoles e Laserin por último. Mantinham a formação para não correrem o risco de serem aprisionados juntos no Fogo da Magia, mesmo isso não sen-do mais necessário. Já haviam descoberto a falha do feitiço; com o cristal de Laserin, Mudriack não poderia mais prendê-los.

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Elkens levava constantemente a mão até o colar de Morton que Mi-fitrin havia deixado cair no chão da caverna. Era a única coisa que ele tinha dela. De início ele achou que o colar havia sido deixado como uma pista, mas isso não era verdade. Não precisavam de pistas dentro da caverna, pois só havia um caminho por onde seguir. Mifitrin havia deixado o colar para protegê-lo de Mudriack. O colar de Morton era especial; era um dos colares ancestrais, Elkens sabia disso. O colar an-cestral da proteção; apesar de sua proteção não funcionar mais desde a morte de seu dono, o colar ainda era valioso demais para cair em mãos erradas. Mifitrin queria apenas proteger uma lembrança de Morton, aquilo não era uma pista como ele bem sabia. Mas estava contente por estar com ele. Sentia-se mais próximo dela. Meithel ainda mantinha uma fraca luz acesa com seu colar, para ilu-minar o caminho sempre escuro. Mas não ousava usar uma luz muito forte para não denunciar sua localização. O Fogo da Magia não era mais obstáculo para eles. Mudriack teria de pensar em um plano novo, mas Meithel sabia que ele era perfeitamente capaz disso. Os dois ami-gos sempre foram estrategistas, sempre foram muito bons nisso. Com toda certeza o Feiticeiro já tinha uma nova estratégia para confrontá-los. O riacho ainda corria ao lado deles. Andaram mais alguns passos e a luz de Meithel revelou que o chão desaparecia de repente. Estavam no alto de um paredão de pedra. Olhando para baixo, eram incapazes de enxergar o chão que estava vinte metros ou mais abaixo deles. O ria-cho caía pelo paredão e formava uma pequena cachoeira que, inexpli-cavelmente, desaparecia a meia altura do chão. — O que é isso? – Kanoles perguntou. A surpresa que teve em ver aquilo fez seus pêlos da nuca ficarem em pé. Até mesmo ele, que ainda não era capaz de entender perfeitamente a magia, percebeu que havia

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algo de errado ali. A água continuava caindo, mas desaparecia mis-teriosamente na metade do paredão sem deixar vestígios. ‒ Isso é coisa do Mudriack, não é? Meithel não respondeu; ainda estava abismado com o que via. Aque-las águas vinham de dentro dos Domínios da Magia, e eram trazidas para a montanha com o único objetivo de manter o portal para os Domínios aberto. As águas da nascente deveriam correr até o lago Lushizar, levando magia consigo. Mas se a magia não está chegando até o lago, pensou Meithel, o portal é fechado. É por isso que não con-segui entrar… Mas não era verdade e ele não tardou em perceber. Aquele riacho es-tava levando magia para o lago Lushizar há centenas de anos. Mesmo que essa magia seja bloqueada, o lago está tão carregado de magia que poderia manter o portal aberto por meses, talvez anos. E além disso, os outros quatro portais paralelos espalhados por toda Gardwen que davam acesso aos Domínios da Magia também estavam trancados, e nenhum deles dependia da magia que chegava ao lago através do ria-cho. Realmente há algo estranho no que Meithel estava vendo diante dele, mas este não era o motivo por estar preso do lado de fora de sua casa. Os portais foram trancados por dentro de alguma forma, todos eles. Independente do riacho correr para o lago ou não, os portais con-tinuam trancados. — Meithel – Elkens chamou ao seu lado, livrando-o de seus pensa-mentos. Os dois Sacerdotes estavam próximos, já sem medo do Fogo da Magia. ‒ O que aconteceu? — Nada – respondeu o Sacerdote da Magia desviando os olhos da cachoeira que desaparecia misteriosamente. ‒ Vamos continuar. É por ali.

