Simone Goyard Fabre - Fundamentos Da Ordem Jurídica - Ano 2002

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i • . ___________ :_________________________________________ ________________ ____

OS FUNDAMENTOS DA ORDEM JURÍDICA

Simone Goyard-Fabre

N.Cham. 340.12 G724f.PbAutor: Goyard-Fabre, SimoneTítulo: Os fundamentos da ordem jurídica

2560819 Ac 228008

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Esta obra foi publicada originalmente em francês com o título LES FONDEMENTS DE LORDRE JURIDIQUE

por Presses Universitaires de France.Copyright ©Presses Universitaires de France.

Copyright © 2002, Livraria Martins Fontes Editora Ltda., Sâo Paulo, para a presente edição.

Ia ediç ãoabril de 2002

TraduçãoCLAUDIA BERLINER

Revisão da tradução Maria Ermantina Galvão

Revisão gráfica Ivany Picasso Batista

Lígia Silva Produ ção gráfica

Geraldo Alves Paginação/Fotolitos

Stndiu 3 Desenvolvimento Editorial

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Goyard-Fabrc, SimoneOs fund amentos d a ordem jurídica / Sim one G oyard-Fabrc : ira-

duçüo Claudia B erlin er; revisão da tradução M aria Ermantina Galvão. - São Pau lo : Martins Fontes, 2002. - (Jusiiça c direilo)

Título original: Les fondements de 1‘ordre juridique.ISBN 85-336-1514-0

1. D ireilo - Filoso fia I. Título. II. Série.

02 -143 9________________________________________________C D U -3 40. I2índices pura catálogo sistemático:

1. Dire ilo : Filosofia 340.1 2

Todos os direitos desta ediçãu para a língua portuguesa reservados à Livraria MartinsFontes Editora Ltda

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Para Pierre, Thierry, Emmanuel, Romain e Thomas

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índice

Prefácio...................................................................... XIIIPreâmbulo-A indecisão problemática do conceito

de direito............................................... XVIIO direito em busca de sua especificidade............. XIX

A primeira onda ou a dessacralização do direito .. XXA segunda onda ou o hiato entre o direito e amoral................................................................... XXVA terceira onda ou a retração do horizonte axio-lógico do direito............. .................................... XXVII

O direito em busca de seu sentido........................ XXXA apropriação dos direitos pelo direito.............. XXXIA natureza dos direitos no direito...................... XXXV

Dificuldades de uma definição....................XXXVIII

PARTE I

A ALTERNATIVA: NATUREZA OU CONVENÇÃO.O CHOQUE DE DOIS DOGMATISMOS

Capitulo I - A tradição jusnaturalista e sua ambivalência.... 5

O jusnaturalismo clássico e suas questões filosófico- políticas......................................................................................6

A emergência da ordem jurídica: promessas e dificuldades..................................................................................7A inesgotável força de uma polêmica: o jusnaturalismo como anticonvencionalismo............................................ 16

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A desnaturalização do direito natural: o retorno doconvencionalismo.......................................................... 40

A antropologização do direito..................................... 40A racionalização do direito......................................... 44Das hesitações conceituais do jusnaturalismo “moderno” aos seus paradoxos................!................................. 51

De Hobbes a Spinoza: desacordo sobre um acordo.... 52A escola do direito da natureza e das gentes: persistências clássicas........................................................... 57

Capítulo II-A s teorias juspositivistas jurídicas e suas pretensões cientificistas............................... 71

O estatismo jurislador..................................................... 72O poder do legalismo. .................................................. 73A arqueologia do positivismo jurídico: Hobbes eRousseau...................................................................... 77A nomofilia do século XVIII...................................... 82

O obj etivismo j urídico.................................................... 86Um exemplo: o estatuto da igualdade na “Declaraçãodos direitos” de 1789.................................................... 87A doutrina de Hegel: a legislação, realização do conceito de direito.............................................................. 91Os equívocos do positivismo jurídico........................ 100

Um conflito secular sem saída....................................... 102

PARTE II

A ENCRUZILHADA DO SÉCULO XX.O ATOLAMENTO E A DISSOLUÇÃO DO DIREITO

Capítulo I - As vias lógico-formais: o constitucionalismo.. 111

A sistematização do direito............................................ 112O Código Civil e a necessidade de ordenamento sis

temático ........................................................................ 112Constitucionalismo e ordem juríd ica......................... 115A racionalização do direito............................................ 122

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A regra constitucional, chave da lógica da ordem jurídica........................................... ................................. 122A autonomização do direito sob a Constituição........ 127

, A normatividade no edifício constitucional.................. 130As teses de Carré de Malberg e de Kelsen.................. 131Obj eções e respostas................................................... 138

O que acontecerá com a soberania da antropologia ra-cionalista?........................................................................ 143

Capítulo II - As vias redutoras: o pragmatismo ético-social 145

O deslocamento das fundações do direito..................... 146

As transformações do universo jurídico...... .

............. 147Tentativas de explicação: as teses de F. Gény e de L.Duguit........................................................................... 150

A sociologização do direito........................................... 158A obra de Maurice Hauriou......................................... 158A “sociologia jurídica” de Georges Gurvitch............. 162A “construção social do direito” de Roscoe Pound.... 166

“Novas” filosofias do direito: materialismo, histori-cismo, vitalismo............................................................. 168

A corrente de inspiração marxista: de Marx a E. Bloch. 169As vias do historicismo: Burke e a escola de Savigny.. 175Um vitalismo com pretensão antijuridista: de NietzscheaFoucault.............................................. . ...................... 187

A condenação generalizada da normatividade.............. 194

Capítulo III - Os caminhos da “ontologia jurídica”......... 201

A tendência dita “objetivista”: o direito “existe”......... 204O realismo romanizante de Michel Villey.................. 204Ronald Dworkin: “levar o direito a sério”.................. 212A teoria autopoiética do direito................................... 220

As teorias ditas “subjetivistas”: o direito “é feito pelohomem” ........................................................................... 225

Paul Amselek e a ontologia das coisas do espírito..... 226Michel Troper e a concepção expressiva do últimoKelsen....................... ................................................... 229

André-Jean Amaud e a definição estipulativa do direito. 231

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As tendências ditas “intermediárias”: o direito e o“neo-institucionalismo” ................................................. 236

O legado de H. Hart: a textura aberta do direito........ 236

A renovação do positivismo........................................ 238O direito, “indefinível, mas presente”.......................... 242

PARTE III

UM NORMATIVISMO CRÍTICO.AS RAÍZES DO DIREITO

Capítulo I - O direito e a dialética hegeliana.................... 257O estatuto jurídico da coisa............................................ 259

O problema da transfiguração da coisa natural. . ........ 261Mutação idealista e juridicização da coisa................. 263O alcance da análise..................................................... 265

Da aprovação ao “rupturalismo”.................................... 269Os juízos de E. Cassirer e de A. Kojève...................... 269As críticas da Escola de Frankfurt............................... 271

Capítulo II - A investigação fenomenológica do direito.. 277

Adolphe Reinach, discípulo de Husserl........................ 278A análise fenomenológica da promessa..................... 280O direito e os juízos sintéticosa priori....................... 284

O método fenom enológico e o direito: a obra de R Amselek.......................................................................... 288

Os pontos fortes da análise fenomenológica.............. 288As hesitações sobre a teoria dosSpeech A cts............ 291

Diante do mistério interior do espírito.......................... 295

Capítulo III - Repensar K ant............................................ 297

A elucidação da ordem jurídica pela “crítica da faculdade de julgar” .................................................................... 298

K. O. Apel e a revisão do paradigma kantiano da reflexão transcendental......................................................... 299

__XHabermas e o ideal de uma comunicaçãoiransparente.. 304

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A revisão do imperativo categórico e a releitura daCrítica da razão prá tica................................................ 308

John Rawls e a questão da justiça............................... 309A igualdade democrática: contra o utilitarismo e os

positivismos................................................................. 311A idéia de um “consenso por coincidência parcial” ... 314

Da Crítica da razão pura à “ciência filosófica pura”do dire ito........................................................................ 319

Kant e a revolução metodológica do criticismo.......... 321A Rechtslehre e a dedução transcendental dos conceitos do direito............................................................ 324A Reine Rechtslehre : do método crítico à hipóteselógica transcendental daUrnorm ............................... 340

Conclusão........................................................................... 359

ndice onomástico.............................................................. 371

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Prefácio

“Os juristas ainda estão buscando uma definição para seuconceito de direito”', escrevia Kant em 1787. O tempo passou.

Nos trabalhos sobre filosofia do direito, que se multiplicamatualmente de modo inflacionário, continua sendo difícil encontrar uma definição que permita “arrancar o direito do magmadas dúvidas”2.

Devemos refletir sobre os ensinamentos da constatação decarência que se impõe: enquanto a filosofia do direito se nutrir de uma investigação dogmática ou empírica, será incapazde delimitar o campo próprio do direito e de circunscrever acompreensão de seu conceito. A lição é clara: para eliminar as

incertezas e os equívocos que se acumularam ao longo dos séculos na filosofia do direito pela ausência de uma problematizaçãocorreta das estruturas jurídicas das sociedades humanas, faz-senecessária outra abordagem do direito: uma abordagem minuciosa e crítica condicionada, antes de mais nada, pelo trabalhointelectual capaz de forjar o aparelho metodológico que possi bilitará escapar às ilusões dogmáticas que submetem o direitoao jugo das doutrinas e das polêmicas.

É um empreendimento difícil pois, sob o peso esmagador

das tradições, não é uma escolha entre o verdadeiro e o falso,ou entre o válido e o não-válido que convém realizar. Trata-se

1. Kant, Critique de la raison pu re, segunda edição, Bibliothèque de la Pléiade, 1.1, p. 1311, nota.

2. J. Carbonnier, prefácio de Th. Ivainer, L ’in te rp rétation des f a its en dro it , LGDJ, 1988, p. 3.

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XIV OS FUNDAMENTOS DA ORD EM JURÍDICA

bem mais de avançar em meio às tensões e conflitos entre o queé e o quedeve ser , que não só se estabelecem e desaparecemapenas para renascer em seguida, mas habitam a própria razão

; em seu esforço arquitetônico de regulação das condutas humanas. De fato, a idealidade do direito não desce às estruturas jurídicas do mundo humano como um raio da claridade diamantina do mundo inteligível. É uma idealidade problemática, istoé, uma obra para ser continuada e recomeçada sempre, por umlado, jamais perdendo de vista as exigências intrínsecas que aanimam e, por outro, ajustando-se às realidades mutáveis domundo vivido. Em outras palavras, a idealidade do direito só

pode ser decifrada através do necessário mas difícil procedimento sintético que se realiza na esfera jurídica. Ela começa a sedesenhar à luz de uma concepção transcendental na qual o direito traz em si, simultaneamente, a mais elevada esperançaque o homem atribui à sua humanidade e a consciência de umafinalidade última que jamais se verificará na realidade do mundo: o “fim último” do direito é “evidentemente irrealizável”. É por isso que o direito se impõe aos homens não apenas comouma tarefa por realizar, mas como uma “tarefa infinita”.

Portanto, uma vez que a filosofia traçou, num universo jurídico quase tão antigo como o mundo -Ubi societas, ibi ju s diferentes vias, propomo-nos a explorar seus caminhos a fim de pôr em evidência seus pontos fortes e suas dificuldades. Essetrabalho exploratório é necessário, a nosso ver, para apreenderas necessidades conceituais e as exigências intelectuais, queconstituem as estruturas ideais de que a juridicidade do direito

não pode privar-se. Essa exploração irá nos mostrar, ao mesmotempo, os perigos dos dogmatismos que marcaram a história dasidéias e as aberrações dos reducionismos que se esforçam emfazer o direito nascer do fato.

Com efeito, numa abordagem já clássica, a filosofia do direito manteve-se por muito tempo eqüidistante das teorias jus- naturalistas e juspositivistas. Não podemos ignorar o conflitodogmático desses dois tipos de doutrinas, cujo enfrentamentonos leva ao “cabo rias tormentas” da filosofia do direito. Evoca-

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PREFÁCIO XV

remos, numa primeira parte de nossos comentários, os esquemasantitéticos dessas duas concepções tradicionais da fundação do

direito. No entanto, mesmo que a oposição dessas teorias ainda conserve hoje as feições de uma discussão fundamental, as filosofias contemporâneas preferem enfatizar outro aspecto da esferajurídica na qual se deleitam em sublinhar que, longe dos triun-fos que a racionalidade conheceu na época doCódigo Napo- leão, a vivência cotidiana inflige ao pensamento racional penetrantes desmentidos: a “derrota do pensamento” se faria sentir

particularmente no universo jurídico. Portanto, novas tensõesinvadem a filosofia contemporânea do direito, dividida entre afidelidade de certos autores à compreensãoracional da ordemjurídica e a obstinação de alguns outros em destacar a conotação empírica ou pragmática de um direito que brotaria da experiência ou da história. O “declínio do direito” teria, pois, umasignificação filosófica que convém interrogar e, sobretudo, julgar. Vamos dedicar-nos a essa tarefa na segunda parte de nos

sos comentários, em que nos encaminharemos dos abalos àsubversão dos fundamentos tradicionais da ordem jurídica.Mas, diante das discussões doutrinárias cujas postulações

esmagam o pensamento, acreditamos que uma reflexão sobreo direito só será autenticamente filosófica se escapar da estagnação provocada pelos dogmas. É preciso, portanto, fugir desses torneios sistemáticos que, em sua aparente diversidade, sãotodos terrivelmente redundantes. Cabe, pois, à filosofia do di

reito refletir sobre o direito positivo que insere sua regulaçãoem nossas sociedades humanas. Em outras palavras, a filosofia do direito será o prolongamento dateoria do direito que descreve e analisa cientificamente a ordem jurídicade lege lata. Nesse sentido, deverá conduzir uma investigação fundamentalque seja ao mesmo tempo modesta em seus procedimentos (umavez que não tem de construir o direito mas interrogá-lo atravésda regulamentação da ordem jurídica que o exprime) e ambicio

sa em seu programa e em suas metas (uma vez que lhe caberádescobrir o sentido e o valor dos edifícios jurídicos que constituem a estrutura de toda organização sociopolítica).

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XVI OS FUNDAMENTOS DA ORD EM JURÍDICA

Nessa perspectiva, a promoção da problemática jurídicaexige umolhar crítico que aclare e esmiuce o universo do direito para descobrir as exigências fundamentais, sem as quais elenão seria pensável nem possível e não teria sentido nem valor.É esta a temática de tipo criticista que exporemos na terceira

parte de nossos comentários.

Nossa investigação dos fundamentos da ordem jurídica sedesenvolverá, por conseguinte, em três momentos que não têm

nenhuma pretensão de expor uma “história” das idéias, mas que,uma vez que a fixação dogmática da filosofia do direito só podeconduzir a ilusões especulativas, visam antes a mostrar como o

progresso da filosofia do direito depende hoje de um esforçode problematização crítica que nos parece ser o único capaz derevelar a fundação transcendental do direito e de compreendera exigência de sentido e de valor que, contra um horizonte normativo, constitui a juridicidade do jurídico.

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Preâmbulo A indecisão problemática do conceito de direito

A conotação do termodireito, polivalente ao extremo, excluia possibilidade de uma resposta clara e definitiva à pergunta

“O que é o direito?”. A indecisão semântica da palavradireito'encontra-se em todas as épocas. O direito romano, por exem plo, apesar de sua exemplaridade, deixava transparecer a equi-vocidade do termo jus: Celso, citado por Ulpiano, definiu o ju s comoars boni etaequi2, mas Paulo declara que: “Entende-se odireito de várias maneiras: por um lado, o que é sempre eqüita-tivo e bom é chamado direito enquanto direito natural; por outro,o que, em cada Cidade, é útil para todos ou para a maioria [échamado direito] enquanto direito civil.”3Já se delineia no horizonte “o cabo das tormentas” da filosofia do direito... Todavia,foram os jurisconsultos dos tempos modernos que puseramclaramente em evidência a polissemia da palavradireito. Noséculo XVI, autores como Bodin, Doneau, Connan ou Charon-das atribuem à palavradireito uma significação versátil: os mandamentos da lei “divina e natural” aí se mesclam com preceitos humanos, eles mesmos ora veiculados por usos e costumes,ora expressos por leis cuja finalidade, além disso, oscila entreo justo e o útil. Nos séculos XVII e XVIII, a escola do “direitoda natureza e das gentes”, de Grotius a Pufendorf e a Burlama-

qui4, expõe que o termodireito tem múltiplas acepções que de

1. Essa polissemia e xiste em todas as línguas.2. D ig esto, 1,1,1.3. D ig esto, 1,1,2.4. Grotius, Le droit de la guerr e et de la pa ix (1625), trad. Barbeyrac,

Amsterdam, 1724 (reimpressão Bibliothèque de philosop hie politique et juri-

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XVIII OS FUND AM ENTO S DA ORDEM JURÍDICA

signam ou “o justo”, ou “uma qualidade moral da pessoa”, ouentão a lei; deve-se ainda distinguir odireito natural, o direito voluntário, divino ou humano, e odireito das gentes. Essas distinções correspondem a campos de compreensão diferenciados. Decorre daí que, para o pensamento clássico, o terreno dodireito não é estranho nem à metafísica - o direito natural clássico tem uma dimensão cosmológica nem à teologia - existeum direito divino - , nem à ética - o direito pode designar uma“faculdade moral da pessoa” -, nem à antropologia - o direitonatural moderno é inerente à “natureza humana” nem à política - o direito humano voluntário é “determinado” pelo podersoberano do Estado. Portanto fica patente que, nesse campo decompreensão multidimensional e complexo, o termodireito corresponde a umconceito vago, difícil de definir com rigor. Nanossa época, essa plurivalência da palavradireito acentuou-seainda mais: a reivindicação incessante dos “direitos” vinculados à pessoa é levada em consideração pelo direito objetivo; a

juridicização dos direitos subjetivos ou o reconhecimento dos“direitos do homem” acarreta a diferenciação deles em categorias, cuja aparente ordem classificatória ameaça mascarar inú

meras obscuridades filosóficas.Em sua persistência, o pluralismo semântico da palavradireito decerto não é acidental. Ele corresponde àambigüidade essencial de seu conceito: na verdade, a multiplicidade derelações que o direito mantém com outros campos da existência humana mostra a dimensão da dificuldade existente paracircunscrever seu campo próprio, o que obsta a um empreendimento de definição rigorosa. Tanto em sua extensão como emsua compreensão, o conceito de direito se mostra rebelde aoaclaramento.

E realmente difícil, apesar de todos os esforços de emancipação e de elucidação que o movimento das idéias aplicou a

dique, Caen, 1984), liv. I, cap. 1; Pufendorf, Le dro it de la nature et des gen s (1672), trad. Barbeyrac, Basiléia, 1732 (reimpressão Bibliothèque de philoso- phie politique et juridique, Caen, 198 7), liv . I, cap. 1, §20; Burlamaqui, P rín cip es du dro it natu re l (1747) (reimpressão Bibliothèque de philosophie poli- tique et juridique. Caen. 1989), 1, cap .-VII. — - - -

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REÂMBULO XIX

sse conceito, afastar as brumas de que o cerca sua sobrecargaemântica. —

O direito em busca de sua especificidade

A questão da independência conceituai do direito podearecer futil para um jurista profissional, cujo ofício é aplicar,m conformidade com regras processuais bem estabelecidas, aetra das leis e dos códigos. Da mesma maneira, um adepto doositivismo jurídico, em razão de seu postulado legicêntrico ee sua vontade de neutralidade axiológica, considerará que oroblema tem um quê de superfluidade ou de derrisório. Nontanto, a questão da especificidade conceituai do direito e,or conseguinte, a da autonomização de seu campo estão entres mais importantes caso se queira escapar da equivocidade

desde sempre inerente ao termodireito e esclarecer sua verdadeira natureza. Não é inútil, portanto, expor a genealogia damancipação da esfera jurídica em relação aos campos vizihos, que sempre a ameaçaram de absorção ou esmagamento ehe embaçaram o conceito. Contudo, não é nosso propósito aquixaminar esse percurso genealógico numa perspectiva histori-ista; iremos considerá-lo do ponto de vista filosófico, na me

dida em que o olhar crítico que perscruta a compreensão doonceito de direito revela a problematicidade vinculada à sua evoução. Não vamos expor, portanto, as metamorfoses das cate

gorias ou das noções jurídicas, mas mostraremos como o universo do direito, por uma maturação de seu próprio pensameno, procurou dar a si mesmo um contorno distinto, cuja remotanserção na ordem natural das coisas estava longe de deixarmaginar uma possível auto-suficiência.

A maturação semântica tendente a livrar o termodireito das interferências e confusões que lhe velavam o pensamentoe deu em três ondas sucessivas: seu conceito, primeiro eman

cipado de suas implicaçõesteológicas e depois de sua resso

nânciamoral, pretendeu a neutralidadeaxiológica. A questãoé saber se essas três ondas, por mais intensas que tenham sido,ibertaram o termodireito,ú q .ç q s q de seus equívocos. __ __

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A primeira onda ou a dessacralização do direito

As reviravoltas filosóficas da modernidade contribuíram, para apurar o conceito de direito arrancando-o de seu invólucro

cosmoteológico. Mas esse esforço de elucidação realizou-se por etapas e com modificações diferenciadas de maior ou menoreficiência.

Já no século XVI, surgiu uma vontade de cientificidadeque se traduziu por tentativas de sistematização do “direito universal” e, correlativamente, por uma nítida tendência ao acla-ramento do termodireito. Assim, em 1576, Jean Bodin constata, em seu Juris universi distributio, que até então o direito nãoensejara nenhuma exposição científica5. Seu objetivo é remediar essa carência que resulta, segundo ele, da deficiência doutrinai e metodológica, cuja responsabilidade atribui aos glosa-dores Imerius e Bartolo, bem como aos jesuítas de seu tempo,como Connan ou Cujas. Em tomo de quatro questões, cuja formulação retoma a teoria aristotélica das quatro causas, ele ela bora um quadro das categorias gerais do direito que é uma verdadeira tópica jurídica: quais são, pergunta ele, a causa formal,a causa material, a causa eficiente e a causa final do direito?6Para conduzir essa investigação, não é necessário vinculá-la aoshorizontes nebulosos da metafísica ou da teologia; ela deve ser

“científica”, isto é, sistemática. A unificação do direito, ao racionalizar seu conceito, deve pôr em evidência “o essencial desua essência”: “As razões seminais do direito e da justiça colocadas na alma de cada um pelo Deus imortal não tardam emser despertadas pela razão; e, tendo a razão se desenvolvido emnós até a plenitude, ela engendra esse conhecimento do direitoque tomamos por objeto, cujos limites a experiência e a ciência

nos permitem definir.”7

í»

XX OS FUNDAMENTOS DA ORD EM JURÍDICA

5. J. Bodin, Exposé dit dro it universel , PUF, tradução e comentários, PUF,1985, dedicatória a Jean Nicolai', p. 9.

6 Ib id pp 13-5

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PREÂM BULO XXI

Esse ideal de cientificidade é compartilhado por inúmeroseruditos do século XVI, de Doneau a Grégoire de Toulouse e aAlthusius8. No entanto, apesar desses primeiros sinais de refor

ma intelectual, o aclaramento conceituai do termodireito aindaé precário: primeiro, o direito romano, embora criticado9, continua sendo em geral o modelo de referência; depois, parece,como diz Guy Coquille (aliás de modo bastante ambíguo), queo direito contém, “em poucas palavras”, “muito sentido”. Ocerto é que, sobrecarregado porum excesso de glosas, o conceito de direito fica dividido entre suas fontes divinas e sua feitura humana10, entre suas sementes naturais e sua forma legal,entre sua vocação moral e sua função técnica, entre um ideal deretidão e a prática concreta das espécies singulares... Em suma,o conceito de direito está dividido: por um lado, impõem-se as perspectivas racionais de uma eventual codificação que lheimplicaria homogeneização; por outro, o pluralismo dos costumes regionais resiste, com sua carga de pitoresco e de eficácia.Portanto, embora haja um despertar da racionalidade jurídica,que busca a especificidade irredutível subsumida no termodireito, ela está às voltas com duas tendências antagônicas -

a sistematização e a casuística que dão ao direito duas feições incompatíveis. Como a multiformidade do direito engendra-lhe multivocidade, seu conceito permanece indefinido e incerto.

No século XVII, o projeto epistemológico de Grotius permite dar um passo gigantesco no sentido da compreensão doconceito do direito. Ele sabe que a assimilação tradicional en

8. Cf. P. R. Stein, Regula e ju r is f ro m ju r ís tic rule s to le ga l max im s, Edimburgo, 1966; M. Villey, La fo rm ation de la pen sée ju r id iq u e m oder ne, Montchrestien, 1968, pp. 387 ss. e 513 ss.

9. O exemplo mais flagrante é sem dúvida Anti tr ib onie n, de François Hotman, publicado em Paris em 1567.

10. De modo geral, a questão das origens(fontes juris ) preocupa sobremaneira os jurisconsultos d o século XVI; o que, aliás, era uma tradição oriunda do D ig esto (I, II, 2); deve-se notar, porém, que eles não falam dos “princípios” e muito menos dos “fundamentos” do direito.

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XXII OS FUNDAMENTOS DA ORDEM JURÍDICA

tre o ju s e o justum" bem como a polissemia do termodireito podem dar azo a muitos mal-entendidos. Por isso examina o

direito segundo “o espírito de geometria” (mos geometricus)12e, antecipando-se a Descartes, busca, por via demonstrativa, aevidência racional que deve terminar na inteligibilidade douniverso jurídico13. Refuta assim o espírito dadisputatio esco-lástica, cujo debate pro e contra não poderia engendrar nenhuma certeza. Mas, sobretudo, Grotius pretende libertar o pensamento do direito da vassalagem teocrática: “O direito seria oque é”, declara ele, “mesmo que se concordasse [...] que nãoexiste Deus ou, caso exista um, que ele não se interessa pelascoisas humanas”14; proposição que não deve ser entendida teti-camente - o que significaria “um crime horrível” - , mas apenas hipoteticamente. Esta hipótese, porém, é suficientementetransparente para indicar que a elucidação do conceito de direito passa por sua necessária emancipação da teologia. O sentidoe o valor do termodireito não devem ser procurados em alguma transcendência incompreensível para o homem. Só podem proceder darazão que construiu seu conceito. Conseqüentemente, apenas uma análise realizada segundo os procedimentos da razão humana é capaz de depreender a compreensão dotermodireito.

Assim, quando Galileu15, mais categoricamente que Copér-nico, revoluciona as ciências da natureza e proclama a autonomia da física matemática, quando Descartes faz “a descoberta

11. Grotius, D roit de la guerr e et d e la pa ix , I, I, § III, 1.12. Ibid., Pro le gôm enos, § LX.13. Ib id ., P role gôm enos, § LVIII: “Propus-me nesta obra principalmen

te três coisas: 1. Fundamentar o que e stabeleci a partir das razões mais evid entes que pude encontrar; 2. D ispor em boa ordem minhas matérias; 3. E d istinguir claramente as coisas que po ssam parecer semelhan tes ou de mesm a natureza, embora entre elas haja um a diferença mu ito real.”Como em Descartes, essas regras do método têm evidentemente um alcance muito maior que metodológico.

14. Ib id ., P ro le gôm enos, § XI.15. Grot-.us admirava Galileu e considerava-o “o maior-gênio do século”. -

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PREÂMBULO XXIII

metafísica do homem”16, Grotius considera a independência doconceito de direito, desde que seja reportado à razão humanacomo à sua verdadeira fonte17. Portanto, dá a seu volumoso tratado sobre o Direito da guerra e da paz o tom de um amploarrazoado em favor da autonomia racional do direito: a “ciência do direito” requer, para atingir a clareza e a distinção de seuconceito, definições exatas (definiendi rationes) e uma ordemde exposição segura (certus ordo).

No entanto, ao estudar metodicamente o alcance semânticodo termo direito para libertá-lo de sua aura teológica, Grotiuslhe reconhecetrês acepções: uma em que o direito se vinculaao valor de justiça, outra em que ele designa uma “capacidade”da pessoa, acepção esta considerada por alguns uma prefigura-ção do “direito subjetivo”, ou outra, ainda, em que ele se confunde com a lei e se determina como um corpus objetivo deregras obrigatórias destinadas a reger a sociedade18. Embora sejaverdade que, no começo do século XVII, enfatizar o caráter regulador e normativo do direito era uma atitude nova, que a doutrina moderna viria a adotar e perpetuar, essa idéia de modoalgum elimina asobredeterminação do vocábulodireito: embora imponha claramente a distinção entre direito natural e direito positivo, tudo se embaralha quando se sabe que o direito“voluntário” é estabelecido ou por Deus ou pelo homem e que,ademais, sua observância confere “valor moral” às ações19.

16. F. Alquié, La découverte métaphys ique de l ’hom me c hez D escarte s, PUF, 1950.

17. Não achamos que Grotius rejeite todas as contribuições da tradição escolástica que o formou; reconhece particularmente, como demonstra magistralmente P. Haggenmacher em sua obraGrotius et la doctrine de la guerre u ste , PUF, 1983, a escolástica espanhola da escola de Salamanca, mas envereda pela via do humanismo aberta por Hotman e por Alciat. N o entanto, jamais pensará em transportar os procedimentos cient íficos do mecanismo para o campo do direito - com o fará Hobbes em seus tratados políticos alguns anos mais tarde. Procede à análise do direito guiado por sua necessidade metodológ ica de siste- maticidade racional e por sua exigência filosóf ica de clareza conceituai.

18. Grotius, D roit de la guerre et de la paix , I, I, § IX, 1..19. thid.. l. ]. S ÍX. 2 . ._ _ _ _ _ _

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XXIV OS FUNDAMENTOS DA ORD EM JURÍDICA

Mesmo quando a filosofia de Hobbes aprimora a intuiçãode secularização do direito expressa na obra de Grotius insistindo em sua fonte antropológica e em seu caráter laico - o Estado-

; Leviatã, “o único legislador”20, é o único habilitado a estabelecer o direito ela não elimina a sobrecarga semântica do termo direito. Na verdade, por um lado, odireito de natureza éuma noção infrajurídica que designa o poder de manter-se vivoque o indivíduo teria num hipotético “estado de natureza”21e,

por outro, as leis civis do Estado só podem estabelecer as regras

do direito positivo respeitando a teleologia da lei fundamentalde natureza22. Areferência metajuridica da ordem jurídica é in-suprimíveP: o construtivismo racional do direito do Estado-Leviatã não é suficiente, apesar de sua clareza operatória, paraapurar o alcance semântico do direito. Seu conceito, emboradessacralizado, permanece atolado em significações adventí-cias que continuam a obscurecê-lo.

A primeira onda, na qual Leo Strauss via os sinais da modernidade, abre o processo contra a filosofia cosmoteológica tradicional, masnão o vence. Tende a inserir o conceito de direito numa cultura humanista e científica, cujos parâmetros já não são osdas concepções etemitárias clássicas. Como o homem ganha afrente do palco, já não situa sua noção do direito sob o signo daordem cósmica desejada por Deus, mas sob o signo da razãohumana. Só que, nessa tentativa de arrancar o direito do excedente

semântico que lhe embaralha a noção, jurisconsultos e filósofos permanecem submetidos ao horizontemetajuridico a partir doqual decifram seu conceito. Inseparável do invólucro metafísicoque o prende, o termodireito não se livra do peso de sobrecargas ede sobredeterminações que dão origem à sua equivocidade.

20. Hobbes, Léviathan , trad. F. Tricaud, Sirey, 1971, cap. XXVI; cf. De

eive, trad. Sorbières, Flammarion, 1982, XIV, 11. [Trad. bras. Lev iatã , Martins Fontes, São Paulo, em preparação]

21. Lévia than, cap. XIII, p. 121.22. Ib id ., cap. XIV, p. 129.23. Remetemos ao nosso artigo “L’intuition positiviste de Hobbes et

ses limites” inAc/e s du colloqne H obbesCNRS Paris Presses Universitai

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PREÂM BULO XXV

A segunda onda ou o hiato entre o direito e a moral

Apesar das modificações mais ou menos moduladas, em

linhas gerais a escola do direito natural moderno permaneceufiel às categorias epistemológicas definidas por Grotius. Contudo, a conotação do termodireito, que passa a designar principalmente umcorpus de regras que administram a sociedade,suscita um novo tipo de reflexão. Com efeito, por ser prescritiva,uma regra impõe sendo acompanhada de obrigação; portanto, para esclarecer o conceito de direito, tornava-se necessário interrogar-se sobre o dever-ser quea regra impõe. Essa interrogação iria provocar a autonomia do direito em relação à moral.

Embora a intuição de uma diferença de natureza entre aobrigação moral e a obrigação jurídica exista de maneira difusa em autores como Montesquieu, Linguet ou Mably, a cisãoentre os conceitos de moral e de direito só se efetua com Kante Fichte.

Segundo Kant, toda a filosofia prática remete ao factum ra- tionis da lei moral, o que significa que, no ser racional que ohomem é, a vontade tem poder de legislar. Mas a “lei moral”exprime-se segundo as duas figuras dodireito e davirtude. Ora,embora direito e virtude tenham um mesmo princípio e ummesmo fim, não têm a mesma natureza, de sorte que “mesmoum povo de demônios” obedece a regras de direito24. Portanto,mesmo quando o direito e a moral se articulam em tomo dostrês conceitos comuns de dever, obrigação e imputação25, elesnão se confundem: enquanto as regras morais comandamin

fo ro interno e fazem do dever um móbil suficiente da ação, asregras de direito comandamin foro externo e, por não integraro móbil do dever à lei, são acompanhadas de coerção26.

O fato de as perspectivas teleológicas do direito e da moral lhes serem comuns, pois ambos estão a serviço da realiza

24. Kant, Essai su r la pa ix perpétu elle , Primeiro Suplemento, § 1.25. Kant, M éta physique d es moeurs , Introdução geral, § IV, in D octr in e

du dro it, trad. Philonenko, Vrin, 1971, pp. 95 ss.26. Ibid ., D octr in e du dro it, Introdução, § D, p. 105.

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XXVI OS FUNDAMENTOS DA ORDE M JURÍDICA

ção da humanidade no homem, em nada altera a irredutibilidadedeles. Eles operam,cada qual à sua maneira, a síntese entre anatureza e a liberdade: assim, num contrato, a palavra dada acarreta, em conformidade com a letra do contrato, o cumprimentoda promessa e a execução de um dever exterior; em contrapartida, toda promessa, moralmente considerada, obriga em consciência. O direito situa a ação do sujeito de direito sob o signoda heteronomia; a moral implica a autonomia da pessoa.

Partindo das teses kantianas sobre esse tema27, Fichte ra-dicaliza-as ao ponto de fazer do direito - mas não da moral - aviga mestra do sistema da filosofia. É verdade que só chega a

essa tese por uma difícil evolução: depois de ter inicialmenteassimilado a lei moral e o direito natural28, vê no direito a únicacoisa que torna possível a coexistência das liberdades, ou seja,o que permite inserir a liberdade no mundo sensível29. Ora, alimitação recíproca das liberdades não poderia relacionar-se amoral: ela supõe a inter-subjetividade, que não diz respeito à moral já que ela se baseia no “egoísmo” da consciência individual. E, pois, impossível definir o direito em função da moral.

Mais ainda: ao lançar um olhar crítico sobre as filosofias docontrato social, Fichte descobriu que, longe de a sociedade se definir a partir do indivíduo, é, pelo contrário, a subjetividade que

pressupõe a inter-subjetividade. Assim, longe de pressupor amoral e de se aproximar dela por um procedimento dedutivo30,o direito dela se distingue: aliás, se a lei moral só encontra ex

pressão no imperativo categórico, incondicional e formal, que

27. Já em 1790 percebera seu sentido, ao ler aCrítica da faculda de de ju lg a r, §§ 83 e 84.

28. F ichte,Contributions po ur rectifier le juge m ent du pub lic sur la Ré- volutionfrançaise, 1793 , trad. J. Barni, reed. Payot, 1 974 ,p. 147.

29. E esta a grande idéia desenvolvida , em 1796, no Fondem en t du droit nature l. Cf. tradução de A. Renaut, PUF, 1984, e A. Renaut, Le systèm e du droit. Philosophie e t d ro it dans la pen sée de F ichte , PUF, 1986.

30. Fichte, na Introdução ao Fondem ent du droit natu re l, escreve queele “está dispensado... d e refutar de modo detalhado os que procuram deduzir a doutrina do direito da lei moral” (p. 25). Mas é claro que essa refutação se

impõe a ele com o uma evidência. - - ---- ,-- —— - -

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PREÂMBULO XXVII

comanda de forma absoluta, o direito permite, autoriza ou ha bilita no próprio âmbito do sistema positivo em que suas regrasse inserem.

As análises de Kant e Fichte sem dúvida apresentam dificuldades e só adquirem todo o seu sentido no seio de uma concepção transcendentalista da filosofia. Por isso foram tantasvezes mal compreendidas. No entanto, ao mostrar que o direitonão poderia proceder da “boa vontade”, o criticismo operouum aclaramento conceituai que tem algo dedefinitivo.

A cisão entre os dois conceitos de direito e moral teve, noentanto, um preço na teoria geral: os custosos equívocos do

“positivismo jurídico”. A faxina semântica do direito aindanão terminara.

A terceira onda ou a retração do horizonte axiológico do direito

Com a progressiva dissipação das brumas que encobriama significação própria da esfera jurídica, alguns teóricos consideraram possível liberar o direito de toda referência ao horizonte metajurídico dos valores. Os diferentes positivismos pre param-lhes a ascensão, mas provocando novas ambigüidades para o termodireito2'.

A axiomática básica dos positivismos jurídicos resume-se,não obstante seus variados sotaques, a dois postulados: o legi-centrismo estatal e a neutralidade axiológica do direito. Sobreessa base de trabalho, a intenção metodológica da doutrina é

clara: o positivismo quer ser uma teoria do direito positivo. Avacuidade axiológica do direito e sua indiferença por qualquerhorizonte metajurídico devem possibilitar seu tratamento científico, de certo modo imunizado contra toda tentação filosófica.A teoria positivista do direito descreve o direito independentemente de toda problemática de constituição: só lhe interessa odireito tal como é “estabelecido”.

31. Para uma exposição mais completa, remetemos aosCahiers de phi- losophie Dolitiaueet mridiaue. nf X lll: Du posi tivism e ju ridiq ue, Caen, 1988.

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XXVIII OS FUNDAMENTOS DA ORDEM JURÍDICA

Mas, em nome de sua pretensão à cientificidade, a doutrina positivista não consegue eludir totalmente a questão da inteligibilidade do direito positivo. Sem formular expressamente aquestão “por quê?”, banida por sua intenção epistemológica,ela admite de modo geral que o direito positivo é “estabelecido” pela autoridade do Estado e, como tal, é acompanhada deum voluntarismo decisionista mais ou menos explícito conforme os autores. Embora faça parte da metodologia positivistanão examinar a gênese das regras, ela considera inconteste queo direito é definido, portanto criado, pela lei do Estado.

Além disso, em alguns teóricos uma inconseqüência doutrinária provocou a transformação de seu desejo de cientificidade em uma atitude cientificista. Essa modificação teórica é,na verdade, um desvio paradoxal, mas difícil de evitar no espírito analítico do positivismo. Certos autores apoiaram, pois, ovoluntarismo estatal que a existência do direito positivo implica num determinismo explicativo: segundo eles, são os fatossociais ou a conjuntura dos acontecimentos que levam o legislador a decidir sobre o que é o direito. É certo que, por essa via,a retração dos valores e a eliminação da metafísica continuama pôr em evidência a conotação objetivista do direito e a doutrina não sai das vias da ciência positiva. Mas, na vertente so-ciologizante ou historicista por que ela envereda, a teoria positivista do direito cai em contradição: ao passo que no princípioela considerava que o direito deveria ser estudado como umobjeto auto-suficiente, acaba por tornar o direito heteronômi-co, pois este parece ser produto de condições socioeconômicasou históricas. Ainda que situado na linha epistemológica definida por Bergbohm32, tal movimento, longe de depurar o conceito de direito, atola-o, ao contrário, no pântano de um pensamento que o desqualifica visto que o assimila ao não-direito.

Se examinamos o positivismo jurídico em seu alcance filosófico, ele levanta dois problemas dos mais espinhosos. Comefeito, para permanecer fiel à sua postulação e à sua vontade

32. A célebre obra de Bergbohm, Juris pnid ence et p hilosophie du droit , data de 1892.

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PREÂM BULO XXIX

de pura neutralidade, ele tem de considerar que o direito é alheiotanto ao valor do justo como a qualquer horizonte de idealidade.Ora, as conseqüências dessa atitude são terríveis. Por um lado,

como compete à lei definir o justo - a lei é justa porque é a lei - ,ela encerra as normas do direito na ordem positiva estabelecida hic et nurtc pela autoridade estatal33e corre o risco de pender para anexação do direito pela política. Por outro lado, arecusa de um horizonte de idealidade leva a situar o direito riuma perspectiva horizontal em que ele só tem dimensão técnica einstrumental: o direito é assimilado às estruturas administrativas da sociedade e tende a se confundir com uma técnica gerencial. O dispositivo jurídico corre então o risco de se dissol

ver num aparelho burocrático complicado em que Max Weber,Leo Strauss e Michel Villey discerniam o critério pouco lison jeiro da modernidade34. Pelo menos, esse direito que se reduz àforma decisional do ato do legislador fica ressequido ao pontode refletir apenas um anti-humanismo35. O homem já não sabeolhar o céu, e o mundo está “desencantado”. Mas podemos irmuito mais longe e indagar senão faz parte da lógica do conceito positivista do direito ser a negação do caráter ideal fundamental do direito. De fato, se, em nome do cientificismo que

denuncia as mitologias transjurídicas, o direito é despojado detoda referência paradigmática, ele proíbe, por sua “objetividade”, qualquer juízo de valor e qualquer apreciação crítica. O positivismo jurídico é, no limite, um antijuridismo: seu conceitodo direito, a pretexto de neutralidade, nega o direito. Reduziras regras e as prescrições jurídicas à positividade das decisõesdo legislador - mesmo quando estas não são pura arbitrariedadee encontram sua razão de ser na conjuntura social ou no acontecimento histórico - decorre do “medo do normativo”: entendamos que as normas jurídicas são desprovidas da dimensãoideal da normatividade. Ora, esse aspecto, que caracteriza to

33. Cf. Carré de Malberg,Contribution à la thèorie gè ném le de 1’État, Ed. du CNRS.1962, t. I,p. 155.

34. M. Villey,Seize essais dephilosoph ie du droit , Dalloz, 1969, p. 63.35. Ib id .,p p . 60 ss.

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XXX OS FUNDAMENTOS DA ORD EM JURÍDICA

dos os positivismos, longe de esclarecer a noção de direito,atola-a num objetivismo rasteiro que a esvazia de seu sentidoespecífico.

Assim, apesar dos esforços da filosofia do direito e da teoria jurídica para esclarecer e emancipar o conceito de direito, asvertigens semânticas de que ele se Cerca de forma alguma estãoconjuradas. Mesmo quando os contornos do campo jurídicoescapam da penumbra das miscelâneas e das confusões, a conotação específica do direito está, até hoje, enleada no “magmadas dúvidas”36. O debate contemporâneo em tomo dos “direitosdo homem” é, por si só, o indício mais patente disso. Emboraseja inegável que esse debate põe em jogo os valores do humanismo contra todas as tentações reducionistas, ele envolve o termo direito em novos equívocos eminentemente temíveis. Essesressurgimentos de uma ambigüidade sempre redundante sob figuras imprevisíveis levam a pensar que, para escapar das indecisões que elas engendram, é necessário formular uma outra problematização do conceito de direito.

O direito em busca de seu sentido No período iluminista, as certezas da racionalidade mo

derna suscitaram um imenso otimismo jurídico. O humanismomoderno, tendo dispensado o realismo casuístico dos antigosromanos, já não concebia o direito como a arte dialética ou a prática prudente do justo; na vontade de sistematização que seinstalava, o direito o mais das vezes era compreendido comoum corpo de regras gerais destinadas a conduzir a vida dos in

divíduos na sociedade civil. Mas, correlativamente, a esperança de felicidade e de liberdade crescia até a obsessão. Por isso,a idéia dos “direitos humanos”, oriunda de intuições jusnatura-listas e de certezas racíonalistas, veio a se impor com uma forçacada vez mais intensa, como demonstra a Declaração dos di

36. J. Carbonnier, Prefácio ao livro de Th. Ivainer, L ' in terp ré ta tion des fq i ts.ezLrfraííJLGDJ,,1.9.88,.p. 3. ________________ . _____ .

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PREÂMBULO XXXI

reitos do homem e do cidadão de 26 de agosto de 1789. Ora, oreconhecimento solene dos “direitos” num texto que, servindode preâmbulo constitucional, devia ganhar autoridade jurídica,longe de ajudar na elucidação do conceito de direito, devia,com o correr do tempo, confundir suas próprias bases. Para encontrar o fio da meada das complexidades semânticas que seacumularam, é importante perscrutar o modo de articulação entre o singular e o plural no pensamento e na linguagem jurídicas.

A apropriação dos direitos pelo direito

A idéia dos direitos do homem não nasceuex nihilo com aDeclaração solene de 1789. Ela constitui mesmo um filosofe-ma chave, no século XVII, na obra dos jurisconsultos da escolado direito natural; e, para encontrar as fontes desse tema, é necessário remontar ao nominalismo que, no século XIV, Guilherme de Occam transformou na ponta de lança de sua filosofia.Nosso propósito aqui não é expor essa genealogia. Apenas lembraremos que o processo desencadeado pelo nominalismo criou“a metafísica do indivíduo”. Recuperada, involuntariamente,pelos juristas da escola de Salamanca, e, muito particularmente,por Vitória, ela constituirá, nos séculos XVII e XVIII, o eixoda modernidade. Nesse contexto, o direito, pareceu estar inserido na natureza de cada homem. Considerou-se que ele pertencia naturalmente ao indivíduo antes da formação da sociedadecivil. A hipótese metodológica do “estado de natureza” serviu

para apoiar a idéia de que cada sujeito, em sua singularidade, éportador de um “direito natural” . Assim Pufendorf, embora reconheça, como Grotius, várias acepções do termodireito37, insiste muito no uso quecada um está autorizado a fazer deseu direito38: esse modo de exprimir-se, inúmeras vezes reiterado,indica sem rodeios a conotação “pessoal” que ele atribui aoconceito de direito. Também Cumberland afirma que, em vir

37. Pufendorf, D roit de la nature et des gen s, I, I, 20.38 ./fr/t f.,I,y , 3; III, II,4 ;I V ,1 ,12; V III,III,30.

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XXXII OS FUNDAMENTOS DA ORDEM JURÍDICA

tude da “grande lei de natureza”, “há um direito que cada qual pode com razão atribuir a si como lhe pertencendo em particular”:é o direito de propriedade39. E Locke, que leu os dois jurisconsul-tos, considera que “cada qual” é, por natureza, tão livre comoqualquer outro e, portanto, igual a ele40; o direito que cada um temde “prover à sua própria conservação” confere-lhe, pela lei de natureza à qual é obrigado a submeter-se e a obedecei41, até mesmoo “poder de punir o crime”42. Explicita-se assim uma das três conotações que Grotius, em 1625, atribuía ao termodireito: este designa emcada homem uma capacidade ou uma faculdade moralque lhe é própria. E seu depositário e agente: propriedade, liberdade, igualdade são direitos naturalmente vinculados ao sujeito.

Todavia, não há dúvida de que, para esses autores, os direitos individuais são universais, devido ao seu enraizamentona natureza humana. Isso significa que a verdade desses direitosreside no dever que eles impõem a cada qual, portanto a todos e para todos: ou seja, nunca desejar para si o que se recusaria a

qualquer outro. Em outras palavras, o direito, em cada sujeito,é inseparável do dever que comanda universalmente o princípiode sociabilidade43. Não se pode esquecer, sem cometer, além deomissão, um erro de compreensão, que o “individualismo” dePufendorf, de Cumberland ou de Locke não é a glorificação incondicional dos poderes ou faculdades do sujeito. No entanto,mesmo quando os direitos de cada qual só adquirem sentido nadimensão de universalidade deles, sua natureza propriamente

jurídica cria problemas.Com efeito, esses direitos que a natureza deu a todos os

indivíduos são, por si sós, desprovidos de efetividade jurídica

39. Cumberland,Traitéphilosophique d es lois n aturelles, trad. Barbeyrac, Amsterdam, 1744 (reimpressão Centre de Philosoph ie Po litique et Juridique, Caen, 1990), I, XXIV.

40. Locke,Traité du gouvernement civil, 1690, § 4. [Trad. bras. D ois trata dos sobre o governo, Martins Fontes, São Paulo, 1998.]

4 \.Ib id ., § 6.42. Ib id ., §§ 8 e 11.43. Pufendorf, D roit de la natu re e t des gens, III, II, §2; Locke,Traité

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PREÂMBULO XXXIII

porque nada lhes concede garantia por princípio. “Caso tivesseexistido na terra”, diz Locke, “um tribunal ou uma jurisdiçãosuperior que determinasse o direito entre Jefté e os amonitas,

eles nunca teriam chegado a um estado de guerra.”44Que maisisso quer dizer senão que os direitos naturais dos indivíduossão, por si sós, privados de eficiência? Kant o mostrará magni-ficamente em sua Doutrina do direito. Discernindo as implicações das análises metodológicas e filosóficas das trêsCríticas,realiza a revolução copemicana do direito. No momento em queo tema do “direito subjetivo” se tornou um lugar-comum que senutre das fórmulas dos jusnaturalistas modernos45 e encontraem Wolfif uma justificação racional46, Kant repudia a dogmáti

ca que embasa essas teses. Pelo exame metódico do mais “sub jetivo” dos direitos - “o meu e o seu”, isto é, a propriedade -mostra que embora os direitos naturais dos indivíduos dependama priori da razão prática47, não passam de “presunções jurídicas”, simples possibilidades ou virtualidades dejuridicidade.Cabe à constituição da sociedade civil ou ao Estado arrancaresses direitos, naturalmente vinculados ao sujeito humano, desua precariedade de simples possíveis jurídicos. Em outras palavras, os direitos naturais-racionais do indivíduo precisam ser

autentificados como direitos. Para adquirir a juridicidade de quecarece, o “direito provisório” do estado de natureza tem de setornar, no estado civil, um “direito peremptório”48. Compreenda-se que os direitos individuais possuem de fato, em sua natureza e por si sós, uma validade metafísicaa priori, mas nãoforça jurídica efetiva. Enquanto a legislação positiva do Estadonão os tiver avalizado e garantido, os direitos do indivíduo per

44. Locke,ibid., § 21.45. Cf. Grotius, D roit de la guerr e et d e Ia paix , 1.1, §§ 4 e 5; Pufendorf, Elemen taru m juri spru dentiae universalis libri duo, liv. I, pass im ; Burlama- qui, P ríncip es du droit natu re l, VII, § 2; Elémen ts du droit natu re l, I, IV.

46. Cf. Ch. Wolff, P ríncip es du dro it de la natu re e t des gens, trad. Formey, Am sterdam, 1758 (reimpressão B ibliothèque de philosophie politi- que et juridique, Caen, 1988 ), liv. I.

47. K ant, D octr in e du dro it , § 9 .48. Ib id ., § 15.

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XXXIV OS FUNDAM ENTOS DA ORDEM JURÍDICA

manecem direitos latentes: uma simples promessa de direito.Por isso,os “direitos do homem”, que pertencem por excelência à singularidade subjetiva de cada qual ao ponto de seremsua “propriedade” - seu “próprio” - inalienável, só são “direitos” no sentido jurídico do termo, isto é, efetivos e eficientes,quando o direito do Estado45deles se apropria e os transporta para outra ordem.

Tal é o significado da Declaração solene de 26 de agostode 1789, cujos redatores não sabiam que eram, de certa forma,kantianosavant la lettre. Os direitos naturais de cada um - a li berdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão,diz o artigo 2 - são decerto “imprescritíveis” e “sagrados”. Maseles permanecem propriedades éticas com virtualidade jurídica enquanto o Estado, com suas leis e sob uma Constituição,não os protege em seus cidadãos das usurpações do Poder e dasameaças dos outros indivíduos. Osdireitos necessitam da mediação dodireito para adquirir um valor jurídico que não possuem por si sós.

Evidentemente podemos ter como certo que os redatoresdo texto de 1789 não se dedicavam muito a especulações filosóficas sobre o sentido do termodireitoi0\ aliás, cada vez queum problema desse tipo era mencionado, os debates preparatórios afundavam em discussões e contradições. Seja como for,na filosofia implícita da Declaração, a articulação entreos direitos e o direito mostra-se uma necessidade. Houve até quem

escrevesse a esse respeito: “Os direitos naturais são absorvidos pelo direito positivo: como o rei Midas transformava em ourotudo o que tocava, o direito positivo integra os direitos ‘naturais’que reconhece.”51Pelo menos, sua subsunção pelo direito “civil”

49. Para uma análise mais profunda d esse problema, remetemos a nosso trabalho, Kant et lep roblè m e du droit , Vrin, 1975, pp. 88-132.

50. Apoiado em dados informatizados, P. De lvaux afirma que em 1789 os deputados não haviam explicitado a idéia que tinham do “direito”, “Analyse lexicale des débats de la Constituante sur la Déclaration des droits de l’hom me”, in D roits, 1986, n° 2, p. 35.

51. P. Wachsmann, “Naturalisme et volontarisme dans la Déclaration des droits de rho m m e de-l-789’Vin-£ )w /7i,4 98 6, n? 2, p. 17.

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PREÂMBULO XXXV

(público) no Estado garante-lhes juridicização. È por isso que- é preciso sublinhá-lo contra as interpretações universalistasmuito freqüentes da carta de 1789 - os “direitos do homem”

são então pensados sobretudo como “direitos do cidadão”.Do ponto de vista teórico, a tese é poderosa; do ponto devista prático, ela foi rapidamente posta à prova. É preciso reconhecer, contudo, que no entrecruzamentodos direitos e do direito, por mais necessário e fecundo que seja, o aclaramentolexical do termodireito não progrediu muito. Será que sua an-fibologia, em que sempre ressurgem as questões da relação entredireito natural e direito positivo e da relação entredireito sub-,

jetivo e direito objetivo, é insuperável?

Nesse contexto problemático, os debates sobre a naturezados direitos queo direito deve subsumir e avalizar apenas servem, como veremos, para agravar as obscuridades.

A natureza dos direitos no direito

Deixamos deliberadamente de lado as teorias anarquizan-tes que pugnam paracontrapor os direitos ao direito: seu anti-

juridismo de princípio, puramente ideológico, visa ao desaparecimento do Estado e à morte do homem. Portanto, é evidenteque ele em nada poderia aclarar a significação do termodireito. Por conseguinte, limitar-nos-emos ao que a subsunção dosdireitos pelo direito ou, se preferirem, a inserção dos direitosno direito pode, por sua própria história, nos ensinar.

A natureza e o significado dos direitos que, em 1789, o direito era chamado a reconhecer pareceram muito claras paracertos intérpretes: claras demais, na verdade. Segundo eles, são“direitos-liberdades”52nos quais discernem - não sem segundaintenção política - as “liberdades fundamentais” do homem:são, por natureza, “poderes de agir” que, em cada um, são opo-níveis ao Poder do Estado. Deve ser possível a cada qual, se as

52. Cf. J. Rivero, Les libertés p ubliques, PU F, 1.1, 1“ ed., 1973; 3“ ed., 1.981. .. . ________________________

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XXXVI OS FUNDAMENTOS DA ORD EM JURÍDICA

sim quiser, circular, pensar, exprimir-se livremente, isto é, assumindo a iniciativa e a responsabilidade de seus comportamen

tos. Esses “direitos” são “fundamentais” porque estão arraigados na consciência individual, sendo por isso que são não sódignos de respeito mas inalienáveis. O liberalismo ético-políti-co que subjaz à sua formulação jurídica corresponde à vontadede salvaguardar a integridade da pessoa humana diante do poder público. Sem de forma alguma ser contra o Poder, definema parte do homem que a autoridade soberana não pode governar. Benjamin Constant apresenta a quintessência dessa com

preensão dos direitos em seusPrincípios de política:“Nenhuma autoridade pode atacar esses direitos, sem rasgar seu próprio título.”53

A interpretação é sedutora. Corresponde à preocupação doindividualismo liberal que inspira os redatores do texto da Constituinte. Até força a adesão quando, para revelar o teor dosdi- reitos-liberdades, ela os opõe, num admirável díptico, aosdirei- tos-créditos que surgiriam com a ideologia socializante da Constituição de 1848. Nessa outra conjuntura ideológico-políticacujas solicitações foram recolhidas pelo direito positivo, aoshomens seriam creditados direitos que o Estado lhes devia. Assim, a transformação semântica do termodireito(s) seria evidente: o termodireito(s) já não designa a esfera de liberdade,intocável e sagrada, que cada qual traz em si, mas a dívida quetodo membro da sociedade pode exigir que o Estado salde. Osdireitos-créditos correspondem aos deveres do Estado paracom seus membros, aliás individuais ou coletivos. Se esses créditos são denominados direitos, é porque invocam o poder queum cidadão ou grupo tem de obrigar o Estado a oferecer-lheassistência e serviços. Nessa transformação, o aspecto econômico e social dos direitos suplanta qualquer preocupação comdignidade pessoal. Mas, embora essa metamorfose tenha alcance político e histórico, não esclarece a juridicidade do direito.

53. B. Constant, Príncipes dep o litiq u e, in Bibliothèque de la Pléiade, cap. 1, p. 1075.

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PREÂMBULO XXXVII

O que convém sublinhar no tocante à lógica do sentido que otermodireito passa a ter é que, se os direitos são créditos, o Es

tado é o devedor perante quem os indivíduos ou os grupos afirmarão doravante pretensões ou a quem endereçarão reivindicações. Aliás, a língua registra essa mudança: os direitosde seexprimir,de circular... tendem a ser substituídos pelos direitosa instrução,a moradia... que, evidentemente, podem se multi plicar indefinidamente.

Embora, por sua aparente clareza, a dicotomia entre direi-tos-liberdades e direitos-créditos possa criar a ilusão e dar provas, do ponto de vista ideológico, da antinomia entre o liberalismo e o socialismo, vinculados respectivamente a direitos sub

jetivos e a direitos sociais, é no entanto capciosa do ponto devista de uma filosofia do direito em busca do sentido rigorosoda palavradireito54. Com efeito, se considerarmos a necessáriasubsunção dos direitos pelo direito, concluiremos, por um lado,que um direito-liberdade já é, por sua própria natureza jurídica, um direito de crédito na medida exata em que a possibilidadede agir que ele conota só ganha forma e significado jurídicos e,a fortiori, só gera efeitos jurídicos em virtude de sua consagração institucional. Como tal, um direito-liberdade, supondo-seque esteja relacionado com o que há de inalienável dignidadeem cada homem, implica, enquanto um direito autenticamente

jurídico, ser assumido pelo direito positivo estatal. Um direito-liberdade, a não ser que apenas tenha significado moral ou metafísico, requer a garantia do Estado, isto é, o crédito dos cidadãos junto ao Estado. Por outro lado e inversamente, se um direi-to-crédito corresponde, sem outra consideração, à reivindicaçãode uma prestação a ser quitada pelo Estado junto a esta ou aquela categoria social ou profissional, ele carece de fundamentação jurídica: pode atendera interesses corporativos, mas o fundamento da juridicidade não está na ordem empírica dos fatos

54. Ela fica ainda mais falaciosa porque certa filos of ia de obed iência marxista superpôs a ela o dualismo entre “direitos formais” e “direitos reais” que, do ponto de vista político, serve para denunciar a “mistificação liberal”. Nossa análise não se situa no terreno da controvérsia política.

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XXXVIII OS FUNDAMENTOS DA ORDE M JURÍDICA

psicológicos ou sociais. Noutra ordem de idéia, cumpre aliásacrescentar que a proliferação dos direitos-créditos provém deuma tendência à absolutização do direito, o que é sua autone-gação. Sabe-se, ademais, que o Estado intervencionista, aindaque assistencialista, contém inevitavelmente os germes de totalitarismo.

Dessa forma, descobre-se simultaneamente, perscrutandoa natureza dos direitos no direito, que, assim como sem a canalização de suas potencialidades pelo direito positivo a espontaneidade natural permanece uma espécie delaisser-faire instintivo,

portanto infrajurídico, assim também um legalismo estatal en-globante e sem falhas conduz, por um intervencionismo incessante, à supressão do direito. Não se poderia então concluir quea verdade do direito se situaria entre esses dois obstáculos? Nãose poderia dizer que, por um lado, a função do direito positivoseria a de conter os impulsos do direito natural, ao passo que,

por outro, o livre poder dos direitos naturais daria às estruturase às regras, cuja iniciativa cabe ao legislador, um sentido, umafinalidade e um valor? Essa maneira de compreender o direito

é, no fundo, banal; tem o mérito de ser estruturalmente equili brada; essa compreensão do termodireito põe em evidência afuncionalidade recíproca de seus ingredientes. No entanto, nesse quiasmo, a palavradireito ainda não alcançou sua transparência já que é ao mesmo tempo o que se procura definir e oque serve para o definir. Tentemos interrogar-nos sobre as dificuldades quase aporéticas em que tropeça a interrogação sobreo sentido do termodireito.

Dificuldades de uma definição

A incerteza conceituai vinculada ao termodireito pode facilmente cair em aporia e tomar impossível uma definição clarae completa sua. Uma definição deve, com efeito, indicar o queé o definido, mas limitando-se apenas ao que ele é e exprimindo tudo o que ele é. Ora, se perguntarmos, como durante muito

tempo a filosofia fez,Que é o direito? (quidjm?), é forçoso cons

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PREÂM BULO XXXIX

tatar o quanto a investigação empírica ou dogmática que tentaresponder a essa questão é desesperançosa. Mesmo quando se

empenha em dizer o que o direito não é para apreender o queele é em si mesmo, esse procedimento é pouco esclarecedor.De fato, embora seja verdade que a operação mental de

definir consiste em exprimir a essência ou a qüididade de umacoisa, é preciso primeiro afastar confusões ou amálgamas paradeixar claro o conceito de direito. Conclui-se, pois, que o direito não se confunde com a força: a força é poderio; ceder àforça é um ato de necessidade em que o direito não entra. No

entanto, deve-se notar que o direito necessita da força legal parase fazer respeitar. Convém por conseguinte ser mais preciso: éa violência enquanto expediente passional e tumultuoso que,

por natureza, exclui o direito. Nesse sentido, a expressão “o direito do mais forte” é uma contradição nos termos e puro sofis-ma. Ainda assim, o conceito do direito não revela sua essência.

De acordo com a etimologia da palavra direito que, em todas as línguas, remete à metáfora geométrica da retitude, seria

tentador pensar o direito como um aparelho deregras

cujo poderorganizacional substituiria as relações naturais de poder pelasrelações institucionais de ordem. Mas, por mais forte que sejaessa tentação, ela não conduz a uma definição pertinente: dá azoa uma concepção dogmática e sistemática do direito em que odiscurso, as ferramentas mentais, o raciocínio e a prática ocultam a realidade viva do mundo jurídico.

Além disso, para aclarar o conceito de direito, é precisosuperar a anfibolia entreo direito e os direitos. Proclamar odireito aos direitos é decerto a obsessão do jurislador contem porâneo e, em seu humanismo caloroso, essa preocupaçãoatesta “o progresso do direito”. Mas há aí um problema vertiginoso que uma hermenêutica séria não consegue resolver. Porum lado, o direito não é a soma dos direitos e os direitos nãosão o conteúdo do direito. Por outro, reconhecer os “direitos dohomem” que o direito tem a missão de proteger implica um com promisso filosófico análogo,mutatis mutandis, à afirmação dodireito natural. A presunção de juridicidade em que essa atitude

- está envolvida permanece aquém da definição do direito.

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XL OS FUNDAMENTOS DA ORD EM JURÍDICA

Uma vez descartadas essas confusões, pode-se determinaro estatuto conceituai do direito?

As inúmeras tentativas de definição que pontuam ocorpus das obras jurídicas na história do pensamento impõem uma du

pla constatação: a multivalência e a maleabilidade do direito.Essas duas características constituem um obstáculo epistemo-lógico para a sua definição.

Como o direito está ligado à socialidade, ele se situa obje

tivamente sob o signo da diversidade e da pluralidade, que acarretama polissemia de seu conceito5,5. Como acabamos de ver,não só juristas e moralistas disputam a noção de direito, de sorteque qualquer tentativa de definição colide com as questões redundantes das relações entre direito positivo e direito natural, bem como entre direito objetivo e direito subjetivo, mas o direito dos juristas, “determinado”hic et nunc, caracteriza-se pela relatividade e mobilidade das múltiplas figuras do direito público, do direito privado e de seus subconjuntos. O termodireito veicula, pois, um pluralismo semântico que indica que aautonomização do direito não é uma evidência e que o campoem que o direito evolui é tão diversificado quanto as condutasa que se aplica.

Portanto, se admitimos, como faz a lógica escolástica, queuma definição é efetuada segundo o esquema que integra adi

ferença específica de seu objeto nogênero próximo que o engloba, fica claro que o direito, em razão de sua multiformida-de, foge a esse bosquejo lógico. Caso se tente definir o direito,seguindo o que Aristóteles preconizava, por suaintencionali- dade ou finalidade, deparamos com uma pluralidade de possíveis: o fim do direito é o justo, o bem comum, o interesse geral,a proteção dos indivíduos, a solidariedade...? Os fins do direito

são plurais, marcados ademais pela contingência histórica, elamesma dependente de preocupações sociopolíticas variáveis.

55. Cf. supra, n. 3, p. 1: Grotius, D e ju re bell i a c pa c is, livro I, cap. 1; PuÉ

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PREÂM BULO XLI

Além disso, é necessário estabelecer uma hierarquia axiológi-ca desses objetivos e examinar-lhes a articulação lógica e deon-tológica. Por fim, como a concepção dos fins, para escapar das

miragens da utopia, deve vir acompanhada de uma concepçãodos meios, não seria mais pertinente definir o direito por sua função? A definição pragmática do direito sublinha seu caráterregulador e prescritivo. Mas a questão é saber se o direito inteiro se incorpora numa ordem normativa: o direito implica prioridade da regra?

Nenhum dos procedimentos seguidos até agora permitesuperar aequivocidade do conceito de direito.

A dificuldade é ainda maior porque o conceito de direito énão sóconfuso comomaleável, não por acidente, mas por natureza. O papel do Estado legislador é certamente capital nadeterminação do direito. Mas o estatismo jurislador, ainda queconsiderado “decisionista”, não elimina a influência que os costumes, as construções doutrinárias, e até mesmo os imperativos éticos exercem no direito. Muito pelo contrário, o direitointegra esses ingredientes fornecidos pela história e pelos há bitos por meio da jurisprudência e das revisões dos códigos.Portanto, embora a juridicização desses parâmetros enriqueçae flexibilize o direito, expressa também seucaráter movediço e a não-indiferença aonão-direito, o que não deixa de lhe obs-curecer o conceito.

A definição do direito tropeça, pois, na complexidade intrínseca e dialética do fenômeno jurídico: por um lado, o direitosó pode nascer do direito, o que exclui o sono e as lacunas dodireito; por outro, longe de se incorporar na regra legal, ele temuma “textura aberta”56que, vinculando-o à vida concreta, otorna maleável. Mas essa flexibilidade introduz nele um coeficiente de indecisão, cuja amplitude a lógica das definições não écapaz de determinar. A dinâmica jurídica arranca o direito doformalismo, cujas estruturas ela fissura e cujas categorias modifica:o conceito de direito é um "conceito impreciso

56. H. Hart, Le concept de dro it , trad. fr. Bruxelas, 1976, pp. 160-1.

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XLII OS FUNDAMENTOS DA ORDEM JURÍDICA

Essa, no entanto, não é uma constatação de fracasso, geradora de ceticismo. A investigação que vamos empreender é decepcionante; mas ela não é indício do caráter aporético do direito; é, antes, sinal da não-auto-suficiência do conceito de direito.Para definir o direito, não bastaconhecê-lo; será necessário pensá-lo segundo uma outra problemática, que será a de sua fundação. De fato, como observava Kant, a perguntaQuidjus? étão embaraçosa para o filósofo quanto a pergunta “Que é a verdade?”57para o lógico. Por um lado, por sua intencionalidade,aproxima-se da perguntaQuidfacti?; ora, uma ciência simplesmente empírica do direito carece de sentido58. Por outro lado,um conhecimento racional e dogmático constrói dedutivamenteum edifício que pode ser majestoso mas, como suas fundaçõesnão são firmes - seus axiomas básicos são apenas “dogmas”a hesitação dos conceitos, em sua abstração, é vertiginosa.

O pensamento só sairá desses dois impasses rompendo-lhesa lógica rasteira. Mas, para suprimir ao mesmo tempo a miséria do empirismo e as vertigens do dedutivismo, faz-se necessário nada menos que a inversão do método: já não se deve proceder dos princípios às conseqüências, mas remontar do que

existe à sua razão de ser tal como é. Isso significa não apenasnão sacrificar a realidade objetiva do direito nem a idealidadenormativa que ele veicula, rr\as pensá-las juntas, portanto, demaneira sintética,no cerne mesmo da esfera jurídica, onde odireito encontra seus próprios alicerces, isto é, o que constituia juridicidade do jurídico.

É uma empresa difícil pois exige a extraordinária estaturade um pensamento que, depois de ter escrutado ocorpus das regras jurídicas que estruturam de diversos modos as sociedadesno espaço e no tempo, se interrogue, segundo o paradigma metodológico de uma crítica reflexiva, sobre as fundações do direito, isto é, sobre o que o torna possível e válido. Não se trata

57. Kant, D octr in e du droit , § B, p. 103.58. Kant prossegue: “Como a cabeça de madeira da fábula de Fedro, é

uma cabeça que pode ser bela; mas há um único problema: ela não tem cére- bro”, ibid., p. 104. - ------- v - = = - < -*

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REÂM BULO XLIII

portanto de determinar o objeto-direito em sua existência, masde indagar de que maneira o pensamento sobre o direito se pro

duz para nós. Enquanto o “conhecimento” do direito se afundana polissemia de seu conceito, isto é, da simples representaçãontelectual que dele temos, o “pensamento” sobre o direito coniste em encontrar, graças à unidade fundamental, o ponto de

arraigamento a partir do qual o direito finalmente se arrancaráda indecisão de seu conceito. Em outras palavras, trata-se de penar transcendentalmente o direito. Ora, pensar o direito de um

ponto de vista transcendental não é explicar sua gênese; mas,

discernindo mediante a reflexão crítica a possibilidade de consrução do sistema jurídico e de seu discurso, atingira razão de er do direito. Para que o pensamento possa elevar-se à idéia

que constitui a forma do direito e a unidade de suas expressõesplurais, precisa inicialmente superar as discussões doutrinárias as perspectivas antinômicas nas quais, muito freqüentemene, se encerram as filosofias do direito de tipo dogmático.

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PARTE IA alternativa: natureza ou convençãoO choque de dois dogmatismos

Desde os seus primórdios, a filosofia do direito é dominada pelo debate interminável entre jusnaturalismo e juspositivis-mo. Sócrates, em sua oposição fundamental ao convencionalismo dos sofistas, inaugurou o longo caminho marcado peloschoques entre as teorias do direito natural e as teorias positivistas do direito. A polêmica se revela tão dura e tenaz que se assiste à “perpétua ressurreição de um cadáver que não nos cansamos de reenterrar”': de fato, embora a idéia dedireito natural, que é uma das mais antigas noções da filosofia, tenha, desde

sempre e sobretudo nos tempos modernos, sido colocada muitas vezes no banco dos réus, ainda hoje ela resiste aos ataquesdas correntes positivistas. Basta evocar a popularidade que, desde sua publicação em 1953, a obra de Leo.Strauss Natural Right and H istorf teve nos Estados Unidos e depois na Europa, paraconvencer-se da força que o conceito de direito natural aindaconserva após a expansão de todos os positivismos. Mais próximos de nós, os recentes debates a respeito da idéia dos direitos humanos mostraram não só que a filosofia do direito natural conserva seu vigor - o que poderia ser apenas um episódiode uma guerra doutrinai -, mas que uma teorização séria do di-

1. H. Batiffol, citado por M. Villey, Leçons d 'h is to ire de la p hiloso phie du dro it, Dalloz, 1962, pp. 108-66.

2. L. Strauss, D roit natu re l et histo ir e, trad. fr., Plon, 1954; Flamma- rion, 1986. Na verdade, a obra, publicada nos Estados Unidos em 1953, retomava seis conferências pronunciadas em outubro de 1949 na Universidade de

Chicago.

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2 OS FUNDAME NTOS DA ORDEM JURÍDICA

reito positivo sempre colidirá com a impossibilidade da “neutralidade axiológica” pretendida pelos positivismos - o que põeem evidência o valor fundamental das exigências metajurídi-cas do jurídico. Inversamente, desde meados do século XIX, asteorias positivistas conheceram uma considerável expansão esabe-se que, na sua vontade de cientificidade, não pouparam muito o aspecto “metafísico e abstrato” do jusnaturalismo. As críticas formuladas, por volta da década de 1930, por Carré deMalberg e Kelsen têm, nesse sentido, um vigor exemplar; e,apesar do renascimento das teorias do direito natural que, na Alemanha, logo após a Segunda Guerra Mundial, empenharam-seem renovar seu conceito à luz da filosofia dos valores e doexistencialismo, a doutrina positivista conserva adeptos, comoindica hoje o sucesso de uma teoria como a da autopoiése. Pode-se portanto dizer que, na longa polêmica que atravessou osséculos para fixar os alicerces fundamentais do direito, não há,atualmente, nem vencedor nem vencido.

No entanto, o problema das relações entre direito positivoe direito natural, que constitui o pano de fundo desse debateantiquado mas infindável, é terrível: não porque conduz ao “ca

bo das tormentas” onde se chocam as correntes contrárias dafilosofia do direito (se assim fosse, constituiria apenas umcaso particular dos dualismos que inseriram na história da filosofia o jogo das teses e das antíteses), mas porque formula aquestão mais “fundamental” da filosofia do direito, a das pró prias fundações do universo jurídico e porque, na profundidade em que hoje se situa o pensamento, as coisas não podem sersimples. Por um lado, não basta, em nome das regras de umaordem jurídica positiva, reputar vã a idéia metafísica de direitonatural, pois o conceito de direito natural está longe de ser uní-voco e suas conotações complexas não poderiam ser atingidas por uma crítica sem modulações. Por outro, a contrapartida dosucesso das teorias positivistas foi ficarem envoltas num halode imprecisão e incerteza: “Já não se sabe bem o que a palavra(positivismo) designa.”3A reflexão filosófica deve portanto des

3. M. Virally, L a p en sèe ju r id iqu e-L G D Í;l9 6 0 , p. V.

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ALTERN A TIVA: NA TUREZA O U CONVENÇÃO 3

udar as vertentes pluralistas da doutrina a fim de reencontrarestado de espírito que inspira os diversos positivismos e orien-

a-lhes a intenção epistemológica.Assim, o debate que sempre ressurge entre jusnaturalismo

juspositivismo só mostrará seu sentido filosófico profundoob a condição expressa de não fechar as glosas argumentati-as na prisão de um dualismo simplista. Para apreender e apreiar o alcance dessa eterna discussão, é preciso não ignorar asormas diversificadas e as hesitações conceituais do pensameno jusnaturalista e não ocultar as ambigüidades e as vertigensas teorias positivistas. É, pois, necessário lembrar a diversidadee suas premissas e a diferença de suas motivações para que seossa avaliar hoje, para além da zona de sombra e de conflito aue conduziu seu confronto secular, as esperanças de uma reovação retórica do universo jurídico.

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Capítulo I A tradição jusnaturalista e sua ambivalência

O conceito de direito natural é um dos mais antigos conceitos da filosofia, mas também um desses conceitos com considerável evolução semântica e que mais polêmica suscitou. Issose deve a várias razões que a filosofia não pode desconsiderar.Duas dessas razões nos parecem indiscutíveis: por um lado, amutação de forma e de sentido que esse conceito clássico conheceu com o advento dos tempos modernos e, por outro, a resistência que, por sua própria presença, ele opõe ao “positivismo jurídico”. Essas duas razões evidentemente dizem respeitoà filosofia, pois a idéia de “natureza das coisas” à qual remeteo conceito clássico de direito natural não cabe muito no pensamento moderno que, mais ligado aos problemas da antropologiaque da cosmologia, prefere a idéia de “natureza humana” à qualremete oconceito moderno de direito natural. A passagem deuma dessas concepções à outra, por modificar consideravelmente o campo de investigação, suscita a reflexão de modo muitodiferente. M. Villey não se equivoca ao diferenciar, às vezes atéa oposição, o direito natural clássico, ontólogicamente fundado, e o direito natural moderno, marcado pela obsessão individualista. De fato, enquanto o primeiro insere-se no ser do mundoonde representa o outro do caos, sendo objeto da filosofia primeira, o segundo refere-se - aliás, de diversas maneiras - à natureza do homem e invoca as exigências racionais que constituem sua superioridade e autoridade. A filosofia do direito dos“modernos” substituiu a concepção fundamentalmente metafísica do direito natural dos “antigos” por uma concepção antro

pológica, mais prática que especulativa.

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6 OS FUNDAM ENTOS DA ORDEM JURÍDICA

Essas duas figuras do jusnaturalismo foram muitas vezesmencionadas pelos historiadores da filosofia do direito. Todavia,notou-se menos que, clássica ou moderna, a noção de direitonatural sempre abarcou importantes questões políticas, cujaslinhas de força filosóficas esclarecem as diferenças de estrutura e de sentido entre a Cidade antiga e o Estado moderno.

O jusnaturalismo clássico e suas questões filosófico-políticas

O conceito de direito natural possui uma ressonância filosófica profunda: “Onde não há filosofia”, escreve Leo Strauss,“o direito natural é desconhecido.”1A aurora da filosofia coincidiu com a descoberta da natureza, isto é, com a bifurcaçãoentre physis e nomos que subentende que “a natureza é essencialmente ocultada por decisões soberanas”2. Com efeito, desdeos primórdios, as leis velaram ou ocultaram a natureza. Desco bri-la consistiu em descobrir, afastar o véu tecido pelos costumes e pelas convenções que a encobriam. Isso significa que oato primeiro da filosofia foi reconhecer ànatureza uma prioridade fundamental, de ordem ontológica, em relação à obra daarte. O direito natural pareceu por conseguinte ser mais profundo e mais verdadeiro que todos os sistemas, reais ou possíveis, de direito positivo. Assim, desde o começo, seu conceitoera farto de significação política; ou melhor, inseria-se na pro blemática primeira de toda filosofia política: a natureza é a autoridade suprema à qual o direito político dos homens implica

referir para munir-se de valor e força, ou então a natureza desa parece diante da importância das convenções que os homenserigem em regras organizadoras de suas cidades? O debate, queatravessaria os séculos, é umdebate de fundo cuja formulação,

por si só, indica o nível em que se situa a reflexão jurídico-po-

1. L. Strauss, D ro it natu re l e t h is to ir e, trad. fr., Flammarion, “Champs”,1986, cap. III, p. 83.

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A ALTERN ATIVA: NATUREZA O U CONVENÇÃO 1

lítica. Interrogar-se sobre a existência e o sentido do direito natural não é mera questão de ideologia. O fato de que Sócrates,opondo-se aos sofistas, tenha iniciado o exame do problemamostra que o confronto entre jusnaturalismo e convencionalismo, longe de ser um debate contingente, é, ao contrário, política e filosoficamente essencial. Mas o sentido filosófico dessadicotomia não reside em sua aparente simplicidade; ele se esconde sob as condições concretas nas quais surgiu a ordempolítico-jurídica das Cidades - condições históricas e intelectuais impossíveis de calar caso se queira compreender, sob osurgimento do direito político, o caráter imperativo de suas exigências fundamentais.

Não nos propomos, no âmbito deste livro, expor a formação do pensamento jurídico de um ponto de vista histórico. Masnão é possível captar o ímpeto filosófico que lhe embasa aemergência sem situá-la em relação ao contexto geral complexo que a viu nascer. Foi, com efeito, em meio tanto das luzesque a aurora da filosofia lançava sobre o mundo grego quantodas sombras que mergulhavam as idéias e as palavras na ambigüidade que começou o destino da ordem jurídica.

A emergência da ordem jurídica: promessas e dificuldades

Sabemos hoje3que, embora as primeiras sociedades obedecessem a regras que lhes regiam o comportamento, essasregras, de natureza religiosa ou familiar, não eram leis nem máximas jurídicas. A lei só apareceu, na verdade, com a formaçãodas Cidades (isto é, com o nascimento da política): por voltado século VIII a.C. - provável época de Homero -, com o regime monarco-feudal das velhas sociedades tendendo a desaparecer, formaram-se regras comuns que determinavam as funções de cada um na vida da Pólis: “A lei surgiu quando, de uma

3. Sobre esse problema, cf. J. de Rom illy, La loi dans la pen sèe grec- que, Les Belles Lettres, 1971. ______ _ _____________

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8 OS FUNDAMENTOS DA ORDEM JURÍDICA

forma ou de outra, os cidadãos tiveram acesso à vida política.”4Simultaneamente, a invenção da escrita foi um trunfo para aelaboração e estabilização dessas normas comuns5. A escrita, comregras de contornos mais nítidos que Lhe fixavam o conteúdo6,suplantou regras tradicionais e consuetudinárias, imprecisas elábeis. Isso é atestado pela obra dos grandes legisladores, comoLicurgo em Esparta ou Carondas em Catânia e, mais tarde, Drá-con-e Sólon em Atenas. Não se pode ignorar, portanto, o vínculo originário entre direito político e história. A autoridade danorma legal impõe-se como um desafio à desordem e à arbitrariedade: opõe o ideal de uma vida civilizada à espontaneidadeanárquica dos bárbaros, isto é, dos não-gregos; e veicula umideal democrático erigido contra a arbitrariedade da tirania7.

Mas, não tardaram em surgir muitas dificuldades no poderdas palavras que acompanham as idéias. A lei foi inicialmentedenominadathesmos, substantivo derivado do verbo xíôr|)_Li que

significa determinar, instituir. Ostesmótetas transcreviam osthesmia e conservavam-nos para uso dos magistrados nos tri

bunais. Depois, no começo do século V, as palavrasnomos eisonomia penetraram na vida política8em que se passou a falardosnomótetas cujo ofício era revisar, em seus colégios, as leisda democracia ateniense. Mas não tardaram a surgir as dificuldades ligadas ao vocabulário empregado: de fato, a palavrano

mos tinha acepções diversas na língua grega gerando uma am bigüidade que viria a criar problemas: embora onomos humano

4. Ib id ., p. 11.5. Platão, As leis, liv. III, insiste no papel desempenhado pela escrita

que, ao fixar regras até então dependentes de tradições mais ou menos só lidas e entregues ã interpretação arbitrária de cada qual, muito rapidamente tom ou- se um meio de em ancipação social e política.

6. Platão, As le is , 680 a.7. É o que mostram especialmente os D iscursos de Demó stenes que as

sociam a democracia, as leis e a liberdade; neles desenvolve-se com freqüência o tema de que os inimigos das leis são também inimigos da liberdade e da igualdade dos cidadãos.

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A ALT ERNATIVA: N AT UREZA O U CONVENÇÃO 9

designasse a lei laica e positiva (“determinada”) das Cidades,falava-se também de umnomos divino que regia o universo e

possuía, como tal, uma dimensão cósmica: por exemplo, esse

nomos divino fazia com que todos os animais da terra se entre-devorassem; ou que todos os homens fossem, no mundo inteiro, capazes de justiça. Portanto, a mesma palavranomos designava ao mesmo tempo a “lei civil” e a “lei natural”, que nãotinham nem mesma origem nem mesma significação. Nessaambivalência reside o ponto inicial da problemática que atravessará os séculos e povoará a interminável discussão entre ásteorias juspositivistas e jusnaturalistas.

Na verdade, as coisas eram ainda mais complexas pois se,

por um lado, a lei representava um ideal decivili-zação e assumia o aspecto de uma regra ou de um princípio de ordem, poroutro, mostrava-se a expressão prática de um hábito, até mesmode um rito, ou seja, de umamaneira de fazer estabeiecida pelouso e pela repetição. Nessa ambivalência, desenha-se a dualidade do que é de ordemnormativa e do que é de ordem positiva. A dualidade entre odever-ser e oser apresenta-se desde o iníciocomo o conflito entrevalores e fa tos de que se nutrirá, duranteséculos, a filosofia do direito. A descoberta da lei é portanto inseparável dos maiores problemas que ela suscitou.

Muito rapidamente, de fato, desenhou-se o dualismo entreleis escritas (aquelas que a democracia grega gerou) e asleis não escritas (vinculadas à ordem universal e divina do cosmos).

Para os gregos, a lei sem dúvida se afirmou a princípiocomo lei escrita. No entanto, eles também reconheciam a existência de regras com finalidade político-social que não esta-vam formuladas em nenhum texto escrito e exerciam forte influência, seja porque eles as vinculavam à autoridade divina,seja porque decifravam nelas a expressão de um ideal ético.Em ambos os casos, essas regras não escritas indicam a insuficiência ou os limites das leis escritas.

À primeira vista, a expressãolei não escrita parece ser negativa.É apenas uma aparência. Na verdade, embora asnomoi fossem leis escritas “determinadas” pelo legislador ateniense,o nomos designava também, segundo uma tradição que talvez

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10 OS FUNDAMENTOS DA ORDEM JURÍDICA

seja a do orfismo, a regra apresentada por Hesíodo como aquela que Zeus designou aos homens para que, diferentemente dosanimais, eles não se entredevorassem e fossem reciprocamente

justos uns com os outros. Essa lei de Zeus é, por definição,divina; não está escrita em parte alguma; ela se confunde comuma regra moral de justiça; é transcendente aos homens, masimanente ao grande Todo do mundo. Portanto, a aparência de ne-gatividade da lei não escrita encobre, na verdade, uma plenitude axiológica.

Com base nessa postulação filosófica difusa, há duas hi póteses possíveis no mundo humano:ou a lei escrita das Cida

des é a imitação ou o reflexo dessa lei divina; nesse caso, aCidade dos homens se esforça para ser à imagem do querer deZeus;ou a lei que os legisladores “determinam” é, como o pró prio homem, frágil e mutável; nesse caso, sua precariedadeopõe-se à imutabilidade e à perfeição da lei divina. Désta última hipótese nasce o conflito de deveres que acossa a Antígonade Sófocles, dividida entre a obediência à lei positiva das Cidades(a lei que, no caso, é o decreto do rei Creonte) e os imperativosque a consciência moral (ou religiosa) insere no âmago de seucoração. O problema é grave porque, ao evidenciar a relatividade das leis políticas que o legislador tem a ambição de transformar em guardiãs da Cidade, levanta precisamente a questãode seu fundamento.

O texto de Sófocles que destaca esse problema é célebre; teráecos não menos célebres de Cícero a L. Strauss na corrente denominada “jusnaturalista”. ;

Creonte, o rei, está indignado com a desobediência de Antígona que, a despeito de sua proibição, deu sepultura ao irmão.Antígona lhe responde: “Desobedeci à tua lei pois não foi Zeusque a proclamou; não é a Justiça... não é a lei que os deusestinham fixado para os homens, e não pensava que tuas proibições fossem bastante poderosas para permitir que um mortalmenosprezasse outras leis, as leis não escritas, inabaláveis, dosdeuses. Essas leis não datam nem de hoje nem de ontem, e ninguém sabe o dia em que elas surgiram.”

As leis divinas são portanto eternas; têm também alcance

„• universal e,.por,elas,-ninguém.é marginalizadoou excluído-Têm

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A ALTE RNATIVA: N ATUREZA O U CONVENÇÃO 11

valor absoluto. Ninguém pode ab-rogá-las ou modificá-las.Obedecer-lhes, como faz Antígona, é preferir o eterno ao temporal, o absoluto ao relativo, o imutável ao mutável.

Em Sófocles, é indubitável que a preferência dada à lei divina não escrita deve ser compreendida como uma atitude profundamente religiosa. Mas tem também um sentido moral queimplica referência tanto aos costumes ou aos usos como às exigências éticas. Moral e religião, devido à sua fundação transcendente, são, na escala de valores, superiores à política. Aristótelesdirá que “A Justiça vai além da lei escrita”9- o que outros nãotardarão em exprimir dizendo que “a lei natural” transcende a le

galidade política.Hegel interpreta a oposição entre lei divina e lei humana

como a oposição entre imediação e mediação10: por um lado, Antígona, em quem espírito e natureza estão indissoluvelmenteligados, pertence à própria lei divina; por outro, Creonte, o rei,busca a ordem e a efetividade da regra em seu reino. Nessa desafortunada colisão entre dever e direito (positivo), Hegel des

cobre o que, a seu ver, esclarece a ação trágica: com efeito, aconsciência ética (Antígona) vê o direito (o justo) de seu lado eo errado do outro; a consciência político-jurídica (Creonte, comosímbolo da Cidade ou Estado) vê uma desobediência criminosa no ato de Antígona porque, para essa .consciência, não háoutro direito senão o definido pela lei positiva (o justo = o legal).O trágico não é portanto a rebelião de uma boa vontade contrauma má vontade; decorre da coexistência de duas vontades, deduas consciências de si, que aderem cada uma delas à sua pró pria lei, e que, portanto, recusam o reconhecimento mútuo.

Segundo Hegel, ambas as leis constituem por conseguinte as duas essências do espírito antigo. Seu conteúdo as opõe eserá preciso que o choque de seu pathos - isto é, os dois momentos da substância ética - seja superado para que nasça odireito do real ético. Isso evidentemente implica, no sistema

9. Aristóteles, Ética a Nicôm aco, 1137 a ss.; Retó rica, 1374 ab .10. Hegel, Phénom énolo gie de Vesp ri l, trad. J. Hyppolite, t. II, p. 253.

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12 OS FUNDAMENTOS DA ORDEM JURÍDICA

hegeliano, um procedimento sintético pelo qual se efetua o declínio da individualidade. Assim inicia-se o destino cuja conclusão despovoará o céu.

Em todo caso, fica perfeitamente claro que a filosofia jurídico-política teve de enfrentar, já em seus primeiros passos,o delicado problema da relação entre lei não escrita e lei escrita, portanto entre lei natural e lei positiva ou entre justiça transcendente e direito positivo. O problema, no mundo grego, eraainda mais complicado porque o termo,nomos, que não com

portava referência explícita seja ao legislador divino seja aolegislador humano, acabou por consagrar umamaneira de agir, isto é, um estado de fato que, o mais das vezes, assumiu aaparência do costume". Ora, o costume não é uma regra escrita. As incertezas sobre a natureza e a origem das regras multi plicaram-se; e, se sua finalidade prática era inquestionável, ainterrogação filosófica encontrava em sua indecisão semânticamotivos de um mal-estar intelectual. O termonomos, em suas

acepções e em suas ressonâncias plurais, fez brotar na filosofia uma consciência de crise que revelou a problematicidade profunda de seu conceito.

O esquema antitético estabelecido pelos sofistas entrenomos e physis indica a dificuldade desse caráter problemático, pois esse dualismo conceituai atravessou os séculos até nossosdias como uma antinomia irredutível.

Os trabalhos de E Heinimann e de M. Pohlenz reuniramde maneira exaustiva provas e textos sobre a origem desse par de

11. Quando a céleb re tese do nomos basileus atravessa os textos filosóficos gregos e é encontrada particularmente em Heródoto e em Platão(Leis, 690 b, 715 a 1, 890 a 4), convém captár seu sentido original, que parece ser aquele que lhe dava o verso de Píndaro: “o costume é o rei do mundo” (deve-

se entender costume aqui em sentido amplo: hábito, tradição, rito..., tudo o que o tempo veicula e reforça).Sobre esse problema, cf. M. Gigante, Nom os basileu s, Nápoles, 1956;

W. Theiler, Nó|iOÇ Ò Jtdvtcov paciA.£ÚÇ, Museum Helveticu m, 1965, pp. 69-80; H. Volkmann, “Rev iew o f Gigante’s Nomos basi leus”, Gnomon, 1958, pp. 474 ss.

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A AL TERN AT IVA: NA TU RE ZA O U CONVENÇÃO 13

noções, nos quais vemos consolidar-se pouco a pouco a acepção do termonomos como expressão, numa regra, consuetudi-nária ou escrita, de valores próprios de um grupo de homens que

os põem em prática. Correlativamente, afirma-se a idéia de physis, introduzindo uma fissura na autoridade da lei ou docostume. A concepção donomos deve ser de imediato associada ao relativismo segundo Protágoras: sendo o homem medidade todas as coisas, ele é,ipso facto, medida dosnomoi. Issoleva a afirmar que, para existir na Cidade, osnomoi necessitamde um espírito que os construa. São regras que definem umaordemartificial, factícia, obra do homem. No realismo político da época, essa asserção é plena de sentido: essas máximas

não implicam nenhuma referência a uma autoridade universal(umnomos divino). A contrapartida é portanto que os homens,cujos costumes diferem de acordo com sua pertença a diferentes grupos, terão regras diferentes. Por conseguinte, evidenciam-se dois filosofemas que repercutirão em todos os séculos: por um lado, osnomoi, sejam quais forem suas diferenças, constituem umaordem convencional e artificial distinta da ordemda natureza, isto é, de tudo o que existe sem intervenção humana; por outro, osnomoi, em sua pluralidade e diversidade, não

poderiam ter valor absoluto: sua feitura humana e convencional destina-os àcontingência e àrelatividade.

Quando Píndaro e Heródoto falavam-'áe nomoi, não o faziam como filósofos. Contudo, num texto do século V denominado Anônimo de Jâmblico, nota-se que é a impossibilidadedo homem de dirigir sua vida no estado de natureza que explica

por que onomos é rei. Esse texto que, pela primeira vez, opõeo estado de natureza a uma condição humana dirigida pelosnomoi, parece ter sido redigido por um grupo de sofistas: Protágoras, Hípias, Antístenes. O objetivo deles é fazer a apologiada ordem e da virtude. Quase na mesma época, Platão faz Hí pias dizer, emProtágoras'1, que onomos se opõe à natureza e, por isso, denomina-o “tirano dos homens”. Parece pois que, nãoobstante o sucesso da expressão de Píndaro - onomos-rei -, de

12. Platão, P rotá goras, 337 e.

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14 OS FUNDAMENTOS DA ORD EM JURÍDICA

que se usa e abusa, esboça-se uma problemática filosófica naqual são pensados de maneira nitidamente antitética onomos ea physis. No último quarto do século V, a análise filosófica realizada pelos sofistas constitui uma etapa importante na concepção filosófica da ordem jurídica13.

Seria sem dúvida um erro acreditar que o pensamento dossofistas é monolítico; em conformidade com seu senso fundamental do relativismo, propõem doutrinas diferenciadas. Todavia, quer atribuam prioridade, como Protágoras, aonomos sobrea physis '\ quer insistam, como Antifonte, sobre a necessidadede acrescentar “leis” à natureza15, menos para negá-la do que

para reorientar sua necessidade, quer estimem, como Crítias,que justo é apenas aquilo instituído pelonomos a fim de favo

13. Sobre os sofistas, cf. W. K. C. Guthrie, Les so phis te s (1971), trad. fr., Payot, 1976; sobre o par Nomos-Phys is , F. Heinimann, Nomos und Physis:

Herkunft und Bedeu tung ein er Anti th ese im grieschischen Den ken des 5. Jáhrh underts, Basiléia, 1945; reimpr., 1965; c. r. por E. des Places, in L ’an- tiquité cla ss iq ue, 1965, pp. 673 ss.; cf. também M. Pohlenz, “Nomos und Physis”, H er mès, 1953, pp. 418-38, Reimpr. in K le in e Schriften , vol. II, pp.

341-60; C. dei Grande, “Nomos, Physis e qualche riflesso trágico”, inVi- chiana, 1964, pp. 357-75.

14. Protágoras (cf. Platão, P ro tá gora s, 320 a - 322 d), pela voz do mito, distingue de modo incisivo a natureza, a arte e a convenção simbolizadas respectivamente por Epimeteu, Prometeu e Zeus. Ora, diz ele em suma, o homem, em sua natureza ou por natureza, não é um animal social ou político. Na scido solitário, não tem nem o senso nem a necessidade de uma existência comunitária. Recebeu de Prometeu, graças ao fogo furtado de Hefesto, o “gênio criador das artes”. Mas, cada vez que os homens se agruparam para formar uma Cidade, o puseram -se uns aos outros e, “por não possuir a arte política”, entredilaceraram-se. Então, Hermes, mensageiro de Zeus, lhes trouxe “o sentimento da honra e o do direito”. Esse presente tinha por finalidade criar entre eles uma am izade que tomasse possível a vida social. Com efeito, selar um a aliança ou conc luir uma convenção é opor-se à natureza; a regra ou a lei que ela determina e que veste de um caráter de coerção toma-se o meio de reger os assuntos humanos contrariando as tendências naturais.

15. Cf. Antifonte, “Fragments”, B 44, in Revue de p hilosophie ancien - ne, 1983, n° 2, p. 206: “As disposições da lei são acrescentadas, as da natureza, necessárias; as da lei são estabelecidas por convenção e não surgem por si mesmas; as da natureza surgem por si mesmas e não são estabelecidas por

-convenção.” ■ -------------- ———— - ------------------- — -

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ALTERNATIVA: N ATUREZA O U CONVENÇÃO 15

ecer o interesse e o progresso da Cidade, insistem sempre nauperioridade do estado civil em comparação ao estado selvaem: osnomoi sãoartifícios que servem para preservar a vidaos homens; sãoúteis para sua conservação e fazem par com airtude civil. Enquanto tais, osnomoi são menos leis que direizes por seguir e Protágoras os compara aos modelos das leas que os estudantes usam para aprender a ler16. Essas regrasimbolizam a civilidade, que se distingue da naturalidade co

mo a humanidade da bestialidade. Não implicam condenaçãoo que é natural; mas lhe enfatizam a insuficiência e a precarieade. Em termos muito gerais, os sofistas acreditam que, se aatureza deu inteligência aos homens, cabe-lhes usá-la de maneia útil, isto é, construir, graças a ela, uma organização ética e juríica que lhes permita escapar da destruição. A anomalia é desorem e anarquia. A rigor, a anomia é impossível e o respeito dasonvenções e decisões destinadas a regular a vida das Cidades vaio encontro tanto do interesse comum como do interesse de cadaual. Portanto, não poderá haver outro critério de justiça senão a

onformidade a essas regras-convenções que, verifica-se claramente, não têm valor por si mesmas e só encontram sua razão deer no interesse que protegem. Osnomoi são poitanto desprovios de qualquer base axiológica ou ontológica.

É compreensível que, a partir daí, todos os problemas naidade grega - religião, política, igualdade ou escravidão, jusça, normas morais, cosmopolitismo... - só pudessem ser exa

minados na perspectivadualísta delineada pela sofistica. Na vida

a Cidade, as condutas dos homens obedecem à necessidadeatural, ou obedecem a regras que são “obra dos homens”? Aifurcação da filosofia jurídica e política é inevitável. Já noéculo V antes da nossa era, ela se encontra numa encruzilhaa: ou existe um estatuto absoluto dos valores éticos, jurídicospolíticos, que são definidos “em si”; ou o mundo humano

bedece ao interesse e à oportunidade: só é justo o que é legal,efinido por convenção e marcado pela relatividade.

16. Platão,Pro!ágQms,32éjL

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16 OS FUNDAM ENTOS DA ORD EM JURÍDICA

0 filósofo que não se interrogar sobre a sofistica comohistoriador das idéias preocupado com as mil e uma nuançasdas doutrinas apreenderá a amplitude da problematização gerada pelas teses dos sofistas. O parriomos-physis que elas inscrevem no frontão da filosofia do direito e da filosofia política desencadeia um duelo de titãs que talvez até hoje não tenha terminado, apesar das “transformações da filosofia”.

A inesgotável força de uma polêmica: o jusnaturalismo como anticonvencionalismo

Embora as relações de Sócrates e Platão com a retórica dossofistas sejam sutis, Sócrates, contra Protágoras e contra Anti-fonte, declara seu anseio de que a lei das Cidades siga a ordemhierárquica da natureza. E anecessidade, explica Platão pelavoz de Sócrates'7, que põe os homens em contato uns com osoutros. Cada homem é incompleto, “não autárquico”; precisado outro porque precisa de objetos para sobreviver e porqueseu esforço solitário não pode satisfazê-lo. Sozinho, o homemnão sobreviveria. Portanto, é a necessidade que aproxima umhomem de outro homem; ela o reúne ao outro num determinado espaço geográfico onde se forma uma associação, uma sociedade. Trata-se, decerto, de uma comunidade “elementar”, queainda é natural e que Platão chama de acidade das necessidades. Nela, a causa e a finalidade de todos os ofícios é a manutenção do corpo, que não pode ser auto-suficiente: “Os fundamentos da Cidade são nossas necessidades” (369 c), pois (370a) a natureza não deu a todos os mesmos caracteres ou as mesmas disposições e fez um para uma coisa, o outro para outra.As diferenças e as complementaridades naturais repercutem naCidade.

E claro que o anticonvencionalismo de Sócrates exprime-se sobre um pano de fundo de filosofia naturalista e organicis-ta em que o Todo engloba as partes de modo que as leis positi

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A A LTE RN ATIVA : NA TURE ZA O U CONVENÇÃO 17

vas da Cidade não poderiam ter outro paradigma senão as leisnaturais da totalidade cósmica. O ser do mundo é a referênciaontológica obrigatória de toda legislação civil. O problema comque Platão depara não é, portanto, o da antinomia sofistica entre nomos e physis, mas o problema darelação entre a lei/convenção (ou lei positiva) e a lei cósmica (ou lei natural).

Platão sabe que os gregos sempre se orgulharam de proclamar sua obediência às leis. No momento em que a democracia ateniense, assediada pelo individualismo e pelo hedonismo,derrota a Cidade, Platão indaga-se sobre a natureza (essência)da lei e sobre sua finalidade (tèlos). É preciso notar que ele não

propõe um estudo jurídico DAS leis, mesmo que, no diálogointitulado As leis, examine a função das diversas instituiçõesda Cidade em matéria de guerra, educação, demografia, administração, justiça... Colocando-se no plano da inteligibilidadedo conceito, Platão estuda A lei e é filósofo demais para nãoorientar esse estudo no sentido de mostrar as relações da lei

política (lei da Cidade) com a ética e com a metafísica. Essaatitude, aliás, nada tem de excepcional. Era comum que na rua,no teatro, nos cenáculos mais ou menos eruditos, filósofos ehistoriadores, poetas ou homens de projeção se interrogassemsobre o que é a lei (ainda não existia èspecialização de gêneros):

por isso, Platão é muito mais realista do que se costuma dizer;sua reflexão sobre a lei é concreta, constantemente ligada àvida política cotidiana, o que lhe permite não se perder na puraespeculação e enfatizar dificuldades experimentadas numa ex

periência vivida.

A natureza da lei - Em A Repúblical8, Platão descreve océlebre e popular mito da Caverna, geralmente consideradosímbolo da filosofia do conhecimento: a caverna é o mundo

sensível, cheio de sombras e equívocos, ao passo que fora dacaverna reina a luz que vem das Idéias ou essências inteligíveis. E, dizem, oconhecimento é alcançado pelo homem que,violentando a si mesmo, arranca-se à quietude da experiência

18. A República, VIL 514 o -5 2 1 b.

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18 OS FUNDAMENTOS DA ORDEM JURÍDICA

sensível e esforça-se para contemplar, sob a luz ofuscante dosol, o mundo inteligível das verdades eternas. Mas também é

muito importante que a essa filosofia especulativa do conhecimento corresponda uma filosofia prática, uma filosofia daação, e, particularmente, daação política. Leo Strauss observou com muita pertinência que “o tema dos Diálogos, comomostram os títulos, é, preponderantemente, político”. Emboraseja verdade que Platão opôstheoria epraxis19e tenha situado a“república perfeita” (a do filósofo contemplativo) fora dessemundo, sabe muito bem que é no mundo dos homens que arealização dessa Idéia deve ser efetuada, ou, pelo menos, tentada. O idealismo platônico não implica a negação do mundo.Portanto, o filósofo não é o sábio contemplativo, que se abstraie se abstém do mundo sensível. Daí a importância que Platão -como Xenofonte - atribui àteoria do filósofo-rei. Só é capazde legislar e, portanto, de dirigir a Cidade, quem apreendeu anatureza das Idéias no mundo inteligível: ora, este é o filósofo.Platão confia a função régia, que é uma ciência e uma arte, aofilósofo porque, lá em cima, ele compreendeu o que é ordem einteligibilidade20. Aarte régia é portanto a ciência da verdadee do bem. O filósofo-rei é um batedor e um guia. Legislador naCidade, é em tudo comparável ao capitão de um navio21 quetem a ciência da navegação por luz e guia: ela é seu sol e suaestrela. O tema da união entre saber e poder22 é constante nafilosofia de Platão: “Não existe lei ou regulamento qualquer

com poder superior ao do saber.” Tema que deve ser interpretado: isso quer dizer: é a inteligência que, pelo saber que adquire, é apta para governar.

