SAVIANI - Historia Das Ideias Pedagogicas No Brasil [2ª ED]

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.. 1,1 EDITORA AliTORES ASSOCIADOS LIDA. Uma editora educativa a serviço da cultura brasileira Av. Albino]. B. de Oih·cira, 901 I Barão Geraldo CEP 13084-008 I Campinas - SP Telefone: (55) (19) 3249--2800 I Fax: (55) (19) 3249--2801 E-mail: [email protected] Catálogo on-line: www.autoresassociados. com.br Conselho Editorial "Prof. Casemiro dos Reis Filho" Bernardete A. Gatti Carlos Roberto ]amil Cury Dermeval Saviani Gilberta S. de M. ]annUZZi Maria Aparecida Motta Walter E. Garcia Diretor Executivo Flávio Ba1dy dos Reis Coordenadora Editorial Érica Bombardí Re,isâo Aline Marques Cristina Oliveiro Dome/as Rodrigo Nascimento Diagramação e Composição DPGI.tda. Arte-fmal Ériea Bombardi Impressão e Acabamento Prol Editora Gráfica Capas 1 e 4 Design e ilustração de Carol Juste (carolju.steôuol.com./Jr) Ilustração tendo como tema a tela de Benedicto Calixto, intitulada . O poema de Anchieta, que mostra o padre José de Anchieta escrevendo nas areias da praia de Iperoig um poema dedicado à Virgem Maria (c. 1906) Capas 2 e 3 Biblioteca José e Guita Mindlin Foto: Lucia M. Loeb {Destaques da Biblioteca ltiDisciplinada de Guita e José Mindlin - Vol.l: Brasiliana. Eousr/F.'J'El'Pi 'Edições Biblioteca Nacional. Fotografia de Lucia Minctlin Loeb. Copyright José Mindlin.) f).CNPq -·- Este livro resultou de projeto integrado de pe:;quisa firuUJciado pelo CNPq A Ediiora Autores Associados agradece a todos que colaboraram com esta edição por cederem gentilmente o uso das imagens aqui estampadas. A Editora declara ainda ter se esforçado para solicitar as autorizações necessárias a todos os envolvidos www. abdr.org.br abd; @ abdr.org .br Denuncie a cópia ilegal j Ç})ermeval tfeistória das idéias . pedagógicas no mrasil za Edição Revista e Ampliada Coleção Memória da Educação AUTORESIQ\ ASSOCIADOS \;J I

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    EDITORA AliTORES ASSOCIADOS LIDA. Uma editora educativa a servio da cultura brasileira

    Av. Albino]. B. de Oihcira, 901 I Baro Geraldo CEP 13084-008 I Campinas - SP Telefone: (55) (19) 3249--2800 I Fax: (55) (19) 3249--2801 E-mail: [email protected] Catlogo on-line: www.autoresassociados.com.br

    Conselho Editorial "Prof. Casemiro dos Reis Filho" Bernardete A. Gatti Carlos Roberto ]amil Cury Dermeval Saviani Gilberta S. de M. ]annUZZi Maria Aparecida Motta Walter E. Garcia

    Diretor Executivo Flvio Ba1dy dos Reis

    Coordenadora Editorial rica Bombard

    Re,iso Aline Marques Cristina Oliveiro Dome/as Rodrigo Nascimento

    Diagramao e Composio DPGI.tda.

    Arte-fmal riea Bombardi

    Impresso e Acabamento Prol Editora Grfica

    Capas 1 e 4 Design e ilustrao de Carol Juste (carolju.steuol.com./Jr) Ilustrao tendo como tema a tela de Benedicto Calixto, intitulada

    . O poema de Anchieta, que mostra o padre Jos de Anchieta escrevendo nas areias da praia de Iperoig um poema dedicado Virgem Maria (c. 1906)

    Capas 2 e 3 Biblioteca Jos e Guita Mindlin Foto: Lucia M. Loeb {Destaques da Biblioteca ltiDisciplinada de Guita e Jos Mindlin -Vol.l: Brasiliana. Eousr/F.'J'El'Pi'Edies Biblioteca Nacional. Fotografia de Lucia Minctlin Loeb. Copyright Jos Mindlin.)

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    --Este livro resultou de projeto integrado de pe:;quisa firuUJciado pelo CNPq

    A Ediiora Autores Associados agradece a todos que colaboraram com esta edio por cederem gentilmente o uso das imagens aqui estampadas. A Editora declara ainda ter se esforado para solicitar as autorizaes necessrias a todos os envolvidos

    www.abdr.org.br abd;@abdr.org.br

    Denuncie a cpia ilegal

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    pedaggicas no mrasil

    za Edio Revista e Ampliada

    Coleo Memria da Educao

    AUTORESIQ\ ASSOCIADOS \;J I

  • Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Saviani, Dermeval Histria das idias pedaggicas no Brasil I Dermeval

    Saviani.- 2. ed. rev. e ampl.- Campinas, SP: Autores Associados, 2008.- (Coleo memria da educao)

    Bibliografia. ISBN 978-85 7496-200-9

    1 Educao- Brasil-Histria 2. Educao- Histria 3. Pedagogia-Histria L Ttulo. II. Srie.

    07-6929 CDD- 370.981

    ndices para catlogo sistemtico: 1. Brasil: Idias pedaggicas: Educao: Histria 370.981

    1" Edio- setembro de 2007 Impresso no Brasil- setembro de 2008

    Copyright 2008 by Editora Autores Associados LTDA.