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Meithel estava apontando para o canto direito do paredão, onde El-kens encontrou uma escada esculpida na própria pedra da montanha. Por ali todos eles desceram. Quando chegaram ao fundo do poço, Meithel olhou uma última vez para a cachoeira antes de prosseguirem. Aquilo merecia ser investiga-do, mas no momento a prioridade era salvar Mifitrin e chegarem ao lago Lushizar, por isso seguiram em frente. Após o recente sucesso sobre Mudriack, a tensão do grupo diminuiu. Mesmo ainda estando sujeitos a caírem em uma nova armadilha, to-dos estavam mais calmos. Laserin chegou inclusive a cantarolar uma das canções que aprendera no vilarejo Rismã, e Elkens apreciou a can-ção por uns segundos, mas logo começou a cantar junto com a garota. Precisava animá-la, dar a ela a sensação de que tudo estava bem, mesmo que não estivesse. Sabia o quanto ela estava com medo e tam-bém sabia o quanto ela tentava não demonstrar esse medo. Cantar com ela foi a forma mais fácil que encontrou para tranqüilizá-la, para tirá-la um pouco daquela possibilidade de serem atacados a qualquer momento. Estavam em perigo, isso com certeza, mas Elkens e Meithel lidariam com isso. Laserin não precisava ficar tão atemorizada quan-to estava, já havia passado por muita coisa em poucos dias. — É a sua preferida, não é? – Elkens perguntou a ela quando termi-naram a canção. — É – ela concordou com um sorriso. – Eu costumava cantá-la com Baldor quando andávamos pelo bosque. Como sabe disso? Elkens riu e respondeu: — Já ouvi você cantá-la tantas vezes que até aprendi. Mas mesmo da primeira vez em que ouvi você cantando pude perceber que seu tom de voz fica mais alegre com essa música que com outras. Músicas nos trazem lembranças…

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Laserin apenas concordou com um sorriso e um aceno de cabeça. Já estavam dentro da montanha por quase duas horas. Não podiam estar muito longe da saída. O lago estava perto agora, muito perto. Alguma coisa devia ter acontecido com Mudriack, pois estava se esgo-tando o tempo para ele pegá-los em uma nova armadilha. Vamos lá, Mudriack, Meithel pensava enquanto caminhavam. Sei que você pode fazer mais que isso. Se sairmos desta caverna suas chances de nos emboscar serão quase nulas. Vamos lá, meu amigo, me mostre do que é capaz. Nossa última competição… De repente Kanoles segurou o braço de Meithel e o obrigou a parar de andar. Elkens e Laserin já estavam parados quando ele se livrou de seus pensamentos. O Sacerdote da Magia se virou para perguntar o que estava acontecendo, mas não disse nada ao ver Kanoles tocando os lábios com um dos dedos, pedindo silêncio. — Diminua sua luz – Kanoles pediu num sussurro. – Lentamente… Meithel obedeceu, mesmo sem ainda saber o que estava acontecendo. O caçador de recompensas apontou para a frente com um dedo; mesmo sem ter dito nada, Meithel entendeu o que ele queria dizer: Há alguém ali. Meithel sentiu uma forma de alegria em seu peito, mesmo apesar do medo crescente. Quando perderam Mifitrin, acreditava que haviam perdido os olhos e os ouvidos que sempre percebiam o perigo a tempo. Era ela quem os alertava, era ela quem estava sempre atenta, eram seus sentidos apurados e a confiança de que ela perceberia qualquer perigo que os mantinha calmos na jornada. Quando perderam Mifi-trin, um medo se instalou dentro de cada um deles, mas agora Meithel percebia que isso não era necessário. Kanoles estava com eles. Kano-les, um mero humano que carrega uma espada mágica cujos poderes nem conhece, um mero humano que, além de sua espada, não tem