Mas aí Platão se afasta muito do intelectualismo dos sofistas que encontrava seu apogeu na criação desses artifíciosreguladores que denominavamnomoi e que eram puras convenções. Dizer que a inteligência governa quer dizer para Platão

19. Teeteto, 172 c - 177 c.20. A República, 500 c-d.21. A polí tica, 297 a.22. As le is , 875 c-d . _____

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^ ^ mmt o níaz z i

que ela tem o poder ou direito de fazê-lo, porque o exercíciomesmo de suas próprias capacidades é umdever. Porque suaascensão dialética a conduziu para junto do inteligível, só ela pode desempenhar a função de batedor e de guia de que a Cidade necessita. As exigências da Cidade são uma obrigação paraela: tem o dever de pensar e determinar as leis. Portanto, ela extrai seu direito de comandar e governar, pelas leis que criará daaptidão ou da competência que lhe confere o conhecimentoque adquiriu. Portanto, a legislação não é uma questão de convenção arbitrária ou de decisão gratuita; é questão decapacidade e decompetência apoiadas numaciência. Em outras palavras, o direito que o filósofo tem de fazer leis, códigos econstituições, portanto, seu direito de governar, baseia-se noconhecimento dos valores inteligíveis, das Idéias em sua idea-lidade, e, sobretudo, do bem, Idéia ou Valor supremo entre todos. Sua competência cria uma obrigação; seu saber, um dever. Na Cidade, legislar não é um privilégio; é a prerrogativa que oconhecimento confere; e o exercício dessa prerrogativa é umofício, um serviço.

Nesse ponto, cabe destacar em Platão um tema bem pouconotado: o serviço do filósofo-rei é puro. Ou seja, ele não podetransformar esse serviço ou essa função em proveito ou emganho. Contra o hedonismo e o pendor utilitarista da sofistica,Platão condena radicalmente essa “política desnaturada” (arrancada de sua natureza essencial)23 que confunde um bem aparente ou uma satisfação sensível com o verdadeiro bem cuja essência é ideal. A capacidade de legislardecorrente da inteligência e da competência não faz da arte régia o exercício deuma técnica simplesmente utilitária. No que se refere a essetema, o ataque de Platão aos sofistas é radical: ao passo que, para eles, todas as regras na Cidade eram convenções decorrentes de uma técnica que, como especialização produtora deefeitos, resumia-se a um conjunto de meios e se inseria noinundo sensível, as leis são para Platão questão de inteligênciae de compreensão fundamentais. O jurislador é aquele que de

A ALTE RN ATIVA: NATUREZA O U CONVENÇÃO 19

23. A República, 341 c.

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20 OS FUNDAMENTOS DA ORD EM JURÍDICA

libera não sobre meios mas sobre fins, que avalia em termos devalor (e não de resultado ou proveito). Portanto, o poder não é

potência, e, sobretudo, não é potência tecnicista (aliás, o sinalmais evidente da degenerescência da Cidade aparece quando o poder toma-se objeto de disputa24, isto é, meio de alcançar as glórias e honras que acompanham a potência). A potência, impura, que é da ordem dos fatos, corresponde à degenerescênciado Poder que é, por sua vez, da ordem da. Idéia e do Valor.Portanto, as leis na Cidade indicam, através do rei-filósofo queas determina, que sua medida de verdade não está nem no homem, como pensava Protágoras, nem em seu êxito pragmáticodo qual o homem extrairia potência e glória. Incluídas entre asIdéias, as leis envolvem umvalor de transcendência. Atenas,que esqueceu isso, estava fadada à decadência.

Por isso é importante definir bem a finalidade da lei naRepública.

A finalidade da lei - Em A República, a finalidade da leié tripla: ela confereunidade à Cidade; faz reinar aordem; esta belece um vínculo indissolúvel entremoral e política. Fica portanto evidente que não é possível compreender a ordem jurídica sem reportá-la à sua fundação ontológica e ao seu teor axio-lógico. O direito das cidades tem de ser pensado sobre um fundode ser e de valor.

“Haverá para uma cidade um mal maior que aquele que adivide... e um bem maior que aquele que a une e a torna una?”,

pergunta Sócrates25, que nesse momento está pensando na democracia ateniense que é o regime dos pluralismos querelantesmanifestados por facções rivais. Em cada uma delas, o desejode possuir cada vez mais é o demônio que agita os indivíduos eos lança em competições e disputas sem fim. Acidade dos desejos, que assim substitui acidade das necessidades26, incha-se

com humores e fica condenada a explosões de um individua-

24. Ib id., 521 a.25. Ibid., 462 ab.26 Cf J Ch t Pl t l dé i t I CitéSi 1980

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A AL TE RNA TIVA: NA TUREZA O U CONVENÇÃO 21

lismo feito de egoísmo, cuja única referência é a satisfação ouo prazer (hedonismo). Nessas divisões intestinas, a Cidade agoniza: ao passo que a necessidade, na origem das cidades, aproximou os homens, o desejo os separa. A Cidade só evitaria a decadência e a morte se a Constituição e as leis fossem suficientemente firmes e precisas para selar a união. Portanto, é a leique é habilitada para cimentar a unidade da Cidade e manter aalma dos cidadãos dentro da zona de influência dessa unidade.A lei tem, pois, uma função unificadora e arquitetônica. Ocor-

pus das leis constitui o arcabouço da República; elas constituem suaestrutura ou fo rm a: não há Cidade ou República semuma Constituição sob a qual se desenvolve o conjunto das leise das regras.

Ao dizer isso, Platão já pressentiu a necessidade de umordenamento jurídico que é a ordem e a forma do político. Mas pensa esse ordenamento em termos metafísicos quando formula, no campo político, o problema que, enunciado nos termosde seu tempo, é o doUno e do Múltiplo e que, nas figuras so-ciolingüísticas de nosso tempo, é o da relação entreEstado esociedade.

Atingimos aqui o cerne da filosofia política de Platão deque brota o sopro potente de todos os jusnaturalismos clássicos. É preciso comparar a organização da Cidade ideal da Re

pública com a ordem do mundo descrita noTimeu. Platão, aorelatar a gênese do universo, nota que a alma do mundo é maisantiga que seu corpo e o governa como dona27: a substânciacorporal lhe é prescrita para que o universo seja único e homogêneo. Em outras palavras, suas partes devem se harmonizarentre si, alcançando por fim a unidade cósmica: os círculos doMesmo e do Outro articulam-se harmoniosamente para dar aoscorpos celestes movimentos regulares. A coesão do mundo é

garantida por leis harmônicas que são obra do demiurgo calcu-lador. Existe, na- verdade, um paralelismo exato entre a ordemcósmica e a ordem jurídica da sociedade política. Por isso anoção de “lei” serve para exprimir tanto a ordem da Natureza

27. Timeu, 34 c s.

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22 OS FUNDAM ENTOS DA ORDE M JURÍDICA

como a ordem da Cidade. Do ponto de vista estrutural, a Cidade é em todos os pontos comparável ao Cosmos. As necessidades fundamentais que constituem sua alma originária conferem-lhe sua unidade principiai. Para que a República perdure,ela precisa proteger essa unidade. Necessita, portanto, como agrande Natureza, de um princípio de harmonia que, assim comono universo, possibilitará a concórdia (“a sinfonia de amor” do Banquete), e até mesmo a unanimidade28. Na República e na Natureza, as dissensões e as dissonâncias devem ser banidas: naCidade, sua eliminação é obra da lei que imita a lei cósmica. ODemiurgo doTimeu e os governantes dialéticos da República resolvem no fundo o mesmo problema: pôr a Unidade onde há a multiplicidade. As leis escritas da Cidade, por mais reduzidas que sejam (ou que é bom que sejam) traduzem a cooperação, no cosmos, da razão e da necessidade. Mais precisamente,elas governam a necessidade pela razão. Portanto, tudo acontececomo se as leis naturais fossem o modelo das leis civis. Com

preende-se por que Platão pode dizer nas Leis que toda lei, precedida de um preâmbulo e acompanhada de uma sanção, éuma vitória da razão sobre a necessidade. Exprime suas exigências -ordem, unidade, homogeneidade - para com e contraas causas errantes, múltiplas, desparelhadas, dispersas. A imagem do que acontece na grande natureza, a lei aparenta-se coma razão30.

A tese platônica não deixa de ter repercussões na filosofia política: foi assim que Jean Bodin encontrou no caráter formale unificador da lei a matriz de sua teoria da soberania, que segundo ele é “una e indivisível” à imagem da música das esferas cujo “número nupcial” rege a sublime harmonia31. Mas quando Platão, na ordem política, faz da armadura constitucional a

28. A República, 351 d; 442 c-d. 29. A s le is ,! 19 s.30. A s le is , 957 c.31. Cf. Bodin, Les six livres de la Répubtíque (1576); em relação a essa

questão remetem os a nossa obra Jea n Bodin et le d ro it de la Répubtíque, PÜF, 1989. ----------- - ------------------------

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A ALT ERNA TIVA: N AT UREZA O U CONVENÇÃO 23

réplica do que é a harmonia na ordem cósmica ou do que é aunidade na ordem ontológica, sua tese, construída contra o ar-tificialismo dos sofistas, ganha uma conotação jurídica. As leisnão são simples decretos, entregues ao discernimento do legislador: só são leis se impedem os danos e as divisões na vida daCidade; em outras palavras, se instauram uma justiça que seja,como no cosmos, justeza e equilíbrio. A lei e a justiça que odireito exige caminham portanto juntas. Em certo sentido, Platão pode também dizer que é justo o que é legal; mas essa justiça legal não pode ter nada de convencional e de arbitrário; émesmo impensável se não se reportar à idéia do justo natural.

A justiça, diz Sócrates, é uma virtude especificamente humana32, mas não é no indivíduo que se deve procurá-la; ela sóencontra expressão na Cidade boa33, isto é, na Cidade que atende às exigências da natureza. Também Platão apresenta a justiça como uma organização, como uma ordem orgânica na qualo papel de cada parte é determinado pelas exigências da totalidade: ao fornecer uma “imagem da justiça”, descreve-a como asituação na qual cada coisa ou cada ser está “no seu lugar naordem do Todo”34. Diferentemente do que sustentavam os sofistas, a justiça não implica a igualdade aritmética, o nivela

mento: ela é, como dirá Aristóteles, distributiva e não comuta-tiva, isto é, longe de ser igualitária, ela éhierárquica e insere-se numa escalaorgânica em que tudo é ligado. A justiça supõe

portanto a desigualdade porque as desigualdades são as diferenças que formam as complementaridades. As desigualdadesnão são nem privilégios nem insolências; na perspectiva orga-nicista e holista que ele adota para definir a Ordem da Cidade,as desigualdades se fundamentam na razão e correspondem àobrigação que todos os seres têm de desempenhar sua função

no seulugar na totalidade: perspectiva globalizante que, evidentemente, acarreta condenação do individualismo crescenteque a democracia ateniense instala: para Platão, o ponto de vista

32. A República, 392 a 3 - c 3.33. Ib id ., 369 a 5-7.34. Ib id ., 443 d-e .

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24 OS FUNDAM ENTOS DA ORD EM JURÍDICA

do Todo deve sempre prevalecer sobre o ponto de vista das múltiplas partes.

As regras da Cidade, justas por sua essência formal e porsua vocação para garantir a justiça como justeza, só podem tercomo fim o bem do Todo: o bem comum, o bem da comunidade.A lei é, pois, o guia que permite .a cada qual - portanto todos -realizar a tarefa para a qual foi feito e que o define por sua função específica no Todo. Se essa função não é assumida, as instituições políticas degeneram: as leis que perderam seu princí

pio natural já não são leis (assim como um ser vivo cujas formas já não correspondem à lei de sua espécie é um monstro): adecadência de uma República tem o mesmo sentido que a tera-tologia cósmica. Falar de um direito injusto é uma contradiçãonos termos. As normas jurídicas e as leis - verdadeiras ou justas, dá no mesmo -, réplicas terrenas do Inteligível no céu dasIdéias, e réplica política da ordem cósmica, instauram a ordemorgânica e hierárquica da comunidade. Obedecendo-lhes, cada

qual se limita a suas atribuições e realiza na Cidade a tarefa quelhe cabe. Por conseguinte, todos trabalham pelo bem comum.A condição de uma república reta é simples: a ordem jurídica temde distribuir as competências funcionais utilizando as capacidades de cada qual na sua justa medida.

Essa regra normativa, relacionada com seu arquétipo denatureza cosmológica, é uma regra de equilíbrio na qual se ex

primem um ideal geométrico de distribuição e um ideal aritmético de utilização: pedir a cada um o que ele pode, tudo o que pode, mas nada além do que pode. Seguindo essa regra de equilíbrio, a Constituição torna-se fonte de concórdia e de amizadena Cidade e Bodin estará certo ao decifrar nas leis da República platônica esse “canto de harmonia” ou essa “música das esferas”que ressoa noTimeu.

Em todo caso, é isso que explica por que. em razão de sua

finalidade, direito, política e moral sejam indissociáveis: uma política sem moral consistiria num conjunto de ardis da razãoque, por serem ardis, rebaixariam o homem; uma moral sem ordem jurídica seria um sonho sem consistência, portanto sem eficácia. E preciso haver uma Constituição na República; e é pre-

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A ALT ERNATIVA: N ATUREZA O U CONVENÇÃO 25

ciso ter confiança em suas leis e regras pois sua função é “distribuir sempre uma justiça perfeita, formada de razão e ciência,conseguindo assim não apenas preservar os homens, mas, por

piores que sejam, tomá-los melhores”35. Ao dizer que a lei dasCidades tem uma virtude ética, Platão sublinha a força do civismo que melhora o estado de coisas e a maneira de viver: como tal,o civismo implica normatividade e possui alcance axiológico.

Mas é preciso não se equivocar quanto a esse ponto: a com paração do legislador com o médico, tão freqüente em Platão36,nos esclarece remetendo-nos à fonte metafísica e ontológicadas normas que regem a Cidade. A lei é a regra que deve daraos homens seu lugar certo na ordem da comunidade, exata

mente como a terapêutica do médico deve possibilitar que umórgão recupere sua função exata no organismo. A legislação dámostras na Cidade de uma ordem que a funda, que é metajurí-dica e transcendente: essa ordem, inteligível e essencial, é a

própria lei do Ser e, simultaneamente, porque Ser e Valor sãoindissociáveis, essa ordem é a lei do que deve ser. Essa duplareferência indica que, em seu significado profundo, a ordem

jurídica das repúblicas não é deste mundo: ela é participaçãono inteligível eterno. A lei do Ser é o paradigma da legislação

das repúblicas. Por isso o direito político é portador de valor,como o revela o lirismo axiológico vinculado à apologia da lei37.Esse lirismo tem fundamento filosófico: a lei, na repúblicareal (e não apenas na república ideal), exalta a ordem e a harmonia cósmicas; é oanálogo ou o símbolo do Belo e do Bem.Portanto, é preciso compreender que, segundo Platão, as instituições não são boas “em si e por si”, mas só encontram seuvalor no além da dimensão sensível. E por isso que, por sua própria natureza, elas permitem afastar o que, no mundo dos

homens, é o pior, ou seja, a anarquia ou a tirania que é sempreausência de ordem.

35. A po lí ti ca , 297 b.36. Por exem plo,Górgias, 463 e.37. Criton, 54 c.

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26 OS FUNDAMENTOS DA ORDEM JURÍDICA

Platão fornece à filosofia política e à filosofia do direito aela ligada o exemplo de um pensamento dualista que, sem jamaisdesvalorizar a obra do homem (de que são parte integrante ra

zão, amizade, ordem pública, justiça), mostra contudo o laço quea liga a um horizonte transcendente de inteligibilidade pura ede valor essencial, em que deve inspirar-se, mas do qual podeapenas ser o reflexo. A lei é um intermediário, uma ponte entreo mundo das Idéias e o mundo da experiência.

O problema da relação entre lei positiva e lei natural estátotalmente presente nesse esquema em que o direito natural -inteligível e universal, e portador da ordem cósmica - impõe-secomo arquétipo, evidentemente metajurídico, de todas as construções do direito positivo. Ele é “o prego” ao qual todas estão presas.

Com essa concepção de um “mundo quebrado”, Platão indica que a distância do finito ao infinito é infinita. Portanto, asleis das cidades nunca serão definitivas nem perfeitas. Sua evolução é o conjunto das determinações históricas de uma ordem:ela se confunde com suas ab-rogações, emendas, reformas. Noentanto, longe de cair no historicismo (que, além disso, lhe pareceria a própria negação da filosofia), é à fundação transcendente de todo o direito que Platão dá a última palavra. A leinão é portanto, como acreditavam os sofistas, um instrumentotécnico de governo das cidades. Esse desvio “tecnocrático” ou“utilitário” do direito é sua desfiguração ou desnaturação. Asregras positivas estruturam uma ordem política em conformidade com a ordem do mundo que tem a Idéia como norma ecomo indicador da exigência. Sem esse princípio fundador, asconvenções estão destinadas a ser arbitrárias e têm a fragilidade

de um artifício. Para que uma Cidade seja viável, não basta darordens ou baixar decretos. A lei não é um costume confirmado pelo tempo nem um texto fixado pela escrita. Estes são a matéria da ordem jurídica, contingente e secundária. A forma dasinstituições reside em seu espírito, isto é, em sua participaçãona Idéia (essência ou inteligível) que faz com que sejam à imagem da harmonia do Todo (referência à ordem cósmica). Aidealidade do direito é mais real que sua realidade de regra positiva (determinada pelos.homens). _____ „

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A LTERNATIVA: NA TU REZA O U CONVENÇÃO 27

Hegel captou perfeitamente o caráter holista e organicistaa legislação das repúblicas na tese socrático-platônica, com

eensível apenas por referência à idéia do direito natural38.om efeito, somente este implica a participação de todos nada orgânica comunitária; a lei só ganha sentido, explica Hel, na totalidade ética (a “bela totalidade grega”), cuja suprea harmonia Platão sempre louvou. Portanto, Hegel sublinhaue, em Platão, a lei depende de uma visão organicista da Ciade, em todos os pontos comparável à visão organicista doosmos. Assim, a política platônica exclui não apenas o indiviualismo, mas todos os particularismos (as “facções”) e todaentalidade de “classes” ou “partidos”: eles sempre introdu-m na Cidade cisões e dissensões que constituem desequilíios. Tudo o que divide e separa é não só gerador de guerra,as contrário à justiça, ao bem e à natureza. A separação políca é uma separação ontológica.

Pelo contrário, a Cidade viva é uma unidade orgânica cujaoesão é sinal de saúde porque é o respeito pelas normas natuis. A natureza é o “paraíso político” que os modernos perdem, diz Cassirer39. Na esteira de Hegel, ele crê que os moder

os esqueceram que o Todo é anterior e superior a todas as foras de particularidade e de individualidade, e que a vida reúneferenças que, por suas complementaridades funcionais, são

m fator de união. “Pensar a vida, eis a tarefa”, dizia o jovemegel indo buscar no naturalismo platônico os valores que prendia opor à deliqüescência de um tempo de crise40.

Não se poderiam evidentemente omitir as críticas anglo-xônicas contra Platão, que começaram aproximadamente em

920 e se multiplicaram depois de 1933. Mas, para compreener bem seu significado, é preciso reportá-las à atualidade potica daquele momento: ao estabelecimento do regime soviético

38. Heg el, D es manières de traiter sc ientif lquem ent du droit naturel, trad. Bourgeois, Vrin, 1972;Commentaire por B. Bourgeois, Vrin, 1986; cf.

p. VII: “L’organicisme éthique de l’Etat.”39. E. C assirer, D er erken ntn is Problem, 1923, t. III, p. 292.40. Cf. Hegel, La Constitution de l ’Allemagne\ e H egels th eo logisch e

gnnschnfU'n. Ed. Nohl, p. 429. . ................ ,

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28 OS FUNDAM ENTOS DA ORD EM JURÍDICA

após a Revolução de 1917 e à instalação das ditaduras fascistasapós o advento e ascensão do nacional-socialismo. Mas, paraalém dessa conjuntura, a semelhança que B. Russell pretendeestabelecer entre a República de Platão e o regime bolchevista41ou a acusação de “totalitarismo” que K. Popper faz contra “a sociedade fechada” de que falariam os diálogos platônicos42decorrem de uma desfiguração e de uma desnaturação dos textos43.Embora seja verdade que Platão é hostil à democracia, que admite na Cidade uma hierarquia e “classes”, aceita a escravidão,

enfatiza a importância das elites e da educação, ou a necessidade das Constituições e das instituições jurídicas para fazer reinara ordem pública, é sempre num contexto filosófico que nadatem a ver com a “ideologia”. Acusá-lo de “nobre mentira” é esquecer que sua indagação incide sobre a essência da República etransportar sua investigação dos fundamentos inteligíveis daorganização jurídica da República para outro âmbito.

Essa concepção, na sua oposição radical ao convencionalismo dos sofistas e às idéias igualitárias que dela pretendiamdeduzir, possui uma força inesgotável. Aristóteles e Cícero -fossem quais fossem as diferenças entre suas filosofias e a dePlatão - captaram-lhe o essencial e colocaram em primeiro plano, para pensar o direito, a sociabilidade natural do homem44.

41. B. Russell,The Pra ctice and Theory o f Bolchevism , Londres, 1920, aponta para semelhanças perturbadoras entre a República de Platão e o regime bolchevique.

42. K. Popper,The Open Society an d its Enem ies, 1945; trad. fr., acusa Hegel e situa a origem da idéia de “totalitarismo” em Platão: as le is como instrumentos de opressão e de fechamento; a prisão dos indesejáveis; a alienação; o doutrinamento pela educação e pela propaganda; o dogmatismo ideológico... São estes os temas da “sociedade fechada”.

43. Cf. também H. Marcuse, L 'homme unidimensionnel, trad. fr., Ed. de Minuit, 1968; S. de Beauvoir, in Les temps modernes, n“ 112-3: L apen sèe de

droite au jou rd’hui; P riv ilèges, Gallimard, 1955, pp. 91 ss.44. Aristóteles, Ética a Nicômaco , 1099 b 18-20; 1114 a 31 -è 25; A po

lítica, 1254 a 29-31; 1327 b 18-39; Cícero, D e Legibus, I, §§ 28-35; D e Re

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A ALTERN ATIVA: NA TU RE ZA O U CONVENÇÃO 29

O que eles dizem, em suma, é que somente ela permite com preender a poliíeia, não como uma Constituição positiva escrita, à maneira dos modernos, mas como a fonte fundante da ordem jurídica das repúblicas: a politeia designa, com efeito, a

própria “organização” da comunidade política.É assim que Aristóteles, repensando em suasPolíticas a

mensagem platônica, decifra na natureza das leis da Cidade a ex pressão da “natureza das coisas”. Logo de saída, fica claro que, para ele, a lei é inseparável de sua filosofia danatureza. Ora,sendo a natureza feita a um só tempo de matéria e de forma -ou seja, não sendo simplesmente nem um dado empírico inerte, nem uma Idéia do céu inteligível - ela obedece a um princí pio imanente de organização. Portanto, se a lei pode ser com preendida por referência à “natureza das coisas”, isso significaque tampouco ela é simples fato ou dado da vida das cidades,ou uma Idéia em sua pura essencialidade: ela é lei “por natureza” ( physei), exatamente da mesma maneira que o homem é “pornatureza” um animal social e político. Ela não pode encontrarsua razão de ser apenas nas ações do homem e não se reduz àdecisão ou decreto “determinado” pelos homens. Aristótelesenfatiza a diferença irredutível existente entre asartes, que procedem do entendimento construtor e técnico dos homens, e alei que só pode tirar sua “força”, isto é, seu poder de impor obediência, da autoridade “mais alta”, a da Natureza.

E por isso que a lei jamais é expressão de ciência, e simdessa sabedoria prática que Aristóteles denomina phronesis ou

prudência45. A prudência - fonte da jurisprudência dos magistrados para os romanos - tem um valor superior ao da arte (outechnê) que, como a medicina por exemplo, sempre se resumea um conjunto de meios organizados estrategicamente para arealização deum fim, que pode ser considerado um bem par-

45. Sobre esse tema fecundo, cf. L. Strauss, in D roit nature l et h is to ire (1959), cap. IV; La cité et Vhomme (1964), trad. Agora, 1987. Sobre a política de Aristóteles, Leo Strauss, “The Three Waves of Modemity”, in Poli ti cal Philosop hy: six es sa ys by Leo Strauss, Nova York, 1975, p. 87; P. Aubenque, ‘La loi selon Aristote”, in Arc hives de ph iloso ph ie du dro it , 1980, t. 25.

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30 OS FUNDAMENTOS DA ORD EM JURÍDICA

ciai; a prudência, ao contrário, ocupa-se da vida boa, do bemhumano, emseu todo. Enquanto uma arte, devido à sua finalidade específica, é questão de destreza, isto é, de saber e de ha bilidade, a prudência é inseparável davirtude moral, que é umadisposição para escolher bem: entenda-se, para escolher conforme a ordem das coisas. Ela permite alcançar a vida boa queé o fim natural do homem (o homem que busca o mal pelo mal éanormal e parece-se com um monstro). Portanto, a lei, sempresuperior às artes, é dita boa em razão de sua conformidade àordem natural das coisas.

Na Cidade, a politeia não é, pois, um fenômeno jurídico no

sentido do direito positivo. Designa o fundamento ou a fontedas leis positivas, isto é, a organização ou o gênero de vidaque, segundo a política certa, é conforme à ordem da natureza:nessas condições, a melhor tradução da palavra politeia é provavelmente “regime”... Em todo caso, é dessa concepção quedecorre a idéia que Aristóteles e, depois dele, os “clássicos”têm do “melhor regime” na Cidade: aquele em que os melhores homens (isto é,stricto sensu, a aristocracia) costumam estar no poder, sendo a aristocracia composta de sábios, ou seja,os virtuosos e os prudentes.

Leo Strauss observa várias vezes que Aristóteles é o fundador da ciência política porque descobriua virtude moral. Nessa asserção perfeitamente correta, é preciso ir ao fundo do problema sem cair no mal-entendido que consistiria em assimilar moral e política. O cerne do problema é quea virtude moral implica conformidade à natureza ou obediência à universal lei natural. Segundo Aristóteles assim como segundo

Platão, a conseqüência disso é que a desigualdade natural fornece uma justificação suficiente para o caráter não igualitáriodas condições na Cidade. Essa idéia leva Aristóteles a legitimar a escravidão46, em que homens naturalmente feitos para ocomando relacionam-se com outros homens naturalmente feitos para o serviço (Aristóteles não se pergunta se os valoresque o homem traz em si toleram esse estado de coisas). Essa

46. A p o lí tic a , I, cap, 3-7.. - - - -

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ALTERNA TIFA: NA TUREZA O U CONVENÇÃO 31

ese só é compreensível, como em Platão, à luz de sua concepão da justiça.

Aristóteles escreve que “o justo político é em parte natual (physicon), em parte legal(nomikon)"1,1. E claro que ele nãoontrapõe essas duas características do justo político, mas asustapõe e, até mesmo, articula uma com a outra. E como se austiça natural, por ser universal e invariável, precisasse serarticularizada e relativizada aqui e ali pelas decisões do legisador. A diferença existente entre as leis de uma cidade e deutra não é o indício de sua não-naturalidade, mas significa

que as leis civis ou políticas adaptam-se às diferenças presenes na natureza do homem segundo os lugares e segundo osempos.

Numa primeira aproximação, poder-se-ia pensar que a paricularidade concreta das leis não se opõe à universalidade absrata da lei natural e traduzir isso dizendo que as boas leis sãoquelas que se adaptam à natureza da região ou de seus habiantes (tema que será encontrado na teoria dos climas de Bodin

e na teoria do “espírito geral das nações” de Montesquieu): a

ei natural se particulariza para se conformar aos diversos aspectos que a natureza adota pelo mundo afora.Mas uma análise mais acurada leva a dizer (a expressão é

de P. Aubenque)48que a lei natural “se traduz” ou “se converte”em leis civis. Por conseguinte, a lei natural já não pode ser compreendida como o arquétipo transcendente ou o modelo abstrao das leis positivas: por mais diferentes que sejam as leis das

cidades em sua contingência e em sua relatividade, todas com

portam umelemento formal comum que é seu modo de traduzir ou transcrever politicamente a lei natural. A lei natural é portanto a norma imanente à realidade objetiva diversificada das leis positivas das cidades. Assim sendo, as leis positivasevelam sua verdadeira natureza: não são fins, mas meios gra

ças aos quais as intenções da natureza se estendem e concretizam. Sua finalidade é a harmonia da comunidade política, pois

47. Ib id ., 1134 è 17.48. P. Aubenque,-art.-eítado, p. 155.

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32 OS FUNDAMENT OS DA ORDE M JURÍDICA

essa harmonia é a condição de realização do homem no seio dagrande Natureza. Em outras palavras, “o direito natural é parteintegrante do direito político”49. Para além da vida domésticaou econômica, é na vida cívica que ele encontra sua formamais evoluída. Portanto, a Natureza fornece à política um modelo que nem o legislador nem o magistrado devem perder devista para não correrem o risco de atentar ao mesmo tempocontra a essência do político e a essência da justiça.

Como Aristóteles, os estóicos e os filósofos cristãos insis

tirão no caráter paradigmático que o direito natural adota emrelação ao direito positivo e á lei civil, direito natural identificado, aliás, à “lei segundo a natureza”50: a natureza, em seu ordenamento imanente, oferece aos homens um “padrão” ou um“standard o f life” que, para suas obras, tem valor de fundamento. É bem isso que Aristóteles explica para Nicômaco aoexpor sua concepção do justo. Só que seria inexato interpretara análise aristotélica em termos de idealismo e buscar na “leinão-escrita” do direito natural o ideal dos “direitos do homem”.Aristóteles ignora totalmente essa noção porque, segundo ele,o direito natural, ainda que paradigmático, não é um direito ideal:está ligado às formas e aos fins do universo, isto é, às suasestruturas e à sua teleologia imanente fundamentais. Emboraseja verdade que ele propõe uma normatividade natural, o maisnotável é que afirma seu caráter principiai: por conseguinte, ele

49. L. Strauss, D roit natu re l et his to ir e, p. 144.50. “Há uma justiça e uma injustiça que todos os home ns com o que adi

vinham e sentem de modo natural e comum, mesmo quando não existe entre eles nenhuma comunidade nem qualquer contrato; por exemplo, é evidentemente. disso que fala a Antígona de Sófocles, quando afirma que era justo transgredir a proibição e sepultar Polineices; pois isso era um direito na tural: lei que não é nem de hoje nem de ontem, que é eterna e cuja origem ninguém conhece.

“É também aquela que autoriza Empédocles a proibir que se mate um ser animado; pois não se pode pretender que e sse ato seja justo para alguns e não o seja para outros.

“Mas a lei universal estende-se em todos os sentidos, através do éter l bé d ó l

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A AL TE RN ATIVA: NAT UREZA O U CONVENÇÃO 33

é primeiro em relação a todas as obras construídas pela artehumana, necessariamente secundárias e inferiores. Assim, pormeio de suas implicações políticas, o direito natural revela sua

dimensão ontológica fundamental. Ele faz parte do ser do mundo.Como tal, não é da ordem do humano. O direito natural e odireito político a ele ligado decorrem da “natureza das coisas”:

pertencem àordem cósmica cuja substância implica um sentidoimanente. É o que Montesquieu compreenderá perfeitamente:“Antes de existirem leis feitas, existiam relações de justiça

possíveis.”51Essas “relações” não são um axioma básico, teóricoe abstrato, sobre o qual se edificaria um sistema jurídico-polí-tico. Elas estão inseridas no próprio ser do mundo. M. Villey tem

razão quando destaca o caráter realista e concreto do justo segundo o Estagirita: o direito natural não é uma regra geral; é umadimensão substancial do ser. Os jurisconsultos de Roma perce biam bem esse sentido quando assimilavam o justo às decisõestomadas, nos casos litigiosos da existência cotidiana concreta, pelos jurisprudentes preocupados com a natureza das coisas52.

Conclui-se, pois, que, segundo Aristóteles, o direito, guardião da ordem das Cidades, em cujas concepção e aplicaçãoempenha-se a sabedoria prática ou “prudência”, não encontra

seu fundamento na ordem da transcendência, como afirmavaPlatão. Ainda que o direito natural confira sentido e valor aodireito positivo, é no grande Todo do mundo, ainda que esteconserve “o mistério do modelo”53, que seu sentido e valor fun-dante podem ser decifrados.

Na esteira de Aristóteles, para quem “a lei universal estende-se em todos os sentidos, através do éter que reina ao longe e

51. Mon tesquieu, L 'esprit de s lo is, I, I in Édition de la Pléiad e, I, I, p. 233. (Trad. bras. O espírito das leis, Martins Fontes, São Paulo, 1996.)

52. Isso sem dúvida explica a idéia, à primeira vista desconcertante, segundo a qual o direito natural seria, segundo os romanos, “variável”. Seria mais exa to dizer que a idéia do direito natural clássico, em sua retidão perfeita, universal e imutável, encontra expressão de maneira casuística. O realismo dos “casos” afasta a tentação idealista.

53. L. Strauss, La cit è et l 'homme, p. 83.

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34 OS FUNDAM ENTOS DA ORD EM JURÍDICA

também da terra imensa”54, Cícero dá a essa temática um carátersoberano: “E da lei que se deve partir para falar do direito. Alei é de fato a força da natureza, é o espírito, o princípio condutor do homem que vive com retidão, a regra do justo e do injusto. Como todos os nossos discursos concernem às regras davida popular, será por vezes necessário falar a linguagem po pular e, como faz o vulgo, chamar de lei a regra escrita à qual prescrições ou interdições dão um caráter imperativo. Mas, paraestabelecer o direito, partamos dessa lei suprema que, anteriora todos os tempos, precedeu qualquer lei escrita e a constituição de qualquer cidade.”55

As idéias de Cícero relativas ao direito natural só devemser entendidas com prudência, situando-as no ecletismo filo-sófico-jurídico dos autores romanos de seu tempo. Aconteceque, no De Legibus, o direito natural tem a forma de uma norma transcendente e assume uma função axiomática. “De acordo com a opinião dos mais sábios, a lei não é uma invenção doespírito humano nem um decreto dos povos, mas algo eternoque governa o mundo inteiro, mostrando o que é sensato prescrever ou proibir.”56 De Legibus e De Republica contêm passagens célebres57às quais fazem eco não só os artigos fundamen

54. Aristóteles, Retó ric a, 1373 b, trad. Dufour, 1932.55. Cícero, D e Legib us, liv. II, § 6, in trad. Appuhn, Gamier, 1954; cf.

também §§ 12 e 13.56. Ib id., II, § 4.57. Cf. o texto célebre do D e Republica, III, § 13 : “Existe uma lei verda

deira, é a reta razão, conforme à natureza, disseminada em todos os seres, sem

pre de acordo consigo m esma, não sujeita a perecer, que nos chama imperiosamen te a cumprir nossa função, nos proíbe a fraude e dela nos afasta. O hom em honesto nunca é surdo a suas prescrições e interdições; elas são ineficazes para o perverso. Não se admite nenhuma emenda a essa lei, não é lícito ab-rogá-la nem em sua totalidade, nem em parte. Nem o Senado nem o povo podem nos dispensar de obedecer-lhe e não é necessário procurar um Sextus Aelius para explicá-la ou interpretá-la. Essa lei não é outra em Atenas, em Roma, outra hoje, outra amanhã, ela é uma só e mesma lei, eterna e imutável, que rege todas as nações em todos os tempos; para ensiná-la e presc revê-la a todos há um deus único: cabe a ele a concepção, deliberação, colocação em vigor da lei. Quem não obedece a essa lei ignora a si mesmo e, por desconhecer a natureza humana, padecerá a maior puniçãorainda que escape aos outros suplícios:” -

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A ALTERNATIVA: NATUREZA O U CONVENÇÃO 35

ais do Digesto5S, mas toda a corrente do direito natural clássico.Com efeito, “a natureza é o ancestral de todos os ancestrais, a mãede todas as mães”59; “anterior a toda tradição”, ela está no fundamento da tradição: seu ser envolve as razões do dever-ser.

Nessa perspectiva, é evidente que a filosofia do direito sendaga não sobre a origem histórica da ordem jurídica, mas so

bre sua origem “essencial”. Nesse contexto heurístico, distin-guem-se três idéias-forças que constituirão o fio condutor daradição jusnaturalista clássica:

a / O convencionalismo preconizado pela sofistica parecedoravante não ser apenas um artificialismo, mas um institucio-nalismo sustentado por pressuposições hedonistas contra asquais se erguem ao mesmo tempo Platão e Aristóteles. Paraestes filósofos, o bem, particularmente o bem comum, é maisfundamental que o agradável ou o útil, e as leis da Cidade devemestar voltadas para o seu cumprimento. Portanto,numa perspeciva eudemonista, elas são sustentadas por uma concepção mo

ral inserida numaaxiologia.b / Essa visão ética da ordem jurídica corresponde a uma

ontologia: o bem do homem é na verdadeo que convém à sua natureza. Mas, para determinar o que convém à sua natureza, épreciso situar o homem no seu lugar certo na ordem imanentedo cosmos. Disso decorre que a vida boa regida por boas regras é aquela que é conforme à ordem natural: o direito positivo da cidade só cumpre sua função exprimindo a justiça e odireito naturais.

c / Sendo a política o campo onde se pode manifestar a ex

celência humana - isto é, a superioridade ontológica do homemsituado no topo da escala dos seres devido à sua inteligência -,é preciso que o direito, que estrutura e organiza a vida da cidade, se enraíze na ordem natural do mundo. O direito positivo

58. Cf. D ig esto , art. 1?: “O direito natural é aquele que a Natureza inspira a todos os animais; não é particular dos homens, mas comum a todos os seres vivos”; o direito natural corresponde, pois, a uma necessidade natural;

ele não é, em si, nem moral nem jurídico._ 59. L. Strauss, D rg it natu re l e t h is to ir e. p. 92.

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ê

delineia-se portanto no horizonte filosófico donaturalismo. Esse naturalismo não é um empirismo nem um materialismo: a

imutabilidade universal da Natureza é, em sua perfeição, o quefundamenta o valor das leis contingentes das cidades. O meta bolismo delas em nada altera esse fato; a lei natural é o fundamento de todas as leis positivas que, lio mundo dos homens, sãouma tradução ou transposição dela. O fecundo sopro dos grandes filosofemas, como a sociabilidade natural, a anterioridadee a superioridade do justo natural sobre a justiça positiva econvencional, o antiigualitarismo e o antidemocratismo, irárepercutir até em Domat e Cumberland.

Na história dessa longa tradição jusnaturalista, deve-se porcerto levar em conta a influência do cristianismo que substituiu o cosmologismo dos antigos pelo fervor doteologismo. Mas o fato de a doutrina ser teológico-teleológica em vez denaturalista não altera verdadeiramente o cerne do problema jurídico: para os pensadores cristãos, o direito natural continuasendo a norma universal do justo. Assim, por exemplo, na obrade Santo Agostinho esboça-se claramente a relação entre pla-tonismo e cristianismo: Deus é de certa forma instalado no céudas Idéias, e é no âmbito de um dogmatismo metapolítico dominado pela idéia da transcendência absoluta e perfeita daDivindade que são pensadas todas as regras éticas, jurídicas e políticas que regem a Cidade terrena60. Santo Tomás, que concorda em essência com os preceitos ciceronianos, confere àidéia de lei natural uma autoridade que também concorda como dogma cristão. Por sua insistência sobre o caráter divino da“lei”, aproxima-se muito de São Paulo61e, ao elaborar uma concepção objetivista do direito positivo, sempre a integra na ordem

36 OS FUNDAMENTOS DA ORD EM JURÍDICA

60. Santo Agostinho,Confessions, III, 7: “Eu ainda não conhecia essa just iça verdadeira e totalmente interior, que não ju lga as cois as pelo s costumes e pelas práticas exteriores mas pela retidão imutável da lei etem a do D eus todo-poderoso”; cf. tambémContra Faustum, XXII, 27. A referência de Agostinho à Epístola aos Romanos, II, 14 s., é muito freqüente.

61. Cf. Epístola aos Romanos, II, 13, 1-7: “Não há autoridade que não venha de Deus, e as que existem são constituídas por Deus.”

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A ALTE RN ATIVA: NATUREZA O U CONVENÇÃO 37

teológica do mundo. O direito natural dos antigos tornou-se omodelo sobrenatural da ordem justa; sem a observância dessemodelo as sociedades políticas não se diferenciariam de bandos de arruaceiros. Nessa “catedral de idéias” que é aSuma teológica, Tomás de Aquino repensa Aristóteles, embora esteja marcado pelo platonismo da corrente agostiniana: Deus épara nós - diz ele conforme Platão62- “a medida de todas ascoisas”63: conseqüentemente, é bom e direito o que se aproxima de Deus ou do que é divino. Assim, o homem, animal sociale político por natureza, vive na comunidade em que o Bem é oindicador da lei natural; portanto, a observância do direito na

tural, como quer a lei natural divina, garante a coesão, a unidadee a ordem da comunidade. Definida por seu fim, que é o bemcomum, essa modalidade de existência impõe obrigação64aoshomens e, porque os homens são dotados de razão, cabe-lhesassumir o dever que lhes dita o direito natural. Ao indicar aoshomens o sentido da teleologia cujo princípio é Deus, o direitonatural lhes prescreve buscar o bem comum e a segurança pública. Tendo-se tornado uma espécie de princípio regulador da ética política, tem a vocação de “conter” as regras positivas ese firma como proteção do arbítrio humano, sempre inclinadoa transformar-se em arbitrário. A ordem jurídico-civil supõe aordem natural divina, que a funda e a guia à luz da razão.

A idéia do direito natural, recuperada e teologizada peladoutrina cristã, ganha umstatus semântico cada vez mais preciso que põe em plena evidência sua vocação ao mesmo tempofundadora e reguladora. Talvez deva-se ver nisso a influênciada fé nos ensinamentos dos textos sagrados; tampouco seria

inútil perscrutar o direito canônico da Idade Média para neledescobrir as razões dessa vocação. No entanto, parece-nos mais

62. Platão, Les lo is , 716 c.63. Tomás de Aquino,Suma teológica, I a, Q. 16 « 5.64. Ibid ., I a, II ae, Q. 90 a 1: “A lei é uma regra de ação; é a medida de

no ssos atos, segun do a qual somos solicitados a agir ou, ao contrário, dissuadidos. A palavrale i não vem do termo latino que significavincular pelo fato de que a lei obriga a agir, isto é, de que elavincula o agente a uma certa maneira

de agir?”

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38 OS FUNDAM ENTOS DA ORD EM JURÍDICA

pertinente avaliar nessa idéia aautoridade filosófica de que é portadora a tradição do jusnaturalismo clássico.

Com efeito, sua rejeição do convencionalismo significaque não se pode pensar o direito político e, de forma mais geral,o justo na Cidade sem recorrer à filosofia. L. Strauss observade modo sutil que, “sem Trasímaco, jamais haverá Cidade justa”65. Compreenda-se que na ordem institucional da Cidade é o próprio reino da filosofia que encontra expressão, pois o direito político vai buscar além de si mesmo sua capacidade normativa. O bom jurislador tem portanto forte semelhança com ofilósofo que desceu novamente para a Caverna para dali gover

nar os homens. O direito não é constituído por uma soma deconvenções. Só é direito e, como tal, apto a administrar a justiça, porque participa de um horizonte de idealidade que lhe conferesua essência e sua normatividade. Direito natural e ideal con-fundem-se. A ordem jurídica das Cidades não decorre do poder instituinte da vontade dos homens, mas da capacidade quea inteligência tem de apreender o valor eminente e paradigmático do Ser. Segundo Platão, “a mais elevada ciência”, à qualconduz a dialética ascendente66, ensina que não pode haver ruptura ontológica entre a ordem jurídica das Cidades e a ordemnatural do cosmos. Considerá-la em sua figura natural ou como obra de um Deus criador em nada muda essa perspectiva: ofilósofo que, ao buscar o que dá juridicidade a uma ordem jurídica, interroga-se sobre seu fundamento tem um olhar suficientemente penetrante para encontrá-lo na unidade origináriae pura de um “invisível” que esclarece.

A análise das filosofias clássicas implica, para o infinitodos tempos vindouros, a condenação da atitude especiosa dossofistas que, em sua exaltação das convenções e dos artifíciosque - segundo eles - têm o homem como artesão e medida, se

pararam o parecer do ser. Se a justiça, que é a finalidade da ordem jurídica, fosse apenas mera questão de decisões e convenções, dependeria tão-somente da técnica do discurso. Privado

65. L. Strauss, La cilé et 1'homme, p. 159.66. Platão, L esoph is te , 353 c .- —

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A ALTERNATIVA: NATUREZA O U CONVENÇÃO 39

de qualquer horizonte de transcendência, o direito afundaria nohábil verbalismo dos retores, que tentam persuadir recorrendo,se necessário, à mentira. Na rede de aparências que seria assimecida, o convencionalismo relativista provocaria o desapareci

mento do sentido, que pertence ao Uno e à Transcendência. Aradição jusnaturalista mostra, ao contrário, que, para fundar a

política e o direito, é preciso serverdadeiramente filósofo, istoé, medi-los pela Natureza ou por Deus. A referência cosmoló-gica ou teológica necessária para a fundação do direito faz delea linguagem do Verdadeiro e do Bem. A Cidade é aeunoikia6'1onde, à imagem da ordem universal, a comunidade é o lugar danecessária interdependência que sela a unidade da multiplicidade. Seu símbolo é o “tecelão régio” de que falava Platão68,que, numa mesma trama, reúne a variedade das característicase das condições.

O direito natural da tradição clássica certamente oferece,como a República perfeita segundo Platão, um paradigma que oshomens não podem realizar: tem as inflexões da u-topia e da u-cronia. Mas, longe de ser sua fraqueza, essa é sua inesgotável

força: propõe ao direito dos homens um “modelo” que tem a permanência do inteligível. O importante é que a idéia do direitonatural deixa o espírito ver asexigências a que deve atender odireito positivo de que as cidades necessitam.

Assim, o mérito dessa tradição é, ao se erguer contra o ar-tificialismo e o historicismo que são as loucuras da sofistica,levantar a questão “fundamental” do direito e indicar que, devido à plenitude de sentido e de valor de seu momento fundador, a ordem jurídica das Cidades não pode ser cortada de suasraízes ontológicas e axiológicas. O jusnaturalismo clássico coloca em xeque não só a embriaguez autoprodutivista dos sofistas, mas, através dela e por todos os séculos vindouros, os delíriospraxeopositivistas com que se embriagarão os “modernos”.

Paradoxalmente, foram as mutações endógenas da teoriausnaturalista que lhe provocaram a acusação e a condenação.

67. Platão, A República, 462 c-d.68. Platão, A po líti ca , 308 c ss.

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40 OS FUNDAMENTOS DA ORD EM JURÍDICA

Para compreender os motivos da condenação à morte que a corrente positivista preparou e proclamou sem descanso, é necessário lembrar como “a descoberta metafísica do homem” provocou, no século XVII, num contexto intelectual preparado de longa data, uma reviravolta que levou a doutrina jusnaturalista amuito longe da inspiração cosmoteológica da época de sua fundação e a condenou a hesitações conceituais em meio às quaissuas curiosas anfibologias deixavam o caminho livre para as vitórias positivistas.

A desnâturalização do direito natural: o retorno do convencionalismo

A antropologização do direito

A fundação cosmoteológica do direito parece, a despeitode algumas exceções ou algumas variantes, ser uma das linhas deforça mais nítidas do pensamento medieval. Mas um forte movimento de derivação, cujas premissas já se deixam captar no século XIII, abalou as certezas metafísicas do pensamento clássico e preparou a mudança brusca das teses tradicionais. Essemovimento não tem a nitidez de uma progressão linear; mani-festa-se aliás inicialmente apenas por sobressaltos pontuais,insuficientes para subverter a tradição do direito natural dos antigos ou para abolir o teologismo que sustentava o pensamentodo direito na corrente tomista; no entanto, deixa perceber aantropologização próxima da ordem jurídica. Na busca dos fundamentos do direito, a referência à natureza das coisas é, comefeito, substituída pouco a pouco pela referência ànatureza do homem. Essa mutação conduzirá ao advento da “modernidade”.A antropologização do jusnaturalismo será na verdade a sua“modernização”, fundamentalmente ligada à transformação dosesquemas e das categorias até então pertencentes à filosofia.

Os sinais de uma desestabilização da ordem cosmoteológica69, na qual até então a filosofia inseria o direito, ficaram

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42 OS FUNDAMENTOS DA ORDEM JURÍDICA

direito e lei: a ordem jurídica, em matéria contenciosa ou pacífica, no campo da propriedade ou do casamento, dos delitos ou

dos crimes, era considerada, por exemplo por Duns Scot, nãocomo a expressão, em si e por si, do justo natural, mas comoaquela que a lei estabelecia; em conseqüência, todos os atos

jurídicos eram ditos submetidos à lei e as sentenças só podiamser estabelecidas consoante as prescrições da lei positiva.

De modo geral, no entanto, as filosofias de Duns Scot e deGuilherme de Occam ainda atribuíam à vontade de Deus umlugar eminente. Isso impede que se declare peremptoriamenteque o voluntarismo de um e o nominalismo do outro já eram positivismos. É preciso admitir, todavia, que elas abriram uma brecha profunda na visão cosmoteológica até então correntemente aceita. Logo a brecha será tão grande que a filosofia enfatizará o papel primordial do homem na instituição do direito, oque provocará a reviravolta das teses jusnaturalistas tradicionais.

No limiar do pensamento renascentista entrevêem-se pers pectivas antropológicas e humanistas que a tradição não imaginava. Mas a filosofia do Renascimento é ainda um pensamento de transição, geralmente dividido entre avia antica e avia moderna. Isso explica a hesitação dos autores quando falamdo direito natural: por exemplo, o anticristianismo de Maquia-vel leva-o a fazer o conceito de direito natural pender para aforça; Lutero procura no homem a “sede” do direito natural, masafirma ao mesmo tempo seu caráter divino; a escola católicade Salamanca, por sua vez, ainda permanece muito próxima dotomismo de que Suarez pode passar por herdeiro. Nesse am

biente marcado pela ambigüidade, a indecisão conceituai é freqüente, ainda mais freqüente porque com o desacordo entre oespírito renascentista e o espírito da Reforma, ela muitas vezesse faz acompanhar de uma intenção polêmica.

No entanto, na pluralidade das teses defendidas e apesardas ferventes controvérsias, desenha-se uma tendência geral quelogo se amplificará: ò direito natural, que já não é reportado ànatureza das coisas desejada por Deus, está fundamentalmente

ligado à idéia que se tem danatureza humana. A desnaturaliza-ção do direito natural'a~companha~sua’antropologização; já não -

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A ALTERNATIVA: NATUREZA O U CONVENÇÃO 43

se procura fundar o direito nem na ordem da Natureza, nem napotência sobrenatural do divino. Porque, num mundo em que ohomem se instala com uma autoridade crescente, a idéia de umfim ontologicamente definido que indicaria um horizonte devalor já não está no centro da reflexão filosófica, parece que odireito dos homens, feito para os homens, só pode fundamen-ar-se no homem. A ordem jurídica não corresponde às harmo

nias naturais; não é a realização de um desígnio da providência;atende às capacidades criativas da “humana natureza”. Guilherme de Occam, nas ousadias de uma filosofia complexa cujasconseqüências certamente ainda não tinham sido todas avalia

das, chamara insistentemente a atenção para o poder racional do homem: a razão presente em todos os homens, dizia ele emsuma, confere-lhès um poder sobre as coisas e, o que é aindamais importante, o poder de enunciar regras. E certo que a fiosofia de Occam está longe de ter uma simplicidade incisiva

pois, segundo ele, a razão no homem coincide com a vontadede Deus; ocorre que a idéia da racionalidade da natureza humana, ao conferir aos homens uma relativa independência prática

em relação à ordem cósmica e em relação às intenções divinas,adquire certo prestígio. Embora ainda esteja muito longe designificar a autonomia do homem, indica as faculdades criativas de que é portador. O advento do homem já contém a promessa de seus triunfos.

O que, no século XVI, ainda era apenas uma tendência, setomará um filosofema fecundo no correr dos séculos XVII eXVIII. A teoria jusnaturalista da tradição clássica será subvertidapela compreensão “moderna” do conceito de direito natural que,doravante instalado numa filosofia que descobriu o homem como tema, se construirá em tomo de três noções-chave: ohumanismo, o individualismo e o racionalisrno™. A articulação entreelas irá abalar as fundações tradicionais do direito: pelo fato de,

70. O dua lismo , assinalado em geral na esco la moderna do direito natural, entre o racio nalism o introduzido por Grotius e Hobbes e ovoluntarismo preconizado por Suarez e por Pufendorf, não é contraditório com essas três constantes =

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44 OS FUNDAMENTOS DA ORD EM JURÍDICA

para o pensamento moderno que desperta e conhecerá um desenvolvimento rápido, aratio juris só poder encontrar-se no homem,a doutrina jurídica revolucionará a maneira de pensar a origem, anatureza, a forma e os desafios da ordem jurídica.

Segundo Leo Strauss, essa revolução se deu em três momentos que constituem “as três ondas da modernidade”71; a seuver, seus representantes mais notórios são, sucessivamente,Hobbes, depois Rousseau e, por fim, Kant e Hegel. A esse desenrolar linear da nova figura do jusnaturalismo, preferimos a

análise do conceito do direito natural dos modernos. Essa postura, que procede da metodologia analítico-sintética utilizada pela maioria dos filósofos do direito ou dos jurisconsultos - deGrotius a Ch. Wolff-, na verdade permite definir, no mais profundo das regras operatórias de um racionalismo que já se pretende auto-suficiente, as novas fundações que a filosofia pretendedoravante atribuir à ordem jurídica do mundo humano.

A racionalização do direito

A teoria cartesiana da liberdade, “oriunda de uma meditação sobre a relação entre o homem e o Deus criador”, inaugurou, segundo E Alquié, “uma metafísica antropocêntrica, istoé, moral”72. É verdade que Descartes, cuja “preocupação mais

constante”73foi constituir uma moral, operou magistralmente adescoberta metafísica do homem. No entanto, essa descoberta,que abre a era da modernidade, só alcança sua profusão de sentidos por situar-se entre, por um lado, os ricos prolegômenosque, desde Marsílio de Pádua, e particularmente em Maquiavel,esclareceram a “natureza humana” e, por outro, as análises sistemáticas feitas por Hobbes. Em seu realismo e com seu talentode observador, Maquiavel descobriu nos homens - César Bór-

71. L. Strauss, in Poli tica l Philosophy: Six E ssays by L. Strauss, Nova York, 1975.

72. F. Alquié,La découverte métaphvsique deV hom m e chez D escarte s,

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A AL TE RN A TJVA: NA TU RE ZA O U CONVENÇÃO 45

gia, os Medicis, Francesco Sforza ou os Baglioni - tendências, paixões, vícios, cálculos, umavirtú... que são a peculiaridadedos indivíduos enquanto tais. Antes de esboçar sua teoria pessimista da natureza humana, Maquiavel, numa psicologia totalmente empírica, investigou os homens, fossem eles reis, capitães ou cidadãos, em sua singularidade. Ocorreu-lhe a idéia deque a política e o direito deviam contar com a individualidadede cada um, governante ou governado. Mas Maquiavel tinha

pressa em escrever sua política. Por isso não problematizounem teorizou sua intuição individualista.

Em compensação, a filosofia do século XVII, com sua ela boração de uma nova apreensão conjunta dohomem, do mundo e de Deus, marcou uma virada decisiva na maneira de pensar aordem jurídica das Cidades. Chegou-se até a acreditar que setratava de um ponto sem volta e que o avanço do “grande século”constituía uma ruptura epistemológica e filosófica. Evidentemente, tais fraturas nunca se deram na história das idéias. Maso novo tipo de inteligibilidade que a ciência mecanicista manifestou, e que chegaram a chamar de “o milagre dos anos 1620”,foi claramente inovador. Ao modificar as estruturas profundasdo conhecimento, o mecanicismo, que encontrara seu ponto deaplicação no mundo físico com Galileu e Mersenne, contribuiu

para uma outra apreensão do mundo humano: no mundo político em particular, passou-se das intuições aos conceitos, depoisàs análises e, enfim, às sínteses sistemáticas. No desenvolvimento do humanismo renascentista viu-se não só o homem tomar afrente do palco filosófico e político, mas, enquanto se forjavauma sensibilidade mental nova, construiu-se uma rede de relações destinadas a tomar o mundo físico e humano inteligível,ordenando-o em conformidade com as exigências da razão. Nocontexto teórico e puramente cognitivo em que se situa então ainvestigação sobre o homem, o problema da ordem jurídica in-sere-se mais numa filosofia do conhecimento que numa filosofia prática com finalidade ética.

De fato, parece que as questões formuladas dão seguimentoàs interrogações expressas, por exemplo, por E Bacon no Novum Organum de 1620. Pressente-se, porém, que essa pesquisa epistemológica orientar-se-á, num prazo relativamente curto, para

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46 OS FUNDAMENTOS DA ORDEM JURÍDICA

o controle intelectual do mundo humano e para suas conseqüências práticas. Seja como for, o pensamento afasta-se do

procedimento escolástico, rejeitam-se “os ídolos da tribo”, já nãose fala de qualidades ocultas; rejeitam-se assim o naturalismoe o qualitativismo do modelo aristotélico. Manifesta-se umanecessidade de rigor e de precisão, cujo modelo é o procedimento matemático. Mais ainda que Descartes, Hobbes dá o exem plo, com sua filosofia que pretende ordenar-se num sistemamonolítico, de uma vontade filosófica a serviço de uma “ciência do homem” que, construídamore geometrico, será dominada por uma exigência de racionalidade. De Grotius a Locke, afilosofia, não obstante suas variações e as diferenças de postu-lação dos sistemas, celebraos triunfos da razão.

É a esse esforço de racionalização que corresponde, no terreno jurídico-político bem como no campo das ciências físicas,a elucidação de instrumentos conceituais destinados a constituir os axiomas básicos e as estruturas arquitetônicas do sistema científico ou do sistema jurídico-político. Tudo isso diz res peito ao conceito de direito, que agora só pode ser problemati-

zado no âmbito de uma concepção da natureza humana em quea razão se firma como pedra angular. Assim Hobbes, pelo rigorde seu projeto filosófico, confere ao individualismo a posição deuma categoria epistemológica que abala a teoria jusnaturalistatradicional, construída em torno da idéia de comunidade. Paradoxalmente, esse filósofo, que escreve objeções contundentes contra as teses cartesianas, acaba, por extrapolação, pondoem evidência os ensinamentos da descoberta de Descartes dohomem-sujeito. De fato, em sua postura mecanicista que ele pretende “científica” e, portanto, antimetafísica, isto é, anti-idealista e antiaristotélica, ele associa as noções deindivíduo ede direito de natureza. Ao situar explicitamente o “direito denatureza” numa perspectiva antropológica em que o realismoanalítico suplanta o idealismo metafísico74, modifica a forma e

74. Essa postura é patente na primeira parte das três grand es obras políticas de Hobbes - Elemen ts ofL aw, D e eive (Trad. bras. D o cid adão, Martins

Fontes; São~P aulorl'998.)é Lêviãthari'(7 rad: brasriew átârM artins Fontes; São -

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LTERNATIVA: N ATUREZA O U CO NVENÇÃO 47

entido do conceito de jus naturae que, como Spinoza um poudepois, ele transforma num dos princípios básicos de seutema político75. Isso não significa, como afirmaram algunsérpretes, que Hobbes cai no ateísmo e no materialismo76, mase, tendo descoberto o lugar específico que o homem ocupanatureza77, só se pode chegar a compreender a ordem da

vitas partindo do homem e não de Deus. A antropologizaçãodireito natural corresponde, para ele, a uma filosofia natuque, antimetafisica, é uma obra de ciência rigorosa. A idéiaum Deus criador não é rejeitada; mas o idealismo metafísicofabuloso da cosmologia e da teologia tradicionais constitui

sas pistas que a razão se recusa a seguir78. Sendo a “filosofia”ma “ciência”, ela não pode atribuir uma fonte supra-humana

nascimento nem ao ordenamento da Cidade dos homens. Otado-Leviatã, em sua gênese bem como em sua estrutura, é

m “homem artificial” erigido por homens naturais79; por umaderosa vontade de racionalidade, que se traduz em um cálcuteleológico de interesses, eles constroem, sob o Deus imortal,

m “Deus mortal”80.0 poder soberano, que o ato do contrato lhe

nfere, faz dele o “único legislador”, habilitado por sua autoade irrestrita - apenas submetida à condição de não contrazer osdictamina da “lei fundamental de natureza”81- a definirdireito como um conjunto de “regras e medidas” que, aplicas a particulares82, são mandamentos de seu poder supremounvnum imperiumf 3. Essa concepção legalitária do direito da

lo, no prelo), metodicamente dedicadas ao estudo do “homem”; a primeira te de Elemen ts o f Law intitula-se aliás “Human nature”.

75. Para a discussão desse problema, remetemos a nosso artigo: “Hob bes Espinosa ou la différence des concepts”, inStudia spinozana, vol. 3, Ha- ver, 1987.

76. Cf., por exemplo, L. Strauss, D roit naturel et h isto ire, p. 156.77. Cf. Hobbes, De co rp o reeD e homine.78. Hobbes, Lèv ia than, cap. XLVI.79. Hobbes, Lèv iathan, cap. XVII; D e eive, cap.V.80. I b id .,c a p .X S \\,in f in e.81. Ibid., cap. XXVI.82. Hobbes, D e eive , VI, § 9; Lèv iathan, cap. XXVI.83. Hobbes. D e eive , XIV, § 1; Lèv ia than, cap. XV . ____

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48 OS FUNDAMENTOS DA OR DEM JURÍDICA

República significa em termos claros que o Estado, instituído pelo procedimento racional do contrato por iniciativa dos indivíduos, é o único competente para determinar o que é lícito,

permitido ou legítimo, ou para definir o que são a propriedade,a filiação, a herança etc. A juridicidade de um ato ou de umasituação reside na sua conformidade à lei civil. Ao se racionalizar e se construir sobre a base de uma teoria científica de tipomecanicista - portanto, individualista ou atomista - da naturezahumana, a ordem jurídica das repúblicas se desnaturalizou e a

filosofia do direito passa por uma dupla metamorfose84.Por um lado, o fundamento do direito positivo da República já não deve ser procurado no horizonte metafísico desenhado pela Natureza ou decidido por um Deus todo-poderoso. As “fá bulas” da metafísica não passam de trevas. Segundo o métodorigoroso das análises e das sínteses correlativas, a filosofia erigida em ciência busca o fundamento do direito no poder doEstado soberano que, “o único legislador”, é também o único

jurislador. Hobbes retoma assim as vias doconvencionalismo preconizado pelos sofistas. Não se refere, contudo, a essa corrente doutrinária, assim como tampouco menciona Epicuro, cujas

Máximas principais, no final do século IV a.C., empenhavam-se em devolver à noção denomoi um vigor que Platão e Aristóteles lhe tinham roubado. Mesmo descartando a problemática investigação das fontes de Hobbes, a verdade é que o con

vencionalismo jurídico que caracteriza o Estado-Leviatã im plica o repúdio das “vãs doutrinas” que fundaram o direito dasCidades no direito natural.

Por outro lado, Hobbes, que não repudia a idéia do direitonatural - ou, mais precisamente, do “direito de natureza”(jus naturae) -, transforma-lhe o conceito. Nocorpus hobbesiano,este já não designa a justiça natural que corresponde à ordemharmônica das coisas, mas a potência(potentia ou power) queo indivíduo tem de fazer uso das capacidades de que dispõe para

preservar sua vida. É preciso, portanto, observar na obra deHobbes a modificação semântica da noção de direito natural

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A AL TE RN ATIVA: NATURE ZA O U CONVENÇÃO 49

provocada pelo deslocamento de seu lugar: Hobbes substituideliberadamente e, ao que tudo indica, sem reservas, a idéia dodireito natural da comunidade, que repercutia a ordem do macro-cosmo no microcosmo humano, pela idéia do direito naturaldo indivíduo. Nessa inversão de forma e de sentido, dá semdúvida continuidade ao voluntarismo de Duns Scot e ao ato-mismo mecanicista de Galileu e de Mersenne. Seja como for e,mais uma vez, desconsiderando a questão das fontes, constata-seque Hobbes inaugura a corrente filosófica doindividualismo. As conseqüências dessa opção filosófica serão consideráveis pois, de par com o racionalismo, o individualismo fornece a chave do “contrato social” considerado, nos séculos XVII e XVIII,o princípio gerador das sociedades políticas. A ruptura é clara:

embora Deus seja efetivamente o Criador do mundo, não é seulegislador imediato. O recuo do teologismo e do idealismo étamanho que, embora não seja suficiente para laicizar integralmente o direito, impõe uma revisão da normatividade jurídica,cujos fundamentos pertencem doravante à racionalidade dohomem-sujeito.

É por isso que se costuma dizer que Hobbes - por certosaspectos de sua filosofia político-jurídica próximo de Grotiusque declara que o direito dos homens seria o que é “mesmo seDeus não existisse”85 com sua postura iconoclasta, inaugurao direito natural moderno. Ao filósofo de Malmesbury caberia, portanto, a pesada responsabilidade da dupla reviravolta dafilosofia política e jurídica: daí em diante, o artificialismo e oindividualismo, ambos inseridos no contexto de uma antropologia racionalista, subverteriam a tradição clássica e constituiriam os vetores da modernidade. Chama a atenção, aliás, quenem Locke nem Rousseau nem Kant, que imprimem grandezaà filosofia do direito político, jamais questionarão a necessáriareferência do direito natural à natureza racional e razoável do

homem, o que é efetivamente um dos principais traços da filosofia moderna. Seria fácil concluir - e muitos o fizeram - dessainversão doutrinai, que pretende descartar os “sonhos” da me

85. Grotius, D roit de la guerr e et de Ia pa ix , Prolegômen os, § XI.

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50 OS FUNDAM ENTOS DA ORDEM JURÍDICA

tafísica e se apóia no conhecimento do homem, que o direitonatural, desnaturalizado por sua antropologização, passa para

outro registro: o jusnaturalismo moderno, cujo lugar de excelência, dizem, seria aescola do direito da natureza e das gentes,, teria se edificado sobre as ruínas do jusnaturalismo clássico. Por conseguinte, a “discussão” entre modernos e antigosculminaria nessa transmutação por meio da qual o homem poderia, por fim, caminhar rumo à sua maioridade e, logo depois,fazer prevalecer as potências construtivas e organizadoras desua razão.

O convencionalismo jurídico de Hobbes é inimigo mortaldo direito natural clássico. Constata-se, pois, que a revoluçãoepistemológica que Hobbes colocou sob a égide do mecanicis-mo e do racionalismo introduz uma reviravolta radical na filosofia e, particularmente, na maneira de conceber o direito. Ametamorfose mais espetacular reside nesse convencionalismomediante o qual Hobbes transforma a fonte, a forma e o sentido

da juridicidade, uma vez que, a seu ver, cabe à forma da leideterminada pela única autoridade legiferante do poder públicodefinir o direito e conferir-lhe força obrigatória. Nessa metamorfose antinaturalista, encontra-se o princípio do que, trêsséculos depois, se chamará “positivismo jurídico”. A intuição“positivista” de Hobbes fica ainda mais forte porque o formalismo legalista que caracteriza a dinâmica funcional do Esta-do-Leviatã parece bastar-se a si mesmo a ponto de repudiarqualquer referência a um horizonte normativista ou axiológico.Veremos mais adiante que o “positivismo jurídico” de Hobbesdepara, na organização geral de sua filosofia, com obstáculosque não consegue transpor. No entanto, é preciso sublinhar aquia importância que o autor do Leviatã atribui aos cálculos de interesses que a razão efetua e ao artificialismo político-jurídicodaí decorrente. O direito do Estado é essencialmente um direi

to positivo determinado por uma razão construtiva que, alémdisso, disciplina sozinha a autoridade de coerção vinculada àsleis e às regras de direito. Com Hobbes, fica plenamente esta belecido que o direito nada deve ao Céu, nem à experiência,nem à história: ele se insere no âmbito do legicentrismo estatal

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A ALTERN A TJVA: NAT UREZA O U CONVEN ÇÃO

que é obra de razão, e seu valor provém apenas do poder de decisão do poder público.

O olhar que abarca assim a história da filosofia e que, numa perspectiva surpreendente, opõe os modernos aos antigos, particularmente em sua concepção da ordem jurídica, fornece, porsua amplitude, uma representação grandiosa do curso do pensamento. A concisão de sua elegância toma essa imagem tãosedutora que hoje se usa e abusa da dicotomia polêmica entremodernos e antigos.

No entanto, ao mesmo tempo que se desenvolve a filosofia dita “moderna”, a busca dos fundamentos do direito mostrao quanto a divisão entre antigos e modernos é especiosa e estáenvolta numa falsa clareza. Decerto não se pode negar que Descartes, ao estabelecer o caráter metafísico do homem, tenhadado à filosofia uma orientação nova e que, ao mesmo tempo,a história tenha introduzido a política de um Richelieu emcaminhos em que o racionalismo podia encontrar seus triun-fos. Mas, nos séculos XVII e XVIII, é na imprecisão, na incerteza e na equivocidade que se embrenham os filosofemas políticos e jurídicos aparentemente mais claros. Ahesitação dos conceitos na filosofia do direito é tal que o antagonismo, quesupostamente opõe a moderna doutrina do direito à doutrinaclássica, decorre de um esquematismo capcioso. Para compreender isso, basta observar que, no irresistível movimento preten-samente “moderno” que se difunde na nova doutrina jusnatura-lista, a idéia do direito natural ganha ressonâncias fundamentalmente diferentes segundo sua inserção em contextos filosóficos diversos, e que, além disso, a vontade de ruptura com atradição clássica fica muitas vezes presa nos atalhos sombriosde um pensamento de transição, cujas divisões internas geramos paradoxos do racionalismo jurídico.

Das hesitações conceituais do jusnaturalismo“moderno” aos seus paradoxos

Ao rejeitar a concepção metafísica de um direito naturalem que os clássicos decifravam a norma ou o arquétipo do direi-

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52 OS FUNDAMENTOS DA ORD EM JURÍDICA

to positivo das Cidades, o jusnaturalismo do século XVII de forma alguma realiza um movimento unívoco. Embora seja ver

dade que seu conceito já não se refere à “natureza das coisas” esim à “natureza do homem”, essa discriminação é insuficiente para caracterizá-lo. Evoquemos, a título de exemplo, o tratamento da idéia de jus naturae nas obras de Hobbes e de Spino-za. Embora em ambas as obras essa idéia pareça ter a mesmaconotação, na medida em que o direito de natureza permite aoindivíduo perseverar em sua vida, tem no entanto ressonânciasfilosóficas diferentes que evidentemente deixam sua marca na .

teorização do direito político pelos dois filósofos.

De Hobbes a Spinoza: desacordo sobre um acordo

Ainda não se enfatizou suficientemente que, na obra de >Hobbes, o direito de natureza só encontra expressão graças àhipótese metodológica do estado de natureza: “a condição natural dos homens” é o artifício operatório de que a filosofiahobbesiana necessita para operar a construção doCommon- wealth. E um erro, portanto, atribuir ao direito de naturezauma dimensão ou uma virtude realista: já que o estado de natureza provavelmente nunca existiu, nem sequer nos tempos longínquos da proto-história86, o direito de natureza não pode serum dado empírico ou um fato existencial antepolítico. Ele nãoé o desejo de potência de que fala Platão emGórgias; não é otriunfo do forte sobre o fraco, a capacidade natural do maisforte exaltada por Calicles. Convém, por conseguinte, sublinharque os conceitos correlativos deestado de natureza e dedireito de natureza não são téticos e sim hipotéticos: no monismohobbesiano, eles não são dados empíricos, masconstructa, istoé, esquemas de inteligibilidade elaborados por longos encadea-mentos de razões. Como tais, têm valor apenas lógico e metodológico e devem ser relacionados com a filosofia primeira de

86. Hobbes, Lév iathan, cap. XIII, p. 125; Elements ó f L aw, parte, XIV, § 2.

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A AL TERNATIVA: NATUREZ A O U CONVENÇÃO 53

Hobbes, portanto, com a estrutura mecanicista do sistema. Assim, o direito de natureza que Hobbes define designa, na hipótese do estado de natureza, um direito-poder ou uma força queé um querer-viver próprio de cada indivíduo e universal. Essedireito, que é igual em todos e dá a cada qual o direito a tudode que necessita, édesprovido de juridicidade pois é “força”ou “liberdade” no sentido mecanicista desses termos; comotal, é imprescritível pois é a determinação imediata da vida.Mas, para Hobbes, o importante reside na condição de instrumento ou deorganon que ele atribui ao direito de natureza parasua “ciência” política. Com efeito, o desafio de sua filosofia é

apoiar no procedimento analítico que o levou a conceituar odireito de natureza do indivíduo uma postura sintética ou com-positiva que reprimirá a liberdade natural e represará as pul-sões agonísticas, defensivas ou ofensivas, inseridas no direitode natureza. O direito natural revela-se desse modo o elementoanalítico da síntese política. O eixo dessa síntese é a idéia delei - lei natural e lei civil - , que se opõe ao conceito dedireito como aobrigação que cerceia se opõe àliberdade que é forçabruta87. Na sociedade civil, o indivíduo renunciou a exercer seudireito de natureza e, pela mediação da lei, o poder soberanoexerce uma coerção que instaura a civilidade e a paz.

A onda mecanicista provocada pela filosofia de Hobbesparece prolongar-se em Spinoza, cujo sistema, também monista,dá lugar a um direito de natureza que se define como capacidadede perseveração do ser em seu ser. Mas, apesar das identidadesterminológicas, é com a diferença entre os conceitos que nosconfrontamos. A problemática do direito de natureza, de que

Spinoza trata em várias oportunidades88, remete de fato à idéiade Natureza. Mas a ontologia spinozista nada tem de mecani-cismo cientificista: a Natureza, segundo Spinoza, identifica-sea Deus. Única Substância e plenitude do Ser, ela é o ser do que

87 .Ib id ., XIV, p. 128.88. Spinoza, Èth ique, IV, prop. 37, escó lio 2;Traitè théologique-politi-

que, caps. IV e XVI;Traité politique , II.

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54 OS FUNDAM ENTOS DA ORD EM JURÍDICA

é. Esse ser é uma ordem fixa e imutável, de tal modo que Deus“dirige todas as coisas pela exclusiva necessidade de sua natu

reza e perfeição”89.Esse necessitarismo é o ponto inicial obrigatório do direito de natureza. Este é anecessidade que rege o indivíduo assimcomo rege o Todo. Ele faz com que o indivíduo participe da leisuprema da Natureza, segundo a qual “toda coisa se esforça por

perseverar em seu estado, na medida em que ele está nela, eisso sem considerar qualquer outra coisa, exceto ela mesma”90.Esse esforço, enquantoconatus, é a potência que comanda todaação ou possibilidade de ação de um indivíduo: assim, os peixes grandes são determinados pela natureza a comer os menores91; tal é a lei que rege todos os indivíduos (e não apenas oshomens, pois eles não constituem um império dentro de um im pério) e que, ao vincular tudo o que eles fazem ou podem fazerao apetite e ao desejo92, define o direito natural de cada qual.Esse direito de natureza, que não é jurídico nem ético, “esten

de-se até onde se estende a potência determinada que pertenceao indivíduo”93. Nessa ontologia naturalista, o direito de natureza não tem outra instância de legitimação senão a persevera-ção do ser no seu ser; não faz apelo a nenhum normativismo, anenhuma axiologia, a nenhuma teleologia. Estranho à razão, elesignifica a efetividade do ser.

Fica-se tentado a aproximar essa concepção da de Hobbes,tentação maior porque o exercício do direito de natureza provoca, segundo Spinoza, um estado conflituoso: o feixe dos desejos e das paixões faz do outro, para todo indivíduo, um inimigo, real ou potencial. Disso nasce o temor que tortura os homens; e sua condição natural é miserável. No entanto, conquantoutilize as mesmas palavras que o de Hobbes, o discurso filosó

89. Traité théologique-politique, IV .90. Eth ique, III, prop. 6 e 7;Traité théologiqu e-politique, XVI (Pléiade,

p. 824).91. Traité théologique-politique, XV I, p. 824.92. Ibid ., XVI, pp. 825 -6.9 3 Ib id

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A ALTE RN ATIVA : N ATUREZA O U CONVENÇÃO 55

fico de Spinoza tem um sentido diferente94, que envolve o conceito de direito natural em um halo de indecisão. Com efeito, oconatus é, segundo Hobbes, esforço e movimento para evitar amorte; segundo Spinoza, é o esforço que atualiza uma potênciaenquanto essência individual. O direito de natureza hobbesia-no insere-se num individualismo de tipo mecanicista em que ohomem é uma das figuras da física; o direito de natureza, paraSpinoza, insere-se num contexto ontológico substancialista emque a Natureza é o Todo, a única Substância cuja lei geral, istoé, cujo determinismo necessitante, ele exprime. Conseqüentemente, ao passo que, para Hobbes, o direito de natureza opõe-seà lei de natureza como a liberdade à obrigação, segundo Spinoza,o direito de natureza exprime alei de natureza, lei fundamental do Todo à qual nenhum ser pode escapar. Por isso Spinoza pensa que a miséria do homem só será conjurada com a realização do direito de natureza e não, como crê Hobbes, com ainstauração, pelo contrato, de uma ruptura com ele. Esse é osentido da carta a Jarig Jelles de 2 de junho de 167495, em queSpinoza escreve: “O senhor me pergunta qual a diferença entreHobbes e mim quanto à política: essa diferença consiste no fato de que afirmo sempre o direito natural e de que, numa cida

de qualquer, apenas atribuo ao soberano direito sobre seus súditos na medida em que ele, pela potência, leva vantagem so bre eles: é a continuação do estado de natureza.”96

Cumprirá, aliás, acrescentar ao comentário cáustico deSpinoza de que a intuição “positivista” de Hobbes, por maisextraordinária que pareça ser em meados do século XVII, nãotem força suficiente para alcançar sua realização teórica? Elatem limites que podem ser demonstrados em três direções.

94. Para um desenvolvim ento mais com pleto dessa diferença, remetemos ao nosso artigo “Hobbes et Spinoza o u la différence des concepts: 1’ampleur d’une litote”, inStudia spinozana, vol. 3 , 1987, Hanover, pp. 229 -60.

95. Spinoza,Oeuvres ,Pléiade, p. 1230.96. Para Hobbes, o contrato é o artifício que se acrescenta à natureza,

contradizendo-a para instituir o estado civil; de acordo com Spinoza, o contrate) dá seguimento às determinações do direito de natureza: a união faz a forçEL

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56 OS FUNDAMENTOS DA ORD EM JURÍDICA

Em primeiro lugar, a ordem jurídico-política do Estado-Leviatã, considerada de um ponto de vista fundamental, não se

reduz ao formalismo da legislação civil. Embora Hobbes recuseo esquema dualista da tradição jusnaturalista clássica, alei de natureza continua sendo um parâmetro impossível de eliminarde sua teoria política. Mesmo quando dá à lei de natureza um perfil pouco habitual já que, estatutariamente, ela é “uma conclusão ou um teorema da razão”97e já que, funcionalmente, ela éesse preceito teleológico racional segundo o qual “todo homemdeve esforçar-se pela paz”, ainda assim ela reina sobre a legislação civil. Portanto, a lei civil determinada pelo Poder soberanonão basta a si mesma: em sua forma, ela é o meio de alcançar ofim representado pela razão na lei de natureza; em sua extensão,cobre o mesmo campo que a lei de natureza; em seu conteúdo,ela define, por uma regulamentação administrativa, as condições de aplicação, portanto de eficiência, da lei de natureza. Asleis civis não são, pois, concebíveis fora da relação profunda que

as une à lei de natureza: elas se “contêm mutuamente”. A lei denatureza é o índice de uma teleologia que ilumina o caminho dalegislação civil; é um guia com valor normativo. Quanto às leiscivis, elas tomam operante o teorema racional, mas ainda abstrato, da lei de natureza, pois é próprio de uma lei ser executória.

Em segundo lugar, Hobbes não transpõe o limiar do positivismo jurídico porque nem um instante considera a autolimi-tação constitucional do Estado-Leviatã. Não se trata de um es

quecimento nem de uma inadvertência no sistema. Essa carência é logicamente necessária pois a soberania ésoluta legibus e, portanto, não pode ser limitada: ela é ab-soluta (o que nãosignifica de forma alguma que Hobbes tome partido do abso-lutismo monárquico, o que é um problema de regime político;e sim que insiste na indivisibilidade da soberania, o que é um

problema de essência).Em terceiro lugar, por fim, no Estado-Leviatã (e, aliás, em

qualquer Estado) a eficácia da lei não pode ser isenta de qualquer valor. O gesto filosófico do racionalismo hobbesiano edi-fica uma política que é uma “política” no sentido estrito do ter

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A ALT ERNATIVA: N ATUREZA O U CONVENÇÃO 57

mo: a República -civitas ou polis - restringe-se às fronteirasdo Estado e define-se segundo as coordenadas do espaço e dotempo. Quer a lógica, portanto, que a lei estatal esteja marcada

pela relatividade e pela contingência, isto é, que seja do âmbitoda historicidade. Ora, a tentação positivista de Hobbes não éacompanhada de vontade historicista. Buscando a essência doEstado, ele sublinha que as leis devem - em qualquer lugar eem qualquer época - contribuir para a paz, para osalus populi,

para a segurança e a garantia da vida, e até para a virtude, quesão valores da existência civilizada (por oposição ao que ocorreria no hipotético estado de natureza). A teleologia das leis denatureza indica um dever-ser e um dever-fazer que são as metas universais e provavelmente eternas da razão: há nisso umaesperança prenhe de valor: isso basta para indicar que, emHobbes, o positivismo não vinga.

Nessa restrição última ao positivismo não se deveria veruma mera sobrevivência da tradição ou uma hesitação em levaraté o fim a antropologização do direito. Vemos nisso antes umindício de que a filosofia de Hobbes vai além do sistema hob- besiano: nenhuma ordem juridico-legal pode abster-se das exigências da normatividade.

Convenhamos, de qualquer forma, que a onda irresistível damodernidade, em seu individualismo jusnaturalista, é turva:embora o direito de natureza seja potência(potentia e conatus), será ele a força livre da máquina viva que se pode conceber, imaginar, representar mentalmente (mas não experimentar, pois oestado de natureza é uma ficção) - ou será ele a determinaçãoreal da lei necessitante de natureza pela qual se exprime a essência de todo ser? Hesita-se entre o mecanicismo e o substancialis-mo, o fisicismo e a ontologia, a ficção e a realidade, a liberdade ea necessidade, o que se opõe à lei de natureza e o que a exprime.

A escola do direito da natureza e das gentes: persistências clássicas

A agitação dessa onda irresistível, aescola do direito da natureza e das gentes adicionará outras indecisões: ao mesmo

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58 OS FUNDAMENTOS DA ORDEM JURÍDICA

tempo em que corrobora a modernidade do pensamento jusna-turalista do século XVII, contrapõe-se a ela permanecendo fiela certos filosofemas poderosos da tradição clássica.

Grotius, por seu De jure belli ac pacis de 1625, foi muitasvezes considerado o precursor do direito natural moderno. Pe-ter Haggenmacher demonstrou recentemente, de maneira definitiva, que o jurisconsulto holandês é, pelo contrário, em grande medida dependente da escolástica espanhola: os mestres deSalamanca, diz Haggenmacher, “forneceram-lhe um grande número de variações sobre motivos tomistas”98. Portanto, Grotiusnão é um “moderno”; é um pensador de transição. Conseqüentemente, não é a modernidade de Grotius, mas a ambivalênciafilosófica de sua doutrina que dá o tom à corrente filosófico-

jurídica que vai de Pufendorf a Montesquieu e Vattel: emboraos autores concordem em pensar o direito natural como pro priedade doindivíduo (nisso são modernos), definem-no contudo em termos demoral e por referência àtranscendência divina que a lei natural exprime (nisso o classicismo recupera seusdireitos e tempera-lhes largamente a modernidade). Nessa du

pla perspectiva, as turbulências filosóficas serão intensas.Contra a idéia de um direito de natureza que seria potência ou força, a doutrina jusnaturalista é unânime. Pufendorf, contra Hobbes, junta-se a Grotius para ver no direito natural nãouma potência física quantificável, mas umaqualidade moral quese avalia no homem em vista de sua natureza racional. Grotiusdizia: o direito natural “consiste em certos princípios da razãoreta, que nos fazem reconhecer que uma ação é moralmente

honesta ou desonesta segundo sua conveniência necessária comuma natureza razoável e sociável”'”. Essa mesma perspectivamoral caracteriza, segundo Pufendorf, toda a problemática dodireito natural: ele só tem sentido paraseres morais, no âmbito

98. P. Haggenmacher,Grotius et la doctrine d e la guerre ju ste , PUF, 1985.99. Grotius, D roit de la guerre e t de la p a ix (trad. Barbeyrac, reimpres

são pela Bibliothèque de philosoph ie politique et juridique, Caen, 1984), 1 ,1,

X , § 1 ---------- . . _____ ____________ ...... .-

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ALTE RNATIVA: NATUREZA O U CONVENÇÃO 59

asciências morais. Pufendorf critica assim Hobbes de ter prourado o fundamento do direito natural no jogo das forças úteisvida; ora, diz ele, embora Hobbes afirme que o mecanismo

as forças é guiado pela “razão reta”, isso não passa de umabsurdo”, cujas conseqüências são “horríveis”100, pois, seguno o filósofo de Malmesbury, a razão é apenasratiocinatio, to é, cálculo de poder e de interesses. Aliás, continua Pundorf, também Spinoza forneceu “uma descrição horrorosa

esse pretenso direito”chegando a fazê-lo “significar o podero modo de agir presentes até nas criaturas destituídas de ra

ão” (como os peixes). Contra “o falso princípio” de um direi-

-potência alegado por Hobbes e Spinoza - nesse caso, alihados sob a mesma bandeira - , Pufendorf afirma que só exisdireito em “seres inteligentes”, portanto, “nos homens” e "no

om senso deles”, isto é, segundo arecta ratio, cuja virtudeoral foi enfatizada por toda a tradição filosófica. Assim, a

roblematização do direito natural não poderia caber num fisi-smo mecanicista ou num substancialismo metafísico domiado pela noção de potência. Segundo Pufendorf, é em termose dever que se traduz a idéia de direito natural. Concorda asm com Grotius, embora o critique por não ter elucidado amensão moral do direito natural.

A partir daí, importa destrinçar o significado dodictamen tionis que prescreve apenas para os seres morais o que con

ém fazer ou não fazer101. Esse significado baseia-se em trêsses principais. Em primeiro lugar, o direito natural atesta a suerioridade dosentia moralia sobre osentia physica: enquantostes últimos são natureza de ponta a ponta, os seres moraisossuem, além do “instinto da natureza”, “as luzes do entendiento e as determinações da vontade”. Em seguida, como não

á privilégio sem preço - neste caso, não há direito sem dever - ,s ações dos seres morais (dos homens) são “suscetíveis de

100. Pufendorf, D ro it de la nature e t des gen s (trad. Barbeyrac, reimessão pela Bibliothèque de philosophie politique et juridique, Caen, 1987), II, 3.

101 Ihid. 1 1.2 ...................................

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60 OS FUNDAM ENTOS DA ORDEM JURÍDICA

imputação”102; implicam aresponsabilidade de seus autores.

Não traduzem por umconatus um princípio de determinação ne-cessitante; só exprimem o direito natural na medida em quecorrespondem a umaobrigação, em que se manifestam comoum dever. Por conseguinte, o exercício do direito natural é umaexigência moral da qual afirma Pufendorf, contra Spinoza, somente o homem razoável é capaz de apreender o sentido, atestando assim a eminente dignidade de que é portador. No contexto individualista em que a responsabilidade de cada um sevê implicada, cada um “deve considerar e tratar os outros comoseus iguais por natureza, isto é, como sendo tão homens quanto ele”103. Contra Hobbes e Spinoza, Pufendorf faz das “máximas do direito natural” objeto de umofficium próprio do homem, de tal forma que ninguém deve cometer in-júria (injuria)contra outremIM. Quem desobedece as máximas do direito natural ofende a humanidade nele assim como naquele com quemele é injusto.

Além disso, essa concepção fundamentalmente moral dodireito natural vincula sua noção à idéia tradicional delei natural e esta, que se impõe por seu caráter paradigmático e suavertente teleológica, remete a um horizonte transcendente edivino. Tudo isso leva a que se introduzam na doutrina restrições e resistências à modernidade: aescola do direito da natureza e das gentes em nada renegou a herança do direito naturaldos antigos; embora não a receba indivisa, não a ignora. Defato, de Grotius a Montesquieu, a lei natural está presente nateoria dita “moderna” do direito natural. Relações complexas e polimorfas, diferentes segundo os autores, estabelecem-se entredireito natural e lei natural. O estudo dessas relações é sugestivo por esclarecer a mobilidade das idéias e a dificuldade de

sua mutação.

102. Pufendorf, Les devoir s de l'h omme et du citoyen, trad. Barbeyrac, republicada pela Bibliothèque de philosophie politique et juridique, Caen,

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A AL TE RN ATIVA : N AT URE ZA O U CONVENÇÃO 61

Antes de qualquer análise, impõe-se uma observação lexi-cográfica. Ainda que a terminologia não se tenha fixado de maneira rigorosa nos diversos autores, convém distinguir asleis da natureza, que designam as regularidades estruturais do mundo físico, do qual são os princípios de determinação necessi-tante, e asleis naturais, que são as regras segundo as quais oDeus criador governa teleologicamente o mundo, físico e humano; esses princípios reguladores, mas não determinantes, ex primem a vontade da Providência. No entanto, embora as leisda natureza conquistem pouco a pouco clareza epistemológica,a noção de lei natural permanece vaga e imprecisa. Essa brumaconceituai é indício de uma teorização difícil no momento daarticulação das concepções dos “antigos” e dos “modernos”.

Em 1576, Bodin, em Les six livres de la République, tivera uma idéia clara da lei natural: era a idéia muito clássica -ciceroniana ou tomista - de uma “lei eterna” e “sagrada” queexprime a vontade “muito sábia e justa”105de Deus. Essa “leide Deus e de natureza”, como ele a denomina, guiava providen-cialmente a criatura racional para o bem comum. Por isso o“governo reto” das Repúblicas encontrava seu modelo nas harmonias cósmicas. Ao contrário, nos jurisconsultos e nos filósofos dos séculos XVII e XVIII, embora o conceito de lei natu

ral esteja insistentemente presente, ele se cerca de uma indecisão vertiginosa. Assim, na obra de Grotius, a lei natural não dáazo à tematização reflexiva, embora constitua o horizonte normativo inominado sobre o qual se desenha ocorpus das regrasdo direito humano. É indubitável que a compreensão da céle bre hipótese dosProlegômenos: etiamsi daremus'06 remete à leinatural como ao solo em que se enraíza, mesmo quando procede da inteligência e da vontade dos homens todo o “estabelecimento humano” que o direito é. - Num outro contexto, a lei

natural percorre a obra tanto de Hobbes como de Spinoza; mas

105. Bodin, Les six livre s de la République, republicação da edição de 1583,'Scientia Aalen, 1961, Prefácio, V /; cf. nosso artigo Je an Bodin et te

dro it de la République, pp. 279 ss.106. Grotius, D ro it de la g uerr e et d e la pa ix , Prolegômenos, § 11, p. 10.

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ALTE RNATIVA .NATUREZA O U CONVENÇÃO 63

dade"2, que se firma no homem contra o instinto, com o qualamor-próprio tem afinidade. A observância da lei natural perite, em conformidade com a ordem racional da Criação113,

aliar as deficiências da natureza humana. A partir daí, a relaão entre direito natural e lei natural pode ser precisada. Se oireito natural implica a igualdade de todos os homens em digidade e compromete a responsabilidade de cada um, para quehomem seja humano, é preciso que assuma sua coexistência

om os outros em conformidade com a obrigação à sociabiliade que a lei natural exige: a igualdade que o direito naturalquer vai de par com a sociabilidade que a lei natural requer.

Locke retomará esse mesmo tema em 1690, no começoo Tratado do governo civil, que alia dessa forma a moderniade do individualismo ao pensamento tradicional da lei divia e sagrada que requer a harmonia da sociedade dos homens114.

Meio século depois, Burlamaqui dará continuidade a essas tees ao deduzir o direito natural dos três preceitos que expriem o sentido da lei natural dada por Deus a todos os homensque eles podem conhecer pelas luzes de sua razão:honeste

ivere, alterum non loedere, suum cuique tribuere"5. Todos osensadores jusnaturalistas afastam-se da onda. irresistível doireito natural hobbesiano, cujo centro de racionalidade conm, aos olhos deles, fermentos materialistas. A partir daí, elesatam de forma mais ou menos expressa còm a tradição do

oluntarismo divino. Modificam, no entanto, a orientação do penamento clássico, pois, segundo eles, a lei natural não precisaer “revelada” aos homens; sua razão é suficiente para que co

heçam o cânone ou a norma de apreciação de suas condutasue a lei natural lhes fornece. No primeiro capítulo deO espírito das leis, Montesquieu

ará à universal lei de natureza uma profundidade metafísicaertiginosa. Leitor atento de Jean Domat, que provavelmente

112. Pufendorf, Elemen torum ju ris pru den tiae universa lis, I, 13 e 15.113. Pufendorf, D roit de la natu re et des gens, II, III, 15.

114. Locke,Traité du gouvernement civil, §§ 6,7 e 15.115. J.-J. Burlamaqui, Elémen ts du droit naturel, I,cap.,V , p. 26.

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64 OS FUNDAMEN TOS DA OR DEM JURÍDICA

inspirou-lhe o título de sua grande obra"6, Montesquieu expõeque, num universo em que não cabem nem a fatalidade, que écega, nem o acaso, que é caprichoso, nem a contingência, queé imprevisível, “as leis, em seu significado mais amplo, são asrelações necessárias que derivam da natureza das coisas”. Dentroda escala dos seres, elas manifestam, do mineral ao homem emesmo aos anjos e a Deus, a “razão primitiva” do “grandeJúpiter”. É certo que Montesquieu, diferentemente de Domat, pensa mais no Deus dos filósofos que no Deus dos crentes - moti

vo pelo qual será acusado pelos jansenistas de spinozismo. MasMontesquieu é, como Domat, adversário de Hobbes, cujo racio-nalismo artificialista está, a seus olhos, prenhe dos perigos queespreitam nas idéias-mestras do que mais tarde se chamará o“positivismo jurídico”. Acha que as regras institucionais pelasquais a normatividade é introduzida nas condutas humanas nãoencontram princípio de existência nem justificação no poderde decisão dós homens. Admite perfeitamente que existam e

que devam existir, no Estado, leis que são “estabelecimentoshumanos”. Mas nenhuma lei positiva deve ofender o Ideal de justiça que Deus quis superior e anterior a todos os decretos do arbítrio humano: osdictamina da Justiça divina impõem-se por toda parte e sempre a todos: “Antes que houvesse seres inteligentes,eles eram possíveis; tinham portanto relações possíveis e, porconseguinte, leis possíveis. Antes que houvesse leis feitas, haviarelações de justiça possíveis. Dizer que não há nada de justo ou deinjusto senão o que ordenam ou proíbem as leis positivas, é dizerque, antes que se traçasse o círculo, nem todos os raios eramiguais.”"7As leis dos homens, ao contrário do que Hobbes pensou, extraem seu poder normativo e regulador da “justiça univer

116. O longo prefácio à obra de Jean Domat, Les lo is civ iles dans leur ordre naturel, publicada de 1689 a 1694, constitui oTratado das leis (reim

pressão pela Bibliothèque de philosoph ie politique et juridique, Caen, 1989), cujo capítulo XI intitula-se: “Da natureza e do espírito das leis”. Sobre as relações entre Montesquieu e Domat, remetemos à nossa obra: Montesquieu: la nature, les lois, la liberte, PUF, 1992.

117. Montesquieu,U esp rit des lois, I, I, in Pléiade, p. 233. (Trad. bras. O esp írito da s leisMartins Fontes São Paulo 1993 )

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A ALTERNATIVA: NATUREZA O U CONVENÇÃO 65

sal”, que é divina: “Se há um Deus”, escreve Montesquieu naesteira de Domat, “ele tem necessariamente de ser justo.” '18Porisso as leis naturais que Domat identificava ao justo em si são

para Montesquieu o arquétipo transcendente que a justiça doshomens deve tomar por modelo. Essa postura é possível pois arazão, por sua luz natural, pode descobrir o sentido e a finalidadeda justiça eterna sem ter de recorrer à revelação. Portanto, não

poderia existir separação ontológica entre o mundo natural e omundo humano. Esses dois mundos são apenas um. A dualidadeestá excluída do ser; as diferenças entre o mundo físico e omundo humano não devem ser pensadas em termos de alterida-de. Na vontade de Deus, tudo está ligado; portanto, tudo é um: a

lei natural, que define o direito natural, é um mandamento universal de que nada escapa, nem mesmo a vontade do legislador.É claro que a sistematização da lei natural como modelo

normativo teologicamente definido implica, nas teorias jusna-turalistas, a inseparabilidade entre a moral e o direito. Essa in-separabilidade é reveladora da situação do direito natural moderno entre o transcendentismo impenetrável do direito naturalclássico e a suficiência do artificialismo racionalista que surgena aurora da modernidade. Não há nisso, certamente, como se

disse, “um ecletismo vizinho da incoerência”119; trata-se antesde um sinal dos tempos, do qual a filosofia, neste caso, fornecea imagem especular. Na sua ambivalência, o direito natural nãoé um ilogismo intrínseco; mas, no momento em que se firma aantropologização do direito e da política, é cada vez mais difícil para a filosofia chegar a uma concepção clara e unitária dodireito natural porque, ao mesmo tempo que afirma a força deseu racionalismo, não consegue renunciar à teleologia fundamental que a lei natural indica ao exprimir a ordem da Criação.

No direito natural moderno, as hesitações conceituais edoutrinárias provêm da persistência da tradição clássica. Embora seja verdade que os dogmas e as idéias estabelecidos tenham

118. M ontesquieu,Cartas per sas, carta 83.119. R. Derathé, Jean-Jacques Roussea u e t Ia Scien ce po li tique de son

temps, PU F, 1950; 2? ed„ Vrin, 1970, p. 324.

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66 OS FUNDAMENTOS DA ORD EM JURÍDICA

sido abalados pelo espirito científico que despertou no séculoXVII, a exigência de racionalidade geométrica ainda não ganhou a parada. A idéia do direito natural mostra-se rebelde aum tratamentomore geometrico, o que significa que os triun-fos racionalistas e individualistas colidem em resistências metafísicas profundas. Naescola do direito da natureza e das gentes, o direito natural é um instrumento conceituai ambíguo,dividido entre a terra e o céu. Sua relação equívoca e poliva-lente com a lei natural significa que a autonomia do sujeito dedireito, não obstante seus correlatos tais como a imputação, aresponsabilidade, a igualdade, a liberdade imprescritível... aindanão se concebe independentemente da verticalidade da obrigação que liga o homem a Deus. Mesmo quando Locke conduzcom mão de mestre a crítica ao inatismo, ele confere à “lei fundamental de natureza”120 uma função preeminente, reveladamuito particularmente por sua concepção do “poder federativo”ou, também, da propriedade121; mesmo quando Christian Wolffimprime à doutrina jusnaturalista um aspecto “científico” e“sistemático” que a leva à sua quase perfeição formal, ele faz

da “natureza do homem” uma “essência metafísica” e consideraque o homem só é humano com a condição de assumir a obrigação moral que alex naturalis lhe impõe. Em seu rigor exem plar, o dedutivismo wolffiano mantém contudo a idéia segundoa qual o justo universal é a regra da juridicidade do direito positivo, no qual e pelo qual se concretiza e ganha vida122.

120. Locke, E ssa is su r la lo i de natu re (texto não publicado por Locke, cuja redação foi terminada em 1664); tradução inédita, in Bibliothèque de phi- losoph ie politique et juridique, Caen, 1986.

121. S. Goyard-Fabre, “Réflexion s sur le pouvoir fédératif dans le cons- titucionnalisme d e John L ock e”, in La p en sèe lib érale de John Locke, Cahiers de Philosophie p o liti que et ju rid iq ue, n° V, Caen, 1984; “La propriété dans la philosophie de Locke”, in Archiv es de phil osoph ie , 1992.

122. A obra de filo sofia teórica e prática de Christian W ol ff é con siderável por seu volume. Cf.Gesam me lte Schriften e Gesammelte Werke, publicado e organizado por Mareei Thomann, Hildesheim e Nova York, Georg Olms, a partir de 1972. Cf. em particular t. VIII: Jus natu ra e (1749), reed. 1972, e Príncip es du droit de la natu re et des g eits, trad. Formey, de acordo com a edição de 1758 , in Bibliothèque de philosop hie politique et juridique^Caen,-1-988.

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ALTERNATIVA: N ATUREZA O U CONVENÇÃO 67

De maneira geral, e apesar do amplo desenvolvimento daseorias jusnaturalistas no século XVIII'23, estas envolvem o coneito de direito natural de muita incerteza semântica. Além diso, devido a suas ambivalências, elas não conseguem realizar o

grande projeto de autonomia da vontade humana que se firmava como uma das idéias-forças mais notórias da modernidadenascente. Como o horizonte teleológico desejado por Deus nãodesaparece, o individualismo pode apenas se inserir na rede providencial da lei de sociabilidade. No meio dessas hesitações,que as sobredeterminações da doutrina jusnaturalista não eliminam, muito pelo contrário, logo nascerão os paradoxos do

acionalismo político da modernidade. Hegel será particularmente sensível a eles. Esses paradoxos mostram, na melhor dashipóteses, ao mesmo tempo a força e as fraquezas de um direio natural que, sem infinitas nuanças, é difícil de ser declaradomoderno”.

123. A partir do século XV II, muitos autores, como por exem plo J.-F. Homius ( D e subje cto j u r is natu ra lis, 1663), foram marcados pelas idéias de Grotius. Pufendorf, para quem o E leitor palatino havia criado uma cátedra de

ireito natural e de direito das gentes na Universidade de Heidelberg, exerceu, or sua vez, uma influência considerável com seu ensino. Cursos de direito atural foram ministrados não só em várias universidades alemãs, mas tamém na Noruega, em Lund, na Suíça, onde Barbeyrac lecionou na Univeridade d e Lausanne e Burlamaqui em Genebra, e na Holanda onde a lembrança e Grotius continuava viva. A França, mais ligada ao direito romano e desco niada em relação à Reforma, cuja influência sobre o naturalismo jurídico o lero cató lico denun ciava, era mais reservada. Seja como for, as teorias do dieito natural foram exposta s em inúm eros tratados. Estes às vez es eram pouco riginais: citemos, por exemplo, S. Coccejus,Tractatus jur is gentium: de prin

ip io ju r is natu ra lis un ico, vero e t adaequato , 1699; D. M oevius, Nucleus juis natu rali s et gentium p rin cip ia, 1671 e 1686; S. Rachel, D e ju re natu ra e et entium dis serta tiones, 1676. Em contrapartida, as obras de Christian Thoma- ius (Fundamenta ju ris naturae e t gentium ex sensu communi deducta, 1699 1713; H is to ria ju r is natu ra lis, 1719) obtiveram certa notoriedade. A o m esm o em po, Jean Barbeyrac, com suas traduções, dava a conhecer ao grande públio culto as obras de Grotius e de Pufendorf; suas notas e comentários revela

vam sua grande erudição jurídica e filosófica. Mas foi sobretudo o enorme orpus de Christian W olff, que Formey e V attel, e depois os Enciclopedistas ontribuíram para tomar conhecido, que deu vigor, por seu aspecto científico aparentemente mais acessível que a obra jurídica e diplomática de Leibniz),dou tr ina natural is ta jnr id ira . __ = ^ _

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68 OS FUNDAMEN TOS DA ORDEM JURÍDICA

Sua força é quase incontestável: na via aberta pela filosofia construtivista do Estado-Leviatã, o direito, em sua juridici-dade, mudou de fonte, de forma e de sentido. Pouco importa seo Estado se inclina para um centralismo monárquico ou atendea uma inspiração liberal: a legalização do direito está se efetuando. Mas ela traz em si um duplo significado que lhe revelaas fraquezas', por um lado, ela é a indicação da metamorfose formal do direito, doravante constituído de mandamentos e de regras, o que ele não era no realismo do direito natural tradicio

nal; por outro lado, ela dá provas da divisão da totalidadeético-política. A partir de então, devido tanto à sua força comoàs suas fraquezas, um dos paradoxos - e não o menor deles -desse novo direito natural, que as tendências racionalizantes do

pensamento moderno tentam arrancar das sobrevivências oudas persistências dos esquemas tradicionais do direito naturalclássico, é que ele pende para o que, à primeira vista, poderia

parecer seu contrário, a saber, o positivismo. Essa tendência paradoxal é evidentemente cheia de conseqüências se pensamosque, na reviravolta doutrinai realizada em relação às teoriasclássicas, ele prepara, para mais tarde, a negação radical da filosofia político-jurídica. Pelo menos, o vínculo substancial entre

política, direito e ética já está perigando e muito perto de seromper. Por isso também, conduzindo ao culto da lei, ligadotanto ao idealismo do querer quanto às capacidades construti

vas da razão humana, as transformações do direito natural, porseu caráter paradoxal que é também sua lógica imanente, viriama lapidar um centralismo estatal dominado pela obsessão for-malista. Além do mais, é com razão que Hegel denunciará “ascontradições infindáveis”124que perseguem essa nova doutrinado direito natural hesitante entre “um empirismo que, princi-

pialmente, já é racionalista demais e um racionalismo que, prin-cipialmente, ainda é empirista demais”125. Enfim, cabe indagar

124. Hegel, D es m an ières d e traiter scientifiquem en t le droit naturel, trad. B. Bourgeois, Vrin, 19, p. 58.

125. B. Bourgeois, “Sur le droit naturel de H egel” , in Archiv es deph ilo -

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A ALTE RNATIVA: NATU REZA O U CONVENÇÃO 69

se os teóricos desse novo direito natural, querendo construir ouniverso do direito independentemente de qualquer teleologia,não sucumbiram, por uma estranha preocupação com cálculoracional, ao demônio da utilidade.