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    obra intelectual, no todo ou em parte, para fins de comrcio, sem autorizao expressa do autor ou de quem o represente, ou consistir na reproduo de fonograma e videograma, sem autorizao do produtor ou de quem o represente:

    Pena- recluso de um a quatro anos e multa".

    Para Maria Aparecida, hist;ia de

    amor eterno,

    porque infinito e sempre dura.

    Para Benjamim: Quem est com

    a juventude que cultiva os clssicos

    possui o porvir.

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    Mindlin Loeb. Copyright Jos Mindlin).

    HISTORIA DAS IDIAS PEDAGGICAS NO BRASIL 29

    que existe e, como tal, o antepassado por excelncia porque o Pai que est na origem de todos os membros da comunidade que o cultua.

    O processo de colonizao abarca, de forma articulada mas no homog-nea ou harmnica, antes dialeticamente, esses trs momentos representados pela colonizao propriamente dita, ou seja, a posse e explorao da terra subjugando os seus habitantes (os incolas); a educao enquanto aculturao, isto , a inculcao nos colonizados das prticas, tcnicas, smbolos e valores prprios dos colonizadores; e a catequese entendida como a difuso e con-verso dos colonizados religio dos colonizadores .

    2. COLONIZAO E EDUCAO NO BAASIL

    Uma questo que intriga de modo geral os analistas se refere ao fato aparentemente paradoxal de Portugal ter sido pioneiro na expanso ultrama-rina e, ao mesmo tempo, ter se atrasado consideravelmente no que respeita ao desenvolvimento capitalista quando comparado com outros pases euro-peus.

    Para esclarecer essa questo preciso levar em conta que Portugal, dife-rentemente da maioria dos pases europeus, era um pais pletl

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    aumento da receita das casas senhoriais; a segunda ligada s potencialidades contidas em reas de ultramar como Marrocos. arquiplagos atlnticos, in-cludas as Ilhas Canrias, Guin, ndia e Brasil. A ligao entre essas duas sries resulta numa outra srie de fatos assim apresentada:

    a) conquista de praas marroquinas; b) ocupao e colonizao dos arquiplagos atlnticos; c) descobrimento da Guin e estabelecimento de feitorias; d) descobrimento do caminho martimo para a ndia, estabelecimento de

    feitorias e formao do imprio oriental; e) descobrimento e colonizao do Brasil [idem, p. 85).

    No obstante todos esses feitos e conquistas, Portugal atrasou-se, do pon-to de vista do desenvolvimento capitalista, em relao aos demais pases eu-ropeus.

    Para compreender esse fato preciso levar em conta que, embora a ex-panso tenha enriquecido a burguesia mercantil, seu controle esteve nas mos da Coroa, que a financiou e a explorou atravs de monoplio, o que refor-ou o parasitismo da nobreza. Como, porm, ao mesmo tempo as conquistas ultramarinas reforavam as posies econmicas e sociais da burguesia, a nobreza reagiu a essa contradio reforando a ordem feudal pelo uso da Inquisio como instrumento poltico, cuja introduo em Portugal se deu no reinado de Dom Joo III (1521-1557). Com esse instrumento o Estado portugus reprimiu, por mais de dois sculos, a burguesia mercantil identifi-cando-a com os cristos novos, isto , com os criptojudeus.

    Nesse contexto o mercantilismo portl.).gus reduziu-se explorao colonialista, abrindo mo do protecionismo industrial, conduta adotada pela inglaterra e Frana. Como resultado, constata-se que o colonialismo contri-buiu para a acumulao nos pases que j haviam desenvolvido em algum grau o modo de produo capitalista, como a Inglaterra e, mais tarde, a Holanda e a Frana. No, porm, em Portugal e Espanha, onde, ao contr-rio, o processo de acumulao foi obstaculizado pelo colonialismo. Em ver-dade Portugal atuou "como especialista no comrcio de intermediao inter-nacional, no carrying trade, sobre o qual escreveu Adam Smith, que retirava o capital do apoio ao trabalho produtivo do prprio pais e o desviava para o estmulo produo em outros pases" (GORENDER, 1978, p. 123). Assim,

    HISRIA DAS IDIAS PEDAGGICAS NO BRASIL

    apenas para dar um e.-xemplo, constata-se que, embora o Brasil tenha propi-ciado a Portugal o monoplio da exportao mundial de acar no sculo XVIl, no foram constitudas refinarias em Portugal; elas surgiram na Holanda, Inglaterra e Frana.

    Como j foi salientado, h uma estreita simbiose entre educao e catequese na colonizao do BrasiL Em verdade a emergncia da educao como um fenmeno de aculturao tinha na -catequese a sua idia-fora, o que fica claramente formulado no Regimento de Dom Joo lll estatudo em 1549 e que continha as diretrizes a serem seguidas e implementadas na col-nia brasileira pelo primeiro governo geral.