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qualquer contato com a magia. Mas foi Kanoles, e não ele nem El-kens, foi Kanoles quem percebeu o perigo a tempo. Kanoles era os no-vos olhos e ouvidos do grupo. O caçador de recompensas podia ouvir a respiração de alguém que, pe-lo que parecia, estava completamente exausto. A respiração era des-compassada e acelerada. Soltando o braço de Meithel, segurou San-grini com as duas mãos e avançou cuidadosamente, fazendo sinal para que Meithel ficasse para trás com os outros. É um caçador de recompensas, Meithel pensou, e também um ladrão. Não precisa de luz, seus olhos conseguem enxergar onde os meus só enxergam a escuridão. Seus passos não faziam qualquer ruído, assim como todos os seus mo-vimentos. Parecia que ele nem respirava; realmente era um ladrão. Era bom no que fazia, era realmente bom. A caverna fez uma leve curva para o oeste, e quando Kanoles avançou mais alguns passos encontrou o que procurava. Lá de trás, todos puderam ouvir sua voz: — MIFITRIN? Droga, pensou Elkens quando as lembranças retornaram. Estou farto delas… Por que estou me lembrando dessas coisas? Mas não importava se queria que as lembranças desaparecessem, que fossem embora e deixassem de perturbá-lo. Elas eram muito reais e não saíam da sua cabeça. — Encontrei – dizia Kalimuns contente. Mais de um ano havia se passado desde que Elkens perdeu seu pingente, tempo suficiente para recuperá-lo, assim como recuperou a confiança e respeito de seu tutor. ‒ Encontrei uma alma disposta a ensiná-lo.

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Elkens não compreendeu. Seus treinamentos progrediam de forma tão rápida que Elkens se tornou destaque entre os Aprendizes de sua época. Todos reconheciam o quanto ele tinha talento para ser um Sa-cerdote, o quanto era capaz de aprender habilidades novas e de aper-feiçoá-las. Estava estudando feitiços aprimorados, que consistia na execução dos mesmos feitiços, mas em níveis de concentração mais ele-vados. Também já era capaz de elevar sua mente ao estágio máximo, de realizar rituais restritos a Sacerdotes, e de sentir a essência de uma alma na sua própria alma. Mas ainda faltava aprender uma coisa im-portante, algo que o impediria de se tornar um Sacerdote caso não aprendesse. Precisava aprender a se comunicar com almas, aprender a usar e entender a linguagem utilizada por elas. — Nai-Merian será sua alma-tutora – Kalimuns continuou, com um sorriso que ia de orelha a orelha. - Protetores da Alma não podem aprender apenas com outros protetores, precisam também aprender com outras almas. Todos precisamos ter uma alma-tutora, e Nai-Merian concordou em ser a sua. A partir de hoje irei dividir com Nai-Merian a obrigação de lecioná-lo e de torná-lo um Sacerdote. A alegria de Elkens era inimaginável. Iria treinar com uma alma, iria estudar com uma. Mas antes que pudesse aprender com Nai-Merian, precisava primeiro aprender uma das lições mais difíceis: a comunica-ção com almas. Essa era uma das habilidades que costumavam decidir a vida de um protetor pois, ou você aprende a se comunicar com al-mas, ou deixa de ser um protetor. Muitos já foram devolvidos às suas vidas humanas por não serem capazes de aprender a linguagem das almas, portanto essa era a hora da verdade para Elkens. Tudo o que viveu e aprendeu até então se resumia nisso: ou aprendia, ou teria de dizer adeus à tudo e todos que conhecia.

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Seus ensinamentos com Nai-Merian começaram na manhã seguinte. Conforme Kalimuns lhe disse, encontrou sua alma-tutora na clareira do Bosque da alma, onde cresciam os lírios brancos. Estava pousada sobre o galho seco de uma árvore morta no meio da clareira. Tinha a forma de uma grande águia; suas asas estavam abertas, e a distância entre suas pontas era maior que o tamanho de Elkens. A luz da qual era formada, que emanava de seu interior, era vermelho vivo, o que a deixava com a aparência de uma ave de fogo. Era encantadora. De início, comunicaram-se da única forma possível. Nai-Merian envi-ava imagens para a mente de Elkens , a única coisa que ele podia en-tender por enquanto. Ficou o dia todo sentado na clareira, tentando entender o que sua alma-tutora lhe dizia, mas foi se deitar sem qual-quer resultado. O segundo dia foi idêntico ao primeiro, assim como o terceiro dia. Uma semana se passou e tudo continuava como antes. Elkens não conseguia entender sequer uma palavra do que Nai-Merian dizia. Talvez tivesse que deixar de ser um protetor. Sua auto-confiança estava arruinada. Sempre teve tanta facilidade em aprender, em absorver o que Kalimuns lhe ensinava. Jamais teve tanta dificuldade em aprender algo, mas agora estava completamente desestimulado. Como posso aprender algo que não está nos livros?, ele se perguntava, deitado em sua cama dentro do Santuário Rubi. Não havia livros sobre a linguagem das almas, nem dicionários, porque não é uma linguagem sonora. Não há como se falar essa linguagem, pois ela é dita e ouvida com o coração. Como posso aprender com Nai-Merian se falamos línguas diferentes? É impossível… — Tenha paciência Elkens – dizia Kalimuns após mais um dia de treinamento sem qualquer resultado. – Você pode ouvir a voz dela em sua mente, não pode? Isso já é um começo. Você já consegue ouvi-la, só precisa aprender a entendê-la.