Sob a garantia e a aparente transparência racionalistas donovo conceito de direito natural, escondem-se portanto embaraçosas indecisões. Estas têm três origens. Por um lado, a doutrina jusnaturalista insere-se em sistemas filosóficos cujas

postulações são diferentes a ponto de às vezes serem antitéti-cas: pensemos na hostilidade de Pufendorf para com Spinozaou na severa crítica que Montesquieu faz a Hobbes. Por outrolado, o encontro da modernidade nascente, que se encaminha àidéia de autonomia da vontade humana, com uma tradição persistente, que não pode dispensar o homem da obrigação paracom a lei natural e divina, põe as teorias do direito natural nocruzamento de dois tipos de pensamento e, ao mesmo tempo,na encruzilhada de duas épocas. A “discussão” entre os modernos e os antigos designa, pois, muito menos a separação entreo direito natural do realismo clássico e um direito natural renovado pela “descoberta do homem”, do que a dificuldade existente em pôr de acordo a reivindicação de independência dohomem com o reino da vontade divina. Enfim, no momento emque começam a se firmar os triunfos da razão, a situação da racionalidade continua freqüentemente equívoca.porque, nas teorias jurídicas, ora a razão é dita racional, ora razoável, e porqueo filósofo do direito hesita em ver nela ou um princípio constitutivo ou um princípio regulador.

Na investigação da fundação do direito, a necessária confrontação entre os dois jusnaturalismos acaba sendo pouco esclarecedora; em todo caso, ela apresenta mais dificuldades doque fornece soluções decisivas. Ela decerto permite expor ahistória de dois dogmatismos nos quais se refletem duas concepções do mundo e do homem, o que não deixa de ter interesse.Mas a reviravolta das postulações teóricas do cosmoteologis-mo para humanismo não ensina muita coisa sobre a essência eo sentido do direito porque as respostas de ambas as teorias de pendem de suas premissas filosóficas.

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70 OS FUNDAM ENTOS DA ORDE M JURÍDICA

No entanto, é preciso tomar nota do destino dessas duas correntes da filosofia do direito. Com efeito, enquanto, desde meados do século XVII, o perfil de um direito natural apoiado nanatureza das coisas e inserido, como diz Montesquieu, na ordemcósmica se esfumou até quase desaparecer, desenvolveu-se simultaneamente e de modo inflacionário a idéia segundo á qual osdireitos vinculados à natureza do homem deveriam ser protegidos pelas instituições civis. O triunfo do convencionalismo, ao

provar que se iniciava o reino do homem, faria a filosofia do direito sair das vias do naturalismo metafísico: as ambições cienti-ficistas do “positivismo” podiam doravante exprimir-se.

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apítulo IIs teorias juspositivistas jurídicas suas pretensões cientificistas

Vimos que competia à lógica das novas teorias do direitotural que se tornou racional abrir caminho para o positivismorídico. Seria simples demais dizer que o racionalismo dosmpos Modernos, tomando por base uma concepção laicizadanatureza humana, manifestou uma vontade de ruptura comordens tradicionais de inspiração cosmológica ou teológica.preciso ser menos taxativo, pois o direito natural daescola direito da natureza e das gentes ficou dividido entre sua von

de de inovação e sua submissão à continuidade da tradição.sas cisões permanentes da doutrina muitas vezes introduzim nela, com a equivocidade de sua postulação, uma indecio metodológica e uma incerteza conceituai. No entanto, eraevitável que a racionalização e a secularização do direito iniadas com Grotius se acentuassem. A filosofia dos séculos XVIIXVIII, muito crítica para com as teorias clássicas nas quaisa dogmas metafísicos nefastos, pretendia sobretudo mostrar

ue a desvalorização da tradição jurídica provinha do erro deus fundamentos: o direito, pensava-se então de forma cadaz mais clara, não mergulha suas raízes no grande Todo da Nareza; tampouco pede nada à transcendência divina; ele é, comozia Grotius, um “estabelecimento humano” que os poderesrazão tomam possível. Graças a esse deslocamento das “fon

s” do direito, firmam-se correlativamente ohumanismo e ocionalismo: já que a razão é a determinação essencial da nareza humana, ela é, em sua irredutibilidade, o princípio docor- s jurídico pelo qual os homens são chamados a governar suasdades e a organizar suas condutas. Assim, Leibniz e Wolíf le

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72 OS FUNDAMENTOS DA ORD EM JURÍDICA

vam o radicalismo lógico de Grotius à sua mais elevada ex pressão insuflando na filosofia do direito uma intenção de unificação formal: não só um edifício jurídico é, segundo eles, umsistema que repousa inteiramente em definições com valor de

princípio, mas a tarefa central da ciência (ou da filosofia) dodireito é estabelecer demonstrações e provas racionais.

Nesse contexto filosófico, o novo jusnaturalismo perdeu osentido do realismo que as antigas teorias do direito naturalextraíam do aristotelismo. Em vez de dar prioridade à idéia deum direito que conota ajusta distribuição dos bens, doravante eletende a privilegiar a noção de lei. Ora, a idéia jurídica da lei, maisou menos confundida com a idéia da lei moral, só ganha seu verdadeiro sentido reportada ao indivíduo. Além disso, a lei, “determinada” pelo legislador humano, toma-se a chave de uma concepção estatista e centralizadora do direito. Nenhuma dessas duastemáticas pertence ao horizonte da filosofia tradicional do direi

to. São o ponto inicial da corrente jurídica que, caindo no individualismo e restaurando o convencionalismo, daí em diante só poderia situar o direito em relação ao aparelho estatal e atrelá-lo a“sujeitos” que, em sua autonomia, são como que estranhos à comunidade social. Desde então, as premissas racionalistas da filosofia do direito suscitavam por um lado umestatismo, criador daordem jurídica pela mediação da lei e, por outro, umobjetivismo que, por uma contradição paradoxal, culminou na eliminação dovalor no pensamento jurídico. Em tomo dessas duas linhas deforça se cristalizarão osleitmotive do positivismo.

O estatismo jurislador

Com todo o rigor, o positivismo jurídico só apareceu noséculo XIX e conheceu seus maiores desenvolvimentos, pelomenos na França, no primeiro terço do século XX1. Embora o

1. Para uma exposiçã o global do po sitivism o juríd ico, cf. Jean Dabin,

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A ALT ER NATIVA : NA TU RE ZA O U CONVE NÇÃO 73

jurista alemão K. Bergbohm tenha afirmado2, seguido algunsanos depois por M. Waline3, que o positivismo dos juristas eraalheio ao positivismo dos filósofos, para captar sua natureza im

porta sublinhar que ambos se edificaram sobre a mesma premissa epistemológica: a saber, uma exigência de objetividade científica tal que a verdade eqüivale ao conhecimento dos fatos.

Independentemente do pluralismo das vias seguidas pelo positivismo nos diversos países da Europa4, e mesmo quando suaevolução interna o transformou, deatitude metodológica, que elefoi inicialmente, por exemplo naEscola da exegese de Demo-lombe e de Bugnet, emdoutrina num Jellinek ou num Carré deMalberg, ele possui uma trama filosófica, mais ou menos explícita segundo os autores, mas sempre suficientemente clara paraque a teoria se organize em tomo de alguns fios condutores.

O poder do legalismo

Na vontade de cientificidade que o faz insurgir-se contraas figuras do direito natural reputadas “metafísicas”, o positi

Law and Morais”, in H arvard Law Review, 1958; Norberto Bob bio, I Ip ositivismo giuridico, Turim, 1961; J. L. Coleman, “Negative and Positive Po- sitivism”, in Journ al o f L egal Sludies , 1982,11; Michel Troper, “Lepositivis- me juridique”,inRevuedesynthèse , 1985;Cahiers de philosophie politique et

ju rid iq ue, n° XIII: D u posit iv is m e ju rid iq ue, Caen, 1988.2. Cf. K. Bergbohm, Jurisp ru den z und Rech lsphiloso phie , 1892.3. M . W aline, art. citado; sobre a critica dessa posição, cf.Cahier de Phi

losophie politique etjuridique citado, artigos de S. Goyard-Fabre e A. Renaut.4. Na França, é quase incontestável que, por um lado, ele se desenvol

veu à sombra dos cód igos napoleônicos (cf. C. Demo lombe,Cours de Code Napolé on, 2a. ed., Hachette, 1860), mesmo que os trabalhos preparatórios do Código civil realizados pela Comissão presidida por Portalis revelassem um forte apego à idéia de direito natural (Portalis era um leitor atento de Domat e de Montesquieu), e, por outro lado, mais tarde, sob a influência do positivismo de A . Com te. - Na Alemanha, o p ositivismo jurídico manteve uma relação complexa com as filosofias idealistas do começo do século XIX, marcadas pela influência de Kant e de Hegel. - No s países anglo-saxõ es, percorreu os cam inhos da filoso fia utilitarista e da escola analítica de Austin. - Na Itália, foi sobretudo marcado p ela preocupação realista da filosofia.

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74 OS FUNDAM ENTOS DA ORDEM JURÍDICA

vismo insiste sempre numa idéia-força que se torna seu traçofundamental: é o postulado da prioridade e da auto-suficiênciado direito positivo; considerando sempre o direitode lege lata e jamaisde lege ferenda, ele se proíbe qualquer incursão pelasintenções do legislador e não se indaga sobre as finalidadesdas regras de direito. Referindo-nos à teoria exegética que pretende comentar a letra doCódigo5, à doutrina analítica de Austin6que elimina toda interpretação transpositiva ou axiológica dodireito, à doutrina alemã da Herrschaft defendida por Jellineke Laband e da qual Carré de Malberg é herdeiro7, insistindo no poder de Estado e na autoridade constitucional, encontramossempre o mesmo denominador comum, que Hegel em 1821, emseus Princípios da filosofia do direito, formulou de maneiravigorosa: “O que é direito em si é formulado em seu ser-aí objetivo, ou seja, é determinado pelo pensamento para a consciência

5. “Nos Códigos nada depende do arbítrio do intérprete”, escreve F. Laurent em seuCours élèmentaire de droit civil, Bruxelas, 1878,1.1, p. 9; o que traduz bem o estado de espírito do positivismo de K. Bergbohm a G.

Jellinek na Alemanha ou de G. Jèze a Carré de Malberg na França.6. John Austin (1 79 0-1 859 ) formula com o princípio que a regra jurídica é distinta de todas as outras regras de conduta e atribui-lhe principalmente uma total independência das regras m orais. A partir daí, marcado pela f ilos ofia empirista que eviden temente não atribui lugar nenhu m nem à idéia normativa de um dever-ser nem à referência metafísica ao direito natural, Austin limita-se à estrita observação dos sistemas de direito positivo. A regra de direito, determinada por uma autoridade jurisladora inconteste que pertence ao poder soberano do Estado, confu nde-se com a lei:The matter o f ju risp ru den - ce is posit iv e law. Como tal, ela é alheia - diz ele - a toda ideologia.

Essas mesmas tendências são encontradas nos Estados Unidos na obra de John Gray que publicou, em 1921, N atu re and Sources o f La w. Essa corrente de pensamento que não recusa ao direito nenhuma preocupação com idealidade teve vários prolongamentos: por exemplo Holmes, “The Path of the Law and Law in Science and S cience o f Law”, inCollected Leg al Papers, 1920; Williams, Lan guage a nd the L aw, 1945-1946; J. Salmond, Juvisprudenz, 1946; citem os sobretudo H. L. Hart, Defm it io n and Th eory o f Jurisp ru den ce , 1954; “Positivism and the Separation of Law and Morais”, H arv ard Law

Revie w, 1958. Na Itália, o “positivismo jurídico” de N. Bobbio aproxima-se consideravelmente dessas tendências doutrinais.

7. G. Jellinek,Ge setz und Verordnung; R. Carré de Malberg,Contribu- tion à la th èorie générale deV Ê ta t, 1922; recd. CNRS, 1962. -= = _ _ ii= = =

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76 OS FUNDAMENTOS DA ORD EM JURÍDICA

Assim, em seu formalismo, o positivismo legal apresenta-secomo um dos maiores trunfos do Estado moderno e costumaser apresentado pelos autores como uma aquisição definitivada ciência do direito. Por influência da racionalidade cuja lógicaintrínseca tende para a sistematização da ordem jurídica, a natureza do direito acaba se confundindo com a forma estatutária dalei. Desse princípio decorrem todas as características do positivismo: o estatismo centralizador, a organização dedutivista do direito e, portanto, a coerência do aparelho jurídico, a separação

entre legalidade jurídica e legalidade moral, a autonomização dodireito que deve evitar, em seu formalismo, qualquer referênciaa um horizonte de valor. O poder do racional, que constitui a trama do positivismo jurídico, vem junto com o que Max Weber denomina “neutralidade axiológica” docorpus jurídico.

Haverá sem dúvida quem diga que o positivismo jurídico,excluindo do conceito de direito toda transcendência normati

va ou todo modelo arquetípico e atribuindo ao poder estatal omonopólio da criação jurídica, reflete o espírito de um tempo.Alguns o situarão sob o signo da periodização do pensamento,declarando encontrar nele uma “modernidade” que condena ametafísica e vê no Estado uma obra de razão que, com perfeitaautonomia, constrói por si só e para si mesma suas próprias normas. O positivismo jurídico explicaria a emancipação do homeme, colocado sob o signo da ordem e do progresso - referênciaobrigatória a Auguste Comte -, implicaria a condenação de todosos conservadorismos, reputados de antemão ideologicamenteretrógrados. Ele seria, portanto, um dos episódios mais decisivos da discussão entre “modernos” e “antigos”.

ço dedutivista, sob a forma de um conjunto sistemático e unitário, de iniciativa exclusiva do poder soberano do Estado. Com Jellinek, Carré de Malberg observa que “o Estado tem plena liberdade para se reger, exercer seu poder, particularmente para criar sua ordem jurídica por meio de suas leis” (t. 1, p. 155). Mas, diferentemente de Jellinek, ele considera que, como o Estado não se c aracteriza por um poder de dominação, a criação da ordem jurídica estatal não poderia se dar “sem controle”, o que implica o reconhecimento da auto rid ade

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A A LTERNATIVA: NAT URE ZA O U CONVENÇÃO 77

Já dissemos isto e vamos repetir: utilizar como argumentoo antagonismo entre “modernos” e “antigos” é, nesse caso, umaatitude que, embora sedutora, é abusivamente simplificadora.

Ninguém duvida que a racionalidade positivista tenha visto umobstáculo epistemológico na referência metajurídica de uma ordem jurídica; até mesmo em Kelsen encontra-se uma crítica vi-rulenta do direito natural12. Também é indubitável que o positivismo pretende privilegiar a ordem hipotético-dedutiva dos sistemas, isto é, um método de construção teórica cujo critério devalidade é a transparência lógica; essa postura construtivista éencontrada na maioria dos constitucionalismos europeus. Maso “contrapeso positivista” não é a antítese do jusnaturalismo.Há nessa interpretação uma falsa simetria. Por um lado, as dico-tomias ou as “disjunções” que oporiam ponto por ponto as estruturas do positivismo dos modernos ao direito natural dosantigos - por exemplo, a representação ao ser, ologos à natureza,o indivíduo à comunidade, a teoria à prática, o conhecimentoao dado imediato... - têm a rigidez de divisões que não corres pondem à verdade das doutrinas jurídicas. Por outro lado, e so bretudo, a idéia segundo a qual o direito é definido pela lei, ex pressão do poder estatal que o cálculo da razão edificou pelocontrato, mergulha suas raízes nas filosofias de Hobbes e deRousseau, que dificilmente poderiam ser reunidas, sem maisnuanças, sob a bandeira de uma “modernidade” na qual racionalismo, positivismo, cientificismo, logicismo, nominalismo e pragmatismo estão sobrepostos ou entremeados.

A arqueologia do positivismo jurídico: Hobbes e Rousseau

Para não encerrar o positivismo do Estado jurislador numacontrovérsia puramente epistemológica que vê nele a antítesedo direito natural (como, no âmbito da teoria do conhecimento,outros opõem a análise cientificista e a dialética), temos de expor

12. H. Kelsen, inZ e droit nature l; Atm ale s de l 'Ins titut Internationa l de ph il osoph ie po li ti que , PUF, 1959.

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78 OS FUNDAMENTOS DA ORDEM JURÍDICA

brevemente a arqueologia do positivismo jurídico. Ela é bemmenos límpida do que se costuma fazer crer, pois a insistênciade Hobbes e Rousseau no poder estatal e na força da lei não de

pende, segundo eles, de umlogos tomado como único princí pio de ordem e de inteligibilidade. A ambivalência contida emsuas filosofias - uma, quase inominada por ser vista como politicamente escandalosa, a outra, contudo em muitos sentidosmuito próxima da primeira, muitas vezes invocada num registro que, aliás, não é exatamente o seu-já é indício das dificuldades e dos limites com os quais se choca inevitavelmente o positivismo jurídico que delas emana13.

Lembremos inicialmente em que Hobbes e Rousseau pre pararam a corrente positivista e, singularmente, o estatismo ju-rislador que ela preconiza14.

Retomemos a filosofia de Hobbes, cujas posições iconoclastas e cujo pressentimento positivista já evocamos. Comefeito, na sistematicidade docorpus hobbesiano, três pontos devista sobre a soberania - sua definição causai genéticamore geo- metrico, sua natureza que faz dela um poder de comando, seus

efeitos organizacionais - revelam três linhas de força teóricasque se encontram no positivismo: o direito pode ser estudadocientificamente em sua objetividade; o soberano, único legislador na República, é jurislador; o formalismo jurídico parece excluir qualquer horizonte metajurídico, ontológico ou axiológico.

Mas a filosofia hobbesiana encontra em três direções oslimites de sua intuição positivista e calar essa tripla limitaçãoeqüivale a desnaturá-la. Em primeiro lugar, a arquitetônica jurí

dica do Estado-Leviatã não se reduz ao formalismo da legislação civil, pois as leis de natureza continuam sendo para ela um parâmetro insuprimível, necessário para a inteligibilidade e aobrigatoriedade das leis civis: se o direito positivo confere efetividade à lei de natureza, reciprocamente, as leis civis seriam ape

13. Nosso propósito aqui evidentemente não é examinar a pertinência desse esquem a que provavelmente en volve “a ilusão objetivista” das ciências.

14. Sobre esse problema, remetemos a nosso artigo, “L’intuition positi- viste de Hobbes et ses limites”,-in A c te sdu co/loque H obbes de Lyon, 1992. „

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ALTE RNATIVA: NATURE ZA O U CONVENÇÃO 79

s decisões arbitrárias se as leis de natureza não fossem seudicador teleológico15. Em segundo lugar, Hobbes, ao fazer daberania um poder supremo (superioritas) que ésoluta legibus, nora totalmente o tema positivista da auto-regulação e da auto-mitação do Estado: ao recusar a partilha da soberania16alendo que isso seria negar-lhe a essência, Hobbes é incapaz densar a constitucionalidade das regras jurídicas. Em terceirogar, ao passo que o historicismo será o irmão gêmeo do posiismo, Hobbes jamais rompe com o a-historicismo do pensa

ento clássico do direito, mesmo quando confia à razão a esrança dosalus populi que, ademais, é para ele a meta axioló

ca de sua filosofia17. No entanto, apesar das hesitações que retêm seu pensamenno limiar do positivismo (cuja teorização epistemológica eraase inconcebível em meados do século XVII), Hobbes dediu-se minuciosamente a especificar as exigências que os coandos do Poder soberano devem cumprir para que ele tenharma e força jurídicas. Sua ousadia, ainda que contida pelosstulados de sua filosofia primeira, trabalha para a mutação

s fundamentos da ordem jurídica. Como Grotius, e com a nessária prudência que a inversão das teses tradicionais impua na época, Hobbes destaca o fato de que o universo jurídico

um universo profano: já não se lê a essência do direito no Céu.único direito que é verdadeiramente jurídico é o jus civile;

e traz a marca do racionalismo e do voluntarismo que a instição do Estado e o exercício de sua autoridade exigem. No Es

do, o direito, determinado e definido pela lei civil, nada maism a ver com o direito de natureza. Ele se desenha como umcido de regras prescritivas e obrigatórias que, em seus comans ou suas proibições, conferem teor e limites ao justo e ao

15. Hobbes, Lévia th an, XXVI, p. 285: a lei civil e a lei natural “se conm mutuamente”; elas “não são espécies de leis diferentes, mas diferentes par

da lei”.16. Sobre o tema do Soberano so lu tu s legibus, cf. Léviath an, XXVI,

283; D e Cive, U, VI, §§ 1 2,1 4, 18.

17. Elemen ts ofLaw , II, XIV, § 14; II, XV, § 1; DeCive, I, III, §§ 31 e 32;viathan, cap. XIV . ______________________________

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A ALT ERNATIVA: NATURE ZA O U CONVENÇÃO 81

das obras de Grotius e de Pufendorf publicadas por Barbeyracno começo do século XVIII revelam de maneira significativaque aintelligentzia tem forte interesse pelo direito natural e nãotem muita idéia do trabalho secreto do positivismo. As exposições metódicas e às vezes muito didáticas de Burlamaqui20e deChristian Wolff21oferecem uma síntese dos filosofemas jusna-turalistas. Os tratados de direito natural são inúmeros, principalmente no mundo germânico22; a quantidade deles é, por si só,indicação das resistências opostas ao pressentimento positivista.

mas também se engana totalmente quando diz que a justiça e a injustiça depend em das leis humanas (cap. I, § 28 s.).

20. J.-J. Burlamaqui, Príncip es du dro it natu re l, 1747; P ríncip es du

d ro itp o li ti qu e, ed. póstuma, 1751. Cf. também Êlém ents du dro it natu re l, ed. póstuma, 1775. E sses textos foram reeditados pela Bibliothèque de philoso- phie politique et juridique, Caen, 1984 e 1989.

O direito, escreve Burlamaqui, “em seu sentido mais geral”, é “tudo o que a razão reconhece com o m eio seguro e sumário de alcançar a felicidade e que ela aprova como tal” ( P ríncip es du d ro it natu re l, cap. V, § 10). Longe de qualquer intuição positivista, cujo princípio até condena, Burlamaqui cita o

D ig esto: Lex estr a tio in natura, qu ae ju b e t quae ja c ie n d a sunt, pro h ib etq ue contrari a e ele escreve: “digo que aqueles que fundam o direito de prescrever leis apenas na superioridade de poder [...] estabelecem um princípio insuficien te e que, a rigor, é até mesm o falso”(ibid., cap. IX, § 4).

21. Ch. Wolff, P ríncip es du droit de la natu re et des ge ns, trad. J. H. S. Formey, 1758, reed. Caen, 1988.

22. Recordemos, em ordem cronológica e sem qualquer pretensão de exaustividade, os principais tratados: Grotius, D e ju re bell i ac p acis , 1625; Pufendorf, D e j u re na tu rae et gentium, 1672; D e officiis hominis et civis, 1673; Rachel, D isse rtationes de ju re n aturae e t gentium, 1676; Cumberland, D e legibu s

naturae disquisitio p hilosop hica, 1672; A Trea tise o f the Law s ofN aíi tr e, 1727; Coccejus (S.),Tractatus ju ris gentium: de pr in cip io ju ris na tu ra lis unico, ve ro et ada eq uato , 1699; Thomasius, Fundam enta ju ri s naturae et gentium, 1705; Gerhard, Delinea tio ju ris naturalis, sive de princip iis ju st i, 1712; Barbeyrac, tradução de D ro it d e la g uerre e t de la pa ix de Grotius, 1724; Koehler, Ju ris na turalis ejusque imprimis cogentis exercitationes, 1728; Burlamaqui, Príncipes du

dro it na turel, 1747; Wolff, Ju s na turae methcd o sc ientif ica pert ra cta tu m ,\140- 1748; In st itutiones ju r is natu ra e e t gentium, 1754; Formey, P rincip es du droit de la natu re e t d es gens, trechos da obra de W olff, 1758; Nettelbladt,Systema eleme ntaris jurisprud entiae naturalis, 1748; Vattel, Le droit des gens, 1758; Martini, D e le ge natu ra li posi tiones, 1764; De Felice,Code d ’humanité ou D ic tionnaire ra isonné de la ju sti ce nátu re lle et civ ile, 1778; Hufeland,Ueber den Gru ndsa tz des N atu rr echts , 1785; Lehrsãtze des N a tw rech ts , 1795; Heidenreich,System d es Naturrechts nach kritischen Principien , 1795.

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ALTE RNATIVA: N ATUREZA OU CONVENÇÃO 83

uz das teorias de Rousseau, esse sinal revela seu sentido mesmo que, pela estranha fidelidade infiel daqueles que acreditamegui-lo, Rousseau logo seja traído.

Rousseau, convencido, como Linguet, da injustiça das deigualdades, nem por isso escamoteia, como ele, o problema daselações da lei com o direito25: a seu ver, a retidão formal da lei,expressão da vontade geral”, explica os “prodígios” que suainvenção sublime” torna possíveis; com efeito, ao ditar a cadaidadão os preceitos da razão pública, é “só a ela que os homensevem a justiça e a liberdade”26que são precisamente obra deireito. Mas seria um erro deduzir daí uma tentação positivisa: Rousseau não é nem jusnaturalista nem juspositivista. Sabepenas que “toda justiça vem de Deus” mas que os homens,or não saberem “recebê-la de tão alto”, têm necessidade, emua finitude e em sua fraqueza, de governos e de leis “para fixar direito”27. No mundo civil (ou civilizado), pelo qual Rousseau,o contrário dos homens de seú tempo, não tem muita admiraão, as leis são “muletas” para os homens corrompidos; elasodem libertá-los de seus grilhões pois, em seu dever-ser, elasêm suficiente pureza formal para traçar as vias da liberdade e

da igualdade, portanto da justiça28: como tais, instituem o direio, cuja “obra prodigiosa” é forçar o homem a ser livre e justo.ustiça e liberdade se firmam ou retrocedem com o direito dos

Estados: segundo Rousseau, de que outra maneira poderia ser jáque, ao contrário de Montesquieu, ele declara que “a lei é anteior à justiça e não a justiça à lei”?

Assim, Rousseau, que enaltece a lei civil e vê em seu estabelecimento a tarefa prioritária da República, é manifestamenteentado pelo “positivismo”. No entanto, fascinado pelo modelo

25. Sobre esse problema, remetemos a nosso artigo “La loi, d’après Rou seau et après lui”, in La réceptio n de Voltaire et de Rousseau en Egypte , Cairo, 991.

26. Rousseau, Econom ie poli tique (in Pléiade, t. III), p. 248; M anuscri t e Genève, I, p. 310.

27. Rousseau, Le contrat so cia l, II, VI, p. 378. (Trad. bras.O co ntrato ocia l, Martins Fontes , São Paulo, 1996.)

28. Ibid ., II, XI, p. 391.

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84 OS FUNDAMENTOS DA ORD EM JURÍDICA

antigo que inseria o direito natural nas estruturas da CidadeRousseau evita a vertente positivista. Mas corrige a teoria jusnaturalista: não rejeita o direito natural mas transporta-o paroutro registro; o direitonaturalmente natural, isto é, originárioe imediato, toma-seanalogicamente natural, isto é, embora suafinalidade não se modifique, ele precisa, para se realizar, seguas vias da razão organizadora em funcionamento no Estado

Nessa transformação, a lei civil assume uma função dialéticentre o estado de natureza e o Estado, ou, se preferirem, entre “direito natural natural” e o “direito natural racional” que fixas determinações da natureza29. A meio caminho entre Pufendoe Hegel, Rousseau, antes de Kant, inverte as teses jusnaturalistasem por isso negar o direito natural: “Toda justiça vem de Deuele é sua única fonte; mas, se soubéssemos recebê-la de tão altonão teríamos necessidade nem de governo nem de leis.”30 Potanto, o direito natural já não é o paradigma da ordem jurídica

cabe às leis civis dar às normas naturais vindas de Deus a estam pilha humana que as toma acessíveis e efetivas para os homenAliando a antropologia à ciência do direito, Rousseau, que, emnome da igualdade, rejeita as perspectivas hierárquicas do naturalismo clássico, insere o direito civil nas instituições da CidadeFoija assim um humanismo jurídico no qual o homem, antes dmais nadacidadão, é reconhecido como um sujeito de direito.

No entanto, o forte civismo de que Rousseau munia suamensagem viria a se aliar, no clima propício do episódio revolucionário, à obsessão da lei e desencadear “um delírio de literaturlegiferante”31. A partir daí, transportada para fora de sua ordem,filosofia do direito de Rousseau foi de certa maneira traída poaqueles mesmos que se proclamavam seus mais ferventes lega

29. Rousseau, M anuscrit de Gen ève, II, 4, p. 329; Le contra í socia l, II, p. 378.

30. Manuscri t d e Gen ève, II, 4, p. 326; Le contr at so cia l, II, VI, p. 378.31. J. Carbonnier, “La passion des lois au siècle des Lumières”, in Bul-

letin d e V Académie roya le de B elgique, 5? série, t. 42, 1976, 12, p. 547. Sobre

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A ALTE RN AT IVA: NATUR EZA O U CO NVENÇÃO 85

tários. Com efeito, o racionalismo já crítico com que o autordo Contrato social tentava explicar a fundação do direito32foisuplantado pelo dogmatismo abrupto e pela ideologia militan-tista dos jacobinos. A sobrevalorização da lei como fonte do direito provocou um desvio da herança jurídica legada por Rous-seau. Já Sieyès, em 178933, mas também Portalis34, Cambacérèsou Talleyrand que, alguns anos mais tarde, consideram que alei é o cadinho de um direito positivo fadado a racionalizar odireito natural, falseiam a normatividade formal que Rousseauatribuía à ordem jurídica e procuram acima de tudo conferir aodireito uma eficiência concreta35. Robespierre, pretendendo-selegalista, chegou até a fazer que se adotasse, em junho de 1794,a instituição da religião civil. Na esteira da lei, o direito do Es

tado paria um culto e uma liturgia: a teatralidade do fenômeno jurídico era a traição mais ostensiva às idéias de Rousseau.Como dirá Hegel, as flores já tinham ficado pretas...

Em todo caso, em meio à confusão de influências múlti plas e diversas, a intensa atividade jurídica que se seguiu à Revolução Francesa, pouco sensível à verdade fundamental dasfilosofias por ela invocadas, confirmou a tendência objetivistaque a teoria positivista não tardaria em tomar sua.

32. C f. nosso artigo “Le se ns de la révolution méthod ologiq ue introdui- te par Rousseau dans la Science politique”, in L avai th éolo giq ue et philoso -

ph iq ue, 1991,47, pp. 147 ss.33. E. Sieyès,Q u’est-ce que le tiers état?, 1789, reimpressão, PUF,

pp. 68 e 69.34. Cf. Portalis, Discours et rapports su r le Code civi l, reed. Bibliothèque

de philoso phie po litique et juridique, Caen, 1989.35. Na obra de Rousseau há de fato alguns desenvo lvime ntos de técnica

jurídica que tratam, por exem plo , da di ferença entre ale i e o decre to , ou entre so bera no e gover no. Mas sempre têm uma significação metajurídica. Com

efeito, Rousseau sabe que o poderlegislador do soberano deve necessariamente encontrar um prolongamento no gover no, que é um poderexecutor. N o entanto, ao abordar esse problema, que nada mais é que a relação entre a forma pura (ou a essência) da República e sua expressão concreta no Estado do contrato, Ro usseau não abandona o plano da especulaçã o e preocu pa-se relativamente pou co com a empiria: ele propõe uma te ori a da p rá ti ca , refletindo, com o sempre, sobre o que é da ordem dos prin cíp io s ou dos fu ndam entos.

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86 OS FUNDAM ENTOS DA ORDEM JURÍDICA

O objetivismo jurídico

Dadas as suas tendências legalistas, o direito em geral pareceu ser, depois da Revolução, um conjunto de regras possíveis de serem ordenadas de acordo com exigências de condicionamento lógico. Ao contrário da máxima romanaregula ex

ju re sumitur, poder-se-ia dizer então que, segundo a ordem doscódigos, jus ex regula sumitur36. Contudo, a natureza dessas regras não procede apenas de sua inserção numcorpus teóricoelaborado segundo esquemas e categorias definidas por umaracionalidade abstrata com pretensão geral, até universal. Em bora seja verdade que elas exigem do legislador uma vontadede sistematicidade - aliás distinta do “espírito de sistema” cujaexemplar ilustração são os grandes códigos napoleônicos, nãose pode omitir a finalidade prática que lhes é atribuída e quecorresponde à preocupação derealismo de seus redatores. Com

pete às regras jurídicas que os códigos reúnem e ordenam de

terminar um espaço normativo em que os sujeitos de direitoencontrarão as máximas que poderão regrar suas condutas. O humanismo jurídico que se instala não se situa, portanto, como secostuma repetir, sob o signo de um universalismo abstrato emetafísico com que a Filosofia das Luzes teria impregnado o pensamento jurídico. A esse respeito, há um texto muito eloqüente: é a Declaração dos direitos do homem e do cidadão de26 de agosto de 1789, escolhida para ser o Preâmbulo daConstituição de 1791. Em sua brevidade e densidade, os dezesseteartigos desse texto, tantas vezes retomados e muito pouco corrigidos ao longo do tempo, mostram que a necessária juridici-zação do sujeito de direito implica uma atitude objetivista que,ciosa da efetividade, arranca o universo jurídico dos horizontesutópicos do idealismo.

Examinemos essa tendência a partir de um exemplo: o pro blema daigualdade que a Declaração enfatiza já em seu artigo primeiro.

36. Cf. Archives de ph ilosophie du d roit, 1986, Le systè m e juridique', l è “ è d

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A A LT ERN ATIVA: NA TUR EZA O U CO NVENÇÃO 87

Um exemplo: o estatuto da igualdade na “Declaração dos direitos ” de 1789

Pode-se decerto sustentar que o sonho da igualdade pertence a uma tradição eterna já que a Cidade lacedemônia eracélebre pelo ideal doshomoioi ou já que, na ilha deUtopia a quenos conduz Thomas More, todos devem ser tratados da mesmaforma; tampouco seria equivocado sublinhar a importância daigualdade na antropologia individualista que se desenvolve a partir do século XVII37. Mas o que mais se destaca é que a igualdade adquire, na obra legislativa dos constituintes, um estatuto

jurídico objetivo. Como diz Kelsen, havia “a igualdade antesda lei” (aquela a que se referiam o estado de natureza segundoHobbes, a política moral de Locke ou a singularidade substancial dos indivíduos segundo Leibniz); doravante, no cerne doacontecimento revolucionário, há “a igualdade na e pela lei”38.Para os redatores da Declaração dos direitos de 1789, a legalização da igualdade parece mesmo ser uma condição necessária doEstado de direito que eles querem instaurar. Colocada sob o signo da legalidade - que em breve será signo de constitucionali-dade a igualdade dos direitos é saudada como portadora deuma estrutura objetiva de normatividade mesmo quando, reconhecida e declarada, ainda não é prescrita ou ordenada. Já que,no Estado, a lei, em sua dupla generalidade, deve emanar de todos e valer para todos, é claro que a igualdade dos direitos é fundamentada na razão: sua institucionalização é sua racionalização. Mas essa racionalização precisa ter uma dimensão prática, ao mesmo tempo política e jurídica. Tornar os homens iguaisem direitos significa politicamente proteger-lhes a liberdade de

37. Vale destacar o quanto o termoindividualismo, devido a suas múltiplas ressonâncias (M. Weber, L 'é th iq uepro te sta nte et Vesprit du capitalis- me, trad. fr., Plon, p. 122), tem uma conotação imprecisa (cf. A. Renaut, L 'ère de I' in div idu, Gallimard, 1989, p. 69), uma v ez que pode fazer par com universalismo, totalismo, altruísmo, holismo, tradicionalismo, socialismo, socie- talismo..., podendo, portanto, ser situado alternadamente em diferentes registros.

38. H. Kelsen, “Justice et droit naturel”, in Le dro it na tu rel, op. cit., PUF, 1959.

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88 OS FUNDAMENTOS DA ORD EM JURÍDICA

modo que ninguém possa conspurcá-la: o Antigo Regime estásuperado. Significa também e sobretudo, juridicamente, “civilizar” o direito natural, isto é, transformar o indivíduo em um cidadão cujos direitos e deveres são determinados, proclamadose garantidos pela lei: o humanismo jurídico é acima de tudoum civismo. Em conseqüência, o sujeito de direito não é sim plesmente o indivíduo: é determinado, em dada situação concreta, pela norma jurídica. Resulta, portanto, de uma qualificação objetiva que o submete a uma regra de direito e faz deleum suj eito de direito.

Seria evidentemente tentador ver nessa postura a expressão do que se chama de “individualismo jurídico”, pelo fato detodo homem ser virtualmente definível como contribuinte, funcionário, comerciante... Essa tentação deve ser descartada. Naverdade, nos textos fundamentais que são as Declarações revolucionárias e os códigos napoleônicos, o positivismoin statu nascendi não confunde indivíduo humano e sujeito de direito.E necessário situar o indivíduo no contexto objetivo definido pelo direito para que ele se tome sujeito de direito: em outras palavras, a qualificação jurídica do “sujeito de direito”, para o qualse reconhecemipso facto direitos e obrigações, é atribuída pelodireito positivo. No espírito doCódigo Civil, o proprietário, olegatário, o estrangeiro ou o banido... são, é claro, primeiro indivíduos; mas só são sujeitos de direito em razão de sua qualificação jurídica de acordo com as categorias do direito objetivo.Por isso, interpretar os grandes textos jurídicos da época revolucionária ou pós-revolucionária como proclamações do reconhecimento dos “direitos-liberdades” ou dos “direitos-poderes”de que todo indivíduo seria portador devido à sua qualidade dehomem é uma singular simplificação39. Todo direito, trate-se

39. Devemos reiterar nesse ponto que o filóso fo do direito deve con siderar com circunspeção a dicotomia, ainda que muito sedutora, entre os “direitos-liberdades” e os “direitos-créditos” proposta por J. Rjvero ( Les libertés

publiques, 1: Les droit s de 1’homme, PUF, 3? ed., 1981). Seatribuirmos a essa

distinção, como o fazem R. Aron ( Étu des po li tiques, Gallimard, “Pensée so- ciologique et droits de rhomme”, 1972, pp. 216 ss.) e, depois dele, L. Ferry (Philosophie politique, t. 111: Les droits de Vhomme e t l' id ée républica ine,

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A A LTE RNATIVA: NATUREZA O U CONVENÇÃO 89

de um “poder” ou de uma “liberdade” do sujeito de direito, é umcrédito que a ordem jurídica do Estado concede ao indivíduo.De maneira geral, os direitos subjetivos atribuídos aos sujeitos

de direito, por exemplo em matéria de propriedade, de responsabilidade, de capacidade de contratar... resultam da subsunçãode uma qualidade empírica sob um conceito jurídico da ordempositiva: o direito objetivo é o sistema de regras pelo qual odireito do sujeito, ao se institucionalizar, se realiza40. A efetividade do direito - isto é, sua realização prática, exterior e objetivahic et nunc - é, desse modo, um dos traços mais marcantesdo positivismo: um direito em idéia ainda não é um direito. Emoutras palavras, o direito do sujeito só tem realmente caráterurídico quando consagrado pelas normas da ordem jurídicaestatal. O Livro I doCódigo Civil não se inicia com um TítuloPrimeiro cuja rubrica é: “Do gozo e da privação dos direitoscivis”?, o que significa que, sendo auto-suficiente a ordem jurídica estabelecida, o direito dos sujeitos é independente dequalquer instância normativa - seja ela ética, ideológica ou metafísica - que lhe seja exterior. O sujeito de direito é subordina

PUF, 1985, pp. 26 ss.), um significado ideológico ou politico vinculado ao onteúdo dos direitos, essa dicotomia é interessante pois permite diferenciar

o pensamento liberal dos pensamentos de tipo socializante: Nessa ótica, os direitos-liberdades” designam a esfera do indivíduo na qual o Estado não tem

de penetrar; esses direitos-liberdades, tais como a liberdade de pensamento, a iberdade de domicílio, a liberdade de religião..,, são oponíveis ao poder de

Estado; desse mesmo ponto de vista, os “direitos-créditos”, ao contrário, nesa mesma perspec tiva, são poderes de obrigar o Estado a prestar se r/ iç os para s indivíduos ou os grupos: é o caso, por exemplo, do direito à segurança maerial, dos direitos econômicos e sociais, dos direitos sindicais... Vê-se facil

mente em que essa distinção sustenta o dualismo filosófico-político entre lieralismo e socialismo.

Mas. para a filosofia do direito e, singularmente no contexto doutrinai o positivismo jurídico, o problema coloca-se em outros termos pois o direi

o, definido pela lei de Estado, implica sempre a apropriação do direito privado elo direito público: cabe, portanto, ao direito público “creditar” ao sujeito de ireito os d ireitos e obrigações a ele vinculados: portanto, todo “direito” do su

ei to é um crédito ju nto ao Estado.40. Não se trata apenas de uma operação verbal ou de um “ato de lin

uagem”.

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90 OS FUND AMENTOS DA ORDEM JURÍDICA

do ao direito objetivo, sendo por isso que os direitos do homemforam inicialmente pensados, por aqueles que os proclamaram,como os direitos do cidadão41.

Uma das características mais nítidas do positivismo é, portanto, a apropriação do fato pelo direito: sua inserção na ordemobjetiva do direito confere-lhe um significado jurídico que elenão tinha por si só e este é suscetível de produzir efeitos jurídicos.

Ainda que essa análise não pertença exatamente à próprialetra dos códigos, ela explica - como atestam as exegeses deDemolombe e de Bugnet - oespirito que os move e que reconhece ao direito positivo uma força criadora. Por meio de suas

diversas figuras, o positivismo jurídico postula que o direito nãonasce do fato: jus ex facto non oritur. Apenas o direito positivoestatal confere a fatos, situações ou atos, o selo da juridicidade. Sendo o sistema jurídico autoprodutor, ele determina umdireito cuja forma estatutária pode ser encontrada em todos osníveis de seu ordenamento: Na pirâmide característica, segundo Kelsen, da ordem jurídica bem como nos sistemas auto-

poiéticos da doutrina contemporânea,o direito (que evidentemente só pode ser consideradode lege lata), no espaço de juridicidade que sua ordem delimita,nasce apenas do direito', aordem jurídica é autofiindadora. As críticas a essa tese, posicionando-sede lege ferenda são, claro, desprovidas de pertinência científica já que são enunciadas numa perspectiva alheiaao positivismo.

Ninguém melhor que Hegel - mesmo que se tenha muitasvezes apontado o mal-entendido, até mesmo o desacordo que seestabeleceu entre ele e os juristas42- compreendeu esse traço

41. Sobre a legaliza ção do dire ito, cf. D ecla ração dos direitos do homem e do cidadão de 26 de agosto de 1789: art. 4: A lei fixa os limites do direito; art. 5: A lei define e delimita o campo de exercício dos direitos; art. 11: A obrigação jurídica é sancionada pela lei.

42. Além das críticas reiteradas e bem conhecidas de Michel Villey contra Hegel, mencionemos Ph. Guinle, La philosophie du droit de H egel et le dèveloppem ent de la volonté, tese, Paris, 1973; J.-L. Gardies, “De quelques malentendus entre He gel et les juristes”, in H egel et la philoso phie du dro it , org. de (i. Planty-Bonjour. PL'F, 1979, pp. 131 ss.

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ndamental do positivismo, que vincula formalmente toda figujurídica ao direito político.

doutrina de Hegel: a legislação, realização conceito de direito . - — - > - -

Concentrando-se no estudo do direito positivo, Hegel excluie sua problemática toda axiomática transjurídica ou metafísi: ele se interroga - preludiando com sua atitude a doutrina

ositivista - sobre o direito e as instituições tais como são; issoão deve surpreender pois, segundo ele, “tudo o que é racionalreal e tudo o que é real é racional”. Isso também significa quea concepção do direito não pode ser isolada de seu sistemaosófico: com efeito, osPrincípios da filosofia do direito deerlim são, em 1821, a culminação de uma interrogação que jábcecava o jovem Hegel. Já em 1800, o texto que ele dedicou àonstituição da Alemanha principiava com uma declaraçãoovocativa: “A Alemanha já não é um Estado.” Desde então, o

onceito de Estado, que mais tarde ele alçará ao absoluto, adquia para o jovem filósofo uma importância crucial, que lhe foravelada, muito particularmente, pela fragilidade do Impériomano-germânico do momento. Durante o período de Iena, otigo sobreO direito natural e depoisO sistema da vida ética

ão prenhes dessa mesma preocupação político-jurídica. Em817, a terceira parte (segunda seção) daEnciclopédia das ciênas filosóficas mostra que a interrogação política ganha umaxtraordinária dimensão filosófica que se explica pela meditaão de Hegel sobre aalienação do homem moderno. Esta veioom o correr do tempo43; tem uma dimensão conjuntural, é his

ALTERNA TIVA: MA TUREZA O U CONVENÇÃO 91

43. Depois da crítica que invadiu o sécu lo XVIII,vêem-se irromper conadições por toda parte do mundo: fé e saber, razão e paixão, religião e po lía, moralidade e legalidade, indivíduo e sociedade, direito privado e direito blico... Tudo, em toda parte, é confronto. O mundo está partido. Assim, õem -se o espírito e a matéria, a alma e o corpo, a liberdade e a necessidade,

ser e o nada, o finito e o infinito, a inteligência e a natureza, Deus e o mundo, indivíduo e a Cidade... No choqu e entre a subjetividade absoluta e a objcti-

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92 OS FUNDAMENTOS DA ORD EM JURÍDICA

tórica, está ligada à marcha política do mundo, ou seja, na verdade, ao seu contrário, àliberdade política. Com efeito, é do grau

de liberdade política que dependem a gravidade da alienação, portanto a infelicidade dos homens: se o homem sente-se livre,sente-se homem; se ele se sente alienado, sujeitado, a infelicidade o assalta. A infelicidade não é portanto um estado naturalou necessário; é contingente, é o resultado dos movimentos dahistória e das vicissitudes da política. Por conseguinte, assimcomo o destino do homem não está inserido na necessidade daordem natural das coisas, ele não é o do sujeito que toma a vida

em suas próprias mãos; o destino dos homens é ligado à positi-vidade empírica e, como tal, é coletivo porque inseparável da prosa da história44. A partir daí, o pensador da história é o pensador do Estado. E por isso que a preocupação política se vê convertida, em Hegel, num momento filosófico do sistema: essemomento a que ele chama, naEnciclopédia, o “espírito objetivo” e que ocupa, na dialética do Espírito, um lugar crucial.Para além do espírito subjetivo que, pelo querer, sem dúvida se

opõe à natureza, mas que, no universal abstrato, ainda é apenas“a liberdade do vazio”, o espírito objetivo é o momento em quese objetiva a vontade livre subjetiva: o espírito, através do direito que ele inventa e determina, começa a se conhecer porque sereencontra nas suas próprias obras como objetividade, diferente dele mesmo e no entanto ele mesmo em sua alteridade. E,

justamente, esse momento do “espírito objetivo” é o da liberdade em ato, da liberdade que, pela história e pela luta, se faz “uni

versal concreto”. É um problema “crucial”, pois trata-se nada

vidade absoluta, a brecha atinge sua maior profundidade: su jeito e objeto tornaram-se inimigos. Hegel sabe que esses dualismos não datam de on tem e que uma longa tradição os veiculou. Mas, segundo ele, ela sempre os considerou de modo especulativo e abstrato. Mas, no devir da racionalidade ocidental, a “cisão” tem um sentido muito concreto: é a oposição que a história estabeleceu, com diferentes figuras, entre o senhor e o escravo: Deus e o hom em, D eus e a natureza, o homem e a natureza, o homem e o homem... Portanto, ela significa que, em toda parte, reina a alienação.

44. Entenda-se aqui a res g estae ou Geschichte - a história como fato - contada pelo relato narrativo do passado ou His torie .

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A ALTERNATIVA: NATUREZA O U CONVENÇÃO 93

menos que da história da tomada de consciência da liberdade porela mesma. Para efetuar-se, essa tomada de consciência necessita doEstado.

Ora, o Estado “universal em si e para si”4Sé o lugar emque a particularidade da existência empírica e a universalidadedo reconhecimento recíproco das consciências podem selarsua reconciliação. Para tanto, é preciso que o Estado, “universal concreto”, seja umatotalidade organizada: sua organização exprime-se pelaConstituição e pelalegislação que são, naforma de umcorpus de regras, no seio daSittlichkeit, a realização efetiva do conceito dedireito. Nesse caso, não há necessida

de de recorrer ao direito natural, nem na formulação empiristaque lhe deram os jurisconsultos de Grotius a Wolff, nem na versão conceituai e formalista que lhe deram Kant e Fichte46. É na epela Constituição, na e pela legislação que lhe é subordinada, queo direito positivo encontra sua verdade e que o Espírito, no Estado, pode se definir como efetividade ou “substância” ética.

A Constituição é um princípio de organização cuja estrutura lógica e cuja forma escrita Hegel exalta na França e nosEstados Unidos (segundo ele, embora a Inglaterra tenha um regime constitucional, continua sendo o país docommon law e,por isso, conhece apenas uma positividade “ruim”). Ela é opróprio processo da vida orgânica da comunidade ética e docomércio jurídico47. Os “poderes públicos” são as “diferenças”que o Estado suscita em si mesmo por sua própria vida, nãosem os sujeitar a certo número de cláusulas e de regras. A execução desse conjunto regulador efetua, no âmbito do direitopositivo, a realização da idéia de Estado. Embora Hegel nãorecorra à idéia de “separação dos poderes”, correntemente aceita em seu tempo em direito público, porque a seu ver ela provém do entendimento abstrato e não atende à exigência profunda

45. H egel, Encyclo pèdie des sc iencesp hiloso phiq ues, § 537; cf. P rín cip es de la p h ilosoph ie du droit , § 258.

46. Hegel, Encyclo pèdie , § 502, nota.47. Hegel, Prín cip es de la philosophie du dro it, § 271. (Trad. bras.

P rin cíp io s da filo sofia do dir eito, Martins Fontes, São Paulo, 19 97.)

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94 OS FUNDAMENTOS DA ORD EM JURÍDICA

da realidade estatal48, ele especifica no Estado as diferençassubstanciais que distinguem o poder legislativo do poder doPríncipe49e do poder governamental exercido por um corpo defuncionários50. Importa portanto compreender a maneira pelaqual as leis, no aparelho jurídico do Estado, exprimem, sob aConstituição, “as determinações do conteúdo da liberdade objetiva”51, pois “a necessidade de que as leis sejam racionais e deque sua realização efetiva esteja assegurada” é o que constitui“a garantia de uma Constituição”52.

Só a lei - que só pode ser a lei positiva (determinada:das Gesetz) em sua existência empíricahic et nunc e em sua com

patibilidade formal com o dispositivo constitucional - confereao direito sua determinidade. Hegel pode portanto esclarecer oque constitui “a positividade do direito”53. “De modo geral, odireito”, escreve ele nosPrincípios da filosofia do direito54, “é positivo:

“a/ pela form a, isto é, pelo fato de ter validade num Estado, e essa autoridade legal é o princípio para o conhecimentodo direito, a ciência jurídica positiva;

“bl quanto a seuconteúdo, o direito adquire um elemento positivo: 1/ pelo caráter nacional particular de um povo e pelaligação de todas as relações decorrentes da necessidade natural;2/ pela necessidade segundo a qual um sistema de direito legaldeve conter a aplicação do conceito universal ao modo de ser particular, que é dado de fora, dos objetos e casos - aplicação que jánão é pensamento especulativo nem desenvolvimento do conceito, mas subsunção do entendimento; 3/ pelas determinações últimas exigidas para as decisões de justiça na efetividade.”

48. Ibid ., § 272, nota.49. Ib id ., § 279.50. Ib id ., §§ 287 ss.51 . Encyclo pédie , § 538.52. Ib id ., § 540.53. Ib id ., § 529 E: “O que se pode denominar de a positividade das leis

concerne apenas à sua forma e quer dizer simplesmente que essas leis estão em vigor e que os cidadãos são conscien tes desse fato.”

54. Prín cip es de Iaph ilosophie du dro it , § 3 . . . . . ___ _ _ _ .

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AL TE RNATIVA: NATUREZA O U CONVENÇÃO 95

Numa definição assim, é claro que o direito não encontraua verdade, segundo Hegel, nem na natureza nem na razão, e

m, por um lado, na positividade form al

da lei, ela mesma derminada ou estatuída pela autoridade estatal, e, por outro, nafetividade de que ela envolve os casos particulares concretos.pesar disso, essa legalidade só é acessível ao pensamento que

preende a convergência, no centralismo estatal, no nível do uniersal, do racionalismo dos códigos e do formalismo das regras.ssim se explica que o que é legal(gesetzmãssig) seja “a fonteo conhecimento do que é de direito”55: o que é declarado lício ou juridicamente válido é apenas confrontado, no Estado eob a Constituição, com a “existência empírica da lei” tal comola é determinada por Código56. É por isso que, mesmo que umódigo não possa ser perfeito nem “completo e acabado”57, deve

er verdadeiramente acessível a todos: “No direito positivo, o quelegal é a fonte do que é justo, ou melhor, do que é o direito.”58

Legalismo e formalismo explicam o interesse de HegeleloCódigo Civil francês: a obra do legislador pós-revolucioná-o consegue pôr o direito positivo numa ordem racional; isso

acilita enormemente a publicidade do direito59e reforça-lhe oaráter obrigatório60; doravante, a desobediência a um direitoositivo codificado e publicado já não encontrará desculpa nehuma. Com efeito, a lei que, “na forma de ser-determinado”,

mediatiza o direito, tem “a capacidade de obrigar”61. Hegel, nesseonto ainda próximo do positivismo, insiste no caráter decoaão vinculado a toda regra de direito tanto em sua aplicaçãoacífica como em sua aplicação contenciosa. Por isso, no finalo processo, a jurisdição se apresenta, no tribunal que é seuugar por excelência62, como o verdadeiro revelador do direito:

55 . Ibid ., § 2 1 2 .56. Ibid ., §215 .57. Ibid ., § 216.58. Ibid ., § 212, nota.59. Ibid ., § 211, nota.60. Ibid., § 215.

6 1 ./ ò W . ,§ 2 1 2 .------62. Ibid ., § 219.

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96 OS FUNDAM ENTOS DA ORDE M JURÍDICA

é aí que o caráter geral de obrigatoriedade do direito se individualiza num caso concreto ao passo que, simultaneamente, o

indivíduo que é parte no processo deve apresentar a prova doque ele considera ser “seu direito”. A jurisdição descarta oFaustrecht (o direito do mais forte) bem como o jus talionis (avingança privada). A punição infligida àquele que é declaradoculpado de acordo com a lei só pode ser legal. O delinqüenteencontra na exigência de ser julgado em forma segundo leisgerais ao mesmo tempo sua punição e sua proteção. Por conseguinte, “deve-se considerar a administração da justiça tanto

um dever como um direito do poder público”63.A questão central da positividade do direito é nada menosque a realização da razão no Estado: na medida em que as leise as regras de direito são racionais e se apresentam como princípios pensados - em outras palavras, na medida em que, segundo Hegel e, mais tarde, segundo os positivistas, o direito positivo permite que a sociedade se organize no Estado segundo arazão -, elas constituem uma mediação entre o indivíduo e oEstado ou, mais precisamente, entre a liberdade abstrata do indivíduo e a liberdade concreta positiva. Por isso o ódio ao “direito definido formal e legalmente” é “oSchiboleth que revela edá a conhecer de modo infalível o que são o fanatismo, o espírito fraco e a hipocrisia das boas intenções, sejam quais foremas vestimentas com que se cubram”64 (isso é dito contra vonHaller, pensador da Restauração e “inimigo dos códigos”). Aausência de ordem jurídica só pode caracterizar o despotismo.

A realidade positiva do direito firma-se portanto como o princípio diretor dos Estados modernos: ela tem “a força e a profundidade prodigiosas de possibilitar que o princípio da sub jetividade se realize ao ponto de se tornar o extremo autônomoda particularidade pessoal ao mesmo tempo que o reconduz àunidade substancial, conservando, assim, nele mesmo esta unidade substancial”65.

63. Ibid., §219 .64. Ib id ., § 278.65. Ib id ., § 260.

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A A LTE RNATIVA: N ATUREZA O U CONVENÇÃO 97

A. Kojève, mais perto de nós, dá continuidade ao passo “fe-nomenológico” dado por Hegel na perspectiva de uma filosofia do direito66. Com paciência e minúcia, disseca os conceitosdeEstado, de Constituição, delei, de justiça, essenciais àordem

jurídica restringindo-se, diz ele, “ao aspecto superficial dodireito”, o que quer dizer não que seu estudo seja sumário ou sucinto, mas que seu projeto é analisar “o direito enquanto fenômeno dado à consciência imediata do homem”. Por isso, o queele estuda é odireito positivo, definido pelo Estado, formulado

pelas leis e códigos, em vigor aqui e agora. Examina-o atravésde sua aplicação em situações concretas. Interessa-se portanto

apenas pelo conteúdo objetivo e pela aplicação efetiva (em particular, jurisdicional) das leis e, de modo mais geral, das noções jurídicas. Como Hegel, vê no direito positivo o instrumentoque permite a organização das relações suscetíveis de se instaurarem, no Estado, entre indivíduos, entre grupos, ou entreindivíduos e grupos; nessas relações multiformes funcionamregras que definem o obrigatório, o permitido e o proibido. Aodescrever o funcionamento das regras de direito em diversas

“estruturas relacionais” - o que Kojève chama de “descrição fe-nomenológica” -, é possível alcançar a “idéia-essência” ou a“essência própria” do direito. Com efeito, no decorrer dessadescrição, conclui-se que a aplicação das regras legais e jurídicas tende a realizar a justiça: idéia aliás banal e oriunda do fundodos tempos. É preciso dizer, no entanto, que no tempo de Hegele mesmo no século de A. Kojève as velhas máximas de Ulpia-no conservaram sua verdade.

Contudo, Kojève está preocupado sobretudo - o que elemesmo confessa invocando a filosofia de Hegel - com a intri-cação daordem jurídica com aesfera política. Insiste em váriasocasiões sobre os vínculos que unem alei e odireito, mas tam

bém sobre as diferenças que criam sua irredutibilidade. Não se pode confundi-los: se todo direito em ato tem força de lei, pois

66. Alexandre Kojève, Esquisse d'u ne phénom énolo gie du dro it, Gallimard, 1981, edição póstuma (a parte essencial da obra já estava escrita

em 1943).

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98 OS FUNDAM ENTOS DA ORDEM JURÍDICA

se apresenta como determinado pelo Estado e, nesse sentido,envolvendo obrigatoriedade e executoriedade, em contrapartida, “nem toda lei é um direito”. O direito, com efeito, implica arealização do justo e, segundo Kojève, para compreender essaverdade de maneira não dogmática, é preciso voltar à dialéticado senhor e do escravo pois, diz ele, “a história universal nadamais é senão a história da relação dialética, interativa, entre adominação e a servidão”. Nessa relação, o desejo de reconhecimento é a fonte da idéia de justiça.

É que, de fato, o homem não é um animal como os outros:em vez de ser feito, isto é, determinado pela natureza, ele se faz.Mas, para que saia da animalidade, é necessário que seu desejoseja reconhecido pelo desejo adverso ao seu: precisa, portanto,dominar o desejo do outro, o mais das vezes pondo em risco asua vida. Com esse esforço de negação ativa, consegue emergirda ordem natural; abre-se assim o caminho pelo qual atinge aconsciência de si e a liberdade: abandona “a ordem do ser” ealcança a ordem da liberdade. E quando aparece a idéia de justiça. Portanto, esta não é natural: ela brota, diz Kojève - cujainspiração hegeliana é aqui evidente da “luta antropogênica”. Não obstante, esclarece ele, o justo apresenta duas figuras, oumelhor, dois conteúdos sucessivos. Com efeito, num primeiromomento, a luta entre os indivíduos que se enfrentam é igual;essa igualdade é a figura objetiva do justo: “Ela é justa porque- em princípio - cada um dos dois adversários teria iniciado [aluta] mesmo que estivesse no lugar do outro.” A justiça exprime então uma justiça aritmética: uma justeza. Mas advém umsegundo momento quando, na luta que opõe os desejos dos indivíduos, um pede que cesse esse enfrentamento: em outras palavras, quando um se confessa vencido e reconhece o outrocomo seu senhor. Então, deixa de haver igualdade. Portanto, logicamente, já não há justiça - pelo menos justiça-justeza. Pois,realmente, ou fenomenologicamente, a desigualdade que acabade surgir, e que um terceiro pode constatarde visu, dá lugar auma nova figura do justo que Kojève denomina a “justiça deequivalência”. Ela é, segundo ele, o nervo do direito burguêsdo Estado moderno, sendo ela-que as'leis positivas têm a fun

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ALTERNATIV A: NA TUREZA O U CONVENÇÃO 99

ão de proteger. Entre os dois esboços da justiça - a justiça seundo a igualdade e a justiça segundo a equivalência - é evi

ente a oposição, que a dialética, pensada no modo hegeliano,em por tarefa transformar numa justiça segundo a eqüidade. esse mesmo movimento, a antítese entre o indivíduo e o buruês se sublimará na emergência do cidadão para quem, preciamente, a ordem jurídica só poderá adotar a forma da ordemegal emanante da decisão estatal.

Atingimos finalmente a “idéia-essência” do direito positio? Captamos a forma da lei? Sem dúvida o procedimento diaético de A. Kojève lhe permite, como ele projetava, situar austiça, o direito e a lei no “conjunto do ser” já que o adventoa humanidade do homem só se delineia quando ele sabe, pelauta, escapar das determinações animais que a natureza lhe deuriginariamente. Mas como passar do plano da constatação (aliás,

muito especulativo), em que nos situa o estudo fenomenológi-o de Kojève, para a compreensão das regras legais e jurídicasomo expressão denormatividade? Apesar desse relativo fraasso, Kojève, realizando de maneira mais radical que Hegel oretorno ao concreto”, chega à mesma conclusão que o autoros Princípios da filosofia do direito de Berlim: a lei, que sóode ser a lei positiva oriunda das tomadas de decisão do Esado enquanto entidade jurídica, é a própria essência da instiuição estatal moderna. O esquema positivista que Hobbes esoçara, é verdade que sem conseguir em seu século dispensars leis fundamentais de natureza inscritas num horizonte me-ajurídico então impossível de eliminar, ganha ao mesmo temo força e consistência no procedimento hegeliano. A estrada dopositivismo jurídico” decerto não é aquela que filósofos como

Hegel e Kojève pretendem percorrer: sua filosofia do direito nãoem como objetivo apresentar-se como umateoria do direito.

No entanto, no sistema de Hegel assim como na fenomenolo-ia de Kojève, a filosofia do direito se deixa apreender comom signo que, inscrito na história, também pode ser decifrao do ponto de vista da história, na qual Hegel reconhecia “oibunal do mundo”. Ora, é sintomático que os primeiros ímpe-os,do positivismo jurídico tenham sido contemporâneos da

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filosofia do Estado elaborada por Hegel. E, embora a doutrina positivista faça apenas raramente referência explícita ao hege-

lianismo, repete a concepção daracionalidade do Estado moderno e a teorização dodireito positivo, que os Princípios deBerlim levaram ao mais alto nível de sistematicidade.

100 OS FUNDAMENTOS DA ORD EM JURÍDICA

Os equívocos do positivismo jurídico

A legalização do direito, a proliferação das decisões legislativas, a insistência na concepção do direito como sistema demandamentos e de regras, o crescimento da autoridade administrativa, as reivindicações cada vez mais numerosas apresentadas pelos sujeitos de direito individuais ou coletivos ou, emoutra ordem de idéias, as freqüentes confusões entre o positivismo enquanto atitude epistemológica e o positivismo enquanto doutrina, a obstinação de certos autores como Bergbohm ouWaline em afirmar que o positivismo jurídico é alheio ao positivismo filosófico... são outros tantos sintomas do positivismo.Mas marcaram o caminho com tantos equívocos que, apesar desuas pretensões cientificistas, a doutrina acabou por envolver a

palavra positivismo de imprecisão e incerteza: “Já quase não sesabe o que a palavra designa.”67E o que é mais grave: em sua

preocupação epistemológica de objetividade e de realismo, ateoria positivista se atribuiu o objetivo de se tornar “tão trans parente e neutra quanto possível”68; para alcançai o, precisavaafastar qualquer perspectiva essencialista, idealista e axiológica. Mas é preciso distinguir o que, originariamente, o pensamento germânico chamava de “a dogmática jurídica” do queveio a se tomar, ao longo de sua evolução, a “doutrina” positivista que, hoje, perdeu seu perfil de “ciência rigorosa”.

67. M. Virally, Lapensée ju rid iq ue, LGDJ, 1960, p. v. - Sobre essa doutrina, cf. M. Troper, “Le positivisme juridique”, in Revue de sy nth èse, t. CVI, n°s 118-9, 1985.

68. C. Atias, Epis témologie ju rid ique, PUF , 1985, p. 33. Cf. também G. Ripert, Les fo rces créatr ic es du dro it , 1955, p. 74: “O valor do direito positivo p rovém não do ideal que o exprime, mas de sua simp les ex istência.”

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A ALTERNATIVA : NA TUREZA O U CONVENÇÃO 101

O positivismo definido por K. Bergbohm era,stricto sensü, uma “ciência” do direito que, na qualidade de disciplina científica, tinha por único objetivo o estudo do direito positivo; portanto, ela estudava as normas em vigorhic et nunc e não investigava de modo algum os fundamentos ou as razões do direito.Ora, a história do positivismo mostrou que a doutrina não seateve a esse projeto científico. Introduziu parâmetros psicológicos, sociológicos ou historicistas; contraditoriamente, recorreu a critérios ideológicos ou axiológicos, o que falseia a cien-tificidade e a neutralidade - provavelmente impossíveis, maseste é um outro problema - de suas metas originárias. É preci

samente nesse desvio que residem os equívocos insuperáveis deum pensamento teorético que suas contradições internas tornam manifestos.

Mencionaremos aqui três das incertezas que minam a doutrina. Por um lado, o positivismo se pretende a-filosófico; masé impossível ganhar essa aposta, pois a auto-suficiência de umateoria que, em sua pretensa “neutralidade axiológica”, se limitasse apenas à fenomenalidade do direito é uma ilusão. Por outro

lado, afastando do campo jurídico toda normatividade transcendente, essa teoria jurídica - que tem forte propensão a rebaixar o direito, aquém de suas próprias prescrições, ao plano dascondições empíricas, sociais ou históricas que as motivaram -redunda contraditoriamente afirmando a autonomia do direitona negação do caráter especificamente jurídico do direito. Porfim, a construção de um direito que, invocando critérios de racionalidade científica, se fechasse dentro das grades de uma legislação abstrata de alcance mais ou menos geral, teria forteschances de gerar uma sistematização do direito rígida e semvida. Quando a teoria da formação gradual do direito (Stufenbau- theorie) expõe que, no interior de uma ordem jurídica, apenaso direito cria direito, é grande o risco de fazer o processo e aforma do direito prevalecer sobre seu conteúdo substancial.Com efeito, quando a geração gradual do direito obedece apenas ao critério de compatibilidade das normas jurídicas com asnormas que lhes são superiores e, pouco a pouco, com as disposições constitucionais, embora ele seja levado em consideração,

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102 OS FUNDAMENTOS DA ORDEM JURÍDICA

o conteúdo material do direito permanece secundário ao modelo de organização em cadeia docorpus jurídico. Sobrepondo-se, essas indecisões ficam tão intensas que comprometem acoerência da doutrina. Conhece-se, por outro lado, a crise interior a que Carré de Malberg se viu conduzido nos últimos anosde*sua vida. Essa crise dolorosa é reveladora, segundo palavras deG. Burdeau, do “drama do positivismo jurídico”69, não só porque foi incapaz de assumir realmente seu projeto epistemoló-gico de cientificidade, porém, mais profundamente, porque,apesar desse fracasso, ele ainda assim traçou o perigoso caminho pelo qual muitos autores enveredaram embora a própria qüidi-

dade do direito estivesse em perigo.

Um conflito secular sem saída

A antinomia teórica suscitada ao longo da história do pensamento jurídico pelo encontro das correntes jusnaturalistas e

juspositivistas prendeu a filosofia do direito entre as tenazesdos dualismos: condenou-a, ao sabor das controvérsias e das

polêmicas, ao choque das contradições provocado, por ambos

69. O “drama do po sitivism o jurídico ” de que fala G. Burdeau a propósito de Carré de Malberg não d eve ser confundido com as recentemente denominadas “desventuras do positivism o” (D. Lochak, “La doctrine sous Vichy ou les mésaventures du positivisme” , in Les usa ges socia ux du dro it, CURAP, Am iens, 1989, pp. 252 ss.), o qual -Gesetz ist gesetz - poderia eventualmente justificar, num sistema político, decisões ou atos eticamente perversos.

M. Troper respondeu ao autor no mesmo livro (pp. 286 ss.) insistindo, na esteira de A lf Ross (“Va lidity and the C onflict betw een L egal Positivism and Natural Law ”, in Revis ta ju ríd ic a de Buen os A ir es, 1961 , IV), que ele cita (p. 287), no fato de que o positivismo é uma con cepç ão da ciência do direito, portanto uma metateoria, e que, nesse sentido, por não ordenar nem prescrever nada, não pode pôr-se a serviço de nen hum poder polí tico, se ja ele qual for do ponto de vista ideo lóg ico e seja qual for o valo r ético de seus atos.

Decerto nada impede que o jurista faça um juízo moral sobre essa ou aquela decisão jurídica do poder legislativo. Mas então ele se coloca num outro plano, que não é o da dogm ática jurídica. Quando se enunciam juízos de valor quer em nome do positiv ism o, quer no âmbito de sua doutrina, é porque

esta já não é' verdadeiramente “positiva”.— - ------------- -------*— — ----------

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ALT ERNA TIVA: N ATUREZA O U CONVENÇÃO 103

lados, pela segurança dogmática dos doutrinários. A querela,e se converteu num impasse, ganhou mesmo feições de uma

se que, perpétua e secular, conheceu periodicamente umnômeno de dramatização no qual Nietzsche e Husserl, cadam à sua maneira e em seu tempo, viram a tonalidade do frasso. Nietzsche certamente não é um filósofo do direito; masolhar desnudante que lança sobre o mundo dos homens e daséias leva-o a denunciar de modo implacável suas discussõesgmáticas: por um lado, a verborragia idealista traduz a degerescência e o definhamento do homem; por outro, a fadiga

telectual do cientificismo, apogeu do monisnjo racionalista,o passa de um intelectualismo abstrato com ares de uma fancia. No final do conflito, “uma sociedade de exauridos” apa-se no crepúsculo. O choque dos dois dogmatismos insere-sem processo irreversível em que, à morte de Deus, sucede-se

morte do homem? Ou o naufrágio metafísico poderá ser evido? Em sua loucura, Nietzsche levou consigo a resposta asa questão... De qualquer maneira, o destino da humanidadecreve-se como um palimpsesto e cada nova escrita exige umava sintaxe: a “transfiguração do fracasso” envolve uma equi-cidade que confina com o enigma. O que fica claro, contudo,que, no choque das doutrinas,as fundações do direito não eram à tona. Menos misterioso, Husserl denunciou “a crise”qual o choque dos dogmatismos atolou a cultura européia70.r um lado, as figuras teleológicas da filosofia orientaram aosofia para “um pólo infinito”, mas a finitude reteve o hoem num mundo desesperante; por outro, a hipertrofia raciolista que, com seu inchaço e sua desmedida, objetiviza o su

70. Refe rimo-nos ao texto da conferência pronunciada por Husserl em e maio de 1935 no Kulturbund de Viena intitulada La ph iloso phie dans la s e d e l 'humanitè europè en ne , publicada pelos Arc hives H usserl em Louvain; m um título levemente mod ificado, L a crise de I ’humanitè euro pèen ne et la losoph ie , tradução de Paul Ricoeur e apresentação de Stephan Strasser, foi licada pela Revu e de m éta physique et de mora le , 1950, n? 3, pp. 225-58;

também La cris e des scie nces euro péeim es et la phénom énolo gie tran s- danta le (o manuscrito data de 1935-1936), trad. fr. de Gérard Granel, limard, 1976. " - -------------------------------- - - ------------------------ -

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104 OS FUNDAMENTOS DA ORD EM JURÍDICA

jeito, coisificando o homem e suas obras, abafa qualquer projeto cultural. De uma maneira ou de outra, os predicados norma

tivos são excluídos e a “aflição” é geral. Numa época em que a política instila angústia - não esqueçamos os anos do “perigomortal” que ameaça a Europa71- a idéia do direito perdeu seu ponto de ancoragem. O universo jurídico é confundido ou coma construção de formas puras ou de esboços-limites, ou com “osistema material e fechado” do objetivismo cientificista: ele jánão tem raízes. Essas concepções rígidas são alienantes.

Apesar de suas transformações endógenas, os jusnatura-

lismos e os juspositivismos chocam-se de modo repetitivo.Mesmo no auge do vigor dos positivismos, assiste-se à ressurreição desse cadáver do direito natural que nunca se termina deenterrar nem de exumar: a reação antipositivista72recentemen

71. Não esqueçamos as datas: 1935-1936. O nazismo está no poder na Alemanha faz dois anos; o fascismo italiano se instalou há mais de dez; o franquismo vai se instalar na Espanha; o socialismo, na Rússia, tomou-se estalinista e o humanismo mergulha no terror. Desencadeia-se o anti-semitismo. As democracias liberais se desfazem em pó. U ma e spéc ie de deslizamento de terreno arrasta “a humanidade européia”. Ocorre “um abalo do mundo” que os homens vivem como “a crise de existência da Europa” em que se con- vulsionam “inúmeros sintomas de perigos mortais” ( K ris is, p. 257).

72. O renascimento do direito natural era anunciado, sem grande repercussão , por J. Charmont em 1910; no entanto, sua obra foi reeditada em 1927. Sobre esse autor, cf. A. Sourioux, “La doctrine française du droit naturel dans la première moitié du XX' siècle”, in Révu e d 'h istoire d es Facultés de droit et

de la Science ju rid iq u e, 1988, n° 6, pp. 155-64 .O neotomismo favoreceu o despertar do direito natural com os traba

lhos de Jacques Maritain, Les dro its de l 'homme e t la lo i naturelle , Paris, 1945, e de Alexandre Passerin d’Entrèves, Natu ra l Law . An In trodu ction to Legal

Philosophy, Londres, 1951. “Le droit naturel”, in Annales de ph ilosoph ie p olitique, PUF, 1959, n? 3; “Légalité et légitimité”, in Annales de philosophie

poli tique, 1967, n? 7; La no tion d ’État, trad. fr., Sirey, 1969.Assinalemos também o retomo da idéia de direito natural, hoje, nos

Estados Unidos, entre os libertaristas: cf. Henri Lepage, “Le retour du droit naturel chez les Libertariens”, in Revue d'h is to ir e des Facultés de droit e t de la Science politique , 1989, n° 8, pp. 165-87.

Na Alemanha, a condenação do direito natural por certos românticos suscitou, a partir de 1920, sobressaltos febris, por exemplo em E. Troeltsch, (Naturrecht undH um anitãt in de r Weltpotítik, Berlim, 1923) cujas teses tive-

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A ALTERNA TIVA: NATU REZA O U CONVENÇÃO 105

te exemplificada por Leo Strauss e Michel Villey - voltaremosna segunda parte deste livro à filosofia do direito desses doisautores - é bem característica dessa lei de “duplo frenesi” que,segundo Bergson, ritmava o avanço do mundo ocidental. Seráque a filosofia do direito, condenada a oscilar entre os pólosdo naturalismo e do convencionalismo teria, até hoje, enveredado por “caminhos que não levam a lugar algum”?

am prolongamentos teóricos importantes. Convém também assinalar, um pouco mais tarde, a concepção da “natureza das coisas” exposta por W. Maihofer: cf. “D ie Natur der Sache”, Archiv fü rR ech t im d S ozialp hiloso phie , 1958; “Le droit naturel comme dépassement du droit positif”, Archives de h ilosophie du droit , 1963, pp. 177 ss.; Natu rrech t oder Rechtsposi tivismus,

Darmstadt, 1972.

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PARTE IIA encruzilhada do século XXO atolamento e a dissolução do direito

A oscilação aporética da filosofia do direito indecisa entreos jusnaturalismos e os positivismos ameaçava esgotá-la nasintermináveis especulações conflitantes que sempre faziam ressurgir a velha questão de saber se o direito se enraíza na physis ou se ganha corpo nosnomoi. Só que a interrogação filosóficanunca é independente do contexto cultural no qual é enunciada.Por isso, num século em que “a morte de Deus” tem por corolário a dessacralização do mundo, cabe ao homem ocupar o lugardeixado vago pela retirada do divino. Portanto, já não se trata -exceto para alguns autores que, voluntariamente, se marginali

zam - de referir-se a um horizonte teológico ou a uma ordem domundo que exprime a vontade de um Deus criador para explicara normatividade jurídica. De modo geral, diante do refluxo quase total da tradição metafísica da ontoteologia, o século XX declara-se “humanista” e pede aohomem para fundar o direito.

Essa atitude, na verdade, não é nova e poder-se-ia pensarque suas diversas figuras nada mais são que o legado do racio-nalismo da modernidade. Contudo, já dissemos - consciente deir na contramão de uma “moda” sedutora e bem estabelecida -o quanto nos parecia frágil a dicotomia entre “modernos” e“antigos”. Além disso, um olhar atento sobre o humanismo

jurídico do século XX logo nota que as temáticas costumei-ramente atribuídas a uma “modernidade” que dizem centradana subjetividade' estão longe de constituir as estruturas arqui

1. Sobre essa s temáticas, cf. D. Letocha, “Comment définir la modemi- ™ té^quand»on,est,encore-régLpar-sesJmpératjfs?”, jnCarrefour, 1991, 13-1:

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108 OS FUNDAMENTOS DA ORD EM JURÍDICA

tetônicas da filosofia do direito desse século. É indiscutível que,em seu conjunto, a pesquisa dos fundamentos do direito se afasta das vias metajurídicas atravancadas por tensões e antinomias (chega-se a falar da “destruição” da metafísica), e que,numa postura menos ambiciosa, essa pesquisa se efetua pers-crutando o direito positivo em suá fenomenalidade e em sua prática, pacífica ou contenciosa. O projeto heurístico é claro;mas sua clareza não basta para eliminar a complexidade metodológica dos procedimentos adotados para realizá-lo, nem o

perfil nebuloso dos resultados obtidos. Em todo caso, a “razãoinstrumental”, que seria, dizem, o sinal distintivo do humanismomoderno, dista de ser a única ponta de lança da filosofia em

busca do que inaugura e justifica uma ordem jurídica positiva.O pensamento do século XX parece estar numa encruzi

lhada; toma direções divergentes que se pode tentar reagruparsegundo seus esquemas metodológicos2. Se deixarmos de ladoas tentativas de elaborar uma teoria do direito cognitiva e ex

plicativa3que se pretenda “descritiva, teórica e diferencial”4, poistrata-se aí mais de epistemologia jurídica do que de filosofia dodireito e porque a busca das fundações da ordem jurídica não ésua problemática, observamos que, à medida que se aperfeiçoao conhecimento científico do universo jurídico ordenado sobas regras constitucionais do Estado, faz-se sentir a necessidadede uma pesquisa fundamental que vá mais longe que uma teo

ria geral do direito e do Estado: ressurge assim, mais lancinan

Qu ’est-ce que la m ode rnitè? O autor responde enumerando “sete traços inva- riantes e solidários”; a ruptura com o cosmos, a tábula rasa, a posição do su

je ito, a desqualificação do imediato, a passagem para a im anênc ia, a passagem para a abstração, a disjunção, pp. 6 ss. Na mesma revista, D. Moggach (pp. 33 ss.: “Les sujets de la modemité”) faz da subjetividade, em seus “quatro modelos”, o centro da problemática moderna.

Esses dois artigos são plenamente representativos da corrente de pensamento simbolizada pela “nova discussão entre os an tigos e os m odernos”.

2. Fica claro que, neste caso, o método tem um valor e um alcance que são muito mais que metodológ icos; implicam todo um modo de filosofar.

3. Por exemplo, Ch. Atias, Epis té m olo gie ju ridique, PUF, “Droit fonda- l” 1985

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A EN CRUZILHAD A D O SÉ C U LO X X 109

te do que nunca, a questão desesperante: “Que é o direito?”5Ora, para responder a essa questão, é necessário despertar de qualquersono dogmático. Mas aí a hesitação atinge seu pico e assiste-se

à bifurcação das investigações. Enquanto o constitucionalismoconserva seus adeptos que chegam a propor um “neoconstitu-cionalismo”, certos autores enveredam pelas vias de um socio-logismo redutor e, recuperando a força das motivações ético-sociais ou historicistas, fazem dela um fator de compreensãonecessária e suficiente da dinâmica jurídica. Outros ainda, emmeio a controvérsias às vezes sutis e complicadas, falam de“ontologia jurídica”, pretendendo mostrar que a filosofia, apesar das dificuldades acumuladas ou repetitivas, apesar dos obs

táculos imprevistos, apesar até mesmo dos fracassos, não renunciou a voltar às fontes - será que são “ontológicas”? - emque se abebera a fecundidade do direito.

Esquematizando, pode-se dizer que essas três tendênciasdo século XX colocaram a filosofia do direito numa encruzilhada. Por um lado, desenha-se, bem reta, a estrada lógico-for-mal seguida pelas teorias constitucionalistas e neoconstitucio-nalistas. Por outro lado, abrem-se, mais sinuosos, os caminhos pelos quais, ciosas de pragmatismo social, enveredam doutri

nas redutoras sociologizantes, historicistas ou vitalistas. Por fim,abrem-se as vias, ainda sombrias, de uma “ontologia jurídica”nas quais se encontram mais problemas que soluções claras, oque basta para explicar, em meio às hesitações, o pluralismo ea obstinação dos pesquisadores.

Nas páginas a seguir, vamos nos colocar nessaencruzilhada de tendências e indagar, explorando as diversas vias queelas inauguram, se é possível, graças a elas, encontrar no direito “um núcleo de certeza” ou, em outras palavras, se, ao sabordos procedimentos intelectuais empregados por essas abordagens diferenciadas de uma ordem jurídica conseguiremos alcançar o “direito fundamental”, isto é, o que funda a juridicidade do direito.

5. Cf. os dois números que a revista D roit s (PUF, 1989 e 1990, n“ X e XI) dedica à questão “Que é o direito?”.

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Capítulo IAs vias lógico-formais: o constitucionalismo

É quase incontestável que, a partir de meados do século

XIX, os problemas constitucionais ocuparam um lugar destacado na doutrina jurídica dos países europeus. Para convencer-se disso, basta lembrar que, desde essa época, se multiplicaramos tratados magistrais de direito constitucional - citemos, porexemplo, além dos textos fundamentais de Benjamin Constantou de Edouard Laboulaye, as obras de Esmein, de Barthélémy, deDuguit, de Hauriou, de Carré de Malberg -, ou lembrar a existência, mais perto de nós, de uma forte corrente constituciona-lista e até mesmo de um “neoconstitucionalismo” contemporâneo1. A idéia-força que domina essa concepção jurídica é a afir

1. Isso de forma algum a significa que o constitucionalism o nasceu no século X IX. A idéia de “constitucionalismo” tem, pelo contrário, origens longínquas. Cf. Paul Bastid, L ’id ée de Con st itution, Paris, Economica, 1985; William Farr Church, Constitutional Thought in Sixieenth Century France, Cambridge (Estados Unidos), 1941; Roman Schnurr, D ie Rolle der Juristen bei d er E nts tehung des mod ernen Sta ate s, Berlim, 1986. Todavia, nos séculos XIX e X X, houve um considerável crescimento dessa doutrina. Sem pretensão

de exaustividade, podemos distinguir três grandes períodos marcados pelas seguintes obras:N o primeiro período , enunciam -se as intuições primordiais da doutrina:

B. Constant,Cours de politiqu e constitutionnelle (1818-1919), Paris, Ed. Laboulaye, Guillaumin, 2 vol., 1861; F. Berriat Saint-Prix,Théorie du dro it cons- ti tu tionnel frança is , Paris, Videcoq, 1851-1853; E. Laboulaye,Questions co nst itutionnel le s, Paris, Charpentier, 1873.

O segundo período corresponde ao amadurecimento da teoria: A . Saint- Girons, M anuel de dro it const itutionnel, Paris, 1884; L. Duguit,Traité de droit const itution nel , Paris, Fontemoing, 1911,2 vol.; J. Barthélémy, “La dis- tinction desJois constitutionnelles et des lois ordinaires sous la monarchie de

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112 OS FUNDAMENTOS DA ORDEM JURÍDICA

mação da supremacia do texto constitucional que é visto comoo fundamento de toda a ordem jurídica. Sob a Constituição, acatedral jurídica se organiza emsistema', este, em seu significado filosófico, é a expressão jurídica de umaracionalidade ló-gico-formal; em sua eficiência prática, a ordem constitucionalé portadora denormatividade, de modo que as regras de direitoganham figura, no âmbito estatal, de modelos de diretividade.

A sistematização do direito

Em sua lógica intrínseca, a teoria constitucionalista implica referência à idéia desistema. Já que nosso propósito não é fazer a história da idéia constitucional, limitar-nos-emos a evocarrapidamente a importância que essa idéia teve na época revolucionária e pós-revolucionária para apreender nela, na esteira daFibsofia das Luzes, o lugar da exigência de sistematicidade.

O Código Civile a necessidade de ordenamento sistemático

Os trabalhos de Portalis, cuja missão era dirigir a Comissãoencarregada de preparar oCódigo Civil2, evidenciam claramen

Juillet”, in Revue du droit publique, 1909, pp. 5-47;Traité élém entaire de droit const itutionnel, Dalloz, 1926; M. Hauriou, P récis de droit constitutionnel, Sirey, l?ed., 1923; 2? ed., 1929; R. Carré de Malberg,Contribution à la théo-

r ieg én ém le de VÊtat, Sirey, 1920-1922 (reed. CNR S, 1962).O terceiro período dá lugar a perspectivas de evolução da doutrina: G.

Vedei, M anuel é lém enta ire de droit const itutionnel, Sirey, 1949; R. Capitant, Écri ts constitutionnels, Prefácio de Mareei Waline, Ed. CNRS, 1982; B. Chan- tebout, D ro it co nst itutionnel et Science p olitique , Economica, 2? ed., 1979; M. Troper, La sépara tion des pouvoir s et l'h isto ire const itutionnelle françai-

se , LGDJ, 1973; Ph. Ardant, D ro it consti tu tionnel et in st itutions p oli tiques, Paris, Cours de Droit, 1982-1983; L. Favoreu, L e Consti tu tionnalism e aajourd 'h ui. P ro p o sd \m nèo-c onst itutionnaliste, Economica, 1984.

2. J. E. M. Portalis, D iscours et r apports su r le Code civ il , Bibliothèque de philosophie politique et juridique, Caen, 1989. Os trabalhos de Portalis encontram-se nos 15 volumes de P. A. Fenet,R ecueil com ple t des travaux

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A ENCRUZIL HADA D O SÉ CU LO X X 113

te a necessidade de ordenamento sistemático do direito. Em primeiro lugar, não se pode esquecer que Portalis, a exemplo deCujas que foi um de seus mestres intelectuais, era particularmente sensível à exemplaridade do direito romano. NoCódigo de Justiniano, apreendera a importância das definições; admirava o rigor do método dos jurisprudentes; apreciava a lógicaargumentativa do juiz. No direito de Roma que, considerado emsua forma, é a seu ver “a razão escrita”3, reconhece ummodelo que o legislador não pode ignorar: o direito romano oferece,com efeito, classificações simples que permitem, sem entrarem todos os detalhes, esboçar um quadro universal do direito,tanto mais claro porque nele todas as matérias estão ligadas a princípios gerais, que lhe conferem uma unidade essencial. Emsegundo lugar, Portalis, muito mais jurista e administrador quefilósofo4, deplorava duramente as carências arquitetônicas e adiversidade do direito na França de seu tempo. Indagando-se

particularmente sobre as relações que o direito privado deveriamanter com o direito público5para adquirir a unidade que então lhe faltava, seu esforço consistiu em precisar o ofício decerta forma axiomático da lei: segundo ele, é preciso “fixar, emgrandes idéias, as máximas gerais do direito; [...] estabelecer princípios fecundos em conseqüências”6. Assim como Lamoignon

e d’Aguesseau, que ele cita elogiando-os7, atribuiu-se como finalidade uniformizar ocorpus jurídico francês8.A codificação não é, para Portalis, mera questão de exposi

ção. Com Cambacérès, que o auxilia, compreendem que é preciso “tanto precisão quanto método”9e que o trabalho deles não

G. G. Locré, La législa tion civ íle com mer ciale et cr im in el le de la France, Paris, 1827-1832.

3. Portalis, D iscours etrapports , p. 19.4. Embora Portalis tivesse escrito um Ess ai su r 1 'orig ine, l 'histoire et

les pro grè s de la littérature franç aise e t de la philosophie (que seu filho pub licou em 1820), seu ob jetivo não era construir uma obra especulativa.

5. Ib id ., D is coursp rélim in air e, p. 2.6. Ib id ., p. 8.7. Ib id ., D iscours deprèse n ta tion , pp. 97-8.8. Ibid ., D is cours prélim in aire, p. 18; D is cours de prèsenta tion, p. 98.9. Ib id ., D iscours prélim in aire, p. 5.

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114 OS FUNDAMEN TOS DA ORDE M JURÍDICA

deve consistir em “simplificar tudo” nem em “prever tudo”10:uma simplificação excessiva, que faça desaparecer, por exem

plo, as categorias profissionais, seria nefasta; quanto a “regrartudo e prever tudo”, essa é uma ambição impossível e, além disso, perigosa: pode anular a função do juiz" e eliminar o recurso à“razão natural”, o que imobilizaria o direito num sistema fechado e lhe impediria qualquer evolução. “Seria um erro pensar que pudesse existir um corpo de leis que provesse de antemão a todos os casos possíveis, e que ainda assim estivesse aoalcance do menor cidadão”12; aliás, “governa-se mal quando segoverna demais”13. Todavia, a racionalidade que a ordem jurídica exige destaca em primeiro lugar a coerência do conjuntono tocante aos princípios. Prende-se, como tal, à validade formal dos preceitos do direito. É por isso que Portalis pretendecolocar oCódigo Civil sob o signo da sistematicidade, desdeque a distingamos bem do “espírito de sistema”14, cuja exacer bação pode “destruir tudo” com sua rigidez e abstração. A sis

tematicidade, ao contrário, é inteligente e fecunda: a partir de princípios gerais claramente estabelecidos, permite que todasas disposições doCódigo formem um conjunto ordenado e coerente, já que os detalhes podem ser deduzidos logicamente dele.Para além do método, a sistematização do direito significa quea inteligibilidade do todo, mesmo quando ainda não está realizado, repousa na força dos princípios. OCódigo é, portanto,uma representação lógica do universo jurídico que segueenca- deamentos de razões e se pretende conforme com as exigências funcionais da razão. Por isso, oCódigo não deve - não pode- comportar zonas de sombra: ao operar a sistematização dodireito segundo critérios internos de racionalidade, Portalis o fazadquirir sua configuração ordenada e sua autotransparência.Tal fora, aliás, a ambição epistemológic.a de Montesquieu quan

10. Ibid ., p. 6.11. Ibid., p. 7.12. Ib id ., p. 10.12. Ibid ., p. 53.14 Ibid Discours di'prO sen ta tionp 94

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A ENCRUZIL HAD A D O SÉC U LO X X 115

do, retrabalhando incessantemente sua obra, estava em busca dos“princípios” que comandam o vasto edifício normativo das leis positivas, dando-lhe uma estrutura unitária condensada na idéia

de “relação”, tantas vezes percebida como enigmática no limiardoEspírito das leis. No entanto, a postura de Portalis tem uma especificidade:

o caráter arquitetônico da sistematicidade jurídica assume paraele a forma precisa de um código. Ora, em seu pensamento,código e sistema não são sinônimos. Com efeito, em seu esforçode codificação, Portalis alia racionalismo e realismo: pretendecom isso afastar-se da sistematicidade abstrata e teórica à qualele prefere a unidade substancial do mundo jurídico presenteconcretamente na pluralidade das instituições. Um Código nãodeve ser um esquema sem substância15. A objetividade do direito não pode ser desencarnada. Portanto, é na razão prática, cujalógica escapa ao idealismo abstrato, que Portalis confia. A sis-tematização de uma ordem de direito, mesmo escapando das incertezas do empirismo, é movida por uma preocupação de ordem unificadora que o senso prático não poderia abandonar.Por conseguinte, a sistematização do direito não ocorre no quadro hiperformalista de uma análise sistêmica, cujos esquemase modelizações têm, aliás, sentido e importância apenas para aciência do direito, não para oobjeto direito. Assim Portalis ateve-se à lógica substancial que pertence, não à representação cognitiva do direito, mas à própria fenomenalidade jurídica.

Constitucionalismo e ordem jurídica

A teoria constitucionalista, ao ordenar todas as regras dedireito sob a Constituição do Estado num todo substancial, tam

bém ele articulado, como oCódigo Civil, segundo encadeamen-tos de razões, e que é precisamente chamado deordem juridi-

15. Hegel diz algo parecido, Encyclo pèdie des s cie ncesp hiloso phiq ues. La Scien ce de la logique, trad. e anotado por B. Bourgeois, Vrin, 1970, § 9, p. 159.

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116 OS FUNDAMENTOS DA ORD EM JU RÍD ICA

ca, caracteriza-se necessariamente por sua homogeneidade e suaunidade lógica. Logo de saída, isso significa que nenhuma lei,e, de modo geral, nenhuma regra de direito, pode ser definidaem si e para si, isto é, isoladamente: ela pertence à organizaçãoinstitucional do espaço estatal.

E em torno dessa idéia que Benjamin Constant agrupou,com maior ou menor clareza, suas reflexões sobre a monarquiaconstitucional16. Meio século depois, Edouard Laboulaye, abordando explicitamente as “questões constitucionais”17, encontrava nas estruturas jurídicas da “república constitucional” omeio de conjurar a antinomia entre o autoritarismo e o liberalismo que divide o direito político. Evidentemente, Constant eLaboulaye atribuíam em primeiro lugar uma conotação políticaao “constitucionalismo” deles, cuja especificidade é evitar tantoo absolutismo monárquico como o despotismo da liberdade po

pular, ambos obstáculos para o centralismo do Estado moder

no. Mas seu programa político, posto a serviço da “causa liberal”18, que só pode desenvolver-se entre o autoritarismo estatale o individualismo anarquizante, implica o aclaramento dasestruturas da ordem jurídica que deve, segundo eles, definir edelimitar a autoridade do poder público. Por isso reconhecemque a condição primeira e fundamental da validade jurídica deum texto ou de um ato de direito está no dispositivo da Constituição do Estado. Nessa construção jurídica auto-organizacio-nal, nenhum enunciado de direito pode ser incondicional: a multiplicidade das regras legais e infralegislativas exprime a unidade primordial de uma ordem sistematizada19. E, já que todaregra, em virtude do princípio lógico de não-contradição ou, pelo menos, de compatibilidade, deve ser conforme às cláusu

16. Cf. B. Constant, Réjlexions sur le s Constitu tions, la dis tr ib ution des pouvoir s et le s garanties dans une m onarchie constitu tionnelle, 24 de maio de 1814; P rín cip es de poli tique, 1815; Cours de politique constitutionnelle, 1818-1819.

17. E. Laboulaye,Questions constitutionnelles, Paris, 1872.É f

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A ENCRUZIL HADA D O SÉCULO X X 117

las da Constituição, ela é necessariamente secundária em relação a elas e se define exclusivamente por sua inserção na arquitetura hierárquica de um conjunto que só se mantém em pédevido a sua coerência interna20. A lógica do sistema constitu-cionalista é uma lógica formal e auto-referencial: por sempreimplicar, em última análise e em virtude das inferências auto-criativas segundo as quais as decisões jurídicas são interdependentes, sua subsunção pela Constituição, ela responde a um imperativo de acordo e de congruência. Em conseqüência, uma das“regras de reconhecimento”21da legalidade de uma regra de direito ou de uma decisão jurídica é, como mostrou Kelsen, que “avalidade de uma norma não pode ter outro fundamento senãoa validade de uma outra norma”22; não poderia haver nenhumaincerteza quanto a ela. Em outras palavras, a validade da legalidade é a própria legalidade: não pode ser considerada válidauma regra que seja irrelevante em relação à lei constitucional23.

Esse formalismo mostra que, para a teoria constituciona-lista, o critério da legalidade não é outro senão a inscrição deuma regra ou a inserção de um comportamento no edifício jurídico que tem como pedra angular a Constituição. Assim, nãosó a ordem do direito é unitária, mas, devido a seu fundamentoepistemológico, apresenta-se como um sistemaautocriador. adeterminação da legalidade nada mais é que a aplicação dasregras do sistema: o legal (ou o ilegal) é a expressão (ou a contradição) dessas regras, poissó o direito fa z o direito. Deve-seevidentemente observar nesse ponto que, uma vez que o edifício jurídico se ordena sob a Constituição do Estado, a sistema-

20. “A decisão jurídica dev e sua significação axiológica essencial ao e sforço de coordenação e de sistematização característico do pensamento do

jurista ” (R. Po lin , La cr éa tion des valeu rs , 3? ed., Vrin, 1977, p. 236).21. Essa expressão é tomada de H. L. A. Hart, L e concept d e dro it , trad.

fr., Bruxelas, 19, p. 120.22. H. Kelsen, La th éori epure du droit, trad. Ch. Eisenmann, Sirey, 1962,

p. 256. (Trad. bras.Teoria pu ra d o direito, Martins Fontes, São Paulo, 1985).23. É claro que nessa concepção do direito, que é fundamentalmente

“positivista”, nenhuma conotação metafísica intervém: a interrogação sobre a essência do direito é substituída pela pergunta sobre a forma da juridicidade.

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118 OS FUNDAMENTOS DA ORD EM JURÍDICA

ticidade da ordem de direito leva a identificar no conceito deles o Estado e seu sistema jurídico: apenas o Estado é senhordos critérios da regularidade ou dos vícios das decisões e dosatos jurídicos; apenas o Estado, em razão dos critérios que determinou, é juiz da legalidade das normas: ele prevê que a ilegalidade de uma norma acarreta-lhe anulação e que a ilicitudede um comportamento acarreta sanção; portanto, apenas o Estado é a garantia do direito já que é sua fonte24.

Nesse ponto, é necessário não englobar num mesmo olhara realidade objetiva do ordenamento do direito sob os princí pios constitucionais e o conhecimento dessa ordem. Decertonão se pode negar a proximidade dodireito e da ciência do direito. Mas o primeiro ponto de vista é o do ju ris lador- legislador, administrador ou juiz - e, como tal, por depender da técnica jurídica, concerne ao direito em sua elaboração, ou seja,ao modo de atividade pelo qual as regras e as normas são determinadas em conformidade com o procedimento previsto, na

Constituição, pela distribuição e o exercício das competências.O direito é, nessa perspectiva, o produto de um saber e de umatécnica. - O segundo ponto de vista não é prático, mas cognitivoe teórico: depende da ciência do direito, para a qual o direito éobjeto de um conhecimento por elaborar, podendo este por suavez prolongar-se numa indagação filosófica de tipo reflexivo.

Um dos grandes méritos de Kelsen foi ter insistido na distinção essencial das duas perspectivas, fenomenalista e cogni-tivista. Por um lado, descartada qualquer referência metajurí-dica, odireito positivo é aquele que é prescrito pelos poderes públicos: jus est quod jussum est; procede principialmentedoEstado, na medida em que se identifica com a ordem jurídica, e se organiza emsistema devido às exigências intelectuaisdestinadas a garantir, sob a Constituição, sua não-contradição,isto é, a coerência interna do conjunto das regras constitutivas

24. Cf. Carré de Malberg,Contribution à la théo rie géné rale de 1’Etat, 1.1, pp. 61 ss.; G. Burdeau,Traité d e Science po litique , t. IV: Le statu t d upou- voir dans VÉtat, LGDJ, 2! ed., 1969, pp. 191 ss.; cf. também H. Kelsen, General Theoiy o f Law and State, NovaYork, 1945, pp. 181 ss. [.Trad.bras.

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A ENCRUZILHADA D O SÉ C U LO X X 119

de um direito nacional, aplicávelhic et nunc. Por outro lado, aciência do direito25, necessária para sua teorização pura, adotaexplicitamente uma atitude diferente: apreende o direito “porassim dizer, de fora” e, embora constitua uma “criação” intelectual, é “essencialmente diferente da criação do direito pela autoridade jurídica”26. Examinando por exemplo a obrigação que, para o indivíduo, se vincula à “abstenção do fato delituoso”,Kelsen apresenta como secundária, até mesmo desprezível, aatitude subjetivista - a dos advogados, diz ele - que, enfatizando a idéia de pessoa, consiste em buscar o interesse das partes;em matéria de obrigação, a responsabilidade do sujeito de direito só pode ser considerada, explica ele, por meio de uma atitudeque ele qualifica de “plenamente universalista e objetivista”27:com efeito, ele enfatiza oaspecto orgânico do direito positivo e, em cada parte do direito, capta a função do direito como umtodo: “O direito”, escreve ele, “é uma ordem e, portanto, todosos problemas do direito, todos os problemas jurídicos devem ser postos e resolvidos como problemas relativos a uma ordem.”28Como o direito positivo é geralmente um direito nacional, essa“ordem” depende do Estado, por sua vez definido como um sistema de normas (Sollnormen)29.

Por conseguinte, na ciência do direito impõe-se a célebreimagem piramidal da ordem jurídica. Nesse modelo estrutural,

25. H. Kelsen,Théoríe pu re du drojt( trad. Ch. Eisenmann, Dalloz, 1962, de acordo com o texto da segunda edição de 1960; a 1? edição data de 1934), p. 98.

26. Ibid., p. 99. Na economia de conjunto da teoria kelseniana, as proposições da ciência do direito ( Rech ts-sálze) são de fato normativas (Sollsütze), mas não obrigam nem autorizam ninguém a nada: podem tão-somente ser verdadeiras ou falsas; ao contrário, as normas determinadas pela autoridade

jurídica ( Rechtsnonnen, Sollnormen) obrigam ou habilitam os sujeitos de direito: como tais, não são verdadeiras nem falsas, mas válidas ou inválidas. Umas são irredutíveis às outras e “as proposições formuladas pela ciência do direito não são uma pura e simp les repetição das normas jurídicas determinadas pela autoridade jurídica”(ibid., p. 101).