    A referida centralidade da catequese j foi objeto de anlise de diversos estudiosos. Jos Maria de Paiva, por exemplo, defendeu a tese de que "a

    carequiza~ cumpriu um papel colonial, no como de fora, como uma fora simplesmente aliada, mas, mais do que isto, como uma fora realmente inte grada a todo o processo" (PAIVA, 1982, p. 97). J Lus Felipe Baeta Neves entende que a catequese "um esforo racionalmente feito para conquistar homens; um esforo feito para acentuar a semelhana e apagar as diferen-as" (BAETA NEVES, 1978, p. 45). E o eixo do trabalho catequtico era de carter pedaggico, uma vez que os jesutas consideravam que a primeira alternativa de converso era o convencimento que imphcava prticas pedag-gicas institucionais (as escolas) e no-institucionais (o exemplo). As primeiras eram ma:is visveis. Entretanto, "as formas no institucionalizadas do saber foram muito mais eficazes, onipresentes, radicais, em sua enganadora mlti-pla pequenez do que o que se passava nos Colgios, pelo menos do ponto de vista de instalao de uma dominao cultural" (idem, p. 148).

    A educao colonial no Brasil compreende etapas distintas. A primeira etapa corresponde ao chamado "perodo herico", que, se-

    gundo Luiz Alves de Mattos (1958), abrange de 1549, quando chegaram os primeiros jesutas, at a morte do padre Manuel da Nbrega em 1570. Con-sidero, entretanto, mais apropriado estender essa fase at o final do sculo XVI, quando ocorre a morte de Anchieta, em 1597, e a promulgao do Ratio Swdiontm, em 1599.

    A segunda etapa (1599-1759) marcada pela organizao e consolidao da educao jesuitica centrada no Ratio Studiornm.

    A terceira etapa (1759-1808) corresponde fase pombal!na, que inaugura o segundo perodo da histria das idias pedaggicas no Brasil.

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    As reformas pombalinas da instruo pblica inserem-se no quadro das reformas modemizantes levadas a efeito por Pombal visando a colocar Portu-gal " altura do sculo", isto , o sculo XVlll, caracterizado pelo Iluminis-mo. Essa fase estende-se at o incio do Imprio, abrangendo, portanto, o momento joanino (1808-1822), assim denominado porque teve incio com a vinda de Dom Joo VI em conseqncia do bloqueio continental decretado em 1806 por Napoleo contra a Inglaterra, da qual Portugal era "nao amiga", completando-se em 1822 com a independncia politica.

    L !'EDUCAO INDGENA

    uando a esquadra de Pedro lvares Cabral apartou deste lado do Atlntico, encontrou populaes h sCulos estabe-lecidas nas terras que vieram a ser cha-madas de Brasil. Essas populaes viviam em condies semelhantes quelas que

    foram definidas como correspondentes ao comunismo pri-mitivo. Ou seja: no eram sociedades estruturadas em clas-ses. Apropriavam-se de forma coletiva dos meios necess-rios sua subsistncia. Esses meios consistiam da caa, pesca, coleta de frutos e de plantas nativas e algumas plantaes dentre as quais se destacavam o milho e, principalmente, a mandioca. Tratava-se, em suma, de uma economia natural e de subsistencia. Natural porque "capaz de satisfazer s ne-cessidades dos membros do grupo social sem nenhuma tro-ca"; e de subsistncia porque "orientada no sentido de sa-tisfazer s necessidades restritas do grupo local" (FERNANDES, 1989, p. 76).

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    Anchieta e as fe:ras (ln: Longaro degll ldl, Vita delvenerabil servo di" Dio P. Giuseppe Anchieta ddl.a Compagnia de esa detto !'apostolo dei Brasile, Roma, 1771). Fonte: Biblioteca do Instituto de Estudos Brasileiros (lEB) da Universi-dade de So Paulo (USP).

    HISTORIA DAS IDIAS PEDAGGICAS NO BRASIL

    Como mostram os estudos de Florestan Fernandes sobre a sociedade Tupinamb, as caractersticas das tribos indgenas no Brasil poca do des-cobrimento correspondiam, em grandes linhas, descrio feita por Anbal Ponce das comunidades primitivas. Estas eram consideradas coletividades pequenas, unidas por laos de sangue, cujos membros eram indivduos li-vres, com direitos iguais, que viviam sobre a base da propriedade comum da terra (PONCE, 2001, p. 17). Ilustrando essas caractersticas, Florestan reporta-se a um dilogo travado por um velho Tupinamb com Lery, que o relatou nos seguintes termos:

    Uma vez um velho perguntou-me: por que vindes vs outros, mairs e pe:rs (franceses e portugueses), buscar lenha de to longe para vos aquecer? No tendes madeira em vossa terra? Respondi que tnhamos muita, mas no daque-la qualidade, e que no a queimvamos, como ele supunha, mas dela extraa-mos tinta para tingir, tal qual o faziam eles com os seus cordes de algodo e suas plumas.

    Retrucou o velho imediatamente: e por ventura precisais de muito? - Sim, respondi-lhe, pois no nosso pas existem negociantes que possuem mais panos, facas, tesouras, espelhos e outras mercadorias do que podeis imaginar e um s deles compra todo o pau Brasil com que muitos navios voltam carregados. - Ah! retrucou o selvagem, tu me contas maravilhas, acrescentando depois de bem compreender o que eu lhe dissera: Mas esse homem to rico de que me falas no morre? - Sim, disse eu, morre como os outros.