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Mas por mais que Elkens se irritasse ao final de cada dia, não havia como não gostar de suas aulas com Nai-Merian. O fato de estar o dia todo com uma alma o animava; gostava de estar na presença de sua alma-tutora, gostava muito. A segunda semana de treinamento começou. Elkens foi até a clareira onde os lírios cresciam, e lá encontrou sua mestra, a alma que se asse-melhava a um pássaro radiante de fogo. Elkens se sentou no chão da clareira e a aula começou. Ouviu a voz de Nai-Merian em sua mente; havia dito apenas uma palavra. Impossível, pensou, não sei o que você está dizendo. Mas então Nai-Merian lhe enviou uma imagem e ele compreendeu: Oceano, você está falando do oceano. E a aula prosse-guiu dessa maneira, o que deixou Elkens cheio de expectativas. Nai-Merian dizia uma palavra e enviava uma imagem para a mente de Elkens, traduzindo aquilo que havia dito. Elkens chegou para a aula do dia seguinte se recordando de todas as palavras aprendidas durante um dia inteiro. Dessa vez Nai-Merian passou a lhe enviar não imagens, mas sentimentos. Elkens aprendeu como se dizia saudade, amor, alegria… Ao final do dia Elkens já con-seguia entender frases inteiras que ela dizia. Após entender o básico, Nai-Merian passou a exigir mais de Elkens. Precisava fazer com que ele lhe entendesse, sem que ela precisasse lhe enviar imagens ou sentimentos que traduzissem cada palavra. Mas ela era uma alma; entendia a essência de Elkens assim como ele en-tendia a sua, e por isso soube o que iria motivá-lo a aprender: Gar-dwen. Todas as aulas agora eram como conversas sobre Gardwen. Nai-Merian dizia a Elkens tudo o que ele queria saber sobre o mundo de fora dos Domínios da Alma e ele precisava se esforçar para entender o que ela dizia. Suas aulas estavam mais prazerosas do que jamais fo-

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ram. Elkens estava sentindo tanto prazer em estudar com Nai-Merian que pediu à Kalimuns que suspendesse seus treinamentos por algum tempo, para que pudesse se dedicar exclusivamente à linguagem das almas. Treinava todos os dias sem qualquer descanso, treinou me-ses sem sequer um dia de folga. Sabia o quanto havia progredido mas queria aprender mais. Estar com Nai-Merian era a coisa mais preciosa para ele, nada lhe deixava tão feliz como conversar com ela e assim suas aulas prosseguiram. Elkens entendia Nai-Merian com perfeição. Mais da metade do aprendizado estava concluída; Elkens já sabia ouvir e entender, agora precisava ser capaz de dizer. Com Nai-Merian isso foi extremamente fácil, pois já havia uma ligação entre a alma e o Aprendiz, mas com outras almas não acontecia da mesma forma. Então Elkens recebeu uma tarefa de sua mestra: conversar com outras almas. Elkens deveria passar o tempo que for procurando por almas que quisessem conversar com ele e só voltaria à presença de Nai-Merian quando conseguisse fazer com que alguma alma o entendesse. Dias se passaram, semanas… Mas o desejo de Elkens por terminar aquela tarefa e voltar logo a lecionar com Nai-Merian o obrigou a se doar ao máximo à sua obrigação. Se esforçou além do que podia, até que finalmente conseguiu ter uma conversa com uma alma. Era Nai-Peleguir, a alma que viria a se tornar sua alma-protetora anos mais tarde. Nai-Peleguir foi a primeira alma com quem Elkens conseguiu se comunicar perfeitamente, à única exceção de sua alma-tutora. Deixando Nai-Peleguir, Elkens correu a toda velocidade pelo Bosque da alma, indo em direção à Nai-Merian. Quando chegou à clareira, fi-cou decepcionado em constatar que ela não estava lá. Só havia os lí-rios brancos na clareira, nada além disso. Elkens fechou os olhos e