27. Ibid ., p. 253.28. Ib id ., p. 254.29. General Theory ofLaw and State, Nov a York, 1 945, p. 18.

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A E NCRU ZILHADA D O SÉ C U LO X X 121

Ora, a ciência do direito permite a Kelsen pôr em evidência a lei decomposição - que é ao mesmo tempo o esquema dedistribuição - da pirâmide jurídica. A especificidade dessa ordemé regular por si mesma sua própria criação34: da regra constitucional à regra legislativa e ao regulamento administrativo, todacriação de direito é aplicação de direito e toda aplicação de direito cria direito. Portanto, quando, numa ordem jurídica, “a validade de uma norma só pode ter como fundamento a validade deuma outra norma”35, evidentemente superior a ela, é que a sis-tematicidade do edifício não tem falhas. Fica garantida assim,através da autodeterminação do direito - o direito se funda nelemesmo - , a unidade lógica da ordem jurídica. Nessa estruturaorgânica que comanda, até nos seus mínimos aspectos, a criação de suas próprias partes, há tamanha unidade da pluralidadeque essaordenação do direito chegou a ser qualificada de pan-normativismo. Nessa perspectiva monista que lembra aStufen- bautheorie da escola jurídica alemã36, “cada conhecimento, dizKelsen, tende à unidade, cujo critério objetivo é a ausência decontradição”37. A dimensão de racionalidade que caracteriza asconexões do sistema exclui de qualquer maneira a possibilidadede contradições, de conflitos de normas e de lacunas. Nessa pos

tura exprime-se o formalismo sintático da criação do direito.Segundo Kelsen, a lógica da ordem jurídica está longe dese esgotar na unipluralidade de sua forma: se, de fato, a ciênciado direito comporta a análise estrutural da organização lógicadas normas jurídicas, ela também comporta, como veremos maisadiante, o estudo de suas funcionalidades, de seus significadose de sua fundação última. Mas, para compreender a criatividade e a autoridade das regras jurídicas, é essencial, para o projetokelseniano, ter posto em evidência a forma sistemática do or

denamento jurídico e ter sublinhado, na sua estruturação hierár

34. Théoriepu re du droit, p. 96. 35 . Ibid ., p. 256 .36. Essa teoria da “formação gradual do direito” foi desenvolvida na

França por Carré de Malberg .37. Allgem ein e Sla ats le hre , p. 105.

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122 OS FUNDAM ENTOS DA ORDEM JURÍDICA

quica, o lugar eminente da Constituição estatal que, na qualidade de fonte formal de toda a ordem de direito, é a única quetoma possível o movimento continuamente criador do jus novum.

A racionalização do direito

A superlegalidade constitucional significa que, no Estado,a Constituição é a chave da lei e da regularidade das decisõesde direito. Entenda-se por isso que ela se impõe de modo coercitivo como fonte da legalidade e que, por èssá razão, tornãTn-teligível, desde seus princípios primeiros, todo o sistemãjürí-dico do Estado. Em outras palavras, elà permite pensar õ'sistema do direito segundo as categorias dà razãoTAdõütnhFcÕns-titucionalista corresponde, com efeito,’a uma preocupação deracionalização da ordem jurídica.

A regra constitucional, chave da lógica da ordem jurídica

A idéia do constitucionalismo, que pertence à doutrinamoderna, mergulha não obstante suas raízes longe no tempo.Lembremos que a questão jurídica do legicentrismo estatal deHobbes só ganhava sentido através da racionalização do poder político e de seu exercício38: a promulgação e a publicidade das

38. A o definir a lei e, de m odo ma is geral, toda regra de direito não como um “con selho”, mas como o “coma ndo im perativo” do poder soberano do

Estado, Hobbes se separava da tradição jurídica inglesa representada por Sir Edward Coke em seus Inst iiuies o f Law: ao Law o f England, dizia Coke em suma, refere-se bem menos ao sta tu le la w, que não tem plenitude de jurisdição, que ao co mmon la w, definido como “o costume imemorial do reino”. Com efeito, Hobbes, impressionado com o modelo da soberania “una e indivisível” desenhada por Bodin e, sobretudo, posta em prática na França de Richelieu (onde ele se refugiou), tomou-se um inglês do continente: o legicentr ismo do Estado não tem fina lidade prático-utilitarista; corresponde a um esfo rço da razão racional para construir as estruturas jurídicas do Estado e os con textos jurídicos da vida no Estado e para tomá -los tão intelectualmente transparentes quanto possível. _________

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ENCRUZIL HADA D O SÉ C U LO X X 123

is e decretos “expressos por signos adequados”, sua clarezabtida graças à exposição dos considerandos que os motiva

m, sua autentificação pela assinatura dos ministros e pelasancelas públicas, sua reunião em compilações oficiais, o arquimento das minutas dos atos administrativos e judiciários...o exigências de metodologia jurídica que provêm de uma innção de racionalidade39: é importante incutir uma coerênciaterna e uma generalidade unitária no direito do Estado e ornizá-lo num edifício sistematicamente ordenado. Já, segun

o Hobbes, o direito é construído como uma ordem artificialpotético-dedutivamore geometrico. No corpus das regras, cujaareza é acompanhada de obrigatoriedade, a potência calculaora e instituinte da razão toma-se uma capacidade prática degulação: a razão jurídica é normatizadora. Hobbes decertoo desenvolvia, nas formas, uma concepção constitucionalis-da ordem de direito. Mas seu cuidado com a racionalização

a unificação da esfera jurídica era tal que, sob a autoridade suema do Estado-Leviatã, a razão impunha irrevogavelmente

ma conseqüência: ninguém pode escapar da regra, já que todaontravenção submete imediatamente o contraventor a uma outragra, punitiva, pertencente à mesma ordem de direito. A racio

alização do direito lhe confere sua força imanente40.

39. Cf. Hobbes, Lévia than, cap. XXVI.40. O pensam ento revolucionário, em seus ímpetos racionalistas, mani

ta uma verdadeira paixão político-jurisladora. Em 1790, o deputado Romme ou em Paris, no faubourg Saint-Antoine, oClub des nom ophiles, cuja egé-

foi Théroigne de Méricourt. O Journ al du Club des Cordeliers, cujo priiro número leva a data de 23 de abril de 1790, foi o órgão oficial daSoedade dos dir eitos do homem e do cidadão; o jomai-mural dos girondinos

afixado com profusão a partir de novembro de 1792 nas ruas de Paris e s grandes cidades; La Bouche de Fer, em 1790 e 1791, o P ublicis le de la publique française dans l 'ombre de M arat (1793), o Journ al d 'instruction

c ia le dirigido porC ondorcet e Síeyès... são alguns dos jornais revolucionás que exalam uma mistura às veze s explosiva de reflexão teórica sobre os

mas do contrato social, do progresso, da lei, dos direitos dos cidadãos... com ixão jurisladora. Nes sas folhas, notam-se as assinaturas estrangeiras de Tho-

as Paine e de Etta Palm, suficientes para indicar que as preocupações jurídis dos revolucionários franceses tinham atravessado as fronteiras. Outrosú scu los surgiram,-geralmente .em.Earis^e-muitas vezes anônimos: Élémen ts

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124 OS FUNDAMENTOS DA ORDEM JURÍDICA

Em tomo desse filosofema fecundo, a nomofilia que inva

de as últimas décadas do século XVIII impõe às regras dedirei-to uma estrutura lógica e hierarquizada que, de patamar em patamar, determina-lhe ò funcionamento e a existêricTáTpois só asforçás constituintes è organizadoras da razão garantem a legitimidade dàlègàlidadée dàjíiridicidade. Sem dúvida, os consti-túintes pensavam inicialmente, num projeto fundamentalmente político, em combater o absolutismo e a arbitrariedade régia.Mas, em seu otimismo jurídico, lançam um desafio simultaneamente às figuras da transcendência e às vertigens da espontaneidade natural: contra o poder pessoal, contra o direito divino, contra a ordem natural, afirmam a ordem racional docor-

pus das regras de direito e atribuem ao Estado do cálculo, cujosoberano poder provém do contrato social, a pesada e sublimetarefa de se constituir, sob a Constituição, como desejara Rousseau, em instituidor de justiça e de liberdade.

de dro it publique à l'usage de Messieurs les députés aux éta ts généraux de France (s.l.n.d., 1791), Exposé des prin cipes de droit publique (s.l.n.d., 1789), Mém oire à consulter, p roposè à tous les publicis te s de VEurope, sur le pouvoir et les opérations de VAssemblée nationale (s.l.n.d.). Outras brochuras levam os nomes de Daunou, Duquesnoy, Lakanal... Assim com o os longos trabalhos preparatórios da Decla ração dos direitos do homem e do cidadão relatados, ainda

que imperfeitamente, nos Archives parlementa ir es (Madival e Laurent, 1? série, t. 8, Librairie administrative Paul-Dupont, 1875), essa intensa floração de textos prova a efervescência que as questões de direito suscitam.

A esses jornais e opúsculos deve-se, é claro, acrescentar a grande fartura de tratados de legislação que surgem no último quarto do século. Entre os mais notórios, mencionamos: Mirabeau, L 'a m i des hommes ou Tra ité de la

popula tion, 1756; S. N. H. Linguet,Traité des lois civiles, 1767; Mably, De la législation ou príncipes des lois, 1776; G. Filangieri, La Science de la lé-

gis la tion, 1780-1788; J. Bentham, In troduction aux principes de m orale et de législation, 1789...

Diderot e Rousseau queriam que os homens fossem “armados com le is”; no final do século XVIII, o discurso político consagra oficialmente o ímpeto filosófico que pretende dar ao direito a figura de uma ordem racionalmente elaborada e totalmente submetida à autoridade da Constituição.

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A EN CRUZILH AD A D O SÉCU LO X X 125

A Declaração dos direitos de 26 de agosto de 1789, emseu artigo 16, é explícita: “Qualquer sociedade na qual a garantia dos direitos não está assegurada nem a separação dos poderes determinada não tem Constituição.” Em outras palavras, no

círculo intelectual da Revolução Francesa, a Constituição é efetivamente, na sociedade civil e mesmo quando a Declaração glorifica “os direitos naturais” do homem, o fundamento dodireito público e do direito privado. Há no direito do Estadouma supralegalidade constitucional com a qual os atores do momento - Mounier, Sieyès, Condorcet, Rabaut Saint-Etienne,Custine, Roederer, Marat -, apesar das controvérsias e das opiniões diferenciadas, acabam por concordar. Segundo Mirabeau,apenas a Constituição permite, saindo das “abstrações do mundo intelectual” e da “legislação metafísica”, retomar ao “mundoreal”41. Em todo caso, os debates da Constituinte revelam a preocupação de inserir o direito positivo do Estado francês, habilitado a proteger em cada indivíduo seus direitos naturais e im prescritíveis, no âmbito de uma racionalidade formal. A esperança jurídica está no apogeu: as regras de direito, sob a Constituição, serão, no futuro, os instrumentos do progresso político,social e ético. Porque, como declara La Fayette, “o ato constitucional é a lei das autoridades constituídas” - idéia consagrada pelaConstituição de 1791 em seu título I: “Disposições fun

damentais garantidas pela Constituição” -, o constitucionalismo,em sua dimensão jurídica, desde então parece ser, para todoum povo, o motor de seu destino.

Coube às Assembléias Revolucionárias francesas conceder à idéia de Constituição um lugar central no edifício do direito estatal. Muito rapidamente, esse esquema constitucional foiadotado pelos Estados da Europa para os quais o texto soleneda Constituição, na medida em que fixa às regras relativas aofundamento e ao exercício do poder político, pode passar42por

41. Courrier de Provence, 26-27 de agosto de 1789, n? XXXIII, citado por Stéphane Riais, apresentação da D ecla ra ção dos direitos do ho mem e do cidadã o, Ha chette, “Pluriel”, 19 89, p. 316 , n. 213.

42. N a verdade, as coisas não são tão simples p ois nem todos os países têm Constituição escrita (a Grã-Bretanha é o exemplo típico) e ainda assim possuem um sistema jurídico.

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126 OS FUNDAMENTOS DA ORDEM JURÍDICA

cepa de todos os enunciados jurídicos. A Constituição de fatofixa a distribuição dãs competências dos diferentes órgãos doPoder: é ò estatuto matricial da institucionalizaçãoqilè~, material

mente, estende-se a todos os campòs da vida social. Percebe-senisso, de imediato, a importância do aspecto form al do constitucionalismo: uma lei ou um enunciado de direito só são válidos sesão congruentes com o dispositivo da Constituição, que ganhaassim valor de “lei fundamental”43. Do ponto de vista político, a Constituição é portanto uma proteção contráosriscos de ar- bitrariedade ’e de absolutismo que acompanham como umasombra a individualização do Poder. A Constituição é garantiados direitos e das liberdades. Ao distinguir a possedoPoder deseu exercício, ela indicà que, em conformidade com o procedimento previsto pela Constituição, o poder dos governantes só étal por causa da investidura que receberam e que, em conseqüência, nada tendo de um direito subjetivo de propriedade, ele só pode ser exercido dentro do respeito às regras determinadas pela Constituição: qualquer outro comportamento é prevaricação. Do ponto de vista jurídico, a supremacia da Constituiçãoé a característica dõ que-se chama~o~“Estãdóde direito”, não só

porque ela exclui a arbitrariedádè mdividüãl dós governantes,mas porque, por comandar a processualidade interna da ordem jurídica, firma-se também como critério de sua validade. Porconter as “razões seminais do direito”, é ao mesmo tempo aregra de inteligibilidade e a regra de validade do sistema jurídico, cuja racionalidade implica o abandono de qualquer critério normativo exterior. A Constituição é verdadeiramente “a regra superior”, cuja inobservância provoca a nulidade dos atos

jurídicos. Ocupa, aliás, um lugar tão eminente num sistema jurídico que, no espaço teórico que elas determinam, muitas sãoas Constituições que prevêem a anulação das regras inconstitu-

Scionais e a sanção penal dos atos ilícitos; geralmente também

43. Isso explica, na atualidade, o controle da constitucionalidade dos atos dos órgãos do Estado e, particularmente na França, a criação, em 1958, de um órgão jurisdicional, o Conselho Constitucional, cuja função é estatuir a esse respeito.

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ENCRUZIL HADA D O SÉCULO X X 127

revêem os procedimentos que serão empregados por ocasiãoe uma eventual “revisão” do texto fundador.

autonomização do direito sob a Constituição

Kant, que compreendeu perfeitamente a necessidade daubsunção do “direito privado” no “direito público”, a fim deansformar a “provisoriedade” de sua naturalidade em “peremp-riedade”44, viu, ao mesmo tempo, no “republicanismo” a sobenia da lei suprema. Embora em sua obra raciocine como filóso

o a fim de apreender as condições de inteligibilidade do direito,o passo que o jurista - diz ele - é um praticante, um profissionalue tem de “remeter às leis de um certo país, a uma certa época”45,eixa perceber em sua análise a concepção da ordem jurídica aartir da qual ele conduz sua indagação crítica legitimadora.

Na ordem jurídica, cuja pedra angular são as leis constituonais, o importante para ele é decifrar a não-subordinação doireito à ética: direito e moral são formalmente distintos a talonto que “mesmo um povo de demônios” poderia - até mes

mo deveria - viver sob uma Constituição. Esta se impõe a qualuer regulação jurídica da sociedade e sua observância é omperativo categórico da razão jurídica46. A conseqüência é clara:

direito de resistência é uma contradição nos termos47. Assim

44. Kant, D octr in e du d ro it, § 15. Embora não seja um positivista, Kant redita que cabe ao direito público fundar a juridicidade do direito privado:

or isso, no plano do direito privado natural, a propriedade é uma simples osse, antejurídica(DD, § 1); só se tomará direito de propriedade, portanto utenticamente jurídica, garantida pela lei(DD, § 8), no estado civil. “Todo reito depende das leis”, escreve Kant emThéorie et pratiq ue (trad. Guillermit, rin, 1967, II, p. 36).

45. Kant, D octr in e du dro it , Introdução B, Vrin, p. 103.46. Ibid ., § 49.47. Ibid ., § 49 e Rem. geral, pp. 202 e 204. Sublinhemos que, embora

“direito de oposição” - ou, melhor, o direito da oposição - seja uma das racterísticas dos regimes democráticos e liberais, não deve ser confundido

om a insubordinação, a desobediência civil e a rebelião, que são atos de re-stência contrários ao direito. —. _ _______

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A ENCRU ZILHADA D O SÉCULO X X 129

Poder-se-ia portanto dizer que o constitucionalismo é umamaneira topológica de considerar o edifício do direito positivo.Levanta-se no entanto a questão de saber de onde procede a nor-

matividade de que é portadora toda regra jurídica.Para responder a essa questão, é necessário observar comoa tese constítucionalista foi recebida no pensamento jurídico

pós-revolucionário. Ninguém poderia contestar que os juristasdo século XIX preocuparam-se com questões processuais queos constituintes, em sua obsessão política de liberdade, não tinham debatido. Contudo, levada pela história - asConstituições se sucedem ao ritmo dos governos: 1791,1793,1795... e o exem

plo americano adquire cada vez mais prestígio retransmitida

por Portalis e Fenet no momento da redação doCódigo Civil, logo depois defendida por Demolombe, Bugnet e pelaescola da exegese que, prendendo-se à letra da lei, destacam a supremacia da lei constitucional colocada no topo da pirâmide jurídica, a idéia constítucionalista assume na doutrina a envergadura de umanorma fundadora. Com efeito, do ponto de vista

político, ela varre a noção de poder pessoal e, firmando-se comoa fonte da personalidade jurídica e do poder do Estado, defineo estatuto orgânico do Poder. Estabelece, portanto, a ordem ju

rídica do Estado. Em conseqüência, do ponto de vista jurídico, ela é não apenas o fundamento da existência e da forma do Estado, mas o princípio de sua auto-organização. Aliás, essa noçãode auto-organização pode ser compreendida, como costumavam fazer os homens da Revolução, em seu sentido material, enesse caso corresponde ao conteúdo docorpus das leis e dasregras de direito, que é “determinado” de acordo com a “vontade geral”; também pode ser compreendida em sua acepção formal, e nesse caso as leis constitucionais são, como dizia Sieyès,leis “fundamentais”, de modo que os corpos constituídos, cujaexistência e competência ela determinou, não podem modificar suas disposições: é “fundamental” por ser a mais supremade todas as leis. Portanto, devido à sua supralegalidade, a Constituição define as autoridades legais, organiza suas competências e comanda a hierarquia das regras de direito. Pode-se portanto dizer, por um lado, que a racionalidadeteórica introduz

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130 OS FUND AMENTO S DA ORD EM JURÍDICA

no edifício jurídico uma exigência de ordem e de método a serviço da unificação docorpus das regras do direito. Os debatesconstitucionais e os trabalhos preparatórios doCódigo Civil eram

; claros a esse respeito: “Que nossos inimigos tremam”, escreviaPortalis, “ao ver mais de trinta milhões de franceses, outroradivididos por tantos preconceitos e costumes diferentes, consentirem solenemente os mesmos sacrifícios e se unirem pelasmesmas leis.”56As discussões parlamentares ao longo das quaisse preparou aConstituição de 1875, bem como, mais perto denós, os trabalhos do Comitê Consultivo Constitucional para aelaboração da Constituição da 5a República, são, nesse senti

do, exemplares: neles a lei é apresentada como a expressão davontade nacional oriunda do contrato racional sem o qual nãohaveria Estado. No mesmo sentido, Hegel tinha deplorado,num texto de juventude, que a Alemanha, privada dessa racionalidade constitutiva da política e do direito, já não fosse umEstado57. Por outro lado e sobretudo, constata-se, por meio do movimento da história e da marcha das idéias, que, sob a Constituição do Estado, o direito manifesta uma racionalidade prática. Porque a normatividade jurídica é repleta de eficiência ecabe à razão incutir-lhe uma virtude reguladora, o problema consiste em traçar o caminho pelo qual ela anima o sistema das regras do direito.

A normatividade no edifício constitucional

Acabamos de ver que uma das características essenciais

da teoria constitucionalista é reconhecer na regra de direito,desde o texto constitucional original até o regulamento administrativo ou a decisão jurisdicional mais pontuais, uma força

56. Portalis, Discours et ra pports , Éd. Joubert, Librairie de la Cour de Cassation, 1844, p. 302.

57. Hegel, La Con st itution de 1'AIlem agne (1800-1802), trad. fr., Édi-tions Champ libre, 1974, p. 25. Na Alem anha , a centralização administrativa, que se manifesta através da competência dos agentes do Estado, está em via

de desap arece rá Estado está prestes a morrer. - : —

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ENCRUZIL HADA D O S É C U LO X X 131

peratória indiscutível já que a coação é o critério do direito.m cada patamar da pirâmide jurídica, a regra é portadora deever-ser: é um mandamento cujo enunciado, investido, expliitamente ou não, de obrigatoriedade, deve dar lugar à execução;uando menos, toda regra possui uma força de diretividade.

De fato, ela faz referência ao que é devido, isto é, a um comortamento que adquire forma de modelo de conduta em razãoe sua exemplaridade. Por conseguinte, ela se impõe como oânone de um tipo de comportamento, cuja inobservância imlicará uma sanção, prevista, aliás, na própria ordem de direito.

Assim, a regra jurídica, trate-se da lei, de um artigo do Código,e um regulamento administrativo..., ao enunciar o que deve ser,presenta-se como o que dá a medida da ação: é suanorma. Oto do legislador e, sob sua autoridade geral, todos os atos ju-isladores são, nessa perspectiva, atos prescritivos geralmenteitosatos normativos.

Deve-se evitar equívocos a esse respeito: a “normativida-e” deles não significa que, portadores de “valor”, eles tenhamma conotação axiológica. Significa antes que têm uma finaliade operatória e uma vocação instrumental: as regras de direio, entendidas em sentido estrito, têm uma funçãodiretiva. De

maneira geral, todo dispositivo jurídico elaborado sob a Constuição serve para dirigir as condutas humanas. Porque guia embasa os comportamentos em matéria de comércio, de proriedade, de impostos, de educação... ele é dito “normativo”:erve de orientação para as condutas. E o que ensinam as tesese Carré de Malberg e de Kelsen.

As teses de Carré de Malberg e de Kelsen

Nesse esquema normativo, o dever-ser não tem nenhumaelação com o ser; o constitucionalismo não pode invocar umapção jusnaturalista. Corresponde em grande medida ao inte-

ectualismo e ao voluntarismo herdados da Filosofia das Luzes;

partir daí, impregnado de idealismo, pressupõe a irredutibili-ade do que deve ser ao que é. Ignora as perspectivas da onto

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132 OS FUNDAM ENTOS DA ORD EM JURÍDICA

logia. Por conseguinte, o caráter normativo das disposições legais ou infralegislativas inscritas sob a Constituição não pode

pretender identificar-se a uma verdade objetiva. Assim comouma regra de direito não é, como observaram Weber e Kelsen, boa ou justa em si, tampouco é verdadeira ou falsa. Assimcomo tira a validade de sua máxima apenas de sua situação naordem positiva manifesta na Constituição original, assim tam

bém tira sua operatividade apenas da vocação instrumental ediretiva que ela adquire, no nível que lhe é próprio, sob a norma

constitucional. Esse normativismo constítucionalista - insistamos nisso - nada tem de uma perspectiva axiológica; ao contrário, é eticamente neutro. Por sua lógica própria e em virtudede sua independência em relação a toda metafísica (ontologia eaxiologia), é um positivismo jurídico exemplar. Sendo sua textura alheia a qualquer transpositividade, a legalidade e a juridicidade só adquirem sentido no seio da lógica de não-contradiçãoque caracteriza todo o sistema. Como mostrou Carré de Malberg,que leva à perfeição o esboço do constitucionalismo, na ordem

jurídica ordenada sob a lei constitucional, significado jurídicoe formalismo se unem e se confundem para dar normatividadeà regra.

Resulta daí que o fundamento da juridicidade se identificacom o fundamento da validade das normas no seio do sistema.Portanto, só pode ter um caráter formal: em outras palavras, avalidade de uma norma não responde à questão de saber qual éseu “valor”; sua razão de ser encontra-se na norma do patamarsuperior com a qual ela deve ser congruente tanto no que se refere ao seu processo de promulgação como no que diz respeitoao seu conteúdo. Em última análise, portanto, o que funda avalidade jurídica remonta, passo a passo, à própria Constituição.É por isso que, nesse esquema, a filosofia do direito se articula

necessariamente com uma teoria do Estado. Afastemos, porém,qualquer mal-entendido: isso não significa que as bases volun-taristas da ordem jurídica designam a vontade de poder arbitrária e ilimitada do Estado: assim como diz R. Carré de Malberg,o Estado “não pode permitir-se tudo” porque “a Constituição

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A ENCRUZILHADA D O S ÉC U LO X X 133

co”58. Quer se trate do “direito primário inicial”, composto pelas leis que, emanantes do órgão representativo que é o Parlamento, são marcadas pela chancela do poder soberano, quer setrate do “direito secundário derivado do precedente”, o direitosó tem existência e validade normativa em virtude “das com

petências atribuídas pelos órgãos representativos às autoridadesque exercem função executiva”59. Isso quer dizer que ele sem

pre se enraíza na lei constitucional fundamental do Estado.Além disso, a norma não pode ter nenhum caráter absoluto, pois,em outros sistemas jurídicos possíveis, outros critérios do Estado poderiam determinar a normatividade da regra positiva60.

Abordando o mesmo problema de outro ponto de vista - particularmente por meio da crítica da teoria sociológica do Es

tado61- , Kelsen estabelece a unidade do Estado e do direito62. No monismo kelseniano, o próprio Estado é uma ordem jurídica: “Não há conceito sociológico do Estado ao lado de seuconceito jurídico.”63Em outras palavras, o Estado é e nada maisé que a “ordem jurídica” das condutas humanas. O Estado e osistema do direito não podem ser dissociados nem distingui-

58. Carré de Malberg,Contribution à la théorie gèné rale d e lÉ tat , 1.1, pp. 232 e 241.

59. Cf. Carré de Malberg,Confrontation de la théorie de la formation du droit p a r degré s avec le s id ées e t le s in st itutions consacrées p a r le dro it p osit if fr a n ça is re la tivem ent à sa fo rm ati on , Sirey, 1933, p. 161.

60. Carré de Malberg,Contribution, 1.1, pp. 1-2, nota 1: “A idéia geral que o jurista dev e ter do Estado depende dos dados positivo s fornecidos pelo direito púb lico em vigor.”

61. H. Kelsen, D er so ziolo gische und d e r ju ris ti sch e S ta ats begrif f kri- ti sc he Unter sa ch ung des Ve rhãl tn isses von Sta at undRech t, 2? ed., Tübingen, 1928; reimpressão Scientia Verlag, Aalen, 1981;General Theory o f Law and State, Nova York, Russell and Russell, 1945, pp. 181 ss.; cf.Cahiers de ph ilosophie politique et juridique, n? XVII: La pensée p o li tiqu e de Han s Kelsen, Caen, 1990.

62. H. Kelsen,General Theory o f Law an d Sta te , p. 188. Essa idéia já é expressa em termos muito claros num artigo de 1911, “Über Grenzen zwis- chen juristischer und soziologischer Method e”, W RS(D ie Wiener Rechtstheo- ri sche Schule. Ausg ewâhlte Schr iften vo n H ans K elsen), de A. Merkl e A. Verdross, 1.1, pp. 3-36; cf. tambémThéo riepure du droit, pp. 378 ss.

63. General Theory of Law and State, p. 189.

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134 OS FUNDAM ENTOS DA O RDEM JURÍDICA

dos: seu conceito unitário corresponde à “idéia” que orienta asações do homem na comunidade jurídico-estatal. Por isso, pela boa e simples razão de que “não pode haver mais de um con

ceito do mesmo objeto”, toda concepção de tipo dualista quesepare o Estado e o direito é logicamente impossível. Portanto,o conceito de Estado só pode ser um conceito jurídico. As pro priedades que ele conota só são pensáveis enquanto “propriedades de uma ordem normativa ou de uma comunidade constituída por tal ordem”64.

Nessa idéia encontra-se o ponto nodal da teoria kelsenia-na, o ponto para o qual convergem todos os argumentos queela desenvolve: se é verdade que o Estado se caracteriza como poder soberano65, isto é, como essa autoridade que, superior66aos indivíduos, impõe-lhes obrigação, a soberania só é conce bível em termos de normatividade67. Além do mais, é impossível compreender um eventual conflito entre o Estado e um indivíduo caso se faça referência à natureza sistemática da normatividade do poder estatal: qualquer conflito entre um indivíduoe o Estado supõe uma distorção entre a vontade ou a condutadesse indivíduo e o sistema das normas estatais, ou seja, o an

tagonismo entre o queé e o quedeve ser (the is and the ought). Aliás, caso se considere o Estado como uma sociedade politi

64. Ibid., p. 189.65. H. Kelsen, D as P ro ble m der Souverã nitãt und d ie Theo rie des

Vólkerrechts; Beitrag zu einer reinen Rechtslehre, 1920. Esse texto de 332 páginas foi reeditado em 1928, 1960 e 1981, o que basta para indicar sua importância teórica. Destaquemos a bela tradução italiana recentemente feita por Agostino Carrino, Milão, 1989.

66. Lembremos que o termo so bera nia é a transposição moderna do termo latino su per io ri ta s que designa um poder superlativo acima do qual, por definição, não há outro poder: e le é “superior”.

67. Norberto Bobbio escreve com muita pertinência: “O direito não é uma coleção de normas, mas um conjunto coordenado de normas (de modo que) uma norma nunca se encontra sozinha, e sim ligada a outras normas, com as quais forma um sistema normativo” (Teoria deJVordinamenlo giuri- dico, Turim, 1960, p. 6). Observe-se que essa idéia se encontra na obra de Joseph Raz,The Concept o f a Leg al System, Oxford, 1970, bem com o na obra

- d e Alchourron e Bulygin, N orm ative Sys tems, Viena e Nova York, 1970.

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ENCRUZIL HADA D O SÉ C U LO X X 135

mente organizada, fica claro que sua organização é uma orm cuja especificidade reside em seu caráter essencialmente

ativo, até mesmo coercitivo: com efeito, o Estado é uma ornização política porque ela dispõe do uso da força da qualm o monopólio que, juridicamente estabelecido, só pode serercido legalmente. O poder do Estado “é o poder que o direipositivo organiza: é o poder do direito, isto é, a eficácia do

reito positivo”68. A rigor, as noções deEstado e denão-direi- são incompatíveis: todo Estado é um Estado de direito ou,ra evitar confusão com a idéia do Rechtsstaat que a doutrina

emã do começo do século XIX contrapôs aoObrigkeitsstaat u “Estado autoritário”), deve-se dizer que ele é oEstado do reito. Falar de um Estado de não-direito é uma contradição:m estado de não-direito, não pode haver Estado69.

Esse tema permitiu avaliar o caráter inovador da concepo kelseniana: dizer que o Estado é o próprio direito basta pararrubar uma tradição secular que, indagando-se sobre a relaçãotre o Estado e o direito, postulava sua separação por princío e só podia exaurir-se no exame interminável da questão deber se o Estado está submetido ao direito ou se o Estado é oico jurislador. Na primeira hipótese, a filosofia do Estado

nha por axioma de base a idéia de um direitoa priori que,mo se vê nas teorias jusnaturalistas, só podia ser um conceimetafísico70; na segunda hipótese, sendo o Estado definido

68. Kelsen,General Theory ofL aw and State, p. 190. O Poder não é um

ômeno de dominação; só tem sentido quando exercido na forma jurídica órgãos que a ordem jurídica, sob a Constituição, designou e investiu de comências jurídicas.

69. Sobre essa incompatibilidade, cf. “Ueber Staatsunrecht”, 1914, sg ewãhheSchri ften vonH . K , I, pp. 957 -1057, e, compondo um díptico com e artigo, “Das Wesen des Staates”, 1926, t. II, pp. 1713-28, tr. de P. H.

voilot, inCahiers d e philosophie politique et juridique, n? XVII, pp. 17-34. se tema se afirma como uma constante da doutrina kelseniana; também se contra emThé oriepure du droit, pp. 378 ss.

70. A crítica do direito natural na obra de Kelsen não é apenas um dos

stulados metodológicos da teoria “pura” do direito. Manifesta, bem mais ofundamente, a sua desconfiança sempre expressa contra os pressupostos tajurjdicos ou metafísicos sobre os quais, desde Platão, a filosofia do direi

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136 OS FUNDAMENTOS DA ORD EM JURÍDICA

desde o princípio como o único apto a “determinar” o direito,

só restava à filosofia política aparentar-se com o positivismo jurídico e, por isso, foi tantas vezes acusada, de maneira apressada e com uma perfeita cegueira no que se refere às diferentesvariações da doutrina, de enveredar pela via que conduz ao totalitarismo. Kelsen percebeu claramente a inutilidade do conflito entre jusnaturalismo e juspositivismo, conflito a seu ver

perpétuo e sem saída já que nasce de um problema mal exposto. Kelsen substitui esse inútil dualismo por um monismo semreservas em que a Constituição se impõe como a base necessária da ordem jurídica estatal simbolizada pela célebre imagem piramidal dos patamares do direito71. Mesmo que Kelsen atri bua a esse modelo estrutural não tanto um valor de representação mas uma finalidade heurística, a idéia segundo a qual, nadinâmica jurídica, as regras de cada patamar são dominadas

pelas regras do patamar superior e dominantes em relação àsregras do patamar inferior ganha um significado de grandeimportância. Em primeiro lugar, ensina que as leis em formalegislativa bem como todas as regras infralegislativas estãosubordinadas às disposições constitucionais, o que, de um pontode vista técnico, confere grande destaque aó controle de cons-titucionalidade do dispositivo jurídico. Em segundo lugar, a ciência do direito, que descreve a organização das normas jurídicasnum sistema hierarquizado e funcional, ensina que a especifici

dade dessa ordem é que ela mesma regula sua própria criação72:da regra constitucional à regra legislativa e ao regulamentoadministrativo, toda criação de direito é aplicação de direito etoda aplicação do direito cria direito73. Assim se acha garantida,

to e a filosofia política se apoiaram, de modo mais ou menos sistemático; cf., por exemplo, “Naturrechts und positives Rech t”, 1927-1928 , in Ausgewãhlte Schriften von H. K., 1.1, pp. 215-44, e “Die Idee des NaturTechts”, 1927-1928,

ibid., pp. 245-80; inWhat is Justice?, “The natural Law Doctrine before the tribunal o f Science”, 1949, pp. 137-73; in Le droit natu rel (PUF, 1959), “Justice et droit naturel”, pp. 1-123; "Die Grundlage der Naturrechtslehre”, 1969, in Ôsterreichische Jurisienzeilimg , 1963, 13, pp. 1-37.

71. Théorie pu re du droit, p. 299.72 Ib id p 96

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A ENCRUZIL HADA D O SÉCULO X X 137

do ponto de vista filosófico, através da autodeterminação dodireito, a unidade fundamental do sistema: nessa estrutura orgânica que comanda, nos seus mínimos aspectos, a criação de

suas próprias partes, há uma unidade da pluralidade tal queessaordinatio do direito chegou a ser qualificada, sob as normas constitucionais, de pan-normativismo. Em todo caso, a dimensão de racionalidade que caracteriza as conexões do sistema exclui a possibilidade de contradições, conflitos entre normas e lacunas74. Sob a Constituição que, na ordem jurídica positiva, bem merece ser chamada debasic norm, o formalismosintático do sistema não tem falhas: é uma questão de procedimento na qual se manifesta a perfeita autonomia do direito. Em bora o movimento que procede da Constituição para as leis sejacontinuamente criador de jus novum, Kelsen considera que omovimento da ciência do direito que remonta de uma normainferior à norma superior, que é o fundamento de sua validade,não pode prosseguir eternamente: “deve necessariamente terminar numa norma que se pressupõe como a última e a suprema”75e que, a título de “hipótese lógico-transcendental”715, temvalor “fundamental”. AGrundnorm, que é precisosupor, paradeterminar uma ordem jurídica, não é uma norma material caracterizada pela evidência ou pela força de seu conteúdo: elatraduz a exigência racional de acordo com a qual se dá “a instituição do elemento fundamental das operações de criação dodireito”. Como tal, ela se distingue da Constituição no sentidodo direito positivo: esta sim é determinada. A verdade é que, noedifício jurídico estatal, a Constituição (positiva) é o ponto deancoragem de todas as regras estabelecidas no sistema, patamar por patamar, e no necessário respeito do dispositivo constitucional. Assim, Kelsen parece levar a tese constitucionalistaao seu mais alto nível de clareza lógica e filosófica; dá-lhe uma

cuja validade pode ser referida a uma única e mesm a norma fun damental formam um sistema de normas, uma ordem normativa”(ibid., p. 257).

74. H. Kelsen ,A llgem ein e S ta ats lehre, 1925, Berlim, p. 105.75. Théoriepure du d roit, p. 257.76. Ib id ., p. 266.

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138 OS FUNDAMENTOS DA ORDE M JURÍDICA

formulação lapidar: “As pessoas devem comportar-se do modoque a Constituição prescreve.”77

Objeções e respostas

Haverá quem objete que a sistematicidade racional do esquema constitucionalista é frágil e vulnerável. Alguns dirão queo próprio Kelsen não consegue, em sua teoria pura, eliminar totalmente a idéia de supraconstitucionalidade78, a única que poderesponder às questões de “por que e em que medida” é precisoobedecer às regras de direito derivadas da Constituição?79. Outros- e hoje em dia eles são muitos - enfatizarão que o direito, emsua aplicação, dá lugar tanto à interpretação das regras como, por outro lado, a procedimentos de revisão da Constituição.

Fica perfeitamente claro que a ciência do direito não podeeliminar o problema do fundamento do direito. O “drama” inte

lectual que Carré de Malberg teve de enfrentar no fim da vidaé bem conhecido. Também é preciso notar que a atitude kelseniana, no que tem de mais específico, implica a suposição deuma Urnorm, isto é, de uma exigência lógica transcendentalque indique de maneira evidente que a Constituição determinada é por si só insuficiente para fundar a ordem jurídica. Quanto à ordem jurídica internacional, ela precisa enraizar-se em princípios gerais e em costumes que, enquanto tais, não per

tencem a um esquema constitucionalista8". Trata-se, pois, deuma objeção séria: não é possível restringir a questão da fundação do direito à sua congruência simplesmente formal com anorma constitucional81.

77. Ibid ., p. 266.78. S. Riais, “Supra-constitutionnalité et systématicité du droit”, in

Archiv es deph ilosoph ie du dro it, 1986, p. 63.

79. P. Am selek, “K elsen et les contradictions du positivism e juridique”, in Archiv es de ph ilosophie du droit , 1983, p. 277.80. Kelsen,Thé oríepure du droit, pp. 424 ss.81. S. Riais, “Lapuissance étatique et le droit dans 1’ordre intemational.

Essai d’une critique de la notion usuelle de ‘souveraineté externe’”, in Archives de ph ilosoph ie du droit1987rpp7 212-8 "

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A ENCRUZIL HADA D O S É C U LO X X 139

Também é incontestável que, quando um órgão jurídicotem de aplicar o direito, ele precisa especificar o sentido das regras às quais se reporta. E faz isso com um procedimento inter-

pretativo que pode modificar a literalidade originária do texto.Seja qual for o nível em que a regra é tomada na ordem jurídica,ela não fornece uma regulamentação para este ou aquele caso particular, mas um modelo geral que deve ser aplicado a casos particulares mediante um raciocínio específico. Nessa passagemdo geral para o particular, a interpretação do texto pode mostrar-se necessária. Hobbes já assinalara a importância e a am plitude da interpretação das “leis civis”. Na movimentação dalegislação do Estado pode ocorrer, explicava ele, que a subsun-ção de um caso particular na regra geral não seja fácil de operar.Então é preciso recorrer à interpretação da regra - não aquelaque doutrinários, legistas ou glosadores podem elaborar emabstrato, mas aquela que o juiz, que tem de tratar da espécie, estáhabilitado pelo soberano a elaborar. Aliás, nessa operação ele éapenas o porta-voz do juízo geral da autoridade soberana: “Cabeàquele que detém o poder soberano julgar o que é conforme àrazão e o que não é”82. Num outro registro, o próprio Kelsen considera que a interpretação é “um processo intelectual que acom

panha necessariamente o processo de aplicação do direito”83,trate-se da norma legislativa, da Constituição ou de tratados internacionais. Existe com efeito, diz ele, uma “relativa indetermi-nação” do ato de aplicação do direito, uma “margem” dentro daqual pode intervir o poder discricionário do agente. Por exem plo, “se o órgão A decide que o órgão B deve deter o súdito C,o órgão B deve decidir, de acordo com sua própria apreciaçãodiscricionária, quando e onde realizará a ordem de prisão”8,4.

Quanto à revisão da Constituição, ela parece ser um pro

cesso de adaptação do poder de direito às exigências da legitimidade: portanto indica mesmo quando o procedimento de revisão é previsto pela própria Constituição, uma certa labilidade

82. Hobbes, D e eiv e, XIV, §§1 e 2.83. Kelsen,Théoriepure du droit, p. 453.84. Ibid ., p. 455.

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140 OS FUNDAM ENTOS DA ORDEM JURÍDICA

dos textos jurídicos. Sua flexibilidade decerto não designa a instabilidade do direito: num Estado moderno, seria impensável que

a Constituição não pudesse dar azo a modificações ou a emendas exigidas pela evolução das sociedades ou pela mutabilidadeda conjuntura; “as Constituições”, dizia Hauriou, “são um produto da história do direito”85. Mas, assim como a interpretação dostextos jurídicos, a revisão da Constituição é indicadora da impossibilidade de formalizar integral e definitivamente um sistema

jurídico.A impossibilidade de uma formalização total da ordem ju

rídica ou de uma autopoiese absoluta, bem como o abrandamento introduzido pelos procedimentos de interpretação das regrase de revisão da Constituição poderiam ser considerados, nessa

perspectiva crítica, indicadores da racionalidadeimperfeita so bre a qual repousam o formalismo e a sistematicidade da construção do direito numa perspectiva constítucionalista.

Tal objeção não poderia ser tomada levianamente.

Contudo, duas respostas se impõem.Por um lado, mesmo na mais intransigente doutrina cons-titucionalista, nenhum texto constitucional é apresentado como possuindo valor de axioma imutável. Mesmo quando a Constituição é reconhecida como base da ordem jurídica, também écompreendida como obra de entendimento e de vontade. Do ponto de vista filosófico, ela traz portanto as marcas tanto dasexigências do espírito humano - o que explica a importânciaque, mais ou menos diretamente, os autores sempre acabam atri

buindo a princípios gerais supraconstitucionais - como da fini-tude de toda obra humana - o que explica a necessidade de recorrer, em certos casos, à interpretação das regras e a seu rea

juste, segundo necessidades históricas ou sociais. A doutrinaconstítucionalista não tem a rigidez que seus críticos às vezeslhe atribuem.

Por outro lado, ea contrario, a elasticidade da ordem jurídica, mesmo considerando a observação precedente, não é ili

85. Hauriou, P récis de droit co nst itutionnel, 2? ed., Sirey, 1929, reed.

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A ENCRUZIL HADA D O S É C U L O X X 141

mitada e, como é prevista pela própria Constituição, de formaalguma significaria que existem falhas no construtivismo constitucional. Miiito pelo contrário, a relativa flexibilidade do edi

fício jurídico que ela embasa mostra que a doutrina constitucionalista admite uma certa mutabilidade do direito, pelo menosem determinadas circunstâncias e segundo um procedimentoestabelecido. Assim, a interpretação de uma regra de direito sóocorre, dizem os autores, quando se verifica a não-pertinênciado texto ou quando há, de maneira incontestável, um contencioso administrativo ou judiciário. Então, deve-se observar quea latitude de apreciação do agente não poderia abalar a hierarquia da administração ou da justiça: cabe apenas à autoridadesuperior, e não aos agentes subalternos, “determinar o que entralegitimamente na execução das leis”86. Mesmo esta não poderiaser considerada uma “fonte especial e independente do direito”. A interpretação dos textos, necessária para remediar umaindecisão ou uma lacuna da lei assim como dirimir um litígio,não pode contradizer o dispositivo constitucional fundamentalou, pelo menos, a intenção do legislador tal como ele a exprimiu. Portanto, embora o procedimento de interpretação confira à função administrativa ou jurisdicional certa esfera de autonomia, esta é estreita. A fórmula legislativa - isto é, os própriostermos do texto da lei - é a única que tem realmente força delei: pode seradaptada, mas não modificada. Portanto, no esquema constitucionalista, a interpretação das regras jurídicasna verdade só pode ocorrer no âmbito dos princípios formais daordem de direito positivo considerada. Os próprios textos sãoinalteráveis, a não ser pela via regular da legislação parlamentar: “O que é móvel, o que é dotado de vida própria, é o espíritocom o qual o juiz preenche as lacunas das leis”87. Numa pers

pectiva constitucionalista, a racionalidade do sistema proíbe aquilo que os anglo-saxòes denominam “o governo dos juízes”8S.

86. Carré de Malberg,Contribution à la théorie générale de lÉtat, 1920 e 1922, reed. CNR S, 19 62 ,1 .1, p. 520.

87. Ib id ., 1.1, p. 715.88. Na constitucionalidade ideal típica oriunda da Revolução Francesa,

as intervenções dos juizes em matéria legislativa ou executiva eram inclusive

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142 OS FUNDAMEN TOS DA ORD EM JURÍDICA

Quanto à revisão da Constituição, na maioria das Constituições, ela é prevista pela própria Constituição. Evoquemos,entre outros exemplos, o artigo 8 do texto constitucional de 25de fevereiro de 187589. Ele prevê ao mesmo tempo o órgão derevisão - são as Câmaras que detêm o poder de revisão - e o procedimento segundo o qual ela deve efetuar-se. Portanto, a revisão da Constituição, longe de introduzir uma divisão no constitucionalismo, demonstra, ao contrário, sem com isso fechá-losobre si mesmo e imobilizá-lo, a racionalidade do sistema.

É dentro dessa lógica de racionalidade que a superioridade da lei constitucional sobre a lei ordinária acarreta o controle

de constitucionalidade das leis por um meio jurisdicional: essecontrole, inicialmente estabelecido nos Estados Unidos paralimitar politicamente o poder do Parlamento, existe na Françadesde 1958: para além de seu sentido político, ele correspondeà dupla preocupação, teórica e prática, com a racionalidade unitária e homogênea da ordem jurídica.

consideradas um crime de prevaricação (Código Penal, art. 127 a 131); a interpretação das leis duvidosas ou insuficientes só podia ser feita por meio do recurso legislativo: ou seja, o juiz consultava o legislad or para que ele mesm o d issesse, caso necessário por m eio das “circulares legislativas”, seu modo de conceber a lei. Na verdade, ao contrário da doutrina que aceita a existência de uma obra pretoriana, no contexto prescrito pela Constituição a teoria revolucionária manifestava para com o juiz um a grande desconfiança pois e ste devia, em última instância, até mesm o nos caso s ob scuros, ap licar a própria intenção do legislador; cf. F. Gény ,M éth oded’inlerprétation en d ro itprivé , T. ed., 1919, 1.1, pp. 77-84.

89. Esse texto dispõe: “As Câmaras terão o direito, por deliberações separadas tomadas, em cada uma, pela maioria absoluta dos votos, seja es

pontaneamente, seja a pedido do Presidente da República, de declarar que cabe revisar as leis constitucionais. Depois que cada uma das duas Câmaras tiver tomado essa resolução, elas se reunirão em As sem bléia N acional para proceder à revisão. As disposições referentes à revisão das leis constitucionais, no todo ou em parte, deverão ser tomadas pela maioria absoluta dos membros que compõem a Assembléia.”

Com objetivos essencialmen te políticos, e a fim de respeitar o que eles chamam de balance o f convenience, os americanos também tinham previsto em sua Constituição diretrizes e padrões expressos pela rule o f reasonable- ness; cf. G. Tixier, “La règle de reasonableness dans la jurisprudence anglo- amcricaine", in Rev tte du-droit publique, 1956, pp. 276 ss.

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ENCRUZILHADA D O SÉC U LO X X 143

que acontecerá com a soberania antropologia racionalista?

Portanto, quando as regras de direito não têm outro atrito de validade senão sua compatibilidade com a supralegali-de das disposições constitucionais e quando, em conseqüêna, a positividade do direito esgota-lhe o conceito, fica claroe a dogmática construtivista da doutrina constitucionalista corsponde, pelo modelo de certeza estabelecido por seu esboçostemático, suas exigências de racionalidade e a positividade deu aparelho normativo, aos cânones da razão dos modernos: a

dem lógica, a transparência epistemológica, a neutralidadeiológica, que são as linhas de força do constitucionalismo,azem a marca do racionalismo do Iluminismo e de sua recepo no pensamento político-jurídico da época revolucionária,jos ideais iluminaram por muito tempo o mundo ocidental.

Mas, desde meados do século XX, assistimos a um questiomento, até mesmo a um “eclipse” da razão. A soberania da

ntropologia racionalista que culminava na doutrina constitu

onalista é, por todo lado, criticada: “Hoje, a teoria dos sisteas oferece às ciências sociais um conceito de crise.”90 Emome das necessidades éticas e do pragmatismo sócio-histórico,uitos são os que reivindicam “uma superação da legalidade”.

90. J. Habermas, Raison et légit im ité, trad. fr. de Legitim ationpro bleme Spãtkapitalismus (1973), Payot, 1978, p. 13.

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Ca pítulo II

As vias redutoras: o pragmatismo ético-social

Impõe-se, hoje, uma constatação: a concepção formalista do direito, que remete classicamente à racionalidade constitucional, está ameaçada por uma outra concepção do mundo jurídico. Esta depende menos da lógica que da prática: tudo se passa como se, no universo jurídico, o fa lo tendesse a se igualar ao

direito, como se o fundamento da juridicidade tivesse se deslocado da razão para a experiência, do universal para o singular./ O resultado é claro: o direito está sendo processado . Os princípios fundamentais de coerência sistemática e de hierarquia das normas que, na via do constitucionalismo, davam à ordem jurí

dica sua unidade e sua densidade, hoje estão sob suspeita. No próprio funcionamento dao r d e m jurídica constatam-se incessantes idas e vindas entre o direito e o fato. Dessa forma, um ordenamento jurídica tende a se caracterizar pela passagem áo fechado para o aberto, de modo que “a produção de seus elementos constitutivos, as normas jurídicas, depende da intervenção de agentes externos”1. Além disso, a idéia segundo a qua: cabe a órgãos constitucionalmente habilitados promulgar as regras de direito se encontra fragilizada, o que abala a. funda

ção do direito e sua natureza: sua fundação, pois já não é certo que a velha máxima Jus ex fucto non oritur conserve sua verdade e que seja o direito que cria o direito; sua natureza, pois o direito já não poderia apresentar-se como um corpus de re-

í. J.-QievaUier,“L’m h v juridique”. m ie droit en procès, CÜRAP, PUF,1984, p. 21. Por “agentes”, deve-se en tender, na frase citada, elementos ou fatores não jurídicos.

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146 OS FUNDA MENTOS DA ORDEM JURÍDI

gras, de categorias e de conceitos abstratos de alcance mais menos geral. A partir disso, a fisionomia do racionaiismo judico oriundo da Filosofia das Luzes francesas perde nitidez não pode ter a forma altiva e pura de uma ordem sistemátic curva-se e se flexibiliza'ao sabor de suas múltiplas e incesstes relações com seu contexto social: os fenômenos socia políticos, econômicos e históricos, ao intervirem como out tantos elementos determinantes na construção do direito e e sua aplicação, não só condenariam as regras jurídicas a urn mutabilidade e a transformações perpétuas mas modificaria

caráter da nomiatividade jurídica.;Depois de descrever rapidamente esse fenômeno do de

locamento atual da juridicidade, evocaremos, para além das anlises que ele suscitou na doutrina dos juristas e em certos fisofos. o significado de dissolução que ele indica.

O deslocamento das fundações do direito

Nossa época caracteriza-se de maneira flagrantelpela proliferação de leis e pela inflação da regulamentação jurídica^ primeir@ vista, poder-se-ia crer que esse fenômeno não é no e que ele dá continuidade ao trafeaiko legislativo começado duzentos anos pelas assembléias revolucionárias.; ele simplmente acentuaria a vontade de racionalizar, por meio de texto específicos e precisos, um número cada vez maior de condut humanas e de relações sociais. Mas, considerando as coisas mais perto, verifica-se quejesse fenômenode aumento do númro de leis e de alargamento do dispositivo jurídico é ainda ma

virulento porque, no âmbito da burocracia preseaíe, tem por corolário o inchaço da regulamentação administrativa: instruções circuiares, textos de aplicação... multiplicam-se de maneira tmerária. Modificando aquantidade das regras de direito, essa regulação excessiva modifica também aqualidade do direito, isto é, sua natureza e seu significado, portanto sua essência seu sentido.?

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A ENCRUZILHADA DO S ÉCU LO XX 147

As transformações do universo juríd ico

Quando, na onda das leis e das reformas de leis, certos textos são praticamente inúteis, quando outros adotam a aparência de projetos infinitamente examinados e modificados pelas Câmaras, quando as circulares ministeriais acumulam diretrizes que nem sempre são compatíveis entre si, torna-se impossível reconhecer nessa profusão de textos as características clássicas

de obrigatoriedade e de efetividade que se vinculam à natureza da ordem jurídica. A regra de direito ordena, proíbe ou habilite; ê prescritiva; exprime uma ordem, isto é, um comando; como tal. manifesta uma autoridade e possui um caráter de coação. Ora, a proliferação das normas dilui o efeito normativo do direito e, atenuando-lhe a força obrigatória, abre uma brecha peia qual podem penetrar não apenas regras ditas “de recomendações”, que são conselhos sem virtude imperativa, mas também a contestação, até mesmo a desobediência e a recusa.

Além disso, quando as prescrições jurídicas se multiplicam, elas se particulanzam; já não correspondem à definição clássica das regras gerais e impessoais que exprimem a racionalidade da vontade nacional. Por isso, no Estado-Providência que aumenta a quantidade deías para que provejam a tudo, saa desracionalização se faz acompanhar da influência crescerte de intenções politiqueiras ou de interesses de certos grupos de pressão. As regras jurídicas já nem sequer são alheias às pressões da opinião pública e deve-se convir que, atualmente, o le

gislador está particularmente atento à maior complexidade das relações sociais e sensível ao comportamento da opinião pública. Esse contexto muitidunensjona! é um fator de explicação da superabundância jurisiativa.

Ademais, a maleabilidade das intenções e das opiniões depende em grande medida da conjuntura política e, mais ainda, econômica. Conseqüentemente, os efeitos disso se fazem sen tir nas decisões de direito: são marcadas por uma mutabilida- de constante a tai ponto que a legalidade de um dia pode ser ?,

ilegalidade do dia seguinte. A instabilidade do direito, submetido à influência niovente dos fatos, pode ameaçar sua vocação de ordem.

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148 O S FUNDAM ENTOS DA OR DEM JURÍDICA

Tampouco se deve desconsiderar a extensão do fenômeno jurisprudência! sobre o qual se chegou a dizer que correspondia a “uma crise do princípio de legalidade’”. Quando nada, a administração e a jurisprudência fazem concorrência à regra legislativa, ao passo que o papel do legislador se ofusca diant da autoridade da burocracia e do crescimento do poder normativo dos juizes.

As bases do corpus jurídico hoje já não se deixam decifrar em termos de racionalidade ou de formalismo lógico. Aliás, a esfera do direito {pelo menos na França) não está isenta áe

contradições patentes ou potenciais. As ab-rogações e as transformações de que é objeto, operando-se numa cadência rápida demais, tornam-se intempestivas: pensemos, por exempio.vm reformismo que gangrena a instituição uni versitária na qual a ns- forma das reformas cria um mal-estar endêmico; mas a legislação fiscal, o direito do trabalho, o direito das empresas... sofrem dessa mesma febre, sintoma de uma tendência geral à instabilidade.

Assim fica claro que, na profusão galopante dos textos áe direito, legislativos ou regulamentares, um reformismo perma

nente lhes abala a ordem, o sentido e o alcance. O “principie de legalidade” que, na concepção constítucionalista do direftQ. era uma das vigas mestras da normatividade jurídica, desaparece diante da preocupação, prática ou tática, de mergulhar as raízes do direito na vivência cotidiana. Decerto não se ttsSa nem de substituir a racionalidade pela irracionalidade, nesi áe desencadear uma nova disputa, dessa vez entre os “modernos"’ e os contemporâneos; mas, em todos os níveis, o j-urislaífer, sem ser contra a razão racional, desvia-se de suas vias detfcià- vas para priorizar uma estratégia pragmática em que não foá

lugar para a generalidade, a impessoalidade e o rigorismo. Vemos multiplicar-se então os procedimentos ab-rogatórios - $®r exemplo, a anistia que, hoje em dia na França, ocasiona verdadeiros desvios do processo legislativo —e derrogatórios pmr

2. M. Van de Kerchove, “La crise du príncipe de légalite”, in La loi dami 'éthique chrêtienne, Bruxelas. 1981. pp. 76 ss.

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A ENCRUZILHADA DO SÉCULOXX

exemplo, os favorecimentos ensejados peias “isenções” moáã-reito fiscal contemporâneo invocam-se também procediffian- tos de um tipo novo como a negociação, o consenso, os regtíia- meatos transacionais, os compromissos... Com issonâ© se trata de introduzir na compreensão do direito nuanças ou variações de grau; mas de conferir à própria forma do direito m m

diferença de natureza. Com efeito, esses procedimentos não se inserem num processo aperfeiçoado de lógica suteuntíva;

fazem parte de umaética da discussão ou da negociação simbolizada pela imagem, freqüentemente utilizada, das “mesas- redondas”. Por trás dessas referências e desse símbolo, perfíla- se, mais ou menos bem compreendido, o tema filosófico da “comunicação” que se pretende uma das conquistas As fiiiá do século XX.

Seja qual for essa pretensão filosófica, à qual teremos a oportunidade de retomar, lembremos que Fran-çois Terré, paia explicar essas novas formas da juridicidade, propôs o concei® de “leis experimentais”. Nesse fenômeno jurídico, evideate sobretudo nas sociedades ocidentais avançadas - mas a faisíójis anda depressa e esse fenômeno não tardará a se expandir - manifesta-se um processo deinvasão do direito pe lo fato: os âaiW- tos da razão jurisladora ficam, dizem, mais flexíveis com o coe- taío com a experiência. Certos autores viram nisso uma '“cri® do direito”, portanto, a corrupção de seu conceito. Esse é bík

juízo de valor. Por ora, sejamos mais positivos: íim item o-«s a constatar que com a alteração (no sentido etimológico do tesae : tomar-se “outro”) dos fundamentas do direito, o diceito aéqsst- riu umafisionomiamais dúctil e mais flexível:é essenoveross©da oídem jurídica que mostram, por exemplo, as b is cadrm*. m

normas diretivas, as leis ditas de orientação, o direito mc&- menâacional... Ainda não nos pronunciaremos sobre o fâèo *fc saber se há nisso progresso ou retrocesso do direito. Cosiscatemos simplesmente que essa mutação comprova a evolução éa forma e do sentido da normatividade veiculada peias regras de

* Leis cujas disposições gerais devem seTvir <$econtexto para textt ys-ét aplicação.

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150 OS F UNDAMENTOS DA ORDEM JURÍDI

direito. Em seu corpus cada vez maior, parece que duas lógica diferentes acabam por sobrepor-se e, às vezes, entremear contradizendo-se: por um lado, alógica racional do constitu

cionafísmo, já que a lei constitucional conserva, em sua supe legalidade, uma supremacia de que é prova, no direito fran a partir de 1958, o controle de constitucional idade das leis onárias; e. por outro, alógica empírica de um pragmatismo cuja influência, sob a pressão dos fatos sociais, das reivindicaç éticas e dos arroubos da história, vem crescendo.

Importa portanto saber se a mutabilidade do direito maaife tou-se de maneira .repentina e imprevisível ou se, ao contrár a douftina jurídica tomava esse fenômeno plausível e explicá

O fenômeno de evolução, até de mutação do direito q acabamos de descrever em linhas gerais, atinge hoje em dia u amplitude impressionante e muitas vezes desconcertante. M na verdade, esse processo, por volta da década de 1930, já contrara uma explicação em diversas doutrinas jurídicas marcadas peia influência crescente da sociologia no campo d

ciências humanas.

Tentativas de explicação: as teses de F. Gény e de L. Dugm

Logo após o final da Primeira Guerra Mundial, o áeã François Gény, numa obra magistral extremamente comentad- Science et technique en droit privé po sitif 1914-19.25, 4 tomos insistia na impossibilidade de reduzir o direito a “regr formais” que, na prática jurídica, funcionariam como “téca cas”. Em .1899, em Mèthode d ’interprétaüon des sourees du dro

privé posit if (reeditado em 1919), ele já destacara a impossiblidade, em direito positivo, de asra rígorismo-formal e «fetira- guia, naesfera jurídica, dois elementos irredutíveis errtre si: “dado” e o “construído”. Corttrapondo-se à escola exegétic

3. Sem dúvida é preciso discernir vários períodos na escola tia exedominada primeiro por Bugnet e Demolombe; mas. em seguida. Aubry, Rauh,

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152 OS FUNDAMENTOS DA ORDE M JURÍDICA

ca” e corresponde ao conjunto dos procedimentos operaíónos - dedução, subsunção, raciocínio silogístico, que são muito meno necessários para a edificação do direito do que para sua aplicação. Quanto ao dado, fundamentai e irredutível, eie é objeto -de “ciência" e, como constitui a raiz do direito, sua erradicação é a própria dissolução do direito. Com certeza,essedado é mul- tiforme: é, em primeiro lugar, um dado “real” formado pelo conjunto das “condições de fato” que agrupam elementos físicos, psicológicos e sociais da existência humana; é, em seguida, um dado histórico, através do qual se fundiram, ao ponto de

ficarem indiscerníveis nele, regras e instituições veiculadas ao longo do tempo; é, enfim, um dado intelectual e ideal, feito das aspirações, esperanças e exigências espirituais do tomem. Mas o pluralismo desses elementos acentua sua eficiência: o daéo exerce sobre o fondo do direito influências que, embora diversas, são sempre incontestáveis. Portanto, segundo Gény, é a união áo dado com o construído que revela anaturezado direito.Co»efeito, por trás da ordem e da hierarquia formal das regrasáeum sistema de direito positivo, há uma realidade anterior e mais profunda que elas e que a promulgação, a compreensão, a ia- terpretação e a aplicação delas não podem desprezar6. É nesse dado qúe se apoia sua existência; é desse dado que tiram seu sentido, condição de sua aplicabilidade: a “natureza das coisas”, eis “os dados fundamentais do direito”.

Assim, a letra dos textos do direito não procede de raaa razão pura que funciona a p rio rcnm é obra de um “legislador racional” cujalógicaassentaria apenas no princípio de nâ©- contradiçâo. Sem chegar a afirmar que “uma norma jurídica fà está presente, ainda que latente, no grupo social” e que a regra ée

direito seria apenas “sua cristalização”7, diremos que, segundo

6. É por isso que F. Gény, pregando a livre interpretação do direito, esperava do juiz que ele preenchesse as lacunas da lei ou os silêncios dos textosnão mediante um processo de dedução lógica, mas procmado adaptar-se. àssituações reais e às necessidades ou exigências da sociedade do momento. Nãopsrevira os exeessos ou descontroies de tal proposta.

7. J. ChevaMier, art. citado in Le droit en procès\ p. 22.

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A ENCRUZILHADA DO SÉCULO XX m

E Gény, a norma, cuja juridicidade decorre de sua inserção BffiSBâ ordem positiva de direito, é em grande parte, quanto a seu * - teúdo e quanto a seu v&ior, determinada por fatores sociais. £ nesse sentido que, hostil ao artificialismo característico das doutrinas da modernidade filosófica, Gény prenunciava as teo rias alemãs da Natur d a • Sache, segundo as quais a elaboraçà© do direito depende estreitamente, não da “natureza das coisas51ã qual se referia o jusnaturalismo de dimensão cosmológica dos

antigos, mas dos dados de feto que a vida social cotidiana s®a- nifesta numa contingência praticamente impossível de reduzir.

G deão Léon Duguit (1859-1928), na vertente sociologí- zante de seu pensamento, tirou grande proveito das sugestões e análises de Gény. Em seuTraité de droii constitutionml *, expõe longamente, com um realismo brutal que contrasta com o horizonte idealista das teorias constitucionalistas cujo prestígio, na França da III República, ainda é grande, que uma norrna juridksja, longe de ser o resultado do decisionísmo estatal - tem itosr-sr da Willenstheorie a le m aeü i teoria francesa da “autonomia & vontade”, impregnadas de "metafísica” e, portanto, desprovidas de cíeritifíddade nasce da transformação de uma norma social, seja ela ética ou economica. Certamente “nao existem "õuSàK [realidades jurídicas] senão as proibições e as ordens sancáosa- das pela coação que a lei dirige aos indivíduos e aos ageííses públicos”’. Mas não se deve ver nisso a expressão de um poder público ou de uma vontade geral pela simples razão de qae

eles “não existem”10. Na verdade, “o pretenso dogma da soberania nacional é uma hipótese gratuita, e, além do mais, um postulado inútil”" para o qual, ao contrário do que acreditaram Hobbes e Rousseau, o contrato social não fornece justificação nenfeu- ma: “é um circulo vicioso explicar a sociedade pelo conèraía, pois a idéia de contrato só pôde nascer no espírito do toffltss

8. L. Duguit, Traité de droit constiíationncL I? ed., 191.1: 2? cd., 3*924:3? ed., 1927, Paris, Fontemomg-

9. Traité, 3?ed:, t. 1, p. 445-10. Manuel de droit consíituiionnel, 4aed.. Paris. Thorki-f antemoiBg.

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154 OS FUNDAMENTO S DA ORDEM JURÍDICA

no dia em que viveu em sociedade”'2. Com essa rejeição das “doutrinas democráticas” que, desde aConstituição de 1791, inspiram o direito político moderno, Duguit não pretenderetomaràs teorias teocráticas13, também elas “metafísicas”, portanto“m - ticientíficas”: é indubitávei que “há um fundamento puramente humano da regra jurídica””. Mas o grande erro dos teóricos do direito moderno reside, diz ele, -no individualismo liberai que converteram em seu axioma de base: trata-se de uma afirmação a pr io ri pois “o homem natural, isolado, que nasce Hwe e independente dos outros homens e com direitos constituídos por essa liberdade [...] é uma abstração sem realidade [...] G homem nasce membro de uma coletividade; sempre viveu em sociedade e só pode viver em sociedade”. Portanto, se“oponto inicial de toda doutrina sobre o fundamento do direito deve ser o homem natural", este não é “o ser isolado e livre das filosofias do século XVIII: é o indivíduo considerado em seus vínculos da solidariedade social”15.

Assim, o Estado é “o produto de uma evolução sooiaP*®. “O que se deve portanto afirmar não é que os homens nasce® livres e com direitos iguais, mas que nascem membros de iwsa coletividade e por isso submetidos a todas as obrigações que s manutenção e o desenvolvimento da vida coletiva impiicajíi.”!f

A 'doutrina que Duguit elabora, influenciado pela sockfe- gia de A. Comte e de E. Durkheim, “fonda o direito no caráter social e nas obrigações sociais dohomem”1*;aliás, denomina-® teoria do direito sociai. Explica -que, sob a influência conjunfe dos sentimentos de socialidade e de justiça"1, o homem tem cons

ta. ibid., p. 20.13. fbid.t p.2A.

M Traitó. t. {, p. 151.(5. Manuel, p. 5.

\6. Ibid ,p. 23.17. ibid., p. 5.18. Ibid., p. 7.19. Traité de droit constitutioimel, 1.1. p. 116: '‘Sentimento de sociafe-

dade e sentimento de justiça são os dois elementos que concorrem para formar nos espíritos, num dado momento, a consciência de que uma certa regca-£uma norma jurídica/ ’

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156 OS FUNDAMENTOS DA ORD EM JURÍOíO

Limita-se a uma constatação, que se toma uma afirmação; o não- respeito à norma social provoca uma reação no grupo; para evtar essa reação, é preciso e é suficiente que a norma social nã possa ser violada: é essa tomada de consciência, operada n próprio âmago da massa social, que provoca a mutação da noma vivida em norma prescrita, da regia social em regra jurídica O direito “é muito menos obra do legislador que produto contante e espontâneo dos fatos”22. A única base de sua construç

jurídica é essa solidariedade que se exprime simultaneamente por simUitudes - as necessidades comuns e as aspirações idên

ticas dos homens - e pela divisão do trabalho que se apóia m reciprocidade das funções e dos serviços23. É fácil percefe que, segando essa linha de pensamento, “o indivíduo não Jer nenhum direito, tem apenas deveres sociais’''4,

f Assim, a teoria do direito social de Duguit repousa em su crença na consciência coletiva. Esta-lhe permite combater taat aspremissas individualistas doCódigo Civil francês e da Decla

ração dos direitos como a tese da “personalidade do Estado”, peia qual responsabiliza Rousseau. Pode-se criticá-lo por nã ter fornecido demonstração nem justificação de sua fé sociolgica. Mas seu propósito era outro: queria fazer obra de críticas colocar em questão os fundamentos “metafísicos” do indsá duaiisrao liberal que constituía a base teórica do direito pSíbtào e âo direito privado de sua época. Para tanto, como e le messao declarou, meditou sobre a filosofia do direito de Hegel e contrapôs às teorias contratualistas. Apesar das infidelidades episteiKológicas e das incompreensões flagrantes, seu pensmento é marcado pela teoria hegeiiana daSittlichkeü. Mas è sobretudo sensível à sociologia de Durkiieinr5. Quando meno a ciência sociológica permitiu-lhe chamar a atenção para «m nova pràblemalização do universo ju ríd ico, cuja compreensão

22. L. Duguit. Les Iranformalions générales du droit privé depuistfe Code Napoíéon, Paris, 1912, p. 13.

23. Manuel.p. 328.24. ibid., p. 213 '(o grifo é nosso).25. L. Duguit conheceu bem Dorkheim, que m época lecionava na fa

culdade dc Letras da Universidade de Bordeaux.

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Á ENCRUZILHADA DO SÉCULO X X t s i

só se esclarece, segundo ele, pela demanda social. Seu posííi- vismo, diz G. Burdeau. é “sociológico”* no sentido de que implica incessantes idas e Kndas entre a consciência do grupoea juridicização das normas que lhe são imanenfes. Com amaí ã - tude até então inédita na ciência do direito, ele privilegia as inter-reiações, as trocas e as conexões entre as regulações esp es- tâneas e as normas construídas: sem seu substratum social, «d direito aão existiria no Estado.

Nosso objetivo a<jui não é valorizar as teses filosóficasêe Duguit que, cumpre admitir, são salpicadas de insuficiêacsss epistemotógicas e frágeis devido a uma coerência deficiente3. Mas queremos conservar uma idéia delas, oa meilior, uma tendência: a força com que, por sua rejeição da lógica eonstrsá- vista do direito (houve-se ela no inteleciualísme ou so volu®- tarismo) e porsua^eonstante preocvipação-eHt-ap? icar-o ntétcáa... “experimentar’ ao dado sock|,,sfi.empenboiieni renovar a problemática do fagdameRto do direito. Mesmo q^eaSSineateí pensamento de Duguit seja praticamente negligenciado pskss constitucionalisías e neoooijstitucionalisías que fazem da iíGv- ma constitucional o ponto inicial da ordem jurídica, -em seu tem po,ele foi considerado um princípio doutrinai forte ao «qua! © próprio Haeriounão foi a iie io e que G. SceQe kivocou expiss- samente em matéria de direito rntemacioral. Ainda recentemerfc foi dito que “o d>ogi!Ísmo [era um] avatar contemporâneo da iá S s de supracons{it43cjonaiidade”?! e que a noção de ju s cogems, ás grande importância atualmente em direito internacional, csras- tituía “o veio da noção duguista -do direito”2'’. Esta talvez ssja uma interpretação que não corresponde exatamente ao pcsíS-

26. G. Burdeau, Traitè desciencepolitique, 1.1, 1X303,2?ed., p. 551.27. Daremos aqui apenasum exempio, mas <jue è efaupaseie.Sagásí

denuncia o caraíer iadrviduaiistei dos direitos reconhecidos pelas Declanaçêxss solenes que formam o preâmbelo das Constituições repubfcffias. Mo eiaasse,seu Traitéde droit cunstiünionnel principia com a legitimação da supreraasia

da Declaração dos direitos que, segundo ele, o jurisiador não pode omitir28. S. Riais, “Supra-coEstitutionnaiité e( systéniaticiíé du drosf’, -as*,citado, Archives de philosophie du droit, 19S6, p. 57.

29. ibid . p. 59.

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158 OS FUNDAMENTOS DA ORDEM JUSÍDíCA

vismo sociologista poi que se pautava o própria Duguit De quaquer fornja, ela evidencia claramente a rejeição de um constitucionalismo de tipo racionalista cujo critério de validade seria o formalismo lógico da ordem de direito. Esse repúdio, independentemente de como seja interpretado, é o sinal de uma nova problematização. portanto de uma nova compreensão da ordem

jurídica, às quais várias correntes de pensamento, todas elas tendentes a uma sociologização do direito, viriam a se dedicar.

A sodoiogização áo direito

A o tm de Maurice Hauriou

Evocaram-se com freqüência os desacordos que opunham o deão Maurice Hauriou (1856-192:9) ao deão Léon Duguif a ponto de ver nas escolas de direito de Toutouse e de Bordeaax duas rivais inconciliáveis. Embora o pensamento de Duguit traga a marca incisiva da sociologia de Durkfaeim, a doutrina de Hauriou é mais eclética e, marcada por influências filosóficas muito diversificadas que vão de Platão a Bergson, ela é cora- p!exa;i ; ademais, evoluiu muito e chegou-se a falar da “ra pte s epistemológica” que teria ocorrido em 1910“. No entanto, a teoria da instituição que, nessa data, se toma o núcleo da doutrina esclarece sua concepção do direito e de sua fundação.

Investigando as “fontes 4o direito”33, Haoriou explica <|ae as instituições representam, no direito assim como na história.

30. M. Waline, “Les idées raaitresses des deux grands publicistes fran-çais: Léon Duguit eí Maurice Mauriou:\ Annéepolitique, março de ! 926.

31. C f Mékmges Hauriou, Sirey. 1929; obra coletiva: La pensée du doyen Hauriou etson influence, Peáone, 1969; O. Beaud, “Hauriou et te droit M urei”, ixi Revue d 'histoire des Facultes de droit et de la Science politique, 198$,ti°6, pp. 123-38.

32. A. Brimo, “Le doyen Maurice Hauriou et -rElat”. in Archives de philosophie du droit , i 976, t. 2 L p. 99.

33. M. Hauriou, Aux sources du droit , Cahiers de ia iwuvelle journée, 1925; reed. Bibliothèque de philosophie politique et juridãque, i 986, seguadaparte, p. 89.

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“a categoria da duração, da continuidade e do real”. Mas, pares dar-lhes base jurídica, é necessário ir além da teoria do_cqá&a: to social e passar à idéia “fundamentar de consentimento, esáff

" do conflfiõ entre o s^ artitfánõs~g5~s]steHia “objêSTvistá"'cTis —pafédáiróyxio^isKniã^scbjetivista”. No que concerne ao cmi- — íra^íeow^a-peff líêacíírestá decidida, diz Hauriou: Rossssgaai

confundiu a força e o poder. Hoje em dia, ninguém negam a importância da idéia de consentimento na formação das ssasíã- tuições e, particularmente. da instituição estatal. - No quec s e -

cerae à discussão do objetivo e do subjetivo, as coisas são m sk delicadas. O sistema subjetivista edificou-se sobre a baseêsx personalidade j urídica, e autores como Laband ou Jeíimek reduziram as regras do direito a “vontades subjetivas da pessaa Estado". Acreditavam estar seguindo Rousseau, no quedeiBsss- travam muita imprudência. Rousseau tratava de filosofia f*©ií- tíca; eles generalizaram sua tese transportando-a para a fílas©-

fia do direito. No entanto, embora se possa afirmar que a regra legal exprime a vontade do legislador, as regras coiis iietafej - rias não são obra de nenhum órgão estatal. Mesmo que, ira F®»- çã, WCÔdigõ C ivirt^âm abolido o costume como fonte de áã » - to, este conserva eminente vigor em todos os países asgte- saxões. Alémdisso,seria o caso de dizer que, nassociedaâespré-estatais. o direito clártico, tribal ou senhorial não era direito? “Portanto, a tentativa de açambarcamento de ioda ass- gulamentacâo pelo direitoSKbjietivotinha de fracassar:',sTli5?fe clesiã^debüidade do subjetivismo, o terreno estava liwé^pfflia Dagüít propor, na linka socio:io^^]aêfflíaãrgOT3SS^^s®,_ “estabe lecendo o^nekrs(^ ãl~ icim a das consciências imSgfc tíuais", “õ sistema da regra objetiva de direito”. Para ele, “a *©- ‘grã^de d-iFekAreeiTJídefadã cõriio cciísirèxístêfffe era si. Êoeí<»*e o suporte de toda existência jurídica”’5. Ora, esse sistema, Hauriou, é inaceitável. Duguit pensa de forma inversa. Não ss© as regras de direito que, como eie crê, criam as instituições, ®sas

são as instituições que engendram as regras de direito. “Vê-se

A ENCRUZILHADA DO SÉCULO XX t f f

34. Ibid., p. 92.35. Ibid., p. 93.

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160 OS FUNDAMENTOS DA ORDEM JURÍDICA

claramente o erro fundamental de toda essa construção: cosiste em tomar a reação pela ação e a duração pela criação: elementos subjetivos é que são as forças criativas e são a açãos elementos objetivos, a regra de direito, o meio social, a ord páWica:-tiã®^ssam^r^mgníos,4i^raação, de duração^UcõíginüíSMe^atribuirã uns o papei dos (nünfo é <X)lww a1<3de pernas para o ar”36A seguinte conclusão impunha-se ent para Hauriou: “Éjgseriso xiesearter^tento a tese snbjetiviscomo a tese objetivista que, não só estão eípiweeadasíTiffiarptomar a açãõ~prikrtlürãpiõ7a outra, por tomar a duração peação, mas, em última análise, por “relegar para fora do direios fundamentos do direito”. Contra essesdois erros doutrinadelineia-se “a nova teoriajJda^msfatuição.je da fundação” cu

^fflSeTtijgHãuBãa, umJlyitalismo Sjõciai;’57.Na medida em que ainstituição é^uro fato social^ o Es

tado uma instituição especifica, este nãojjõiie ser ex ffcM õnêm pélõsTnecagísmos constnrtores do individualismo racionalista, nem pelos princípios 3ès'õlidafféâSaê do sociotogismo. Como © ^^ ^ affiõ u^ eõ p oe ^ Jte or ias que colocam a autonomia da vontade na origem do Estado e do direito. Mas, diferentemente de Duguit, não vê na instituição a expressão da solidariedade espontânea; “a própria forma da instituição consiste”, diz ele, “num sistema de equilíbrio de poderes e de consentimentos constituídos q b tomo de uma idéia”. Ele precisa: “A instituj- ção é uma organização social criada por ma poder que perdura por<jué_^®írüma idéia fundarneitóLâceiía^ela-H^j^^^s-- -rnérnbros do grupd:,;w'©Í5Stã3o1az parte das instituições “corporativas ”, istcTSfeRi tomo de um Poder de base nacional, eie desenvolve “a empresa da coisa pública”. Portanto, o Estado não pode ser considerado apenas, a exemplo do que diz Carré de Malberg5'*, usi conjunto de órgãos definidos por sua função.

36. Ibid., p. 95.37. Este é o subtítulo da segunda parte de Áux sources du droit, p. 89.38. M. Hauriou, Prècis élémentaire de droit constitiiíionnel; segunda edi

ção, p. 75.39. Carré-de Malberg, Contribution à la théoiie gónèralc de l '£tat , t. í,

p. 268: no direito, “a ftinçáo se define peio órgão”.

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A ENCRUZILHADA DO SÉCULO XX

Com efeito, não faá Estado sem a idéia diretriz que, em iodos os cidadãos que ele “incorpora”, é aquela de uma obra por ferir, in ar. Não se explica a instituição em termos ifidividualisías nem em termos sociologistas: explica-se pela síntese da idéia, do consentimento e do Poder.

Dito isso, o importante é que as regras de direito não são © único motor de um mundo que quer viver e agir. A razão <£ss® é simples: as regras, longe de fazerem as instituições, são a® contrário feitas pela ação e peta continuidade das instituições. Num sistema jurídico, as regras de direito na verdade têm apenas um papei “secundário” porque “são inferiores àsiâ&as diretrizes que tiveram vida suficiente para se incorporar”.

Já em 1896, em La .Science sociaie traditionnelle, Haunea definia o direito como “o conjunto das similitudes sociais racionais que o Estado tem por missão manter”®. Portanto, na© cabe ao Poder criar a regra de direito de maneira decisória: «le

transforma em regra de direito aidéia d e direito que esíá bo cerne da instituição e que, aliás, em sua forma mais elevada,éintelectual ou moral. Apesar de sua evolução, o pensamento de deão Hauriou manteve-se fiel à sua intuição primordial: o nar- mativismo da lei escrita não explica a natureza do direito41; © vitalismo social é mais profundo e mais verdadeiro que esse legicentrismo.jA lei não é o todo do direito; “é apenas um dos §&- tores de um dos eauiüfcrios d'o~3;reTtõ ^ Jo^^ajTJesüã'Y?&. Hauriou, mais hostil que nunca aos postulados do “legislador racional’"', pensava - nisso provavelmente próximo do Bergsoa de Deux sources de la morale et de la religion - que o direá» só pode ser compreendido aascuitando-se a duração que sm -

40. Hauriou, La Science sociaie 'trááitiomèUe, Paris, 1896, p. 378.41. “A chuva de notmas de ordem e de justiça é benfazeja nos países ée

costume, porque caí sobre um terreno arborizado: retida pelas raizes e musgos, não causa erosão no solo. Ao contrário, nos países de legislação escrãa,

o aguaceiro de princípios cai sobre um terreno desarborizado, corre em torrentes e provoca inundações.” É “o legislador apressado” que “lança pritM»-pios de aspecto absoluto e que só posteriormente os limita por meio de organizações” (Précis de droit constitutionnel, p. 235).

42. Hauriou, Aux sources du droit , p. 187.

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162 OS FUNDAM ENTOS DÁ ORDEM JURÍD

tenta a vida das sociedades. Nela, exprime-se um ideal de jtiça universal e imutável que, do direito privado ao direito intnacional, é uma norma fundamental, indicadora do valor inc mensurável da liberdade. Esse ideal inspira um humanism proíimdo de que não pode ser excluído “o argumento metafco”. Houve quem escrevesse que Hauriou, por essa tese, era Montesquieu do século XX” .

A "sociologia ju rídica " de Georges Gurvitch

Alguns anos depois, Georges Gurvitch (1894-1965), b tro contexto epistemoiógico cuja ambição é situar-se “além empirismoe do racionalismo"43, viria a estudar “a experiênc

jurídica” dando prosseguimento ao .EQ£adfliento de soçátog-i ção do direito que se .fficusava-g-verno-tHretto-^ositivo aexs sSÕíÉíricíÕíialidade ou de um ‘lá s adio gãd sta”.' ' ^êgíin3lo”©'ra«tofrS*programa dai“sociologia jurídica”é

“descrever o conteúdo positivo de cada uma das in ím r S s^ da d s da expenêffc' Jraffiica“n3 medida em queêssês coate dOi se cxpiessaram tm Fito _en iveis cie conduta efetiva ein titu çQes Ela re cio* "' essa-, condutas e essas instituiçõe com os outros fcnomenos sociais, .integrando-os no mes conjunto, no mesmo todo da vida social; por fira, ela invest as causas de sua gênese, de seu desenvolvimento, de seu de nio”“. Para cumprir esse pr-ograma, G. Gurvitch pretende ceder por interpretação do sentido ideal” dessas condutas e dessas instituições. Quer demonstrar que “a experiência jurídic

é o solo do qual as regras de direito tiram sua seiva nutritiva.Para levar a bom termo essa demonstração, Gurvitch aprofunda o procedimento metodológico que é o fio de Ariaáae que ele denomina sua “teoria pluralista das fontes do drée positivo”45.

43. G. Gurvüch, L ’expérience juridique ei ia philosophie pluralista droit, Pedone, 1935, p. 19.

44. ibid., p. 83.45. Na análise que se segue, faremos referência ao capitulo intitulado

“Théorie píuralisie des sourcesdu droú positif\ pp. 138 ss.

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A ENCRUZILHADA DO SÉCULOXX M S

A problemática, cujo caráter universal ele destaca peis sia é “relativa a todo direito positivo sem exceção”, é incisiva e exemplar: a questão é saber “qual é o fundamento da força olái- gatóríado direito em vigor, em que consiste sua validade e<pãssão seus critérios”. Comoio direito, “dada sua estrutura m it t- lateral e imperativa-atributiva, não pode ser uma regrã”pEF2- TfíêWt áutônOTia, isto~ê7~quê~extrai ^ ãT õrçFõ5ngatònS~g~si 'nTésífíã^, ele tampouco põcíeliér uma regra puramente nornSIí-

varirEiptica “a eficiência real da regra, de fato seguida na eos- duta”. Segundo Gurvitch, jião seria possível admitir que direito é por si só criador de direitõrjMufto pelo contrário, desáe ^üa^origta^ íãfõS e é inseparável da ex pea ls-cia. E somente nessa condição quê <7¥ireiTo positivo p{xFe'”ssf- virpãfa realizar a justiça, o que é sua característica essencial pois a justiça requer o estabelecimento prévio da segurança,áa ordem e da paz social”. Portanto, é necessário definir o direito positivo - evidentemente o único que é direito no verdades®

sentido do termo - como “a coincidência, a unidade entre mssa autoridade qualificada, não idêntica à própria regra, e sua ef iciência em dado meio social”. Por isso, o fundamento da força obrigatória do direito positivo representa “o laço de união eé s interpenetração de três elementos indissoluveimente ligadas: autoridade, valor e eficiência reai'\

Uma vez admitido isso, fica claro que as fontes tradk»- nais do direito positivo - lei, costume, prática judiciária, ám - trina... - são insuficientes para fandar a obrigatoriedade e s

efetividade do direito. Por conseguinte, é necessário “descofeir as fontes das fontes, isío é, as fontes primárias, materiais, di®â- micas, válidas por si sós e sobre as quais se fondam a autoridade e a eficiência das fontes secundárias, formais, estáticas, <ps não passam de procedimentos técnicos de constatação’’.

Aníecipando-se às analises contemporâneas de H. Kart ,e R. Dwofkiii, de que falaremos mais adiante (e noutro contexto), Gurvitch distingue dois níveis de fontés: “o nível espo»1â- neo” e “o nível estratificado”, cujas prefigurações sugestivas

eram, diz ele, a teoria institucional de Maurice Hauriou, a oposição estabelecida por Léon Duguit entre regras normativas e

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164 OS FU NDA MENTO S DA -ORDEM JURÍD

regras técnicas e, por fim, a distinção feita por FrançoisGéay entre o dado e o construído. Ele observa, aliás, que, na Alenha e na Suíça, autores como G. F.hrlich e E. Huber tiveram mesma visão duaiista de um universo jurídico que comport “direito rígido” das regras e o “direito espontâneo” que é s soio. Nesse dualismo, as “fontes primárias ou materiais” direito são aquelas nas quais se dá a interpenetraçâo do idea do real: são fa tos normativos, isto é,“fa tos sociais que por sua própria existência produzem um clarão de justiça e encarn

valores positivos”. Gumteh reconhece neles o terreiro fé das fontes formais do direito - a fonte dessas fontes - , doravte reduzidas a “simples procedimentos técoicos de constata dos fatos normativos” entre os quais é impossível, e aliás til, estabelecer uma hierarquia: a lei não prepondera sobre costume ou o precedente. Todas as fontes formais são equilentes ha medida em que todas resultam da constatação d “faíos normativos” que a vida social oferece, isso implica saída a condenação do “fetiehismo da lei”, pois é evidente o Estado está longe de ser o único “fato normativo”. Ao conrio, é pelo pluralismo dos fato s normativos, e somente por ele qae é possível atribuir um fundamento ao direito positivo.

Mesmo quando Gurvitcfe admite a idéia de sistema ou ordenamento das normas jurídicas, considera que estas aão «tão simplesmente agrupadas, sob uma norma-mãe, num sisma organizacional hierarquizado; tampouco podem ser pensad como regras formais, gerais e abstratas, pois se articulam c forças primárias objetivas qae pertencem ao espaço soc O jfireáw p. pgrlantaum A regrajaridiraefi-ràiza-se no dadoconcreto do campo socialoue'é saa.füaàfeprimária”. Com olaCêHnTd es de o princípio portadora de um iiõrmatividade factual que preexiste no grupo social O dire positivo, seja ele “intuitivo” ou “formal” - isto é, quer se lim

46. G. Gurvitch. I 'idée de droitsoaa L Sircy, \ 932 (reed. Scientia A1972). Já G. Davy, em Le droit , / Idealismo et l 'expêrience, 1922, e em ÈMfíierftt de socioiogier 1924, já considcrava que a regra tíe direito se constrói apoia»-do-se na consciência coletiva. Por ver neta um “fato ideal”, inferia o diroiío apartir do fato.

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ao registro dos fa tos normativos, quer os submeta a ura testamento técnico só tira sua autoridade das forças q&e movem incessantemente a sociedade no sentido da união. Gurvitch conclui: “A teoria pluralista das fontes do direito positivo rediaáa assim em ampliar consideravelmente a esfera da experiência

jurídica; ressalta toda a riqueza da vida do direito, elimina qaaV quer preconceito dogmático ou estático, abrindo amplas perspectivas para «ma concepção puramente dinâmica, que podsáa servir de base filosófica comum para a ciência técnica do direito (evitando assina a mumificação de seus conceitos) e paia a sociologia jurídica propriamente dita.””

Seria um erro decifrar na vertente sociologista do pensamento de Gurvitch a influência da sociologia positiva âe Durkheim. Por um lado, o ecletismo de Gurvitch é notório. F©r outro, a preocupação com a íeorização que ele conservou âe sua formação filosófica levou-o, em sua análise das estruturas sociais, a privilegiar adisâmicaem. detrimento da estática, ©s “contextos” dos fenômenos sociais - patamares, tipos, gêneres,

categorias, modos, classes - são bem menos importantes do qac sea perpétuo reajuste: as formas da sociabilidadeimplicam sempie em sua morfologia a pluralidade das relações com oíiííí£eh -eabusca, sempre retomada e corrigida, de uma cooperação qee. na comuasdade, torna-se comunhão. Na sociedade, tudo, inrife- sive o direito, é “dialético’''**, em oaíras palavras, apresenta-se como “um equilíbrio a ser restabelecido incessantemente”. E por isso que a organização jurídica das sociedades nunca ter- mina de “integrar” os fatos normativos que, no seio delas, adquirem. por suas regularidades e por suas modificações, f íg ® âe modelos. O direito positivo é, portanto, uma maneira entoe outras (como a ciência, por exemplo) de ir ao encontro da reaMaie vivida por meio das construções conceituais das quais elaê ® cadinho: de modo gemi, aliás, todo conceito deve aproximar-se do real que ele corsota para aào se tornar vazio.

A ENCRUZILHAD A DO SÉCU LO X X Íé5

47.0. Gurvitch, L 'expérience juridique et la pUiiosóphie plúwfísteS u droit, p. 152.

48. O último livro de Gurvitch inti*ula-se precisamente Dialectiqm et sociologie.

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166 OS FUNDAMENTOS DA ORDEM JU fám C á

Em sua preocupação realista, as perspectivas dessa sociologia jurídica são evidentemente pluralistas, já que isvam em conta acima de tudo a mobilidade e as transformações dos fatos normativos. O realismo pluralista de Gurvitch é a arma mais poderosa com a qual persegue os fantasmas da metafísica, do dogmatismo e do formalismo que, a seu ver, estão sempre presentes aas concepções tradicionais do direito e lhes dão seu perfil rígido. Além disso, a metafeica encheu a tradição de fífisss problemas que se cristalizam num acúmulo de dualismas: fat© e direito, positividade e eormaíividade, indivíduo e socêedaáe, ciência e moral, social e jurídico, sociologia e história... Or-a, esses áuaiismos são uma oposição falsa: na verdade, nos feíss normativos que atulhara as sociedades, todos esses parâmetoas

são “dialeticamente” complementares. Muito parikiiiairaefflte, estabelecem-se entre as estruturas primárias da ordem social e as estruturas secundárias da ordem jurídica múltiplas anasto- moses e trocas permanentes: o direito só é jurídico porque é social nas suas próprias fundações.

A “construção soc ial do direi to’’ de Roscoe Pound

Recuperando a idéía-força de “direito social” que pescomee toda a obra de G. Gurvitch'9, o deão de Harvard, Roscoe Po^aâ, conferiu-lhe maior densidade confrontando-a com o sistesaa do Common Law. EmcoEÍormidadecom o espíritoamericana,sua filosofia do direitoleva-oa examinaro papel do juiz e a função jurisprudência!; mas é também para ele umaoporfianj-dade de definir melhor a “construção social do direito”.

Ele observa50que., como o termo direito é piurivaieaíe, ©s juristas costumaram limitar seu estudo ao “sistema das -rfigras

49. A obra de Gurvüch, iniciada em 1932 com L 'idèe de droit sociai s, no mesmo ano (Vrin), Le tempsprêsent et 1'idée de droit social, prosseguiuaté sua morte em 1965: em 1963, foi publicada a segunda edição de La votsa- tion actueUe de ia sociologie.

50. Cf. R. Pound, ‘"Sociologie du ■droit", in La sociologie mi XX* siècle,sob direção de G. Gurvitch e W. E. Moore, PUF, 1947. t. L p. 305.

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A ENCRUZILHADA DO SÉCULO X X

urídicas” ao passo que o campo jurídico, bem mais vasto e difeenciado, também inciui a organização das relações sociais e a

prática do“coatroiesocial”. Segundo Poundí!, Kelsen é emgraa-de medida responsável por esse escoíhisieaío indevido da-xkíg- mática jurídica, pois, já em 191152, ele não sõ postulou que penas o Estado era fonte das normas da pirâmide jwridlsGa,

mas separou deliberadamente a metodologia jurídica e a metodologia sociológica. E certo que Gurvitch, na esteira de Dagjsíí, eve o grande mérito de restabelecer a ordem das coisas-mosrando que cada forma de sociabilidade possui suaesteusasa.uas regras e seus valores jurídicos. Entretanto, essa idéia-èem er aprofundada. Foi isso que - depois de uma evolução cosa- lexa que reflete inúmeras leituras53- R. Pound quis fazer: m- iste portanto na natureza social do direito que, declara ekx, evido aos interesses dos indivíduos e dos grupos, só pode ser ompreendido pela necessidade de um “controle social” comosto de autoridade e regularidade. Com efeito, o direito Asmae uma das maiores originaiidadesé exporsua tese utilizasâs exemplo do direito dos cheyeanes54 - ':dos esforços para -oss®- ater a desordem e para aplanar os distúrbios e as dificuMafes, isso com um mínimo de atritos e de estragos”53.

A teoria sociológica do direito de R_ Pound - que são aae onfunde com a sociologia do direito - leva em conta era pã-

meiro lugar a vocação fiincional das regias jurídicas;insiste «asecessárias relações do direito cem o conjunto dos meies -áe ontrole dos fenômenos sociais e mostra q«e ©direito éu í k ã m lementos desse “controle sodaT. Sempre concreta, da se .afas completamente, por seu realismo e -pragmatismo, das eas- epções racionaiistas que cuidam acima de tudo - como oCé- igo Civil francês com uma inquietante obsessão metáfes-o».

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168 OS FUNDAMENTOS DA ORDEM JURÍD

da ordem j^ acodificação. Auguste Comte tinha razão de pe sãfqúe a filosofia do direito seria relegada à loja de antiguida e que, -concebido em termos exclusivos de legislação, o di ida desaparecer. Pound concluí que, contra a obsessão racion lista, urge compreender que o direito extrai sua autoridade, s dinamismo e seu progresso exclusivamente das forças soci que são sua estrutura e seu princípio vitaL

Setn nenhuma pretensão de exaustivídade, acabamos recordar algumas teses cuja exemplaridade episteniotógica perturbadora. Sem intuito polêmico, na doutrina jurídica áo anos 1920-1930, as teorias sociológicas do direito se opõem racionalismo das grandes sistematizações legalistas inaugudas pelo direito revolucionário e peloCódigo Napoleão. Para essa doutrina sociologizante, a ordem jurídica, longe de se trir de sua juridicidade formal - apenas o direito cria direito escontra suas raízes e sua seiva fora de suas próprias frontras. Essa teoria não se pretende reducionista: o mais das vez constata e analisa. Mas não deixa de ser surpreendente, nu tempo em que se assiste, no próprio cerne do direito, ao deslo

camento das bases da ordem ju ríd ica positiva da razão par experiêKsia, que as idéias que ela veicula sejam substituíd pela reflexão filosófica. Para além da “teoria do direito", a “losofia do direito” passou a se interrogar sobre as metamorfses que abalam as bases do direito positivo.

“Novas” filosofias do direito: maíerialisino.

historicismo, vitalismo

Levando em conta a proliferação dos textos jurídicos q é a marca do nosso tempo e vendo nela, como a doutrina, resultado dos intercâmbios que abrem o direito para as solictações da vivência social, uma certa filosofia do direito atac abertamente o racionalismo dos “fazedores de sistemas”. Asim vem-se elaborando, há menos de meio século, a obra d “novos filósofos”, diversamente influenciados, e cujo objet

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A ENCRUZILHADA DO SÉCULO XX l é f

confesso é libertar o direito do domínio, até mesmo do imperialismo estatal, herdeiro do racionalismo da “modernidade”.Ao abordar a atual florescência de trabalhos que tratara, «ás

“filosofia do direito”, é impossível decifrar era seus âsscocnas a marca de urna escola de pensamento: em sua vontade de crítica e de controvérsia, que os situa sob a influência do anti-racm-

nalismo e também do anti-humanismo, esses autores recorreram, nas últimas décadas, a filosofias tão diversas como asé s Marx, de Weber ou de Nietzsche; boje, numa vertigem m uite

vezes logomáquica, é a Heidegger que se pede uma mspkaçãa diferente. Isso não significa que, nos múltiplos ensaios de qae a filosofia do direito se vê atualmente inundada, seja possívd identificar uma filiação intelectual límpida e clara; aliás, tai tei- íura “historiadora” desses textos não teria muito interesse. üãsa contrapartida, é possível discernir direções e tendências. Eslaé uma abordagem mais instrutiva pois, nos diversos caminhos tomados, um denominador comum embasa as argumentações, sejam elas peremptórias ou sofisticadas: é sempre a meswa propensão reducionista que se exprime, a ponto de se toraar uma arma destrutiva. Para muitos analistas, compreender o di reito é reduzi-lo ao não-direito do qual nasce. Assiste-se assaa à desagregação e à dissolução do direito. Um mundo sem direito desenha-se no .horizonte.. Seguindo os caminhos do mstíe-

rialismo, do historicismo ou dovitalismo, as “novas filosofias do direito” erguem sempre a sociedade contra o Estado.

A corrente de inspiração marxista: de Marx a E. Biodh

A primeira corrente que se pode identificar e definir —qae é também a mais antiga em sua “novidade” - traz a marca á® marxismo, embota, «m matéria de filosofia do direito, a tradição marxista seja bastante pobre. Chegou-se a escrever oue “em suma, uma teoria marxista do direito ainda está por ser construída”5*. Afora os textos que criticam a propriedade p i-

56. U. Cerroni, “Marxisme et drort: cossidérations historko-critMjHes''’,

in Marx et le droit moderne, Archives de philosophie du droit, i 967. S2,

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170 OS FUNDAMENTOS DA ORDEM JURÍD

vada57, são poucas as páginas de Marx que abordam expresmente uma análise das instituições jurídicas. De qualquer mneira, certos temas oriundos do marxismo, hoje envelhecido desgastados peto uso e por terem adquirido feição de dogm foram empregados para tratar do problema do direito. Recodemos as grandes linhas deles.

O direito, como a moral, a religião, a arte ou a linguage é sempre uma superestrutura; iiate-se do direito feudal ou á direito burguês, ele sempre reflete uma infra-estrutura ecoaê mico-social. Mas a impopularidade de tudo o que diz respei ao direito ocidental do período pós-revolucionário decorrer do caráter burguês que a chancela do legislador teria impress ao corpus jurídico: este estaria marcado pela ideologia polític na qual triunfou o individualismo oriundo da época históric inaugurada pela Revolução Francesa. Por trás dessa ideologi esconde-se a estrutura de classes da sociedade burguesa e, nes estrutura, funcionam as engrenagens primordiais de uma economia que se resume ao jogo das necessidades e dos meios produção. Em seus dados mais objetivos, o aparelho jurídi

do Estado moderno depende das relações de produção e de -tro que são as do capitalismo liberal clássico. Ora, há nele um dram que provém da dissociação que se estabeleceu entre o home concreto, aprisionado nas redes dos problemas materiais, e homem abstrato, para o qual o direito foi construído. Por isso esfera jurídica é o sitio de uma dupla itasão. Em primeiro luga a ilusão legalista, pois afinal o poder legislativo, diz Marx criticando a filosofia do direito de Hegel, longe de criar a le descobre-a e limita-se a exprimi-la; nessas condições, a le i a pode servir, como acreditava o pensamento revolucionário, par a libertação dos homens; só pode capturá-los nas armadilha de suá própria miséria. Em segundo lugar, pór via de conseqüência, a mentira da igualdade dos direitos e da liberdade d

p. -134. - Trata-se de um texto já antigo; mas é pouco provável que, node hoje. ém que se assiste ao refluxo quase completo do marxismo, tal seja elaborada.

57. Marx, L 'idéologie attemande, Ia pane. m Éditions sociales. (Trad. bras. A ideologia alemâ, Martins Fontes, São Paulo, 1998.)

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A ENCRUZILHADA DO SÉCULO XX

cidadãos: sua proclamação “formal” em nada modifica a realidade objetiva da condição da maioria. Esta ilusão fica air*áa mais grave porque o direito se apresenta sob o signo do cesa- rismo de Estado e porque o Estado se diz o único dispeasaiar de ordem. Em outras palavras, cuja banalidade já foi suficientemente assinalada, o direito é a figura mentirosa da opressão. É obra dos poderes públicos e os poderes públicos o justificara como bem entendem, já que o fazem. Direito e alienação estão

intimamente ligados. Em suma, o direito é hipocrisia e mentira. Em sua intenção mistificadora, ele é uma das máscaras é® obscurantismo. A proliferação das regras de direito, longe de ser sina! de progresso, é o espessamente dessa máscara.

Posto isso, não basta envolver as instituições jurídicas eus duvida e suspeita. O marxismo é radicalista. Já que o juridísm®, em sua forma estatal, corresponde a uma condição social e econômica deplorável, a necessária transformação da sociedade seira acompanhada amanhã de uma outra concepção da juridicida

de: ou melhor, na fraternidade comunista vindoura, não haverá necessidade de leis nem de regras de direito: o comunismo, acarretando a ruína do Estado, acarretará a morte do direito.

Os argumentos da desmistifleação das ideologias e da deterioração do direito tiveram certa ressonância na fi lo sofe jaâ- dica, mas é bem difícil ver nisso uma “teoria” dos fundamesias do direito. Alguns “marxistas1’ como Kautsky ou Vyehinsky, osi como, na França, L, AMwsser, retiraram ensinamentos .mas políticos que j urídicos de sua adesão ao “maíerialismo cieatífi- co”. E. 8. Pasufcams {1891-1937) é utn dos raros autores qoe se deteve no problema do direito. Sua posição é incisiva: emlm íhéorie gênéraie du droit et le marxisme, obra publicada eus 1923, denega ao direito qualquer caráter de dever-ser, quaiqser dimensão normativa. Entretanto, condena as teorias sociológicas do direito que, diz ele, são “niilistas”. Em sua opinião, a regulamentação jurídica existe de fato; é mesmo necessária, mas s® se pode explicar a regulamentação jurídica pelos mecanisims materialistas de natureza social, desencadeados e comandados pelo voíup.tansmo político da “classe dominante”. As noções de contrato, de obrigação jurídica, de direito subjetivo e rnesm©

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172 OS FUNDAMENTOS DA ORDEM JURÍDIC

de sanção fazem parte, formalmente, dessa “unidade estrutural” evoluída que o direito positivo constitui; mas “essa estrutura formalmente acabada, longe de ser a estrutura ideal ou geral do direito [...], é uma estrutura historicamente causada de uma formação social específica”5*. A seu ver, não M a meno dúvida de que a causalidade histórica do jurídico é a da economia própria da sociedade capitalista. Em suma, embora o direito ienha uma realidade objetiva que não está prestes a desaparecer e que é até necessária, as suas categorias e noções, long de ordenarem a matéria social, dissolvem-se, ao contrário, meia O direito é um não-direito. “A relação econômica é, em seu movimento real, a fonte da relação jurídica.”” O direito não tem a especificidade de uma regulação normativa e ideal. G procedimento reducionista de Pasukanis vê nele, em decorrência de seu mecanismo formador, um conjunto de relações sotioeco nômicas que trazem a marca da ideologia da classe dirigente; “Na medida”, escreve ele, “em que a sociedade representa ran mercado, a máquina de Estado se real iza efetivamente como a vontade geral impessoal, como a autoridade do direito Por

tanto é fácil compreender que, no meio social em que se manifesta sem cessar o movimento do trabalho, da mercadoria e d© dinheiro,-oqae caracteriza por excelência o direito sejam as desavenças e os litígios. A conclusão não poderia ser mais c-lara “0 Poder de Estado confere clareza e estabilidade à estrutura

jurídica, mas não lhe cria premissas, pois elas se enraízam sa s relações materiais, isto é, nas relações de produção.”"