    Mas ~s selvagens so grandes discursadores e costumam ir em qualquer assunto at o fim, por isso pergur..tou-me de novo: e quando morre para quem fica o que dei.xa? - Para os filhos se os tm, respondi; na falta destes para os irmos ou parentes mais prximos. - Na verdade continuou o velho, que, como vereis, no era nenhum rolo, agora vejo que vs mairs sois grandes loucos, pois atravessais o mar e sofreis grandes incmodos, como dizeis quando aqui chegais, e trabalhais tanto para amontoar riquezas para vossos filhos ou para aqueles que vos sobrevivem! No ser a terra que vos nutriu suficiente para aliment-los tambm? Temos pais, mes e filhos a quem amamos; mas estamos certos de que depois da nossa morte a terra que nos nutriu tambm os nutrira, por isso descansamos sem maiores cuidados [FERNANDES, 1989, pp. 83-841.

    Obviamente que, havendo populaes no territrio descoberto pelos portugueses, que viviam conforme uma determinada forma de organizao

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    social, a educao tambm se fazia presente nessas sociedades. Consideran-do-se que a denominao Tupinamb abrangia os vrios grupos ntpis ocu-pando uma vasta rea que se estendia das regies meridionais s setentrio-nais do territrio descoberto, pode-se considerar que a educao da sociedade T upinamb era representativa do conjunto daquelas populaes.

    Em sua organizao social, os Tupinamb distinguiam cinco grupos de idade tanto para o homem como para a mulher: os Peito.n, desigriao dos recm-nascidos at comear a andar, distinguiam-se em a) Kunumy-miry, crianas do sexo masculino at 7-8 anos e Kugnatin-miry, meninas at 7 anos; b) Kunum:y, meninos dos 8 aos 15 anos e Kugnatin, meninas dos 7 aos 15 anos; c) l(unumy-uau, rapazes dos 15 aos 25 anos e Kugnammuu, moas dos 15 aos 25 anos; d) Aua, homens . dos 25 aos 40 anos, sendo que, neste grupo, se distinguia o homem casado pelo nome de Mendar-amo e Kugnam, mulher dos 25 aos 40 anos, sendo a mulher casada denominada Kugnammuupoare; e) finalmente, Thuyuae, homens de 40 anos em diante e Uainuy, mulher de 40 anos em diante (idem, p. 223).

    Embora a formao das novas ger~es incidisse mais diretamente so-bre os trs primeiros grupos de idade, isto , at os 25 anos, o processo educativo abrangia tambm os dois outros grupos, estendendo-se por toda a vida.

    At os 7-8 anos de idade, tanto os meninos como as meninas depen-diam estritamente da me. Os meninos no podiam, airida, acompanhar os pais; mas recebiam deles arcos e flechas e formavm, com outras crianas da mesma idade, grupos infantis nos quais, informalmente, se adestravam no uso do arco e da flecha, alm de muitps outros tipos de folguedos e jogos, entre os quais se destacava a imitao dos pssaros. As meninas dessa mes-ma idade tambm residiam com a me e, assim como os meninos, formavam grupos da mesma idade, adestrando-se nos jogos infantis em tarefas como a fiao de algodo e amassando barro no fabrico de utenslios de cermica como potes e panelas.

    Na fase entre 7 e 15 anos os meninos j no ficavam em casa, deixavam de depender da me e passavam a acompanhar o pai, que se torna seu mo-delo e com o qual se prepara para a vida de adulto tornando parte em seu trabalho. As meninas passam a depender mais estreitamente da me, sua mestra e modelo, com quem aprendem a semear e plantar, a fiar e tecer, a fazer farinhas e vinhos, cozinhar e preparar alimentos.

    HISTFtiA DAS IDIAS PEDAGGICAS NO BRASIL

    A faixa de idade seguinte, dos 15 aos 25 anos, era a fase de participao mais ativa nas atividades dos adultos, includas as cerimnias de iniciao, aps as quais "as jovens podiam entreter avenntras amorosas e contrair ma-trimnio. Em todo o caso, parece que o casamento s era possvel aps certo tempo: quando os cabelos tivessem crescido pelo menos at as espduas" (idem, p. 229). Tanto os rapazes como as moas se envolviam diretamente nas atividades laborais, conforme a diviso de sexo: os rapazes participando ativamente nas expedies guerreiras, na caa, na pesca, na fabricao de flechas e prestando servios nas reunies dos velhos; as moas, auxiliando as famlias nas atividades femininas e assimilando, de forma prtica, as vi-vncias e os papis femininos.

    Entre os 25 e 40 anos os homens passavam a participar plenamente na vida dos adultos, sendo admitidos nos bandos guerreiros. A participao nas reunies com os velhos dava-lhes acesso memria da sociedade T upinamb, assimilando novos conhecimentos sobre suas tradi.es e institUies. As mulheres desse mesmo grupo de idade (25 a 40 anos) tambm assumiam plenamente a condio de adultas, ocupando-se nas numerosas e cansativas ocupaes domsticas e cuidando diretamente da educao dos filhos, po-dendo, tambm, participar de vrias cerimnias em conjunto com os ho-mens.