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tentou concentrar-se nela, para descobrir onde estava e chamá-la até ali. Precisava vê-la, sentia falta dela… — Ela se foi – Kalimuns vinha entrando na clareira. Elkens abriu os olhos e encarou seu tutor, tentando entender do que ele estava falan-do. ‒ Nai-Merian se foi. Disse que você já aprendeu tudo o que ela podia lhe ensinar. E disse também que vai sentir sua falta. — Do que está falando? – perguntou Elkens confuso. – Para onde ela iria? Não poderia ter saído dos Domínios da Alma… — Ela reencarnou, Elkens – seu tutor revelou. ‒ Reencarnou em um novo corpo há três dias. Sinto muito por você, sei o quanto gostava dela, mas ela realmente se foi. E foi assim que Elkens teve a perca mais dolorosa de todas. Perdeu uma amiga, uma alma de quem gostava muito. Nai-Merian havia par-tido para sempre; provavelmente jamais voltaria a encontrá-la nesta vida. Havia perdido uma grande amiga, alguém com quem passou to-dos os seus dias durante os últimos meses. Ele devia ficar feliz, afinal de contas ela reencarnou. Toda alma está sujeita ao ciclo da vida: nas-cer, morrer e reencarnar. Um ciclo perfeito e ininterrupto. Mas felici-dade era a última coisa que podia sentir agora. Quando Nai-Merian se foi, sentiu como se tivesse perdido algo dele, uma parte que se foi e deixou apenas um vazio irremediável. Por que estou pensando nisso?, as lembranças não iam embora. Droga, só quero que essas lembranças parem… O coração de Elkens parecia que ia explodir. Passou as últimas horas correndo a frente do grupo, sempre querendo estar mais perto de Mifi-trin que os outros. Mas agora havia reencontrado sua líder, finalmen-te ela estava com eles, mais uma vez. Mas todos chegaram até ela, to-dos correram para vê-la e ele ficou ali, empacado. Viu quando Kanoles

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lhe estendeu a mão e a ajudou a se levantar. Viu seu rosto abatido quando Meithel aumentou a luz projetada do seu colar. Mas não sa-bia o que fazer. Passou tanto tempo pensando apenas em encontrá-la de novo para ter a chance de lhe dizer algo, mas agora que estava ali, diante dela, não sabia o que dizer. Percebeu que, apesar de querer muito dizer alguma coisa à Guerreira, não havia descoberto o que era. Não fazia a menor idéia do que queria lhe dizer. A única coisa que fez foi andar em sua direção. Quando se aproximou já estavam conver-sando sobre Mudriack. — Não sei onde ele está – ela dizia. – Ele estava muito concentrado enquanto atacava vocês, então aproveitei a oportunidade para fugir. Ele me atacou, mas não conseguiu me pegar a tempo. Elkens queria abraçá-la, mas sequer conseguiu perguntar como ela es-tava. Seu olhar se encontrou com o de Mifitrin por um segundo, mas o olhar dela passou por ele sem qualquer emoção, como se nem ao menos o tivesse visto. Isso seria comum no primeiro dia de jornada deles, mas isso mudou. Mifitrin reconhecia Elkens agora, não o enxergava ape-nas como um estorvo. O olhar que ela dirigia à ele não era mais esse olhar frio, indiferente, não era mais assim. Por que ela estava olhando assim para ele? Elkens não a reconhecia mais e ficou decepcionado por isso. De repente percebeu que talvez ele não significasse nada para ela, percebeu que, se ele tivesse sido raptado no lugar dela, ela talvez não sentisse nada do que ele sentiu. Mas milagrosamente toda a situação havia virado a favor deles. Ago-ra sabiam o ponto fraco do Fogo da Magia e Mudriack não tinha mais nenhum refém. Mudriack agora não representava mais uma ameaça tão grande. Mifitrin estava com eles agora.