Kelsen julgou com grande severidade o reducionismo economista de Pasukanis e, mais ainda, sua repugnância em reconhecer o valor do normativismo na esfera jurídica62. Essas duas

tendências, que Kelsen julga equivocadas, são no entanto as que efetivamente se encontram nos diversos escritos que - pelo me

58. U. Cerroni, art. citado, p. 138.59. E. B. Pasukanis, La théorie généraie du droit et le numcisme, trad.

fr. Eludes et documenlalion inteiiwíwnafe, í 97!, p. 83.60.. Ibid., p. 131.61. Pasukanis. op. cií., p. 83.62. H. tCelsen,The CommunisS Theory o f Law, Londres, 1955.

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A ENCRUZILHADA DO SÉCULOXX

nos fora da Rússia soviética63 - dizem respeito à questãoõ ük fundamentos do direito.

L. AMiusser. mais vinculado ao pensamento pslstico 4© que ao jurídico, não se preocupa muito em elaborar uma filosofia do direito. Mas, nos meandros e nas articulações desesre diversos escritos, encontra-se o mesmo procedimento reducio- msta que conclui pela inexistência do direito enquanto feaôme- no específico ou normatividade essencial. Embora não sejaraa tematizados enquanto tais, dois Leitmotive “marxistas” peresr- rem sua obra, indicando por que o fetidiismo do jurídico, pelo próprio movimento da história, está em declínio e atesta a 'deterioração do direito”.

Por um lado - o que já se tomou uma banalidade do uáü- tantismo dos marxistas - com o qualquer aparelho jurtáico ê marcado pelos“partis pr is” da ideologia, o direito é a vojjtade de uma classe erigida em lei. Por isso o direito francês depende- e não poderia ser de outra forma —da mentalidade buigaesa que, na esteira da Revolução, deu origem às democracias formais. Uma vez que estas, por natureza, só podem áar garantias formais ou proclamar liberdades formais, é inevitável que sm corpus jurídico caia em contradições mortais: prende os homsss na armadilha da igualdade e da liberdade. Portanto, o direito é hipocrisia, fraude e mentira.

Por outro lado, embora Althusser se recuse a acoíher ihe marxismo doutrinário, sempre vincula os conceitos qae mane-

ja a situações de referência. Sensível à epistemologia de Bachelard, que sempre situa uma obra no contesto social m. psicológico que a viu nascer, e, além disso, tentado peto e.sírif- turalismo, Althusser vê no direito apenas uma rede ée ítíaçses que o vinculam às formas da sociedade, da história ou da economia. Isso eqüivale a dizer que 6 direito - como Màrx ob sS-

63. Na Rússia soviética, o episódio Vychinsky tem um sefiãéo Ufel-mente diferente. Em seu livroProblèmes du droit et de 1'Èiat chez Murx, qss. pode-se dizer, teoriza o terrorismo do sistemastaímisla,« autor insistem>ca

ráter coercitivo do direito, que pode ser definido como a violência organirafe pdo Poder. Cf. H. Chambre. Le nwxisme en Union sgvtêrique. Idéologiezz institulions. Paris, I955.

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174 OS FUNDAMENTOS DA ORDEM JURÍD

vara na Ideologia alemã - não é um fenômeno autônomo; basc sitas raízes na rede das condições materiais da existência. Cor toda instituição, é um fenômeno “sobredeterminado”. Não c tante sua objetivação. não tem essência própria. Sua existên de fato, numa sociedade que o engendra segundo mecanism socioeconômicos, apenas encobre um nada essencial. O dir tem apenas um caráter instrumental. Nada lhe garante a perenidade. Na sociedade dos homens, é o indicador do anti-h«i nismo deles.

O pensamento marxizante de E. Blodi (1885-1977) é m modulado. Na verdade, o que imporia para eie é antes o prblema do direito natural do que o do direito positivo, e seu obtivo é mostrar que, se o direito natural dá dignidade ao homem é por ser a racionalização da revolta contra a opressão64. Dá isso, ele se interessa muito pelo direito oriundo da Revoluç Francesa. Com© todo marxista, é claro que o entende com© discurso de uma classe burguesa que só vive para increeie tar uma economia de tipo capitalista e coloca oCódigo Napo- leão sob o signo da hipocrisia presente numa liberdade e ntffi

igualdade puramente formais. Para um marxista, a teseé das mais banais.No entanto, segundo E. Bloch. o direito também é o lug

do “princípio esperança''63. Opondo-se à “teoria burguesa”, as atribui a C. Schmitt, introduz no direito intenções libertadora que poderiam fazer o homem, am dia, passar da heteronomia autonomia O humanismo recobra então seu alento: as institó ções jurídicas trazem em si “um modo de possibilidade para frente”. Só que, embora nessa esperança ele permaneça próxmo da intuição por meio da qual, em sua primeiragrandeofera,ele revalorizara a utopia“ - o título de seu livro eraTrãume vom hesseren Leòen (Sonhos pam uma vida melhor) - , o sotíboé evanesceníe e a esperança, frágil.

64. E. Bloch, Nafurrecki und Menschliche Wurdet Frankfurt am Maiti,5961, trad. fr. com o título Droit naturel ei digntiê humaine?Payot, i 976.

65. E. BJoch, Le príncipe esperance, trad. fir., Galiimard, ?. i e í í .i 982.

66. L 'espni de I 'utopie foi terminado em 1918.

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A ENCR UZ/LÍ/AOA DO SÉCULO XX 115

Em todo caso, E. Bloch traça uma “filosofia da prÉKts" que, faadada - diz ele - sobre “a potencialidade doser”,-áss: renovar o marxismo orientando-o para o “futaro d® real”. Messa “mova ética”, há que admitir, desapareceu a praMemáíica jsrt- dsca. Esse descaminho da filosofia do direito de obediência marxista não deve causar surpresa pois, na via doveduciomsmo ela sempre tomou, o direito escapa do direito.

As vias do historicismo: Burke e a escola de SavignyAdentrando nas vias mais sutis do historicismo, a filosofia

do direito nem por isso deixou de sucumbir ão m esaio reduc®- tiismo destruidor das correntes materialistas.

As premissas da redução historicisía do direito devem ser procuradas nas primeiras reações à Revolução Francesa. Pd© conservadorismoque manifesta em Réflexionssur ia Réwlu lim

fm nçaiséS!, Edmund Burke (1729-1797) se arvora em defensor da tradição e da história. Levantando-se ccEtra a vontade <fes revolucionários de reconstruir uma ordem soda! e jurídica nova sobre as ruínas do Antigo Regime, exprime seu apego às raízes que mergulham avidae o espírito de uai povono passa-do. No terreno político , l ogo será seguido saa Fiança .pelo pes- samento contra-revohicionário de Joseph de Maisfte e de Loas de Bonald; na Alemanha, os grandes ílíosofemas em tom© das quais se organizam as Réflexions - a defesa do direito oaSaraS, do liberalismo, da tradição, da aristocracia, que compõe um.dáj>- tico com a crítica do racionalismo e do mdmdualísino do ifa- mieismo - encontrarão um eco profiiad©no conservadoiisasoda corrente romântica65. No terreno jurídico, que Budeeassociaestreitamente ao da filosofia, as temáticas das Reflexões sãoró»

67. A obra foi publicada em 1790: era i 7.91, surgiu uma traduçãoakraâem Viena.seguida, em i793. de duas traduções, entre as quais a de Oeiaz* publicada em Berlim, isso basía para indicara importância qoe.aHjbra-te^iSi®Alemanha.

68. Cf.Ph. RaynaucL introdução à Gradação francesa de Réfiexiojis s w

fa Rcvoiution françciisc, Hachettc, 1989.

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176 OS FUNDAMENTOS DA ORDEM JURÍWC

teressantes (é evidente que, lendo Burke, é preciso ir além d ofensiva que ele empreendeu ooatta -o dr. Price, defensor “do direitos do homem”) na exata .medida era que criticara a abstração metafísica e a rigidez construtivista da razão. B w fe denuncia particularmente o caráter abstraio do individuaUsnso igualitário que, em nome dos princípios universais da razão, inspir a Declaração dos direitos do homem e do cidadão. Como cret, nessas condições, que os direitos solenemente proclamados pasam ter alguma eficácia concreta? Com essa crítica, Burke formata o axioma a partir do qual as correntes antimoderuas, em

sua diversidade - vão não só de B. Constant ao socialismo d Saint-Simon, abrangendo assim as teses “monarquianas” toeta ■ como os ímpetos românticos, mas também inspirai® a sevejs- dade das críticas de M. Viliey e de H. Arendt —não cessarão, a a época atual, de censurar o intelectualisrno e o voluníarisn» jurídicos, cujo exemplo fcMado pelas assembléias revolucionária

Como fará mais tarde E. Labouiaye"1, Burke toma partiá© do direito inglês contra o direito francês. 'Sua aaáíise é sem dúvida mais política que jurídica uma vez que, ao repudiar -o

artificialisnio de a n poder instituinfe oriundo do contrasto, ênfase à preemiaêscia dos direitos da nação, cujo fio cosáiíta é a história. Recuperando uma idéia cara a Hume e que §e antemão o opunha a Rousseau70, Burke declara que “os vecáa deiros direitos do homem” são aqueles que a Petiüon o f Rights de 1628 fundamenta num “título positivo autêntico e hereáiúà- r i o e cujo princípio está formulado na Magna Carta11de 1215: “cabe à história transmitir esse. princípio fundador come ‘«Eia herança inalienável que nos veio de nossos ancestrais e que de

69. Cf. nosso artigo “Edouard Laboulaye, iégaiaire de tVíonlesquieíf’.-«i XVfll1siècle, Montesquieu et la Révolution, PUF, 1989, pp. 135-47.

70. Cf. nosso artigo “Humc et ia critique du contract sociaí: esquisse(Tune théorie de rínstitution*’, in Revue de mèiaphysique et de momle. Í9S8.n? 3. pp. 337^63.

7 i . E. Burke, Réfiexions sur la Révoiunon fraaçaise, Hache&e, ed. cs4a-da, p. 74.

12.íbid.,p.A\.

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I

■§fii

1glSsÉJWÊ

vemos transmitir à nossa posteridade””5. A teoria da soberama da lei, que Rousseau transformou na pedra angular doContraia .

social e em que se louvaram os Constituintes franceses, cosss- te o grave erro de .esmagar o legado natural da história sséh ® peso artificial da ordem constitucional.' Embora seja indiscasí- vei que am direito positivo é necessário para estruturar o eslade político e para regular as condutas dos homens, suas condições de validade não se encontram «o coostrutivisrao geométrica e abstrato de uma razão calculista e sim na continuidade da traM- çõo cujo símbolo vivo, na nação, é a sucessão das gerações.

Reabilitando na história nacional avox populi, o costnssje, a tradição e a duração, que os revolucionários franceses sufesS- tuíram por construções lógicas apoiadas no poder decisionisia da “vontade geral” oriunda de um contrato matemático, Bmfe reativa as idéias de experiência e de cotitÍRgêocia <|ue Hume c Herder já tinham defendido. Ao mesmo tempo, admite que m m necessidade superior se impõe a todos os decretos .hwi3a®ss&! mesmo que estes sejam os de «m Parlamento representativo â s corpo popular. Como os juristas ingleses doCommon Ltm, e na contramão dos revolucionários franceses que rccorrem ses princípios abstratos e gerais da razão, fünda o direito pfijlse® bem como os direitos do homem na tradição e no costume, ®s únicos aptos, naquilo que estes têm de -aaSusaí -e substancial, paia dar-ihes consistência e verdade.

Um exame mais minucioso verifica que a posição de Brafee é complexa e não é isenta de dificuldades internas. Por «b lado, a paixão que anima sua vontade de crítica dirigida c©n®a o lluminismo interfere com seu fervor pda herança veicateila pela história nacional: por outro, apóia seu oonservadoris®® numa argumentação teológica que o faz tender para a concepçiB de um direito natural clássico q-ae evoca Cícero,/Santo Tomáse . Suarez. Mas, se -nos detivermos na sua maneira de ccínpreenfer o direito, não será nos ímpetos de sua paixão crítica, .«em eo-sc- torno de um direito natural teologicamente determinado (e pai conseguinte hostil ao direito natural dos jarisconsultos moder-

A EN CRUZILHAD A DO SÉCULO X X i 7f

73 Ibid., p. 42.

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178 OS FUNDAMENTOS DA ORDEM JURÍDICA

oos), que descobriremos o essencial. Q que importa é que Burire não só defendeu os méritos da “sabedoria prática”" contra

®s“especidatismos” da racionalidade teórica, mas também, coib uma prudência e uma moderação que muitas vezes não lhe são reconhecidas, se não preparou exatamente “a santificação he- geliana da história”75, pelomenosabriu amplamente oscaminhospara o historicismo.

De fato, as teses de Burke encontraram, particularmente na Alemanha, uma repercussão favorável. Escritores políticos com© Réhberg, Brandes ou Gente eram, como ele, hostis às idéias “progressistas” da Revolução Francesa; os jovens românticos, como Nwalis ou Gõrres, eram, por sua vez, sensíveis ao modo como, depois de Herder, Burke celebrara a época gótica e a magnanimidade dos costumes cavaleirescos. Além disso, a ciência jurídica alemã, que se desenvolve ao meio romântico em que Grimai e Schleiermacher, como Boite, são hostis&Aufldãnmg, ganha excepcional impulso naescola do direito histórico * que, ao lado de Gustav Hugo (1764-11344), K. F. Puchta (1798- 1846), K. F. Eichhom (1781-1854), ilustra-se muito especialmente Friedrich Carl von Savigny (1779-1861 )""*.

Savigny deve muito a G. Hugo, que conheceu em Gõttinge.n

quando jovem. Romanista e historiador do direito, Hugo, estudando “a filosofia do direito positivo'”77, iniciaía,à luz do direi

14. L. Straass,Droií na furd eí histoire., p. 2<?9.75. Ph.Rayaaud. “Burke et ia Dédarãticfl des droiís”, in Droiís, 1989.,

P- 158: cf. Sírauss,op. cit, p. 276.76. A essa escola estão vinculados também J. Gricnm (1785-ÍS63'),

Edouard Gans (1797-1,839) e, de certa maneira, Hegel. As datas de todo» esses autòres. que pertencem à mesma geração e ao mesmo contexto intelectual, sào evidentemente significativas.

Sobre Savigny, cf. G. Marim,Savigny e i! m-eUKÍo delia scienia giuriái-

ca, Milão, 1966;Friedrich Carl von Savigny. Nápoles. 1972-. Sobre este último trabalho, ver a magistral exposição de AJfred Dufour. Ard mes dc' phih- sophie du -droit , 1981. p. 303 ss., que orientou nossa leàura das duas obras deG. Maríni.

77. G. Hugo, Lchrbuch des Natuirechu ais Philosophie des po skivm Rechts. Bedim, 1798-

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A ENCRUZILHADA DO SÉCULOXX

to romano, cujo vínculo com a história opunha ao direito sste- ral racionalista e abstrato dos autores do século XVIII, a critica do “legislativismo” do lluminismo e sublinhara, ao que se (Desfere às “fontes” do direito, a importância da historioiâade. Jâ-em seu curso de metodologia jurídica7*, ministrado em Marfeajg© em 1802-1803, Savigny afirma “a continuidade histórica & direito”, cuja idéia extrai do direito romano. Depois., inífesesa- ciado por Schieiennactjer, fica impressionado cora © “sesãáa religioso da hisíoricMade”, que obceca a geração de G.é s Humboldí, L. Ra-nke e Th. Moeimsen, e encontra aesse tesraa a idéia central daescola do direito histórico. Em 1815, feaáa sa revista ZeitschritJwr gesehichtliche Rechtswissenschaft, rasjopá- meiro artigo, de valor prograrnático, inaugura o combate cís®- tra o legicentnsmo e a vontade de codificação do líuaunisiea.

Na verdade, é o texto de 1814, fòm B em f uitserer Z&Jtfãr Gesetzgebung und Rechtswissemchaft, que, com contíwéísk com Thibault, que militava pela codificação do direito cr tI alemão79, constites o manifesto do historidsmo jurídica. Áfesm* crítica a Thibault, Savigny condena o espíritodo C ó % GW? francês, acusando seus redatores (cujos trabalhos preparatória; ele decerto leu de maneira muito apressada) de terem esvaziai» o direito, racionalizando-o, de sua fonte viva e de terem friêta- legiado indevidamente a vontade do legislador. À tese ijae 4fe- senvolve é clara: denunciando o “caráter artificia] das leis e áras

códigos”, define o direito positivo como “momento da wiáa & um povo”; contra a concepção napoleónica de uma OEdesa Jbsí- dica de estrutura lógico-sistemática, sublinha, ao conteáá®, o caráter organicista evivodo dweito que é, diz ele, fawriaaaeafea- mente ligado á língua de um povo, a seus costumes, faibtes, religião. Escapando da sempitema alternativa entre jusiia&ffiSisH®

78. Esse curso foi publicado pela primeira vez em MLtíki eta!9Si $£

reeditado em 1966) a partir das anotações dos irmãos Granm.79. O opúsculo de Thfbault que Savigay ataca intitula-seUcber áíe

Notínvendigfceit eme altgemeinen hãrgerlichen Rechts /Sr Beutsdk!aiti3, Heidelberg, 1814. Cf. Z. Knstufek. “La quereile entre Savigny eí 73irtes&<Ètson influence sur la.pensée juridique européenne”, in Revue h is lo iiq u eén d i f ii i i é 1966 fV 59 75

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180 OS FUNDAMENTOS DA ORDEM JUKÍMCA

e juspositivismo, acredita que “o direito histórico é ao mesma tempo natural, porque corresponde à norma de um povo histori

camente existente, e positivo porque concretamente em vigor e sentido como válido ®a consciência popular”58. G. F. P acto (1798-1846) resgatará a intuição hístoricista de Savigny e a fogará à noção romântica deVolkxgeist, cujo enraizamento profundo basta para indicar a -desconfiança que do historicis-ns© para com as estruturas e competências estatais. E certo que as sociedades necessitam de leis e de contextos jurídicos. Mas a legitimidade da lei e do direito, longe de participar do coníraítia- iismo, reside numa “necessidade histórica, superior”, misteno- sa e inccritrolável, comprovada pelo costume, “o solo e o sangue”, a nação, as crenças... A história é assim uma espécie <ôe

Urelement graças ao quê a concepção de Savigny e de Pucfeta se aproximam da inspiração irracionalista do romantismo.. Portanto, era inevitável que Savigny e Hegel se encontrassem.

Eles poderiam de fato encontrar-se lado a lado, já que ambos rejeitam o direito -natural, recorrem ao tema doVolisgeist, tomam a defesa da iiistoricidade concreta contra “a visão tno- ral do inundo”, que só pode produzir um direito abstrato e desencarnado. EmConstituição da Alemanha, Hegel exfmse- ra, antes de Savigny, o conflito mortal entre as leis e os cosíu- mes; é conhecida a admiração que sentia, em sua juveaíüie, pela “bela Cidade grega”, na qual os costumes eram leis vivas.^

Entretanto., por mais inesperada que seja a crítica faegeliaaa*', ' não deixa de ter certa virulência. Em todo caso, em duas passa-

80. G. Marioí,op. c i í p. 103 (citado conforme a tradução.de A. Dufeuri8 L De fatoc um ataque estranho por parte do filósofo que, era .sua obra.

expõe precisamente “o percurso dialético da razão histórica mundial”: poisafinal Hegei, para quem Deus está escondido (pu morto) e a natureza, mwda,Hegel. para quem a “dominação do conceito” é a grande falha do idealismosubjetivo, faz da história o lugar onde .o homem constrói sozinho seu scresuaverdade. -Para Hegel, é na história que se mani festa a vida do Absoluto. A história vista por Hegel é sem dúvida um calvário em sua racionalidadeiiágica. No entanto, ela é uma geneaiogta necessária ao longo da qual a “astúcia darazão” utiliza a desrazào. O Absoluto, para Hegel. não c.princípio, mas resultado: e tudo o que é humano - isto é. tudo - tem de comparecer ao tribunalhistória.

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A ENCRUZILHADA DO SÉCULO XX m

gens dos Princípios da filosofia do direito de Berlim ( i 821). Hegel critica Savigny por não elevar seu pensamento a umiireál autenticamente filosófico. Admite que o costume e a hisfeia sejam a fonte de direito, mas com a condição, fundameisia? .a seu ver, de que sejam mediados pelo peasameaío: é não só híh absurdo mas até mesmo uma afronta, diz ele, “negar a uma ilação... a capacidade de elaborar um Código”*-. É o que é iaa* grave: a explicação histórica de uma instituição não pode, segundo Hegel. ocupar o lugar de fondação filosófica. Por ism lado, isso significa cair, como a jarisprudêacia inglesa, imss re- iativismo afetado e ameaçado de incoerência. Por outro,a s m ® não se poderia confundir urna “gênese exterior” e uma “gêasse conceituai”, isso significa elaborar ama teoria qae leva a “fa a i. sem querer, o contrário do que ela visa... isto é, pelopróprio fat®

de as circunstâncias que lhe deram origem terem desaparecida, a mstiteição. ao contrário, perdeu seu sentido e seu direito”®.Edouard Gans (1798-1839). discípulo de Hegel, dará se

qüência à critica de seu mestreinsistindona incapacidade-âo historicismo de “compreender a racionalidade do desenvolvimento histórico".

Apenas evocamos aqui a crítica hegeliana a Hugo e a

Savigny para apreender melhor, para aiéíM da polêmica, aliás mais política que jurídica, as tendências filoséficas da esesis bistóiica do direito. Com efeito, aão basta notar que a orieaíÊ- ção historicista da filosofia do direito ofeíeve na França m®i*e rapidamente «ma recepção entusiasta, como demonstram, eEfe outras coisas, a criação por A. Joardan, eira 1819, da re\?ísia Themis, a Histoire du droit firm çak de E. Lerminier (1829$ e, um pouco mais tarde, a obra de Edouard Laboulaye*4. Pata al&a de um programa metodológico que, recorrendo ao costume-e.

82. Hegel.,.Príncipes (le la philosopíne du droit , traci. R. Deratfeé.Vn% 1975, §211.

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182 OS FUNDAMENTOS DA ORDEM JURÍDIC

ao legado do passado para justificar o conteúdo do direito postivo, é totalmente voltado contra as práticas da Escola da Exegese, revela-se a opção filosófica da escola histórica do direita. Seja qual for a reputação de erudito romântico e de político al traconservador e místico que lhe tenham atribuído, Savigny muito particularmente, não é mais “reacionário” que Burke <xs Montesquieu. Remando, como eles, na contracorrente das idéia especulativas de um tempo que se inebria cinzelando categorias abstratas e esquemas universalistas, ele é sensível à forç da vida concreta e da particularidade. “Colocando o homem

totalmente em casa neste mundo”, ele optou, diz L. Strauss pela “filosofia aqui da terra”85. Confere ao passado, à herança à hereditariedade, ao costume, à alma popular, à tradição, suma, a tudo o que constitui a história concreta dos povos, valor de princípios objetivos de explicação. Longe dos ideaii mos que considera grandiloqüentes, pede à experiência históric que funde, de maneira necessária e suficiente, a rede das «orna

jurídicas. Uma vez que o valor do direito lhe vem exclusivamete de sua inserção num processo histórico, é possível explicar-If o surgimento por sua situação na história. A história toraou-se

assim um meio de inteligibilidade da ordem jurídica. Modo-á conhecimento explicativo e uníficador, o liisíoricismo rejei evidentemente as noções metajurídicas e as perspectivas ideológicas. Assim “limpa de qualquer suspeita metafísica’'86, a vsão historicista do direito adquire duplo significado. Tem em primeiro lugar, como mostrou K. Popper", um alcanceepisíe- mológico: no campo do conhecimento, o historicismo se fkíis como «m pensamento genealógico que, recorrendo a um esquema explicativo de tipo causai e redutor, permite, segundo sua postura determinista, inferir as leis do devir feumano e, particularmente, ós principais eixos dó pensamento jurídico. A visão M

85. L. Strauss, Droit naturel ef hiswire. p.26.86. ibid.. p. 28.87. K. Popper, revistaEconomica, XI, 1944 e XII, i 945: esses do

tigos foram traduzidos para o francêscom o íttuío de Misère de l khiaric imiç xPlon, 1956; existe uma edição inglesa. Londres, Roiitiege& Kegtm PoyL

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A ENCRUZILHA DA DO SÉCULO XX

torícista do direito tem ademais - como destacaram Troeltsctf6e Meinecke*’, um significado filosófico: salientando a diversidade das épocas, o bistoricisíao teria posto emevidência© ts - lativismo e o mobiíisnio das culturas, portanto a especiFiciêa- de das diversas comunidades humanas conduzidas pelo movimento diacrônico. Por essa dupla insistência, ©univecsalism©« o individualismo dos grandes racionalismos modernos estarias® sendo seriamente questionados.

Compreende-se, portanto, que certos filósofos ou políticos contemporâneos, que criticara a “racionalidade dos raodentes*,, tenham encontrado um recurso eloqüente no apego às teaása- cias historicistas: os discursos em favor das nacionalidades es das etnias, a reivindicação dos “direitos históricos” herdados âa tradição, os “diferencialisnws”, qae reclamam para as diveisss comunidades o ‘'direito à diferença” baseada no passado —esses são temas que se encontram por exemplo em Hannah Aresáf®- constituem a exacerbação das idéias subjacentes ao his!©ã- cismo de Savigny. Através deles, vê-se bemqae,ao c&etxêãa do racionaiismo universalista que fundou a fógica cofistiíticio- nalista e, a partir do século XIX, inspirou, no republicanas»® francês, a concepção dos direitos do homem, o historicismo.wum procedimento que facilmente se transforma eiu ideologia sá®- tante, faz ressurgir o poder dos particuíarismos e das singolaâ- dad.es nacionais.

Além disso, na vertente epistemológica do historieis®®, revela-se sua tendência redutora. Assim, quando Fr. Hayek, .em nome da evolução histórica e da hierarquia natural das sociedades, recusa o constítucioaalismo que tacha de “cartesiancr, e rejeita a racionalidade que pensaabstratamenteos .direitosêo homem, eie afirma que as regras do direito positivo são sais- ralmente fondadas: entenda-se que, segurado ele, a “ordem espontânea” que a história ensina prevalece sobre o artificiaiès- mo construtivista de que se orgulha a razão. É essa ordem isa-

88. E. Troellsch, Dei- Historismus und seine Probleme. Tübingea, 1922.89. Fr. Meinccke, Die Entsiehwigdes ílúiorismits, Munique. 399(3. H. Arendt, L 'impèriatisme, trai fr. Fayard.1982.

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184 OS FUNDAMENTOS DA ORDEM JURÍD

tural e espontânea e oão a legislação que engendra os direit as liberdades91.Desenvolvendo ao extremo o método ex.piieatwo e r

tor definido por Savigny, as f ilosofias jurídicas e política inspiração historicista deixam ver em sua postura o axioma e pirista que põem em execução. Mas, na confusão de temát e procedimentos que, ademais, foram reivindicados em tempo pela hermenêutica alemã e pela filosofiaexistencial quando ela culminou na versão sartriana da crítica da razão históric a historicização do direito provoca sua dissolução. Com efe a miscelânea dos temas historicistas possui uma heterogead- dade metodológica cheia de incertezas e uma riqueza perve Do poeto de vista epistemológieo, a hcterogeneidade do h ricismo envolve-o de um 'halo de indecisão: na postura hist eista, não se sabe muito bem se o homem está no mundo o mundo nele, de modo que se é obrigado a oscilar de uma ptura determinante - aquela mesma que estava programada - uma postura reflexiva que nada, na economia da doutrina, po

justificar. .Do ponto de vista filosófico, a sedução dos temas postos é perversa: se a dialética da história faz do homem o ele é, simultaneamente o homem, para conhecer a história, « terpreta o movimento que o modela e conduz: o “círculo hmenêutico” ifcseoha-sc assim como as paredes de uma pri intelectual na qual a idéia do direito se obscerece a ponto tàs ocultar a juridicidade essencia l .

Isso explica os dois tipos de críticas feitas à filosofia f toricista do direito.

As primeiras - formuladas principalmente por K, Popper - são de ordem metodológica e epistemológica. Sem dúvida,

visavam em primeiro lugar Hegel e Marx; mas, de fomia m ampla, Popper ataca a idéia, que se encontra de Savigny a Pue e também de Spengier a Toynbee, segundo a qual a histór seja ela progresso ou decadência, obedece a uma legalida imanente a partir da qual se tonia possí vel pi'edizer-'iiie o cur

9i. Fr. Hayek,TheConsiituihin of Libeny. Londres. Í%0.pp. 5'5 tmnfeém Droit, légisiafion. liheriéit. L 1973). trad. fr., PUF. 1980.

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A ENCRUZÍLHADA DO SÉCULOXX IM

ulterior. Esse “pobre método”, que se propõe a apresentar iam visão globaJizante ou hoíista do macrodevir, é, diz K. -Pagpar, “ura método que não pode gerar nenhum fruto’’92. De faêa, e-ia se baseia numa dupla ilusão.- Por um lado, é ama aberração crer que a história, em que surge a singularidade do aconíecimeaí-s. tem leis; só pode haver leis se fatos se repetirem. Por outro mesmo admitindo que certas tendências se manifestam et® se® curso, o profetismo é uma contradição: para que o faistoricism®,

em sua pretensão científica, pudesse predizer o curso futura é© éevir, já feria de conhecer o curso faturo 4a ciência; com© esle, por definição, é desconhecido, não podemos atribuir seiitaaffl figura ao futuro. Predizer o curso da história humana não passa de utopia. Portanto, o fato de uma teoria cognitiva da história ser construída nos moldes das teorias físicas só podevea&- tar em fracasso: o futuro não é predeterminado.

Aferrar-se à objetividade das ciências históricas, cornojã faziam Savigny e a escola histórica do direito, é negar ao t e

mem, apesar das aparências, a liberdade de inventar e de criar. Abre-se assim uma brecha na qual podem engolfar-se toãss as ideologias que atentam contra a liberdade: se as homens si® levados por um movimento necessitante contra o qual nada podem e que determina, ao longo do tempo, regras jurídicas trsss- mitidas por tradições e costumes, é fácil prendê-los nas tenazes de douírinas em que a sobredeterminaçâo elimina qualquer iniciativa. K. Popper concorda com Fr. Hayek: a “rota da servidão” está traçada; o totalitarismo espreita. N o método Mstet- cista há sem dúvida uma força dissolvente que é mais que metodológica.

O segundo tipo de crítica - formulada principalmente per Leo Strauss - realiza um mergulho filosófico até os “problemas fundamentais” e mostra que o historieismo aniqaila o ses- tido do muado e seu sabor. Baseado na incompreensão da “distinção entre fatos e valores”''-'', o historieismo não é apenas ama filosofia sem metafísica, é uma não-filosofia. Isso tem várias

92. K.Popper, Misère de f 'hisforicisme. ed. inglesa citada. Prefôcio. jp.. V.93. L. Strauss, Ladié ei / hontnie. 1964, trad. fr.. Agora, 1987, p. J5.

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A ENCRUZILHADA DO SÉCULO XX i'g?

metê-la ao tribtuial da tóstória constituído pek> píóprâo obesoda história! Portanto, não basta dizer que, para o realismo fe -toridsta, as noções de ctever-ser e de obrigatoriedade carecende sentido, que a exigência dc justiça desaparece, que a esperança de uana liberdade criativa está abolida; é preciso com

preender que o historicismo é uma doutrina que, como uni psão,gira em torao ie si mesmoimm mundo de-substaociaiizaáa.Ele prodaz a vertigem dovazio. O iwiHsiao é a cutaisaçã© ê©historicismo.

Apesar dos entusiasmos suscitados por suas premissas ®s-mâníticas, o historicismo leva para a beira deum preciplcksonde o direito, longe de encontrar sua fundação iMííjbs, pesãií, ao contrário, sEajwwiicida.de. Â historicização éo direito, á v ido ao procedimento reduciouista pelo qual foi realizada, é saadesnataração eprovoca o aniquilamento de sua essência.

Um viíàlismo com pretensão antijuridista: de Nietzsche.a Foucauit

Foi também oo naufrágio do direito no tião-direífo íf«e oá~mhíoa a tentativa da dogmática jarídica ájae, por volta des a w1950, preteadeu iaspkai-se aas teses metzsefaiaísss. 'Dessa-*®^foi em nome da vida que se interpretou, a crise da .I'egaÍMbÍ£ ese aplaudiu o declínio do direito. Segundo essa filosoüsjtaáe®que é áe oráeia jurídica,proviria da teania.do íioíhjsísvo s í svertigens do aiáversal que, por saa cacionalidade,itôeBèemm espontaneidade e a singularidade. Recusando a imi&wjKââafcidentitória para valorizar a difereaça, essa -aova filosofia setransforaioiL <iiz:e,la, no çaiiíor dqviteiUsma,

Tudo coineçoa com a crítica nietzschiana d<o Estada m&- demo^.-Comvm olhar cuja kscidez é tão tenificaitíe {psaíá®;f®B-fética, Nietzsche, que dizia de si mesGw: “soa dinamite” tesa

9-7. Para inna exposição gerai do problema. rsEieíentos a nossos écas&i-v t o s: Nietzsche et ía conversion métaphysique, Paris, La Pensée! 972; Nieizsche et la questioii pohiique.Si rey. 1977.

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A ENCRUZILHADA DO SÉCULO XX

ou de injustiça10': seja ele entendido de maneira imoral ou ji®*®- ca, todo, nesse discurso, érestrição davida. Assim, no direito jse- nal, cuja linguagem é a do delito, da íalía, da cuipabiíidade, ia- filtra-se a “lição de mora!” que envenena a moral dos escm m ligada ao seu eterno ressentimento. No direito civ.il. o fat©é s falar de propriedade ou de crédito revela de modo ciaro a obsessão com a economia, com a compra e a venda, que paralisa essa formas áridas o que, originariamente, foi força e festa; éum declínio,uma decadência. Os “abortos” já giram em serao i s ® mesmos no “deserto que cresce”.O .mí nimo que se percebe, ms sistema jurídico do Estado moderno, é que a vontade de poder converteu-se numa vontade de morte. G mundo se tornos ®

mundo dos “moedeiros falsos”. Então Zaratusíra estremece ásas- te da “grande fealdade, do grande fracasso, da grande dssgsst- ■ çsinm. “Quebrem as vidraças e pulemfora”1®- brada ele;esca pemdas garras deletérias da ordem jurídica. “O homem asase- ça só onde termina o Estado.”,m

Esse brado de Zaratustra parece ter sido esculado:vitám- tos ataques foram lançados contra o Estado, con£ra a lei, c<m®fb o direito, contra os juizes, contra as prisões... Não evocaretafís aqui nem oWeltsgeist em transe que, de sinistra meíiióna, goma.

Mein K am pf nem, mais perto de nós, o “retonao de Diosiã©"® a permissividade que fascinaram toda uma geração. O proble- ma do direito só transparece aí de maneira oblíqua.

Em contrapartida, quando M. Foucault, emVigiar ep m ãr (1975), aborda de maneira explícita a questão do dàeito pesai, não há nenhuma dúvida, à iuz de seus escritos aníeriores, üíe que está desenvolvendo temas provenientes de Nietesefee. MS© esconde isso. É empregando o vocabulário nieteschia!» <p£ ele pensa sua historiografia genealógica: pergunta-se se é passível “fazer a genealogia da morai moderna a partir de «ass história política do corpo” . A genealogia não é a história erapi-

Í 01. Nietzsche, A genealogia da moral. li» § 11.102. Assim fa lou Zaratusíra. ÍV, "‘O mais feio dos homens75.

103. Ibid., i, “Do novo ídolo'7.104.ibid.. L “Do novo ídolo”.

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190 OS FUNDAMENTOS .DA ORDEM JURÍDlC

rica; segundo Foucauit, é uma hermenêutica que busca não “proveniência”, mas a “emergência” 1®. Ela oondu? à ‘'anatomia política’5do corpo político106. Ora, no mundo humano, mnifestam-se em toda parte poderes, cada um com seu “modo âe produção” por meio do qual se afirmam. São as intervenções as relações desses poderes que, manifestando sua força prpria, constituem, em iacessaates variações e metamorfoses,tecido da realidade sóeiü-Mstórica. “As forças que estãoem jogo na história não obedecem a uma destiaação, nem a uma mecânica, mas ao acaso da tata. Não se manifestam como as form sucessivas de uma intenção primordial; tampouco iêm o aspeo de um resultado. Aparecem sempre na eventualidade singula do acontecimento.”1® Foucauit distingue - não sem certa estrnheza, pois evidentemente eles não pertencem ao mesmo .rgistro - dois modelos de “poder”: um, diz ele, corresponde representação jurídico-poiitica tradicional, definida pelas teorias contratualisías em que regras determinam o obrigatório, © permitido e o proibido10*; o outro, que se baseia, de maneira con

juntural, em impulsos da sexualidade, irrompe em técnicasés comportamento iestáveis e polimorfas109. Mas, seja qual fer aspecto que adoêe, a particularidade de todo poder é eiifreife outro poder, portanto rivalizar com ele.

Ora, nessa “eterna baüalha”"0, não há razão nenhuma p w . privilegiar o poder de Estado e sua poíêacia iegisladora, com se o Estado fosse o ce nto obrigatório de toda sociedade, como fosse centralizado e centralizador111. No entanto, como os eu t poderes, o Estado, desde seu surgimento que só pôde se dar pe violência - Maquiavel e Bodin o disseram, eisso correspenâe ao nascimento da monarquia na lda<Je Média exprime-se em

105. M. Foucauit. “N ietzsciiç, la généalogré, 1’hisíoire”, in Jfomnuiguã Jean Hyppoltie, PUF. 197Í. pp. 156 e Í64.

106.Foucauit Smveiüer et punir, Gailimard, 1975. p. 33.107. Foucau U. Hommage à Jean Hyppolile, op. cit., p. 161.108. Foucauit, La voionté de savoir, Gailimard, 1976, pp. 140-1.109. Ibid., pp. 193-4.110. FoucauitSun eiller et punir. p. 31.I ! l . /*/</.,p. 314.

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A ENCRUZILHADA DO SÉCULO XX •m

termos de forças.Em .razãode sua“anatomia”,o “corpo poSÜã- co”, exercendo suas forças, pode exigir, em termos ditos 6í<fc <Si- reito”, uma administração pública, órgãos de execução, e, simultaneamente, a obediência e a docilidade dos cidadãos, o ijsie sempre implica, para es governantes e para os governados, raaa disciplina e uma vigilância que resultam num universo carcerário- A partir daí, instala-se, sob coação, a “normalização” á© mundo cotidiano, isto é, a homogeneização de tudo o que a viá»

pode apresentar de heterogêneo"2: eis, segando Foucauit, © qste chamam de “o direito’5! Portanto, é preciso compreender que, ia® universo jurídico, seria exercido um poder violento: ioda le i diz Foucauit, é repressão; as regras jurídicas são técnicas áe dominação: “a estratégia da guerra em ato”"3. Além disso, essa estratégia se cristalizaria num aparelho que deaominamos Constituição ou Código, como se houvesse no texto de direito o«a “vontade de eternizar o -equilíbrio de poder presente”114. 0 ífeeã- to positivo, expressão normalizadora da disciplina, assemelha-se

a operações policiais. As decisões jurídicas decorreriam da tecnologia sociopolítica. Segundo Foucauit e segundo Nietzscte. esse “aparelho’' é o outro da vida; vai na coatramào da vida s contra a vida. Mesmo quando Foucauit fez uma diferença mtms lei e regulamento115. para ele, tudo o que é da ordem do direit* manda, proíbe, coage, disciplina, sanciona: é uma goiiiha na são presos os “ilegaiismos”, e que novas táticas correci®aat5 apertam cada vez mais"6. Segundo Foucauit, no aparelho juraák® a objetividade da regia esmaga qualquer impulso subjetivo, pes»o direito seria apoias manifestação de podei' e de vioSêncrâ-e., como senãs bastasse, de podere devioimem agidos. Nessa ca s- catura extrema do direito, estaríamos diante de um “posit ivènsf: no qual, evidentemente, não há o menor vestígio de valor.

112. Habermas. Le-discours philosophique de ia modernite. FrapMà&iam Main, 1985; trad. fr.. Galümard, 1988. p. 284. (Traá. bras. O discurso sófico da modernidade3 Martins Fontes, São Paulo, 2000 .)

H3. Foucauk./ . « d<?5mw,pp. H3, 135.114. Ntetzsche, La voíontè depuissance. IL § 4"87.i 15. Foucauit, Surveiller et punir. pp. ISO-ó e 2X3-5.116. Foucauit. La vobnté de savoir, p. 14 i .

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192 OS FUNDAMENTOS DA ORDEM JURÍD

É difícil ir mais longe que Foucault na desvalorização universo jurídico"7. Elechegaa dizer q®e toda concepção “ju rídico-discursiva” - seja oriunda do pensamento moderno, “poder de Estado”, ou esteja apoiada em qualquer micropod na sociedade - é propriamente insensata. As formas institucnais trariam de fato a lume a aberração inerente, segundo el ao juridismo e ao racionalismo (são a mesma coisa) da modnidade: o equívoco do direito saturai dos séculos X V il e XV que postulava um direita fundamental e operava com os co ceitos-ehave de contrato, de soberania e de lei, só se iguala

erro do cartesianismo ao afirmar a verdade primeira do cogito.0 poder legislador do soberano é o símbolo dessa forma de “tror” que acompanharia a afirmação racionalista.

Foucault junta-se assim a Nietzsche combatendo o que seu ver, são as formas jurídicas do poder de Estado: o direi como forma do Poder, e o exercício do Poder na forma do dirto. Mas vai muito mais longe na sua vontade extremada de ata toda forma institucional em nome da vida e de suas potênci A seu ver, o que, na esteira do juridismo oriundo do IluminíS-m é obstinadamente chamado de iim “sistema de direito”, privigia as formas e a arquitetônica jurídicas €, portanto, vai na co tramão das potências da vida como liberdade criativa. A cristlização das forças de vidaem formas de poder constitui a monstruosidade desse “novo ídolo” que é o aparelho de Estado. E se encontra em toda instituição: a propriedade, o casamento, tratados internacionais. Naquilo que Foucault denomina u “positivismo feliz”118- que, deve-se dizer, não tem muito a com o positivismo jurídico! - há, afirma ele, uma pura aberraçã

Como Nietzsche, Foucault considera o direito apenas i edifício a ser destruído: não que éte se faça o enaltecedor de um revolução destinada a quebrar tudo, mas o aniquilamento d ordem estabelecida faz parte da afirmação negadora que est no ceme do vitalismo. Na vida, com efeito, exprime-se uma a

117. A. Renaut e L. Ferry. 68-86, itinéraires de i 'individu, Gailim198?. p. 95.

1i 8. M. Foucault. L 'ordredu discours, p. 72.

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4 ENCRUZILHADA DO SÉC ULO XX 193

razão: portanto, o antiinstitacionaiismo é uma faceta do aaô- racionalismo cultivado pelo anti-humanismo de Foucauit. Aliás,o esquema segundo o qual ele redesenha o mundo humano tem arestas incisivas: uma vez que, nas suas palavras, tudo na vida é poder, um poder encontra sempre um conteapoder: assim sendo, o direito, no qual vê apenas um poder que impõe disciplina, está incessantemente exposto a outro poder que destila a dissidência ou a resistência. Mesmo que essa oposição não chegas a provocar o eiguimento de um contra-poder, é sempre uma demonstração da “grande cólera dos fatos”11’... Sabe-se que o antijuridismo de Foucauit serviu ao militantismo antipolííie© da geração dos sixties. Mas este já não é, aqui, nosso problema...

De um ponto de vista epistemológico, pode-se admitir, cas© se queira, que, no “saber singular” constituído por uma “arqueologia das ciências humanas”120, funcionam como instrumentos de análise três pares operatórios tomados respectivamente da psicologia, da sociologia e do estudo da linguagem: são eles a função e a norma, o conflito e a regra, a sigaifica-ção e o sistema. Entrecruzando-se “eles abarcam sem deixar resto todo © campo do conhecimento do homem”'-1. Mas, quando Foucauit fala de direito, efetua uma extrapolação que, caricaturando o universo jurídico, ihe permite denunciá-lo como desprovido «fc significação, de dinâmica e mesmo de funcionalidade: ena suma, afirmar que ele é um corpo morto. Assim desfigurado, o uei- verso do direito, declarado privado de qualquer estrutura normativa, ieva a declarar que é absurdo tentar compreendê-loem, termos de normatividade, de dever-ser ou, de modo mais gerai de valor: essas velhas categorias, que fizeram a glória daescola do direito da natureza e das gentes e do comtitweionãlistm) mo derno, carecem de pertinência. F. Ewald, discípulo de Foucauit. tira a conclusão desse veredicto: “O que chamam de direito".

i 19. M. Foucauit, exposição de A. Giucksman, Les maitres-penseunr. •Lagrande coíèrc des faits- Sobre Gíucksman., in Le Nouvel Obsewatcur, 9maio de 1977.

120. Este é o subtítulo de Les mots et les chosesy GaHiraard, 1966. (TrsíLbras. As palavras e as coisas, Martins Fontes. São Pauio, 1999. )125. ibid.. p. 369.

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194 OS FUNDAMENTOS Dá ORDEM JUR/Df

escreve ele, “é uma categoria do pensamento que são desig nenhumaessência, masservepara qualificar certas práticas” que sempre sereferem,ao contexto cultural de ama época, a pressupostos históricos'12. Portanto, o direito é feito de nã direito. Nolimite, é um epifenômeno que implica anegaçãodn própria idéia de direito. 1 Habermas esclarece a razão dess

antijurídismo: nas democracias ocidentais, qae tendem toáa para o modelo do Estado-Providência, fácil de contrapor ao E tado-polícia, o direito, diz ele, desenvolveu-se “segundow m estrutura cooSraditória...; os meios jurídicos que garantem a lifee dade é que põem em perigo a liberdade daqueles que supostmente deveriam usufruí-la"123.

Á condenação generalizada da norniatmdade

Diante das tentativas do reducionismo e do antijuridisEB que marcaram as últimas décadas, cumpre acatar aevidêacia:as idéias diretrizes quei n s p i r a r a mo direito constiíuciona! pós-revolHcionário e os códigos napoleônicos estão sendo atacdas por todos os lados. Ora, embora as doutrinas e as filosofi que conduzem esse ataque sejam mais críticas que coiisSrefe e, como tais, não permitam muito garantir a fundação do direto - embora, em outros termos, dêem provas de um ^acasw â filosofia do direito seu significado geral merece ser cea preendido. São testemunhos eloqüentes —talvez demasiado dt qüentes - da crise que, nos últimos cinqüenta anos, mina a csl turaocidental dominada pela “metafísica dasubjetividade”. Cosaefeito, sociologismo, historicismo e vitalismo abalaram o naw do jurídico até em suas bases.. A descoberta deum-Lebenswek, ainda mais profundo que as estruturas movediças do maislB cotidiano, sacudiu as certezas racionalistas a tal ponto que, .daqs

122. F. Ewaíd, L 'Étai-Proxiâence, G ras se t í'986, p. 3G. Cf. íarráséíTL t olice, égaUté, jugement, in CaJüers dephilosophiepoUtique etjwhiique, ri?T&K-f: L 'égalité, Caen , 1985, pp. 2 i 7 ss.

123. J. Ha berm as, Le discGitrs phtíosophique dela modermté. p. 34:5.

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A ENCRUZILHADA DO SÉCULOXX 195

em diante, a racionalização do direito parece ser sua desvila- lização e suadesnaturalização.Desde então, o discurso tfS®- sófico, mais prolixo do que nunca, envereda por vias nas «pais “a crise do direito”, associada àshesitações ouàs comoções que ocorrem na política, é levada ao paroxismo. Uns falam és agressividade e do terrorismo, intelectual ou físico, que provocam a derrelição dos sistemas institucionais: é “a barbárie com feição humana”... Outrosmsistemna violência dos fenômenos

revolucionários que são o traço característico de uma sociedade desmantelada... Outros vêem b o condicionamento do honaesa por uma máquina burocrática que o devora o caminho que lera diretamente ao esmagamento totalitário... De aparência mais hi®~ derada. embora igualmente vinilentos, certos aateres denifflcssi® a tecnocracia que, com a ajuda de poderosos meios informáticos, arruina o universo jurídico que. amaahã. estará aniqmia- do... Por todos esses-caiiíinfaos, o direit®, longe de exprimira® dever-sere de comunicar seu sentido contra um horizonte axi©~

tógico, parece ser o tema áe uma “razão instrumental”, dtjss resultados são estabelecidos de antemão por unia ampla teesa dos jogos. Em suma, do universo jurídico {oh político) edãficaib .pelo racionalismo modem© sórestam, dizeminúmeros atâo- res, dadas as contradições mortais por e k instiladas, ruíaae pó. As próprias esteuturas jurídicas seriam responsáveis peto dissolução do direito: aeias se teria manifestado “o processe autodestrotivo do Ifasminismo”'^.

O ajitijuridismo selvagem, que combate a propriedade pri

vada. o direito de famí lia, o contrate secial, o direito peaal afe, seria portanto apenasí h r aspecto de uma atitude muito asais abrangente que reflete um anti-cacsoRafenio generalizado, sofee- íudo vingativo desde a Segunda Guerra Muadial Essa “aawa filosofia” que agita a bandeira da “pós-moderiiidade” deMEsia a paixão pelo absoluto qne, a partir da Revolução Francesa, permeou a obra dos jaiisSadores. Num mundo desertado por Bem,o homem, íomando a frente do palco, acreditara no valor âm principios eternos ceaítados na razão, imóvel e sinatãveL A id ;

324. J. Habensas,op. cã., p. 128.

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196 OS FUNDAMENTOS DA ORDEM JURÍDICA I ENCRUZILHADA DO SÉCULOXX I f f

.geradora de liberdade, o direito, dispensador de justiça, a virtude, escola de grandeza, deveriam ser o resultado da “revote- -ção do cálculo”. Acreditava-se que «ma vontade calculista e uma raras tecnicista bastariam para construir e manter o equilíbrio do mundo. Mas essa fé racionalista, costuraa-se dizer hoje, era um profundo engano. Os próprios fetos o demonstraram. Chega-se a afirmar que as construções demiúrgicas da juridkã- dade dos modernos engendraram, com uma prática discursiva estereotipada e repetitiva, uma ideologia de robô. As am bições

íecnicistas de um direito racional funcionaram como mecanismos de exclusão. Isso seria particularmente notório na pirâmide jurídica redesenhada por Kelsen, freqüentemente atacada pelo fato de não reservar nenhum fagar, no edifício do direito, para os silêncios e as lacunas: diz-se que o exagero tecnieista á® discurso jurídico seria como que o desafio que a razão, ao se hipertrofiar, lança a si mesma. Ma veedade, tudo isso-começo®

já no fiaal do século XVIII: a “ paixão p ela Lei” e o culto da ordem jurídica alimentaram um delírio racional, que aão sé é contraditório em si, mas se inseria na prática por meio do inchaço administrativo, do jogo de cbieanas, das negociatas, das transações e das manipulações. A decadência do jurídico nascsa de sua prç fusão. Sua hipertrofia provocou sua erosão. Então, obedecendo â mecânica tecnoburocrática, o direito tomea-se uma máquina diabólica, sempre pronta a funcionar a toda e qa®, por sua própria mecanização, co locou fora de circuito a realidade social, a vida e a história. O surto anti-racionalista de affia certa filosofia contemporânea teria encontrado sua razão de

ser nas contradições inerentes à racionalidade jurídica.Filosofia “reativa” por excelência, o anti-racionalismo pretende portanto devolver à experiência social e à vida, condaíá- das pelo movimento da história, os -poderes de que as p rive* a codificação sistemática do direito. É preciso avaliar o se slá âs eo alcance dessa reação. Constatado o “declínio dos absolutos', o antijuridismo suprime qualquer idealismo: muito se falou <ís “desencanto do mundo”; o céu é reputado vazio; por conseguinte, acreditar nos valores é o u absurdo ou insolência. Paia se opor às vertigens idealistas e aos entusiasmos ideo lógicos, ©

realismo impõe o se ntid o do rela tivo, que pretenderia ser a “ íi- ehdade à Terra” em que Zaratustra via a condição necessárâa

1ara instaurar uma “nova tabela de valores”. Mas o relativis-ns»i ue caracteriza a “nova filosofia do direito” não significa - coa ® 13,explicara Montesquieu - que as “boas leis” sejam aquelas que uma relação de conveniência atribui ao “espírito geral de unia nação”. Ele tampouco designa o.pluralismo que R. Am a contrapunha com lucidez à unilateral idade dos regimes mos®- uáücos. Esse relativismo é o temor do im nu aiv o, porque nele se

n;ita uma espontaneidade que zomba da ordem, da coerência e (. is continuidades; é uma rev olta contr a os valore s; essa revoí- *<transforma-seem critica e em recusa de qualquer n&msãtâ-i idade, que culmina com a diss olução d e to das a s normas.

Dito de outra forma, uma vez q«e a categoria do jurídicoé desprovida de essência e de valor, o direito, em última análise,i to passa de uma palavra. Como já não se reconhece nele si lutondade d e uma fundação, essa palavra adquire, no melhor dos c<sos, uma ressonância prático-empírica da qual apenas o isss-I >rate que passa é juiz. Um dos resu ltados provocados pe la áes~ » uição dos parâmetros da modernidade é precisamente ess e i[ i.ego ao instante presente, o que significa a recusa do tempm. J por i ;so que o universo jurídico se revela hoje composto dse a rtes descont iauidades, falhas, hiatos, mudanças de direçã®. 'i. distribuições evidenciados pelas incessantes reformas dase s -

í( cnws. Há nele mais vazios que cheios, mais incoerências qae i^usalidades, mais negatividade que positividade. N esse uhwbf- ''Oque nega a duração, não há lugar nem para a tradição bs®

p ’ra o progresso, e o direito já não tem um faturo para preps- r - O enfraquecimento do direito logo chegará a seut«ra?e« um novo niilismo poderá desabrochar.

p pM n efeito , quando, pelo jogo das contradições e das aaft- nomias tudo acontece como se fôssemos obrigados a resas- < ffia finalidade, a recusar o horizonte dos valores, a.rejeãar «s1cerc es de um solo fundador, nao há outra solução senão r®-

II <spF'se à erupção imprevisível do acontecimento. Mas, «e sse < íso, não pode haver estabilidade institucional; os conceitosk as categorias j urídicas ficam evanescentes e desprovidas ée síg -

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198 OS FUNDAMENTOS DA ORDEM JURÍMCA

nificação. H. Arendt designa esse estado de coisas como “uma crise da cultura”, como uma “desolação”115. Isso ainda é pouco: a partir da postalação da “morte do homem” que, depois da “morte de Deus”, embasa essa visão do direilo, a “liberdade de tempo presente”126corresponde à “era do vazio'’. Todossabemno*que deu, há uns vinte anos, a mistura, no discurso e na prática., das teses <ie Altfeusser e de Foucauit. A mesma maldição pesava sobre o direito, sobre a razão e sobre a modernidade; já não se tratava de compreender; era preciso destruir. Esse negativo perfeito viria a se chamar “pós-modernidade”.

Assim, a demolição dos “sistemas jurídicos” sob as iavec- tivas do sociologismo, do historicismo e do vitalismo vai muito além de uma guerra dirigida contra o juridi.smo e destinada a pulverizar a arquitetura constítucionalista do direito moderno. Ela é um dos episódios do combate travado contra © pensamento moderno. £ comum declararem que o desenvoivíníerS-Q do pensamento desde o movimento das Luzes - sobretudo áas Luzes francesas - veio acompanhado não só de uma “íraiçi® dos intelectuais”, que inevitavelmente viria a provocar a crise do racionalismo, mas de uma erosão da própria razão que chegou até à sya supressão . À crítica da racionalidade jurídica presidia à edificação dos grandes sistemas constitucioaalissbas e dos códigos insere-se na moda aníimodema que deseavoh-e suas estratégias não contra o racionalismo mas contra a razão: entenda-se, não contra uma opção ou uma participação fsfosó- fica, mas contra o instrumento de nossa cultura ocidental, porque ele é gerador das contradições que levam sua obra ao esfacelamento. Denuncia-se, portanto, particularmente no diteite,, mas também na pSlítica ou na arte,

osefeitos perversos de ama

racionalidade teórica e abstrata, cujas pretensões à generalidade e à universalidade são, dizem, desmentidas pelos fatos. As ambições arquitetônicas do homo juridicus. que quis recoíistíurlr o universo cota conceitos abstratos, categorias gerais, esqae-

!2’5. H. Arendt, La crise de la culture. trad. fr., Gallimard, 1972.126. R. Poiin. ííi liberié de notre temps, Vrin, 1977.

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Capítulo III

Os caminhos da “ontologia jurídica ”

Com um olhar .profundo, Heidcgger interrogou o pensamento de Nietzsche. Por ver nele o fim de uma época do G.cã- deníe, anipiiou sua meditação para os “tempos modernos”, remontando assim a Descartes cujo cogito inaugura a filo sofia da consciência. A seu ver, o drama é patente porque, desáe então, a história da razão e o tocbaço da subjetividade rs^etea.® total esquecimento do Ser. E portanto preciso sair desse drama filosófico, virar as costas para esse “sistema”. Isso sé é possíwâ pela ruptura cora a racionalização tscnicista que, no huiíiaais- mo dos últimos séculos, atesta a pretensão exorbitante de querer dominar a natureza e a sociedade. Por isso o percursofilosófico de Hekiegger consisteem abasdcsar esses HokMie§e. esses “caminhos que não levam a fagar algum”, a fim de feaçar a estrada em que “o pensamento do Ser’ toma-se (ou vote a se tomar) possível1.

Simplificando muito - pois Rossa finalidade aqai é sosssa- te a de evocar o ponto de partida metodológico de uma cecteíSe de pensamento que se louvaem Heidegger - p©derían?os f o

que Heidegger, para afastar o conceito e reencontrar o üer pw- dido, desiste de investigar os horizontes identitários revelaêss pela razão: é a única maneira de captar a “diferença ontolégica’” da coisa mesma. Corapreende-se, nessas oossdiçêss, que soa <*-

1. Cf. M. Heidegger, inQueslions /, Gallknar-d. 196S:Ou ‘esi-oe q&eSv mèiuphysique? (1929);te retour au fondemeat âe ia Ideníiié et <ii$èr<mce {1957). Essa tendência a pensar ,lo ser do -Saacomprovada nos dois números da revistaBroiis , n0*X e XI.PXJF. 1989CI990.

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202 OS FUNDAMENTOS DA ORDEM JURÍD

losofia implique como condição prévia a “crítica da modedade”: essa “desconstiuçâo” é necessária para reencontrar a “pensamento essencial” que seja a rememoiação do Ser. outras palavras, Heidegger pretende inverter a inversão filofica que, segundo ele, a partir de Descartes, anunciou o fim ontologia: o primado do cogito sobre o real, portanto do sujeit sobre o objeto, de fato provocou em toda a modernidade a p dicaçãológica do Ser; foi, em nome áa razão, o fim da ontogia; o esquecimento do Ser estava consumado. Já é tempo dar o “passo para trás” que apagará esse gigantesco erro. Is não significa que Heidegger queira restaurar a metafísica clsica que reflete a decisão grega da qual foi o desenvolvimento seja, que o ser é o que se opõe ao devir e se distingue do parecer., o que implica a idéia de auíofundação do ser. Heidegger reje essa maneira de pensar o Ser. A seu ver, no tribunal da crític Kant teve razão de mostrar a ilusão que persegue a metafís ontoiógica e sua irresistível tendência a “realizar” as Idéias Deus, do Mundo e do Eu. Ao afirmar a objetividade do qu apenas subjetivo, a metafísica ontoiógica clássica confun ao longo de sua história, o que é da ordem do conhecer e o qae ê da ordem do pensar. De qualquer modo, não há nada de bot para dizer-nessa via e a repetição seria estéril. Então, consirando que o sujeito pensante não é o princípio de todas as cois Heidegger pretende seguir outro caminho.. Sua filosofia ab dotia o discurso logicizado que exige a articulação sintática signos e busca reencontrar a visão pré-socrática do homem-tos do-no-ser-do-mundo, na qual nada é discurso e tudo é poema

As vias suntuosas da ontologia heideggeriana exercera

um extraordinário poder de sedução sofece o pensamento c temporâneo. Das perspectivas traçadas-por Merieau-Ponty, vezes em notas obscuras emO visível e o invisível, à “ontologia jurídica” que pulula em nossa época, muitos foram os fisofos que quiseram, como Heidegger, reencontrar o ser perdo e retomar à ontologia. Assim como a filosofia em gera filosofia do direito, com maior ou menor consciência de u fidelidade mais ou menos verdadeira a Heidegger. envered pelas vias da ontologia. Nos inúmeros ensaios que se muiíi

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A ENCRUZILHADA DO SÉCULO XX 2 0 1

cam sob esse vocábulo, é difícil precisar o sentido da expressão “ontologia do direito”. Ela sem dúvida se reporta ao «pe© direito é e reúne estudos sobre a natureza do direito.. Mas §*á que convir que o termo ontologia possui então uma aosftçã© tão ampla e tão vaga que toda a filosofia jurídica poderia, m limite, pretender relacionar-se com a ontologia. Além disso« sobretudo, como não se impressionar com a incessante controvérsia que é freqüente nos ensaios ditos de “ontologia” jraMi- ca? Foi o que mostrou o recente colóquio em Paris cujas À*as

foram publicadas por P. Amselek, precisamente com o f e á o Controvérsias em tomo da ontologia do direito2. A Gntofegjia parece ser aí uma categoria Filosófica de tamanha exteasã® que nela se encontram tendências tão diversas que chegam a se opor. “Entre as mentes não reina nenhum acordo sobre o ser á® direito”; as “divesgências de visões” são profundas e, messsa “numa abordagem perspectivista”. o que se escuta no âmaga de uma “paisagem copiosa e confusa” é uma “cacofcata’5. entanto, o “balizamento das dissonâncias ontoíógicas que colo

rem essa paisagem” é instrutivo, ainda que longe de ser senhas convincente3.O desejo de pôr ordem nisso provém decerto das exigi®-

cias da razão dos modernos, pouco compatíveis com a revives- cência contemporânea da ontologia. Contudo, segirósmos o “esquema de enquadramento” proposto por E. Pattaro4: segundo efc, confrontam-se três orientações ontoíógicas, as quais ele cisas® respectivamente“objetreismo”: o direitoexiste; “subjetivisBj©”': o direitoefeito pelo homem: e “posição intermediária”, segs®-

do a qual o direito existe nos “fatos institucionalizados”- Esse esquema nãoénem exaustivonem indiscutível.; maste®o-ssé- rito de espelhar as incertezas instaladas no cerne da “oMofagia” contemporânea e de revelar as dificuldades que se a c n t e n e se emaranhamassim que se íeaía apreender o que“é”oSmte .

2. Sob a dÍKção <áeP. Amseiek e Ch. Grzegorczyk. Controvenses autaur de l'ontologiedudroü,PVF,\9%9.

3. P. Amseieíc,Controverses auiour de Voruoiogie du droit. Preãíiteás,

pp. 6-7.4. C. Pattaro.,ibid., p. 217.

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204 OS FUNDAMENTOS DA ORDEM JURÍDICA

A tendência dita “ofofetMsta”: © direito “existe”

Fazer uma classificação fica ainda mais difícil peão ‘faío de que situar um autor numa categoria doutrinária não oíèrcce. em si, grande valor. E. Pattaro tem perfeita consciência disso ao propor apenas o n “esquema de enquadramento” que deixa espaço para diferenças teóricas que são bem mais que simples variantes. No entanto, concordamos com ele quando situa as teorias de Michel Vílley, Ronald Dworkin e Helmut Wilike stíls o signo do “objetivismo”. Com efeito, o principalleitmofiv ia Filosofia do direito de M. Viíley consiste em situar a jimdiciâa- de nas coisas: o direito é, diz ele, um “universalin ue”. A posição

adotada por R. Dworkin é complexa e tem outra tonalidade: © direito é mesmo, segundo ele, uma realidade independente áa obra humana, mas o importante é interpretá-lo para poder, como o juiz Hércules, apiicá-io. Portanto, o direito é constituíáo, objetivamente, de proposições de direito cuja significaçãoê preciso captar. Quanto à teoria da autopoiese de N. Luhmaus s de H. Wiilke. ela é objetiva na medida em que o direite, ssã- nfao,faz odireito:corno «marealidadefísica ou como uma espécie animal, o direito se autoproduz, sendo que sua aetogêaese (iaiítopoiein)constitui seu próprio ser(einaí ).

O realismo mmanizante de Michel Villey

A “ontologia otejetivisía” é dominada, em primeiro legas; pelo realismo de M. Vilíey: o direito existein re, é imanesfe-às coisas. Contra o nominalismo e antes das derivações que ele suscitou a partir de Guilherme de Occam, considerado o fs®~ dador da via moderna, bem como contra a Natutrecktsphobèe- que nos invadiu a partir do século XíX, M. Viíley derM»eia o postulado kelseniano .segundo o qual, doSein, seria impossáwá tirar Solien5. A sen ver, os romanos compreenderam maravilhosamente que o Ser - oSein - é por excelência olugar é®

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A ENCRUZILHADA DO SÉCULO XX

direito. Isso explica a vontade constante de Michel Villey de voltar ao direito de Roma, que extraía sua alma da idéia de raa direito natural fundado na natureza das coisas.

Segundo Michel Vlley, o individualismoé a doença dos tempos modernos qae matou0 Eealismo do direito clássico. A reivindicação, hoje inflacionista e subversiva, dos “direitos á® homem” ocultou a natureza do direito esuprimiu-íhe o sesíiás.

Ao longo de sua obra6, M. Vittey analisou a gênese do mdm - dualismo, que eleaemsempre distingue dosubjetivismo-em- pirista nem, o que é mais discmtíveJ, da filosofia dosujeitoracionai qae implica, ao contrário doque ele afirma, referêscía ao universal. O ‘individualismo’', explica eie, originou-se, par etapas sucessivas, da moral cristã, do nomirialismo occ&ímw® e do humanismo renascentisía, o que provocou, no início do século XVII, uma tiiplice ruptura com o aristotelismo, o drreiie

romaao e a espiritualidade cristã. O “momento oopern-icano ás ciência do direito’' resulta portanto da superposição de iaílaéa- cias e de rejeiçõesque prepararam, “aa fronteira de doisí h i s s -

dos”, um tempo de ruptura e ás raatação marcado de erros s coníra-sensos.

Nosso propósito aqui não é explicar o movimento isSa- cionistapeto qual, do século XVII até nossos dias, o individualismo foi levado. Lestífereaíiss aparas que, para M.. Villey, fié~

sofos como Hobbes, Locfce, Rousseau e Kaat, juiiscansfites comoBodin,Doneau, G?oíius e Pufendorf são os respoE&áifigÉs

6. Toda a obrade Mk&el Vriie^' veicula a 'siesmaidcia-força.C zizaéms em participar: Recherd ies su r ia HíférGCune dzdacíiqve chi droii ramsmz, Montchiestíes. 1945; Leçons d'hisioire deiapín losophie âu drwt, 2?ed..Seize esmis.de philosopíde dxt droit^ DaHoz, 1969;Critique, de h psusêgfwíí- dique modeme. í915; La fonnaiion de iafjeftséejwidique modeme, Mciiscàrc*-tien, 42 tx L 1975; Phiiosopfiie dt4 droif, 2 U D a l to , 1975 e Í979: Le droií-x les drotis de l 'komme, PUF, Í953. Destaquemos as Atas do Co.léq«b M&Associação Francesa dc Filosofia do Direito ác !984; Michel Ville:v.

phe du dfviL Aix-en-ProYen ce. 1985. Retomamos aqui os temasvoivernos para esse Colóquio com o títuJo '‘Michel Vütey. criíique de í-sm#*viduaiismeVpP 73 92 Cf também A Sourioux ”Leclroit rmtiirelde

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A ENCRUZILHADA DO SÉCULO XX m

Aristóteles e pelos juristas de Roma. MichelViliey duvida<pe se queira realmente isso: é até .muito severo com seas.contemporâneosque apreciara, como K.aní, que tudo gravite em tos®© do homem8. No entanto, a se« ver, nãoM outooremédio pasaa doença individualista do direito atual senão uma volta passa aquém do estoicismo e do neo-estoicismo cristão.

Em primeiro lugar, explica ele, é preciso renunciar totalmente ao positivismo jurídico ao qual Hobbes - ele simplifica muito - abriu o caminho: essa renúnciapermite cecupesãe® direito aaíaral. Mas não é qualquer direito saturai: poistambém“o suposto direito natural da épocamoderna, que ex*nâ ©direito da razão dos horoeas”, como acreditaram poder fa s r Grotius, Zoucfa ou WoífF, e depois Kant e os neokantianos, esfii gravemente comprometido. O direito natural não pode ser d e

duzido da “noção tacanha” e abstrata de natureza humana. © direito natural tampouco designa o que acontece num faipoSé- tico (e problemático) estado de natureza, mais conceituai «gaze real. Eie é exclusivamente tirado da natureza, pela obserre- ção das próprias coisas às quais ele pertence. Ele exige o esü- prego de “um método experimentar”. O autêntico a a t o s i m ê portanto umrealismo, ou não é. Isso significa que, aa natarem. que é umconjifflto cujas relações intrínsecas o direit© rege sess

nenhuma mediação, não são só os homens que contam:« «[se importa são as relações entre os homens e também as relações entre as coisas-e os animais quecompõem o gm nde Todo cós mico. Para escapar dos sortilégios vinculados à idéia <fc sapato, é preciso renunciar, portanto, a esse aatropocentrisisno spc ê como que a loucurado mondo modemo. E precisodeixarée acreditar que é o homem que “faz sozinho seu direit©”, e devolver à harmonia natural, que é umequilíbrio entre as coisas, os animais e os homens, sua figura de verdade cósmica. A v>sí- dadeira fontedo direito não está em nós, mas “fora de aás”. A conseqüência é perfeitamente ciara: o homem - ainda qsae se insista, como Kant (a quem M. Viliey atribui paiticulaím esssa

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208 OS FUNDAMENTOS BA ORDEM JURÍDI

responsabilidade de ter prejudicado a compreensão das fonte do direito)1", no fato de ele ser um ser livre e voluntário - “aã é o criador de seu direito”: não cria normas; pode apenas “afes íraí-las das coisas em que elas nos são dadas”1'.

Por isso. ao método “subjetivo” deque,até Stammler0a Del Veccfaio, usam e abusa® os doutrinários do individualism M. Villey contrapõe o naturalismo aristotélico, cujo principa mérito é não colocar o tomem no centro do mundo, pois saf como não descartar as causas finais. O naturalismo do Estajá riía, diferentemente das ciências resokitivas-compositivas ga só conhecem a via das causas eficientes, não é desprovido alma. Propõe ao homem uma ordem dosfins,isto é, uma ordem de valores que a prudência do jurisconsulto tem por função reconhecer e respeitar à luz de princípios«miversais. Assim, ceaclui M. Villey, a doutrina do direito natural escapa da esterilidade e da arbitrariedade de todos os subjetivismos12. Poríass&o “partir da observação da natureza, abeberar-se em Fontes ríbjje- tivas é o único procedimento”'1'’ que pode deyolver ao târcit sua verdade substancial.

Conte as vertigens idealistas e a proliferação dos dije«i© do homem a que conduziu a glorificação do sujeito, M. ViM louva a perfeição da ju stiça tal como ouiror-a a concebeu Aiãs- tóteles: buscar a justa repartição, “a parte que cabe a cada ®e ua partilha dos bens”: suum cuique tribuere; se um litígio ase opõe a ©Ktrem, encontrai' “o justo limite entre meu campo e © do vizinho”’". O justo, que o juiz tem por função deteriaisa concretamente, indica ''uma proporção objetiva entre mea fe w e o do outro”. Nele exprime-se essa “justiça distribuíra" mjB sentido os homens de nosso tempo, que Uido reduzem ao '-caí

Eh”, perderam, o que os impede de se entenderem: como pode riam eles resolver suas 'divergências'já que fttndam o jasto ®a

10. Ibid., p. 129.i 1. “Coutre 1'humanisme juridique'', an citado, p. 203.12. Lfíony d 'histoire de la philosophie du droit, Abrégé du droit r>8&-

rcl cíassiqiic. p 135.13. Ibid., p. 1.35.14. Philosophie du droit, 1.1, p. 65.

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A ENCRUZILHADA DO SÉCULO XX

consciência? Que esperança podem ter de eatrar em acordop que o justo, ao sea entendimento, deriva dos dados interiores ia razãoi5? Paia abrir wmdiálogo, para eaírar em acordocosaoutrem, é preciso “ama referência cosmtm” que, evideisteineB- te,escapaà subjetividade;nisso Michel Villeycondena, «a®amesmalecriaiiriaçâo, a subjetividade empírica doeu [moi\ e a subjetividaderacionai do Eu [Je], entreos quaisnão faz diferença; ao mesmotempo, acusaopositivismo áe apenas pcepar

“regras rígidas, desencarnadas,inutilizáveis”. Por conseguinte, já está ua feoradecompreender que o direitoaãocorresponde * essas reivindicações individuais queeaveaenam o mundoé s nossa época.O justo temuma dimensão objetiva que seexpi-mesempre por uma relação, daqual avida socialfornecedois exaspiosnotáveis:as distribuições e as trocas55. Nessas&uscircffitstâficias, todo©empeahodo juiz, qae coasiste«sn eason-trar“o imeio justo”, istoé, a proporção adequada entreas coisas, mostea claramente que o direito é, como dizia SaotoTomás, m

re. É certo que Sasto Tomás coacede, como asfes deteAristóteles,queo direito natural muda, que as leis são assiáveis, fae® visão d©juste é relativa. Mas, precisamente,é isso oqae im -porta: o justo isãoé um ideal, -um modelo, mn “ser i®agÍHÍrí®moriundo, sobre a base de um sonho, bem mdmdu&lisía, de iiaei- dade e de igualdade, de uma pura construção teórica'7. É preei-so desconfiar dasegurançaaltaneira de que a iHoéBraiâa<fe, sm seufervor racionalista, se muniu desdeDescartese queacrai-tou confirmai; nos caminhos do fcintismo, a m seaprocedis^a- to dedutivo. O justo não resuíta dasestiptdaçõesdaleicoasfeó-das moiv geometrico. É a “soteção adaptada a nossa .coMifã® presente”” e, como tal, exprime uma “justiça particular”. Sea “ouro..puro” éextraídodomundo visível.desseco.a^osto-oíff'- tivo eoique os.atos humanos se articulamás coisas e. se.ias©-, rem nas relações sociais da vida concretafamiliar. prefisskssisl

15.Leçom d hisiotre de h phiiosuphie du droií , p. 06.

16.Jbe droit eí. (es droils de í 'homme. pp. 50-1. Í7. ibid.,-p. 39.,]8. Leçom dlüsxoire de ici philosophie du droiu Abrégé du drok

rei ckisskjuc. p. 143.

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A ENCRUZILHADA DO SÉCULO XX 21 à

sendo o direito definido pelo jurista Paulo, já ao título 1 do Di- gesto, como uma coisa - id quod... aequm esl —, essa res Justu implica as inter-relações q«e li gana os homens na partilha das coisas exteriores: o direito é “fração das coisas e são poáer [dos indivíduos] sobre as coisas”.Emconseqüência, o direit® romano foi um ars juris, o ars bom e t aequi. Q 'trabalho dos js - nsprudeRtes consistia em determinar, caso por caso, o justo e ® injusto “recortando no interior 4o confeerimanto das coisas m campo de estudo mais restrito”35.

Segundo M. Villey, o dogmatismo iadjvidhafeta que acoss- panha o orgulho do racionaiismo moderno é uma -espéae nardsismo cujo erro de perspectiva é intolerável para o direiSs.. NossoCódigo Napoleão participa da embriaguez sub jeíivK- ta que falsifica a juridicidade e demoestea uma espécie áe “barbárie intelectual”. Confessando sua opinião pessoal, M. Villey escreve: “A linguagem romana me parece mais kvtdi- gente que a nossa.” Os juristas de Roma .formulavam simplesmente a perguntaQuid jus? e, em saa preocupação com o ser mesmo do direito, tinham razão, até duplamente razão. Por aa* lado, seu senso da ontologia era profundo e, para eles, coras para os grandes filósofos gregos, a .busca da verdade passada pela busca da essência 4o que é. Por outro, numa p&ssagem <gae se assemelha a um testamento filosófico, Micfael Vilfcj' escsv ve; “Acho que a necessidade de um retomo à filosofia olásswss do direito natural fica cada vez mais evidente... A única pjsSa que ectrevejo para que haja ama chance de avançar na sg!«çíb desses problemas jurídicos hoje delicados [‘"levantados acSa- damente pelos ecologistas e .pelos amantes da bioética” Jé v©!- tar a coasiderar até a ordem raataia! cósmica: ou seja,, essas relações implicadas na ordem da natureza... Volta a ser iíiá i^ sa- sável para os juristas reconhecer a presença de uni direito ®as'

coisas?25

24. Le. droát-et les drvits deVhomme, p. 66; c “Lagenêse du éí'<ni su%*sc-tifche OuiílaumesTOccain” m Archives dephiíosoptiie du drolL1964p

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212 OS FUNDAMENTOS DA ORDEM JURÍDICA

Ronald Dworkin: “levar o direito a sério ”

Por sua vez, Ronald Dworkin. para afirmai- a realidade objtiva do direito, considera-o de outro ponto de vista26, sob o .âgulo da prática social. Nos diversos artigos reunidos emTèMmg Rights Seriously, ele admite que o direito comporta, além do princípios de moral política que lhe definem a orientação, corpus de regras positivas em vigor hic et mmcr'\ mas recusa- se a explicar-lhes a normatividade por referência a seu conteto institucional: admitir, como o fazem N. Mac Cormick e

Weinberger, que as regras de direito são “fatos institacioBais” é, segundo ele, uma posição que, enveredando pelo mais pa positivismo, recorre aos postulados racionalístas e àquele.prcedimento dedutivista que pretende fechar o direito aum sistema cuja “completude” não deixa nenhum lugar para as lacuaas Esse é o erro que o exame da própria realidade jurídica tora evidente. Portanto, aos consíruíivismos lógicos, R. Dworkia ptende opor sua visão realista do direito - que foi dassiíicaáa como “ontologia objetivista”.

R. Dworkin situa sisa filosofia do direito em relação á

teses de H. L. Â. Hart®, a quem reconhece inegáveis mérito Por um lado, diz ele, H. Harí mostrou que o direito não se iíie tifica com um conjunto de regras determinadas peia voitóaá livre e pela decisão exclusiva do legislador ou do consíitem por outro lado, renunciou a ver no juiz, segundo uma fóasal memorável, apenas a “boca da lei”; por fim, destacou ciara mente que as normas jurídicas pertencem a dois níveis diferea tes: o das regras determinadas e o dos princípios fundaíaesíai dos quais elas recebem orientação ou finalidade. No esgaot

26. R. Dworkin,“ La compiétude du dro if, inControverses.... jç>. 127-36; cf. Taking Rights Serioash, Harvard Uísivcrsity Press. Londres, 1977,£ ed. completada, 1978 (trad. bras. Levando os direitos a sério. Martins fofiíes,São Paulo, 2001); “La théorie du droil comme mteiprétatíoa". in Droit e) So- ciétè. 1985, n? 1;lxt\v'sEmpire, Harvard Uíiiversity Press, 1985.

27. R. Dworkin.Tatmg Rights Seriously. caps. li e 111.28. H. L. A. Han,The Concept o f Law, Oxford, 1961, trad. fr.. Bmxsdas,

1976. Sobre as análises a respeito desse autor. cf.infra. pp. 236 ss.

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A ENCRUZILHADA DO SÉCULO XX 243

apesar dessas intuições que considera novas e fortes - e que, s® mínimo, revêem o significado e o alcance das concepções tradicionais por examiná-las sob um novo ângulo H. Hart. declara ele, errou em continuar “positivista": ao insistir na íkb- portâracia da regra secundária de reconhecimento que, em ãfâssa análise, remete a um convencionalismo social, adotou a atitaSs reducíonistaèo sociologismo que não diz seu nome. Segunda R. Dworkin, é verdade que coexistem dois tipos de “padrões” na esfera jurídica, mas isso significa, diz ele, que existe o lam behind law: em outras palavras, para além das re■ gras de direito propriamente ditas, há princípios ou padrões que não são regra? e são de outra natureza. “A diferença entre princípios jurídicas e regras de direito”, escreve R. Dworkin, “corresponde a ussa distinção lógica. Esses dois conjuntos de padrões peraôtem, ambos, que se chegue a decisões particulares, concernente a obrigações relativas a circunstâncias particulares. Mas se distinguem quanto à natureza da indicação que fomeesm.”” Assim,

as regras de direito são regras “determinadas” pelo legislador;: são aplicáveis ou não são aplicáveis a casos concretos. Se o si®, e somente se o são, são válidas e geram, no caso em quesfis, efeitos jurídicos:é “o tudo ou nada das regras”. Por exempl®- “se a exigência de três testemunhas resulta de uma regra válida, é impossível que um testamento assinado por apenas <ííbsk testemunhas seja apesar de tudo válido”. - Os princípios íme- cionam de uma maneira totalmente diferente: ‘'Mesmo squefcs que mais se parecem com regras não enunciam as conseqiãa-

cias jurídicas que decorreriam automaticamente da realiz«p»s das condições previstas” Por exemplo, o princípio segasufe® qual “ninguém pode tirar proveiío do mal que -cometeu” m a significa que o direito nunca permita que alguém se aprmssàe do mal que cometeu (é o que indica o caso clássico daprescrâçi® aquisitiva: se alguém passa ilegalmente pior um terreno duBSfife; um tempo suficientemente longo, acaba por ajdqumr o direfes

29.. Cí. Taking Rights Striouslv, The Modeh o f&ufes. ü, pp. 47-64:posiíivisme'5, in Drmí e tS odêíè. 1985. n? 1.. p. 36: ‘‘Empregarei otermo p*m- cipio de maneira genérica para designar leda a «ama de padrões ^ueimo regras”, cf. também,p. 37.

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214 OS FUNDAMENTOS DA ORDEM JURÍÍMCã

de atravessá-lo quando quiser), mas um princípio enuncia “razões que agem a favor de uma orientação geral”; serve de gaia para aplicar tal ou qual regra. E fácil, portanto, dimensionar a importância que eles têm nos “casos difíceis”(hard cases}™, em que lhes cabe motivar as sentenças referentes aos direitos subjetivos e às obrigações específicas das partes. Por exemplo, quando se ftata de dirimir a questão de saber se um assassino poóe herdar em virtude do testamento de sua vítima, o princípio segundo o qual “ninguém pode tirar proveito do mal que eie mesmo cometeu" esclarece a lei sobre as sucessões e justifica assa interpretação. De maneira geral, na produção das decisões jadi- ciais, os princípios desempenham considerável papel: são realmente a exigência que, para além do direito ou por trás da regia, é levada em consideração e aplicada pelo juiz, se ele assim qjaá- ser. Os princípios são portanto parte integrante da vida do direit®.

Veriffca-se, pois, que os fatos e as situações jurídicas nunca dão azo a simples constatações: são sempre interpretados31: as próprias regras às vezes precisam ser interpretadas à luz âm princípios. Nem o juiz nem o filósofo do direito podem, oessas condições, escapar do paradigma hermenêutico. É lógico p&r- tanto que Ronald Dworkin se aproxime do movimentointcr-

pretativislç que se vem desenvolvendo há uns trinta anos nas ciências humanas e que H. Hart foi um dos primeiros a aplicar à teoria do direito. Do ponte de vista epistemológico, isso qtser dizer que ele se nega a adotar uma teoria simplesmente '“áes- critivisía” bem como, aliás, a elaborar uma teoria “cogn&Êvis- ta” do direito: a primeira lhe parece insuficiente e a segesada, excessiva; por faita ou por excesso, ambas traem a “realidade”

jurídica. Na vida concreta do direito, que deve ser levada era conta tanto pela teoria do direito como, a fort iori , pela fflo-s©- fia do direito, o faío de uma regra ser justa ou injusta tião-pra- vém nem de uma convenção que assim tivesse decidido (caso era que se seguiria a via de um positivismo em última instância

30. Ibid., pp. 81 ss.3 i . R. Dwodíin, cf. em particular Law 'sEmpire , cap. iX. {Trad. bras.

O império do direito, São Paulo, Martins Fontes. 1999.)

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A ENCRUZILHADA DO SÉCULO XX 213

empirista), aem do valor que eia teria em si mesma (caso etn que triunfaria o t idealismo dogmático). Segundo R.Dwodáa,em úítima análise, é oconsenso estabelecido (ourecusado) segundoos princípios reiativos ao conteúdo de anta regra qiseé&- termina, de maneira evidentemente interpretai iva, o valor sfse lhe é ou não atribuído32.

R. Dworkin reconhece portanto nocomportamento dojtm —que, é claro, não poderia prevalecei-se de nenhum poder discricionário - uma exempiaridade metodológica plenamente esclarecedora. Na“correntedo direito”35, enuncia uma sérieés sentenças especificamente jurídicas explicadas pelateoria nsr- rativista do autor. R. Dworkin compara os juizes a escritores que deveriam colaborar na redação de um romance colete® escrevendo, um após o outro, um capítulo do livro, o que exsgse que cada um leve em conta, como numa corrente, o que prece

de e o valor global em construção. Segundo Dworkin. aèbísese narratjvista distingue-se assim do convencionalismo, que, par definição, é artificiaiista, e do pragmatismo, que está seímpce voltado para o fiituro: “Uma proposição de direito é verdadeira", escreve R. Dworkin, “se parecer ser a .melhor míerpi«a- ção do processo jurídico como um todo, compreendendo a© mesmo tempo as decisões de mérito já tomadas e a esinâssaa institucional, ouse decorrer de tai interpretação.”34 Nessa ía-

terpretação, a realidade do direito não se confunde com 0 fesíffl da lei ou com a regra escrita, que pertence a uma fase “fse- kiterprefcaírva"; ela pertence ao processo ijiterpretaíivo e pós-Éa- terpretativo55. Em outras palavras, a noimati vidade juotlkm implica recurso, por um íado, a um critério decoerência cassa os precedentes que, sobre o ponto levantado pela espécie IS - giosa, a história do direito pode oferecer e, por outro, a usn ca - tériode conveniência com “a moral política” do lugar e domo

32. R. Dworkin. in Controverses.... “La complétude du droit”. p. IM .33 . R. Dworkin, in Droit et socièté , n? 1 , 1985, “ La chame dit & s à ”-íg!5.

51 ss.; cí. lambem ti? 2. 1986.54. R.. Dworkin, Droit et sociéié, “La chaíne du dro if, p. 51.

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216 OS FUNDAMENTOS DA ORDEM JURÍD

mento36: ou seja, a normatividade jurídica implica, na sociede em que se dá o julgamento, um “consenso intelectual” R. Dworián denomina a “integridade” do direito37.

As dificuldades dessa perspectiva idea! são sociologmente inúmeras. Noentanto,Dworkin acredita que sua concepção interpretativa esclarece dois pontos particularmente dcados do direito. O primeiro, diz ele, é “poeirento”: trata-se problema daslacunas, taotasvezes já examinado. Na suaabordagem“realista”, R. Dworkin afirma que não há, ou queh ámuito poucas, lacunas tio direito. De fato,quandose recolocauma

leioa um texto de direito no contexto cultural e políticoem

que foram editados, “quase sempre é possível ter [sobre -ét uma opinião”38: possuem um sentido, compatível ou não c os precedentes da história do direito, conveniente ou não pa ética do momento; mas ele existe e , assim, não há “vazio” j dico- - Q segundo ponto é o dos “casos problemáticos” ou fíceis” com que uai juiz pode se deparar e para os quais de- se as regras do direito positivo se mostram insuficientes, recrer aos “princípios” do direito. Estes, como se sabe, iadic aquém da obrigatoriedade das "regras” que ordenam e coagem

a orientação geral da política jurídica. Ao contrário dos posivistas, cuja redução clentificista só pode ser empobreeedor falsificadora, Dworkin destaca a importância desses princip que iotroduzem uma dimensão moral no próprio cerae da vi do direito, na medida em que afirmam o caráter imprescritív dos direitos, que o direito sempre deve tratar “seriamente”, fte conseguinte, toda sentença - judiciária e, de moâo mais gera!,

jurídica - resume-se a um juízo moral que deve levar em co exigências da ética social e política do lugar e do monimi Por conseguinte, tudo ao direito é questão deinterpretação e.

36. R. Dworkin, Droit et soaété, art. citado, pp. 55e64.37. Como todos os intérpretes, o juiz - como um romancista que áesse

seguimento a uma obra começada por outros - deve em suma dar ssxjüêEcsa ®escrita de uma história, isto é, acrescentar sua contribuição seas trair o sesfiáedo que precede. Não pode remeter-se nem a ura direito.que fosse puto « ® - vencionalismo, nem a umaeomcepção simplesmente pragirática (ías isgias.

38. R. Dworkin,Controverses..., op cit., p. I27.

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■AENCRUZILHADA DO SÉCULO X X m

ccrrElativamente, de perspsclivismo. A propensão dogmática das positivismos, tentados, em seu próprio procedimento, pela áfose- luíizaçâo de sua teoria, é o obstáculo epistemológico mais temível para a filosofia do direito. Para evitar “a picada do dacâo semântico"7’ qae infesta essas doutrinas, é importante,.segwaâoDworkin. compreender metodicamente o direito, isto é, partir 4&

pratica jurídica efetiva, einterrogar-se,por exempSo, sobre*h maneiracerta de ler umalei” aquie agora, a fim de decifrar es pressupostos que eía envolve. Não se trata aí de um problema conceituai ou de uma questão semântica, como aqueles nosqpam se atolaram, por cuidado de objetividade e de cicntificidads, csr- tos posítiyismos falaciosos. Q problema é de outra natureza: é rana convicção ético-política que fornece ao direito seu a&cace fundaíBesitai; e, já que a liberdade é o que constitui a fauissasi- dade do homem, o direito, por sua fundação, arranca o pragmatismo social do jogo empírico ou calculista dos interesses e íke confereranaelevação qae lhe dá valor. Assim avaliar-se a dife

rença entre aob ngaloneda.de dc uma regra de direito e a<obrigação q«e-temos de fazer algo. Essa dicotomia também esclsKsss a distinção entre julgamento jurídico e julgamento político por ccsíseqüência, a diferença eatrelegal rigkts e fegí í tów rightsm. Essa distinção, no entanto, não corresponde àquelashSk o direito e a moral (entendidasíricto sensu). Embora sejaem gíandes linhas correlata à distingo entre direito e ética(k m sensu), tem sobreítsde uma conotação de lógica jurídica: ifisS»; que, para julgar, o ju iz se refere, para além da letra da regra fegpS

positiva, a princípios mais “fozidamentais” a que está subroeti- do e qye são os únicos que conferem ao trato jurídicosua-|s©- fiiíXÍidade, seriedade e valor. R. Dsrorkin afirma portanto,<om- ttao.positivismo-mesmopositivismo“revisto” w ^ede&ááe”de H. Hart -;'q'ae, iftesmo oão havendo deme&to que p e n à a avaliar d vaior dos princípios jurídicos, a vida do direito três pode prescindir detes: tornam possí veis as estratégias intet^ss-

39. R. Dworkin. “Lethéoriçdu droit comme inrezprctatiorT,in Dmiitâ sociètê. op. cii., p. Só.40. “ArepiybyR. DworkitfVtn M. Cohen{ed.').op. cií., Í9S3, p. 254.

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218 OS FUNDAMENTOS DÂ ORDEM JURÍDIC

tativas e adaptativas diis regras de acordo com as situações «qo elas estão iocombidas de solucionar. Assim se explicam, cotra um legalísmoo h Wn j.uridismo estritos, o íugar da jurisprudência e a importância d0 papel do juiz. A justiça não consist apenas em aplicar uma regra legal; ela não se sustentaria sem a exigibilidade dos valses convenientes'", indicadores de um cazão para a qual a sabedoria prática é mais verdadeira que o deduSivismo lógico42. £ essa hermenêutica jurídica que lev Dworkin, com o demonstram ao mesmo tempo o comportamsa to do “juiz Hércules” e a continuidade da “corrente do direito” a uma reflexão sobre a concepção narrativista do direito. Compensando as fraquezas de um puro conceituaíismo ou de am Militarismo simplesmente empirista, o narrativismo insere o direito em sea contexto ético e sociopolítico graças ao proced menío iiiterpretativo do qual é inseparável.

Em suas análises, delicadamente conduzidas, embora cepe titivas, R. Dworkin res-ijjza, num contraponto discreto, a “des- ccostrução” do oafee filosófico do íiuminismo. Sua recusa d regra foraaal é radical pois, segundo ele, a transpaiêacia qoe ©racionalismo positivisla Jfee atribui é indevida, sendo necessá

rio recorrer ao paradigma hermenêutico. Dito isso, R. Dwortóa jamais considera que a racionalidade da regra está destinada a uma aatodesíraiçã© dialética; jamais diz que é necassáms renunciar à razão « não tem intenção nenhuma de propor uaa contradiscurso da razão. Afirma que não ésério restringir a validade da regra jurídica aos esquemas formais que os convencionalismos embasaranv, o mais das vezes de maneira rncass •cienfe, quer com os atigem s ás u m ideologia iguaiitaiista,-íftí3r com projetos utiíitarista^ inevitavelmente dependentes da íss- tabilidade dos acontecimentos, invertendo a trajetória fcsbííual

da filosofia do diieitov acostumada a ir da íeoria à prática, ase passo que Dworkin, adoiando a “fefaa interpnstativa”, vai dapfê-

41. La chaine du d re itjn firmi el sociésé, op. ciJ., p. 60, onde 'Dwatkifaia do “íesíe de conveniência”.

4^. La théorie du comme irrtcrprétation", inDroii et sociétè, J?p.81 ss.

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t tajurídica às raízes teóricas que lhe dão sentido e valor, este ipor contemporáneo “incomoda”43e força a interrogação. Não litrata a pôr em questão o veíbo debate entre jusnaimaüsBi© e

juspositivismo; recorrendo à acção de “integridade”, levanta a questão das relações entre raciona! erazoável que, nos debaíes .•Inais. vem adquirindo uma importância cada vez maior; saa poção de “ética política"” atiça a curiosidade; e o fato de eia ter sido colocada sob a bandeira do “pós-modernísmo’’" evideflíe-

>' ente dá o que pensar...Entretanto, sedutora, acurada e cheia de humor sutil, a feo- r de R. Dworkin não escapa a várias ameaças de ordein epis- t^mológica. Com efeito, embora ele a evite, é grande a teníaçãe ( u autor de reduzir a regulação inserida numa ordem de direit© as ístruturas factuais da sociedade: corre, por conseguinte, ® f s. o de cair no velho hábito do reducionismo de que acusa © positivismo cieotificista. - Além disso, o parâmetro tateipreía- l ' n a o qual recorre é indicador do relativismo e do pluralisa® normativo ao qual adere; mas, nesse ponto, não está muito áis-

•tíe do ‘'consenso por coincidência parcial” [overíoppingcm - \ • soi] invocado por I Rawls35ao se referir, num contexto m w

biológico que filosófico, à “cultura pública” como porato-áe 1 1oragem do direito. Ora, no refatmsiao cultural e ievaafe -se otr conta a mutabilMade das experiências ético-sociais, é gsrsfl- ( \ q perigo de ver o apelo ao consenso transformar-se r«5a

11vo ópio” . - Enfim - a menos que se adote a metodologia ci Krmmoiogia de Heidegger em sua abordagem da questão á© * * tido do ser a partir de uma analítica do Dasein, o que, dese- sv. convir, é unia atitude totalmente específica será que s s j i'e -de fato falar, nesse caso, de uma onto logia do direito? SL 0\ orkm não cita Heidegger e sua concepção do direito canso 'P«.rpcetaçãó nada tera a ver com esse filósofo.- Marcado péJo

</ VC RU/JIMADA DOSÉCULO X X 2 39

. 43. Micheí Troper, Apresentação do “Dossier Dworidii”, inDroit es '<< &?, n? í, p. 29.

44.}-. Michaut, Dmrls, n? XI: Definir te droit, -2, p. 1 1 5 .0 aiíter a te *>*1 i‘ referências, J. Ra ze R. Guasiioi.

45. John Rawfe, “L’idáctí’imconsensuspar recoupcmenr, ínRenuniUe metapHysiqueet-de aiorole, 1988., n? 1-pp. 3-32.

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220 OS FUNDAMENTOS DA ORDEM JURÍDiCS

pensamento daEscoia An alític a deAustm,Dworfdn não se preo

cupa muito com a questão filosófica do sentido do ser. Embora seja w dade que, como I Habermas e Q. Apel - que. aliás, ele não parece conhecer -, lance um o itoomitocrítico sofcce ® objetrvismo ingênuo das teorias positivistas e se mostre sempre preocupadoeracompreender a normatividade do direite,.® difícii defender que o fato de recorrer aos princípios morais naturais sos quais o direito seemmza atítulode “paérões" ©a “modelos” “por irás do direito" seja um procedimento da ardem da ontologia. Parece-eos que é mn entusiasmo veíoai, qae leva certos autores a dar às palavras um sentido inteiapestrwa, que leva a situar a teoria de Dworkin sob o sigo© da “ontofe- gía objetivista do direito”. Este é provavelmente um cajrâafeo espinhoso.

A teoria müopoiétieado direito

Ao expor a teoria aíitopoiética do direito-', H. Wiike im&- roga-se sobre “os traços fundamentais do direito”. NoJaque, nas sociedadesmodernasocidentais, o processoderacioaafe- ção instalou oquea -sociologia darf&eimiaaa ám m ia a m àm -

são social do trabaüio. Como N,Luhmann47,assimla a iinpa-- tância, no desenvolvimento das sociedades, da “difereíraaçâe funcionar-13. Em conseqüência, a integração sociai requer a® fenômeno de comunicação, múltiplo, complexo, áiversificaéo-

46. H. Wiilke, “La íhéorie autopoíctique du droit.: autonomieáu -droh-eitransfêreaces contextaefles”, inControverses..., op. cit., pp . KSl-JS; cf. tara- bém “Le droit corame codage de la puissance publique iegi teae ”. inOn^ts, Definir le droit, 3° 10, 1989, pp . 113-6; “Diriger la sociéíé par feénÁT'. m Archives de ph ihsophie du droit , a?31, pp. 189ss.

47. N.Luhmann,Sozidte System. Gnmdriss einer afígemeinem Theonc.

Frankfurt,1984; Ausdifferenzierung des Rechts, Zurkarapf, 195Í5; cf. rscmbéxsso artigo publicado na revista Rechistheorie, 1983, 14, pp.. 129-54. reproduzido em versão france sa cora o títüio “L’uiiilé du système jKridique”.e m Archives de phihsophie du droit, 1986. t. 31, pp. 1-63-88.

48. H. Wiilke, in Dro its, n.° 10, 1989,art. citado.p. 113.

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A ENCRUZILHADA DO SÉCULOXX

que recorre à economia, à política, à ciência, à tecnologia, à a&ç. â religião e, é claro, ao direito. Mas. nisso, o fenômenonsass importaate é que cada um desses “subsisíemas” do tecido saciai vai-se tomando cada vez mais autônomo a ponto és se auto-organizar, isto é, de seguir regras que ele mesmo pr-odas para si mesmo. A dificuldade é que. numa determinada socieda

de, a evolução imanente de cadau m desses subsistemas deve-se harmonizai' com a evolução paralela dos outros: um “namêaxB de condições contextuais comuns” é portanto necessário. .Foia partir da conjunção desses dois parâmetros —ura, interno; o oate®, externo - que, em 1982, H. Maturana concebeu, no campo fes©- lógico, sua teoria da autopoiese09. Essa teoria foi desenvolrâÉa posteriormente e transposta para o campo jurídico porM. Luhmann e G. Teubner50.

No entanto, na complexidade5' dessa concepção, mais s®- ciológica que filosófica, aflora uma idéia ciara, que afeta a üsb~ ria do direito: compreender o que é o direito é compreender< p eapenas« direito define o direito. Não há dúvida de que essa visãs do direito participada “fascinação da auío-orgasiizaçio”E ©s?.

49. H. Maturasia,Erkermen: die Orgtmisation unã V^rõréemng w®

Wírkliehkejl, Wiesbaden, 1982.50. G. Teubner,Síaíe, Law, Economy as Aatopoíétic Systerm. S^gsífe-tion and Aulonomy m a Neve .Perspective, Beisim, 1987; AmopoTétic Um- :«

New Approach (o Law and Society, Publicações dolostitot univeisitairecs io- péen de Fiorence, Série A, Berlim , Hova York, 1988; cf. tam bém , ia Ár<cMt-tas de philosophie du drait, ‘"Díriger !a sociéíé par le droií?” t. 31, 1986, pp . í ®ss.: “í /e rd re social parfe ‘feruil’ légisíatif?: !a feraicíurc ai7.íoposètiqí.re txjs í^ eun proWèjae de réguialion jurid ique” , t, 32, pp. 249 ss.

51. Sobre a complexidade dessa concepção, H. Wülke, in Carsns-verses..., p. 166, escreve: "Basta observar que a teoria poiética dos sistesnssociais se situa niim especíro de conceitos conectados pela idéia & iaõife-ifeoperação auío-referescial dos sistemas ccwííplexos, ou seja: a cibernética<&segundo grau ou second order cybem etics (Maiyuama, v. Foerster), a ejMSc-mobjgia do constretivrsmo (v. Glasesfehi), a teoria (la comunicação de GrsgtayBaíesoii, a teoriaéos bla ck boxes (Glanvüle), a lógica (Mbsr, Spenoer-BFGm*®.

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222 OS FUNDAMENTOS DA ORDEM JURÍDiCã

substituindo as categorias tradicionais de objeto, de sujeito e de causalidade por “conceitos operacionais”, contribuiria com uma novaepisteme “realmente pós-cartesiana”i?. Na verdade, hhi sistema autopoiético54é um conjunto de processos cuja unidade dinâmica interna, comparável a “um programa que se autopro- grama”, é tal que estamos diante da autogeração do dito sistema. No terreno jurídico, isso significa não só que há atrto»®- mização do direito (que então não necessita nem de íransoaa- dência moral ou religiosa, nem de causalidade natural ou s®- ciopolítica), masque o direito baseia-se unicamente noprmdjsi©de auto-referência; ele é umsistem a n orm ativo fechad o , assa vez que apenas o direito determina o caráter jurídico dos elementos do sistema (mesmo que, do ponto de vista cognitivo, de possa seraberto e levar em consideração, a título puramente informativo, as modificações do ambiente). “Cada elemento”, diz N. Luhmann, “recebe sua qualidade normativa de um outes elemento que ©le determina por sua vez, sem que se possa detectar, nesse circuito auto-referencial, qualquer prioridade e:a primazia.”

Seria evidentemente tentador aproximar as posições de H. Wiilke e de H. Kelsen. EmTeoria pum do d ireito , o jurista austríaco j.á mostrava em 1934 que apenas o direito cria o dirciio. uma vez que toda aplicação de direito é criação de direito e só

existe criação de direito peta aplicação do direito. Com efeito, as normas jurídicas fonesonam como “esquemas de interpretaçãd’' que imprimem seu caráter de atos de direito ou de atos contrários ao direito a certos atos humanos. Segundo Kelsen, “observa-se que essas normas são elas próprias criadas por meio áe atos de direito, e que, por sua vez, esses atos recebem seu sig-

53. F. Ost. “E st e orifce ei desordre:lejeudu droit. D iscussion da paia-digme autopoiétique appliqué an droit”, in Archives de philosophk' du émil, t. 31, 1986, pp. 133 ss.