    A partir dos 40 anos os homens entravam na fase mais bela, podendo tomar-se chefes e lderes guerreiros e chegar condio de pajs. Nas "casas grandes" cabia-lhes fazer prelees, transmitindo as tradies e orientando os mais jovens, para os quais sua conduta tinha carter exemplar. Eram admirados e respeitados por todos os membros da tribo. Destaca Florestan que "a qualidade da influncia que exerciam no decorrer de suas pregaes era de tal ordem, que Thevet os comparou aos professores europeus" (FERNANDES, 1964, p. 183). As mulheres nessa faixa a partir dos 40 anos tambm assumiam papel de destaque presidindo o conjunto dos trabalhos domsticos, carpindo os mortos e exercendo a funo de mestras para a iniciao das moas na vida feminina.

    V-se que havia clara igualdade de participao na vida da sociedade por parte de todos os seus membros, no havendo outras formas de diferen-ciao seno aquela decorrente da diviso sexual do trabalho. Mas esta, efetivamente, colocava as mulheres em desvantagem. A sobrecarga dos tra-balhos domsticos provocava-lhes um envelhecimento precoce. Deve-se

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    notar que os trabalhos domsticos incluam a coleta de frutos, mariscos e ovos e o cultivo das plantas destinadas alimentao. Embora gozassem de poder e prestgio, no usufruam do mesmo respeito devotado aos velhos. Atesta isto a passagem de Evreux, citada por Florestan: "entre os velhos e velhas nota-se a diferena de serem os velhos venerveis e apresentarem gravidade e autoridade, e as velhas encolhidas e enrugadas como o perg~mnho exposto ao fogo" (FERNANDES, 1989, p. 242).

    De modo geral, observa-se que os conhecimentos e tcnicas sociais eram acessveis a todos, no se notando qualquer forma de monoplio. A cultura transmiti3.-$e por processos diretos, oralmente, por meio de contatos prim-rios no interior da vida cotidiana. E isso no apenas nas relaes entre os adultos e as crianas e jovens. Em qualquer idade e tipo de relao social era possvel aprender, convertendo a todos, de algum modo, posio de mes- tres. Mas ocupavam posio de destaque no processo educativo as prelees dos "principais", isto , daqueles que tinham atingido a idade da experin-cia, os maiores de 40 anos, que, por isso, se encontravam nos postos-chave na vida social (os chefes de grupos locais), na vida militar (lderes guerreiros) e na vida religiosa ou esfera sagrada (pajs e paj-au). Suas exortaes cum-priam o papel de arualizar a memria coletiva, preservando e avivando as tradies tribais.

    Em suma, o exemplo dos Tupinamb ilustra o entendimento de que numa sociedade sem classes, como era o caso das comunidades primitivas, os fins da educao coincidem "com os interesses comuns do grupo e se realizam igualitariamente em todos os seus membros, de modo espontneo e integral" (PoNCE, 2001, p. 21). Ou seja: no havia instituies especficas organizadas tendo em vista atingir os fins da educao. Por isso a educao era espontnea. E cada integrante da tribo assimilava tudo o que era possvel assimilar, o que configurava uma educao integral.

    Podemos dizer que nesse contexto no se punha, ainda, a questo das idias pedaggicas e da pedagogia. Com efeito havia, a, urna educao em ato, que se apoiava sobre trs elementos bsicos: a fora da tradio, consti-tuda como um saber puro orientador das aes e decises dos homens; a fora da ao, que configurava a educao como um verdadeiro aprender fazendo; e a fora do exemplo, pelo qual cada indivduo adulto e, particular-mente, os velhos ficavam imbudos da necessidade de considerar suas aes como modelares, expressando em seus comportamentos e palavras o conre-

    HISTRIA DAS IDEIAS PEDAGGICAS NO BRASIL

    do da tradio tribal. As idias educacionais coincidiam, portanto, com a prpria prtica educativa, no havendo lugar para a mediao das idias pe-daggicas que supem a necessidade de elaborar em pensamento as formas de interveno na p~tica educativa. Nessas condies havia, pois, educao, mas no havia pedagogia, ao menos no sentido em que tal expresso est sendo utilizada no presente trabalho.

    com essa forma de sociedade e esse tipG de educao que vieram a se chocar os conquistadores europeus. E, para fazer face aos ncolas, isto , os habitantes da terra que se pretendia conquistar, eles foram obrigados a acio-nar formas especficas de interveno na prtica educativa, dando origem ao que estou chamando de "pedagogia braslica". E os artfices dessa pedagogia foram, fundamentalmente, os missionrios. Por isso, antes de examinar em que consistiu a "pedagogia braslica", convm considerar o papel das ordens religiosas na educao colonial.

    2. AS ORDENS RELIGIOSAS E A EDUCAO COLONIAL

    A colonizao do Brasil contou com a contribuio imprescindvel das ordens re~igosas. Pode-se considerar que os primeiros evaugelizadores do Brasil foram os franciscanos. Com efeito, o primeiro grupo de oito mission-rios franciscanos chegou ao Brasil na caravela de Pedro lvares Cabral, es-tando, entre eles, o frei Henrique de Coimbra, que celebrou a primeira mis-sa na nova terra no dia 26 de abril de 1500. Esse grupo, porm, partiu na frora de Cabral em 2 de maio do mesmo ano. Assim, "a catequese que to bem se iniciara foi interrompida a 2 de maio, com a partida da frora de Cabral com destino s ndias" (MOTA, 1984, p. 47). Mas em 1503, segundo alguns, ou 1516, segundo outros, chegam ao Brasil dois frades franciscanos que fixam residncia em Porto Seguro e, depois de dois anos de atividades, so trucidados pelos ndios. Em 1534 um novo grupo chega integrando a armada de Martim Afonso de Souza. Em 1537 cinco franciscanos espanhis aportam no porto de Dom Rodrigo (hoje So Francisco do Sul) aps serem arrastados por uma tempestade e acabam por desenvolver uma grande obra catequtica junto aos ndios Carijs na Regio Sul do Brasil, entre Canania