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— Então agora podemos continuar nossa jornada para o lago Lus-hizar, não é? – dizia Kanoles. ‒ Aquele palhaço não vai mais nos atrapalhar. O que ele pode fazer? — Mas não devemos baixar a guarda – disse Meithel olhando para o caminho que ainda teriam de percorrer antes de saírem da caverna. ‒ Mudriack é esperto. Pode tentar nos enganar… — Você tem razão – Mifitrin concordou com Meithel. – Ele já pre-parou uma armadilha nova ‒ ela ficou de frente para Laserin, esten-deu a mão e pediu: ‒ Laserin, me dê o cristal. — Por quê? ‒ perguntou Meithel sem entender. — Porque ouvi Mudriack dizer que sua armadilha vai ser atraída pe-la própria magia. Acho que vai atacar quem estiver com o cristal. — Isso não faz sentido… — Mas eu não vou arriscar a segurança de Laserin. Vou ficar com o cristal até sairmos desta caverna. A garota entregou o cristal sem pensar duas vezes. Meithel iria retru-car, dizer que seria melhor ele ficar com o cristal ao invés dela, mas foi então que olhou para seu pescoço e viu algo: — O seu colar – disse surpreso. – Você conseguiu fugir de Mudriack e ainda recuperou seu colar? — É por isso que digo que o cristal vai ficar comigo – disse Mifitrin irritada, pondo um fim na discussão. — Então vamos voltar – disse Meithel fazendo o caminho de volta. — Não. A saída está logo a nossa frente. — Mas pelo o que você nos disse, Mudriack está nos esperando antes da saída. Se ele vai mesmo nos atacar, é melhor estarmos em um lugar mais espaçoso para podermos lutar. Temos que sair deste corredor apertado e voltarmos até o poço, onde está a cachoeira. Lá poderemos lutar com mais liberdade.

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Mifitrin pareceu contrariada, mas Meithel já estava voltando para o poço e ela não disse nada. Pensando bem, realmente o poço seria o melhor lugar para enfrentarem Mudriack. Se ele voltasse a conjurar aquelas estátuas de pedra, seriam esmagados em segundos num lugar tão apertado como o que estavam. Precisavam de mais espaço, por isso todos voltaram. Chegaram ao poço em quinze minutos e lá esperaram. Kanoles se sen-tou no primeiro degrau da escada de pedra que levava até o topo do paredão lá em cima, de onde a cachoeira caía e desaparecia na metade. Laserin se sentou com ele enquanto Mifitrin, Elkens e Meithel discu-tiam estratégias de defesa. Meithel conhecia Mudriack muito bem, por isso foi capaz de elaborar treze tipos diferentes de armadilhas que ele poderia usar para abordá-los, e elaborou uma estratégia para cada uma das armadilhas. Elkens ouvia com atenção, mas Mifitrin parecia impaciente. — Mas Mudriack é muito bom em enganar – era o que Meithel sem-pre ressaltava. – Fiquem espertos durante a luta, pois ele pode tentar nos confundir… Então acabou o tempo para se prepararem. — Vai começar – disse Meithel olhando para o alto e ao redor. ‒ Pos-so sentir a magia se manifestando. E não vem de longe, está vindo daqui mesmo. Mudriack está muito perto. Se preparem… A primeira coisa que Meithel fez foi conjurar um escudo da Magia em torno de Kanoles e Laserin, para protegê-los. Os dois estavam fora da batalha. A decisão da batalha contra Mudriack seria apenas dos pro-tetores. Elkens, Mifitrin e Meithel estavam tocando seus colares quando finalmente começou. Uma esfera de luz alva surgiu do nada e passou a rodopiá-los. Girava rapidamente, como se escolhesse um alvo para atacar. Logo uma se-