54. Luhmann afirma que, nesse pomo de coexistência,uo sistema a«to- poietico do direito, entre o "normativam ente fechado” e o “cognitivaiiieií teaberto", efetua a traasposiçãe de uma idéia que toma da cibeíssética, e segan-do a quai um sistema “aberao para a energia” é “fechado para a iufoíitsaçãoie para o controie”.

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4 ENCRUZILHADA DO SÉCULO XX 225

mficado jurídico de outras normas”". “O direito regula sua própria criação”56.

No entanto,faágrande diferençaentreas teorias deKetssae de H. Willke, que se expressa de duas maneiras. Por um iado, nunca será demais insistir sobre as perspectivasep istem ológi- cas que aReine Rech tsiehre desenvolve segundo a vertente áa

metodologia criticistakantiana: Kelsen elabora umateoria <pe expõe as condições de possibilidadee de validade do diieto positivo.Oprojeto deH. Wilike édiferente: tem aambiçãoáeelaborar umaontologia jwídicaque apreenda a natureza íafà- ma dodireito, pondo em evidênciaa autonomiade um direito que só setornadireito por suaautocriação. Osentido filosófico dessa proposta insere-se nahistóriadas idéias: H. WiiSae deseja poder mostrar que, nassociedadesocidentais atuais, o direito desempenha um papei de primeiro planonadireção d®s processos sociais,nãosó porque a aaíigacoacepçãoteológica do direito está arruinada, mas porque a concepção política á® direito, embora mais recente,tambémdesmoronou. “Tradicionalmente" (isto é, desde a teorizaçâo da soberania porI. Bedía. quando a “modernidade” mal começava a balbuciar), cabia â vontade política “determinar”o direito e ímpô-loaosdiversos

setores da vida social: segurança pública, juventude,comercia, raeio ambiente...; o Leviatã, dizia Hobbes, é“o «mico legislador”; cabe apenas à sua lei fixar o direito. Ora, as sociedades modernas estruturadas em subconjuntos, sendo cada um ddes relativamente independente dos outros, tornam essa representação obsoleta e caduca57. A relaçãodireito/ sistemas soc iais sate- tiíui boje a relaçãodireito/ autoridade p olüica . Os sistemas1sociais produzem informações que, parao sistema juddico, sãsde certa forma “modelos de pesquisa”. Esses modelos não i a causalidade eficiente; mas, embora sejam inicialmente Mas sociaisdifusos,entram nocampo jurídico onde, relacionaias com outros elementos dosistema,funcionam segundo uma dia-

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224 OS FUNDA MENTOS DA ORDEM JURÍDICA

lética de exclusão e de inclusão, ela mesma determinada pela não-conformidade ou conformidade com as estipulações do Cé- digo,s. Teoricamente, portanto, o direito só se ocupa do direito e da continuidade das operações de direito: seu fechamento € operatório5’; as tomadas de decisão são codificadas de modo ía- temo; o direito não pode ser dirigido por intervenções vindas de fora, isto é, de um outro subsistema, econômico, político, pedagógico.,. Ele temsua própria racionalidade e sua própria dinâmica40. Nessa perspectiva, a conclusão de H. W iike é clara: “Retornemosà -ontologia.A idéia de autopoiese e a episteme- logia construtivista mostram que não tem sentido procurar ama verdade verdadeira ouurn direito justo”61; não há superverfaáe; não há hiper-regra; o direito produz suas verdades e suas regias segundo seus próprios critérios internos.

Por outro lado, a estrutura da ordem jurídica seguaáo Kslsen não é aquela queN. Luhmann. G. Teubner e H. Wsfflfee atribuem ao campo do direito. Segundo Kelsen, as normas ja- rídicas, que não são todas situadas no mesmo nível, fonas® “um edifício com vários andares superpostos”62e a célebre pirâmide, que culmina na Constituição, só é pensável supoaáo-se,

a título de “hipótese lógica transcendental”, umaUmorm «pe é seu fundamento de possibilidade e de validade. A teoria ân autopoiese'não busca o “fundamento” do direito: forneceisa “modelo” de organização do direito positivo. Esse modelo é a auto-organização de uma ordem sistêmica. Tal postea não

58./ftã/.,p. 11.3.59. ísso, esclarece o attfor, aâo significa que o sistema do dir

"fechado”, mas que se trata áe uoperações transferenciais” necessárias fs passar, caso os acontecimentosm o contexto social assim o exijam, “p re fe

rência a si à referência ao outro”. Cada sistema participa então do “discudos sistemas” e toma parte na “construção descentralizada de um coiõ£e.xque sustenta essa mudança de perspectivas”. Como observou N. Luhmamconseqüência disso é que, embora o sistema político cumpra uma feíçsocietal, e mesmo uma firnçào societai específica, ele “já não representa centro ou o topo da sociedade” (inDroils, ait. citado, p. 113).

60. íbid-61. H. WiHfce, inControverses..., p. 177.62. H. Kelsen,Théoriepure du dro it , p. 299.

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A ENCRUZILHADA DO SÉCULO XX 2 2 5

deixa de evocar a metáfora proposta por R. Bwoíkin do “Rsmssa- ce escrito em corrente”: aí, a regra de ouro é respeitar o “pria- cípio de unidade do todo”, aquela qae constituí a ‘ "corrente âa direito”.

Essas duas diferenças capitais que, apesar das semefisae- ças superficiais, afastam a teoria da autopoiese das perspecíi- vas keíseaiaaas, provocam a interrogação. De fato, não cateis indagar se o direito, desprovido de ftmdament© que se aaíüMSF- ganiza etn sistema, aão correria o risco de apresentar-se csss© ura jogo paramente formal, oujo ánico critério é o da coestrânâs interna, mas que, em última análise, é puramente formai, arbitrário e gratuito? Onde estaria então a dimensão “oníoiógica" de uma ordem jurídica autopeiétiea? Nessa fascinante amStea- ção, é grande a probabilidade de a “ontologia” não passar de usos palavra, correspondente ao que, oiiírora, os estóicos cliama- vam de “ar batido”. Além disso, não é de notar que, nessa Am -

trina, lidamos com um esquema do direito “do qraal es hoasssss estão curiosamen te ausentes”53?É por isso que, ao cos&ário das teorias ditas “ofojetírâsáass’”*

ouíras filosofias do direito coateasporâneas procuram o “togar do díresto”bq pensamento.

As teorias ditas “sab je tir á te ’’:o direito “é feito peío homem”

Evidentemente, poder-se-ia levantar, com sm jneiiaãsr filosófico, a questão de saber se teorias que falam de gbb *ísü- reito feito pelo homem” dependem de uma inveaigação “ea*®- iógíca”. Portanto, temos de entender aqui a paíawra o a to k ^ e de maneira flexível; embora seja verdade* como ClaudelkMaHe gostava de repetir, que o esquecimento do espírito GoeêéE» ® esquecimento do ser, reconhecer no espírito o topos tfe áweás» é um-passo -necessário para captar a natureza, o sentido e © m - k>r da ordem jurídica.

63. Ch. Grzegorczyk, “SysGèioe j.uridiqye et réatité: disctóssioa ftsthéorie autopoíétique du droit”, inConiroverses....,p. 195.

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226 OS FUNDAMENTOS DA O m E M JURÍD

Vamos nos limitar a esboçar esse passo aqui, reservan para a terceira parte de nossa iavesâgaçâo o aprofcndametít© - bases filosóficas das teses depostas por Paul Amselek, Mi Tíoper e André-Jean Âroaud.

Paul Amselek e a o-níologiu das-coisas do espírito

P. Amseleksublinhou, várias vezes, o«iodo de ser“esfea- nfeo” <jue caracteriza o campo jaridico*1. Embora seja claro - o direito é “uma técnica de direção pública das cond«tas hmanas”63, as regras mediante as quais ele se exprime têm « “natureza puramente psíquica”*. São “ferramentas Kicntais’', que implica, por um lado, que se trata de artefatos humanos e, p outro, qae é necessário condenar, itTemediavebneníe. as teor objetivistas ou naturalistas qae coisificam o direito: neshum realidade psíquica habita a raaíüreza ou o mando sensível. Potanto. embora, segundoP.A s s e ia (para Falar a iingMagemésMeidegger que às vezes eie gosta deutilizar),o “ser-çara”io

direito seja sua finalidade fBSbuaaea&F, as regras jurídicas s ainda assim ferramentas bem particulares já que não são ^uei existentesnemobserváveis":as normas são têm emergência m s âmbitos espaço-femporaisdo mundo sensível: elas “participam da ontologia de todas as coisas doespirito'”.E mesta© um abuso de linguagem falar da “existência’"de noaaas jurídcas emqualquer época-m tegar qas seja;assimilá-lasa «me configuração de neurôniosé um puro eontra-seiaso*. Talhadas num “tecido puramenteideai”*1, são noções modais esua m t- dida normativa é - e apenas é - raa“conteúdode peasasseat#’

64. P. Ainseleít,“Ledroit daa5 les espriís"1.m. Coutrmvrses..., 21 S t.65. P. Amselek., ‘Le drosi, techft^ue de «dkectíoii publique des cori&a

?es limusines” , in Droils. nw IG/L p. 7.66. P. Amsclekr m Comrõverse?.... ãxt: cita4o, p. 29.67.lbié.,p. 30.6S. 40, nw 4.•69. P. Amselek,Droiís. mt. ciíaáo, n0>10/ L p. 8.

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A ENCRUZILHADA DO SÉCULO XX 221

portador de significação*. Disso se deduz que. eaifeora as regras jurídicas tenham uma vocaçãopuramente prática, elas sãodes providasde feoomenalidade71: sua Eão-exisíência acarreta saa não-observabílidade, pois não devera, ser cosfeiátdas cosaas signos,orais ou gráficos, queservemde mediação paia seu se»r tido e que, cies sim, são perceptíveis. “Não é devido a uma insuficiência de aossos meios de investigação que não se pode vê-las, mas deviéo ao particularismo mesmo de sua ontologia,” Reter- mando uma idéia de K. PopperK, £ Amseiefc isisiste aum poate essencial;dizer que as normas jurídicas não têm fenoíaesalí- dade não c dizer que elas s io desprovidas de realidade. Na vsafa- de, elas se inserem num circuito mental e, na medida eis que são costeúdas de pensamento, pertencem aomundoimeiigívei. Portanto,é possível apreendê-las, mas apreeadê-las someote peh espírito, isto é, compreendê-las. Por isso “a presença n© msaaêe da técnica jurídica coEstâtiuda’'73se acompanhanãosó áe na® consciência da noimatividade jurídica, mastambém d o tab É nãoespirito em ação00 poder normativo das regras. Essesdeãselementos são os sinais eloqüentes do .humanismo jmídiee..

Sé que é importante varrerdaquium erromuitas vezes oa-mefido; o legislador humane «ão cria diretamente as regras jm- rídicas; ele-emite “atos de linguagem” ©a jurís-dàctiú, < p e â 8 portadores das regrasouque, em outras palavras, são precisa- nieníe legis-lutivosn. Essas regras -são podem ser pensadas a partir do modelo paradigmáticodas leis cien tificas55; elastm -

76. P. AsEselek,in .Controversos..., art. citado, p. 37.71. fbid..p. 41.72. Cf. K. Foppej; La qvèse inachevée, tiad. Cahsann-Lévy, K?S1,

p. 262-73. P. Àjiiselek, Méthode phémmiinologique ei tkéorie-du droit, «jGW,

W64,p. 437.74. P. Amseí-ek, fciControswses..., p. 43; cf. “Le iocutoiís et rã locsaeãe

áans ícs én®ficíatioiis reístives asx Eornresjuridiques'’, in Reimemílanr-\?ii- quee! de rnmaie, 1990, n? 3, pp. 385ss.;“ PMosopJiíe du droit éí SséojHe àssacíes de iaiigâgs".■ Bi-P.-AasssâtkX&z)', Tkéorie des üCfes áe 'imt^age.Éfm^ae:

éi droit , PUF, 198C p. i 09 ss.75. P. Amseiek,“Lois jurkliqress et iois scieratiÉKjsaes’’, inCtrhtens Se philosophie polüiqueei juridique, n? XU: La Joiavile, Caen, 1987, jg>.91 «s.

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A ENCRUZILHADA DO SÉCULO XX 229

sarnento humasm <j«e se manifesta78. Nessesealiéo, pode-se fc s r que o direito “éfeitopelo homem" ou que “o lugar”do fesifeo é o espírito humano.

Michel Troper e a concepção expressiva do último Kelsen

M. Tiopetconsidera que o diserí© é “uma otea fesHissà”

na qual .as nonuas itão são entidades conceituais ou ideais é a concepçãokilética exposta porC. Atcbounon e E.Balygm^ ~ mas “os produtos do uso prescritivo da linguagem”, isto é, fe s ordens - é a concepçãoexpressiva que o último Kelsen®es- sentou na saa teoria da interpretação.. Nesse sentj-é© M interesse em acompanhar a evolução do pensamento kétsensa- no a partir de Teoria pura do direito (1934)até Tkeorie Asr

Normen {1979)“.Era 1934, o projeto de Kelsen era, explicitaraeriíe, "dkrwsr

a ciêacia do direito ao nível e à-categoria de uma v a U n á n - cia, ama dentre as ciências morais”. Âespecificidade dessa ciêacia provinha, segundo Kelsera, do fato de o s e r j a ú & e a » ser ih b ser material, mas a significação conferida a co to s ia t e materiais por normas. “Não éporque asaoimas passaem asaa natureza específica que são objeto de uma ciência específes., mas, ao coairario, é por ser precisoconstruir«asaciêocãa-específica. que se lhes deve reconhecer uma natureza esp©cStiesí.'Sli Nesse caso, a epistemologia, que pode vir acompaith&sk de wsaa

lógica, é anais profunda que a ontologia (com que, aliás, SdisfSR

78. P. Amselek, in Controverses, art. citado, p. 46; cf. tamfeésj “La rie cies acíes de Iangage et ie droit”, art. oitado, pp. 122 e 141.

' 79. C. E. Afchourron e £. Bulygm,' “lh e •ExpressiveCoecepíKJrí&í HameT, sn R.Milpifsea (ed.), New Studies m Deontic Logic, Ootáracíit,cf. também E. Buiygm, “Noims and Logic, ÍCeisen and Weir&e sr ®s tleGntology of Nocms”, Law and Phiiosophy, 19S5,4,pp. 14.5-63.

80. Recordemos que Ailgemeine Theorie der Normen fei psfeíies&oViena, em 1979, seis anos apósa morte de ííeisen (1881--59.73), por.raiGiaãsEa

do ffens Kefaen instituí.81. M. Troper, “Les théories volcmtaristes du droit: ontoStjgie et Èiéisnede ia scieiíce du droit”, in Controverses..., p. 59.

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230 OS FUNDAMENTOS D.4 ORDEM JURÍD

deliberadamente não se preocupa emTeoria pura do direito); a ontologia tem para ele, nessa época, um -caráter segundo, mesmo secundário.

Mas, a partir de 1965, Kelsen, como sublinha M. Trop renunciou a seu logicismo. De forma mais ciara do que nun distingue a ciência do d ireito e o direito: se a primeira consiste em proposições de direito que dizem respeito a normas e dem ser verdadeiras ou falsas, o direito, por sua vez, é feiío âe normas que são as significações de certos atos de vontade. Oportante aqui é que é impossível conceber a norma separada ato de vontade do qual ela é a significação: ela -não se sep do ato voluntário que a crias: ou que a aplica. Isso explica qu ordem jurídica seja não uma ordem estática e rígida, mas «tua dem dinâmica em que se manifestam não apenas as forças querer humano mas o caráter mutável das condições polític também elas conduzidas pela vontade dos homens.

Dessa concepção voluntarista das normas jurídicas decrem o nâo-cognitivismo de Kelsen e sua tese segundo aquai não há lógica jurídica específica; é “a lógica ordinária” qae

aplica aos enunciados prescridvos do direito. As normas ja dicas - e é esta a idéia mais inovadora daTeoria das normas —pertencem ao domínio do fazer comandado pela vontade áo homens, e nào têm oistta significação senão aquela colocadalo homem em seus atos de vontade.

O voluntarismo kelseniano foi objeto de críticas sever fossem elas formuladas em nome da lógica jurídica53oa repro- vetn-lfae elas deturpar a idéia de normatividade jurídica** p defini-la como a significação de certos atos de vontade. entanto, o mérito de Kelsen, fortemente destacado por M.limper,

é o de ter abordado frascamente uma questão de fundo. A tremos a isso, mas, por enquanto, fica claro qúe o direito síb

82. Ibid., p. 63.83. L. Gianformaggio, Jn defesa dei syllogismo pratico. Milão. 18S7.84. O. Weínberger. “Der normeniogiscfcer Skepticísmus", ãi Récfiístfieo-

rie. .1986. 17, pp. 13-81; A 'ornientheorie ais Grwidtage der Jnrispruâfntz wi Elíiik, Eine Auseinamlersetzwig mii Hans Kelsens Theorie der Normen, Berlim, 1981.

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A ENCRUZILHADA DO SÉCULO XX m

um objeto natural; ao contrário,é o produto de uma operação intelectual comandada e conduzida pelo querer humano. íte- tanío, como diz M Troper, quando se dá uma “definição estipate- tiva” de caráter operatóxio85do direito, decerto não se está faiaisâ® de sua natureza - tal definição não tem referência ontológica mas se faz entender que, por oferecer às condutas humanas m& bosquejo normativo, o direito é urna construção desejada e eláb®- rada pelo espírito fesmaao em conformidade com as exigêrseias puras que governam seu trabalho.

André-Jean Âmaud e a definição estípulativa do direit&

É esse mesmo tipo de definição estípulativa do direito A. I. Arnaud propõe para cxpiicar as características específicas do direito*6.

Uma definição esíiptilairea isão corresponde aos esqae- mas clássicos nem da definição real (pcís o direito não é mm. coisa, mas o produto de uma operação intelectual), nem da definição nominal (pois o direito não é uma palavra que áesâgss uma classe de objetos). Nem por isso poderíamos limitar-aras s uma definição lexicalqueindique o que o termo dipsiío <iessg- na nunia determinadaépoca on numa doutrina. “Uma ds&á- ção estípulativa",escreve Mícfaei Troper. “éa decisão torasfèa* ao início de uma investigação, de constituiramadasse deoige-

tosqoeapresentem todos ama certa característica" Dev&seem- dentemente destacar de .iiiieáiaío a relatividade viacátada a® caráter operatóriodetal defmição, já que elaé indissociável á» tipo de problema por tratar, Ê assim que, segundo A.J,AtemÍ,

85. M. Troper, ”Pour-une dífiniüon stipuiativedu droit”, .in Droils, ü®fS ■ pp. 102-3, que cita sob» esse posto O. Weinbeiger, Law and P tí fete fé^. !‘985, 4, “The ExpressiveCo.nceprion of Nonos.As impasse forthe Lqgknetf Nonas”, p. 195: “A ontologia não é descritiva, mas cstipuiafóva.”

S6. A. J. Amaud, “Essai d'une définitÉon stipalative du droit’’, in Drám, 10/1, pp. 11-4. Na definição que propõe, A. J . Amaud vai ao ccconto dasanálises de Michei Troper e de Oía Weinberger nos artigos citados aa istjíaprecedente.

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232 OS FUNDAMENTOS DA ORDEM J U W i

o direito (positivo), m seio do pluralismo jurídico que leva e coaia “0 que é -concebido e o que é vivido juridicamente”, fiae-se como

o conjunto de princípiose de regras de caráter normativoqm-m- gem as relações dos indivíduos e dos grupos em sociedade como repousa, ao espírito daqueles <que a ele estão submetidas vínculo pessoal, real ou territorial, na crença:a / no caráter legítimo da autoridade da qual eie enaana;

b / no-caráter superior, verdadeiro e válido das regras dstenswB das, e em sua correspondência aos valores da civilização que ele emesige (justiça, paz, moralidade, ordem, ceafcM de a uma tradição cultural, até mesmo religiosa);

c / no caráter obrigatório do que é assim determinado; d / na necessidade e na legitimidade de uma punição feesa os

da autoridade encarregada de aplicá-la”.

Essa definição não é descritiva, não explica anatureza& objeto-direito; a ênfase está tia maneira pela qua! se cqbsííIb para a ciência do direito, essa classe de “objetos” aos <pms poderá atribua: um caráter jaádico . Portanto, nesse tipo d sâ d i isição, o aspecto metodológico prevalece sobre qtiaiqwer pe pectiva “ontoiógica”. Por isso podemos salientar, como o M. Troper, que essa defMção não diz “o que é o direito”, ta fflie distingue as propriedades. Põe em evidência “as caracterticasformais do conjunto”- da classe j urídica as ásicas q«e permitem àdogmática jurídica, isto é, no essencial, scíéi&ãapositiva do direito, formular enunciados verdadeiros -oa íkfea elaborar um raciocínio jurídico, ooaceber “um cGiijasto dee s m -

ciados com ftaição ou significação prescritiva, estruíHtsai© tal maneira qae alguns desses enunciados possam servir pa formular outros”.

No contexto dessa defiiáção estipulativa, aparece poits to 0 caráter sistêmico por meio do qual se desvenda oasg>ec&o iestrutural do direito sobre o qual insiste A. J. A.rnaud.

87. Ibid., p. 14.

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A ENCRUZILHADA DO SÉCULO XX m ,

Tendo descartado as acepções vagas do term©esinmtm. muitas vezes utilizado para designar amorfologiade ura olgje- to, bem como s. extrapolação que transportou o ffiétod© “«§&<&- turalisia” da análise lingüística para o estado do direito, A. .3. Amaud vê no estruturalismo “um procedimento heurístico âe análise dos sistemas complexos finalizados, por intermédio êe um tipo de formalização”*®. Em seu espaço episíemológsco, esse método, aplicado ao •direito, implica três postulados que são es

próprios pressupostos de qualquer análise estratacaF: apreender a to ta lidade do objeto estudado, isto é, nesse caso, considerar o direito (o direito positivo em vigor hic et nume) e w m um corpo constituído; captar asinterdependências e as recwr- sividades entre os elementos constitutivos desse corpus: não ocultar a complexidade da combinatória de todos esses eíessea- •tos. Sobre essa base, modelkação e significação - exp&ca © autor-constituem as duas etapas desse método de iavestigaçâe.

A modelização extrai, do corpo fisalizado <das regras <fe

direito, “os sinais característicos e os princípios vd&nawwT que.próprios do sistema, são são só indicadores de -sus «ram- plexidade niírínseca, mas lhe permitem funcionare evcatesS-mente se transformar se is que desapareça sua finai«iade50.íssg! exige “adeterminaçãode todas as açõesintrínsecas”do sisfe- ma jurídicoobservado.

Nesse ponto, o interessante é sublinhar a diferença «atoe a modelização estrutural e o paradigma sistêmico. ASHpeãBá-iade da análise estrutural é identificar, ao conjunto das isteF- reiações qae se estabelecem em dado momento en te os diversos elementos do todo, “ações típicas realizadas por certos *8e- mentos em fenção do objetivo que lhes é designado” e “rdaçêes de ordem” que visam, quando o conjunto se moát&eá' íha se adapta em razão de condições aleatórias, garaKtiro “eqaüSjHo.

88. A. }. Amaud, “Les «héoríes síracíuraiistes du droif’,, Cbmismf-ses..., p. 98.

89. Cf., por examplo, Louis Hjefesslev. Protegomena i0 a Yhreoj íg Language, Í943.90. A. S. Amaud, Controverses...., p. 99.

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234 OS FUNDAMENTOS DA ORDEM JURÍDIC

a autonomia e a coerência do conjunto”. Portanto, a estrutura . algo completamente distinto de uma representação formal ou d um esquematismo arquitciural simpBficador. A matriz estrutural obtida põe em evidência, por um lado, a organização d todo em níveis internos hierarquizados, por outro, as interco nexões de iodos os elementos.

Uma vez desenhado o “modelo” do corpus jurídico estudado - que não é, repitamos, O modelo do objeto direito em gerai, mas o de UM sistema jurídico particular é preciso iater preiá-lo para captar a significação de que ele é portador. Para chegar ao sentido, é de primeira importância não esquecer quo método empregado baseia-se no axioma do pluralismo j®§d co. Nessa multiplicidade de figuras, reais e possíveis, a e s ttura de ordem não pode ser uma idéia simples; ela coirespor f a uma idéia plural que, ademais, está, como o próprio sistem estudado, em perpétua metamorfose. Uma vez que se cheg-a inteligêiícia das estruturas, percebe-se que o que constitui o caráter juridico de um corpus de regras é a crença : crença m legitimidade da autoridade que as determina, crença na obrigatoriedade de suas prescrições, crença tia necessidade e na legàfea dade de uma punição. Além disso., essas crenças envolvem m

linguagem e são envolvidas por essa iingmagem que serve .par a expressão e a comunicação das significações5,1e que, ela -jh ma estruturada, remete a uni sistema de relações lógicas determinadas. Por conseguinte, nenhuma visão estrutural do direito positivo basta a si mesma. Isto posto, a questão de fctmloé saber o que se compreende quando se interpreta a estrutura d-e uma ordem jurídica. A resposta é clara. A passagem das formas objetivas do código para o sentido que as preenche mostr que o homem ocupa um lugar eminente na compreensão do

direito, compreensão científica e filosoficamente impossí® sem referência à crença e à razão. Isso não significa nem psi cologismo nem sociologismo, mas indica antes, pela pura e simples razão de que nenhuma ordem de direito poderia Íiberíar-se das exigências e das capacidades do espírito, que nenhama

9l./ 6id.,p. 104.

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A ENCRUZILHADA DO SÉCULO XX

dagem estrutura] do direito pode ser separada de sua co m pressão hermenêutica. Isso implica, é claro, reconhecer ao mesa» tempo os ímpetos e os limites do pensamento. Mas o qraesa filosofia do direit© retira disso é que, em sua própria organização, os códigos sempre recorrem ao pensamento: o direito, le sse de ser “um dado exterior ao homem”, é “feito pelohomem"®,:é o veículo da culíura, das crenças, da reflexão, de escolhas id es- lógicas etc., todas elas obras éo pensamento transmitidas esa Filigrana pelas estruturas de uma ordem jurídica: mesma isi® sendo prova de uma opção “subjetivista”, isso certamente éss- rneníe a tese do “ofejetivismo jurídico” -n ão é possível limite- se a dizer “o direitoexiste

E sempre difícil realizar a passage® de usa procedims^s científico para uma filosofia, e tirar conclusões teóricas de ms. método heurístico. No entanto, o mériío da abordagemestrefe-ral proposta porA. I. Amaud é mostrar - como ele fez ao estofer as estruturasdo Código Civil” - que uma ordem jurídica « s r s s

esgota rioformalismode um sistema e raa objetividade desoasregras. Ao inverso daobsessãoarquitetônica e fcrinaferfssa que obcecou os posstivismos, ele insuflanovamenteno dasâtea força criativa do pensamento que os c-ieatifieismüs jarlfetss tinham ocultado. Misso,ele sem dúvidanão é “estrutaiaÊs&rno sentido etn <pe o foram Fouca.uk, Lévi-Straiiss ota Lacan.pass quem o homem, depois áe Deus, devia morrer para que -.ps&-

jeto evidentemente nada.inocente- o sistematriunfasse.Ss§a como for, doestudo “esírotaialisfa”do direito proposto por A.I Amaud, -conservaremos (fora das veredas da “história 4a.M- losofia”), em.razãoda furação constituinte do.peasaiaeBÉo «m aordem jurídica, a “extrema fragilidade de uma ontologiaéo 4àrk- to” e a “extrema leveza” de seu ser.

As variações e às vezes o fearceo desacordoénteeas fil®~ sofias do direito suscitam inevitavelmente polêmicas. Estas assa sempre conduzem aos impasses de concepções antsíosiáofis

92. E. Paííaro. in Conrro verses. art. citado, p. 2.2-2.93. A. J. Arnaud. tes origines doctmiGles da Code chit LGDJ. \9 1l\Crmtjuede iü raison juridique. LGD.Í, i98 l.

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A ENCRUZILHADA DO SÉCULO XX 2 1 ?

to às regras determinadas pelo legislador, mesmo respeitaafe as cláusulas fondameatais da Constituição, e invoca principies de natureza axiológica e ética que, “por trás do direito'” ewaãs profundos que ele, estão o tempo todo submetidos à interpraSs- ção segundo o duplo critério de conveniência e de moralidaée impostos, em dado momento, pelo desenvolvimento de uma sociedade*. N. Mac Cormick e O. Weinberger, pelo coatóri®, pretendera defender o positivismo herdado de H. fíarf'5e âãe prosseguimento à sua renovação no.pianoteórico. Falandoésum “positivismo jurídico iastitucíonalista” ou um “iastíSiw©- naíismo normatrvista”, querem explicar a normatividade jsáé- dica pela inserção das regras de direito em seu contexto iraíã- tucionai. O que eles dizem em suma é que, embora as regra? constitutivas do apareMio jurídico sejam “deíeraKaadas” psfe homem, evidentemente não são estranhas aos valores’7. Só «ps referência aos valores não implica, como no jimaíarafeEsa, que a regra de direito extraia sua validade jurídica de sa a c w - formidade a um modelo transcendente. Num contexto que õs>

é o do positivismo cientificista aem o devtm jusaatealísmo o s - tafísico, o problema é precisar a natureza específicadarefaça® eníre regra e valor. Essa relação, que não éaqaeia,extriassea, entre o direito positivo e o direito natural, é intrínseca ao peé- prio direito positivo: elathedetermina a “texturaaberta”.

E aa verdade a idéia de “textura aberta” das liHgaageas Eâ- íurais, proposta por Fnedrich Watssmann já em 1946 e itórefe- zida no direita por H, Hart em 196 Ps, que psrraiíe pesponfe

95. Embora. Haberms não se dedique a desejaveiver «ma íe na :á3reito. pode-se - pelo menos m que concerne à rejeição do postàvis -cseáfe*-•aproximar as idéias que propõe em “Law andM ocality in TQtmer.ijectw&x on Human Values, Cambridge.. 1988, -pp. 247-55.) às de R. Dworkm, Omenío jurídico e. especialmente, o do juiz. impiica sempre urna referêncífí ©ar-maíiva e}nesse sentido, nào pode descartar o critério de ‘Verdade morá!” im? uma sociedade exige; traduz assim as necessidades da “ccrnsmicaçâo” e, -©o

juiz, corresponde a ura proceôimer.to argurneniati vo.96. Lembremos o trabalfeo que N. Mac Cormick dedicou a H. Mart tm

Í98Í.97. A nosso ver é este o fio condutor de An fastitution&f lheorv ofLwx..

New Approaches to Legal Posiiivism.9S. H. Hart, Le concept dc droit , in trad. fr. p. 155 (texto -inglés-p. 123 %

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238 OS FUNDAMENTOS DA ORDEM JURÍD

ao problema, marcando ao mesmo tempo o ponto de ruptu entre N. Mae Cormick e R. Dworkin. Essa noção põe em edência a importância do método hennmêutico na teoria jurídca. Este método se tomou mesmo um paradigma metodológ de primeiro piano para a filosofia do direito contemporâne Ora, o fato de o célebre juiz Hércules imaginado por Dwork usar amplamente seu método hermenêutico não impede o au de Taking Rights Seriously de denunciar em HL Hart e em sea discípulos - que,110 entanto, também utilizam o paradigma âa interpretação seqüelas evidentes demais do positivismo ordoxo, aa medida em que Hart sempre retoma ao núcleo semânco das regras determinadas'”. Ao contrário de Dworkin, N. M Cormick e O. Weinberger valorizam a referência institucion e até a consideram necessária. No entanto, corrigem a teoria psitivista clássica propondo, em razão do aprimoramento do fe damento antropológico das instituições básicas às quais rem a significação da ordem jurídica, o que eies acreditam ser w “positivismo enfraquecido”1®.

A renovação do positivism oA renovação do positivismo tomou-se necessária por-cas

do erro que a doutrina, em sua forma clássica, cemeíeu. B sustentou que as regras jurídicas resultam unicamente áe aí:© de vontade explícitos. Ora, sendo o direito “um. sistema dinmico de normas”, é impossível, para compreender sea esías ra e seu sentido, desprezar a influência da deliberação tele©! gica que incide sobre seus objetivos, preferências, valores, ctérios axioiógicos. Por isso o neopositivismo deve, para ser vdadeiramente inovador, elaborar “uma teoria analítica do direic com fundamento normativista”101.

99. Cf. N. Mac Cormick, H. L. A. Hart. p. 38; P. M. S. Hacker e I. gaz(eds.),ia%f. MoraliryandSociery, Oxford, I977,*HOT’SÍWJ 0S0 0f'L»w’’, .pp. 12-3.

100.0. Weinberger, in Controversas..., p. 81.101. íbid .. p. 79; cf. Grundlagen der Jwisprudenz, Viena, 198$.

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A ENCRUZILHADA DO SÉCULO XX 239

Dessa anáiise, N. Mac Cormick conserva particularmente que a composição das regras-de direito tem “uma trama frouxa” que comporta dois elementos distintos: seu “núcleo de certeza” e a “penumbra da dúvida”, que criam nelas uma margem “de indeterminação jurídica”102. Essa observação esclarece © fato de, às vezes, as regras jurídicas serem aplicadas co® muita facilidade e sem discussão a casos particulares - o case é “claro” ao passo que, em outros casos, sua aplicação, problemática. dá azo a uma delicada exposição argumentativa - a caso é então faard103, ou “difícil”. Todavia, Hão se deve, et» nome de certo “realismo”, subestimar o grau de “certeza” e áe “fixidez legislativa” presente no direito. O erro de R. Dworic® teria sido o de rejeitar avia media encontrada por H. Hart entre formalismo e ceticismo: se, como ele afirma, no direito todo ê uma questão de interpretação1", nele não se pode encontrar nenhum núcleo de certeza. Além disso, Dworkin estaria equivocado ao atacar a “teoria prática das regras”: embora as re

gras sejam práticas normativas, elas só existem, afirma ele. se e na medida em que as referidas práticas esteiam estabelecidas; portanto, elas carregam em si um forte coeficiente sie indeterminação. N. Mac Cormick concorda que os dois argumentos de Dworkin são “murto sólidos”; mas, diz ele, é erro menosprezar a exigência - manifesta na história do dir<etíe do Ocidente desde Hamurabi passando por Moisés, peks Códigos Imperiais, pela legislação medieval, pela codificação napoleônica - segundo a quai o direito deve ser “enunciado xafe a forma de regras claramente escritas”'”5: é impossível áeáiw de reconhecer, no universo jurídico, o lugar da legislação: ela é “uma das mais evidentes fontes do direito”; é até mesmo eo>s~

102. N. Mac Cormick. in Controverteu..., art. ciíado, pp. 109 ss.103. Cf. H. Hart. Le concept de droit , pp. 155-68 (texto inglês. p£.

120-32).104. N. Mac Coimick. in Controversos.... art. citado, p. i 13.

105. íbid., p. 116: cf. .f. Beniham, A Comment on the Co mm emanes. Londres. 1977, pp. 43-50; L. L. Fuller, The Morality o f Law, Londres. 1969.pp. 46-94.

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240 OS FUNDAMENTOS DA ORDEM JURÍD

siderada sua “instância paradigmática”11*. È o texto - o tex .escrito - -que é -portador do sentido éo direito.

Portanto, quem quiser fazer uma “ontologia do direito tem de interrogar a existênciatextualdas regras e a significação que ífee é imanente. E certo que a lei escrita não é o todo dir-eito; o s-códigos-não lheesgotam a existência,- não é Ms® que os textos estatutários requeriram uma interpretação na pratica jurídica- particularmente aa ordem judiciáriae nwite especialmente nos “casos difíceis” . Tampouco é incorreto di que uma lei pode,em diferentes -épocas, revestir-se de seH&f

práticos áiíerentes. Mas o texto continua sendo em si mesmo queeleé. a saber, “um caso central e paradigmático de institar ção do direito”: é um “fato institucional (jurídico)” que “<as M m ou Artigos existem enquanto direito”107e que a teoria dodireito são pode silenciar nem sua promulgação ou ab-rogaçã nem sua efetividade, isto é, sua capacidade de produzir efeíí

jurídicos..Todará, é necessário, afirma N. MacCormick. áisfifigsír

o texto de regra e o conteúdo de regra. O texto de regia ê n texto-norma, um pedaço de legislação. E suscetível de uma t tura-interpretação destinada a determinar, a partir de sua tetra, um moáefo de ação ou de abstenção apresentado como obrigção, proibição ou permissão; o que constitui o “conteúdo regra” ou “conteúdo de norma”"®. A distinção entre texto éeme-

gra e conteúdo de regra é, diz o autor, de impostâiicia ca nisá De fato, ninguém pensaria em duvidar da flexibilidade e & labilidade dos conteúdos de regra, pois eles intervém consca te parâmetos variáveis segundo os contextos éticos m ptáfá- cos. Em compensação, .costuma-se admitir que, aquém das “r

gras de decisão” emanaaíes da ioteipretação operatória dss js l

106. Ibid., p. 119.107. Ibid.., p. 120.iOS. O conteúdo da-regra, assimcompreendido, é normativo no ssk

de que as pessoas podem conscientemente a ele se reportar para guiar s^a -osb-duia ou seu juízo a propósito de uma conduta (como bem ou mai, juridicamente verdadeira ou não etc.), ibk!., -p. 122.

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A ENCRUZILHADA DO SÉCULOXX

zes'w, es textos-normas têm uma identidade e uma persistêasáa ao tempo, mesmo que esta última seja limitada: são textos fa se; são o que são. Em outras palavras, aquém de sua interpretação operalória, que tem uma finalidade prática, são “entidades jeâ - mente existentes e constitutivas, num certo sentido, áo âfaátè&i/fi. como ele se apresenta em dado período”110. Enquanto fatosèss- titucionais reconhecidos por uma sociedade, possuera uraa ineliminável primazia de sentido e de valor.

Portanto, embora N. Mac Cormick concorde que se possa elaborar uma “teoria dos atos e argumentos mediante ©s fuais o direito se toma operacional e operante”, ele se atérn. ps»» explicar a natureza do direito, a “uma concepção estreiía d o é - reito como agregado de textos de regra”. O “direito ens ispsm- so” - o direito em si mesmo, que não se confunde corn s a colocação em movimento - é, diz ele, “am fatoinstitack©ar'irrecusável. No mesmo sentido, 0 . Weinberger escreve qae ser { Dasein) do áireito é a existência institucional: o direito

[...] vigora porque é eficaz enquanto ârabiío de ação no cssss- plexo de instituições”"1.A tendência representada psios partidários desse ceo-ig®-

titucionalismo não reivindica, como o institecionalismo rfásã- co de Maurice Hauriou, a primordialidade dos fat«s seoms. Não é em tonio deles que a instituição se cristaliza cm m $s fosse seu produto. O contexto do neo-institucionalismo i » é ® positivismo sociologista. Ao contrário, a instituição, em sm . objetividade, caracteriza-se por seu aúdeonormativo, © «pe sempre introduz no direito uma dimensãovolxmtarista eâaà~ sionista"1. A partir daí, sua análise é comandada porexsgêmám mais práticose funcionalistas do queteóricas. Para o neo^kss-

109. Há ai uma alusão às teses <ie John Chipman Gray, The 'N&iuiv? -eftfS Sources o f the Law, Nova York. 1916, .que R. Dwarkiu retoma em Empire.

110- N. Mac Conmck, Co ntrov erseso p. cit., p. 123.

! í I. O. Weinberger, in£haiis, arL citado in n° 10,1989, p. H !.112. Nem por isso se deve pensar que o governo do homem .preváfesesobre o governo da lei. As derivações políticas de tai posicionamento - c êa C.SchmiU segundo O. Weinberger - sào. evidentemente, perigosas íiemajs.

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A ENCRUZILHADA DO SÉCULO XX M S

No entanto, ao termo de nossa exploração das abuodsEães e diversas doutrinas, podemos formular alguns postos de mfc~ rênria que demarcarão nossa reflexão ulterior.

1 / Diante da amplitude e das sutilezas crescentes do aparelho jurídico, o racioaalismo no qual se apoiavam o consfea- cionalismo e os grandes Códigos oriundos da ideologia das Laa- zes tornou-se insuficiente, até mesmo inadequado, para pensar o direito. A lógica construtivista do procedimento constitecsb-

aalista conferia ao direit» formas nítidas, hoje desmentidas ptia realidade do mundo do direito. A dinâmica jurídica com efeito escapa cada vez mais das categoriase dos esquemas conste»- dos por uma razão teórica abstrata e impessoal. .1. Rawls®'5é um perfeito representante dessa recusa da racionalidade c«as- titudonal quando tem adzaa idéia de um “consenso por goíhcí- dência parcial” para explicar as estruturas e a dinâmica jurídicas. Segundo ele, os fins do direito, bem como os da vida política, dependem da sociedade qae suas regras devem administra;' e

guiat. Oca, para realizar o jwsto, quecontinuasendo a íinaliâaás; de qualquer corpus jurídico, importa “em primeiro lugar”, explica ele, levar em conta ao mesmo tempo “a estretera básica” das democracias modernas (sendo essas estruturas “as pritaci- pais instituições políticas, sociais e econômicas de -uma sociedade) e o modo como se coadunam sum sistema m iiíicaás & cooperação social”116. Verifica-se assim “o fato do pferatíssisGT que pertence à “sociologia do senso comum”. À justificação de uma regra ou deumadecisão de direitodeseemanar de «aa“certo consenso”, portanto, de uma “cooperação «de feJa" f«e exclui as perspectivas de usaa “doutrina geral e abraageaíé”, sempre tingida - como origorísmo kantiano,o idealismo hege- liano ouo utiíitarisniode SfeartMill - dessa “metaÊsjça"{gag.

Í 45. J . Rawis. ' Le consensuspar recoupeineiit”, in Reme de méiaphmtque et de morale, 1968, !. j>p. 3 ss.;cf. Lm thèoriede ia justice (197 \), írsd. fr., SsaH.1987; '“Jastice as Fairaess. Poliíical, noí Metaphysicaf”. m PMosvplw and Public Áffairs. 1985, H. pp. 2 £3-5! (in Justiça e democracia, ftferfm-s Foreses.São Paulo, .2000$; cf. O. Hdfte. Lajmli-cepoliiique, PUF. 1*99!.

116. “Le conseirsus.. .*Vpp. 5 e 7. n. 1.

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244 OS FUNDAMENTOS OA ORDEM JURÍD

ele opõe à “política”"7. As fontes do direito precisam de “u unidade social1'Vexatamente aquilo que J. Rawls chama de‘“mm consenso por coincidência parcial". Este, que se distingae um simples modus vivenái, procede de “uma psicologia moB razoável” arraigada «a “cultura pública”'’s.

Costuma-se repetir que Rawls situa sua teoria em relaçã ao utiliíaRSBio, cujas dificuldades intrínsecas quer dissipar. Ma também se opõe ao positivismo lógico no qual, segundo ele procedimentos técnicos prevalecem sobre a significação das gras do direito. Na verdade, para além do aspecto polêmico sua obra, o que chama a atençãoé o caráter redutor de seu procedimento epistemoiógiee e a tonalidade relalivista, portatífcoparticulansta, de sua argumentação. Em sua rejeição do «m osa! e da dimensão metafísica, que atribui à racionalidade, pe® um direito de tipo puramente processual, independente daM ir-matividade (o que deve ser), mas profundamente dependes da cultura e das tradições (o que é). Era razão de sua hostÉIMa à ordem racional, Rawís não pode fornecer justificação para perspectivas normativas contidas nas apreciações de justiça embora não oleocmheça, ele é, em última análise, antkoimafei® ía e é válido perguntar-se se ele não cede, também aí, ao cg trário do que ele .mesmo diz, a uma tentação sociologizaaíe..

2 / 0 pragmatismo ético-social, também ele num gesto se racionalista, ao combater o caráter abstrato e geral das regra de direito e o culto da legalidade que o acompanha como as sombra, não se contentou, no entanto, em criticar os paraáK* mas do juridismo. Quis mostrar a necessidade que o dinâícfe de se adaptar ao ptaiafemo das experiências sociais e de se su meter à diferença dos grupos ou à relatividade das culturas.. Código, dizem em suma as teses socioiogizantes, é ameaça pelo habitus e, de modo mais .geral, o Estado, pela se dedaâe. Em conseqüência, a ‘‘superação da legalidade” por q.ue -eí anseiam exprime «m primeiro lagar “a revolta dos fatos ®9aS o Código”.

117.‘H o lema de “Justice as Faimess: Political, not Metapfaysscár:, inPhUosophy and Public Affàirs, 1985.

11 S. .1. Rawls, art. citado, p. 29.

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A ENCRUZILHADA DO S É C U W X X

Na verdade, as teorias sociopragmáticas foram muito mais longe. Sustentaram am discurso redutor. A partir daí, como oosr- re com todo procedimento reducionista. passaram ao iaigo áo que constitui a especificidade do direito pois o redisziram a sigo diferente dele. O que é grave em tal procedimento é qae © direito, confundido com o não-direrío ao qual foi reduzido, tornou-se uma simples figura do fato: uma ordem jurídica jáe í o decorre de uma construção, ela é, no limite, um dado.

Além disso, nada .garante que pôr em evidência, eai -nonae de um antiiegalismo, o arraigamento social do direito-oorossgKa»- de à vida jurídica presente: no “Es tado de direito” que boje taáss as democracias reivindicam, as disposições constitucionais .oas- tinuam a ocupar «tua posição cardeal, a tal ponto que, emv m m z da Constituição, o Conselho Constitucional é, ca França, oààÂ~ tro e a garantia da retidão das dispo:,ições jurídicas. Chegou-se ® falar recentemente da “desforra do direito constitecionaf’1®.

Essa noção de “desforra” é filosoficamente sígnificaSwa: ela designa implicitamente um advstsário e, através do d®el® das teorias, vemos o pensamento do direito fechar-se aa aHtks»- mía de dois dogmas,Gao direitoexprimeas capacidades aspã- tetônicas da razão;ouo direito depende de unia rede de oomái- cionamentos empíricos. Entre astenazesdesse dualismo, atecsáiatem de-oscilar de uns pólo ao outro. E vimos qsse, no mjvãassÊ» de “duplo frenesi-” que ©pôs as “novas” filosofes do direitas - materiaüsmo, historieismo ou vitalismo - à racionalidade áu fea- dição republicana constitucional, a demolição áos “sistesasS'"

culminouaumantijuridismo çue provoca a vertigem do «a ia . A crítica da racionalidade jurídica, exacerbando seu ptoceãi- mento reduciomsiae, ademais, tingindo-se de urna ideok^Éa militante, nada traz de substanciai para a filosofia dodireito.

..Demaneira geral, se a filosofia do direito devesse t#asr presa aos grilhões dos antagonismos doutrinais, ficaria c®tsáe- nadaà oscilação estéril das antinomias.

3 / E por isso que as investigações “ontoíógicas” sêEÉl- mente realizadas por inúmeros filósofos do direito são atraeHtss.

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246 OS FUNDAMENTOS DA ORDEM JURÍD

Propõem-se a romper todos os grilhões dogmáticos do rac nalismo e do empirismo, do jusnaturalismo e do juspositivism do idealismo e do reaiisoio, do construtivismo e do reduciom mo... Dessa forma, pretendem consumar esse “passo .para irá que deveria - segundo Heidegger, tantas vezes invocado - eminar o “esquecimento do ser” e. conseqüentemente, condu ao que constitui o direito em sua juridicidade específica.

Mesmo quando o termo “ontologia” é muitas vezes empgado de maneira extremamente vaga nesse tipo de investigaç (não basta utilizar o verbo ou o substantivo sei" para abrir o regitro da ontologia!), essas pesquisas exploratórias abrem per

pectivas inéditas muito promissoras: estaríamos, portanto,-prestesa apreender a natureza do direito e a encontrar suas bases?Percorrendo os numerosos trabalhos ou artigos que demoas

tram a intensidade dessa pesquisa, acudiu-nos, ao entanto, um dúvida. Embora os autores - exceto Michel Villey, f iel ã exe plaridade do realismo romano - de fato expressem seu acord quasío ao caráter regulador do direito, nem por isso deixam d enveredar por vias divergentes: ou a regulação jurídica, dizem, é dependente do meio que a suscita e que, portanto, heteroBom za o direito; ou, então, as regras de direito pertencem à “galáxia «mío” na qual sua auio-organização- torna, ao contrário, ordem jurídica perfeitamente autônoma; ou, ainda, o direilo s manifesta entre uma programação externa e uma programação interna, de modo que, encontrando seu lugar “entre ordesi desordem”, funciona conforme o modelo do jogo... Como n se sabe a qual critério apelar para pôr fim a essa hesitação, pluralidade das respostas dadas à problemática antológica d direito revela que o ser do direito ainda não se desvelou.

E quando cumpre acrescentar que, na superposiçãoo h ea-

trecruzamento das regras e da significação plural que a interpretação delas gera, acumiilani-se as dificuldades somadas d ontologia e da hermenêutica, fica-se tentado a crer que mais ass vez, apesar das promessas de uma investigação nova, a filosfia do direito tomou caminhos que não levam a. lugar algum que, em todo caso, não nos permitem chegar aos ftmdameEí- do direito.

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a E N C R U zm m mb q s é c u l o x x 24?

Sera qae a filosofia do direito eslá ooafcjaáa a escaparde ema difkaidade apenas para ver surgir outras? üsz séaátasqae jariscoEsaltos*: filósofos se HjtesjHjgasi sdxe * «p® caas-íitui a jtfii&cidadeéo direito; pensar ©hhívctso jwMk^sona. pOToatareza,eta projeto sem esperanças?A íi:k5s®fM ia S s& s, no choque des contrários oam. imprecisão dasmKeúszas,, estaria fadada à crise perssaseste susc&aáa pelas aparias? f&aãa

obscuros?

G o w é m ^essoFUtar as redaaáâscsas e os .B0vo$3ariios.j§He a m a a (h b descobrir o que, a á t, ©festa à ■< faâákàáaàe e «ocaíía as raizesfanáaferss doékeàs .

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PARTE III

U m no rm ativisu i® c rític o As raízes do direito

Lembrando as tensões conflitantes que, desde a aurora áa filosofia, estão presentes no pensamerto do direito, mestramss que elas provinham dos axiomas básicos das diversas teorias. Em muitos sentidos, os postulados nos quais repousam suas análises e suasconstruçõesremetem às eras da filosofiae, portanto, às concepções do mundo e do homem qae as caracíerizaia. Por isso os corpos doutrinários que descrevemes inserem-se todos, com maior ou menor cteeza, cotisideradas assetaaetse-cências ou osmoses sempre possíveis, em momentos da 'faistõ- ria ou, pelomenos, da história das idéias. Há, indelével, uma figura histórica das filosofias e, singuiarmeirte, das filosofias d® direito: o humanismo jurídicoera incGBceMvd eetee osromanose mesmo que, atualmente, se esboce às vez® asaa ®essacraliz2- ção do inundo,a idéia deumdireito n&taraiés erigem«üvisatem poucos adeptos; o cortstitucionaíisiB© é um legado da B&- voluçãoFrancesa e o antijuridismo dos“novosfilósofos” s§ pode ser posterioràs idéias dos“modernos”....Seria aladarazisfácil falar da “historie idade” das filosofias do direií© pois e t e levara em conta não apenas a estática e a dinâmica dos apaiE- ihos jurídicos estabelecidos Mc et m mc <aas-também a pratica

jurisprudência! e, por conseguinte, a evolução do sentido das sso- ções dodireito. Por isso, a introdução das categorias‘específicas e dos novos conceitos de que necessita, por exemplo, o direito comercial devido aos desenvolvimentos tecHoiógkos, ou o d r â - to internacional na época da cotaquista espacial, deve, evidentemente, ser levada esn conta pela -reflexão stíbre o direito.

Mas, embora esse genetismo ou esse Msíorismo explique o fato de a filosofia do direito ter empregado -tipos variáveis de

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250 OS FUNDAMENTOS DA ORDEM JURÍDI

inteligibilidadeconforme-asépocas e as concepçõesdo ijhüi-do, ele não explica osimpasses doutrinais da filosofia jurídica. Na antropodicéia que, a partir do século XVil i, possibilit que o direito e também o homem atingissem a“maioridade”-1,embora a teonzação da esfera jurídica tenha percorrido camnhos mais ou menos sinuosos, em última instância foi semp sob o signo do panlogismo ou do empirismo que ela se oák cou:ou o direito está “aos espíritos”; ou ele está “nos fatos”. aprimoramento das análises conceituais em matéria de contrato de responsabilidade, de promessa-oa de filiação..., ou a sufifc

dos procedimestos para dissecar direitos-liberdades, obrigaçõ ou créditos, não atenua, mesmo quando está apenas implícit o dogmatismo principiai de investigações qi;e são, acima tudo, de ordem especulativa. Essa tendência a procurar verdades gerais provocou, ao sécisio XX, um novo debate dos “uversais”; como foi observado, não se sabe o que é o Horaer só é possívelconhecerhomens. Por isso, “o retomo ao coacre to” mostrou-se mais que nunca necessário para compreender direito, sobre o qual todos concordam que tem vocação ps organizar e guiar a vida concreta cotidiana. Isso explica taato condenação das “ilusões metafísicas”, como o saeesso da fisofia analítica particularmente ligada à realidade da linguagem do direito. Nos tempos atuais, esse sucesso nos fornece a imgem invertida do grande erro que, desde sempre, perseguia filosofia. Merieau-Ponty já o denunciavamaravilhosamente j x j t volta dos anos 1950, escrevendo: “Oempirismo não vê que precisamos saber o que procuramos, sem o quê não o procuraríamos, e o mtelectualismo não vê que precisamosigttocar ©<pseprocuramos, sem o quê, de novo, não o procuraríamos.” O mo

delo binário que aprisiona a filosofia num círculo condens-a/ estagnação e à repetição: será que toda a história da filosofi consistiu apeaas emanotaros Diálogos de Platão? E Medeaa- Ponty concluía: “A verdadeira filosofia devereaprendera ver

í . Kant, “Qifest-ce que les Lumières?'\ in La philosophic cie fhisioirg, irad. Pioh etta. Aub ier, 1947, p. 83.

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UM NORMA TIVISMO CRÍTICO 251

o mundo.”-' Da mesma maneira, temos de reaprender a m r m direito.

O projeto é ambicioso: consiste em desafiar a esíagnaçi© do pensamento para eliminar deie as obscuridades inveteradas. E também difícil, tão difícil, que, para realizá-lo e sair do ckcefe dentro do qual vai de M para cá, a filosofia talvez tenha de ía- tear para encontrar seu caminho. Quer dizer que a estrada -tpc

conduz ás fundações do direito não é reta nem. isenta de ciladas? íalvez não haja um “caminho fácil” para a filosofia do direito.Na ver-dade, embora a vontade de aliar o extremo sufoj€fe-

visrao ao extremo objetivisEio possa ter-se imposto, em fasae das ilusões dogmáticas, como o imperativo primordial de oa» “outra’’ filosofia do direito, ele está longe de se ter traduzido áe maneira unitária. Dois poderosos métodos se dedicaram a isso: por um lado. a dialética hegeliana; por outro, a fenomeiiefagKí de Husseti Apesar da majestade especulativa de ran e da taãsi»- cia exploratória do-o s iíh s , a filosofia do direito não foi capaz áe responder à dupla questão da natureza e da fundação áe sssa ordem jurídica.

Para dissolver os modos de pensar dogmáticos. Hegel agü- cou ao universo do direito seu método dialético sobre o qnaS se pode dizer, numa primeira abordagem e simplificando-o ae e t erno, que ele traba&a para a síntese dos opostos. Ele pek> e m c c indica que otogar dodireito nãoé ascoisas nem oespírito: o acontrato de tiabaiko, a eoacorrência desleal, a respoRsabyásãaãs dolosa, as perdas e dasos... não sãonemfeíos«eraidéias; eêoj©?- tencem ao dado bruto, nem00 simplesmente concebido, pdss.Es coisas, por si sos, sãoo quesão, istoé,vazias de sentido,e«sao-ceitos, por sua. vez, não são auto-suficientes. Um procedisasEfe dialético permite elimiaar essa separaçãodaalistae ofereceè ésfo-sofiã do direito iMnnéíodo cuja aplicação reveía, numaordemáe direito positivo, a aliança substanciaientreo subjeãvo-e o efojeíst».

2. M. 'Medeau-Poaty, La piréiwinétwhgie de ki percepiian, GátsassaS,1945, p. XVI. (Trad. bras. A fenomenofogia da percepção, Martins IBssíbs.Sâo Pauio,1994.)

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252 OS FUNDAMENTOS DA ORDEM JUR ÍDICA

Em sua originalidade profunda, o método de Hegeí é menos simples do que levam a pensar várias apresentações ou pretensas heranças, pois não pode ser separado de seu sistema fi losófico. Ele não visa a estabelecer na esfera jurídica um compromisso conciliador entre extremos incompatíveis: o subjetjvis- mo voluntarista das teorias modernas e o objetivisino realista <pe o curso da história impõe. O processo dialético não tem esse caráter superficial. Muito pelo contrário, é profundo e revela o tormento que é interior ao próprio mundo jurídico, no q<aaí a realidade objetiva do direito estabelecido não nega o momeiíís abstraio do pensamento que é constitutivo da juxidicidade. A dialética. diz Hegel, expõe a progressão imanente ao direito. Utiliza as contradições que, na própria evolução do pensamento á© direito, surgiram entre seu conceito e seu ser e une positivamente as duas faces de sua negação recíproca. Mostrando assim a© mesmo tempo os limites da abstração e as fronteiras da empiri- cidade, que fadaram a filosofia à sua bela impotência, indieaa necessidade de dar um fim à alternância antinômica entre teses e antíteses. Enquanto tal, pretende ser “a alma motora da progressão científica"5.

O método dialético não é a expressão do idealismo trius- faníe que, culminando no pensamento do Absoluto, constiftairia, como se costumou repetir, a originalidade de Hegel. £ um rasâ©

heurístico - um meio, por conseguinte, de conhecer o obje&M&r- reito, isto é, o direito positivo(gesetz), o único direito «pe é verdadeiramente dèeito4. Hegel, que sabe muito bem que não isâ absoíuto do direito, percorre o universo jurídico, díversiSea-d©., complexo, relativo, evolutivo, segundo o passo da processaafi- dads diaJética. Numa marcha ascendente, encaminfaa-se. daligara abstrata dodireito para sua forma de universal concreto. Ao mostrar que o direito é a unidade de momentos contraditórios que necessitam um do outro reciprocamente, a dialética ascendente situa o direito relativamente à idéia absoluta. Em oateas

3. Hegel,Précis de VEncyclopédie éesSciences phihsophiqsses. Irad.Gibelin, Vrin, 2?cd, 1967, § 81, Nota.

4. Begci.Príncipes de la ph ihsop hie du droit , § 211.

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UM NORMA TIVISMO CRÍTICO 253

palavras, reconstrói especulativamente o direito inserindo-os m m suntuosa rede de conexões e de relações em que eíe se irnsese como um momento necessário do Absoluto.

A questão evidentemente, é saber se as diveisas ordens j®- rídicas, cujos preceitos prescritivos ou máximas, hoje,t e c o i E e s - datórias regulam as condutas humanas, deixam ver suanaísazesea e seu fundamento através dos gabaritos teóricos da alta especa- laçáo hegeliana, mesmo quando ela tem. como diz j. de tfesifí, a majestade de um “prodigioso vôo de águia”5.

A atitude fenomenológica, para conjurar, junto cora osá»- mômos dos doginatismos separadores, a ilusão metafísica segs®- do aqual o universo jurídico possui uma natureza metaempíá- ca. pretendeu ser mais modesta.Aliás, E.Husseri não se deákaas precisamente ao estudo do mundo jurídico. Mas a fenomseív- logia, que procede, como a filosofia de Hegel, de uma voiitaáe de ruptura com os pensaineutos tradicionais, implica a revisie dos hábitos consagrados e dos valores estabelecidos.Podeajsaisr a explorar o universo do direito de maneira nova.Com efeito,e fenomenologia cinzela um método que permite penetrar « realidade objetiva dos códigos e da prática jurisdieioi3&l.pffi& apreender as articulações e as exigências íntimasdoqueé j«sádico. O método fenomenológicQ iestafe-se no próprio dírefe, em sua gênese, seu tato e sua vida que lhe comandam as es

truturas. Torna-se assim o instrumento de um trabaifeo de efe- cidação da “região-«fireiío’\ que explora desde seus aspectos externos até seu ámago.Porisso ele propõe uma analítica jaá- dica que atinja o ser do direito e seu fundamento.

Por “uma reação fenomeoista antiideoiógica”6, o proceás- h k s ío fenoaieaolégico preteade k “às coisas mesmas”, Gsasisíte em estar atento, “sem pressupostos prévios e sem consiraçães sisaematizarites”7, à realidade jurídica. “VêT mais do que earass- be” o direito, sem por isso cair num fenomeaismo ou rasm eííje-

5. I. de Hoaéí, H egel e t1'hègéümiisme. PUF, 1991, p. 84.6. F. Asisetek. M élf tode.phénom énologique e t ífiéorie dst draii, ii8©3.

Í964 p ÍO

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254 OSFUNDAMENTOS DA ORDEM JURÍDIC

tivismo ingênuos. Na verdade, realiza sua tarefa de elucidação objeto-direito mediante “reduções” sucessivas8. Num primes® tempo, unia redução dita “filosófica” deixa de lado as sobrecagas filosóficas ©u científicas do direito. Esse procedimento pmite descrever as proposições, isto é, as regras, enunciadas p uma ordem de direito: são instrumentos paia julgar, ou seja. modelos ou pontos de referência do sistema jurídico. Num segtó momento, uma redução “eidética” afasta a factícidade acidení ou contingente do direito, a fim de descobrir seueid-os ©ss st® essência, ísío é, sua estrutura fundamentai de dketividade. Es operação implica a crítica tanto do idealismo, que é moralizaek como do positivismo, que continua empírico. Num terceiro mmento, efetua-se a redução “transcendental1’, em cujo final fenomenóiogo do direito encontra o homo ju ridicus, o “cleroca- to transcendental da experiência do fenômeno jurídico’’5 (compreenda-se: oego ou o sujeito transcendental, caracterizado prr sua intencionalidade como fonte do sentido).

Como a aíkude fenomenotógica mostra o décimo dos a&s íutos metafísicos, como repudia os procedimentos dedutivos dialéticos, como procede, de patamar em patamar, a purifica

ções sucessivas do fenô meno - d i reito, ela possui uma grar força de sedução. No entanto, a redução.transcendental, sbsk ordem jurídica, tropeça em dificuldades terrí veis. O ego Ccsr cendentai não é, em última análise, o que deve explicar a e® matividade das normas jurídicas sem que ele mesmo teniaaá ser explicado? Nisso não há um perfil bem enigmático? >0a«rtão, o tema da subjetividade transcendental, que ftmcioiBa « relação ao direi to como um modo doador de sentido, não partcipa de um idealismo sublimado que, como tal, é repleí©é e dogiíiatismo? Se assim for, as razões de ser áa jurididdaée 4 b

direito permaneceriam na sombra.Por isso, não obstante o perfil grandioso da düaiétxca &e geliana e a paciência das “reduções” sucessivas efetuadas pe

8. Remetemos a nosso Essai de critique phêmtmétiofugiqne du éréü Klmcksieck, 1972.

9. P. Amseiek, op. cit., p. J63.

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fenomenologia, as fundações do direito ainda não foram esclarecidas. A dialética, hoje, tem muitos inimigos, e a idéia de contradição qae é seu motorestáatualmente íão desacreditada qas 3. de .Hondt propôs o termo “rupturalisnio” para designar a re

jeição radicai de que ela vera sendo objeto desde os trabafiras da Escolade Frankfurt. Quanto aoprocedifECEíofenomenola- gico, ou ele conduz às vertigens do dogmatismo idealista, <pe encontra naordem jurídica queexploraas presiissas que pas- tulou do princípio de sua investigação, ou redunda numa visâ© do caráter misto<k> direito, em que se uoeta o realismoáesenunciadose das práticas e aideaiidadedas exigências axtol©- gicas. Em ambos os casos, cria mais problemas do que resol ve,. Dizer que a essência do direito significa que o sentido do fm§- meno jurídico lhe é imanente e, por conseguinte, perceptáwâ por transparência, não é elucidar esse sentido. Além disso, sSxsar a ordem do direito entre o real e o ideal nada tem de nov®: fei muito tempo se sabe que um simples naturalismo carece de sor-

matividade e que o puro norma? ivismo despreza a fenomenais - dade do direito. A dificuldade está em mostrar que, embora © direito se efetue no fenômeno, ele só pode ser compreendíáe como sentido. Diante dessa dificuldade, tudo indica que a fenomenologia tenha capitulado, pois é à ideaMdade da subjetividade transcendental que os filósofos que se situam na &fea. feusseriiana recorrem para caucienar uma “ciência rigorosa^ do direito.

Diante do que se tende agora a considerar o fracasso da dia - iética e d a feiKMKenoiogia, o “retorno a Kant”, por íesteaísaifer uni retorno à “razão crítica”, é o sinal de união dos pensaâmes

mais profundos da filosofia do direito alemã, asglo-sasã francesa. A maioria das teorias que operam esse retomo a fazem referência ao critério teieoiógico daCrítica <ia facufàaãs

de jitlgúr. Nessa via, desenvolve-se uma reflexão sobre a legitimidade (ou melhor, sobre a legitimação) de uma ordeo-i ée direito: essa .legitimação é pensada segimdo o modelo do juízo reflexivo e encontra expressão no feorizoníe Hassoettâcfftftl de sentido e de valor que a razão abre. Essa primeira mastm-

ra de voltar a Kant explica a diferença, por muito tempo «fosca-

:UM NORMAT1VISMO CRÍTICO 2S.§

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256 OS FUNDAMENTOS DA ORDEM JURÍDICA

recida pelas controvérsias doutrinárias, entre “filosofia do dir

to” e “ciência do direito”. Fornece assim uma interpretação sutuosa e filosoficamente profunda do direito, que define a nareza do direito e mostra o que constitui ajuridicidade do jurídic

Mas o retorno a Kant pode se dar de uma segunda manera, sem dúvida menos brilhante, porém mais radicaiizante, q privilegia modestamente o criticismo enquanto “teoria trancendental do método” e faz referência ao critério antidogniá co daCritica da razão pura. Embora o criticismo fcantiano sej sobretudo - isto é, em seus recônditos - uma teoria do méto na qual o idealismo -transcendental é tambémum realistas em

pírico, é possível ampliar o campo de operatividade do méío transcendental e aplicá-lo ao direito. Melhor do que o própr Kant em sua Doutrina do direito, Cassirer entreviu essa utilização heurística do criticismo e Kelsen lhe deu corpo ao most que a atividade originária do espírito é a condição de possibidade e de validade de ama ordem jurídica. Em outras palavra o criticismo enquanto teoria do método permite compreend como e por que a objetividade do direito positivo Kiergulha su raízes no que o pensamento elabora como necessidade. Nos projeto aqui é, portanto, investigar como o criticismo bei entendido - que, m estudo do direito, substitui a questãoQuid

facti? , sempre presa à penumbra dos ernpirismos, pela questã Quid juris? - conduz a um normativismo cujoestatuto é importante definir.

Nessa terceira parte, examinaremos sucessivamente as prmessas e as feagiiidades das tentativas feitas pela dia lética ke-

geliana e pela fenommologia husserliana para superar o conflito recorrente entre ©s dogmas idealista e realista, que são -com que espelhos nos quais a representação deforma a realidade d direito. Depois, tomasido as vias que fazem “retomo a Kan adotaremos sucessivamente, paia esclarecer a problemátic

jurídica, o ponto de vista da id eologia que é o daCrítica tfo faculdade de ju lgar, hoje muito utilizada pelos filósofos, e ponto de vista do método crítico exposto naCrítica da razão

pura e ivaCritica da razão prática, às vezes um pouco esquecidas e, no entanto, fundamentais.

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CapítJifo i

O direito e a dialética hegeíiatm

No sistema “enciclopédico” fesgefetto,a <Maléíiea csm á- tui um “momento” da investigação filosófica,situadoeaíre “o prkoeiromomento, oelementorefewantedo eotedâmení ©”5e © roosieHto“especulativoou posiíivamejAíeradosal” fa e aprasai- dea “uaidade das determinaçõesera sua posiç ão’” - sessão <fiae o conjunto dos três momentosperteaos a“tudo oqae temassa reafidadb lógica”, isto é, a “tudo © qise éverdadeiroem .geraS”*.. Vistoqae a légicaé a “alma queviviSca’’a filosofiaía daMa- tüfezae. tembém, a do Espírito), Hegel a io podiadeixaráe essa- dar como“a gramática”por eia constituída escoatra seulugar de-exce-fêacia.oacultera,poríajteu nessa parte da cal&iíatps « o direito.Na economiagera! da sisteraa, isso é,íac3 á s esitesa- den o rnoirseato dialético è “e f a ^ ssqpÈw® áo começo”4qos prepara a ‘VeaSzação” de urrsa noção como continesíe <faposifi® de “suas determ inações em sets ser-para-ss”5.. Ente comsç© e

f\m, ela é o“momento da reflexão”, m mesmo tempo aasiífc© e siatéíkxs, o snomeata transitivo <pe conáaz m “racHWiEÍp®- siíwo”. Portanto, Hegel vê na diaié&a ^e^sHiMsasiesSKri© conceito”, o ePiCamiuhameato «pie G. Lefesti denoininou cosa. muite acerto: “a paciêacia do ccmxèlsf*.

i- üegel, Précis de / 'Encyciopédi-e des scienceí philossphiques, § 7 f.2 Ibid , § 82.

3. Ibid., § 79.4. Ibid., § 239 b.5. Ibid., § 242.6. G. Lebnsn, La paíience du concepl, Gaillãnsai 1972.

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258 OS FUNDAMENTOS DA ORDEM JURÍDi

O andamento dialético do pensamento oferece assim, e

quanto método, um procedimento heurístico exemplar para alcançar o ser do direito e compreender sua formação. A filosofia < direito de Hegel tende portanto a mostrar que, como no âkáBm positivo nada é identidade absoluta ou diferença absoluta, tei nele é relação. De fato, apenas o esforço para superar as cm - tradições e as «posições toma acessível a inteligibilidade esfera jurídica m qual se exprime o direito positivo. -Nunca ses possível compreender algo do direito e descobrir seus foná mcntos atendo-se à visão superficial e fragmentada áe sw diversas figuras. E preciso compreender as passa gem que tor

naram possível o direito dos Estados modernos.Mas essa compreensão é, segando Hegel, aigo conapleí

mente diferente da aplicação de cânones metodológicos cujo equema global foi tantas vezes identificado à tríade íese ouime- diatez, antítese ou mediação, síntese ou superação, na fu®fsevidentemente, c pensamento, se seguisse esse encaminhasae to, sucumbiria ao céinuio de um procedimento dogmático. Or mesmo que a estruíara dos Princípios da fi losofia do direito é s 1821 corresponda, em sua forma, a esse esquema ternádo, ® que Hegel procura exprimir é a difícil, porque profimda. ta®a da de consciência do qae ocorre o mais das vezes de maneir inconsciente na prosa da vida. Em outras palavras, a dialéfea normativa do jurídico expõe, para deixá-la plenamente clara.;® dinâmica obscura do direito. Propri amente falando, ela-deve ssr a elucidação davastasinopse que, iniciada com o próprionascimento das sociedades, fornece a imagem especular da vii do espírito.

Portanto, elucidar o objeto direito tomando consciênciaéo sentido das formas de que ele se revestiu é tomar consciêsõ de si mesmo e do mundo. .Os Princípios da filosofia do direito é s Berlim reproduzem a um só tempo a Fenomenoiogia do espm- í o e a Ciência da ló g ic acompreender o direito é compreaa- der a si mesmo. Os estudos de J. de Hondt, de E. Weil e áe<S

7. Recordemos as datas dessas obras: Fenomenoiogia do espirite, iCiência da lógica, 18Í.2-IS16; Princípios da filosofia do direito, 1823.

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UM NORMA TI VISMO CRÍTICO 2 3 9

Planty-Bonjour sobre a concepção do Estado e daSiítlicHceit bem como (limitando-nos ao pensamento francês) os comeaíárias de B. Bourgeois sobre o dfeeíto natural são defimtmss. Não temss a tola pretensão de querer acrescentar-lhes o qee quer que seja. Gostaríamos apenas de mostrar, a partir de itm exemplo - « estatuto da coisa na “prosa da vida ” que o desenho dos cfe- cuios da reflexividadejá estava esboçado desde o direito ronsaiso.

A filosofia do direito, em basca-do fundamento da jutãü- cidade, decerto não encontra nok k x M q romano a solução de ssa problema. Mas o estatuto exemplar da coisa ganha wio r de bíh signo que se deixa decifrar comc modeio: eleé o começoáecaminho da reflexividade peto qaai o espírito é ceaduzidopassa

junto de si. Como tal, oestatuto jurídicoda co isa contém o segredo da dialética hegeliaoa: apreeader o tpe é a coisa na esfera

jurídica ê, pelo pensamento, ecmprecndâ-LA ooHipreeadeaáô A SI MESMO.

O estatuto jurídico da coisa

Se, antes de penetrar no muEdo do direito, o filósofo fizer uma daquelas perguntas que causam ciso iras criadas:“0 qwe 'é uma coisa?”*, só poderá resposéer eo&fizaaâo a pobreza eã- ginária que a caracteriza. Com efeito, a coisiâade de toda coisa a enraiza no ser como imediafez íadetemiHada, coma HMáãlfe- resiça. Como toda coisa mergulha s«as raizes rsa |?ura vaeniáaáe

do ser, há universalidade da coisidade de tsda coisa; eíaé-pesaa- ça de ser, ela está aí. Mas uma coisa, Iwra ou casa, ssag^larist o universal: ela existe como um conjunto de detenBíiiaçBBS. cor, peso, extensão...., que são suas propriedades. E, como «Ia es se revek pelo conjunto dessas .proprieâades, eia só é o que és®. medida em queé relacionada cem o qae sãoé ela: o fero sãeé o lápis.; a ftassta nãoé azul....; as •dstersakíações da coisasão negações. Uma coisa singular é uma unidade negatim. Aüm disso, essaunidade écontraditória em si,pois as proprieáaâes

8. Cf. Hcgel. Propèdewique. §§ 40 ss.; Encycíopédie. § 125.

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260 OS FUNDAMENTOS DA ORDEM JU Rmi

que se unem na unidade da coisa se interpenetram e se dissolve umas nas outras: o verde do piado, por exemplo, não se jsmS com sua extensão ou com a naíureza da relva: o verde, a fi-ste .são, a relva estão indissociados, dissolvidos uns noso « í k >s .

Portanto, nenhuma propriedade positiva se impõe por si num coisa,-nem sua consistência material nem sua forma: se íenh um torrão de açúcar diante dos olhos, onde termina saa rassiê ria, onde começa sua brancura ou seu gosto?

E se nos perguntarmos o que é, para-nós, uma coisa, descobriremos que as determinações/aegações de uma coisa se proj

tam em seu aparecer: nós a apreendemos como fenômeno, potanto, ela só se desenha mima celação que remete a uma coi outra, que implica a diferença dos termos. Digamos, simpl® cando, que a coisa se mostra como exierioridacie « n compaiaç à inferioridade de seu oposto, oa ainda, que a coisa só é ©si numa perspectiva de alteridade. Em suma, um objeto só «aâst para-um-sujeito. Uma coisa é o outro da idéia, como a Natureza é o outro do Espírito.

Apesar das aparências, estamos muito peito da filosofia sfo direito: a exterioridade da coisa designa-a como inanimada, mort

e estranha ao espírito. Há uma mudez, uma pobreza esssaciá de toda coisa já que, na perspectiva de alteridadeem que eia-se situa originariamente. tudo sela é negação. Como diz Hegel « Princípios da fi loso fia do direita^, “falta subjetividade à coisa’’. Ela não tem alma, é pura inconsciência, simples Becess.tdffi exterior: é como “vida petrificada”: tal é “a desrazão da etflte rioridade”. Mas é jusíaíiseste sua pobreza essencial imediata ap faz com que não tenhamos escapatória: a riqueza só Ifee 'aá-w mediatamente, graças ao movirsento de um ato de coflStitwçB procedente daquilo queé seu outro: o espírito. E exatamesSe

isso que acontece no direito.Com efeito, ao penetrar no universo jurídico onde se issa

nifesta e, ao mesmo tempo, se busca o espírito, podemos decobrir “o destino das coisas”1".

9. Hegel, Príncipes de Ia phiicsophie du droií, § 42, add. Gaas.10. Cf. Príncipes de la pMlosopkle du droit, §§ 41-74; Propéde&tiq&e.

primeiro curso, 1? subdivisão, §§ i -H ; Encyclopédie, §§ 487-93.

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UM NORMA nV ISMO CRÍTICO M í

O problema da transfiguração da coisa natural

Comecemos per formular o problema. O ur.ivcreo éoáir d - to tem o heo?em por princípio, centro e fim. Fsxqse0 ' l m e R C “vontade em-si e para-si”, isto é, una seriivre qae toraoa caas- ciência (é a fase do “espírito subjetivo”) da liberdade de si raes- mo, ele procura aíeader àsua essência que éser espírito. BsSüa, ele experimenta saa liberdade no mundo: é a fase do espkil©

objetivo. £, desde seu primeiro momento, enquanto a vonSaífc ainda sóexiste imediata e individualmeníe ao sujeíío d ed ssi- to, a liberdade é confrontada com as coisas.Ou seja, na psssa cotidiana da vida, o feomem tem a vantagem da irtíc-iatoia: paga as coisas, molda-as, usa-as, apropria-se delas, cede-as a outessst O teato jurídico oomeça. No entanto, quaaáo a coisa peaetea n circuito do direito, sua radica! transformação tem de se éar - pois, em soa knediatez natural, ela é pobreza e nudez.

Nossa tarefa é compreender a mutação mediante a <jsá s

coisa se investe de um estatuto Mitológico e semântico, ospi riqueza contrasta cem sua indigência inicialAs exegeses da filosofia do direito de Hegel gesatraesSe

se colocam do ponío de vista do homem, süjeito om ão 4k abstrato, ora da Moralitãt, ora da Sitdichketí; elas se pejgssa- tara como a vontade subjetiva se objetiva ao Esiado conte ses- lização do Espírito universal. Invertamos o olhar e nos co.fofpe- mos dolado das coisas.

Logo de saída, assistimos à, transfiguração da coisa.No limiardo universo jurídico, acoísa.fiai«2:L,emsaaiâi5'-

teszamação cosceiteai, é a -exferioridade; “a idéia soba fesasa da alteridade". Elanão tem alma. Falta-Bae subjetividade,bom como qualquer poder de decisão. Portanto, por si, a coisa m s teia finalidade própria". Ora, era face da coisa,- a pessoa, meia é existir como Idéia,"deve dar a si uma esfera enstesêarú sua liberdade”12. Ela inicia a realização de sua liberdade nofíioffo do ter. Apenas para subsistir, paia conservar-se vivo satisfaass-

11. Príncipes de la pkilosophie du tfo oií, § 44. \2. ibid.. § 41

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262 OS FUNDAMENTOS DA ORDEM JU WWC

do necessidades e desejos, “o homem pode colocar suav<mta.és em qualquer coisa”15. “Qualquer coisa pode tornar-se sua prpriedade”, seu bem1J; para tanto feá uma única condição: qas coisa de que ele se apropria seja res aallius'% isto é, já não tmiha sido captada pelo querer de um outro, pois o querer é um absluto do qual não se pode fazer uoi negativo. Dessa forma, a co adquire uma finalidade ou fica incumbida de uma destinaça que ela não tinha em si: o fruto que colho para comer torna- alimento atendendo à minfea necessidade alimentar.

Assim, a pobreza essencial da coisa natural é sabsti&éÉ

pelo seatido e pelo valor íeteolégie© que minha vontade depota nela: o fruto que se tornou aíimeaío para mim 'tem por a te a minha vontade"; ele recebe algo de minha intimidade. Reazou-se uma espécie de milagre graças a uma prodigiosa tranferência do querer: a coisa adqsairiu um dentro; já não é simple exterioridade; e esse dentro «da coisa ifee vem de seu outro;: vontade livre do eu,

Com isso fkma-se decerto a superioridade do querer em comparação à natureza. Mas, simultaneamente, a coisa é teas formada: em vez do elemento iadependente e insignifican

que era, separado de qualquer sujeito, oposto a ele, não perteea a si niesmo, ela está agora colocada na dependência do sajef ligada a ele; dependente deis em sua desiinação (ccm o, aliás. depende dela em sua própria subsistência). Ao perfer sisa iaá pendência, ela adquiriu um seEtido; aceitando sua dependêsci ela encontra um objetivo sutetaacial.

Portanto, já em sua maaifestaçâo cotidiana atais dfflnsesa tar, o sujeito arranca a coisa de sua pobreza natural. Dando-fc uma alma - um pouco da sua própria ele eíeva a coisa a e nível que não era o seu. Por um processo de animação, ele

transfigura. Desde já, percebe-se a miséria de qualquer realismo empírico e que somente oidealismo podeexpliear. segmSo Hegel, a verdade de qualquer realidade. Na prosa do cotiáksK a coisa é sua interpretação.

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UM NORMA TIVISMQ CRÍTICO 2á§

Mutação idealista e juridícização da coisa

Essa nmtação idealista da coisa é geral. Mas o processe que a gera esclarece desde já sua jtiridicizaçãa.

Segundo Hegel, posso coiocarmmiia vontade eiii «palqasr coisa: isso significa em primeiro lugar que não posso c©'locà-la nas não-coisas, por exemplo, um outro homem, soas quaSást- des mentais ou produções intelectuais. É por isso qae a cünsrila do direito romano segundo a qual o filho era am bem do p i parece a Hegel antijuridica. Aiéai disso, isso significa q ueteâe coisa é para o homemum seu possível, uma propriedade vktiaá.. Pouco importa qual coisa ou quantas coisas ele toma saas. Toda coisa é virtualmente um bem e a atualização dessa visías- íidade é a animação da coisa pela finalidade q«e .e h e a e r a ie atribui. É o que Hegel exprime ao dizer que “o homem é s a á w de tudo na natereza”. Mas esse domínio são tesa ©s teaçes á s raeionalismo triunfante que esta no princípio âo meoanicísfjss

ou da Aufldãmng. Esse doontno não tem uma unira diissâss: em todas as fcnnas de apropriação, eíe cor.sisíe de fato em-c®a- ferir ã exterioridade natural uai® iisterioridade espiritual» wns, siiaultaneameBíe, a pura subjetividade desaparece na coisa fw - que o sujeito se encarna: meu bein faz parte de raim. Pertaaío, quando «ma coisa se torna um bern próprio, a is recebe do sssfíS- to, como se fosse um dom gratuito, «in fitn oa ma seatid©, portanto «ma alma, mas opera-se ema troca eatre voniade e coisa; esta só sai de sua indi ferença natural e só aiquwe sentidoJ s s b -

dico porqueism. sabjeíividade reauocia à s sa pareza, desaparece nela. Quando o ofejeto se espiritualiza, o .espláte se ofejefea: é o começo de sua realização, de sua plenitude.

Essa troca dialética entre o sujeito e o ofejeto-é .revefefei® por duas râzõès. Oo pónto de' vista jurídico, eólica o íaÉser exclusivamente privado de toda propriedade j á que a ©tyjsám- ção de minha vontade na coisa depende apeaas de mim. E fs? isso que meti corpo é meu primeiro bem16: o direito de kmisms corpus constitui a superioridade do homem sofeie o astim&I e

i6./6irf.,§47.

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264 OS FUNDAMENTOS DA ORDEM JURIDI

tenho boas motivos para defender minha vida que é a existê

cia de mirdia liberdade e, também, para me opor a toda violêac degradante. De qualquer forma, Hegel, contra Plaíão e coaf todos os socialismos, considera que a idéia de uma projrieá de coletiva ou comunitária é uma contradição. -D e um ponto vista lógico, a troca entre o sujeito e o objeto revela que tudo que é jurídico tem eecessariamente as duas facesés laao e <p*e elas se reíleSeia dialeticamente num incessante jogo de esplhos,«metendoo subjetivo ao objetivo e o objetivo ao subjetiv O jogo dos conteários e o domínio das coiíteadiçõesé © fio cdutor do direito: o movimento circular do espírito que feasc reencontrar-se é visível na juridicização da coisa como £sc tem o pelo qual os extremos entram um ao outro.

Nesse ponto da análise, podemos observar que a m eta»® fose jurídica da coisa pode operar-se segundo as diversas mdalidades da tomada de posse; ou seja, pela apreensão que é. par meio de mrafea mão ou de uma ferramenta, a apreensão ras simples da coisa por meu querer17; pela [arm ação (Fo rmierungl que modifica a forma natural da coisa, por exemplo tpaasá lavre um terreno para cultivá-lo, cuando doméstico um cava! selvagem(v.o dizer de ffegel, era essa formação que, otórara

justificava a escravidão, bem mais que o direito do veitoeá ou o consentimento)'8; pela marcação por fim , que é uma feasa- da de posse simbólica, por exempio quaado Cristóvão Coloiaf fincou rasa bandeira na terra que acabava de descobrir'9. suma, é nouso da coisa que se consuma a posse35.

CosSama-se insistir no íàto de que essa maíação compreesiva da co isa que se torna umbem coBstituí acesas a figíss®. inferior do jurídico, e isso por duas razões: a piisaeira é «ps

posse, mesmo quando se consuma tio uso da coisa, aisidanie áa propr iedade, a qual, como mostra a análise do contrato era malária de compra ou venda, implica um ato de reconheciiaesv

17./èid,§55.18./&«/., §56. l9Jàid., § 58.20. /fe/i/., § 59.

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266 OS FUNDAMENTOS DA ORDEM JURIDÍC

O primeiro aspecto da lógica hegeiiana do direito é a ae- ■ cma da idéia de direita natural. Já que uma coisa natural, era sua imedíatez, é negativa, eia não envolve nenhuma juridicíâa de: uma coisa não é jurídica por natureza; toma-se jurídica por mediação.Hegel rejeita portanto a idéia de um direitonaterfque lança suas raízes no apriorismo abstrato e etemo de ma estado de natureza ou de uma natureza humana. A juridiciáade da coisa num bem de consumo, no uso da posse ou na propridade-ato é um dado imediato da natureza. Nem na natureza da coisas eem na natureza humana o direito encontra seu princípio ou sua justificação. Portanto, só há direito construído, positivo; é obra - e, sob a forma do Estado, será a realização -d uma liberdade. A cazão do direito não é natural; é espiritual a apropriação da coisa é a existência exterior da vontade.

O segundo aspecto da lógica hegeiiana do direito é a es posição das condições d e poss ib ilidade da existência ex tefia da liberdade (ou, o que é equivalente, doestatuto jurídico éa coisa). Não se traía de um problema crítico de tipo kantiaae re fichtiano: recairíamos (pelo menos segundo Hegel) no formalismo lógico. O que toma possível a metamorfose da coisapela

encarnação do querer é a reconciliação dos opostos. Toda a filosofia de Hegel está nessarecusado princípio lógico clásáo© de não-coníradição. Essa reconciliação só poderia ser considerada em razão da antinomia originária entre a coisa e a idéia: para Hegel,no início nãoháação, mas alteridade: oposição <ps é separação. O processo gerador do direito consiste em SEpeis essa dkxrtomia originária: a lei do espírito, como a gênese á direito, é a supressão da separação. Mas, por um lado, asupressão da oposição nunca se dá por um movimento unilateral: ©idealismo hegeliano não é monista, é dialético: a liberdaée de

saparece na coisa e, simultaneamente, a coisa fornece um conteúdo objetivo à liberdade subjetiva; por outro lado, a supressão da oposição não é a destruição dos opostos mas sua sutfti mação recíproca: a inconsciência toma-se consciente, aims- diatez torna-se mediata, a necessidade adquire urna liberdade. Portanto, o direito mostra que a oposição é necessidade de uniãoa supressão da separação tende para a identificação dos dife

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UM NORMATIVISMO CRÍTICO 26?

rentes por seu enriquecimento mútuo e recíproco. Temos s r a “alma da dialética”.

O terceiro aspecto da lógica do direito hegeliana consiste portanto em decifrar a jurídicização da coisa como o siàábtifa da vida do espírito. O movimento dialético que provocaa tsaá»- ção jurídica da coisa é. bilaíeraicnente - para a coisa e par&a pessoa um movimento de expansão para fora de si que to sses

a finitude da coisa e abrea consciência paraa realidade essar- nando-a. Assim começa a tecer-se a rede de relações que, por um movimento de abertura e de vaivém entre contrários que ae- cessitam. um do outro, elevará o espirito até ele mesmo: s é a realização da liberdade no universal concreto. O desenfeo ás§ círculos da reflexividade está esboçado na mutação jurídica da coisa. Quando menos, a imagem da “bela totalidade” inspka'&inversão e o trabalho do negativo que nela ocorre. Nela, o g®s- sível já é real, e o existente, ideal. A mutação jurídica da coisa é portanto um sinal: o absoluto não é o além transcendente -&K contradições; é sua relação m a . E assim que o espírito nasce para si mesmo fazendo-se “segunda natureza”.

O episódio da coisa, mesmo quand-o o direito sé ztisge seu conceito ainda abstrato, é o símbolo da odisséia do espia- to: eie propõe uma figura ck» devir, mas é também o H»£»ásfei eterno da vida. Mostra que toda fenomenoiogia é namenolsgse: a coisa jurídica já não é uma coisa, uma natureza; é cittais «

dinamismo espiritual, pois nela fervilha uma potência <pe a snpera infinitamente e que, no seu tmmdo, os círculossaoesas- vos da reflexão transportarão para o universal concreto.

Se a “lógica”, no sentido como Hegd a entende, é “o pm- iogo ao Céu” do sistema, a metamorfose jurídica da coisa esp»- me de maneira exemplar, na prosa da -cotidianeidade. a foça do procedimento dialético que rege omundo.Assim,encos&m- se no estatuto jurídico da coisa tomado como tema filosófica» o projeío que o jovem Hegel formulava com estas palavras ©§- lebres: “Pensar a vida, eis a tareia.” Odestino jurídicoda ca sa - é conhecido o lugar eminente que o “direito real” ocupes-e provavelmente ocupará na maioria dos sistemas jtódicos —es- prime “o movimento da coisa mesma”, visto que Ser e ft e -

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268 OS FUNDAMENTOS DA ORDEM JURÍD

sarnento estão inexoravelmente ligados. Por isso, diz Hegel

sistema do direito é o reino da liberdade efetuada, o mundo espirito produzido a partir de si mesmo como uma seguo natureza”21.

Portanto, a virtude da dialética é fazer compreender a ina nidade de um debate que atravessou os séculos: o direito rea a coisa que o direito juridiciza e que será um dos objetos trato jurídico - não fala nem a favor do realismo nem a fav do idealismo: no direito privado, ao direito penal, na organizção profissional da sociedade civil, na administração..., ent cruzam-se o real - o “dado” òu o “determinado” do diresío positivo - e o racional - a medida, humana, do que é justo - q« nada seriam um sem o outro. Uma filosofia do direito que conserve o aspecto institucional da ordem jurídica positiva, be como uma filosofia do direito que apenas procure as intençõ do jurislador, são indigentes, pois falta-lhes a re lação que è essencialmente constitutiva do direito. O direito real, o estata do sujeito de direito, o direito de família, as estruturas econmicas, as estruturas do Estado e o direito internacional não sã nem ser nu nem dever-ser puro. Na ampla paleta jurídica, ele mostram, em suas figuras diversificadas, o trabalho da racionalidade no mundo ético. A oposição entre a teoria e a ontogia perde aqui qualquer significado. Que se disseque o direito propriedade no qual se objetiva o sujeito, a sociedade civsl qual a economia, pelo trabalho ou pelo comércio, imprime s marca, ou ainda a s,estruturas tóeratquizadas do Estado moderno que “realizam” a idéia da soberania, é a razão em ato que sempre será encontrada nasformaspositivas do direito. Taié, segundo Hegel, “o milagre dialético"22que, deixando muifo ps trás o jusnaturaiismo, antigo ou moderno, reconcilia-os e alia- com um gigantesco trabalho sintético que não só engloba tod

21. Hegel, Príncipes de la philosophie du droiL § 4.22. Ibid.. § 31- Tudo “o que concerne à ordem exterior, ã rcuniâo das

leis, ao seu encadeamento, (é) questão de eatesidmiento” (§ 212). Em suma, oEstado - ou, mais precisamente, o direito do Estado - é “a realidade eficaz daidéia moral” (§ 257), “a razão em si e para si (§ 258) ou o universal concreto”,cf. Prècis de l 'encydopédie des sciencesphiiosophiques. §§ 535 e 537.

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UM NORMA TIViSMO CRÍTICO 269

as aquisições da Wstória da filosofia jurídico-poiítica, nias situa-as do “ponte de vista” da consciência2’. Só é possível compreender o direito elevando-se até o “movimento do 'conoeít©” .

Da aprovação ao “nipturalism o”

Os ju ízos de E. Cassirer e de A. Kojève

E. Cassirer tem razão de assinalar q«e a força da ‘'sisèe- matizaçlo especulativa” na filosofia de Hegel ptm rém <k> faí© de ela se recusar a um pensamento lógico absírato. Ao estudar a Constituição, Ã fi lo sofia do espírito de 1805-1806 já apresentava ama visão dialética da vida sociaP. A partir dessa data, esse tipo de visão é constante na obra do filósofo. A unidade sintética que se dá reunindo o que estava separado teia. de raandra geral, o mérito de eliminar os dualismos nos quais permaneci® a filosofia do mundo quebrado, desde Platão. Conhecens-se a fascinação que o nsando pré-platônico2Sexerceu sobre H egele o radios-o amor de juventude que o ligou profundamente à “bela Cidade grega"516, ainda mais profundamente porque o mii&d© moderno à sua volta estava se despedaçaado e dilacerando. Mesmo quando Hegel “sublima” ou “idealiza” a cultura grega, encontra nela a “Idéia que junta tudo” e q®e faz do Estado e do direito um Todo indiviso. A imagem i®iitársa do jurídico teca portanto forte semelhança com a antiga harmonia helênica, a aujicpctívía de que falaO Banquete e que, segundo Platão, continha todas as virtudes. Segundo a bela expressão de Cassirer, ela é “o paraíso perdido político”27. Pois surgia a Revolução

23. isso evídentemente-dá lugar aos desenvoívimentos ciie a esxjucr&ahegeiiana lhe oporá, adotando um outro “ponto de vista”. O mesmo pode ■serdito das cridcas marxistas.

24. Cf. £. Cassirer, Les svstèmes post-kanth-iis. tradução Presses (J rii-versitaires de Lsile, ! 983, p. 225.

25. íbid., p . 229.26. Quanto a esse problema, remetemos ao nosso artigo ‘*Hegel et âa

Republique plaíonicienne’\ m Dialogue, 198l,n° 3.pp.430-57.27. E. Cassirer* DererkennmisProhiem, 1923, t. 3. p. 292..

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270 OS FUNDAMENTOS DA ORDEM JURÍB

Francesa. Para o estudante do seminário de Tübingen, eia dec

to foi“ummaravi lhosonascerde sol” eo “entusiasmodoespírito fez o mundo estremecer”2*. Pareceu-lhe que o ideal não um simples pensamento, que ele devia manifestar-se numa"'“a versalidade detentora de poder” que podia “encarnar-se e rea zar-se historicamente'’-"'. Mas, em vez da “reconciliação” ea a idéia e o real, ocorreu, talvez mais do que nunca, o roea mento: a coesão maravilhosa da antiga Polis d esvanecesse asa brutalidade da práxís revolucionária. A partir daí, todo oesforço de Hegelconsistiuemmostrarque a tarefa da filosofiaé, ao direito, como também na arte e na religião, trabalhar para a recociliação do particular com o universal. As formas jurídicas Estado devem, pois, realizar a comunhão, isto é, a unidade stética que faz com que cada elemento se integre ao todo. O radigma daSifíiickkeit é “a unidade ética absoluta”30, como s a ciência das idéias fosse a lei da ação, como se a vontade l subjetiva se objetivasse. O direito, segundo Hegei, organiz sociedade de acordo com a razão; sua função é conferir à id uma realidade substancial.

Sabe-se que Alexandre Kojève, numa obra por nós já mecionada31, seguiu e caminho traçado por Hegei para analisar direito que ele também acha passível de um tratamento dialéco. No universo jurídico como totalidade processual em <çs manifestam as contradições, encontra a incontestável ptesea da “idéia” por meio da qual o conceito enfrenta o-qwe não é com tanta força que o converte neíe. Ao termo áo péripfo iae- geiiano, todo o trato jurídico, com suas contradições iateas resumir-se-ia assim a esse grandioso “monismo da idéia'” « Engels e Marx, que também se diziam dialéticos, nunca csaram de combater para, nem mais nem menos, derrnbá-lo; d

nunciando a “mistificação” sofrida pela dialética na filosofia

28. Hegei. Lcçons sar ia philoso phie de / ’ histoi re, tradução Gi&c&a,Vrin, 3? ed., 1970, p. 349.

29. E. Cassirer, Lesprohièmespost-kantiens, p. 230.30. Hegei. Le droit naturéL trad. 8. Bourgeois, Vrin. 1972. pp. 65 z 7»í.31. Cf. supra, .primeira parte, p. 97.

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UM NORMA TIVISMO CRÍTICO m

Hegd, Mane pretenderá “organizar o sistema hegeliaíio que «estava de poata-cabeça”.

Não eoíraremosno estudo, tantas vezesfeito, desse asfi- idealismo que é o materialismo histórica. Do viofente asiag®- nismoq«e,no que tange à questão de direito, eig«e MarxCGEÉeaHegd, não foi uma filosofia dodüeitoqwesargiu3:. Foi,antes, depois da Primeira Guerra Mundial, ama fermentação cri&m que, como um ceníroaomeio da ebulição filosóficatpeo c q h b u

na Alemanha de então33, atacou o peasameato político e jisiíái- co 4e Hegfil. Estava pronto o caminfao para que os filé sofes á» Escola deFrankfurt fustigassem,depois da SegtmdaGaenaMundial, o idealismo alemão em gerai e a dialéticafeegetíasaem particular5.

As criticas da Escoía d e Frankfurt

Em 1947, a Diaiética da Anfldãnmg redigida por Tbeoder Adorno-e Max Horicheímer, lança o tema. tantas vezes refema- do desde catão, da autodestraição da razão, insistmdo nas esps- ranças frustradas que a arrogante razão do i.iKHímsmQ fizera brotar. Sem dúvida, a obra ataca mais Kant que Hegei e evosa maiso sombrio horizonte político das sociedades busigaesas -c industrializadas do que propõe uma filosofia de direito. Oc mws

32.CCsupra.-pp. 170 ss.3.3. Foi por voita dos anos 1920-1930 qsse na AlfesBsafea síügífâ 'SBfce-resse por Kierkegaará eNietzsche; alguns ap.es depois, Heidegger{Sm&Zeü data de 192S). Hussed{Formale unâ ima^endeniale Lcgik é editsássm1920), iaspers (suaPhitosophie é publicada em 1932) passaia a ©caparogai-m d r o^iauoftaceiia filosófica........................................

34. Cf. j.-M . Vrncent, La théorie critique de Vécoíe de Fmncforl, iP&iss,1976; Maiíãt Jay, -L 'imagmation diaíeciique. Histoire de Vvcoie de Fraftcforx^ I9.23-,í950.'-Payot 1*977. Cf. também Th.. Adorno e K. Fopper, De Ifiesmem Francfnn. La quereffe aífemande des sdetices socíates, tead fr.. Paris,C<?.sn-plexe, 197-9.

35. A obra foi traduzida para o francês com o título Diafectique de ía rm- son, Gafíimard, 1974. (Em português: Dialética do esdivrecimetâa. jo^Z shs r,Rio de Janeiro.)

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272 OS FUNDAMENTOS DA ORDEM JURÍD

que, insistindo na “instrumentalização” da razão, prevê a mu próxima submersão do direito peta tecnocracia e pela buroccia. Como a “indústria cultural” que Adorno viu desenvolver durante seu exílio, nos -Estados Unidos poderia deixar de pverter as ordens jurídicas estatais e até o direito internacion Onde estão, por conseguinte, as arrogantes certezas da dialca hegeiiana. de seu idealismo, de seu horizonte de Absolu Além disso, Th.Adorno,em sua Dialé tica negativa“, da mais um passo e acusa a idéia de totalidade que embasa o idealis

absoluto: vê nessa conjunção as raízes do totalitarismo”.A Teoria critica de M. Horkheimer38é ainda mais morda

A seu ver, o idealismo alemão é onerado de uma odiosa sis maticidade que significa não apenas o fechamento do pensamto «, portanto, a impossibilidade de um verdadeiro “pensame crítico", mas também a culminação de todas as “tentativas mtafísicas”. Para além do sistema que engloba o real e se fe sobre ele, nada mais há para pensai-. E assim que Hegel, fíg de proa desse tipo de pensamento, levou o “idealismo a além seus limites”39. Por isso HorMieimer ataca frontalmente o p

jeto de exprimir a unidade do pensamento e do ser-que, na lóg hegeiiana, tem o método dialético como princípio ativo. Ebora, en> certo sentido, pareça que se possa elogiar a dialéca porque, enquanto método que alia a idéia e a realidade, e insere toda verdade no movimento da temporalidade históric em outro senti-do, ela se expõe a uma crítica radical: com© h toriciza toda instituição ou toda idéia, da é contraditória n medida em que pretende tomar absoluta a negação da negaçã

36. Th. Adorno, La dialectique négative{ 1966), írad. fr., Payot, *978;Trois ètudes sur H egel, Pavoi, 1979.

37. Cf. também, sobre essetema, La dialectique de laraisott, p. 56.38. M. Horkheimer,Thêorie cr it iq ue (2 t., Frankfurt. 1968).írad. fr..

Payot, 1978. Sobre'M. Horicheimer, cr. R. Bubncr, “Qu‘est-ce q/.ic la íhcritique?", in Archives dep hUoso pkie . 1972, nf 35. pp. 381-421; L. Ferrye-ARenaut, v‘Max Horkheimer et {'idéaiisme áilemancT.. inSystème ei critique. aEs-

sa is sur la a itiq u e de la raison dw ts la phUoso pkie ca ntempor aine, Bruxelas.Ousia. 1984, pp. 103-30.

39. M. Horkheimer.Théorie critique, p. 213.

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UM NORMA TIVISMO CRÍTICO 2 13

O momento racional afirmativo acaba assim por esmagar oh s q -

mento negativo da dialética. Ademais, quando o real é racional e o racional, real, e o espírito é absoluto, já não há contradiçàe para superar: a dialética é inútil. Tal condenação é inapdável.

Esse veredicto tem certamente mais conseqüências pais ® filosofia política do.que para a filosofia do direito. Ocorre qae, ao estigmatizar o racionalismo no apogeu de seus triuníos, se

que se condena é a pretensa auto-suficiência das ordens <fe dkeS® em forma sistemática. Atento à dimensão política das socieáaáss. Horkheimer explicava em 1942, num artigo intituladoO Estssãgg

autoritário, que os grandes edifícios jurídicos, ao aliarem m racionalismo em que se inspiram um voluntarismo que feesa © dogmatismo, expõem-se a uma dupla recriminação: parum laá% sua formalização é uma aposta pois é impossível que eles ais comportem lacunas; por outro, há neles um erro de fundo. peis regras legislativas que se desinteressam das realidades e dos processos sociais são esquemas desencarnados aos quais feita a necessária eficiência de unia regra jurídica. O contexto cs$?&s- lista do Estado em que esses sistemas jurídicos se inscrevera® só podia favorecer as perspectivas gestionárias do diieão eag® - drando o universo burocrático de uma legislação e de ema regulamentação invasivas, inevitavelmente incômodas; assim, procedimentos punitivos ou manipuladores, até mesmo repressíwws, tornavam-se um recurso inevitável. Tais sistemas aaKpalarato homem cujas dignidade e liberdade declaram promover*.