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    e o Rio Grande do SuL Segundo Mota (1984, p. 50), esses frades j usavam a tcnica de percorrer as aldeias indgenas em misses volantes, unindo a catequese instruo. Foi essa tcnica que mais tarde caracterizou a ao dos jesutas. Esses franciscanos constituram recolhimentos que funciona-vam em regime de internatos, como verdadeiras escolas que ensinavam, alm da doutrina, a lavrar a terra e outros pequenos ofcios. Outros franciscanos chegaram a diversas regies brasileiras durante o sculo XVI, sendo que o estabelecimento definitivo da Ordem no Brasil data de 1585, quando foi fundada em Olinda a primeira Custdia do Brasil com o Con-vento que recebeu o nome de Nossa Senhora das Neves de Olinda.

    Sangenis se props, em sua tese de doutorado, a recuperar a importn-cia dos franciscanos na histria da educao brasileira. Para tanto lanou mo de ampla documentao, questionando a historiografia que teria enca-rado a histria dos franciscanos " base de muitos preconceitos, de pouca critica e, ousaria dizer, de uma renitente preguia" (SANGENIS, 2006, p. 47). Mostrando a rivalidade entre jesutas e franciscanos em vrios mbitos, mas especialmente na questo da primazia da ao missionria no Brasil, o autor buscou desconstruir a historiografia, a seu ver tendencialmente favorvel aos jesutas. Sua concluso, contra o "pensamento nico" imposto pelo jesuitismo, afirma a importncia decisiva da presena franciscana na forma-o de nossa cultura. No entanto, ainda que pelo avesso, a prpria tese de Sangenis reconhece a hegemonia dos jesutas e, portanto, a predominncia de sua influncia na histria da educao brasileira. Com efeito, mesmo que se demonstrasse que, de fato, a influncia dos franciscanos no perodo colo-nial teria sido mais penetrante, mais capilar, atestada por ampla receptivi-dade popular, impe-se a concluso de que as estratgias acionadas pelos jesutas e seus admiradores foram eficazes na neutralizao daquela fora. Em conseqncia, resulta inescapvel que, no plano das idias pedaggicas, a viso jesutica prevaleceu. Assim, no obstante a pertinncia do debate historiogrfico aberto por Sangenis, constata-se que, apesar de seu pioneirismo, os franciscanos no lograram configurar um sistema educacio-nal uma vez que vinham em pequenos grupos -e permaneciam pouco tempo em cada regio. Com isso acabaram ficando eclipsados.

    Uma outra ordem religiosa que se fixou no Brasil no sculo XVI foi a dos beneditinos, que aqui se estabeleceram definitivamente em 1581, em Salva-dor, com a finalidade de ali construir um mosteiro. Depois disso fundaram

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    outros mosteiros em Olinda, Rio de Janeiro, Paraba do Norte e So Paulo. Mais voltados para a contemplao, os beneditinos no tinham a instruo como sua meta principaL Ao escrever as regras da ordem, So Bento no manifestou nenhuma preocupao dreta com a educao, nada rendo re-gistrado sobre a quesclio pedaggica. No entanto, segundo Dom Loureno de Almeida Prado (apud MorA, 1984, p. 121), "o surgimento dos colgios de S. Bento foi uma decorrncia humana da yitalidade e virtu;}.lidade da Regra, mas no uma previso determinada". Decorreu do apelo da popula-o que ia se instalando ao redor dos mosteiros.

    Alm de franciscanos e beneditinos, outras ordens religiosas se fizeram presentes no processo de colonizao do Brasi~ como os carmelitas, merce-drios, oratorianos e capuchinhos, tendo desenvolvido alguma atividade edu-cativa.

    Contudo, essas diferentes congregaes religiosas operaram de forma dispersa e intermitente, sem apoio e proteo oficial, dispondo de parcos recursos humanos e materiais e contando apenas com o apoio das comuni-dades e, eventualmente; das autoridades locais. Diferentemente, os jesutas vieram em conseqncia de determinao do rei de Portugal, sendo apoia-dos tanto pela Coroa portuguesa como pelas autoridades da colnia. Nessas circunstncias puderam proceder de forma mais orgnica, vindo a exercer virtualmente o monoplio da educao nos dois primeiros s~culos da colo-nizao. Guiando-se pelas mesmas idias e princpios, os jesutas estende-ram sua ao praticamente ao longo de todo o territrio conquistado pelos portugueses na Amrica Meridional, o que fez com que o ensino por eles organizado viesse a ser considerado como um sistema pelos analistas da his-tria da educao brasileira do perodo colonial. assim que Luiz Alves de Mattos (1958, pp. 21-97) ir considerar o ensino organizado pelos jesutas no Brasil entre 1549 e 1570, por ele chamado de "perodo herico", como o "esboo de um sistema educacional", sistema este que se consolidaria no perodo subseqente (1570-1759) sob a gide do Ratio Studiorum. Igualmente Fernando de Azevedo, n'A cultura brasileira, tambm ir dizer que Pombal, ao expulsar os jesutas, no reformou o sistema de ensino, mas simplesmen-te destruiu o sistema construdo pelos inacianos: "em 1759, com a expulso dos jesutas, o que sofreu o Brasil no foi uma reforma de ensino, mas a destruio pura e simples de todo o sistema colonial do ensino jesutico" (AzEVEDO, 1971, p. 547).