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gunda esfera surgiu, e uma terceira. No segundo seguinte dezenas delas apareceram ao mesmo tempo, todas girando pelo poço, girando em torno deles. — Esferas? – perguntou Elkens não acreditando no que via. – Isso é tudo o que ele tem para nos atacar? Esferas não são nada mais do que magia acumulada. É o feitiço bási-co, o primeiro feitiço que qualquer Aprendiz aprende. É claro que seu poder é muito relativo, depende da quantidade de magia acumulada. O resultado é sempre o mesmo: explosões. Se resume apenas nisso, ma-gia na sua forma mais bruta, acumulada numa esfera e pronta para explodir ao entrar em contato com qualquer corpo. Mas realmente é um feitiço muito básico. Por mais que se acumule magia numa esfera, é muito fácil se proteger dela. Mas é claro que não era apenas uma esfera, eram centenas delas. Um protetor primeiro aprende a conjurar uma esfera, depois o turbilhão de esferas, que consiste em dezenas delas, mas este era um estágio ainda mais elevado: o furacão de esferas. A quantidade delas era muito mai-or, mas não representava um perigo muito grande para protetores ex-perientes. — Não o subestime – Meithel voltou a dizer. – Eu já disse que ele pode tentar nos enganar. Não baixe sua guarda. Então o ataque começou. Várias esferas vieram de encontro à Elkens, mas ele não estava preocupado. Sem nem precisar tocar seu colar, também conjurou esferas. Suas esferas rubras se chocaram com as esfe-ras alvas de Mudriack. Houve uma série de explosões quando os feiti-ços se encontraram aos pares, então desapareceram. Meithel também não teve dificuldades para se livrar do ataque. Quando as esferas de Mudriack se aproximavam muito dele, ele con-seguia tomar o controle sobre elas, como se ele próprio as tivesse con-

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jurado. Assim fazia com que se chocassem no ar e também desapare-cessem. Mas Mifitrin agiu diferente deles. Ela saiu correndo do interior do furacão de esferas um segundo antes dos ataques começarem. Passou por Kanoles e Laserin, protegidos das esferas dentro do escudo da Magia, e seguiu correndo pela escada de pedra. — O que está fazendo? – Meithel perguntou para ela quando a viu subindo pela escada. — Estou tentando atrair o ataque de Mudriack para cá – ela gritou enquanto continuava subindo. Logo o raciocínio de ataque do Feiticeiro da Magia mudou. Devia ter percebido que Meithel e Elkens não seriam derrotados por um feitiço tão simples. Então as esferas pararam de atacar os Sacerdotes e pas-saram a se chocar com o teto e as paredes da caverna. — O que ele está pretendendo? – Elkens perguntou. ‒ Por que não nos ataca? — ELKENS – gritou Meithel quando compreendeu. – Ele quer der-rubar a montanha sobre nós. — Ah, mas não vai fazer isso – disse Elkens, finalmente tocando seu colar. – FURACÃO DE ESFERAS! Centenas de esferas rubras foram conjuradas por Elkens e seguiram de encontro às esferas de Mudriack. As explosões foram tão fortes que Elkens e Meithel foram jogados no chão, mas felizmente a estrutura da caverna não foi afetada. — Acabou? – Elkens perguntou. – O furacão de esferas foi tudo o que ele conseguiu usar? — Suas reservas de magia já devem estar extintas – disse Meithel. – Ele usou o Fogo da Magia e também criou aquelas estátuas de pedra. Isso sem mencionar que passou o dia todo mantendo Mifitrin como re-

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fém, o que garanto que não foi fácil. Ele realmente deve estar sem magia alguma para nos atacar, mas isso não quer dizer que acabou. Ele é esperto. Ainda pode tentar nos enganar. Mas Elkens duvidava que alguém sem qualquer reserva de magia fos-se ter coragem de enfrentar três protetores sozinho. Mudriack já não era problema deles. Não por um bom tempo. — Mifitrin – Elkens gritou para a Guerreira que já estava no alto do paredão de pedra, ao lado do início da cachoeira. ‒ Pode descer. Já acabou. Vamos sair dessa caverna de uma vez por todas. Mas Mifitrin não desceu. Sequer deu qualquer sinal de que pretendia fazer isso. Mas então alguém apareceu atrás dela. Elkens ia gritar que era Mudriack, mas não era ele; Elkens ficou sem voz quando re-conheceu quem era. Era alguém alto, talvez três metros de altura. Estava encapuzado e nenhuma parte do seu corpo era visível. Uma densa névoa azul-perolado o contornava e mesmo lá de baixo Elkens foi capaz de ouvir sua respiração lenta e profunda. O capuz se moveu graciosamente, como se o vento o tivesse movido, apesar de não haver vento nenhum ali dentro. Olhos que brilhavam intensamente foram revelados quando o capuz se moveu e Mifitrin foi forçada a olhar para trás e encará-los. — NÃO MIFITRIN – Elkens estava desesperado, já sabendo o que ia acontecer. ‒ NÃO OLHE. É A ARGON. NÃO OLHE MIFITRIN. — Ela estava nos seguindo… ‒ disse Meithel temeroso. – Esse tem-po todo esteve nos seguindo. — MEITHEL, FAÇA ELA PARAR. CRIE AQUELA BARREIRA DE NOVO. NÃO DEIXE MIFITRIN OLHAR PARA ELA.