40. É por isso que Hotfcíieiüier não hesita cm se declarar frascaiaefífeíiss-til ao progresso que. diz eie, ameaça “reduzira nadao objetivo queele se p iq p ka realizar, a própria idéia dohomem”. Junta-se assim aAdorno para fccasfer uma questão que extrapola amplamenteo problema do direitomas éreveiaássado clima intelectual deúma época': Essáqiiestãõ é a dõeslatútà dá íaião SS ss- ciedade humana que a Mstoricidadcimpiica inexoravelmente.Cora eMto,èwsa profunda fessão assimilar a âinâniica da razão a uma progressão, .pois os íàSssaiestão para mostrar - e os fatos têm sempre razão - que a evolução das patêncíasde racionalidadeaansiònna-se numa “barbárie mecanizada”, qie uadaroais éa «eum “encarceramento «teológico”. Segundo o último Horklieimer,sò é possfeèl opor-se a essa inversão funestapeta atrtocmica da razãoe, em sua .pota, essaatftocrítica ganha tonalidades políticas militantes: <ie qualquer forma, tsão é-a *35!direito de tipo constituciossalisia que ele desejaconfiar o governo dassociedadeS?

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274 OS FUNDAMENTOS DA ORDEM JURÍDI

Evidentemente, é difícil separar as teses de Horkheimer d contexto dos acontecimentos históricos no qual ele as elabor Eih suaevidente ressonância política, fustigam o fondo de epírito burguês que, segundo as teses marxistas a que ele aáe caracterizaria qualquer pensamento idealista ávido de universlidade e deessencialidadeenquanto, por toda parte, triunfam a diferença e a contingência. Horkheimer conclui que o ardi! cionattsiaque conduz, como«n Hegel, ao pensamento da totalidade e da identidade, só pode ser umamentirafilosófica. Daí a ligar a dialética ao espírito do capitalismo é só tim passo. Pas rapidamente dado por Horkheimerque,sub-repticiamente, mistura, sein atentar para as incoerências que isso acarreta, consderações de ordem política e epistemológica. Em meados século XX, nada mais se pode fazer, acredita ele como marxta certamente pouco ortodoxo, senão eliminai' a dialética; é vedade que não pretenderenegarsuas origens inte lectois ao operar essa rejeição em nome da ideologia perversa qjie se concentria na dialética.

Apesar dos subentendidos revolucionários do “ruptura-lis

mo” adotado pela Escola de Frankfurt, e contra eles, deve-s reconhecer que, no terreno metodológico, a dialética constite para a filosofia jurídica um procedimento heurístico sob.ce qaal a investigação dos fundamentos do direito não pode sile ciar. Hegel conhecia a dificuldade do empreendimento. Na Itrodução de seuCurso de filosofia do direito cie IS 19, dizia aos seas alunos: “A filosofia deve determinar o conceito do direi Isso é pedir-lhe muito. Mas nessa exigência há pelo menos idéia de que a investigação do direito é uma-questão de pensmento.”*' E uma “questão de pensamento” está sempre expost a críticas. Só que as críticas contra “a força do racional”41fora®

-1. Hegei, Inírodação aoCoitrs dephitosophie du droit de i 8! 9, na Universidade de Berinü, apresentação e tradução de G. Susong, Domfront, l‘ p. 5 (o texío aiemão foi publicado -na Alemanha Federai por D ieíer Heiem 1983).

4,2. D. Janicaud, Lupuissance du rationnel, GaiKmard. 1985.

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UM NORMA TiVlSMO CR/T/CO 175

mais longe do que de temia, pais vkam em sua filosofia ãm direito as teses de m i prussiano reacionário para quem, ao ímsfi da dialética, o Estado do Espírito é o Estado totalitário. EricWsli refutou esses ataques que demonstram uma incompreensão >Sa filosofia de Hegei45. Não é o caso de voltar a isso.

No entanto, não se pode calar o mal-estar intelectual qsae fs- ristas e filósofos experimentaram diante da filosofia do direito de Hegei. Mesmo qae, en te os jarssías coníemporaBOos de Begel, BduardGans tenka sido um discípulo devotado, aiuitos ostros não recosheeeram disciplina deles nosistema filosofeselaborado por seus Princípios da filosofia do direito. Q w & í aos filósofos, como vimos, foram mais sensíveis àvsrísstepolítica do idealismo jurídico do que a uma analítica p sp r â - merste jurídica. Os juristas acusaram H-egel de ter uma c a itea

jurídica muito limitada e os filósofos «em sempre eníeiídeíaa qual o interesse de um olhar que se empenhasse eni.peisaizíar uma ordem de direito positivo. Na verdade, a atitude iaM ectr f

do jurista preocupado com as espécies singulares que e!e áevc instruir e julgar buscando nas regras do direito positivo m- gor as diretrizes mais adequadas possíveis está rauito dísíasfe da determinação do conceito à qual se dedicou a metodoiogís hegeliasia. Embora o filósofo escreva: “Apreendere compe®-der o que existe, essa é a tarefa áa fi loso fia ”'*, o jurista tã o estende bem o que H-egel considera a “realidade” éo direito peái- tivo.Num artigomuito sugestivo,JL-L.Gardies destacou a**-gueza equívoca que, na pesia de fíegel, envolve asnoçõss A:contrato ou de direito pessoal e de direito real35; poderia®»® multiplicar os exemplos e citar tanto sua definição do cràsse'*

43. E. Weil, Hegei cvCÉmt , Viin, 1966:ver priscipalmeisteaprãs«®aconferência.

44 . Hegei, Logique. HI seção;cf. Príncipes de fu pküowphie du trad. fr. Derathe, n. 15, p„ 56.

45 . J.-L. Gardies, “De quc lques tnele ntend us entre Hegei et íes jí2n s^ 5;‘l.

in Hegei e t la philoso phie du dro it (sob a direção de G . P lanty-Bonjour),1979, pp. 144 e 149.46. H egei, Principcs âe ia philoso phie du d roit . §§ 99 e 100,

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276 OS FUNDA MENTOS DA ORDEM JURÍD

como suaconcepção da jnarisdiçâo47. Seja como for. o descréd da dialética € as vertigens do idealismo inclinaram a fit eo fia direito para uma investigação mais.concretae paraama exploração miais direta éa esfera jwHica. A feraomenoksgiairassef aa, sensívelàs ostKkogj&s “regionais”, pôdefenseceramcontexto e princípios operatórios para essa investigação. Devem examinar- se eia coassgaiu dar ao problema 4anatureza eda fundação do-direitomaaresposta satisfatória.

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C ap ítulo 11

A investigação fenomenológica do direito

O enorme corpus husseriiano não aborda o estudo do direito, pelo menos de maneira temática. A partir de um sentimento de crise, a íènomenologia nasceu da necessidade de recomeço da filosofia em seu conjunto. Husseri e seus epígonos tentaram uma “conversão do olhar’’ que permitisse traçar, entre o discurso especulativo dos idealismos e o procedimento científico dos positivismos, uma terceira via que retomasse às “próprias coi

sas”. Com efeito, o absolutismo do sujeito que culmina nos idea- lismos modernos, bem como o objetivismo em qne se louva um mundo devorado peias ambições da ciência e da técnica, abrem o campo apenas a polêmicas estéreis. Portanto, Husseri pretende pôr um fim, como já desejara Hegel, nos dualismos que redundam num impasse. Já é tempo de compreender qí&e os idealismos continuarão sendo sonhos vãos se as idéias não receberem das coisas “preenchimento” e consistência, e que as certezas objetivisías têm de ser o correlato da intencionalidade da consciência. Os âmbitos construídos pelafilosofia ao tong® de sua história são desprovidos de pertinência, têm de ser destruídos. A fenomenoiogia será. portanto, ummétodo deinvestigaçãoantiidealista e antipositivista; será anti-sistemática.AoJas-çar sobre a própria coisa um olhar perscrutador e profundo, o fenomenólogo, num trabalho de investigação cuja radicalidade exige operar por patamares sucessivos, irá até as raízes da coisa.

Com uma extraordinária paciência, a fenomenologia refaz

análises que parecem já ter sido empreendidas inúmeras vezes. É que, para Husseri. a aaálise-teni por finalidade possibilitar o desvelamento do sentido de um fenômeno. Ora, um fenômeno

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276 OS FUNDAM ENTOS DA ORDEM JURÍDICA

como sua concepção da jurisdição47. Seja como for, o descréditoda dialética e as vertigens do idealismo inclinaram a filosofia do

direito para uma investigação mais concreta e para uma exploração màis direta da esfera jurídica. A fenomenologia husserlia-na, sensível às ontologias “regionais”,' pôde fornecer um contexto e princípios operatórios para essa investigação. Devemosexamiiiár se ela conseguiu dar ao problema da natureza e dafundação do direito uma resposta satisfatória.

47. HntL, § 229.

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Capítulo II A investigação fenomenológica do direito

O enormecorpus husserliano não aborda o estudo do direito, pelo menos de maneira temática. A partir de um sentimentode crise, a fenomenologia nasceu da necessidade de recomeço dafilosofia em seu conjunto. Husserl e seus epígonos tentaramuma “conversão do olhar” que permitisse traçar, entro o discurso especulativo dos idealismos e o procedimento científico dos positivismos, uma terceira via que retornasse às “próprias coisas”. Com efeito, o absolutismo do sujeito que culmina nos idealismos modernos, bem como o objetivismo em que se louvaum mundo devorado pelas ambições da ciência e da técnica,abrem o campo apenas a polêmicas estéreis. Portanto, Husserl pretende pôr um fim, como já desejara Hegel, nos dualismosque redundam num impasse. Já é tempo de compreender queos idealismos continuarão sendo sonhos vãos se as idéias nãoreceberem das coisas “preenchimento” e consistência, e que ascertezas objetivistas têm de ser o correlato da intencionalidadeda consciência. Os âmbitos construídos pela filosofia ao longode sua história são desprovidos de pertinência, têm de ser destruídos. A fenomenologia será, portanto, um método de investigação antiidealista e antipositivista; será anti-sistemática. Ao lançar sobre a própria coisa um olhar perserutador e profundo, o

fenomenólogo, num trabalho de investigação cuja radicalidadeexige operar por patamares sucessivos, irá até asraízes da coisa.Com uma extraordinária paciência, a fenomenologia refaz

análises que parecem já ter sido empreendidas inúmeras vezes.É que, para Husserl, a análise tem por finalidade possibilitar o

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278 OS FUNDAMENTOS DA ORD EM JURÍDICA

só revela seu sentido através das dimensões plurais e dos níveis

diferenciados: seu teor e seu conteúdo (Gehalt e Inlialt), seufundamento (Grund ou Ursprung) e seu fim (telos). Portanto,é necessário multiplicar os momentos de sua auscultação, isto é,operar as “reduções” sucessivas que, de patamar em patamar,conduzirão da fenomenalidade à significação da coisa estudada.

A experiência jurídica poderia ter fornecido a Husserl umcampo de exploração privilegiado. É surpreendente que, riascerca de quarenta mil páginas de sua obra, ele só tenha se aventurado de maneira oblíqua no mundo do direito1. No entanto, afenorriefiologia fez escola póis, além de seu filho GerhardHusserl (que era jurista), seu discípulo Adolphe Reinach seguiuexpressamente o procedimento husserliano para elaborar umaeidética jurídica2.

Adolphe Reinach, discípulo de Husserl

A. Reinach, pouco conhecido na França, dedicou uma breveobra - morreu aos trinta e quatro anos na Primeira Guerra Mun

1. Na quinta das Meditações cartesionas, na Crise das ciências euro péias e nas Ideen II e III há apenas menções o casionais ao problem a do sentido do fenôm eno jurídico.

2. Tam bém devem ser citados, princi/.almente na Alem anha, entre 1920e 1930: Fritz Schreier,Grundbegriffe una Grundformen des Rechls, 1924;Reine Rechtslehre und P rivatrecht, Gesellschift, Staat und Recht, Untersu chu n-gen zurein en Rechtslehre, in Kelsenfechlsch-ifi, 1931; Felix Kaufmann, Logik und Rechtswissenschaft, 1922; Kriterien des Rechls, 1924; Julius Kraft,Die wissenschaftliche Bedeutung der phá.iomenologischen Rechtsphiloso- phie , in Kant Studien, t. XXXI, 1926; Kai; Reisdorf, Die Grundlegung der Rechtswissenschaft, 1930; Gerhard Husser . Rechtskraft und Rechtsgeltung, 1925; Reçht und Welt, 1929; Rechtsgegens ind , 1933; Recht und Zeit, 1955.Com importantes nuanças, a egologia de C.aios Cossio(La teoria egologica dei derecho, Buenos Aires, 1944; “La nonv : et 1’Im péra tif ch ez H usserl” , in Mclanges Rouhicr, Dnlloz. 1961) - a Plwium-.éiwlogie desscienccx de rhom nw de Stephan Strasscr, L ouvain, 1967 - a “po tica da terceira via” definida porMauricc Merleau-Ponty em Lcs aventures <;.• Ia dialecliquc, 1955, devem umgrande tributo ás investigações Im.sscrliana Ma s apen as a obra de Reinach

d d d ló f d l d f l

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UM NORMATIVISMO CRÍTICO 27 9

dial - à investigação dos fundamentos apriorísticos do direito civil. Sua única e curta obra, que data de 1913, intitulava-se Die apriorichen Grundlagen des bürgerlichen Rechts. Foi reeditada em 1953 com o título evocativo de Zur Phánomenologie des Rechts. Desenvolve as linhas diretrizes expostas em 1914 emMorlíngen numa conferêriòia que, precisamente, tinha por temaWas ist Phánomenologie?3

A obra de Reinach foi pouco lida por juristas e filósofos. Na conjuntura histórico-política do nacional-socialismo, essafilosofia, inspirada num pensador judeu, só podia suscitar des prezo nos meios oficiais e temor numaintelligentzia atcfrmen-tada pelo medo. Depois do cataclismo hitleriano, ela foi suplan

tada, no âmbito da própria fenomenologia, pelo pensamento deMax Scheler devido ao apego deste aos valores e à moral cristãos, então percebidos como um socorro num mundo paralisado pela desgraça. A preocupação axiológica correspondia às necessidades éticas da Alemanha de então, ao passo que o empreendimento austero de uma lógica fenomenológica do direito pareciareservado a alguns iniciados na solidão de seus gabinetes. Emtodo caso, devemos agradecer, na França, a Jean-Louis Gardies por ter explorado as profundezas e as dificuldades dessa obra4.

“O que honra o pensamento de Reinach é o fato de não poder ser resumido”, nota J.-L. Gardies5. No entanto, é possíveldescobrir suas linhas mestras, A filosofia do direito, comentavaReinach, muitas vezes obstinou-se em reduzir o direito a algodiferente dele. Isso basta para explicar o caráter interminável desua busca. Na verdade, o direito só pode ser compreendido pelo

3. A. Reinach, “Die apriorischen Grundlagen des bürgerlichen Rechts”,in Ja hrbu ch fü r Philoso phie un d phàno men olog isch e Fo rsch un g, Halle,1913; reed. Zur Phánomenologie des Rech ts, Munique, 1953.

4. J.-L. Gardies, “Le droit,Ya priorí, 1’imaginaire et 1’expérience”, in Arch ives de philoso phie du dro it , 1962, pp. 171 ss.; “La philosophie du droitde Adolphe Reinach”, in Arc hiv es de p hiloso phie du droi t, 1965, t. X, pp. 17ss.; Essai su r les fondem ents a priori de la ra tional ilé mora le et ju rid iq ue, LGD.I, 1972.

5. J.-L. Gardies, “La philosophie du droit de Adolphe Reinach”, art.citado , p. 20. ______

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UM NOR MA T1V1SM0 CRÍTICO 281

mo do contrato, na medida em que é uma “instituição objetiva”

bem|mais que um produto do individualismo, é o resultado deuma; longa evolução em cujo decòrrer o vínculo social que a promessa cria desempenhou impoVtante papel. - De um pontode vista completamente diferenté;!Kant, por sua vez, insistirana diferença entre a promessa em sua acepção jurídica e a promessa em seu sentido moral. Para a ética, a promessa é umdever cuja lei é puramente interior e no qual “a simples Idéia dodever deve ser um móbil suficiente”. No terreno jurídico, manter a promessa não é um dever de virtude, mas um dever queuma lei exterior pode obrigar a cumprir. É um dever extèrior,escreve Kant, “manter a promessa feita num contrato; mas a prescrição de assim agir somente porque é um dever, sem levarem conta outro móbil, pertence à legislação exterior”8. ,

Reinach estuda a promessa pondo em prática os p‘rõce-dimentos específicos dos três momentos da análise fenomenológica.

■Num primeiro tempo, que pode ser chamado da “redução

fenomenológica”, evita situar a promessa em relação a qualquer outro ato com o qual ela compõe díptico ou contraste: emconformidade com a palavra de ordem da fenomenologia hus-serliana, considera-a em si mesma, eliminando as confusõesou assimilações correntemente admitidas. Essa exclusão permite-lhe dizer o que a promessa não é. Assim como uma pergunta não é uma declaração de dúvida, a promessa não é umadeclaração de intenção bu de vontade9. Reinach repete como umleitmotiv que ela não depende, como costuma afirmar a doutrina, da autonomia da vontade. Além disso, assim como não

pode ser considerada uma experiência exterior, ela não é sim plesmente uma experiência interior: esta compreensão psicolo-gista desconsidera a realidade jurídica do ato de prometer. Tam pouco se pode sustentar que a promessa, pelo fato de acarretarobrigação, provém apenas da determinação da regra de direito:

8. Kant, Métuphysic/ua das moeu rs, introdução geral, in trad. fr. da Doctr ine du droityVrin, p. 94.

1). J.-l... ( íardies, arl. citíido, p. 20.

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2 8 2 OS lUND AM ENTO S DA ORDEM JURÍDICA

esse juridismo positivista é superficial e simplificador. Por

tanto;1longe do psicologismo e do juridismo, o primeiro passodo procedimento fenomenológico consiste em situar a promessa, sem defini-la ainda, nessa espécie de experiência socialsui generis que é o trato jurídico. E aí que ela manifesta sua especificidade eidética de ato de direito, pois é irredutível a essasoutras experiências que são a moral, a religião, a arte, a economia etc. Isso não significa, contudo, que ela encontra diretamente sua verdade essencial no direito positivo; este último, naverdade, quer o consideremos expressão de uma vontade autônoma, quer admitamos que depende de. situações sociais ou decontingências econômicas ou’políticas, é um direito formuladolivremente “por determinação” e, como tal, remete, segundoReinach, a algo diferente dele. É claro que, ao indicar o qiie a promessanão l \ essa “redução fenomenológica” constitui apenas o passo propedêutico da análise: essa primeira abordagemdefine 0 ato de prometer, cm seu campo próprio, como um tipode contrato irredutível a comportamentos vizinhos como a or

dem, o rogo ou a exortação. Doravante é preciso penetrar nelaa fim de lhe apreender o próprio ser. Num segundo tempo do procedimento fenomenológico, a

promessa é definida como o ato que, gerando um crédito; afavor daquele a quem ela é feita, impõe obrigação ao promi-tente; ele tem de “cumprir sua promessa”. Deve, portanto, serconsiderada um ato jurídico interpessoal, isto é, em seu vínculo com a aceitação da oferta do policitante10- embora não sejanecessário, para a promessa produzir efeitos jurídicos, que aaceitação seja explícita; em contrapartida, se a promessa érejeitada, portanto é recusada a aceitação, não nascem nenhuma obrigação e' nenhum crédito: não há efeitos jurídicos. A promessa de um sujeito de direito necessita da aceitação de umoutro sujeito de direito: de sorte que a aceitação de uma pro-

10. "A prom essa ", diz J.-L. Ciiirdics, art. cilado p. 21. “só gera direito c

obrigação quan do c reconhecida e comp reendida por aquele a quem se endereça .” Isso com certeza é necessário; ma s não é suficiente: ela precisa da aceitação daquele a quem é feita.

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dico, diz ele, é um juízo que, fazendo intervir as noções de crede devedor,constrói a noção nova de cessão de crédito própria docessionário (exatamente como um juízo matemático proced por construção de conceitos): o ato portanto não é analítico msintético. Porém o mais importante é que esse juízo sintéticlonge de depender da mera experiência vivida, recorre necessriamente a estruturasa priori que lhe fornecem de certo modosuas raízes. Com efeito, Reinach, como Kant, considera qu“construir um conceito é representara priori a intuição que lhecorresponde”15. Ampliando seu olhar para estendê-lo da cessde crédito como exemplo típico a qualquer noção jurídicReinach mostra que a essência fundamental do direito residnessa estrutura apriorística.

O direito e os juízos sintéticos a priori !

As estruturasa priori que, como acabamos de ver, tornam

possível o juízo sintéticoa priori revelado pelo estudo da cessão de crédito que pode se seguir à promessa, não são, segunReinach, nem um resíduo psicológico nem um modelo ou uarquétipo transcendente que o direito positivo teria de traduzem seus enunciados. Não pode ser confundido com o “direinatural” pois nada tem de umaordinatio natural de tipo cos-mológico, e tampouco está universalmente inserido na naturza humana. Ê umaestrutura do pensamento e, por seressencialmente necessário, tampouco pode ser confundido com o direito positivo que, por sua vez, não existe serri contingência nem sea arbitrariedade de qualquer decisionismo. O direitoa priori pode ser dito, utilizando uma expressão de Merleau-Ponty, “mavelho que a inteligência”, “mais velho” por conseguinte que tdas as construções intelectuais que ele torna possíveis: é, potanto, anterior ao direito positivo e mais profundo que ele. O dirto positivó pode então ser ditosecundum legem, designando a palavralex nessa expressão o direitoaípriori enquanto lei do

284 OS FUN DAMEN TOS DA ORDEM JURÍDICA‘V:

13. Kant,Critique de la raisort pu re, trad. TP, p. 493.

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286 OS FUNDAM ENTOS DA O RDEM JURÍDICA

dadeiras ou falsas. Quanto ao direito positivo, ele evidentemente não é verdadeiro nem falso; é dassicamente considerado porReinach como prescritivo, indicando, em dado sistema, o quedeve ser. Portanto, o problema seria o das relações entreser edever-ser. Mas, podemos nos perguntar com J.-L. Gardies (que,nesse ponto, confessa ter evoluído)15 se Reinach, para distinguir direito a p r io r i o direito positivo, não utiliza de modo abusivo o dualismo doSein e doS o l l e n pois, enfim, as proposições jurídicas, derivadas quer da intuição das essências quer dadecisão do legislador, são ao mesmo tempo proposiçõese determinações”. E a própria natureza do direito que não é apresentada aqui de modo claro. - A obscuridade se torna ainda maisespessa quando se quer apreender em que consiste a evidênciaa priori que constitui, de uma maneira essencial apreendida porintuiçãó, a potencialidade jurídica das noções do direito. Comoo direito ditoa priori, definido por Reinach como “necessidade essencial”, que pertence à ordem do ser e se enuncia em pro posições enunciativas verdadeiras ou falsas, pode sera priori? Não haverá aí uma contradição: esse pretenso direitoa priori não é antes estranhamentea posteriorP. Reinach não estaráfazendo, como sugere J.-L. Gárdies, um uso insólito da idéia,denecessidade? Ou entào N. Poulantzas não tem razão de temerque na posição de Reinach haja uma petição de princípio: nãose pode sabcv, diz ele, “se as características eidéticas apriorísticasdo direito não provêm de uma dedução puramente conceituai a partir de ccrta definição arbitrária, por parte dos autores, de umconceito jurídico no sentido de’que, se essas características ‘necessárias' deixassem de existir, não se trataria do mesmo conceito assim definido, uma vez que só se encontra nos conceitoso que neles já foi posto” 11*. - A partir daí, acumulam-se dificíil-

15. J.-L. Gardies, art. citado, p. 29, n. 2.16. A. Reinach, op. cil., pp. 179-80.17. J.-L. Gardies, art. citado, p. 30.18. N. Poulantzas. “Notes sur Ia phénoinenologic et 1'existcntialisme”,

in Archives dephilosophie du dro it, n“ 8, 1963, p. 219. Um comentário criticode A. Brimo vai no mesmo sentido: “Qualquer eidética repousa na afirmação das essências do direito consideradas como o prio ri anteriores à experiência jurídic a. Ora, com o o jurista def ine na prática e sses a priori e.os con--

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UM NORMA TIVISMO CRÍTICO 287

dades perturbadoras. Na perspectiva original de Reinach, o direio a priori nàõ é uni modelo que o direito positivo procurariaimitar ou ao qual se conformaria: aliás, diz Reinach, ás determinações prescritivas do direito positivo podem muito bemnão se conformar ao direitoa priori''1. Nem arquétipo, nem cânone, nem exigência... qual seria então o papel desse direitoa priori num sistema jurídico? A análise, como vimos, teria a ganhar se fosse aprofundada e se essas zonas de sombra fossemiluminadas...

Em definitivo, Reinach depara com as dificuldades últi

mas da fenomenologia. É incontestável que a fenomenologiatem por objetivo acabar com o sempiterno conflito entre realismo e idealismo. Ora, se, ao projetar para o direito positivo asexigênciasa priori da consciência, ela consegue dar sentido aofenômeno jurídico, nada garante que ela assume sua vontadede superação quando desvela o fundamento radical do direitocomo direitoa priori. Embora a descoberta dos juízos sintéticos a priori no direito seja com efeito nova e sem dúvida fecunda, Reinach não soube resistir à tendência husserliana de“realizar” o direitoa priori cujo ser ideal é, em última análise,objeto para a consciência. Em outras palavras, oa priori necessário do direito tem a realidade de um ser ideal pertencenteà consciência. É certo que o olhar do filósofo se inverteu e queo filósofo já não encontra as raízes do direito na experiênciaintramundana mas no fundo dele mesmo. Só que o direitoa priori que Reinach desvela participa do caráter enigmático doego transcendental que, sem dúvida, tem vocação e função de

explicar a diretividade das normas jurídicas, mas cujoestatuto

cube como necessários? Na verdade, partindo de um ccrto conceito jurídico,por exem plo o da pro priedade, com o faz Rein ach, e ded uzindo, pelo ra cio cínio clássico, do conteúdo desse conce ito certas características consideradas aprio -risticas. Na verdade, trata-se dc um raciocínio tautológico”(De funité des doctr in es phén oménologiques, ex is te ntiali st es et ax iologiqu es da ns la th éo rie gónóra le du droit, To ulou se, 1964, p. 21).

19. J.-L. Gard ies, “ La philosophie du droit d’Adolphe Reinach” , art.

citado, p. 26: “Se o direito positivo po de m uito bem fazer o ser essencial dodireito a prio ri passar para o terreno do dev er -ser, também é p er fe itam en te Ji vxe^.para recusa r e ssa passagem .”

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288 OS FUNDAMEN TOS DA ORDEM JURÍDICA

o fenomenólogo não esclarece. Portanto, se o tema da subjet

vidade transcendental funciona na fenomenologia do direitcomo um modo doador desentido, será que ele não constitui amelhor expressão de umidealismo sublimado? Dessa perspectiva, as estruturas significantes da ordem jurídica - precisamete as características de obrigatoriedade e de diretividade queconstituem - são apenas efeitos ou reflexos dosa priori que oespírito usa para construí-la e constituí-la de maneira signifcativa. A ordem jurídica, a partir daí, corresponde ao “surgmento do sujeito”: a fenomenologia do direito não só fecha direito nele mesmo como reencontra numa ordem jurídica a

premissas que o sujeito, mesmo que fosse “puro”, postulou n princípio de sua construção.

Essecírculo é o pecado típico dodogmatismo. Os véus nãoforam levantados, como Gaston Berger achava que a fenomnologia poderia fazer. Mesmo quando o fenomenólogo alcanço “sujeito transcendental” ao termo de seus empreendimentoredutores, não apreende asrazões de sér da juridicidade de uma

ordem jurídica. Concretamente, isso quer dizer que embora fenomenologia brilhe nadescrição dòs instrumentos conceituais defuma ordem jurídica, ela não permite compreender por que um contrato vincula, por que uma lei é obrigatória, por que uma seriténça judiciária é executória. Apesar de seu projeto dradicalização do direito - reencontrar suas raízes e sua fonte fudadora - , acaba perdendo-se num impasse.

O método fenomenológico e o direito: a obra de P. Ámselek

Os pontos fortes da análise fenomenológica

Paul Amselek, que também tomou a via da fenomenologi para estudar o direito20, não esconde seu desacordo cóm “os pr

20. P. Amselek, Méthode phénoménologique et thèorie du droit, LGDJ,1964.

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UM NORMA TI VISMO CR ÍTICO 289

tensos procedimentos fenomenológicos” de Reinach: “É absur

do’Vescreve ele, “tratar o direito como um conjunto de conceitos,de modelos conceituais suscetíveis de reativação pelo métodohusseriiano da redução eidética. Isso é cair num sincretismosem saída...”21No seu próprio itinerário filosófico, R Amseieknão esconde, aliás, sua evolução em relação à fenomenologiado direito. Em sua obra Método fenomenológica e teoria do ’direito, mostrava com pertinência que é preciso saber distinguir os aspectos epistemológicos do método fenomenológico e

os temas doutrinais, apresentados por certos autores como “asconseqüências ontológicas, metafísicas ou antropológicas” do7 procedimento fenomenológico22. A pesquisa que ele estava realizando com uma aplicação das diretrizes do método husserlia-no autorizava-o a concluir com otimismo: “Parece que a utilização do método fenomenológico, a atitude fenomenológica, écapaz de fornecer esclarecimentos salutares à teoria do direito,de ‘sanear’ de certa maneira o terreno jurídico ainda obscure-cidò^por um excesso de verbalismos, por um excesso de mitosou de seqüelas de mitos.”23

Oito anos mais tarde24, ao fazer o balanço das pesquisas terminadas em 1964, o autor evoca primeiro seus pontos fortes,ou seja, “as normas são instrumentos para julgar, pelo fato déque elas representam pontos de referência, modelos; o direito éum conjunto de instrumentos objetivos de julgamento, no caso, um conjunto de proposições sintáticas, cuja função normativa específica é constituir modelos obrigatórios; esses instrumen

tos jurídicos podem ser objeto de uma abordagem científica oujde uma abordagem técnica”25. Em seguida, reexaminando essestemas, aprofunda-os e confere-lhes uma inflexão significativa.

21. P. Amseiek, Arch ives de philosophie du dro it , 1972, p. 222.22. M élh ode..., pp . 9 e 30 ; cf. Herm ann Pos, Pro hlèm es actu els de la

phénom énolo gie , Bru xelas, 1951, p. 33. ■23. Ib id ., p. 449. '*■24. P. Amseiek, “La phénoménologie et le droit”, in Arc hives de p h ilo

so phie du dro it , n 10, 1972, pp. 185-259; a versão inglesa desse texto encontra-se em Pheiiomeiio lo^v a nd Social Scien ces, Northwes le rn Universi ty Press.

25. M éth ode phénom énolo giq ue et ph ilosophie du dro it , p. 450.

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290 OS FUND AME NTOS DA ORDE M JURÍDICA

Descobre na estrutura típica (oue i d o s ) do objeto-direito trêsséries de elementos “ irredutíveis”-’'’:e l e m e n t o s e i d é t i c o s g e

n éric os'. o direito se apresenta como um conjunto de normas;e l eme n tos e idé t i co s e sp ec í f i co s : as normas de que o direito éconstituído são normas óticas com vocação de mando;e l e m e n to s e id é tic o s p a r ticu la res ', esses mandos emanam dos poderes;públicos27. Pretendendo “modular ou superar” sua abordagemanterior, P. Amselek, sublinhando que as normas jurídicas são“modelos de conduta que devem obrigatoriamente ser realizados e que emanam de autoridades públicas”, deixa entrever a im

portância da linguagem na “província-direito”. Isso se manifesta, diz ele, a partir do desvelamento da “vocação instrumentalde medida” que as normas (ou regras) jurídicas têm: seu “conteúdo de pensamento” necessita, para ter alguma chance de efetividade, “da mediatez da comunicação nas relações inter-sub-

jetivas”28. Portanto, é necessário recorrer a s ig n o s , carregados de se n tid o, para compreender as normas: de sorte que, cada vez quese percebem signos portadores de regra, é preciso decifrá-los,interpretá-los, de modo que se tenha presente no espírito - quese possa utilizar, se for o caso - a medida normativa que elesapenas veiculam-"’. Fica claro assim que as medidas normativas não se resumem à forma sintática de um, discurso interior;a verdadeira estrutura da norma é constituída pela m en sa g em transmitida pelo discurso normativo, graças, aliás, a formulaçõesverbais variadas, até mesmo elípticas'". Também é importante

rnotar o quanto a terminologia, jurídica é sugestiva: as normas jurídicas são m a n d a m en to s, o rd e n s . in ju n çõ e s \ fala-se corren

26. Cf. “La phéno mén ologíe et le droit”, art. citado, p. 199, onde se encontra especificado o significado dessa “irredutibilidade": trata-se de elementos irredutíveis “no sentido de que, caso se aplique o m étodo da v ariação imaginária e se suprima um deles na nossa consciência do dircilo, este desaparece im ediatam ente de nosso campo de visão; então já não é o próp rio direito quese dá a nós, mas alguma outra coisa".

27. Ibid., p. 258.28. Ibid., pp. 217 e 218.29. Ibid., p. 218. :30. Ibid.. p. 225.

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UM NORMA TIVISMO CR/TÍCO 291

temente de preceitos é de prescrições. Esses termos indicamque, em sua finalidade instrumental, a norma deve poder ser co

municada a outrem “e sobretudo lhe ser formulada verbalmente,,de antemão(prae-scriptio)'^'. Essa condição é indispensávelpara que as normas possam servir para o governo dos homens,para traçar para eles um itinerário que se deve seguir ou balizar-lhes o caminho32. Cabe à linguagem indicar o caráter de obrigatoriedade, portanto de obediência devida às normas jurídicas,que faz parte da estrutura típica de mando de que participa a coisa-direito: o sentido de injunção, ou, às vezes, de recomendaçãoque a regra veicula necessita do verbo para ser entendido poraqueles a quem se dirige.

As hesitações sobre a teoria dos Speech Acts

No entanto, um artigo de 198633, ao precisar essas diretrizes de investigação, se posiciona claramente a respeito da teoria dos “atos de linguagem” (Speech Acts) que parece tentar a

filosofia do direito. Com efeito, trata-se de saber se o métodode J.-L. Austin e sua distinção entre enunciados performativose enunciados constativos34, assim como as descobertas lingüísticas de J.-R. Searle35, podem lançar sobre o direito, mediante aanálise das regras e das proposições jurídicas36, uma nova luz.

31. Ibid., p. 233.32. Ibid., p. 236.

33. P. Amselek, “Philosophie du droit et théorie des actes de langage”,in Théorie des actes de langage èthique et droit, PUF, 1986.

34. J.-L. Austin, “Performative Utterances" (1956) in Philosophical Pa- pers, Oxford, 1961; How to do Things wilh Words, Oxford, 1962, traduzido como título - evocador mas pouco exato -Quand dire, c 'est faire, Seuil, 1970; cf. F,Recanati, “La pensée de Austin et son originalité par rapport à Ia philosophieanalitique antérieure” , inThéorie des actes de langage, op. cit., pp. 19-35.

35. J.-R. Searle, Les actes de langage. Essai de ph ilosophie dulangage , trad. fr., Hermann, 1972; Iriténtionality, Cambridge, 1983, trad. fr., Ed. deMinuit, 1985; Foundations o f Illocutionary Logic, Cam bridge, 1985.

36. Convém, como o faz Francis Jacques na obra coletiva mencionada(Théorie des actes de laneaee). recordar como foi a reflexão ética antes de

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292 OS FUNDAMEN TOS DA ORDEM JURÍDICA

Como já fizera anteriormente, P. Amseiek condena a

são de ótica” dos métodos reducionistas utilizados com dsiada freqüência pela filosofia do direito. Pergunta-se, portse a teoria dos atos de linguagem pode vir reforçar a idéia d

portância da linguagem que ele propunha em seu artigo de Há com efeito, observa ele, uma “necessidade incontornde reinserir os enunciados das regras jurídicas no contextoatos de edição das autoridades jurídicas””. Por isso, já quenomenologia da linguagem esboçada por Austin conduz a f

menologias extralingüísticas, é razoável que ela possa cons“uma propedêutica geral que forneça ao filósofo do direitométodo de abordagem adequado dosfidizeres juríqlícos didos quais ele se encontra, orientações, quadros gerais ápropride análise e de investigação”38. . j

Nd segundo plano dessa nova orientação que a investção filosófico-jurídica pode adotar, delineia-se a fenomenodos “jogos de linguagem” que Wittgenstein empregou39operar a “desconstrução da razão”40e que, opondo-se ao nnalismo41, vem obtendo incontestável sucesso no mundo sófico contemporâneo. A linguagem não serve, diz Wittgensrpara a representação do mundo; pertence à ação, cuja mulcidade de formas ela traduz: é enquanto tal que ela é o lugasentido. Nessa referência ao campo da ação, a teoria dos “de linguagem” contém duas distinções, respectivamente belecidas por Austin e Searle, por um lado, entreenunciados

Austin, em autores como G. E. M oore, A. J. A yer ou R. M . Hare e situá-larelação à “ontologia especulativa de tipo m etafísico” que, na mesm a épo

por volta dos anos 1950 era ela bora da por um fi ló sofo com o Louis Lav(pp. 55-87).

37. P. Amseiek, art. citado, p. 120.38. Ibid., p. 129.39. Trata-se aqui do Wittgenstein do segundo período, o autor não

Tractatus logico-philosophicus (edição alemã, 1921, edição inglesa, 1922e 1933) m as das Investigações filosó ficas, redigidas e ntre 1933 e 1945 (1 f ed.1953). Os dois textos estão reunidos na tradução francesa publicada Gallimard, 1961.

40. W ittgenstein, Investigationsphilosophiques, § 23.41. Ibid., §383.

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pèrformativos e enunciados constativos, e, por outro, entre as

regras constitutivas como são as regras do jogo de xadrez, sem pre eticamente neutras, e asregras regulativas, que guiam a açãoe comportam uma participação normativa. Essas duas distinções parecem ricas em promessas para superar os temas desusados do positivismo jurídico e para alcançar uma compreensão.analítica do direito.

No entanto, observa P. Amselek, mesmo que os verbos dalinguagem jurídica: mandar, legislar, decretar, prender..., cor

respondam aos “pèrformativos” de Austin42- “ordeno que” nãoé descrever o que se faz, mas fazê-lo; dizer “encerro a sessão” éencerrá-la - e mesmo que as regras de direito sejam de fato íns-'trumentos para o governo das condutas humanas, a fenomenologia da linguagem “não me parece habilitada”, confessa ele,“para investigar o que é exatamente uma ordem, em que consiste e como, em que contexto se exerce a função de direção dasjcondutas”43. Em outras palavras, não é aos atos de linguagem quese deve pedir o modelo de inteligibilidade do direito. É abusivoc, no limite, errôneo considerar que “o direito parece ser umalinguagem que visa regrar a conduta humana”44. Embora a lin--'guagem seja para o direito um auxiliar indispensável, é ao campodo ilocutório - extralingüístico - que pertence sua essência. Écerto que o direito precisa do locutório para ser dito e comunicado; sem ele, a qualificação jurídica dos fatos seria até impossível. Mas a essência do direito não reside na linguagem jurídica; encontra-se “acima dos elementos lingüísticos”; oculta-sena “extraordinária engenharia subterrânea, inaparente, que está, por trás de nossos procedimentos e de nossa vida social”45.

UM NORMA TIVISMO CRÍTICO 293

42. É a tese defendida por K. Olivecrona. Law as Fac t, 2? ed., Londres,1971 e por G. A. Legault, La sl ructu re perjo rm ative du langage jurid ique, Montreal, 1977; com muitas modulações, é possível aproximá-la dos pontosde vista adotados por J.-L. G ardies, “I ndica tif et im péra tif juridiq ues” , in

Arc hives de ph ilosophie du dro it , 1959 e G. Kalinow ski, “Les perfon natifs endroit”, in Norm ative S tm ctu re s o f the Social World , reimpressão, Trento, 1983.

43. P. Am selek , art. citado, p. 133.44. G. A. Legault, op . ci t. , notas preliminares.45. P. Amselek, art. citado, p. 136.

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294 OS FUND AMEN TOS DAORDEM JURÍDICA

Para chcgar a essa visão da coisa-direito, filosofia da lin-guagem e filosofia do direito devem coopcrar. Mas um olharcrítico lançado sobre a teoria dos atos de linguagem ensina queas regras jurídicas não são umlogos autônomo; são “elementosou conteúdos de atos humanos animados de uma intenção es pecífica”. Como tais, fazem parte de uma operação intencionaldo espírito: “in-strutiva”, ela visa “introduzir mecanismos decomportamento no interior da máquina humana”"’: Jus est quod

jussum est. Esses procedimentos intencionais não se confundemcom o ato de dizer que os comunica. Decerto não se trata denegar que “uma teoria da linguagem faz parte de uma teoria da

ação”47. A fenomenologia da linguagem é um auxiliar da filosofia do direito. Mas o que faz com que o direito seja direito deveser buscado aquém de sua expressão; se, aliás, assim não fosse,o direito se reduziria à sua letra pura e recairíamos no mais intransigente dos positivismos.

Nessa conclusão, P. Amselek anuncia o tema que desenvolve a propósito dos “lugares do direito”: “o direito está nos es pírito^’’ ou, como dizia Husserl, no “ego absolutamente únicoque furiciona em última instância”48. “O que me parece mais'fascinante na análise da experiência jurídica e, de modo mais geral, na ética dos homens, é que ela nos põe de novo diretamente em contato com a dimensão poética de nosso ser-no-mundo(entendendo-se o termo “poética” em todas as suas conotações:atividade criativa do espírito, acréscimo à natureza, sobrenatural); ela nos faz reatar com toda a densidade de extraordinárioe de misterioso que se tem muita tendência a perder de vista na

ymornidão do cotidiano.”4'’

46. Ibid., p. 160.47. J.-R. Searle, Les actes de langage, p. 53.48. Husserl, La cr ise des sciences européennes, § 55.

49. Controversas autour de l 'ontologie du dro it, op. cit., p. 49.

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UM NORMA TI VISMO CRITICO 295

Diante do mistério interior do espírito

Falar de “mistério” não é, aqui, sinônimo de fracasso. Todavia, mesmo que percorramos o longo e sutil caminho do périplo fenomenológico que conduz à intencionalidade da consciência numego que “atinge a si mesmo de maneira original”,ainda não alcançamos a meta. A fenomenologia não conduz ofilósofo à radicalidade que sua interrogação planejava atingir porque a egologia à qual chegamos continua carregada de penum bras50. Merleau-Ponty tinha razão quando preconizava refletirsobre o fundamento da reflexão à qual conduz a investigação

fenomenológica51. Essa reflexão, confidenciava ele juntando-sea Husseri - o deKrisis e Ideen III - será interminável Quandoo espírito espia, no recôndito de si mesmo, suas próprias possi bilidades para tentar descobrir seu mistério interior, a interrogação filosófica nutre-se de si mesma ao se aprofundar, A fenomenologia não resolve o problema ontológico do direito; nãoelucida por completo a força normativa de suas “raízes” noego transcendental. Ela é pelo menos indicação de um caminho, aomesmo tempo direção e tarefa infinita de investigação. Há, diz

P. Ricoeur, “um paraíso perdido da fenomenologia” porque elasubverteu sua própria idéia mestra para realizá-la. Seguindo essaidéia diretriz na medida em que é direção de pesquisa, descobrimos, ao longo de investigações que se sucedem e enriquecem,à mingua da transparência do direito, sua vertiginosa problema- ticidade. A partir daí, a fenomenologia, em seu convite a uma busca ulterior e ainda mais radicalizante, precisa recorrer aoutro tipo de questionamento. Em vez de se interrogar sobre a existência do direito, de seus enunciados e de sua prática, o filósofo passará a examinar o que constitui a normatividade jurídica, istoé, a validade das proposições e dos efeitos jurídicos no próprio

50. Foi nessa dificuldade que tropeçamos em nosso Essa i de cr itiqu e phénoménologique du droit, Klincksiek, 1972, o que, desde essa data, nosincitou a fazer um “reto m o” ao critícismo d e Kant.

51. M. Merleau-Ponty, La phénomén ologie de la perc eption, Gallimard,1945, p. 419 . (Trad. b ras. Fenom en olog ia da perc epção, M artins Fontes, SãoPau lo, 1999.) -

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296 OS FUNDAM ENTOS DA ORDEM JURÍDICA

cerne de um edifício de direito. A partir daí, na medida emtodo dispositivo jurídico induz uma expectativa normativ problema de fundo já não é explicar a gênese material ndeduzir a estrutura formal de uma ordem de direito; consem descobrir por que a aplicação das regras jurídicas gera coseqüências válidas no tocante ao próprio direito positivo. E problemas consiste em perscrutar a capacidade normativa da subjetivÊúde transcendental. Esse problema, fundamentalmentcrítico, convida ao reexame da esfera jurídica à luz das liç

dokantismo.

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Capítulo III Repensar Kant

:ífTirar ensinamentos do criticismo kantiano pode parecer,deptíis da paciência da dialética hegeliana ou da perseverançadas pesquisas fenomenológicas, uma regressão singular e ines

perada. Mas a cronologia não defè enganar: existem voltas notempo que marcam um progresso filosófico.

Além disso, “retornar a Kant” pode parecer, hoje, uma palavra de ordem já desgastada de tanto que é utilizada, nos últimos quinze anos, pela filosofia contemporânea alemã, anglo-saxãe francesa. Nosso intuito aqui não é acompanhar os desenvolvimentos do neokantismo nem fazer seu balanço para ver seesse kantismo “rejuvenescido” se adapta às exigências do finaldo século XX. Aliás, é impossível não ficar impressionadocom a intensidade que vem adquirindo, em muitos filósofos denosso tempo, a referência a Kant e, principalmente, àCrítica da

faculdade de julgar, é muito freqüente o apelo ao juízo reflexivo na medida em que ele tem o extraordinário poder de elevar

o pensamento do particular ao universal. Disseram que com aterceiraCrítica Kant se tornara “um oráculo”. E é mesmo o“oráculo” que certos autores consultam nele hoje perguntando-lhe como fundamentar a vida ética. Em todo caso, esse as

pecto do “retorno a Kant” - que, aliás, é antes uma revisão dokantismo - é ao mesmo tempo tão amplo e tão claro que merece um exame cuidadoso.

Contudo, mesmo quando a referência kantiana é feita emobras incontestavelmente brilhantes que logo conquistaram notoriedade, o filósofo do direito não pode esquecer que o próprioKant escreveu uma “doutrina do direito” que foi preparada, no

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2 9 8 OS FUNDAMENTO S DA ORD EM JURÍDICA

plano teórico, nào pela terceiraCritica, mas pelas duas primeiras Críticas. Nào deveremos dar ouvidos à “crítica” que abre

caminho para a “doutrina” e dimensionar a “revolução coper-nicana” que permite retornar às condições de possibilidade ede validade capazes de garantir a fundação do direito? A obra deKant contém de fato não apenas uma filosofia prática que supõe,como tantas vezes se observou, um modelo teleológico da ação,mas também os elementos de umnormativismo crítico que fornece ao direito a um só tempo sua arquitetônica e seu horizontede sentido e de valor.

Sem perder de vista a problemática geral dos fundamentosda ordem jurídica, exploremos uma pór uma as diversas viasdo “retorno a Kant” que contribuem, na filosofia atual, paradaedificação de um normativismo crítico que, sem dúvida, é o motor mais forte do humanismo jurídico.

A elucidação da ordem jurídica pela “crítica da faculdade de julgar”

Fica patente que a filosofia prática recuperou, faz duasdécadas, uma importância temática que há mais de um séculotinha desaparecido com o progresso das ciências e o desenvolvimento da filosofia do conhecimento. A necessidade, de umateoria da ação se faz sentir imperiosamente no mundo atual,em que a vida cotidiana se torna cada vez mais complexa e acelerada. Em sua meditação sobre a ética e o direito, os filósofosde hoje não podem deixar de considerar dois fatos capitais quecaracterizam nossa época: a “planetarização da técnica industrial” e/a “comunicação que se estabelece na intersubjetivida-de”'. Esses dois. fatos, evidentemente, são portadores de significação; o primeiro traduz as transformações da razão; o segundo implica a exigência de “pressupostos universais próprios dacomunicação em geral’”. Isso é mais do que suficiente para que

1. K. O. Apel, L 'éthique à I age cie ia Science ( 1967), trad. fr., PU Lille,1987, p. 60.

2 . Ibid., p r e â m b u l o , p . 1 3.

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UM NORMA TIVISMO CRÍTICO 299

os problemas de justificação e delegitimação (ou de validade)estejam no âmago de uma reflexão filosófica sobre a ação, pro

vocando por isso mesmo o que K. O. Apel considera uma“transformação da filosofia”. É evidente que isso concerne àfilosofia do direito, em sua relação com o que decorre da nor-matividade prática, portanto, da eticidade das condutas humanas. Gostaríamos de mostrar em que as tomadas de posição relativas à “ética da comunicação” exposta por K. O. Apel e J.Habermas concernem ao mundo do direito.

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K. O. Apel e a revisão do paradigma kantiano da reflexão transcendental

Num ensaio de 1967 intitulado “Oa priori da comunidade comunicaciona! e os fundamentos da ética”, Karl Otto Apelretomava explicitamente a problemática kantiana dos fundamentos da ética: não porque quisesse, como ele mesmo diz,“retornar à filosofia transcendental clássica da consciência (nosentido de Kant ou de Husseri)”3, mas porque seu objetivo é

mostrar que o criticismo deve estender-se à teoria do sentidodos enunciados. É o que ele chama de “uma pragmática transcendental da linguagem” ou sua “retranscendentalização”, que dáacesso a suas condições de inteligibilidade e de compreensão.

Em Transformação da filosofia\ relata como, para atingirseu objetivo, teve, por um lado, de distanciar-se da filosofia analítica que lhe parecia atolar-se no empirismo, sem deixar de desconsiderar suas conquistas e, por outro, meditar sobre o poderde renovação da problemática kantiana da fundação transcen

dental da ética que lhe parecia estar contida na obra de CharlesS. Pierce5. Foi assim levado ao método de trabalho necessário

3. Ib id ., pre âm bulo , p. 10.4. K. O. Apel,Transformation de la philosop hie, 2 vo!., Frank furt, 1973.5. K. O. Apel, Introdução a Ecrí ts de Pierc e (edição separada D er

Denkwegvo n Ch. Pierce, Frankfurt, 1985; trad. inglesaCharlesSandersPierce, from Pragm atism to Pragm aticism, Univ. M assachusetts Press, 1981); inTrans fo rm ation de la philoso phie , vol. 2, pp. 157-77: “Von Kant to Pierce: Die

scm iotische Transform ation derJran szen dan talen Logik." ~

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300 OS FUNDAM ENTOS DA ORDEM JURÍDICA

para a fundação racional da ética: método não dedutivo como odas filosofias tradicionais, masreflexivo e que consiste, partindo

dos fatósMa experiência cotidiana, em remontar às suas condições de possibilidade. Tal procedimento, em que é fácil ver suaconfiança no processo “crítico” que ele se emperçha em reconstruir, situa logo de início a investigação de K. O. Apel nos antí- podas dá “destruição” da metafísica segundo Heidegger.

Esse processo de reflexividade naoxoncerne diretamenteao mundo do direito. Mesmo assim intéressa-nos em dois sentidos pelo fato de não ser alheio à questão da fundação de umaordem jurídica. Com efeito, esclarece ém primeiro lugar a co

municação intersubjetiva onipresente na experiência cotidianae na tecnicização generalizada dos modos de vida, pois permite descobrir nelas um “pressuposto” ou uma priori necessário;em segundo, pelo fato de essea priori ser pensado ao mesmotempo como a condição de possibilidade da comunicação emtodas as suas formas e a condição de possibilidade da própriareflexão, sua auto-referencialidade significa que se trata de uma priori irredutível: tem portanto valor de umanorma racional

fundamental. Reconhecendo que Kant evidenciou, naCrítica da faculdade de julgar, o princípio da fundação auto-reflexivada filosofia crítica, Apel lhe recrimina não ter dado atenção ànecessária mediação da linguagem na comunicação, pois limita esta aos juízos estéticos e aos juízos teleológicos. E portantona intersubjetividade da comunicação lingüística - olinguistic turn6- que K. O. Apel decifra essea priori na medida em queé a dimensão transcendental de qualquer comunidade de comunicação é, portanto, a condição de validade de qualquer com preensão. Em outras palavras, todo discurso ético exige essea priori enquanto “fundação última” da razão7. É uma exigência

6. A expressão foi tomada de R. Rorty,The Linguistic Turn, Chicago, 1967. Na filosofia de K. O. Apel, alinguagem ocuparia assim o lugar antes ocupado pela onto logia na filosofia tradicional e depóis pelo recurso ao su je ito cio con hec im en to na filosofia moderna desde Desçarles (R. Lclloiiclio, Introtlu- çüo a L ’êthique et Vãg e de Ia Science, op. ci t., pp',’33-4).

7. Cfí K. O. Apel, “La question d’une fondation ultime de Ia raison”, inCritique, outubro de 1981.

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UM NORMA T1V1SM0 CRÍTICO 301

tão profunda, tão “fundamental”,*que a “pragmática transcendental” deve levar em conta “estados de coisas lingüísticos eextralingüísticos que formam o contexto das asserções problemáticas”11. Portanto, a retidão normativa que é um dos princípiostranscendentais da ética é também uma priori insuprimível daordein jurídica.

Apel não se limita a reabilifàr - contra as propostas dedesconstrução da razão e contra ôs ensaios que proclamam a

mortç do sujeito - a vocação crítica do sujeito na intersubjeti-vidade ética. Analisando “a formação pública da vontade por‘convenção’”9, mostra que essa reabilitação é indispensável paraa compreensão do direito. As doutrinas contratualistas clássicas, segundo as quais convenções e resoluções são concluídascom base no princípio de um acordo das vontades individuais,“bastam para formar a base de todas as normas que têm inter-subjetivamente força de obrigação desde que possam ter pre

tensão à validade no domínio da vida pública”10. Ora, elas ficammudas sobre a questão de saber “se é possível enunciar e justificar uma norma ética fundamental que constitua, para todoindivíduo, um dever de tender, em princípio, nessa questão prática, para um acordo com os outros homens e de respeitar oacordo assim concluido”". Em outras palavras, a doutrina tradicional omite totalmente a questão da fundação - da possibilidade e da validade - das normas determinadas por convenção.

Essa omissão do problema da fundação tem pesadas conseqüências. O direito positivo, “desprovido da pressuposiçãotácita de uma ética, não tem normatívãmente força de obrigação;quando muito, advém nos fatos”. Aliás, lê-se a conseqüênciada conseqüência de maneira muito concreta: “É muito instrutivo constatar que um sistema jurídico cujo crédito moral diminui numa sociedade geralmente também deixa, com o tempo,de ser efetivamente aplicado.”13O erro básico de todas as va-

8;“Lu qucstion d'une forulntion ullimo dc la raison”, nrt. cilado, p. 902. %l>. /. Vlhi</m■cl / V/iv' dr !n m í c i i c c ,cp. vi!., pp. 6 1-5.10. Ibid., p. 6 1.1! Ibid p 62 '

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302 OS FUNDAM ENTOS DA ORDEM JURÍDICA

riantes da teoria liberal do contrato, jurídico ou moral, é quererdeduzir do “solipsismo metodológico” a validade intersubjeti-va das normas. Ora, não se transcende a esfera privada sem o pressuposto lógico-transcendental de uma comunidade de comunicação13: sem essea priori, os tratados, as convenções, asConstituições, as leis... ficam desprovidos, formaliter, de qualquer força obrigatória e não se vê como,materialiter, eles poderiam exigir, em sua execução, a “responsabilidade solidária da humanidade” de que, particularmente, necessita nossasociedade técnica e industrial atual.

Só que, do ponto de vista teórico que é o do filósofo,'im porta compreender que a norma moral fundamental da comunidade crítica de comunicação deve “necessariamentesçrpressuposta"', ela não tem um caráter de um factum humiano; como bem viu Kant, cia c um factum da razão prática1':um factum rationis que K. O. Apel pode reconstruir, como antes tentarafazer Fichte, no sentido de “um perfeitoa priori", “sempre já ” pressuposto pois a razão prática “demonstra sua realidade e a

de seus conceitos no próprio ato”15. Nesse ponto, a oposição de K. O. Apel a K. Popper é aseus discípulos, W. W. Bartley e H. Albert1'’, não poderia ser maiscontundente: o “racionalismo crítico” deles, que recusa á pró pria possibilidade de uma fundação filosófica última, eqüivale,em sua pretensão “pancrítica”, a mutilar a reflexão”. Na verdade,

13. Isso evidentemente deixa sem saída a controvérsia entre fundação “intraspectiva" (subjetivista) e fundação “behaviorista” (objetivista), bem como a altcrnaliva entro dec ision ismo e paralogismo naturalista. Cf. Ibid ., p. 63, n. 26.

14. Ib id ., p. 115. Cf. também "Typcs of Ralionality to-day: the Con- tinuum of Reasorr betwecn Science and Ethics”,in Ratianality to-Day (Th. Geraets, ed.) Ottawa, 1979, p. 335.

15. L ' é thique el V ág e de la Science, p. 118.16. Cf. “La question d’une fondation ultime de la raison”, art. citado,

pp. 895-928; as obras visadas são as de W. W. Bartley,The Retreat to Com- m ittm ent, Nova York, 1962 e, sobretudo, de H. Albert,Traktat über kritische

Vernunft, Tübingen, 1962.Í7;. II. Albert, cm particular, explicou esse programa alternativo (a pretensão de poder substituir de maneira satisfatória o programa filosófico de uma fundação última pelo de uma crítica racional ilimitada) em seuTraktat

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UM NORMA T1V1SMO CRÍTIC O 303

o ceticismo, no que se refere aos fundamentos, implica umacontradição performativa18decorrente não do encadeamento formal das proposições que ele enuncia (o que é correto), mas dainserção delas no contexto pragmático concreto em que são enunciadas. O falibilismo19, que conduz a nada menos que a renunciarao princípio de razão suficiente, não só “sacrifica o desejo decerteza” mas implica “uma dimensão moral” deplorável, poisé incapaz de fundamentar as normas éticas: “em vez de fundamentar, recomenda submeter os sistemas morais existentes aum reexame crítico e incessante”20. Apel tem de submeter essatese a um exame metacrífico: conduzido “em função de Kant”,esse examé consiste em elucidar “as condições de possibilidadede uma crítica intersubjetiva válida”21. “A pertinência de uma fundação última da razão reside num argumento reflexivo: ,não se pode dccidir no nível do discurso e da prática nem a favor nemcontra as regras do jogo de linguagem transcendental-.sem játer pressuposto antes essas.regras.”22 á

Assim, “reexaminando” o paradigma kantiano da reflexãotranscendental, K. O. Apel ;eleva-se a uma proto-ética que, nemmais nem menos que a protociência ou a prototécnica23, pres

supõe “uma esfera especial de regras universais ou de normasde comunicação”24. Essa racionalidade comunicativa (commu-nicative rationality), em sua dimensão transcendental, mostra

iiber kritische Vermmfl :; nele critica a reivind icação de uma fun dação ,filosófica última dc maneira bastante impressionante e aparentemente restritiva em termos lógicos, deduzindo o que ele denomina de o “trilema de Münchhausen” (p. 895); esse trilema leva a uma escolha entre três possibilidades: 1) uma regressão infinita; 2) um círculo lógico na dedução; 3) uma parada arbitrária do

processo de fundação (p. 896).18. Ib id ., p. 922; cf. também “Rationalité de Ia communication humai- ne”, in Critique, junho-julho de 1988.

19. A noção' de “falibilismo” fora proposta por Pierce e retomada por Wittgenstein in In vest ig ations philoso phiques, § 50.

20. “La question d ’une fondation u ltime...”, p. 898.21. Ib id ., p. 905 e pp. 917-28 .22. ibid., p. 928.23. “T ypes o f Rationality to-day”, art. citado, p. 322. 24. Ib id ., p. 324.

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304 OS FUNDAMENTOS DA ORDEM JURÍDICA

não apenas a unidade fundamental da razão na ciência e na ética,

mas a impossibilidade de não recorrer ao seu ofício fundador para compreender a textura e a função do universo jurídico.

J Habermas e o ideal de uma comunicação transparente

J. Habermas foi aluno de K. O. Apel. Marcado pela filosofia de seu mestre, propõe-se como objetivo, redefinindo o pa

pel da filosofia25, ir além das filosofias do subjetivismo solip-

sista e fundamentar-se na intersubjetividade do mundo vivido.Embora preste homenagem a Kant, que “realmente introduziuum modo novo de fundação em filosofia”26, acredita ser oportuno transformar a filosofia transcendental. SuaTeoria do agir

ycomunicacional27 visa portanto reconstruir racionalmente os pressupostos necessários e as regras universais da ética. Deli beradamente, retoma a questão da racionalidade de tipo críticoe realiza de certa forma uma releitura da segundaCrítica deKant à luz da terceiraCrítica. Sua reflexão sobre a ética o leva

a renovar a compreensão do orbe jurídico.Levando em conta, como já fizera Apel, as contribuiçõesda filosofia analítica e das teorias pragmatistas, considera queconcluir pela “inadmissibilidade da necessidade de conheceros fundamentos”28é pecar por precipitação. Quando, por exem plo, uma convenção ou um contrato são concluídos, o ato que osfaz nascer implica o consentimento mútuo das partes, o quesupõe uma “prática comunicacional”, portanto, uma intercom-

preensão. Esta exige a “participação” dos parceiros” , sua “inevitável participação no processo de compreensão”, “o entendi

25. J. Habermas, “La redéfinition du rôle de la philosophie" (1981), in M ora le et commun ication (Frankfurt, 1983), trad. fr., Cerf, 1986, pp. 23-40.

26.~Ibid.,p . 23.27. /. Habermas,Theorie cies kommunikativen H andelr s, 1.1: Hamilim gs ra -

tional itüt und gese llschaftlich e Rationalisientn g; t. II: Zu r Kri tik der funktio- ncãiúschen Vernunft, trad. fr., Fayard, 1987. ,; i

28. “ La redéfinition du rôle de la philo sophie” , art. citado, p. 31.29. Mora le et co mmunicat ion, pp. 48 e 50. :

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306 OS FUNDA MENTOS DAORDEM JURÍDICA

Ao afirmar a preeminência da prática sobre a teoria e, por con

seguinte, a possibilidade de uma ética cognitivista dos valorescujo caráter é específico, Habermas indica não só o caráter deficiente de todos os convencionalismos positivistas, mas tam bém a fraqueza intrínseca das teorias do jusnaturalismo clássico,cujo realismo mascara a diferença entre enunciados descritivose enunciados normativos. Distancia-se assim de Apel. Considera inútil a exigência dc “fundação última” da ética e, em particular, do imperativo categórico pois, diz cie, “as intenções mo

rais cotidianas não têm nenhuma necessidade das luzes dosfilósofos”'6. Contra o positivismo jurídico e contra o ceticismoaxiológico que “neutralizaram” essas intenções “espontaneamente adquiridas no processo de socialização” e cujo conjuntoforma o “pré-convencional”, Habermas tematiza adiscursivi- dade que todo diálogo pressupõe, inclusive aquele que se enta- bula no trato jurídico. Tendo adquirido, ao termo de seu percurso de auto-reflexão, a certeza de que a razão não pode ficar

segura de si mesma, considera que as exigências dc validade“contrafactuais” infrangíveis que o conceito de discursivídaçjèenvolve - verdade, sinceridade, justiça - são as condições dà“comunicação”. É por isso, diz ele, que elas se impõem comoestruturas normativas da moral e do direito. Enquanto tais, permitem vislumbrar, pela auto-reflexão, seu horizonte de sentidoe “o ideal de uma comunicação transparente”.

Compreende-se, portanto, a importância filosófica que

passa a ser vinculada ao ato dc “dizer a norma”17. Parccc que jáé tempo de a filosofia deixar de pensar que as proposições dedireito veiculam um dever-ser normativo impregnado de universalidade abstrata. A questão de direito que o neokantismo vincula doravante ao aparelho jurídico tornou-se a exigência delegitimação dos enunciados jurídicos em sua normatividade38.Filosofia do direito e filosofia da linguagem condenam assimconcepções dogmáticas, metafísicas ou cicntificistas da ordem

3 6 . //>/</., |i. 11 1).

37. .1. Lenoble c A. Bcrlcn, Dire la norm e, LGDJ, 1990.38. J. Habermas, Raison et légitim ité : p roblè m es de légitimatiort dam le

capitalism e avancétrad fr Payot 1978

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308 OS FUND AMENTO S DA ORDEM JURÍDICA

namento racional da Natureza, nem na razão como marca da natureza humana, nem na postulação de uma ciência dedutiva ecausai da realidade social. Pertence àconsensualidade das máximas da ação intersubjetiva. “Uma norma só tem alguma chance de ser seguida de efeitos se é ligada às disposições a agir quesão realmente aquelas de todos os indivíduos concernidos.”40Essa nova definição da norma acarreta sua não-coincidênciacom o imperativo - não que não possa ser transposta para im perativo, mas não se identifica com o dever-ser enquanto fórmula racional pura, portanto universal, da ação. O “retorno a Kant”implica por conseguinte oreexame do imperativo categórico.

Coube a John Rawls a condução desse reexame ao longode uma releitura das temáticas dosFundamentos da metafísica dos costumes e daCrítica da razão prática.

A revisão do imperativo categórico e a releitura da Crítica da razão prá tica

No contexto filosófico atual em que se “reconsidera” a filosofia prática de Kant41, a idéia mestra deimperativo categórico acha-se no centro das discussões. Segundo Habermas, a razão dissò é clara: “Quando deixa de recorrer simplesmente a um‘fato de razão’, Kant apóia a justificação do imperativo categórico ríòs conceitos de autonomia e de vontade livre, que sãoconceitós com um conteúdo normativo.”42Tal é precisamente o ponto de partida do reexame proposto por J. Rawls - reexameque, mais estreitamente que os trabalhos de Apel e de Habermas,concerne à filosofia do direito e à problemática da fundação daordem jurídica.

40. Rüdiger Bubner, “Norme et histoire”, inCritique, outubro de 1981, p. 934.

4 1. Cf. Y. Yovcl (cd.), Kant 's P ra clical PhUosophy Recon siderei!, 1989, Kluwer Academic 1’uhlislicrs.

42 . J. Habermas, “Notes pour Ibmler une étliiquc de la discussion”, in M orale ei com munication, p. 100 .

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UM NORMA TI VIS MO CRÍTICO 309

John Rawls e a questão da justiça

Admitindo-se que o direito se define por seu fim, isto é, por sua meta do justo - tese clássica com certeza, mas que iiãodeveria obliterar a tese, não menos clássica, do direito definido por seu meio específico, a saber, a coerção -, a obra de JohnRawls intituladaUma teoria de justiça43constitui, em seu pró prio projeto, uma contribuição à filosofia do direito. Parece-nos

mais exato dizer que hoje ele faz parte do “panteão da filosofia política e social”44. Pode-se no entanto admitir que seu propósito é, se não o de fundar filosoficamente o direito, pelo menoso de fornecer uma justificação do “direito social”. Isso significa que J. Rawls não pretende abordar um problema de filosofia dodireito entre outros, e sim o problema principal de toda interrogação filosófica sobre a ordem política e jurídica das sociedades humanas. Historiador das idéias, ele sabe muito bem que o

título introdutório do Digesto é De justitia et jure e que Accursio,no começo do século XIII, glosando o texto, pôde escrever: “Odireito, descende da justiça como de sua mãe.” Sabe tambémque, nèsse ponto, a filosofia vem se alimentando há séculos dedivisões e dualismos em torno dos quais não pára de polemizar,utilizando, se necessário, para estimular o debate, o trabalho dacontradição. A discussão, entabulada em tomo de problemas ede controvérsias eternas45, acabou caindo na banalidade das antinomias infindáveis. Diante desse resultado tão paradoxal quantodecepcionante, o projeto de Rawls c tirar a noção de justiça doimpasse em que ela ficou acuada. Sua intenção é decerto política e moral; mas é inseparável da mâneira, que é fundamental,de condebero direito.

Lembremos inicialmente que, 'devolvendo vigor ;i noçãode justiça, Rawls vai na contracorrente do ceticismo de que os

43. John Rawls, A Theory o f Ju st ice, Carabridge, Massachusetts, 1971 (Trad. bras. Uma teoria da justiç a, Martins Fontes, São Paulo, 1997.)

44. M. Mcycr, in1'A^iliic, I. V, Bruxelas, p. 261.45. J. Rawls, "L'iiléc cl'iin consensos par lecoupcmenl”, in Rcvue.d e

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310 OS FUND AMENTOS DA URDEM JURÍDICA

positivismos cicntificistíis a tinham envolvido c que, situandoexplicitamente sua teoria da justiça numa perspectiva kantiana,ele se opõe às teses militaristas dominantes desde Bentham nomundo anglo-americano. Nosso problema não é expor integralmente a teoria rawlsiana da justiça, hoje conhecida na França46;tampouco pretendemos nos interrogar sobre a ortodoxia de suareferência kantiana. Está estabelecido que o kantismo de Rawlsnão é muito kantiano47e não insistiremos na pouca fidelidade

que manifesta para com os textos de Kant. Em compensação,destacaremos, em seu estudo da justiça, dois filosofemas cujaimportância é primordial para a filosofia do direito: sua concepção daigualdade e a idéia deconsenso por coincidência par -

xia l. Com efeito, no desenvolvimento desses dois temas, é possível apreender o tipo de juízo que, segundo Rawls, é necessário para assentar o direito sobre fundamentos sólidos411.

46. J. Rawls,Théorie de Ia justice, § 40; “Kantian Constructivism in Moral Tlieory: tlio Dcwey Lcctures", 1980, in Journ al o f P hiloxophy, 1980, pp. 515-72. Deve-se notar que Henry Sidgwick precedeu Rawls nessa via (Methods, Prefácio à 6? ed.) destacàrído os méritos filosóficos da ética kantía- na, cf. L. Sosoê, “Henry Sidgwick et le problème du dualisme de la ráison pratique”, in Eth ique et droit à 1'áge dém ocratique, Cahie rs de phitosòphie

po li tique et ju rid iq ue, n? XVIII, Caen, 1990, pp. 61-77 , '4,7, Cf. R. Boudon. Effets pervers et ordre socia le , PUF, 1977; 2“'ed.,

1979, cap. VI, pp. 157-87; G. LatVance, “Les deux príncipes de just ice selon Rawls”, D ia lectica, número especial sobre Rawls, 1978, vol. 35, fase. 2, pp. 115-25;Cahiers dç ph ilosophie politique et juridiqu e, n? II, 1982: G. Lafrance, “Le principe d’ègaHté démocratique dans Ia théorie de Rawls”, pp. 195-206; J. Roy, “Liberté, égalité, fratemité revis ited : une étude sur Rawls”, pp. 207-26;

Revue de mètaphysique et de mora le , 1988, n? 1; In dividu et ju stic e socia le :

autour deJ . Rawls (obra coletiva), Seuil, 1987;Cahiers de ph ilosophie po litique et ju rid iq ue, n° XVIII, 1990, A. Boyer, “D e la mètaphysique au politiqüe; autour de J. Rawls”, pp. 77-91.

48. Cf. O. Hõffe, •‘Is Raw l’sTheoiy o f Justice Really Kantian?”, in Ratio, 1984, nf 2, vol. 26, Norwich e Hamburgo, pp. 103-24; Norman Daniel (ed ) Readin g Rawls Criticai Stu dies on Rawl ’s Theory o fJustice Stanford

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UM NORMA TIVISMO CR ÍTICO 311

A igualdade democrática: contra o utilitarismo e os positivismos

J. Rawls, ao abordar o tema da “igualdade democrática” que,segundo ele, constitui o critério de uma sociedade justa, posi-ciona-se tanto contra o utilitarismo como contra os positivismos.

Recrimina os utilitaristas4'' - na verdade menos Bentham e J.Stuart Mill que os doutrinários anglo-saxões do século XX comoJ. J. Smart, J. O. Urmson ou R. B. Brandt - pelo cálculo de interesses que, segundo eles, é necessário para obter a maior felicidade coletiva. Tenta primeiro matizar o processo de cálculo racionalque está no cerne da teoria de Bentham e, nesse sentido, evoca adistinção entre o utilitarismo de ação (act utitítarianism) e o utilitarismo das regras(rule utilitarianismf", estimando que, sob suasegundai forma, ele torna possível a legitimação de comportamentos jurídicos como a promessa ou a sanção. Passa em seguida rapidamente a uma dura crítica51 e denuncia no utilitarismouma forma de “administração eficaz dos recursos sociais”, isto é,um “egoísmo coletivo” que - posição moralmente inadmissível -trata o indivíduo como um meio. Ora, a própria idéia de justiçaimpede que se possa considerar os homens como meios com vis

tas ao bem alheio - temá‘da moral kantiana, mas ao qual J. Rawlsdá nova inflexão. Os direitos fundamentais - isto é, as liberdades"1“formais” tais como a liberdade política, a liberdade de consciência, a proteção contra a arbitrariedade, que são direitos individuais - não podem ser minimizados para que as vantagens sociais e econômicas da coletividade sejam maximizadas. Isso nãosignifica que J. Rawls se incline para o individualismo liberal;é em nome do contrato social52que ele justifica os dois;princi-

49. Essa cvitica é exp osta por O. Hõffe , L 'État et la justi ce , Vrin, 1988,pp. 67-9 e 38-9.' yí .50. J. Rawls, “Two Concepts of Rule”, inThe Philosop hical Review,

1955, 64, p. 232.51. J. Rawls,Théorie d e la justice, §§ 27,28 e 30.52. O conceito de contrato so cia l não deve, aqui, criar ilusões; ele de

forma alguma designa, como na filosofia de Hobbes, Locke ou Rousseau, o_ ato-gerador-da sociedade civilrÉ uma pura ficção clêstinada a pensar uma sociedade imaginária regida, idealmente, pelos dois princípios de justiça.

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312 OS FUND AMENTOS DA ORDEM JURÍDIC

pios de justiça53 segundo os quais a distribuição das rique

deve levar em conta as diferenças entre os indivíduos sem.entanto afetar sua igualdade de oportunidades. A “igualddemocrática” não se identifica, portanto, nem com a igualdnatural nem com a igualdade liberal; é umaequality o f oppor- tunity, uma das grandes conquistas do homem moderno qsoube libertar-se da sociedade de ordens do Antigo RegimePor isso é preciso, para que a justiça seja salva, não só que cum, no Estado e segundo a lei, seja considerado igual a qquer outro, mas que, para aqueles que a natureza ou as circtâncias desfavoreceram, funcione o princípio de reparação situações. A justiça social nem por isso ié caridade ou mesrgenerosidade: exige que ninguém explore em proveito próo quinhão de qualidades que recebeu dá natureza ou que a tória lhe permitiu adquirir55, e que, ao contrário, os menos frecidos encontrem uma compensação graças ao equilíbrio ranal que ó direito social restabelece graças à cooperação de toe à complementaridade de seus papéis - o que, segundo Raé o sentido último do contrato social e constituí o princípio

53. Na teoria da justiça de Rawls, enfrentam-se, em termos modernos 'as duas figuras do justo distinguidas por Aristóteles em Ética a N icômaco:por um lado, uma ju stiç a comuta tiva ou n iv ela dom, estritamente igualitária, que trata cada um corno um: encontra sua medida nas relações de indivíduo com indivíduo. Rawls, que vê nela a chave do individualismo liberal, a seu olhos fator de hipocrisia e mentira e, quando nada, cheio de irrealismo, rejeita vigorosamente sua fórmula. - Por outro lado, uma ju sti ça dis tr ibutiva , ou melhor, repanitiva, com base na proporcionalidade, que tem uma ressonância social e da qual Rawls gosta de lembrar que Kant fez dela o critério da sociedade civil na qual é necessár io entrar ( Doutr in a do direito, § 41). O tema aristocrático da justiça distributiva c repensado por Rawls cm termos atualizados: vê nela a ponta de lança de uma sociedade em que a intersubjetividade faz d todos “parceiros que consideram a si mesmos pessoas livres” (Teoria da ju s-

Ktiça, §§ 26 e 82).54. Esse esquema, segundo J. Rawls (cf. in Individu et ju sti ce socia le :

autour de Rawls, op. cit., pp. 296 ss.), provém do pensamento reformista do século XVI; mas isso não significa que ele procure na história a justificaçã de sua teoria.

55. J. Rawls,Théorie de la jus tice, § 59.

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314 OS l-UNDAMENTOS PA ORDEM JURÍDICA

liza nesse caso o conceito kantiano dc imperativo categórico"' para aplicá-lo aos princípios de justiça e declará-los "obrigatórios”, subentende a definição kantiana do direito como coexistência das liberdades, O caráter de imperativo categórico que,sob o véu de ignorância, se vincula aos princípios de justiçarevela assim a função metaéliea deles; ele os impõe universalmente, isto é, em qualquer sociedade moral e em qualquer sistema jurídico, como o critério absoluto da validade deles, É muito significativo que as “raizes kantianas” que Rawls"1dá assim

à sua concepção da justiça como eqüidade"-’ revelam-se po.r meioda ficção que a situação original constitui65. Mesmo não havendo “identidade” e sim, como diz o próprio Rawls, “analogia”entre as concepções de Kant e as suas"', o parentesco entre elasexplica a reiterada recusa do utilitarismo, do perfeccionismo edo intuicionismo em toda a sua obra, já que ela fornece à éticaa justificação ou a autentificação que a razão pura prática lheconfere. Sem essa fundação racional, a justiça seria apenas arbi

trária ou contingente.

A idéiâ de um “consenso por coincidência parcial”

Tendo como premissas as condições de possibilidade e devalidade de um “equilíbrio ponderado” da vida ético-jurídica,Rawls elabora “a idéia de um consenso por coincidência par-

60. “Reabilitando o sujeito num ênico kantiano” no contex to prático, “os princípios de justiça escolh idos sob o véu de ignorância têm o significado de imperativos categóricos”, escreve O. Hôffe, in Imlividu ei ju stice sociale: autour de John Raw ls , op , cit., pp. 62-3. .T

61. J. Rawls, “Kamian Constniêtivism in Moral Theory: Rationa! and PuII Aulonomy". inThe Jotinw l o f Philosophv, setembro de 1980, n" 9, vòl.77, p. 515; “Tliemcs in Kant"* Moral Philosophy”. in Eckart Forster,’ífed. Kant 's Transcendental Deductions, 1989. pp. 81 -! 13.

62. J. Rawls. "Justice as Fairness”. inThe Ph ilosnphical Review, 1958, vol. 57, pp. 164-94; retomando o mesmo tema in Im liv idu d ju stice socia le .

op, cit., Rawls insiste na "neutralidade metafísica'' de sua teoria.63. J. Rawls, inThéorie de la jus tice , 4 e 22-6.64. J. Rawls, “Kantian Constru etiv ism...”. art. citado, p. 517. __

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ciai”'’5que ele situa no contexto político da democracia'constitucional. “O que sc requçr”, escreve ele, “é uma concepção poli- ■tica da justiça que seja reguladora, que possa articular e ordenar

os ideais, bem como os valores do regime democrático consoante um princípio c, dessa maneira, definir os objetivos que umaConstituição deve alcançar e os limites que ela deve sc impor.”'’'1,Tal concepção da justiça é, decerto, “moral” na medida em que“seu conteúdo provém de certos ideais, de princípios e modelos,e em que essas normas enunciam certos valores, no caso valores políticos”67. Contudo, ela interessa à teoria do direito pelo fatode enunciar regras e preceitos que veiculam normas concebidas para ser aplicadas à “estrutura básica” de uma democracia cons

titucional moderna. Isso não significa que Rawls proponha uma“moral aplicada”, mas, antes, que reflete sobre a aplicabilidade deseu conceito de justiça às instituições necessárias para as sociedades democráticas ocidentais avançadas.

Na verdade, não existe - a não ser à custa do uso tirânicodo poder do Estado que, segundo ele, vemos desenhar-se nas filosofias de Hegei e Marx - “visão geral e abrangente” qúe possafornecer um fundamento “publicamente aceitável” para a justiça. Toda teoria da justiça deve levar em conta o “fato do pluralismo” e, portanto, possuir uma dimensão concreta na qual a

prática prevalece sobre a teoria. Em outras palavras, o que é reconhecido justo deve obter a sustentação de um “consenso porcoincidência parcial”, o único que de fato caracteriza a justiçacomo eqüidade. Nesse caso, ela corresponde a um “sistema decooperação social entre cidadãos que são considerados pessoas:livres e iguais”68. Segundo Rawls, isso é suficiente para mostrar a indigência das doutrinas do individualismo liberal e a falsidade de seus axiomas fúndadores. Da mesma forma, todas asconcepções especulativas e abstratas que tendem a moldar o

UM NORMA TI VISMO CRÍTICO '-h 31 5

65. J. Rawls, “L’idce d’un consensus par recoupement”, in Revue de mètap hysiqu e et de mora le , 1 988, n? 1, pp. 3-32 . ,

66. Ibid ., p. 3. ■:'r;

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justo por um “modelo de conjunto” não alcançam o perfil concreto de um direito que, segundo Rawls, funda-se na “idéia intuitiva da sociedade como sistema eqüitativo de cooperaçãosocial”69. Portanto, os fios condutores de uma teoria do direitorbem como “as regras publicamente aceitas” que o estruturam lhe orientam a prática, pertencem ao tecido social e ao “conhecimento público” do senso comum - o qiie Rawls denomina d“a livre razão pública”70. A unidade social, assim situada na orgem de sua concepção de justiça, implica sobretudo que a vantagem ou o bem de cada qual seja publicamente aceito como base de acordo em confrontos intersubjetivos, e que os princí pio s da justiça sejam objeto de uma publicidade que os ponhao alcance de todos os cidadãos. A instauração do que é justonão provém de um simplesmodus vivendi que seria estabelecido entre indivíduos ou entre Estados: um procedimento dessetipo é sempre precário e contingente, portanto instável. O justrepousa num consenso por coincidência parcial que inclui “con

ceitos, princípios e virtudes” que formam'“o conteúdo comumno qual todos se reúnem71, e permanecem estáveis sejam quaiforem as vicissitudes e as redistribuições do poder político. Paro direito político, isso não acarreta a busca de uma “ordem mora primeira e independente” pois o direito, por não ter dimensãometafísica, não pode invocar uma filosofia dos valores. Ele é resposta prática a um problema prático. O realismo exige que “cultura pública”, na qual se combinam a tolerância, a moderação, a eqüidade72, seja o ponto de ancoragem de qualquer programa jurídico-político. Como tal, corresponde ao “equilíbrio

ponderado” que situa metodologicamente a teoria de J. Rawlentre um processo indutivo de generalização a partir da experiência e o esboço abstrato de um corpo de princípiosa priori.

Nem por isso o fundamento da justiça resulta de um compromisso doutrinai, mas de um consenso que eqüivale a uma sin

316 , OS FUNDAM ENTOS DA ORDEM JURÍDICA

69. Ib id ., p. ll ,n . 13.70. Théorie de la justic e, § 34.71. “L’idéed’un consensus...”, art. citado, p. 21, n. 18.72./Wrf.,p.23.

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UM NORMA TI V1SM0 CRÍTICO 317

taxe normativa da ética política. Nas sociedades contemporâneas, em que a competição é o jogo fundamental, a autoridade política deve respeitar cinco regras: o mando da lei e uma concepção do bem comum que englobe o bem de cada cidadão; aliberdade de consciência de todos; direitos políticos iguais paratodôs; a igualdade de oportunidades e a livre escolha do trabalho-a distribuição eqüitativa dos meios materiais. Esse programa, que poderia ser qualificado de socialdemocrata, nada temde utópico, faz questão de esclarecer Rawls; corresponde, aocontrário, à “psicologia moral razoável” que torna possível “umacooperação social eqüitativa”73.

Entre o cálculo teleológico de interesses segundo Hobbese o.liberalismo moral de Kant e de John Stuart Mill, Rawls propoe portanto uma “concepção razoável” da justiça sustentada por “um consenso por coincidência parcial” segundo o qual,“em condições relativamente favoráveis que tornam possível ademocracia constitucional, as instituições [...] concretizam os

valores políticos e os ideais que prevalecem normalmente sobrequaisquer outros valores opostos”74.

73. Ib id ., p. 29. Ib id ., p. 31.

Robert Nozick, em nome do liberalismo, critica o “construtivismo moral de tipo kantiano” que constitui a base da teoria do direito de J. Rawls. Sua critica é contundente. Defendendo o Estado mínimo, “estritamente limitado ao papel de protetor contra a força, o roubo e a fraude, e de garantia dos contratos” ( Êta l, an arch ie, utopie , 1974, prefácio, in trad. fr., PUF, 1988, p. IX), recupera, tanto contra o anarquismo que deseja a morte do Estado como contra os socialismos administradores do bem-estar social, a inspiração individualista e liberal de Locke. Contra Rawls, acha que o Estado não deve ser o dispensador dõ bem-estar social, mas deve, acima de tudo, defender os direitos dos indivíduos. O perigo inerente às teses de Rawls é que, num mundo capitalista transformado pela industrialização e pela técnica, o Estado social se tome o Estado-Providência, isto é, “uma sociedade de seguros” em que, evidentemente, os cidadãos acabarão por pagar o preço da segurança que lhes prometem: suas liberdades estarão ameaçadas em nome de sua proteção.

Nozick opõe-se portanto à imagem de um Estado intervencionista e “providencial” que acaba por devorar seus cidadãos.

Contrapõe a essa concepção suicida um Estado mínimo baseado na justiça possessiva (pp. 150-1) que, explica ele, por dizer respeito à justa distri

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318 OS FUND AMENTOS DA OR DEM .JURÍDICA

É incontestável que as-análises dos últimos escritos ,de J.Rawls muito se distanciam da filosofia prática de Kant75. Além

disso, nos múltiplos meandros de seus inúmeros artigos, Rawlsnão deu força de evidência à sua concepção normativa do direito; chega a confessar seti caráter às vezes irrealista. Entretanto,o mais inquictante é que sua teoria apresenta temíveis problemas de fundo que obscurecem a “fundação” do direito que elequeria elucidar. O primeiro problema que se apresenta é fi losó

fico: os princípios de justiça só adquirem sentido na situaçãoideal e abstrata da “posição original”, na qual é bem difícilimaginar os homens como “simples númenos” totalmente livres.Depois surge um problemalógico que se apresenta em doisníveis: no nível político, como conciliar o princípio de reparação, que visa fazer desaparecer as desigualdades, com o princípiode diferença que visa, ao contrário, respeitá-las? No nível teórico, Rawls encerra seu pensamento num círculo: como bem notaR Ricoeur, o enunciado dos princípios de justiça “nos comunicao que desde sempre já havíamos compreendido”. Essas dificuldades fazem entrever a inaplicabilidade dos princípios enunciados, o que levanta um problema propriamente ético: o “mora-lismo” que ronda a doutrina é, com efeito, estranhamente am

buição dos bens (justiça distributiva), incide sobre a apropriação (principio da justa aquisição), sobre a transmissão dos bens entre p esso as (princ ípio da justa transmissão) e sobre a reparação dos erros.

Portanto, para Nozick o debate situa-se em torno da concepção dos bens. O direito de p roprie dade adquire a seus olhos uma dimensão paradigmática ou simbólica; a propriedade é para ele, como pensava Locke, um dos direitos individuais fundamentalmente próprios da natureza humana. Repudia dessa manéii o a teoria .segundo a qual é apenas no âmbito de um a co nce pçã o nor- mativista do Estado que ela se define como um direito social. Ressurge assim a questão dos direitos do homem na qual, para se opor a Rawls, Nozick recupera a inspiração individualista do direito desenvolvida pela filosofia das Luzes.

75. No confronto das respectivas posições de R. N ozick e de J. Rawls, encontra-se a idéia segundo a qual as doutrinas liberais apóiam-se sobre'úma concepção comutativa da justiça, ao passo que as doutrinas mais ou menos socialistas preferem rcfcrir-sc á forma distributiva ou repartitiva da justiça. Nessa distinção, Fr. Hayck destaca oique pode separar uma ordem de justiça

espontânea e uma ordem de justiça construída.

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bíguo: trata-se de um éonstrutivismo moral, que exige universalidade e pureza, ou a justiça é, segundo a expressão de M.

Meyer, “vendida a qualquer preço no mercado da história”?76O problema da fundação do direito não está portanto resolvido de maneira satisfatória. Contudo, mesmo quando JohnRawls não leva até o fim seu projeto de uma teoria critica da cticae do direito pois, em sua obra, a razão jamais submete suas exigências a seu próprio tribunal, tem o mérito de chamar a atenção para a questão da justificação ou da legitimação das estruturas da ordem social, política e jurídica. Essa problematizaçãocrítica, que convida a pesquisar os princípios em nome dos quaisa ação pode scr governada por regras, indica a via mais diretada filosofia do direito. Mas as dificuldades que surgem no percurso efetuado por Rawls revelam como é perigoso seguir essecaminho. Gostaríamos de mostrar que, se quisermos evitar as am bigüidades e os paradoxos, o “retorno a Kant” exige uma outrareleitura de sua filosofia.

UM N0RM ATIV1SM0 CRÍTICO 319

Da Crítica da razão pu ra à “ciência filosófica pura” do direito

Em sua vontade de restaurar a vocação reflexiva da filosofiadiante das tentativas de destruição da razão empreendidas principalmente pela corrente marxista e pela obra de Heidegger, asdiversas releituras da obra de Kant tendem a esquecer que aCrítica da faculdade de julgar e aCrítica da razão prática, àsquais são feitas muitas referências, foram preparadas pelaCrí

tica da razão pura. O texto de 1781, que tematiza as árduasmeditações de dez anos, dá provas da mutação da sensibilidade

76. “A igualdade com o valor universal de justiça parece ser vendida a qualquer preço no mercado da história; ora é sinônimo de justiça, ora deixa de sê-lo , o que co mpromete a un iversalidade e, portanto, o valor eterno dos princípios que ela fundaria”, Mj;Meyer, “Justice distributive et égalité: la penséc de John Rawls et son paradoxe fondamental”, in L ’Égalité, t. V, Bruxelas, 1977, p. 285. Cf. também, do mesmo autor, “The Perclman - Rawls Dcbalc

o f Justice”, in Revue in tern aiionqle de philoso phie 1975, n? 3 „ L ll,v,

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320 OS FUNDAMENTOS DA ORDEM JURÍDICA

intelectual necessária, segundo Kant, pàra o ato de filosofar. Oque ele propõe para a filosofia é nada menos que umarevolu

ção no niétodo. O novo paradigma da filosofia, que Kant encontrou no procedimento de Copérnico, modifica, com a topologia da inteligibilidade, os esquemas operatórios do pensamento. É por isso que Kant, noPrefácio da segunda edição, apresentasua obra não como uma teoria ou uma doutrina, mas como “umtratado dò método”77. Dando as costas para o dogmatismo cínicoda filosofia tradicional cujosa priori metafísicos e procedimento lógico-dedutivo ele rejeita, Kant põe|m evidência oa priori transcendental que preside ao uso da razão: não apenas ao seuuso especulativo, mas também ao seu uso prático em moral, política e direito. A última parte daCritica da razão pura, ao apresentar a “teoria transcendental do método” como “a determinação das condições formais de um sistema completo da razão

pura”78, faz questão de destacar que tal uso da razão aplica-se aqualquer objeto que seja. Nem dogmático nem polêmico, o procedimento criticista não pode levar a se refugiar num ceticismo preguiçoso nem a se abrigar por trás de hipóteses aleatórias;consiste, sempre semelhante a si mesmo” seja qual for o objeto ao qual se aplique, em “sair do conceito [desse] objeto a fim

de chegar sinteticamente ea priori a um certo conhecimento dascoisas que não estava contido em seu conceito”80. Todo retornoa Kant exige levar em consideração esse processo de pensamento que não limita o uso transcendental da razão ao campo dosaber mas estende-o à ordem prática*1. E o autor daCrítica da razão pura, prevendo o uso intempestivo do método crítico, previne: “sem essa atenção, como as águas que rompem violentamente seus diques e se espalham pelos campos, as provas se precipitam na direção a que as leva acidentalmente a vertentede uma associação oculta”82.

77. Kant,Critique de la raison pure , trad. Tremesaygues e Pacaud, PUF,Prefácio, p. 21. i

78. Ib id ., p. 489.79. Ib id ., p. 493.80. Ib id ., p. 531. !.81. Ib id ., p. 560. ||| ,82. Ib id ., p. 531.

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UMWORMA TI VISMO CR ÍTICO 3 21J

O filósofo do direito que hoje em dia pretenda voltar a Kantnão pode descartar esses prolegômenos metodológicos. Ou seja,o recurso às duas últimasCríticas não se basta por si só. Voltar aKant implica metodologicainente, isto é, principialmente, duascoisas: por um lado, é preciso que as questões da “metafísicaruim” sejam suspensas e que a filosofia se mova num terrenodiféfente daquele do saber positivo; por outro la.do, é importantenãói èsquecer que, no âmbito prático, a razão - que não é outra

senão a razão teórica simplesmente aplicada à prática - é legis-ladora. Preenchidas essas duas coHdições, a reflexão crítica queincide sobre a prática pode mostrar que tudo o que se refere àação humana é submetido a uma exigência racional última que pode ser condensada pela noção de autonomia. Entenda-se que aação não é regida por princípios pertencentes ao registro naturalda sensibilidade - necessidades, desejos ou paixões, sentidos ousentimentos - mas por princípios prescritivos que vão além desuas determinações. Uma vez que a faculdade de agir segundoesses princípios é a vontade, esta nada mais é senão a razão emsua relação com a ação, isto é, em seu uso prático.

Voltar a Kant é portanto admitir, sobre essas bases metodológicas necessárias, que a realidade da experiência moral de

pende unicamente do “fato da razão”: esse factum, qu&está inscrito na alma do homem “em caracteres bem grandes e legíveis”83, é a consciência de uma obrigação incondicional: é nissoque a razão “se proclama primordialmente legisladora”84. Ficaclaro, portanto, que o projeto de uma crítica da razão prática -que busca saber quais são, na ética em geral, as condições “puras”, independentes de qualquer experiência - mergulha suasraízes nos procedimentos definidos pelaCrítica da razão pura.

Kant e a revolução metodológica do criticismo

A despeito das acusações de formalismo geralmente feitas,desde Hegel, ao procedimento “puro” da crítica criticista, é bom

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322 OS l-VNDAMHNTOS DA ORD EM JURÍD ICA

notar que Kant nunca deixou de se interrogar sobre a inserçãodas exigências éticas racionais nas instituições jurídicas. Muito pelo contrário, é no direito que a crítica criticista, decerto oriunda da “primeira idéia de Copérnico”SÍ, encontra sua formulação definitiva utilizando o vocabulário e a sintaxe dos juris-consultos. li partindo do direito dos juristas que Kant enuncia a

problemática crítica a partir da qual estabelecerá, na sua Doutrina do direito, as fundações puras da ordem jurídica. A exem-

plaridade desse procedimento é tão forte que, para renovan as posições kantianas, é impossível não ter em mente seu significado filosófico.

“Os jurisconsultos”, escreve Kant, “[...] distinguem numacausa a questão de direito(quid juris?) e a questão de fato(quid

facti?) e, como exigem de cadá uma delas uma prova, chamamdededução à primeira, aquela que deve demonstrar o direito oua legitimidade da pretensão,”86A questãoquid facti? m o podeconduzir a “uma opinião séria” na medida em que muitas vezesatribuímos à experiência um “significado imaginário”*1. Somentea questãoquid juris? enuncia a problemática filosófica da possibilidade. Ora, essa problemática tem um alcance geral: assimcomo a crítica enuncia a questão de saber como a física é possível, assim também ela se pergunta como a ação reta e o direitosão possíveis, isto é, pensáveis enquanto ação moral e ordem

jurídica. Essas questões implicam evidentemente a rejeição da philosophiaprima, isto é, da metafísica tradicional que, por nuncater sabido enunciar a questão de sua possibilidade intrínseca88,

caiu no dogmatismo. Ora, o procedimento criticista, enquanto problemática da possibilidade, enuncia um problema de constituição: é preciso encontrar o solo (Grund ) em que se enraízamtanto o mundo e nossos juízos sobre o mundo (ponto de vistaespeculativo), como nossa ação e as regras que a ordenam (ponto

85. Criiii/m' de Io raísi»i pin e, p. 14.86. //)«/., p. 100.87. Ib id ., p. 578, n. 10.88. Pro légomèn esà toule m éia plm iq ue futu re, trad. Gibelin, Vrin, 1967,

p. 9.

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UM NORMA TIVISMO CRÍTICO 323

de vista prático). Em ambos os casos é preciso saber quais sãoos instrumentos e os cânones de sua construção. Para Kant, esse

movimento de constituição não só escapa do impasse da metafísica tradicional ou da ciência pré-copemicana que lhe corres ponde, mas responde ao problema dst'fundação remetendo aoeu penso (desde que não se veja nele umares cogitans mas que sejaexpresso em termos de método através de suas regras, seus esquemas, suas categorias, seus cânones). A legalidade do espírito,no uso especulativo e no uso prático da razão, permite a construção dos juízos sintéticos. Assim, proceder à elucidação da estrutura constituinte da razão eqüivale a pensar do ponto,de vistatranscendental89.

A força filosófica de tal procedimento está em unir à problemática da possibilidade a problemática da legitimidade. E oque Kant explica extrairtdo mais uma vez dos jurisconsultos, que procuram fornecer a prova exigida pela “questão de direito” num processo, uma denominação e uma forma semântica: adedução dos juristas (eis o nome) “deve demonstrar o direito ou alegitimidade da pretensão” alegada pelo pleiteante (eis o sentido). Comefeito, a dedução dos jurisconsultos não é uma demonstração queopera segundo a via lógica da não-contradição e da necessidade;ela estabelece a conformidade de uma reivindicação, isto é, seufundamento normativo, sua legitimidade. Em vez de uma lógicaque opera, segundo a via causai, por meio de esquemas reduto-res, ela procura o critério de validade de uma pretensão.

O “tratado do método” que aCrítica da razão pura é tem,nocorpus kantiano, um caráter definitivo: estabelece que a crítica é necessária para a doutrina ( Lehre). Assim a Metafísica dos costumes, que engloba a Doutrina do direito e a Doutrina da virtude, é o sistema90que deve seguir o passo crítico da ra

89. “Chanio de transcendental todo conhecimento que, em geral, ocupa-se, não dos ob jetos, mas de nossa maneira de conhecer os objetos supondo-se que esse modo de conhecimento seja possível a p r io r i' . Critique de la raison purc, p. 56.

90. Na Crítica da razão pura, Kant define a arquitetônica como a arte dos sistemas: “Entendo por sistema a unidade de diversos conhecim entos sob um a-idéia«(p. 558) e esclarece que “a unidade sistemática é o que*converte o

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324 OS FUNDA MENT OS DA ORDEM JURÍDICA

zão91. Ela não se apresenta como uma crítica da razão prática

mas só é pensável graças às aquisições da crítica. É uma doutrintranscendental, isto é, uma “ciência” no sentido filosófico do termo, à qual a arquitetônica da razão purajçonferea priori umaunidade sob o “conceito racional da forma de um todo”” .

É por isso que o grande ensinamento da Doutrina do direito não é, como se disse, substituir o direito natural por umdireito racional, mas pôr em evidência, com uma “dedução transcendental”, os “primeiros princípios metafísicos” da ciênciafilosófica do direito. Em outras palavras, sua função é lançarluz sobre os princípios purosa priori de qualquer ordem jurídica positiva. Portanto, é importante fazer a diferença entre oque éde direito (quid sit jur is) e é dito, num determinado caso,

pelo juiz no tribunal, consoante o direito positivo estabelecidoe em vigorhic et nunc93, e o que constitui a juridicidade de qualquer ordem de direito positivo, isto é, o que indica sua possibilidade e sua legitimidade. Dessas premissas metodológicas decorre que a verdadeira ciência do direito não é, como se costum

pensar hoje, depois das posturas positivistas, o conhecimentodescritivo, mesmo que extremamente acurado e detalhado, doconjunto das regras jurídicas - constitucionais, legislativas einfralegislativas - de um sistema de direito positivo. A verdadeira ciência do direito é a ciência filosófica que fundamenta odireito em: princípiosa priori-, é uma ciência indissoluvelmentecrítica e normativa.

A Rechtslehree a dedução transcendental dos conceitos do direito

Aplicando a metodologia criticista elaborada naCritica da razão pura, Kant, em Doutrina do direito, submete os con

conhecimerito vulgar em ciência”. Em contraposição a uma rapsódia que não passa de um agregado desordenado, o sistema é um todo orgânico em que os diversos elementos estão, não justapostos, mas “articulados” entre si.

91. Critique de la raison pu re, Prefácio, p. 79.92. Ibid., p. 558. 93 .D óctr in edu droit,p . 103.

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UM NORMA TI V1SM0 CRITICO 325

certos do direito positivo (por exemplo, os conceitos de proprie-

dade, de contrato, de usucapião, de empréstimo...) ao tribunalda crítica. A “dedução transcendental’'desses conceitos desve-la-lhes a condição de inteligibilidade, ou seja, a exigência que,imanente ao poder prático da razão, tem, na ordem jurídica positiva, valor de princípio regulador puro ea priori.

Acompanhemos a análise de Kant sucessivamente no direito privado, no direito público e no direito cosmopolítico.

Nodireito privado, o exemplo chave é o conceito domeu e doteu94.Definindo-se o direito domeum juris como a possibilida

de que tenho de fazer uso de um objeto exterior a meu arbítrio95,Kant lembra que a idéia deres nullius é juridicamente impossível96por ser logicamente impensável: com efeito, é contraditória em si na medida exata em que significaria uma restrição douso que a liberdade pode fazer das coisas.

Dito isso, resta fundar em sua possibilidade esse direito deuso que define a posse. Para tanto, convém distinguir a posse sensível da posse inteligível. A posse sensível é a detenção deuma coisa: este lápis ou esta rosa na minha mão. É uma posseempírica, subjetiva e contingente, portanto, fenomênica. Ensejauma constatação de fato: possuo neste instante, de maneira sensível, este lápis que seguro na mão. Se alguém pegar esse lápise dispuser dele à minha revelia colocando-o no bolso, ele melesa: essa é uma proposição analítica que, simplesmente tauto-

lógica, nada acrescenta à idéia de posse. Não surge nenhum pro blema. - Em compensação, a posse inteligível “pode”, diz Kant,“servir de problema para a razão”. Ela é tal que possuo esselivro ou essa jóia, não porque atualmente seja seu detentor ouusuário, masmesmo que eu não seja neste instante seu detentorfenomenalmente. Para além do espaço e do tempo, a posseinteligível não é, diz Kant, “posse no fenômeno”{possessio

94. Ib id., § 1, p. 119.95. Ib id ., § 1. p. 119.96. Ib id ., § 2, p. 120.

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326 OS FUNDAMENTOS DA ORDEM JURÍDICA

phticiiniiiciKin), m ; i s noiwicnoií". CorlüHlo,d a s ó poilc.exprimir-sc por um conceito racional que implica um juízo sintético: uma coisa c minha sc. pelo liso que um outro lhe desse,ele me lesaria ou entào: para que uma coisa seja minha, Ixislaque eu seja seu dono sem lesar ninguém"*.

Todo o problema está nessa questão: como esse juizo sintético ó possível? A essa problemática do possível, Kant responde explicitamente comdedução trunscendentul do direito dc posse que descobre sua condição de inteligibilidade. A fonte do direi

to de posse é uma exigência imanente à razão: “um postuladoda razão prática” a que se pode chamar, diz Kant, uma “lei per-missiva”',,. Essa lei é permissiva na medida exata em que “nosdá uma faculdade que não poderíamos extrair apenas dos conceitos do direito em geral”;; compreenda-se que ela nos dá afaculdade de impor a todos os outros aobrigação de se abster deusar objetos que são nossos. Essa lei, permissiva para minvim- põe-se a qualquer outro como obrigacional; e vice-versa: Porconseguinte, o direito de posse não vem do fato do uso: jus facto non oritur. Só pode ser construído a partir dalei prática da razão que impõe a cada qual, como imperativo categórico, o dever (aobrigação) de não lesar outrem em sua posse, assim comoimpõe, reciprocamente, a outrem não lesar ninguém em sua posse. Portanto, o direito de posse enraíza-se necessariamentee a priori no postulado jurídico da razão prática que é “a pres

suposição de sua possibilidade”"10. Essedictamem rationism tem valor de princípio puro102. É esta a fonte principiai, ou a fonte“pura” do direito de posse. A “revolução copernicana” que preside à dedução transcendental do direito de posse leva à suacondição de possibilidade, que é sua condição de inteligibili-

97. Ibid.. § 6, pp. 123 e 124.

98. “O meum ju ris é aquilo a que estou tão ligado que o uso que um outro llic desse sem minha permissão me lesaria”(ibid., § I, p. 119).

99. Ib id ., § 2, p. 121,100. Ib id ., § 6, p. 124.\ 0 \ . l b id„ §6, p. 124.102 Ib id § 2 p 121

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UM NORMA TI VISMO CRÍTICO 327

iI;kíc:d u suj;i. “um puro conceito prático racional do arbítrio sobleis da liberdade”1"’.