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    ~~~e de S~nto Incio de Loyola, fundador da .c .. Ordem dosJe5iiitas. Fonte: Arquivo Histrico da

    Sociedade d Jesus, Rom;t.

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    3. UMA PEDAGOGIA BRASLICA

    A primeira fase da educao jesutica foi marcada pelo plano de instru-o elaborado por Nbrega. O plano iniciava-se com o aprendizado do por-tugus (para os indge~as); prosseguia com a doutrina crist, a escola de ler e escrever e, opcionalmente, canto orfenico e msica instrumental; e culmi-nava, de um lado, com o aprendizado profissional e agrcola e, de outro lado, com a gramtica latina para aqueles que se destinavam realizao de estu-dos superiores na Europa (Universidade de Coimbra). Esse plano no deixa-va de conter uma preocupao realista, procurando levar em conta as condi-es especificas da colnia. Contudo, sua aplicao foi precria, tendo cedo encontrado oposio no interior da prpria Ordem jesutica, sendo final-mente suplantado pelo plano geral de estudos organizado pela Companhia de Jesus e consubstanciado no Ratio Studiorum.

    Esprito empreendedor, Nbrega buscava implantar seu planei de instru-o sobre "uma e-l:ensa cadeia de colgios nas povoaes litorneas, cujos elos seriam o colgio da Bahia ao norte e o de So Vicente ao sul" (MAnos, 1958, p. 83). O colgio da Bahia seria "ponto de apoio e foco de irradiao" para os colgios de Olinda, Ilhus, Porto Seguro e Esprito Santo. A partir de So Vicente Nbrega pretendia estender uma nova cadeia de colgios ao longo do interior do Brasil, chegando at o ParaguaL Conforme relata Luiz Alves de Mattos, por solicitao dos prprios indgenas da Bahia, o plano de Nbrega inclua tambm um "projeto de educao para o sexo feminino" que, entretanto, no teve acolhida na Metrpole, que, afinal, s iria sanciO-nar "a criao de escolas femininas para a cidade de Lisboa em 1815" (idem, p. 90).

    A principal estratgia utilizada para a organizao do ensino, tendo em vista o objetivo de atrair os "gentios", foi agir sobre as crianas. Para isso se mandou vir de Lisboa meninos rfos, para os quais foi fundado o Colgio dos Meninos de Jesus da Bahia e, depois, o Colgio dos Meninos de Jesus de So Vicente. Pretendia-se, pela mediao dos meninos brancos, atrair os meninos ndios e, por meio deles, agir sobre seus pais, em especial os caci-ques, convertendo toda a tribo para a f catlica.

    Em Manuel da Nbrega pode-se perceber com clareza a articulao das idias educacionais em seus trs aspectos: ~ filosofia da educao, isto , as idias educacionais entendidas na sua mxima generalidade;. a teoria da edu-

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    meios, a includos os recursos materiais e ssrios realizao do trabalho educativo;

    e a prtica pedaggi a nq uanto realizao efetiva do processo de ensino-aprendizagem.

    O realismo de N br ga o lcv u a estar atento necessidade de prover as condies materiais dos ol gi s jesutas envolvendo a posse de terra para a construo dos colgios, a sua manuteno, o que implicava suprir os viveres que envolviam a criao de ga I e o cultivo de alimentos como a mandioca, o milho, o arroz, a produo de acar, de panos e, para realizar regularmen-te essas tarefas, a aquisio e manuteno de escravos. Sua filosofia educacio-nal era a concepo que em minha sistematizao classifiquei como tradicio-nal religiosa na verso catlica da Contra-Reforma. Essas idias, contudo, mais do que serem pensadas no grau de abstrao em que se movem os con-ceitos filosficos, eram consideradas luz das condies de sua implementa-o na nova terra conquistada. Como idias pedaggicas se encarnavam, assim, na realidade da colni~, assumindo, em Nbrega, dominantemente a forma da organizao dos meios considerados adequados para se colimar os fins preconizados: a sujeio dos gentios, sua converso religio catlica e sua conformao disciplinar, moral e intelectual nova situao. Com efei-to, Nbrega entendia que era "bem que os ndios ficassem sujeitos e medro-sos e dispostos para agora receber o Evangelho, e a doutrina de Cristo" (NBREGA, 1992, p. 236). Portanto, de acordo com essa "pedagogia e tica missionria", a sujeio dos ndios precede a nverso, sendo condio ne-cessria de sua eficcia.