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— Estamos muito longe Elkens. Não posso fazer nada daqui de baixo… Elkens se precipitou para a escada de pedra e subiu dois degraus de cada vez. — ELKENS! – gritou Meithel preocupado ao ver o amigo correr de encontro para a besta mística da Renovação. — Nós já passamos no teste, Meithel. Mas Mifitrin não. Você criou aquela barreira e interrompeu o teste dela, mas Argon veio atrás dela de novo. Não posso deixar isso acontecer… Mas já não havia nada que pudesse ser feito. Não adiantava gritar, pois Mifitrin estava presa pelo encanto de Argon. E também não ha-via tempo para Elkens chegar até ela, pois o teste acabou quando ele ainda estava no meio da escada. Quando o teste chegou ao fim, as pernas de Elkens bambearam e ele teve de se segurar para não cair da escada. Ele percebeu que jamais te-ria a chance de descobrir o que queria dizer para Mifitrin, pois assim que o teste terminou, seu corpo despencou no ar. Elkens teve tempo para dizer a ela o que queria, mas desperdiçou esse tempo. Agora não havia mais, perdeu todas as chances. Argon decidiu que Mifitrin seria sua escolha. O corpo da Guerreira despencou de costas e caiu pelo pa-redão de pedra. Não levou mais que três segundos para atingir o chão com um baque surdo, mais de vinte metros abaixo. Elkens se atirou da escada. Achou que conseguiria ficar em pé, mas se enganou e rolou pelo chão. Levantou-se e correu desesperado para on-de Mifitrin estava caída. As lágrimas já escorriam por seu rosto. Ele não ouvia os soluços de Laserin ao lado dele, que também estava aga-chada sobre o corpo da Guerreira. Ele não via nem ouvia nada ao seu redor, sua atenção estava toda voltada para Mifitrin agora. Não viu

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quando Meithel procurou desesperadamente por seus sinais vitais e não encontrou nenhum. — Não me deixe, Mifitrin – dizia Elkens em meio aos soluços. ‒ Vo-cê não pode fazer isso. Não pode morrer. Mas ela já estava morta e não foi a queda que a matou, já estava morta antes de chegar ao chão. Quem a matou foi Argon, pois ela es-colheu a alma de Mifitrin para voltar aos Domínios da Alma e dar lugar para que outra reencarnasse. Mifitrin foi a escolha. Teria sido a escolha no primeiro encontro que tiveram, mas Meithel criou a barrei-ra entre as duas e impediu que Argon avaliasse Mifitrin até o fim. Mas agora ninguém foi capaz de impedir que Argon cumprisse com sua obrigação. — Não morra, Mifitrin… Agora Elkens compreendia por que esteve tendo aquelas lembranças durante todo o dia. Agora tudo fazia sentido para ele. Lembrou-se da fita vermelha, do pingente e de Nai-Merian; todas as lembranças es-tavam relacionadas às suas perdas. Agora ele entendia por que estive-ra se lembrando disso, porque ele era acostumado a perder coisas im-portantes para ele. De repente percebeu que já sabia disso logo que te-ve a primeira lembrança, mas negou tanto para si mesmo que iria per-der Mifitrin que foi incapaz de enxergar a resposta. Mas agora ele não podia negar isso. Era acostumado a perder coisas importantes. Mifitrin foi apenas mais uma. As lágrimas escorriam por seu rosto aos montes. Em sua angústia e sofrimento tentava inutilmente acordar Mifitrin, mesmo sabendo que isso já não era possível. O corpo da Guerreira brilhou momentanea-mente e uma alma amarela abandonou o corpo e voou pela caverna. A alma de Mifitrin bateu suas asas e se afastou deles, indo embora para os Domínios da Alma e deixando para trás um corpo sem vida. Mifi-

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trin estava morta. Elkens havia acabado de perder a coisa mais im-portante de todas para ele. Perdeu Mifitrin.

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