0 estudo de um segundo exemplo - pois, enfim, o direito

de posse não é o todo do direito privado - leva Kant às mesmasconclusões, ü filósofo - que distingue de maneira pertinente odireito de posse como “condição subjetiva da possibilidade dousò em geral”, c o direito de propriedade que, definindo ummeu e um teu exteriores, só é possível “sob um poder legislativo

público” - é levado a examinar o que é, precisamente no “estadocivil” que é a sede de tal poder, em que consiste o ato jurídicodo contrato. A análise do contrato também põe em evidênciaas fontes puras do direito, O importante, na matéria, observa

Kant, não é estabelecer uma tipologia dos contratos1". Tampoucoé reconhecer em todo contrato os dois atos jurídicos preliminares, que são aoferta e oconsentimento, e os dois atos jurídicosconstitutivos, que são a promessa e aaceitação que emanam das partes105. Nem mesmo é indagar-se, como Pufendorf ou Men-delssohn, “por que devo manter minha promessa?”1 ; ao formularem esse “por quê?”, os jurisconsultos foram conduzidosa uma aporia jurídica, pois viram nisso a questão?ética dodever rrçoral que a consciência impõe a cada qual. A dificulda

de do dontrato não está aí. Segundo Kant, a dificuldade estáem compreender como as duas vontades dos dois contratantesnão se apresentam como uma vontade particular que promete,seguida, no instante subseqüente, de uma outra vontade particular que aceita, mas sim,simultaneamente, como “a vontadeunificada de ambos”'07. O contrato não se origina portanto dosatos sucessivos de duas vontades, mas da vontade comum e concomitante dos dois co-contratantes108. Isso quer dizer que o contrato, na medida em que é uma norma jurídica que impõe obri

103. Ib id ., § 5, p. 123.104. Ib id ., § 31, p. 165.105. Ib id ., § 19, p. 150.106. Ib id ., § 19, Comentário, p. 151.107. Ib id ., § 19, p. 150.108. Ib id ., § 19, Comentário, p. 151.

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gações recíprocas aos co-contratantes, é “uma relação pumente intelectual”"" que não se confunde com o ato de criaçdessa norma. Se o ato de celebrar o contrato - que é uma oração positiva da ordem doSein - insere-se no tempo, a juridi-cidade da norma contratual, que é da ordem doSollen, não seestabelece segundo a forma do tempo: é despojada de todo pecto fenomênico - é por isso que as formalidades exterior por ocasião de sua conclusão, por exemplo, apertar a mãoquebrar uma palha*"0, podem acompanhar o contrato, sementanto indicar sua natureza ou sua fonte. Portanto, como exemplo da possessio noumenon, apenas a dedução transcendental pode eliminar a dificuldade e tornar compreensívecaráter inteligível da norma contratual: apenas ela mostra qna origem do contrato não se encontram duas vontades paculares situadashic et nunc, portanto, sensíveis, mas “a vontade enquanto faculdade legisladora da razão”111, que não é nempírica nem subjetiva. Apenas a idealidade transcendenque, pura èa priori, pertence, como sua própria função, à estrutura da razão, torna possível a normatividade do contrato. Enão nasce do arbítrio individual. Foi por terem colocado o luntarismo e o consensualismo sob o signo da subjetividaempírica que os jurisconsultos foram levados, segundo Kanum erro. A origem do contrato é sua base racional, isto élegalidade pura que unificaa priori todas as vontades e possui,fora do âmbito sensível do tempo, a forma do universal.

De maneira geral, em todos os conceitos jurídicos lidamcom um juízo sintético que se funda na legislação constitute organizadora da razão. Portanto, é possível a extrapolaçsão as exigênciasa priori da razão pura prática que constituema base primordial dos conceitos do direito em geral. !

3 2 8 OS FUND AME NTOS DA ORD EM JURÍDICA

109. Ib id., § 19, Comentário, p. 151.

110. /W ., § 19, p. 150. j í * Alusão a um costume muito antigo: o comprador, ou o signatário de um contrato, recebia uma palha como sinal material dojselamento de um acordo. Quebrar a palha significava romper o acordo. (N. dó R.)

U l. Ibid., § 19, p. 151.

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UM NORMATIVISMO CRÍTICO 32 9

No entanto, subsiste uma dificuldade, cujo exame itnpõe

a Kant a passagem para odireito público.Precisemos essa dificuldade. A tal ponto os princípios racionaisa priori são “a lei permissiva” do direito que Kant podedefinir o direito como “a conseqüência imediata do postuladoda razão prática”"2. Pelo menos o direito é assim, precisa ele,em sua possibilidade. Ora, Kant sabe bem que o-direito positivocaracteriza-se por suaefetividade. Foi por isso que, já na Introdução da Rechtslehre, ele declarou que o critério do direito é acoação"3. Isso eqüivale a declarar precisamente que o direito enraizado no postulado jurídico da razão prática é apenas possi bilidade jurídica, “presunção” ou virtualidade de direito, masainda não um “direito efetivo”"4que gera efeitos jurídicos. Da possibilidade à efetividade - ou ainda, na terminologia kantiana,do “direito provisório” ao “direito peremptório” -, há umtertium quid que é, justamente, a coação. Eis a dificuldade: é precisocompreender como a coação não contradiz no direito a lei universal da liberdade"5. Este é o apogeu da revolução coperniquja.

O estudo do contrato que Kant propõe mostra como surgea necessidade dacoação. O contrato sinalagmàtico concluídoentre duas partes só é possível, disse Kant, pela vontade transcen-dentalmente unificada das duas. Mas essa possibilidade jurídica não traz consigo nenhuma garantia: a empiricidade das vontades particulares sempre pode ressurgir e, por exemplo, o pro-mitéftte não manter sua promessa. Para que a presunção jurídicase efetue em “direito peremptório”, é preciso, especifica Kant,não duas, mas três partes: a que promete, a queaceita e a quecauciona"6. Essa terceira “parte”, no estado civil em que, comoKant disse, o direito provisório se torna peremptório, é o próprio poder da lei. Sob a lei pública e graças a ela, aquele que aceitadecerto não ganha nada “do ponto de vista do objeto do contra

112. Ib id ., § 14, p. 139.113. Ib id ., § D, p. 105.114. Ib id., § 9, pp. 131-2115. Ib id ., § B, p. 104.T16./Wrf.,§31,p. 164.

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330 OS l-UNDAMENTOS DA ORDEM JURÍDICA

to”, mas “ganha um meio dc coação para obter o que deve ser

seu”"’. Portanto, o que Kant chama aqui de “caução" é, antes,a garantia que o Estado dá ao contrato coagindo os contratantes a observar os termos da convenção que eles concluíram.

A natureza da coação pode aparecer assim claramente na passagem da posse para a propriedade. Quando a comunhãooriginária do solo(convmmio fundi originaria), par dares nul- lius"*, è rompida pela ocupação"'1, o título da aquisição não reside na vontade individual contingente daquele que ocupa tal

lugar12'1. A fonte do ato jurídico da ocupação está, como todoconceito dc direito, na razão: sua fonte, aqui, está na Idéia deuma vontade onilateral(ein allseitiger Wille)'2', que implica oacordo racional puro do livre-arbítrio de cada qual com a liberdade de qualquer outro. Ora, “o estado de uma vontade efetivamente unificada de maneira universal com vistas a uma legislação, é”, diz Kant, “o estado civil”122. Portanto, “só há aquisição peremptória numa Constituição civil”121. Em outras palavras, aaquisição de um bem requer a garantia do direito público, É apenas no estado civil que a virtuàlidade de juridicidade do direito privado torna-se direito efetivo! Para isso é preciso que se exerça a coaçãolegal. V

Neste ponto, impõem-se dois comentários. Primeiro, a.sub-sunção do direito privado do estado de natureza sob o direito público do estado civil indica a inversão da tese jusnaturalista.

É essa a primeira conseqüência da revolução copernicana definida pela metodologia da primeiraCrítica: o direito natural jánão é o modelo paradigmático do direito positivo do Estado.Ao contrário, é preciso que o Estado, pela mediação da lei, soba Constituição civil, dê ao direito de natureza, provendo-o da cóa-

117. Ib id ., § 31 , p. 164.

118. Ib id ., § 13, p. 138.119. Ib id ., § 14, p. 139.120. Nenhu ma vontade particular empírica pode impor obrigação.121. Doutr in a do dir eito, § 14, p. 140.122 .I b id ., §15, p. 140.123 Ibid §15 p 140

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UM NORMA TI VISMO CRÍTICO 331

ção legal, seu selo de autenticidade. Mas isso não significa queKant se incline para o positivismo jurídico vindouro. Pois - eeste é o segundo comentário que se impõe - a entrada dos homens no estado civil é, aos olhos de Kant, o imperativo categórico do político121. A segunda conseqüência da revolução coper-nicana é portanto que a coação, longe de ser uma manifestaçãoempírica e subjetiva de força ou de violência, exprime ao contrário, em sua forma legal, a obrigação vinculada ao imperativo puro do político: ela se opõe racionalmente a tudo o que obstaa liberdade125: como tal, é transcendentalmente fundada.

A dificuldade foi, portanto, eliminada. Kant respondeu nãoapenas à problemática da possibilidade do direito, mas tam

bém à problemática de sualegitimidade. Dizendo, como faz naCrítica da razão pura, que só há direito e liberdade sob umaConstituição civil126, declarando, como faz emTeoria e prática, que só há direito peremptório pela mediação da lei civil127eda coação vinculada à sua obrigatoriedade, Kant dava a entender que a fonte do valor ,e da efetividade do direito era racionale pura. Sabemos, graças às análises da Doutrina do direito, que, pela coação legal e por causa de sua fundação transcendentala priori, o direito adquire sua efetividade jurídica.

A dedução transcendental do direito, até em sua figura cos-mopolítica, remonta às potênciasa priori da razão: é nelas queuma “sociedade das nações” encontra suas condições de existência e seu valor jurídico. " •

A idéia de umaSociedade das nações (Võlkerbund) pro posta por Kant pode inicialmente parecer banal no final do século XVIII, quando jurisíonsultos e filósofos falam do direitodas gentes como da condição de uma comunidade cultural eaxíológica nova entre os homens de boa vontade. Mas, examinando melhor a questão, Kant, que trata desse problema não do ponto de vista da moral, mas apenas do ponto de vista do direito,

124. Cf. Ibid., §42, p. 188.125. Ib id ., § D, p. 105.126.Critique de la raison pure, p. 264.127. Théorie et pratiqu e, sec.-U,-p. 36.

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332 OS FUNDAMENTO S DA ORDEM JURÍDIC

adota, de acordo com as regras de seu método criticista, u posição original. Indaga-se sobre as condições de uma ligacífica das nações do mundo, pois ela lhe parece ser uma pnecessária do sistema unitário de sua filosofia.

Para entender a idéia, é preciso retornar ao texto de 1intitulado Idéia de uma história universal de um ponto de vist cosmopolítico, no qual expressava seu desejo de “uma gransociedade das nações (Foedus Amphictyonum) capaz de administrar o direito de modo universal”128e que atendesse, fosquais fossem as vicissitudes da história, ao “vasto desígni

Natureza”. Contra todo empirismo historicista, Kant concsua idéia da Sociedade das Nações apenas no âmbito da telogia natural129, de sorte que seja possível entrever o que sehumanidade quando ela tiver realizado suas disposições inentes130. No entanto, nessa visão teleológica da história, jinsinua uma dimensão jurídica. “A sociedade civil que adnistra o direito de maneira universal”'^será a realização ú

128. Kànt, “Idée d’une histoire universclle du point de vue cosmopoli tique”, in Philo sophie de I'Histoire, trad. Piobetta, Aubier, 1947, pp. 70 c 66. O vocabulário utilizado por Kant não deixa de lembrar a idéia federativa que encontramos em Locke (Traitê du gouvernement civil, § 146) e em Mon- tesquieu(L 'espritdes lois, li v. X , cap. I e II), os quais, por sua vez, evocam os An fictiones da Grécia antiga...

129. “No curso absurdo das coisas humanas”, oculta-se, diz Kant, “um intenção da Natureza”,ibid., p. 60.

130. Ib id., p. 61. Deve-se notar nisso, é clarò, uma visão nova da história, que aproxima o pensamento de Kant da “filosofia da história” de Voltai- re. Longe de ficar apenas ligada ao passado, a inteligibilidade histórica deve segundo Kant e também segundo Voltaire, ligar-se ao devir da humanidade, portanto, a seu por-vir, na medida em que, a partir das significações e das leis decifradas no passado e no presente, é possível imaginar seus traços gerais Estes constituem o esboço da “marcha das coisas” sobre a qual, em 1786 em Qu 'est-ce que s 'orienter dan s la pen sée ?, Kant dirá claramente que ela é a marcha do irracional rumo ao racional, portanto, também, a marcha da su

je ição da inteligência rumo à sua libertação (o que é, a seus olhos, o se ntido da filosofia da Aufklãrung).

Mas a “filosofia da história” dc Kant nada tem de um prelúdio historicista. É cm termos jurídicos - prccisamcntc na busca de um direito intcmacioiv.il - qu Kant compreende sua idéia de uma história universal.

131. Ibid., p. 66.

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ma, ainda que à custa de artifícios, do vasto plano da Natureza.Kant vê nela “o problema essencial para a espécie humana”, “omais difícil” e também “aquele que será resolvido por último”" ’.Pelo menos é “aquele que a natureza obriga o homem a resolver”: ou seja, que, de acordo com o desígnio supremo da natureza, depois de muitas mudanças e muitas revoluções, “um Estadocosmopolítico chegará um dia a se estabelecer”1”; ele será “o centro em que se desenvolverão as disposições primitivas da espécie luimana”151.

Portanto, a idéia de um direito internacional próprio de umaSociedade das Nações não é para Kant, em 1784, um sonho devisionário: ela reflete o idealismo que caracteriza sua concepção finalista da história.

Mas a Revolução Francesa aconteceu, grandiosa e ao mesmo tempo inquietante: não terá ela entravado a “marcha das coisas” rumo à sociedade civil das nações? Em 1790, Kant repeteque o homem é o fim último da natureza e que, considerando-

se a história em sua totalidade, “à única condição formal sob aqual a natureza pode alcançar [o] fim fina! que lhe é próprio” éuma Constituição civil e internacional1'5. A hipótese da teleolo-gia natural, apesar das contradições e dos tormentos que agitama história, conserva sua sublimidade: os distúrbios e as guerrasrevólücionárias são, no que se refere aos fins da natureza, apenas peripécias dialéticas. O idealismo transcendental permite,assim, ver que as utopias e os ímpetos românticos dos projetosfederalistas, de Grotius ao abade de Saint-Pierre ou de Vattel aK. G. Gottlob136, passaram ao largo dos verdadeiros problemas

UM NORMA TI VIS MO CRÍTICO ; 333

132. Ib id ., p. 67.133. Ibid., p. 76.134. Ib id., p. 76.135. Critique de la facu llé de juger , § 83.136. Além do Proje t depaix perpétu elle do abade de Saint-Pierre (1713),

Kant conhecia grande quantidade de textos mais ou menos jurídicos que tratavam do prohlema do direito internacional: por exemplo. Zoucli. ./uris ct, ju

diei Jtvitilix . .s iw jitrix i iilcr gcii lcs c IJuacstioimmd c c i h / c i i i cx/il icmio (Oxford, 1650, reeditado cm 1659, 1661 e traduzido para o alemão em I(>(>(>): cm 175M, o poeta vou Palthen preconizava, em seuP r o j v k l nines immerw ae hrenden

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334 OS FUNDAMENTOS DA ORDE M JURÍDICA

porque todos padecem de uma carência fundamental:não têm fundamento filosófico.

Por isso Kant aplica seus esforços a dar à sua concepção daSociedade das Nações uma fundação radical, situando-a no seiode uma filosofia cuja unidade arquitetônica toma-se, no decorrerda obra, cada vez mais densa.Teoria e prática, em 1793, nãodeixa dúvidas sobre esse ponto: “o Estado universal dos povos”regido por uma Constituição cosmopolita(weltbürgerliche) é daordem doSollenu’; ela traduz uma exigência normativaa priori da razão e, como tal, impõe uma obrigação. A partir daí, deli-neia-se na idéia kantiana da Sociedade;.das Nações uma dimensão transcendental que lhe confere, com sua fundação filosófica,densidade jurídica: “é uma hipótese universalmente filantrópica (que) abre caminho para umaconstituição cosmopolítica que, pôr sua vez, funda umdireito das gentes, único estado emque as disposições da humanidade que tornam nossa espéciedigna de ser amada podem desenvolver-se de modo conveniente”138. A Sociedade das Nações não obedece, pois, a um imperativo problemático e condicional, mas ao imperativo categórico,sem a observância do qual o homem não seria um fim mas umfeixe de meios. Para além do direito nacional, o direito internacional deve refletir, como o primeiro, essa “simples Idéia darazão” que é o princípio puro do pactum unionis civilis135.Como qualquer Constituição civil, a Cidade universal é um dever incondicionado140. s-

Friedens in Euro pa, a criação de um “parlamento ou tribunal geral -cujas decisões todos os Estados europeus se comprometeriam a respeitar”, espécie dc corte internacional de justiça que estatuiria baseando no direito natural ou num dircilo positivo das gentes. Citemos também o De ju re natu ra e et gen- tii im de Raclicl, que data de 1676 o, mais perto de Kant, o tratado de K. G. Gottlob, Europà ische Volkerrecht (1787); Schindler,Was ist den grossen Fuersten zu ralen um das Wohl und Glueck der Laenderzu Befoerdem (Viena, 1788); J. A. Schlettwein, Die Wichtigste Angelenheitfu er Europa , oder Sys tem

eine sfesten Friedens unter den europaeishen Staaten (1791).137. Théorie et pra tiqu e, p. 56.138. Ibid ., sec. III, n. 51. í ’139. Ibid ., sec. 11, p. 39; cf. Rejlex ionen , n? 7734, t. XIX, in Édition aca-

dém iquede Berlin.liO. Ib id ., p. 29. r .

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UM NORMA TIV1SM0 CRÍTICO 335

Em 1795, 0Ensaio sobre a paz perpétua mostra por quee como o imperativo categórico do dever se impõe aos Estados bem como aos indivíduos. A partir de então, a paz do mundo éa obrigação formal que traduz a disponibilidade essencial graças à qual a humanidade será o que deve ser: em outras palavras, a paz perpétua apresenta-se como o desenvolvimento sintético da lei transcendental da razão. A idéia é difícil. Não foi bem compreendida. No entanto, insistindo na necessidade racional pura que preside à instituição de uma vasta sociedade federativa dos povos, Kant abalava a velha temática jusnaturalistada guerra e conferia à idéia dorepublicanismo141uma estaturaconfirmada pela Doutrina do direito.

E com um silogismo que Kant estabelece, em 1796, a necessidade do direito internacional público. Os Estados, em suasrelações exteriores recíprocas, relacionam-se como “selvagenssem leis”, portanto, por natureza, estão num estado não-jurídi-co ameaçado de guerra. Ora, a razão moralmente prática enuncia em nós seu veto irresistível: “não deve haver guerra”, nementre indivíduos no estado de natureza, nem entre Estados. Portanto, é necessária “uma aliança entre os povos” (Võlkerbund )conforme a Idéia originária do contrato social.

141. Nos op úsculo s anteriores, Kant confundia num mesmo horizonte a moral e o direito. No Ensa io .de 1795, privilegia o ponto de vista do dire ito' . mesm o os demônios - diz ele desde que dotados de inteligência, podem elevar-se ao nível do direito público, portanto, forjar a Constituição civil do Estado e trabalhar para o Estado das Nações. Com efeito, a natureza quer de “maneira irresistível” o reinado do direito: mais precisamente, o que a natureza quer é o re pub lican ismo. N o sistema kantiano, o conceito de Constituição: republicana passa a mediar a idéia de paz perpétua que até então parecia ser a esperança ligada ao estabelecimento da civ it as genl ium. Mas, para Kant, não se poderia pensar num super-Estado com a envergadura de um Estado imundial (Weltrepubliky: um Estado mundial não conseguiria atender às exigên cia s da Constituição republicana. Esta define uma ordem pública estatal, uma ordem interna que nada tem a dizer slòbre as relações interestatais. Generalizar o republicanismo nada modifica em sua essência: portanto, um super-Estado que englobasse os diversos Estados, impondo a autoridade de uma legislação única, seria uma contradição pois faria desaparecer a liberdade e a soberania dos diversos Estados que ele englobaria. — — 1

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336 OS FUNDAMENTOS DA ORDEM JURÍDICA

No entanto, a passagem do direito estatal ao direito inte-restatal não é totalmente idêntica à passagem do direito privadoao direito civil: esta é analítica e irrevogável sem de fato afetara verdade do homem; aquela é sintética e se apresenta comoindicador do destino da humanidade. Com efeito, a leia priori que ordena sair do estado de natureza para entrar no estado civil142é o imperativo categórico do político, cujo princípio é analiti-camente contido no conceito do direito na medida em que o

justo se opõe à violência143. Quanto à passagem do direito estatal ao direito interestatal, ela se dá segundo uma síntese na quala progressiva ampliação do direito dá azo a revogações e a re petições; á síntese não se dá automaticamente e não é infinita.A União dos Estados só se dá por “analogia” com a união dosindivíduos num Estado144.

É por isso que nenhum Estado jamais poderá obrigar osoutros Estados a formar com ele um Estado dos Estados. Adiferença entre uma república mundial e uma federação dos povos encontra aqui seu fundamento. Embora a impossibilidadede um super-Estado - impensável no plano da Providência, quemantém pelo mundo afora diferenças èifespecificidades entreos povos - esteja ligada à condição material de uma extensãogrande demais e da insuprimível diversidade na potência que eleconstituiria, ela decorre sobretudo, de modo essencial, da pró

pria natureza do direito internacional. Este não é, como pensava Grotius, apenas “mais extenso que o civil”, pois, de um lado,o que explica sua natureza é sua geração e, do outro, jo que justifica sua expressão é sua constituição sintética. O direito internacional procede dos esforços realizados por um Congresso Permanente dos Estados que, substituindo o caminho da guerra por procedimentos arbitrais, “aproxima-se continuamente” daIdéia da paz eterna, que é “o objetivo último de todo o direitodas gentes”145. Assim, para compreender o que é, segundo Kant,

142. Doclrine du dro it, § 41, p. 188.143. Ib id ., § 42, p. 189.144. Ib id., § 61, p. 233.145 . : / t e / . ,§61 ,p .234 .

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UM NORMATIVISMO CRÍTICO 337

uma Sociedade das Nações estabelecida sobre a base de umafederação internacional, é necessário recorrer ao olhar críticoque faz do método algo muito diferente de um conjunto de regras metodológicas: ou seja, uma busca das estruturas princi- piaisa priori.

Uma comunidade pacífica completa de todos os povos ca pazes de travar entre si relações efetivas é umaidéia da razão. Como tal, não tem valor objetivo; tampouco é um modelo trans

cendente, espécie de arquétipo do mundo inteligível. É regida por um procedimento estrutural que subordina e integra hierarquicamente seus elementos à totalidade. Insere-se portanto na perspectiva formal do idealismo transcendental caracterizado pela função reguladora das Idéias da razão. Por conseguinte, ésofistico pensar que a Idéia de uma Liga de Paz possa ter umuso constitutivo. Ela dirige o esforço racional dos homeiiS parao objetivo que a Natureza lhes designou. A Idéia da paz é “evidentemente irrealizável”, sem que haja nessa afirmação umaconfissão de fracasso ou de ceticismo; a Idéia de paz não podetransformar-se em realidade: ela orienta uma prática, é um guia,o fio de Ariadne de uma busca que, numa tarefa infinita, requerum esforço infinito... Portanto, embora à Idéia da paz não possacorresponder nenhum ser fenomênico, ela preside, no horizonte numênico, como uma lei incondicionada, à federação dos

povos e, como tal, tem algo de sagrado e de “irresistível”146.Como o direito cosmopolítico é uma Idéia pura da razão,ele “deve ser incluído rio número das Idéias ao qual nenhumobjeto pode ser dado na experiência como adequado”147: comotal, mostra que “uma constituição jurídica perfeita entre os homens é a própria coisa em si”. “A associação jurídica dos homenssob leis públicas em geral”148não é um “fato” ou “um objeto nofenômeno”. Tem uma estatura numêniea. É um Ideala priori,uiria exigência pura c incondicional. 1’ailicipa da sublimidademetajurídica que pertence à normalividadc Iraiisceiuk-iilal da

146. Ib id ., Comentários explicativos, p. 255.

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338 OS FUND AMEN TOS DA ORD EM JURÍDICA

razão1''1. Enquanto Idéia, é um princípio regulador, mas não constitutivo do direito dos homens, e “certamente não nos equivocamos ao aceitar a máxima de por ela trabalhar sem descanso, pois ela é um dever”151'. À luz numênica da Idéia, a sociedade pacífica dos povos não é uma esperança banal.

No final das análises kantianas, apreendemos o significadodo método crítico: graças a ele, o filósofo não se interroga nemsobre o que é o direito nem sobre seu conteúdo; a questãoquid

jus? carece de pertinência e de profundidade. Ele se empenhaem compreender o processo de produção do direito positivo e,retornando à sua fonte pura, na medida em que ela é sua condição de possibilidade e de legitimidade, desvela seuestatuto ideal. Portanto, uma ordem de direito positivo não é nem um pouco“determinada”, isto é, deduzida, segundo a lógica necessitante,de axiomas ou de princípios originários. O direito privado, odireito público e o direito cosmopolítico integram-se a ,um sistema, cuja organização arquitetônica perfeitamente unitária éregida pelas estruturas imanentes à razão e que, em sua formaa priori, são irredutíveis. A revolução copernicana permite com preender que a inteligibilidade do direito depende da lógicatranscendental. Nenhum conceito jurídico provém de condiçõesempíricas: o direito não encontra sua fonte, antes do direito, naexperiência regida pelas leis da natureza, nem, para além dodireito, num paradigma transcendente. A juridicidade do direito reside em seu princípio interno de possibilidade, isto é, nasleis da liberdade próprias da razão pura prática. O direito, noentanto, não é uma obrigação ética: o que a razão funda é sua

juridicidade, pois a coexistência de seres livres é inconcebívelsem ocorpus de regras que vincula a comunidade das liberdades exteriores a uma lei universal. À razão necessária do direito é portanto sua fundação imanente; é indissociável do poderde constituição e de organização da razão. Assim o direito só éinteligível reportado ao horizonte transcendental de sentido e

de valor que, na medida em que indica a exigência puraa prio-

149. ibid., Comentáriosexplicativos, p. 256.150. Ib id ., p. 256.

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UM NORMA TI VISMO CRÍTICO 339

ri da razão, o motiva, o constitui, o organiza e o legitima. Uma Idéia da razão imprime no direito uma exigência reguladora deordem e de sistematicidade. Por seu. papel regulador insubsti

tuível, indica, no nível transcendental, a pré-comprfènsao dodireito como corpo sistemático de regras. Indica também quenenhum sistema jurídico pode ter pretensão à completude na perspectiva crítica definida pela postura reflexiva: com efeito,não pode reivindicai- acabamento pois, neste, o pensamento, cristalizado na plenitude de um sistema fechado, voltaria a cair nasilusões de uma ontologia que, precisamente, a crítica denuncia.Um sistema jurídico é necessariamente um sistemaaberto, sempreinacabado, sempre em busca das disposições novas que

tendem para o horizonte de expectativa ou de esperança da Idéia.Portanto, a juridicidade do direito não desaparece num cons-trutivismo positivista nem num moralismo. Somente em razãode sua fundação transcendental é que o direito pode ter a tarefa detornar possível a coexistência sob a lei universal da liberdade151.

A filosofia do direito de Kant teve um estranho destino: enquanto Schopenhauer via nela “uma obra tão fraca” que considerava inútil combatê-la, enquanto Hegei multiplicava as recri-minações contra o formalismo kantiano e certos leitores ironizavam a obra de um velho cansado, as concepções jurídicas da Rechtslehre faziam escola: muitos juristas e filósofos enveredaram pelo caminho de um criticismo fundador. O papel regulador das Idéias, a forma sistêmica do edifício do direito positivo, a distinção entre o direito e a moral, a importância dos princípios da reflexão, a definição do direito comoSollen, a referência ao sujeito transcendental etc. foram algumas das temáticasherdadas, com maior ou menor fidelidade e maior ou menor exatidão doutrinai, por autores como Schmid, Maímon, B. Ehrard,Reinhard, mas também Schelling, Fichte, Feuerbach e outros.O legado kantiano, ainda que submetido a transposições oudeformações, estava garantido, Mas a refutação hegeliana, aomesmo tempo metodológica e doutrinária, e depois o crescimento das ciências sociais mergulharam-no na penumbra de onde,

151. Doctr in e du dro it , Introdução, §§ B e C, pp. 104-5.

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340 OS FUNDAM ENTOS DÁ ORDEM JURÍDICA

por uma releitura antimarxista e, sobretudo, anti-heideggeriana,tende a arrancar-lhe a filosofia contemporânea.

Ora, bem antes do atual “retorno a Kant” que se dedica a“desfetichizar” as idéias metafísicas, Kelsen avaliara o alcanceda revolução intelectual promovida por Kant em sua maneirade pensar o direito. Para o jurista vienense, voltar a Kant nãoconsiste numa repetição nem numa reilovação do procedimento crítiço; aproveitando o ensinamentõ; metodológico da críticacriticista, dá prosseguimento à sua investigação dos fundamentos e aprofunda a Rechtslehre numa Reine Rechtslehre.

.-Tlv

A Reine Rechtslehre;do método crítico à hipótese lógica transcendental da Urnorm

Toda a filosofia jurídica de Kelsen152é dominada por umaquestão de método. No prefácio da primeira edição daTeoria

pura do direito, expõe seu projeto de eláborar “uma ciência objetiva do direito” apoiada num postulado metodológico de “pureza”, cuja idéia tira de Kant: “ATeoria pura do direito, que é

uma teoria do direito positivo, portanto, da realidade jurídica,transpõe o princípio da lógica transcendental de Kant vendo no

152. A obra de H. Kelsen é muito volumosa; mas, do ponto de vista da filosofia do direito que aqui nos interessa, limitar-nos-emos a indicar os seguintes textos (em sua tradução francesa quando ela existe): 1932: La dêm o- crat ie. Sa nature, sa va leur, trad. Ch. Eisenmann, reedição com uma apresentação de Michel Troper, Economica, 1988; 1934:Théorie pu re du dro it, trad. Eisenmann, Dalloz, 1962, trad. Thevenaz, N euchâ tel, 1953, atualização, 1988 {Teoria pura do direito, Martins Fontes, São Paulo, 2000); 1945:General

Theory o f Law and State, Nova York (Teoria geral do direito e do Estado, Martins Fontes, São Paulo, 1998); 1953:Was ist Gerech tigkeit?,V iena; 1957: What is Justice? Justice, L aw a nd Po litics in lhe Mirro r o f Science, Los Angeles (Oque é justiça? , Martins Fontes, São Paulo, 2001); 1973: Essays in L egal

and Moral Ph ilosophy , Dordrecht, Boston; 1979 (póstumo): Allge m eine Theorie der Normen (Viena); 1987: um inédito de Kelsen a respeito das fontes kantianas, apresentado por R. Trèves, in D roit et socié té , n? 7, pp. 327-36. Para uma bibliografia completa das obras de Kelsen, remetemos aosCahiers

de philos oph ie poli tique et ju ri diq ue, n° XVII: La philoso phie poli tique de Kelsen , Caen, 1990.

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UM NORMA Tt VIS MO CRÍTICO 341

dever, noSollen, uma categoria das ciências sociais normativasem geral e da ciência do direito em particular.”15’

O fato de Kelsen não ter exposto um discurso sobre o método, importa pouco; o importante é que a preocupação metodológica em sua obra é tão constante que ele nem pensa emelucidá-la de uma vez por todas como preliminar operatório àsua filosofia. Para ele assim como para Kant o riiétodo não temvalor apenas instrumental; em sua doutrina, bem como na filo

sofia de Kant’54, a precedência dométodo é onipresença dométodo e já designa sua problemática filosófica: aquela cuja formulação Kant lhe indicou, ou seja, a questão da possibilidadè e davalidade do direito positivo. A problemática assim formuladaleva-o portanto a interrogar-se sobre a fonte originária pura, istoé, sqbi-e o princípio transcendental, do “direito positivo em geral,sem outra especificação”. A dedução transcendental dos juris-consultos, observada por Kant por sua exemplaridade, deve per-

153. H. Kelsen,Th éoriepure du droit, trad. Thevenaz, La Baconnière, Lausanne, 1953, p. 60.

154. Sobre as relações entre Kelsen e Kant, cf. Maury, “Observations sur les idées du P'. Kelsen”, in Revue crit iq ue de légis la tion et de ju ris prudence, 1929, pp. 527 ss.; Martyniak, “Le problème de I’unité du fondement de la théorie du droit de Kelsen”, Archives de philo sophie du dro it, 1937, pp. 166 ss.; M. V irally, “Le juriste et la Science du droit”, Revue du droit publique et

de la Science politique, 1964, pp. 591-611; S. Goyard-Fabre, “L’inspiration kantienne de Hans Kelsen”, Revu e de méta physiqite et de m ora/e, 1978, n? 2, pp. 204-33; Stanley Paulson, in D roit et Socié té , n? 7, LGDJ, 1987.

A bibliografia sobre Kelsen é muito extensa; iimitar-nos-emos aqui a mencionar alguns artigos em língua francesa: P. Amseiek, “Kelsen et les con- tradictioris du positiv ism e juridique”, Archives de p hilosophie du dro it , 1983, 28, pp. 271-82; N. Bobbio, “Kelsen et les sources du droit”, Archives de p h ilosophie du droit, 27, 1982, pp. 135-45; Ch. Eisenmann, “Sur la théorie kel- senienne du domaine de valité des normes juridiques", in Law, State and Inte r national Legal Order: Essays in Honor o f H ans Kelsen, Tennessee, 1964, pp. 59-73; S. Goyard-Fabre, “L’ídée d ’ovdre dans la théorie juridique de Kelsen” , in Cahiers de philosophie politique et juridiq ue, n? IX, pp. 25-41; O. Hõffe, “La théorie du droit de Kelsen est-elle positiviste?”,ibid., pp. 45-62; A. Renaut, “Kelsen et le problème de l’autonomie du droit”,ibid., pp. 9-21; M. Troper, “La pyramíde est toujours debout (resposta a P. Amseiek)”, Revue du droit publique 1978 pp 1523 36

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342 OS FUNDAM ENTOS DA ORDEM JURÍDICA

m i l ir ;i K c l s e n d c s v r l a r ;i c <>iuIit;;'i(>s in e 1/1111 im n ' que iIic designa a cssóncia universal. Atv^ra de pureza adquire para ateoria do direito um duplo alcance metodológico: indica primeiro que a visão de essência do direito só poderá ser obtida côma renúncia, numa perspectiva quase 1'cnomcnológica, às confusões geradas pelo antropologismo e pelo historicismo empiris-tas. Com eleito, o método de Kelscn, como o de Kant, é anti- psicologista e, sem negar a importância do conteúdo do direito, interroga-se essencialmente sobre sua lei formal dc produção. A regra de pureza indica depois que, por não ter de exporuma gênese de íato, "a ciência objetivado direito”1'" devcrá;Src-

correr, em sua originalidade, a esquemas de pensamento comestruturas específicas.De acordo com esses objetivos metodológicos, Kclsen dis

tingue “dois grupos de ciências: as ciências da natureza e as ciências da sociedade'’157, que diferem não só pela natureza de seuobjeto mas pelo processo de sua constituição. Claro,11a medidaem que ambas pertencem à ordem do conhecimento, têm comodenominador comum seu modo dc construção sintético que em prega um esquematismo mediador. Mas o esquema de interpretação não é0 mesmo em ambos os casos e a síntese se dá segundo parâmetros distintos: nasciências da natureza, é necessárioque 0 esquematismo da imaginação realize o ato pelo qual aheterogeneidade do diverso sensível é unificada sob as categoriasdo entendimento. O vínculo causai, que resiste ao empirismo,é necessário enquanto condição da própria experiência; c, paraconhecer a natureza, é a esse mesmo processo de explicação causai que se recorro. Nasciências da sociedade, que são as da cultura e do espírito, nas quais se insere a teoria do direito,0 esquema de interpretação é, decerto, necessário, mas ele não operasegundo as vias da análise redutora e causai. Assim, quando se

155. Kclsen. “I..;i justice ct le droit naliirel", inl.c ilroil naliirel, PUI-',1959, n. I, p. 123. -

156. Théorie pu rc du dro it (trad. Ch. üisenmann), Dalloz, 1962, Prefácio, p. XI.

157. lbid. ,pp. 2 e 104. ; \ ______

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M NORMATIVISMO CRÍTICO 343

bservou que, “ mini falo qualqucrque c interpretado comosen-o de natureza jurídica” (um contrato, um delito, um ato admiistrativo), entrecruzam-se dois elementos: por um lado, umato, enomênico, processo exterior do comportamento humàno, e,or outro, asignificação do ato no que tange ao direito e emirtude dele, fica evidente que “o que imprime a esses atos oaráter de atos de direito não é o que eles efetivamente são emua materialidade, não é sua realidade natural, isto c, determiada causalmente e incluída no sistema da natureza; é apenas oentido objetivo que lhes é associado, é a significação que elescm”ls\ R pela mediação de normas que qualificamos esse ouquele ato de jurídico. Sãò essas normas que cumprem a funçãoe “esquema de interpretação”159que a ciência do direito devestudar. Portanto, essa ciência não pode apoiar-se no princípioe causalidade; a idéia de normatividade é sua pedra angular.

A distinção entre ciências da natureza e ciências dos cosumes corresponde por certo ao dualismo ontológico da Naturea e da Liberdade. Mas, para Kelsen, é sobretudo a discriminaão entre o tratamento epistemológico da ordem doSein e da

rdem doSollen que é importante: o conhecimento do ser emrega o princípio decausalidade, cuja função é de determinação;conhecimento do dever-ser emprega o princípio deimputa-

ão que implica referência à normatividade. Kant expressara aiferença entre determinidade e normatividade distinguindo osois poderes, teórico e prático, da razão, o último sendo em úlima instância mais profundo e mais verdadeiro que o primeiro.Reinhold - um desses pós-kantianos com quem Kelsen apreneu a compreender o kantismo - insistira no uso prático do nú-

meno, apresentado como a Idéia do que deve ser feito; achavaue, em Kjant, a razão desenha em filigrana um mundo infinito

de tarefas e que, nesse sentido, ela é o indicador do dever. Na

158. Ib id ., p. 5.159. “Um sentido especificamente jurídico, seu significado de direito

aracterístico, os fatos em questão os recebem de normas a eles relacionadas; ão essas normas que lhes conferem um significada jurídico, de lal modo que

les podem ser interpretados de acordo com eles. Essas normas cumprem a unção deesquema de interprétàçã^Qbid., 'p, 5). ------ —

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344 OS FUNDAM ENTOS DA ORDEM JURÍDICA

Teoria pura do direito, esse tema, que descobre a vocação orginária do hómem para o direito, para o quedeve-ser, toma-se umtema maior,sque constitui a chave do “normativismo kelsenian

Hegel acusara Kant de fazer do método um instrumeantes para a constituição do saber do que para sua exposiç pelo contrário, é isso o que Kelsen admira em Kant, chegancopiá-lo. E.por isso que a idéia de normatividade, inserindotanto para Kelsen como para Kant, no registro do método, calcance sabemos ser bem maior que apenas metodológico,signa, ao mesmo tempo que uma maneira de ser que requer princípio e um processo de conhecimento específicos, uma dalidade de constituição portadora de significado. Com efea Reine Rechtslehre mostra que apenas uma norma confere um ato seu significado de ato de direito ( Rechtsakte) ou de atoilícito (Unterrechtsakte). Essa própria norma interpretativa éaliás, criada por meio de atos de direito, que só o são em virtde outras normas. A corrente das normas assume em rela

aos atos do homem uma função canônica organizadora e cotitutiva de sentido'60. Portanto, o que, nesse processo de contuição do jurídico, se revela essencial para Kelsen é que a norenquanto esquema de interpretação, não cria o fato ou o

jurídico em sua materialidade, mas instala-o em sua jvalidobjetiva comoser de direito. Assim, o sinal vermelho significa

para os motoristas a ordem de parar; expressa a idéia de parar no sinal vermelho é considerado algo quedeve ocorrer,

em termos kantianos, poder-se-ia dizer que ele é uma “aprestação” no fenômeno de um dever-ser. Esse significado é “ob

160. “Que um fato constituajuridicam ente a execuçã o de uma sende condenação à morte, e não um homicídio , é uma qualidade - que não é um qualidade perceptível pelos sentidos - que só aparece cm conseqüência dc um processo intelectual; rcsulla da confrontação desse fato com o Código Penal o C ódigo de Processo Penal. Que uma troca dc cartas signifique juridicamente a conclusão de um contrato, isso resulta única e exclusivamente de esse fat estar previsto em certas disposições do Código Civil. Que um documento escrito seja um testamento válido (...), que uma rpúnião dc homens seja um Parlamento (...), o dado essencial é que há concordância do conteúdo do processo efetivo;com o conteúdo de uma norma considerada válida”(ibid., p. 5).

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UM NORM A TIVISMO CRÍTICO 345

tivo”, isto é, independente do que querem, enquanto sujeitos psicológicos, os motoristas em questão. Esse exemplo, muito significativo161, permite pôr em evidência os aspectos específicosdo princípio de normatívidade que atua no universo do direito.

Fica claro, em primeiro lugar, que a normatividade jurídica exprime-se pelo verbo dever (Sollen). Convém no entanto precisar, como observava H. Cohen ao comentaç aCrítica da razão prática, que o dever-ser (Sollen) não se confunde com odever(Pflicht) no sentido moral estrito. Kelsen, marcado peloneokantismo, atribui ao verboSollen, típico da normatiyidade

jurídica, uma acepção bem mais ampla que a da linguagem usualda moral: o dever-ser designa, segundo ele, ao mesmo tempo queum mando ou uma ordem(sollen), uma permissão: “ter o direito” (dürfen), e uma habilitação: “ter o poder”(kõnnen)'62. Emtermos kantianos, poderíamos dizer que o dever-ser é “umasimples Idéia” ou ainda que é “uma idéia prática que pode edeve realmente ter influência sobre o mundo sensível, a fim detorná-lo, o quanto possível, conforme a essa idéia”163. Assim; anormatívidade que insufla juridicidade aos atos da conduta humana e permite qualificá-los juridicamente de “roubo”, “homicídio”, “testamento”, por exemplo, possui uma realidade objetivana medida exata cm que se refere ao mundo fenomênico comoa um objeto da razão pura em seu uso prático gerador de sentido e de valor.

Em segundo lugar, fica claro que a normatívidade, enquanto esquema de interpretação dos fatos, revela, através de suafunção metodológica, seu arraigamcnto na razão pura prática,cuja vocação profunda é processual e arbitrai. Convém insistirsobre esse ponto. Com efeito, pode-se constatar que, na maioriados casos, a norma que qualifica o fato é determinada por umato decisório da vontade: Kant já considerava que, em sua autonomia, a vontade manifesta o poder prático da razão de tal modoque é dela que procedem as leis. No enlanto, o caráter "posili-

161. Ihicl., p. 9.162. Ib id ., p. 20.163. Cf. Kant,Critique cie la raison pu ré, p. 545.

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346 OS FUNDAM ENTOS DA ORD EM JURÍDICA

vo” (gesetz) das normas nào é o que nelas há de mais impor-tante'w. Por isso, com uin notável cuidado de precisão, Kelsen

dissoeia noSollen o ato de vontade que é umSein e a significação específica desse ato no qual reside exclusivamente o podernormativo165: no exemplo do sinal vermelho, a existência da norma positiva não se confunde com a realidade material do sinal;ela forma um todo com a significação objetiva desse sinal vermelho para todos aqueles que transitam. É evidente que essa significação é independente das vontades individuais dos usuários;ela permanece mesmo depois de o ato que o determinou ter deixado de existir166. Portanto, a “existência” de uma norma positiva forma um todo com sua “validade” (Geltung): a validade émesmo “o modo de existência específico das normas”167. Enquanto significação de um ato de vontade - e não enquanto atode vontade no sentido da psicologia empírica -, a validade deuma norma exprime a idéia deque algo deve sèr feito ou devenão ser feito. Dessa maneira, a norma impõe-se ao destinatárioe este, por conseguinte, é obrigado a obtemperar enquanto a referida norma estiver “em vigor”. ?f>

Portanto, o dever-ser, enraizado na vontade, isto é, no poder prático da razão, é uma lei de produção, não do conteúdodo direito, mas dajuridicidade do que, nesse conteúdo, é jurídico, Essa lei de constituição não poderia ser confundida com umalei da experiência pois, nesse caso, “a vontade se propõe seuobjeto e o determina; longe de lhe pressupor a realidade, ela sóo realiza”. Isso eqüivale a reconhecer que a juridicidade do direito é uma tarefa por realizar: como Kant já deixava entenderem sua Rechtslehre, a juridicidade do direito não pertence ao

164. Kelsen,Théorie pu re du d roit, p. 14.165. Ib id ., p. 14.166. Ib id ., p. 13.167. Isso acarreta quevalidade e eficácia das normas jurídicas não

poderiam ser confundidas: a validade de uma norma é umSollen; a eficácia dessa norma 6 umSein. ou seja, "o fato de que a norma é efetivamente aplicada e obedecida ou seguida". Ora, diz Kelsen, “afirmar que uma norma vale, é válida, nào eqüivale simplesmente a constatar o fato de que é aplicada e seguida efetivam ente”(ibid., p. 14).

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UM NORMA TIVISMO CRÍTICO 347

mundo sensível. Da mesma forma, Kelsen considera que, obedecendo à legislação transcendental do espírito, oSollen jurídi

co, em sua figura paradigmática de modelo e de valor168, não pode proceder da sensibilidade. Tampouco provém do céu transcendente onde as essências se inserem como um puro inteligível.É com referência às exigênciasa priori da razão que a juridicidade do jurídico pode ser pensada.

No limiar daTeoria pura do direito, o procedimento criti-cista que Kelsen copia de Kant e dos neokantianos deixa entrever a elevação filosófica em que Kelsen situa seu projeto epis-temológico.

O criti cismo kelseniano, como a crítica criticista de Kant,vai muito além de seu simples alcance metodológico,.;Muitoalém de simples prolegômenos à ciência pura do direito, ele nãose limita a esse exercício preliminar do que Kant chamava a“propedêutica”, cuja função era examinar “o poder da ràzão emcomparação a todo conhecimento puroa priori”, o que é, pro priamente falando, acríticam. O método corresponde, na obrade Kelsen, à segunda tarefa que Kant atribuiu à filosofia da razão pura e que engloba “todo o conhecimento filosófico da razão pura num encadeamento sistemático” : essa tarefa, dizia Kant,chama-se “metafísica”. Kelsen não gosta da palavra metafísicae bane-a sempre que pode de seus escritos. Mas ele é mais kan-tiano que o próprio Kant e, descartando uma concepção .“exclusivamente técnica” do direito, pensa que a teoria pura do direitoserá arquitetônica ou não será. Atendendo aos fins legisladores essenciais da razão, não transgredirá a “arte dos sistemas”.

A sistematicidade da ordem do direito encontrará sua formaideal típica na célebre pirâmide esboçada naTeoria pura do direito.

A descrição de uma ordem de direito depende do conhecimento jurídico que apreende o direito “por assim dizer de fora”1™.

168. Ib id ., p. 23.169. Kant,Critique de la raison pu re, p. 563.170. Keisen.Théoriepure.du droit, p. 98 .—. .

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Mas Kelsen gosta de repetir que, embora esse conhecimento

seja uma criação intelectual, ele é “essencialmente diferente dacriação do direito pela autoridade jurídica”171: essa descrição deveser recolocada no âmbito de uma teoria do conhecimento livrede toda impureza empírica172. Por essa razão, a estáfica jurídicaé sem dúvida a necessária via de acesso à compreensão de umaordem jurídica171; mas, embora seja verdade que,110 âmbito deum direito positivo estatal, a ordem do direito é um sistema denormas que dependem da Constituição, â descrição da pirâmide jurídica ainda não revela o fundamento último do direito17,1.

Só que para Kelsen, francamente hostil a todas as noçõesque, em maior ou menor medida, decorrem do dogmatismometafísico, seria impensável recorrer à idéia do direito natural para fundar0 edifício constitucional das regras jurídicas. Kelsendenuncia0 idealismo, portanto0 dualismo das teorias do direitonatural, porque, nesse dualismo, ocorre uma funesta inversão

348 OS FUNDAMEN TOSDA ORDE M JURÍDICA

171. Ibid., p. 99.172. Já em 1911, Kelsen ex pôs as premissas necessárias de uma “teoria

pura” do direito(Hauptproblem de r Slaatslehre entwickelt aus d er Lehre vom Rechísátze, Tübingen). A idéia percorre toda a obra de Kelsen. Sua formulação mais límpida encontra-seem What is Justice? (Berkeley, 1971): “The purety o f the tlieory o f Law... con sists in nothing e lse in eliminating from its spherc problcms that require a mcthod different from the appropriate to its specific problem. The postulatc of purety is the indispensablc requirement of avoiding syncretism o f method”, p. 294. (A pureza da teoria do d ireito... consiste apenasem eliminar de sua esfera problemas qüe exijam um método d iferente daquele apropriado para seu problema esp ecifico . O postulado dc pureza é a exigência indispensável para evitar o sincrotismo do métoilo.)

173. Nâeconomia de conjunto da teoria kelseniana, as proposições da

ciência do direito(Rechts-sàtzé) são mesmo normativas(Sollsátze), mas não obrigam nem mitorizam ninguém a nada (podem apenas ser verdadeiras ou falsas), ao passo que as normas determinadas pela autoridade jurídica{Rcclilsntir- men, So llnormen) obrigam ou habilitam os sujeitos de direito (com o tais, não são nem verdadeiras nem falsas, mas válidas ou não válidas). São irredutíveis entre si e “as proposições formuladas pela ciência do direito não são uma pura e simples repetição das normas jurídicas determinadas pela autoridade

ju rídica”, Théoriepure du droit, p. 101. ^174. Kelsen, “Justice et droit naturel”, in Leigro it natu re l, PUF, 1959,

p. 67; cf. também “Positivismo juridique c( doctrine du droit nadircl”, in M élanges D abin, 1963, t. I, pp. 141 ss.

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UMN ORMATIVISMO CRÍTICO 349

de essência: “em vez de a teoria do direito natural deduzir danatureza as normas deiim direito ideal geralmente denominadodireito natural, é uma natureza ideal que essa teoria deduz do direito geralmente denominado direito natural, direito que ela pressupõe como um direito ideal e que é obrigada a pressupor para alcançar sua noção da natureza, da natureza boa e divinado homem”175. Para fundar uma ordem de direito positivo, é porconseguinte preciso afastar-se de todas as figuras do direito na

tural, que, aliás, por seu próprio desenvolvimento, se tornaramtotalmente contraditórias176, aptas para provar ou justificar qualquer coisa, isto é, para não provar nem justificar nada. Convémacrescentar, ademais, que nenhum dos teóricos do direito natural é suficientemente conseqüente consigo mesmo para levarsua tese até o fim e recusar toda validade ao direito positivo'77.Portanto, embora os teóricos do direito natural tenham razãoquando se indagam sobre o fundamento de validade do direito

positivo cuja existência aceitam, ainda que por inconseqüência,estão errados quando julgam que o direito natural é o padrão devalor do direito positivo: Kelsen criticou incessantemente essemetajuridismo. Na verdade, a ciência pura do direito não excluia interrogação filosófica que incide sobre o fundamento devalidade de qualquer ordem jurídica positiva. Mas, por um lado,o único direito que ela considera realmente direito é “uma ordem de coação criada pela legislação ou pelo costume e eficaz de

maneira geral”; e, nessa perspectiva, deve-se dizer que o direito não t‘em outro fundamento (ou outra fonte) senão o própriodireito; por outro lado, quando a teoria pura faz da questão dofundamento dc validade dc uma ordem jurídica, de acordo comsua postura geral, uma questão crítica da formaQuid juris?, aresposta que ela dá elimina qualquer dogmatismo: como dizKelsen, c “uma resposta exclusivamente hipotética, isto c, condicional:se se considera o direito positivo válido,supõe-se que

todos dêvem comportar-se conforme o prescrito pela Consti

175. “Justice et droit naturel”, art. citad o, p. 79.176. Ib id ., p. 103;Théo riepure du droit, p. 297.177 '“Justice et droit naturel” pp 111c 119

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350 OS FUNDAMENTOS DA ORD EM JURÍDICA

tuição primitiva, em conformidade com a qual a ordem jurídica positiva foi criada”178. Temos aqui “o núcleo de verdade”179da dinâmica jurídica. Toda a problemática da fundação dodireito leva com efeito à “suposição” ou à “hipótese que a teoria pura qualifica de norma fundamental”180, na qual o requisi-tório contra o direito natural encontra sua realização última.O princípio e o fim do processo juntam-se nessa “proposiçãonormativa (Soll-Satz)” que não é nem uma norma jurídica(Rechtsnorm) positiva, nem uma proposição jurídica ( Rechts-

Satz) que sirva para descrever uma norma jurídica positiva181,mas sem a qual não são possíveis ou pensáveis as normas jurídicas nem as proposições que as descrevem. A “norma fundamental não serve para determinar o conteúdo do direito positivo nem sua pertinência num contexto social empírico”; mas, notribunal da razão ao qual comparece o direito positivo, a “norma fundamental” suposta apresenta-se como o que, tornando

possível uma ordem jurídica, legitima-lhe a autoprodução. Aometajuridismo das doutrinas do direito natural, Kelsen responde portanto com o formalismo de uma lógica normativa182; aodualismo de tipo essencialista daquelas doutrinas, responde cóm“uma escalada de normas” que implica um monismo, cujà única raiz é a norma-base (Grundnorm), isto é, a chave da arquitetônica jurídica: por aí se vê que a geometria estrutural de umaordem de direito obedece necessariamente à idéia-força de sis-

tematicidade183. Por isso torna-se impensável a distinção entre

178. Ib id ., p. 122. '179. N. B obbio, “K elsen et les sources du droit", in Revue in tern ationa-

le d e philosophie,'19& \ , n? 138, p. 483.180. “Justice et droit naturel”, art. citado, p. 122.181. Ibid., p. 122;Thèo riepure du droit, p. 96.182. Esse formalismo não é, como afirma A. Passerin d’Entrèves, uma

variante do direito natural, in Le d roit natu re l, op. cit ., p. 121, nota.183. “The starting point of the pure theory of law as legal theory is a definition o f the concept o f law. The pure theory definies the law as an aggre- gate or a system o f norms, as a normative order” (“On the basic norm” , in Es-

says in L egal and M oral Philosophy, publicados por O. Weinberger, Boston, 1973 p 107) (O ponto de partida da teoria pura do direito com o teoria legal

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UM NORMA TIVISMO CRÍTICO 351

direito privado e direito público'84; também por isso a noção de“pessoa” jurídica se dissolve185, acarretando o desaparecimentoda dicotomia tradicional entre direito no sentido objetivo edireito no sentido subjetivo186. ATeoria pura do direito “exprime uma atitude plenamente universalista e objetivista” na qualse encontra, em “cada parte do direito, a função do direito inteiro”18’; todos os dualismos, que, em sua obsessão metafísica,se empenharam em distinguir um direito ideal e um direitoreal, um direito objetivo e um direito subjetivo, um direito privado e um direito público, um direito estatal e um direito internacional..., tomaram o caminho errado. 0 monismo do norma-tivismo kelseniano desafia todos os metajuridismos.

Na estrutura orgânica da pirâmide jurídica, que preside,nos seus mais tênues aspectos, à criação de suas próprias partes, há tamanha unidade da pluralidade188, que essaordinatio dodireito, que é sua construção sintática, pôde ser qualificada de“pan-normativismo”18,; Num sistema assim, em que as contradições, os conflitos entre normas e as lacunas são impossíveis190, aGrundnorm, enquanto norma principiai, confere uma unidade

é uma definição do conceito de direito. A teoria pura define o direito como um agregado ou sistema de normas, com o uma ordem normativa.)184. Théorie pu re du droit, pp. 218, 22 1,37 2. -»185. Ibid., p. 251. V -186. Ib id ., pp. 252 e 253.187. Ib id ., p. 253 . >188. “Cada conhecimento tende à unidade, cujo critério objetivo é a

ausência de contradição” ( Allgem eine S ta ats le hre , Berlim, 1925, p. 105).189. A primeira tradução francesa da Re ine Rech ts lehre feita por H.

Thevenaz (La Baconnière, Neuchâtél, 1953) expõe de maneira notável o procedimento reflexivo realizado por Kelsen. Formulando a pergunta: “Quando

é que normas formam uma ordem ?”, Kelsen, segundo os termos do tradutor, responde: “Uma pluralidade de normas constitui uma unidade, um sistema ou uma orderh, quando sua validade repousa em última análise sobre uma norma única. Essa norma fundamental (Grundnorm) é a fonte comum da validade de todas as normas que pertencem à mesm a ordem e constitui sua unidade [...].O fato de uma norma pertencer a uma determinada ordem resulta exclusivamente da possibilidade de fazer sua validade depender da norma fundamental que é a base dessa ordem ” (p. 113).

190. Théoriepuredu droit, tradrEisenmann, p. 273. ~

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352 OS FUNDAM ENTOS DA ORDEM JURÍDICA

identitária191. Mas ela é também o axioma básico que é precisosupor para que sejadeterminada uma ordem jurídica192: portanto,ela é, ao mesmo tempo, condição de validade das normas do edifício jurídico e condição de possibilidade, isto é, de pensabilida-de, de todas as regras que pertencem ao sistema. “A ràzão”, comódizia Kant, “tem necessidade desupor o que lhe é inteligível.”193

O normativismo kelseniano não é, portanto, um simpleslogicismo: uma ordem jurídica não é um edifício construído segundo o procedimento hipotético-dedutivo de que a lógica formal

poderia dar conta: é preciso uma “hipótese lógica transcendental”194para tomá-la pensável, isto é, para dar conta da exigência

racional segundo a qual se opera a “instituição do elemento fundamental das operações de criação do direito”195. Em outras palavras, a pirâmide jurídica não é uma metáfora lógica. Oferece umamaquete epistemológica na qual, como no criticismo kantiano,as problemáticas da possibilidade e da validade estão ligadas - oque permite responder à questão de saber “por que as normas deuma ordem de coação eficaz devem ser aplicadas ou Obedecidas”196. A resposta é clara: é uma exigência pura ea priori da razão humana que se delineia em toda ordem de direito: a universalidade transcendental identifica-se com a pura racionalidade. No direito positivo, a normatividade traduz uma exigência darazão: por conseguinte, todo sistema de direito positivo ordena odireito em conformidade com a ordem que a razão exige.

Submetendo o aparelho jurídico, tanto em sua estruturacomo em seu funcionamento, ao tribunal racional e desenvolvendo diante dele todos os considerandos de uma sentença que permite legitimar a pretensão do direito positivo a ser válido,Kelsen mostra que uma “necessidade da razão”, enquanto exi

191. Kelsen,What is jus tice? , Berkeley, Los Arigeles, 1957, p. 440 . (Trad. bras. O que é justiça?, Martins Fontes, São Paulo, 20 01.)

192. Kelsen,General Theory ofL aw and State,N ov a York, 1945, p. 401;Th éoriepure du droit, pp. 257 e 267. “

193. Kant,Qu ’est-ce qu e s’oríenter dans lapeh sèe?, trad. fr., Vrin, 1967,p. 81.

194. Théorie pure du droit, p. 266.195. Ib id ., p. 263.196. Ibid., p. 293.

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UM NORMATIVISMO CRÍTICO 353

gência pura universal, é o princípio regulador de todos os sistemas jurídicos positivos. Assim, toda ordem de direito é um“espaço normativo” ou, se preferirem, uma estruturação normativa da experiência na qual se decifra a “apresentação”, nosentido kantiano do termo, de uma Idéia da razão. ,,

Essa tese sem dúvida pode desconcertar aqueles que', véfidonela o “infinito ruim” do direito, denunciam seu irrealismo.Mas semelhante objeção, que se apóia na necessidade de “con-creçâo do pensamento”, nem sequer chega perto da teoria purade Kelsen: esta não estabelece normas, não é uma técnica nor-matizadora e tampouco pretende elevar-se a uma ciência meta-normatizadora. Kelsen elabora “uma ciência normativa”, istoé, “uma ciência das normas jurídicas válidas”197, cujo objetivo édesvendar a fundação da normatividade jurídica. Marcado pelolegado kantiano e, sobretudo, pelos desenvolvimentos do neo-kantismo de Cohen e de Natorp, Kelsen confia à sua teoria purado direito a resposta que a razão pura é capaz de dar às ambi-valências e às antinomias de uma razão dogmática em crise198.

No movimento multiforme do “retorno a Kant”, o normativismo kelseniano ensina que a legalidade racional, universale a priori, tem uma vocação fundamental que as construçõesintelectuais, a despeito dos particularismos e relativismos, não

conseguem desafiar11’1’. Assim como Cassirer “pretendia ampliaro campo de aplicação do método transcendental fazendo comque servisse para a elucidação e para a fundação [...] da linguagem”200, assim também Kelsen extraiu da idéia kantiana do transcendental o que dá ao direito, desde a “atividade formadora originária” que lhe traz o projeto sistemático, a capacidade de ordenar é regular a experiência humana. Assim o direito, em qual

197. G. Kalinow sky, La querelle des sc iences norm atives, LGDJ, 1969,p. 96.

198. A. Carrino, L 'ordine delle norm e, Nápoles, 1984,T. ed., 1990, p. 26.199. A. Carrino, Kelsen e ilprob lem a delia sc ienza giu rid ic a, Nápoles,

1987.

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354 OS FUNDAM ENTOS DA ORD EM JURÍDICA

quer ordem positiva e sejam quais forem suas diferenças de conteúdo, exprime as exigências principiais do espírito. A hipótese

lógica transcendental da “norma fundamental” é o centro de equilíbrio de todos os ordenamentos jurídicos possíveis no mundo doshomens. E, como mostra a última obra de Kelsen, Allgemeine Theorte der Normen1'", o importante é que, para encontrar essecentro de equilíbrio, o pensamento não tenha de sair de si mesmo.

Portanto Kelsen toma emprestado de Kant, ou, mais precisamente, das teses kantianas da escola de Marburgo, a idéia segundo a qual a razão é essa “faculdade dos princípios [que] determina o interesse de todas as forças do espírito”202, J. Vuillemin

observava que os kantianos de Marburgo tinham “reduzido aanálise transcendental a uma análise jurídica", cujo objetivo édepreender “as condiçõesde direito” do “fato” das ciências205.E precisamente este o procedimento que Kelsen escolhe paraaplicá-lo ao “fato” do direito positivo e desenvolver, daTeoria

pura à Teoria das normas, um normativismo crítico que salienta, com um vigor exemplar, que o princípio supremo fundadorde todo edifício jurídico é, no sentido kantiano, uma “necessidade da razão”. Essa exigência pura transcendental, que orientao pensamento indicando-lhe o(que deve ser, é a “pedra de toque”que constitui a unidade normativa da ordem jurídica.

O normativismo kelseniano foi muitas vezes severamentecriticado, ora como excessivo2114, na medida em que só conservaria como critério de validade a congruência formal das-re-gras, ora como insuficiente2"5, na medida em que subordinariao direito a uma “suposição” que é “apenas pensada”, mas nãoelucidada.

201. Allgemeine Theorie der Normen foi publicado em Viena em 1979.202. Kant,Critique de la raison pratique, trad. Picavet, PUF, 1949, p. 129.203. J. Vuillemin, L ’héri ta ge kantien et la révo lu tion copernicienne,

PUF, 1954, p. 211.204. H. Dupeyroux, “Les grands problèmes du droit”, in Arc hives de

philoso phie du dro it, 193X,pp. 1-97.205. 1). Miimy, "Obscrviiiions sur les idécs du Pr. Kelsen”, in Revue

critiq ue <le légixltilion el dc ji ir is /iru dcu cc , 1929; R. Gipilant,liilrodiiclion òl 'ètude dc I 'illicite. L 'im péra lifcatég oriqu e, p. 162 ss.

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UM NORMA TIVISMO C RÍTICO 355

Na verdade, o fato de tais críticas se terem multiplicadoem nome do realismo e do neo-empirismo206- mesmo que muitos as considerassem pertinentes do ponto de vista da técnicajurídica - deixa de lado o que, na “teoria pura” do direito, é essencial: a problematização filosófica da ordem jurídica no tocante à sua fundação última. É esse mesmo mal-entendido queestá no centro da polêmica entre C. Schmitt e Kelsen: trate-sedo “guardião da Constituição”, da questão da soberania ou doproblema da Constituição, C. Schmitt recusa-se a levar emconta, nos escritos de Kelsen, a exigência transcendental sem a

qual o pensamento não pensa, logo, não existe. Em outras palavras, eludindo o procedimento crítico que constitui o fio dainvestigação kelseniana, ele reduz o debate a um nível ideológico que não corresponde às intenções filosóficas problemati-zantes de Kelsen.

Ora, na obra de Kelsen, a problematização importa maisque a resposta: o autor da teoria pura do direito, ao tentar apreender o que fundamenta a validade de toda ordem jurídica positiva, está em busca da própria lei do pensamento, cujo projeto éfazer a normatividade pura que a razão exige penetrar na diversidade e na contingência da experiência. A idéia normativa condensada na pressuposição da “constituição originária hipotéti-ca” incorpora-se no fluxo da empiria para instituir Ô direitopositivo entre a desordem espontânea da vida (oSein) e a necessidade de ordem da razão (oSollen)207. Assim todo sistema

206. E. Pattaro, “Per una critica delia dottrina pura”, inContributi al re alism o giu ridic o, Milão, 1982, pp. XI-LXXXV1. ; •207. É esse aspecto de'síntese que aqualificação do s fa tos põe em evi

dência na prática jurídica. 1?::Na verdade, para o direito não existe mundo inocente da experiência: todo

“fato” é lido e ipterpretado em conformidade a normas e se apresenta como um quale. O campo da responsabilidade penal é, nesse sentido, particularmente instrutivo: a contravenção, o delito, o crime são tão distintos em sua qualidade jurídica que seu julgamento é remetido a jurisdições diferentes. Aqualificação jurídica do falo e portanto dc primeira importância. Assim, um homem morreu: eis

o fato; mas, para o direito, pode tratar-se, segundo os casos, de um puro e simples óbito, dc um suicídio, dc um crime, da execução de uma sentença de morte (cf. Kelsen,Théoriepure, p. 5); nunca o sentido jurídicõda morte de um homem

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356 OS FUNDAM ENTOS DA ORDEM JURÍDICA

jurídico manifesta o poder sin té tico de ligação que é a função

transcendental do espírito por excelência. Reconhecer que a condição de possibilidade da ordem jurídica pertence a um horizonte transcendental é uma questão de método e de problemática,não de metafísica e de ideologia. Operando, contra o procedimento causai dos positivismos cientificistas, a “dedução transcendental” do direito, Kelsen retorna ao que a crítica kantianatinha de mais original e de mais fecundo: mostra que os conceitos jurídicos, no sistema arquitetônico em que se autoprodu-zem, só têm sentido e valor com a Idéia da razão, que é o princí

pio, não constitutivo mas regulador, deles.Contra esse “retomo a Kant”, costuma-se formular duas

críticas que, aliás, se somam à condenação do racionalismo ilu-minista. Desde Hegel, Kant é censurado (e ao mesmo tempoataca-se Kelsen) pela abstração do pensamento criticista, alheioem sua “pureza”, dizem, à dimensão concreta do direito. Alémdisso, acusam Kant e também Kelsen de atribuir um valor objetivo ao que não passa de uma tendência subjetiva e, por conse

guinte, de cair nailusão transcendental denunciada, precisamente, pela filosofia crítica. O exame dessas objeções, quecontestam o próprioestatuto da filosofia, vai muito além denosso propósito. Seremos mais modesta, evitando interpretar okantismo ou o kelsenismo como o caminHo que conduz à verdade absoluta: isso seria não só contraditório com as filosofiasdeles, mas constituiria uma lamentável impostura para o homem, conhecido desde sempre como o ser dos “limites”. Ressuscitar a referência criticista é exprimir uma “fé racional”

{Vernunftglaube)m que possibilita ao homem combater a des-razão ou, simplesmente, a crise que a razão é acusada de provocar de maneira suicida. É admitir que a razão é, por si só, oindicador de seu dever-ser, que tem de se situar dentro de seus

lhe é imanente. Em certas condições, uma troca de cartas é qualificada de “conclusão de um contrato”, um documento escrito é considerado um testamento, certas taxas são definidas como encargos públicos ctc.

208. Kant,Qu 'est-ce que s 'orienter dqn s la pe n sé e?, p. 83.

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UM NORMA TI V1SM0 CRÍTICO 357

próprios limites209. Kant dizia que não basta saber servir-se darazão, mas que é teoricamente necessário compreender que, emsua pureza, ela tem uma vocação prática de que as Idéias darazão, enquanto princípios reguladores, são portadoras. Elas permitem “orientar-se no pensamento” e, particularmente, li bertar as instituições jurídicas da arbitrariedade do decisionis-mo ou da contingência veiculada pelo empirismo e pelo histo-ricismo. Isso decerto não garante a adequação do real ao racional e não basta para que o ser seja o que deveria ser. Kelsencompreendeu isso melhor do que ninguém e era por isso quereconhecia, no nível transcendental em que se enraíza o direito,o horizonte de expectativa do normativismo crítico. Por conseguinte, longe de optar, como tantas vezes se disse, por uma for-malização simbólica mas caricatural da ordem jurídica, indicava qüe a tarefa - infinita - do filósofo do direito não é repetir okantismo, mas realizá-lo.

209. Assim com o Kant se indagava sobre A religião nos limites da simples razão, também é possível situar o normativismo crítico de tipo kelsenia-

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Conclusão

Enquanto houver filósofos, perpetuar-se-á o “conflito dasinterpretações”. Por natureza, portanto desde sempre, a filoso

fia abre para a investigação o campo da discussão em que sedesenvolvem controvérsias e polêmicas. O mundo jurídico é, aesse respeito, faz séculos, um domínio privilegiado. Mesmoquando “não se pode dizer tudo sem um tédio mortal”, vimosque o discurso sobre o direito suscitou intermináveis debates,dos quais a filosofia atual está longe de sair. No entanto, no tra balho de escuta cujos resultados as doutrinas - opondo-se, cor-rigindo-se, renovando-se - exprimem, o que funciona não é umalógica da repetição: o universo do direito se revela ao filósofoagitado internamente por um problema cuja reiteração em figuras diversificadas sempre diz respeito, por meio das questões, das respostas, das objeções, das reservas, ao que constituio fundo do direito, à interrogação fundamental, por que as regras

jurídicas são obrigatórias? A filosofia do fundamento é filosoficamente insuprimível. Ora, um problema de fundamento é, poressência, um problem^ profundo e, por essa razão, um problema difícil. %s-

Quisemos mostrar que, para responder a esse problema, asfilosofias enveredaram, com maior ou menor pertinência e acerto, por múltiplas vias. Podemos, por patamares sucessivos, fazero balanço de nossa investigação.

1 / Por si só, a profundidade de um problema fundamentalindica a fraqueza das teorias filosóficas que se limitam a des-crevero universo jurídico como se fosse um mundo de fatos. O

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360 OS FUNDAM ENTOS DA ORDEM JURÍDICA

mesmo olhar insatisfeito abarca as teorias que procuram, com

um procedimento reducionista, resumir o direito a não-direito: psicologistas ou sociologizantes, historicistas ou ideologizantes,é evidente que essas teorias carecem do que constitui a juridicidade do direito, pois buscam nele o que não é ele; em razãode sua postulação bem como de seus procedimentos elas ocultam, na esfera dos comportamentos hunianos, a emergência daespecificiqàde da ordem jurídica. As regras do direito não podem, com efeito, ser tratadas como coisas ou instrumentos técnicos pertencentes a um universo de gestão e de administração:

se assim fòsse, só perceberiam uma legitimidade duvidosa e nãoseria possível explicar sua obrigatoriedade. Mesmo que assistamos hoje, pelo efeito das pressões socioeconômicas ou ideoló-gico-políticas, a transformações do direito a ponto dej se falarde umsoft law composto antes de diretrizès administrativas, derecomendações, de campanhas de informãçao do que de promulgação de normas, é filosoficamente impossível (a não ser pelanegação da própria filosofia) reduzir o direito ao fato ou o quedeve ser ao que é: Jus ex facto non oritur. A descrição puramente empirista de um sistema jurídico, as determinações causais, até mesmo as sobredeterminações das regras de direito e,de maneira geral, todos os reducionismos, mesmo em suas variantes historicistas que invocam a “astúcia da razão”, pecam pela incapacidade de pensar a complexidade normativa fundamental do direito. Empregando esquemas e dogmas simplifica-dores, esses procedimentos caem numa facilidade que é quaseuma traição intelectual. As normas não podem nascer dos fatos;

é, ao contrário, o sentido dos fatos ou dos acontecimentos entreos quais nos movemos que lhes vem das normas ou das exigências principiais, sem o que os homens não passariam de animaisregidos por uma causalidade física.

2 / É portanto necessário convencer-se desde o princípioa problemática fundamental com que depara uma autêntica filosofia do direito significa, logo de início, que o universo jurídico é um universo complexo que um saber de tipo operatórionão conseguirá deixar inteligível. Isso significa de imediato quehá uma ilusão positivista: ela provém do fato de que, em todas

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CONCLUSÃO 361

as suas figuras, os diversos positivismos se recusaram, em suavontade cientificista comum, a incorporar ao direito, o podernormatizador do espírito. Os positivismos temem a normativi-dade a ponto de acreditar ser possível desdenhá-la e edificarsistièmas jurídicos axiologicamente neutros. Diante disso, pornão buscar a fonte original do direito, era inevitável que o cons-trutivismo da doutrina redundasse no “drama do positivismo

jurídico”, que Carré de Malberg viveu profundamente quandocompreendeu que o sentido da obrigatoriedade dos conceitos

do direito e das regras constituídas de uma ordem jurídica nãose revela sem uma mediação reflexiva.£Todos conhecem as reações antipositivistas e anticientifi-

cistàs de Leo Strauss e de Michel Viiley que, para escapar doobscurecimento dos “problemas fundamentais”, preconizavamo retomo aos antigos. Em sua antimodemidade, esses dois pensadores sonhavam operar uma volta às origens pré-modernas eencontravam no jusnaturalismo clássico as exigências de har

monia e de equilíbrio que, por terem aparência de verdade cósmica, constituem o padrão da normatividade de que o direito não pode prescindir. Segundo eles, as normas não são deste mundo:só há direito e, de modo mais geral, retidão ética possível à luzdas perfeições- paradigmáticas do grande Todo. Nosso problema aqui não é examinar a questão de saber se é possível ou se,no final do século XX, é desejável efetuar esse vertiginoso retorno arqueológico. Da filosofia desses dois autores, guardemos

apenas sua preocupação radical de salvar, contra a dupla agressão das ciências e da história, o eminente valor do justo natural.Sabemos também que, tomando um caminho totalmente

diferente, o idealismo fora, desde Platão, a primeira tentaçãofilosófica para atingir a inteligibilidade fundamental do universo jurídico. Com efeito, no céu das essências, na luz das Idéias,o idealismo oferece ao pensamento do filósofo os paradigmastranscendentes que ele, tendo-se tornado rei, tende a imitar emseu esforço legislador. O fundamento do direito seria portantoa Norma ideal e soberana residente no céu. Por conseguinte, a

postulação dualista do inteligível e do sensível, portanto do valore do fato, explica, na filosofia do direito desenvolvida por umalonga tradição idealista, a sublimidade dos discursos teleológicos.

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362 OS FUNDAMENTOS DA ORD EM JURÍDICA

Mas, como os desígnios da Providência parecem tantas

vezes contraditos pelas desgraças de nossa Terra, e, ademais,como as vias de Deus são impenetráveis, os ímpetos idealistassuscitaram reações realistas. A oscilação entre o realismo e oidealismo ritmou a história da filosofia. O fato de seu antagonismo ter atravessado os séculos ensina que a antinomia delesaguça os problemas em vez de resolvê-los. Aliás, era inevitável quê â marcha das coisas, levando o homem moderno para afrente do palco filosófico, conduzisse a uma nova formulaçãodo problema jurídico. Desde que o homem se pôs a caminharrumo à autoconsciência, desde que empreendeu a conquista desua “maioridade” e começou a compreender que lhe cabia conduzir sua vida sob um céu talvez vazio, ele já não podia pedir àtranscendência - seja a do Cosmos, da Idéia ou de Deus quelhe indicasse as “nascentes” dà ordem e do valor, sem os quaiso direito, desde a formação das Cidades, é impensável. O homemteve, portanto, de interrogar a si mesmo, num movimento reflexivo, para responder à necessidade de compreender o que, no

universo do direito em que suas condutas estão mergulhadas,lhe dá o caráter obrigatório de uma ordem coativa.3 / Portanto, foi preciso nada menos que um recomeço da

filosofia para superar os dualismos que suas postulações aprisionaram no choque desesperador entre as teses e as antíteses.Mas, nèsse ponto, convém evitar as armadilhas de uma visãohistorícizante da filosofia. É verdade que, em muitos sentidos,o recomeço da filosofia coincide com os ímpetos da “modernidade”; mas seria um erro crer que a filosofia do direito adquiriu uma fisionomia nova e definitiva com o humanismo racio-nalista das Luzes. Durante décadas, ela continuou a oscilar, nessemovimento de duplo frenesi que cadência o pensamento, dasvertigens do idealismo ao ramerrão do materialismo. Portanto,a cronologia das teorias pouco elucida o recomeço da interrogação filosófica. Por conseguinte, énele mesmo que devemosconsiderar o modo de pensar chamado a renovar a problemati-zação filosófica. '.*»

Ora, foi justamente o fato de formular a questão dodireito em termos inéditos que operou-uma revolução no ato de'filo^

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CONCLUSÃO 363

sofar. A busca obstinada das essências incutiu na filosofia conflitos redundantes de teses opostas, cujo caráter polêmico ex pressa bem que, para seus autores, uma teoria só é Verdadeirase a teoria adversa é falsa: por um lado, a discussão# interminável porque uma filosofia não é mais verdadeira que outra e, por outro, porque a filosofia assim pensada procura uma res posta para um problema mal formulado. A revolução criticistaefetuada por Kant que, a exemplo dos jurisconsultos no tribunal,de maneira geral substitui aquestão de fato pelaquestão d e di reito e, por conseguinte, a problemática daqüididade pela pro

blemática dalegitimação, abre para a filosofia a via inexplorada da dedução transcendental. ACrítica da razão pura certamente não é uma obra de filosofia do direito. Mas disseramcom clarividência que Kant, “na maior intimidade de seu ser ede seu gênio, é o homem do direito”1. Homem do direito ele defato é na medida em que, para ele, a reflexão filosófica estácentrada no procedimento específico dos juristas que buscam,num processo, o fundamento das pretensões das partes. Fazendoda crítica criticista, contra o empirismo atolado na ingenuidadede premissas cínicas, contra a racionalidade dogmática e contra os arroubos do idealismo essencialista, a mola primordial deum novo início da filosofia, Kant forjara o m éto do graças aoqual podia definir as condições de possibilidade e de validadedo direito positivo, exatamente da mesma maneira como podia pôr em evidência o que tomava o conhecimento possível e crível.

Apesar dos ataques de Hegel, de Schopenhauer e de Marx,de Max Weber e de Husserl, de Nietzsche e depois de Heideggercontra a filosofia kantiana, ela conservou força suficiente paraque, mesmo no tempo em que o irracional avança no mundo, o“retorno a Kant” tenha se tornado, para um número não des prezível de filósofos contemporâneos, um procedimento salutar e esclarecedor.

Para o filósofo do direito, a dificuldade provém do fato dea revivescência do karítismo, inserindo-se em registros diversificados, abandonar o mais das vezes a metodologia pr.oblema-

í ; J. Lacroix, K ant e t le kantism e, PUF, 1966, p. 12.

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364 OS FUNDAMENTOS DA ORDEM JURÍDICA

tizante inerente à “revolução copernicana” e empenhar-se s bretudo em interpretar Kant à luz da terceiraCrítica: privilegiam-se assim as duas temáticas da vocação prática da razãoda intersubjetividade, que se tornam as vigas de sustentação uma teoriada ação comunicacional e de uma ética da discussãMas, embora seja incontestável que essas filosofias correspodem às tendências e às necessidades das sociedades democráticcontemporâneas, elas consideram o problema do direito ap

nas como um caso particular do vasto problema sociopolíticque afeta os homens de nosso tempo. Compreende-se assimimportância que elas atribuem à reflexão sôbre a legitimidad

No exame dessa questão, o pensamento, rejeitando as formdogmáticas, dá lugar ao juízo reflexivo tal como definido nCrítica da faculdade de julgar. O objetivo confesso de tal reflexão (que, segundo o próprio Habermas, invoca um “retorna Kant e Fichte”2ou, mais precisamente, às teses kantianas com preendidas por meio de seus prolongamentos fichtianos) é prcisar a situação das democracias atuais, o que elas fazem esbçando modelos de organização que lhes sejam aceitáveis e qu pelo menos, sejam capazes de lhes refrear as disfunções. E claque o modelo racional da ação regulada por normas estabelecdas sobre a base de um consenso tem, nessa perspectiva, umfinalidade ética mais de conotação social e política do que e

pecificamente jurídica. A pertinência interpretativa das filosfias de Kant e de Fichte parece, sem dúvida, estimulante poconcerne de muito perto à condição e ao destino do homemcontemporâneo. Ocorre que o problema da fundação da orde

jurídica nelas só é abordado, num contexto mais amplo de mneira oblíqua.

Em compensação, a inspiração kantiana da epistemologi jurídica de Kelsen, mais próxima do método crítico, indicaenvergadura filosófica da “teoria pura” do direito. O normatvismo kelseniano implica umalógica transcendental que fazda teorização “pura” da ordem jurídica algo bem diferente d

2. J. Habermas,Connaissance et intérêt, Gallímard, 1976, p. 225.

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CONCLUSÃO 365

“uma estilização hábil mas excessiva”1. Como mostramos, o pro jeto ique a anima é fundar a validade da pirâmide das normassubordinadas à Constituição estatal. Os ataques a Kelsen provêm o mais das vezes de uma incompreensão daGrundnorm, que não é a base ontológica da arquitetônica jurídica nem, umahipótese de trabalho com valor operatório. Hipótese transcendental no sentido kantiano, isto é, radicalmente antimetafísica,ela é,a idéia pura que responde à questão de como é possíveluma|interpretação do significado de certos fatos como “um sis

tema5de normas jurídicas objetivamente válidas e descritíveisem proposições de direito”4. Ela procede da legislação primordial e pura característica do solo racional originário em que seenraíza toda obra positiva. Como tal, suscita uma reflexão sobreo sentido e o alcance do modo intelectual de produção que, nasistematicidade da ordem jurídica, faz o direito nascer do própriodireito. Assim, denunciam-se como incapazes de fundar o direitotanto as teorias decisionistas como as explicações situacionistas:ambas eliminam a normatividade do direito reduzindo-a ou aofato psicológico da vontade ou ao jogo da causalidade5.0 normativismo crítico consiste, por sua vez, em pensar problematica-mente o acordo-do dever-ser jurídico com as capacidades dá; razão: assim como o belo, na obra de arte, requer o acordo, contingente, entre a sensibilidade e o entendimento, o que, no seio da ordem jurídica, é lícito se dá como a apresentação, numa sociedadeconcreta, das Idéias da razão na função reguladora delas.

A explicitação da filosofia implícita que embasa a teoria

kelseniana - o próprio Kelsen se reconhece mais jurista qué filósofo - designa assim o transcendental como espaço nativo efundativo da ordem jurídica. Portanto, esta é algo bem diferente de um catálogo de regras coativas. É certo que, em todos osníveis de um sistema jurídico, as regras do direito são obriga

3. A. Brimo, Les grands coura nts de la philoso phie du dro it e t d e I 'Êtat, Pedone, 1967, p. 298.

4. Kelsen,Théorie pu re du droit, p. 267.'5. Cf., em particular,The Comm unist Theory of Law (1955) e Aufsàtze

zu r Idéblogiekritik, 1964.

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366 OS FUNDAMENTOS DA ORDEM JURÍDICA

tórias e executórias; mas, se assim é, não é porque essas regrassão prescrições imperativas dotadas da força específica vinculada às sanções; é, ao contrário, porque são promulgadas paratraduzir, ao mesmo tempo que aintenção de ordem do espírito,a necessidade de sentido e de valor sem a qual o homem nãoseria humano. Eis o que a volta da teoria pura do direito às fontes transcendentaisa priori do pensamento exprime. Esse percurso intelectual é notável: em vez de partir da afirmação primeira de uma juridicidade inerente ao pensamento, volta a elacomo a um fundamento necessário de legitimidade. Nessa pers pectiva de lógica transcendental que esboça uma orientação provedora de significação e de validade, dever-se-ia dizer queo direito positivo é mais “exposto” que “posto”. Seja como for,é claro que não basta, para compreender o direito em suá fundação última, insistir sobre o caráter autoprodutivo do sistema

jurídico: é isso, aliás, que separa a teoria transcendentalista da

teoria autopoiética. Para atingir a fundação do direito, é preciso “orientar o pensamento para seua priori jurídico”6. Em outras palavras, compreender a normatividade inerente a uma ordem jurídica exige que nos coloquemos no interior dela e que, porum processo ascendente, remontemos até sua última razão de ser.Era esse o procedimento que Kant propunha em sua Lógica transcendental quando, na Analítica, pesquisava, numa distância propriamente reflexiva, as condições não empíricas masa

priori que permitem que o objeto seja pensado. Seguindo essemesmo caminho, Kelsen, como ele mesmo diz, administra “coma maior fidelidade possível o legado espiritual de Kant”7; reconhece até ter ido “além do pensamento de Kant” ao descobrir aGrundnorm não como imediatamente produtora de normatividade, mas antes como o indicador da capacidadea priori que arazão tem de unir sinteticamente, em toda regra jurídica, sejaqual for seu nível na pirâmide e esteja ela determinada ou por

6. Renato Trevos, “Kelsen et le kantisme”, in Droit et socié té , 1987, n? 7, pp. 328-32.

7 Carta de Kelsen a R Treves datada de 3 de agosto de 1933 inD roit

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CONCLUSÃO 367

determinar, a positividade e a normatividade: o direito positivo é sempre “o regulamentonormativo da ação humana”8.

A maioria dos ataques de que foi alvo a teoria de Kelsen provêm, como dissemos, da incompreensão de sua filosofia im plícita, difícil em sua tremenda elevação. Essa filosofia procedede um pensamento forte e até mesmo duplamente forte: por umlado, é um desafio àqueles que, tendo constatado já em 1930 acrise e o declínio do direito, envolveram a razão em uma aurade suspeita tão amarga que se propuseram a “desconstruí-la”. Na contracorrente de um tempo em que prolifera o irracional,Kelsen toma a defesa dà racionalidade no que ela tem de mais

sublime. Por outro lado e sobretudo, Kelsen, daTeoria pura do

direito à Teoria das normas, destacou muito a importância dos problemas de normatividade9: indo, também aí, contra os triun-fos do positivismo, embora o tenham erroneamente colocadosob esta bandeira, Kelsen mostra a impossibilidade de apreender o sentido do normativo recorrendo ao princípio de causalidade; o que ele chama, no universo jurídico, de princípio deimputação é um cânone lógico irredutível ao modelo do determinismo causai. O equívoco dos positivismos é pensar o direito de acordo com o modelo das ciências da natureza, analíticase redutoras. O esquema causalista revela sua falta de pertinência quando se tenta aplicá-lo ao campo da ação, em que a qualificação e a apreciação jurídica escapam à determinação. Asregras de direito não podem ser neutras. Como a razão prática nãodifere da razão teórica, elas veiculam em suas prescrições a idéiade um fim que só o homem, diferentemente dos animais, é capazde propor a si mesmo. As regras que normatizam a ação são a

8. Théorie pu re du droit, p. 6. Com efeito, “o dualismo do ser e do dever-ser, do indicativo e do normativo, de modo algum implica que não haja relação entreSein e Sollen, que eles simplesmente existam lado a lado como dois mundos absolutamente separados” (p. 8). Mais adiante Kelsen precisa: “Quando se diz que os atos do procedimento legislativo ‘criam’ ou ‘determinam ’ normas, exprime-se simp lesmente com uma imagem essa idéia de que o ato, ou os atos que constituem o procedimento de legislação, têm como sentido ou significação « o r m a j . ---------- = ~ -

9. Kelsen,Théorie pu rèd u droit, pp. 105 ss.

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368 OS FUNDAMENTOS DA ORD EM JURÍDICA

figura jurídica de um princípio regulador que, expressament

leológico, indica um horizonte de sentido e de valor.Foi o que Kelsen mostrou em 1927 na segunda redaçãoseu estudo sobre A democracia'0', vinculava a idéia da democracia aos “dois postulados de nossa razão prática”11e decifravaa essência à luz de uma “concepção crítica-relativista”. Contconcepção tradicional dos “três poderes no Estado”, admite nas duas formas de governo porque, logicamente, só se p pensardois tipos ideais de governo: a democracia e a autocracia. Ora, o problema pertence mais à teoria do direito do quciência política: pois essas formas-limites distinguem-se pmodo de produção, portanto, de compreensão, de sua normvidade jurídica. Ao passo que aautocracia implicaheteronomia, uma vez que são as normas produzidas pelo chefe polítque se impõem, pela coação, a todos os sujeitos, ademocracia implicaautonomia, porque os criadores das normas (direta oindiretamente, é um mero problema técnico) são também sdestinatários. Com essa filosofia da democracia, Kelsen lev

ao apogeu, melhor do que o próprio Kant, a concepção kanna da razão, ainda mais imponente em sua vocação prática em sua função teorética. Na idéia de liberdade que é seu hzonte numênico, a capacidade da razão de fornecer a si messua lei - a autonomia que somente o homem pode pensar e

por a si mesmo como um dever - tem uma força extraordiria. Portanto, o direito positivo, devido à sua fundação, é caminho voltado para o mundo numênico em cujo horizontconstituem a consistência e a dignidade da condição humaÉ por isso que o direito internacional adquire uma densidacada vez maior - o que confirmam os atuais esforços da dipmacia e da jurisprudência. Se, por todo o sempre, o animal nora o direito é porque ele é totalmente governado pelo insto natural; no homem, o direito é um procedimento in-fmito da

10. Kelsen, La démocratie, sa nature, sa valeur, trad. Ch. Eisenmann, reed. Economica, 1988. (Trad. bras. A democracia , Martins Fontes, São Paulo, 1993.)

11. N esses dois postulados - “a reação contra a coação que resulta do estado de sociedade” e “o sentimento que cada qual tem de seu próprio valor”(La

démocratie, p. 17) - , repercute o tema kantiano da “insociável sociabilidade”.

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CONCLUSÃO 369

razão e, nessa busca infinda, evidentemente nenhum sistema jurídico tem um perfil definitivo.

Sob a claridade numênica dos princípios reguladores darazão, o direito tem uma figura ideal de onde irradia, como umapelo e um guia, a luz de um farol.

Numa correspondência datada de 1927, Kelsen escreveu:“Um dos problemas mais difíceis da ciência jurídica - mesmoque ainda não tenha sido claramente exposto até agora por faltade um fundamento metodológico - consiste em determinarcomo o sentido incontestavelmente normativo, no qual a ordem jurídica se reporta ao comportamento humano por ela regido, podeser ligado ao fato, igualmente incontestável, de que um acontecimento real, correspondente até certo ponto a essa ordem jurídica,constitui o pressuposto indispensável sem o qual não se pode

fa la r de uma ordem jurídica válida”12A solução desse problema, no Estado democrático do final do século XX, implica portanto uma escolha filosófica que situa a obra jurídica nos caminhos de um pensamento crítico e reflexivo. Ela impõe que aelaboração do direito passe pela auto-reflexão, cujo exercício

permite ao homem tender para a liberdade, ou seja, para a realização de sua humanidade. Essa tarefa normativa é das mais difíceis e nunca estará terminada. Mas ela é o signo dos valores dohumanismo. Por isso não basta substituir a “racionalidade instrumental”, inapelável, por uma “racionalidade processual”, naqual uma discussão e uma argumentação públicas refletiriamas exigências da intersubjetividade: se ela não tem fundaçãoincontestável e pura, corre o risco de se atolar na precariedade.Portanto, mais do que nunca, é necessário “devolver à razão

prática sua função crítica”'3e ter a coragem de “pensar o que sa bemos”. E o preço que se tem de pagar para que, em nosso mundodilacerado, o homem-Prometeu não seja devorado.

12. Recordemos aqui o texto, póstumo (19 85), de Kelsen, cujo título é D ie Illusion der Gerech tigkeit. Eine kr itische Untersuchun g der Sozialphilo- so phie Pla tons, que mostra claramente que não é po ssível confund ir o caráter ideal do direito com a idealidade (dogmática) da Idéia platônica.(A ilusão da

ju sti ça , Martins Fontes, São Paulo, 2 000 .)13. P. Ricoeur, “La raison pratique”, in Ration ality Today, op. ci t. , p. 225.

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índice onomástico

Accursio, 309.Adorno Th., 271-3.Agostinho (Santo), 36-7. Aguesseau H. F. d’, 113.Albert H„ 302.Alchourron C. E., 134,229. Alciat A.,XXIII.Alquié F., XXIII, 44.Althusius J., XXI.Althusser L., 171, 173,198. Amseiek P., 120,138 ,203 ,211 ,

226-9,253-4,288-94. Antifonte, 14,16.Antígona, 10,11,32. Antístenes, 13.Apel K. O., 220 ,298-308,313. Aquino T. de, 36 ,37 ,61 ,177,

209,210.ArdantPh., 112.Arendt H., 176,183,198. Aristóteles, XX, XL, 11,23,

28-37, 46, 48, 72, 205, 207-10,312.

Amaud A. J., 226,231-5.Aron R., 88,197.Atias Ch., 100,108.Aubenque P., 29 ,31 ,353. Austin J., 291-2.Austin J.L , 73 ,74,220.Avril P.", 245: '

Bacon F., 45.Barbeyrac J., 67 ,80,81 . Barthélémy J., 111.Bartley W. W., 302.Bartolo, XX.Bastid P., 111.Bastit M.,40.Batiffol H.,1.Beccaria C., 82.BeaudO., 158.Bentham J., 82,206,239.

Bergbohm K , XXVIII, 73, 74, 101 .BergsonH., 105,158,161 . Berriat Saint-Prix F., 111. Berten A., 306-7.BlochE , 169,174,175.Bobbio N., 73,74,134 ,341 ,350. Bodin J., XVII, XX, 22,24 ,31 ,

61,122,190,205,223. Bonald (de) L., 175.Bourgeois B., 68,259,270. Brimo A., 158,286,365. BubnerR., 308.Bugnet, 73, 90,129,150. Bulygin, 134,229.Burdeau G., 102,118,157. Burke Ed., 175-9,182,199. Bürlamaqui J.-J., XVII, 63,67^ 81.

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372 OS FUNDAM ENTOS DA ORDEM JURÍDICA

Cambacérès J. J. R., 85,113. Capitant R., 112,228,354. Carbonnier J., XIII, XXX, 84. Carré de Malberg R., XXIX, 2,

72-5,102,111,112,118, 121,131-3,138,141,160, 361.

Carrino A., 134,353.Cassirer E., 27,256,269,270,

353.Castel (abade) de Saint-Pierre,

333.CerroniU., 169,172. ChanteboutB., 112.Chanteur J., 20.Charmont J., 104.Carondas de Catânia,8. Charondas J., XVII.Chevallier J., 144,152. Chipman Gray J., 241.

Cícero, 10,28,34-5, 55, 177. Coccejus S., 67, 81.CohenH., 345, 353.Coke (SirEd.), 122. ComteA.,73, 76,154,168. Condorcet A. N. de, 123,125. Connan F., XVII, XX.Constant B., XXXVI, 111,116,

176.

Copémico N., XXIII, 320,322,326,329,330,338,364. Coquille G., XXI.CossioC., 278.Creonte, 10,11.Cujas J., XX, 113.Cumberland R , XXXII, 36, 62,

80,81.

DavyG., 164,280. mDelvaux P., XXXIV. Demolombe J. J. F., 73,90,129,

150.

Demóstenes,8.Descartes R., XXII, 44 ,46,51 ,

201,202,209, 300.Domat J., 36,64 ,65 .Doneau H.; XVII, XXI, 205. Drácon,8.Dufour Al., 178.DuguitL., 111, 150,153-60,

163,167.Duns Scot J., 41,4 2,4 9. DurkheimE., 154,156,159,

165,220.Dworkin R., 163;. 204,212-20,

255,236-9.

EhrardB., 339.Ehrlich E., 151,164.Eichhom K. F., 178. Eisenmann Ch., 120,340,341. Eismein A., 111.

Empédocles, 32.Epicuro, 48.EwaldF., 193.

FavoreuL., 112. 'Felice (de), 81.FenyL., 88,192,272. Feuerbach L., 339.Fichte J. G., XXV, XXVI, 93,

128,266,302,339,364. Filangieri G., 82.>FinkE.,253.Formey J. H. S., 67,81. Foucault M., 187, 189-94, 198,

235.FullerL., 239.

Galileu G., XXII, 45,49 .Gans Ed., 178,275.Gardies J.-L., 90 ,275 ,279,28 2,

285,286,287,293,.Gentz Fr. von, 175,178.

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ÍN DIC E ONOMÁST ICO 373

Gény F., 141,150-3,164.Goldschmidt V , 48.

Gõrres J. J., 178.Gottlob K. G., 333,334.Gray J., 74.Grégoire de Toulouse, XXI.Grotius H , XVII, XXI, XXII,

XXIII, XXV, XXXI, XXXII, XXXIII, 43 ,46,49 ,58-6 1, 67,71-2, 79,81,93,205, 207,333,336.

Grzegorczyk Ch., 225.Guastini R., 219.Guinle Ph., 90.GurvitchG., 151,162-6.

Habermas J, 143,191,194,195, 220,237,299,304-13,364.

Haggenmacher P., XXIII, 58.Haller A von., 96.Hart H., XLI, 72, 74,117,163 ,

212-7, 228,236-9.HauriouM., 111, 112,140,

157-63,241.HayekFr., 184,185,318.Hegei G. W. F., 11,27,44,68-75,

84,85,91-100, 115, 130, 156, 170, 178, 180, 181, 184,243,251-7,275,277, 297,305,315,321,359,344,356,363.

Heidegger M., 201,202, 219, 226, 246,271,300 ,319, 340, 353,363.

HeinimannF., 12,14.Herder J. G. von, 177,178.Heródoto, 12,13.Hípias, 13.Hobbes Th., XXIV, 44-9,52,

53-64, 69, 77-80, 87-99,122, 139,153, 205-7,223, 311,317.

Hõffe O., 243,310,311,313,341 .Holmes, 74.

Homero, 7.HondtJ.de, 253 ,255,258 .Horkheimer M., 271-3.Homius J.-F., 67.Hotman F., XXI, XXIII.HuberE., 164.HufelandG., 81.Hugo G. von, 178-81.Humboldt G. de, 179.

HumeD., 176, 199,302.Husserl Ed, 103,251,253,256, 271,276-81,285,287,289,295,299,363.

Husserl G , 278.

Imerius, XX.

Jellinek G , 73 ,74 ,75,1 59 .Jèze G , 74,151.Jourdan A , 181.Justiniano, 113.

Kant E , XIII, XXV, XXVII, XXXIII, XLII, 44, 49, 73, 80, 84, 93, 127, 128,202, 205, 207, 209,243,250, 255,256, 266,271,281, 284,285,295,296,297-333, 340-57,363-8.

Kantorowicz E , 151.Kaufman F , 278.KautskyK, 171.Kelsen H , 2, 77, 90, 118-21,

128, 131-9, 167, 172, 196, 204, 223, 224, 228, 230,256, 340-57, 364-9.

Kerchove M. van de, 148.Kojève A , 97-9,269,270.

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374 OS FUNDAM ENTOS DA ORDEM JURÍDICA

Laband P., 74,159.Laboulaye Ed, 111,116,176,181. Lacroix J., 363.Lafrance G , 310,313. LamoignonPt, 113.Lebrun G., 257.LegaultG. A , 293.Leibniz G. W., 67 ,71,87. Lenoble J , 306,307 .Lepage H , 104.LerminierE, 181.Letocha D , 107.Lévi-Strauss C l, 235.Licurgo,8.Linguet S. N. H„ XXV, 82. Liv etP , 221.LochakD, 102.Locke J, XXXII, XXXIII, 46,49,

63,66,80, 87,205,311,317, 332.

Luhmann N , 204,220-5.

Lutero M , 42.Mably (G. Bonnot de), XXV, 82. Mac Cormick N , 212,236-41. Mãimon S , 339.Maistre J. de, 175,199. Maquiavel N , 42 ,44-5, 190. Marcuse H , 28.MaritainJ, 104.Marsílio de Pádua, 44.MarxK, 169,170,173,174,184,

270-1,315,319,363. MaturanaH, 221.Meinecke Fr , 183.Mendelssohn M , 327. Merleau-Ponty M , 202 ,250,

278, 284,295.Mersenne M , 4 5,49.Meyer M , 309, 319.MichautF, 219.MirabeauH. G , 82 ,125.

Moevius D , 67.MommsenTh, 179. Montesquieu Ch, XXV, 31,33,

58,60,63-5,69,70,73,82, 83,114,161, 176,182,197.

MooreW.E, 166.More Th, 87.Morelly (abade), 82.

Natorp P , 353.Nietzsche Fr, 103,169,187-92,

201,271,363.Nozick R , 317-8.

Occam G. de, XXXI, 41-3,204, 211.

Olivecrona K , 293.OresmeN , 41.OstF.,222.

Passerin d’Entrèves A , 104,305. PasukanisE. B , 172.Pattaro E , 203 ,204,23 5,35 5. Paulo, 211.Petrasizky L , 151.Pierce Ch. S , 299,303.Píndaro, 12,13.Planty-Bonjour G , 259, 275. Platão, 8, 12-28,31,33,35,37,

48,52, 135, 158, 250, 264,

269,361.Pohlenz M , 12,14.Po linR, 117,198.PopperK, 28, 182, 185,227,

271,302.Portalis J. E. M , 73, 85, 112-5,

129, 130.Poulantzas N , 286.Pound R , 166,167,206. Protágoras, 13, 14,15,16,20. PuchtaK. F, 178,1807184!

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ÍNDICE ONOMÁSTICO 375

Pufendorf S , XVIII, XXXI, XXXII, 43, 59, 60, 62, 63, 67, 69, 80 ,81 ,84 ,20 5, 327.

Rachel S., 67, 81.RankeL, 179.RaynaudPh, 175,178.Rawls J , 243 ,244,308-19. Ra zJ, 116,134,219,238. RehbergG, 178.Reinach A , 278,279-87. Reinhard A , 339.Reinhold K. L , 343.Reisdorf K , 278.Renaut A , XXVI, 73 , 87, 192,

272, 341.Riais St, 138,157.Richelieu A. duPlessis, 51,122. RicoeurP, 103,295 ,318, 369. RipertG, 100.RiveroJ, XXXIV,88.Rorty R , 300.Ross A , 102.Rousseau J.-J, 44 ,49, 75, 77,

80-5, 124, 153, 156, 159, 176-7, 205 ,311 .

Russell B , 28.

Savigny C. von, 175,178-84. Scelle G 151 157

Sófocles, 10,11 ,32.Sólon,8.SouriouxA, 104,205. SpenglerO, 184.Spinoza B , 47, 52, 53 ,54 , 55,

59, 60, 62, 69.StammlerR, 208.StrasserSt, 103,278.Strauss L„ XXIV, XXIX, 1,6,

10,18, 29 -35 ,38,44, 105,178, 182, 185,186 ,361.

Stuart Mill J„ 206,243,311,317. Suarez F , 42,43,17 7.

TerréF, 149.TeubnerG, 221,224.Thevenaz H , 340,351.Thibault A. F. J, 179. Thomasius Ch, 67,81.Toynbee A , 184.Treves R , 340,366.TroelschE, 104,183.Troper M , 73,100,102,112,219,

226,229-32,340,341.

Ulpiano, 97.

VattelE. de, 58,67,81,333. Vecchio G. dei, 208.Vedei G 112 242