    EmAnchieta, por sua vez, essas mesmas idias educacionais encarnavam-se como idias pedaggicas engendrando os mtodos e procedimentos consi-derados adequados para se atingir aquelas mesmas finalidades inerentes filosofia educacional c nsubstanciada na doutrina da Contra-Reforma e ex-pressas no plano educacional que estava sendo posto em prtica. Como h-bil conhecedor d l!nguas, dominando perfeitamente o espanhol, seu idio-ma nativo, o portugus que aprendeu ao se radicar em Coimbra e estudar no Colgio I s Je u!tas e o latim, do qual foi estudante dedicado e destacado, Anchieta lo v i a dominar tambm a "lngua geral" falada pelos ndios do Brasil, uj u gnun:'lti a organizou para dela se servir no trabalho pedaggico rea lizado na nova terra. Fez-se, assim, em plenitude um agente da "Civiliza-o pela puluvra" , marca distintiva da Contra-Reforma, como bem esclarece

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    Joo Adolfo Hansen (2000, pp. 19-41) ao traar o quadro em que a Igreja se associou Monarquia para, por meio da palavra, implantar na nova terra a civilizao dos que dela se apossavam. Reforma protestante, materializada na "tese luterana da sola scriptura" (idem, p. 20), para a qual a doutrina, em sua pureza original, derivava dos textos originais hebraicos e gregos, a Igreja de Roma moveu tenaz oposio: "a Igreja catlica conciliar e ps-tridentina fez a defesa intransigentemente tradicionalista da transmisso oral das duas fontes da Revelao, a tradio e as Escrituras" (idem, p. 21). Nesse processo desempenharam papel central os jesutas, no sendo, pois, por acaso que o sistema pedaggico expresso no Ratio Studiorum tenha como elemento cen-tral a retrica:

    A "civilizao pela pala>Ta" correspondia, no caso, divulgao catlica da Retrica antiga em duas frentes: de um lado, o ensino especfico das tcnicas e, ainda, das artes e das !erras em geral, segundo o modelo generalizado da Retri-ca aristotlica e das sUas v~rses latinas, nos colgios jesuticas; de ourro, o uso particular de seus preceitos, estilos e erudio pelos pregadores nas variadssimas circunstncias do magistrio da f [idem, p. 31).

    Para realizar seu trabalho pedaggico, Anchieta utilizou-se largamente do idioma tupi tanto para se dirigir aos nativos como aos colonos que j entendiam a lngua geral falada ao longo da costa bra.Silei.ra. Para tanto prO' duziu uma poesia e um teatro "cujo correlato ilaginrio um mundo mani-questa cindido entre foras em perptua luta: Tup-Deus, com sua constela-o familiar de anjos e santos, e Anhang-Demnio, com a sua coorte de espritos malvolos que se fazem presentes nas cerimnias tupis"(BosJ, 1992, pp. 67-68). Assim, um dualismo ontolgico inteiramente estranho viso de mundo indgena o que ir presidir a constrUo de uma concepo totali-zante da vida dos ndios produzida pelos colonizadores representados pelos seus intelectuais materializados na figura dos jesutas.

    O referido dualismo atravessa recorrentemente o teatro de Anchieta manifestando-se nitidamente nos autos .Por ele redigidos. Nesse momento a liturgia crist, na Europa, assumia nova caracterstica na vertente moderna do protestantismo, marcada "pelo tom asctico de um calvinismo avesso a figuras e a gestos e, no limite, refratrio a qualquer simbologia que no fosse o verbo descarnado das Escrituras" (idem, p. 72). Na contramo dessa ten-

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    HiSTGRIA DAS IDIAS PEDAGGICAS NO BRASIL l$S 47 .. ,,_. dncia a Contra-Reforma, cujo reduto principal era a pennsula ibrica, fazia o movimento contrrio: multiplicava o recurso s imagens, isto , o apelo aos smbolos tangveis enquanto mediaes sensveis para etetuar a relao entre os homens e Deus. "De 1564 at sua morte, Anchieta escreveu aproximada- . mente vinte autos, o que corresponde quase totalidade das peas jesuticas do perodo" (FERREIRA}R. & BmAR, 2004, p. 186). Os autos deAnchieta (Na festa de So Loureno, Auto da pregao universal, .Na vila de vitria) constituem alegorias do bem contra o mal em que se condenam os gestos e ritmos, isto , a liturgia tupi enquanto ao coletiva e sacra!, vista pelo colonizador como resultado dos poderes dos espritos maus tentando os membros da tribo: "nos autos de Anchieta o Mal vem de fora da criarura e pode habit-la e possu-la fazendo-a praticar atos-coisas perversos, angaipaba" (BosJ, 1992, p. 73).

    Assim, se Marx (1968, pp. 90..91, nota 33; 1985, p. 115) pde dizer que, para os telogos, a sua prpria religio considerada obra de Deus, ao passo que a religio dos outros obra dos homens, para 05 jesutas a religio cat-lica era considerada obra de Deus, enquanto as religies dos ndios e dos negros vindos da frica eram obra do demnio. Eis como se cumpriu, pela catequese e pela instrUo, o processo de aculturao da populao colonial nas tradies e costumes do colonizador. As idias pedaggicas postas em prtica por Nbrega e Anchieta, secundados por Leonardo Nunes, Antonio Pires, Azpilcueta Navarro, Diogo Jcome, Vicente Rijo Rodrigues, Manuel de Paiva, Afonso Braz, Francisco Pires, Salvador Rodrigues, Loureno Braz, Ambrsio Pires, Gregrio Serro, Antonio Blasques, Joo Gonalves e Pero Correia configuraram uma verdadeira pedagogia braslica, isto , uma peda-gogia formulada e praticada sob medida para as condies encontradas pelos jesutas nas ocidentais terras descobertas pelos portugueses.