Simulado Cronica 1

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SIMULADO 1 Duas e três Levei um susto quando aquela voz soprou em minha nuca: - Se tu é bom, mata essa: “Não durmo no Rio porque tenho pressa; duas e três.” Voltei-me para ver quem falava. Era um homem quarentão, alto e gorducho, de roupas imundas, rasgadas, e cara encardida. Uma cara simpática de gângster regenerado. Ele ria: - Mata essa, vamos! Era de manhã cedo, em junho, e fazia um frio agradável. Acordara e, sem ter para onde ir, sentei-me naquele banco da praça Floriano, em frente à Biblioteca Nacional, à espera de que ela abrisse. Meu velho terno marrom esfiapava nas mangas, o sapato empoeirado, a barba por fazer. “Esse homem está me tomando por um vagabundo”, pensei comigo. E achei divertido. - Matar o quê? - A charada, meu besta! O velho se debruçava em cima de mim, com um riso gozador. Fedia a suor e molambo. Afastei-o um pouco, com o braço e, meio sem saber o que fizesse, acedi. - Como é mesmo a charada? - Só repito esta vez, tá bom? “Não durmo no Rio porque tenho pressa; duas e três” Sempre fui um fracasso para matar charadas. Fiz um esforço para penetrar nas palavras, mas em vão. - Digo mais. – esclareceu-me o vagabundo. – Chaves: “Não durmo no Rio” e “Rio”. Conceito: “pressa”... Mas você é burro, hei. Donde diabo viera aquele cara impertinente, para me obrigar a resolver uma charada àquela hora da manhã? Mas meu orgulho estava em jogo. Pensava e o pensamento escapulia. - Não consigo decifrar. Não me amola. - Então você perdeu. - É, perdi. - Então paga. - Paga o quê? - Duas pratas, meu Zé. Você perdeu! Era incrível. Comecei a rir. Ele também ria e dizia: “Paga, duas pratas.” Dei-lhe uma cédula de dois cruzeiros e fiquei ali rindo enquanto ele se afastava arrastando seus sapatos furados. Semanas depois, estava eu no Passeio Público, quando ele veio com a mesma conversa, com se nunca me tivesse visto. “Mata essa: não durmo no Rio, porque tenho pressa; duas e três.” Respondi-lhe em cima da bucha: “Não durmo, velo; no Rio. cidade: velocidade. “Ele ficou desapontado. “Você perdeu”, disse-lhe eu.“Paga duas pratas.” Olhou-me sério, meteu a mão no bolso e estendeu-me duas notas imundas. Fomos tomar juntos um café na Lapa. GULLAR, Ferreira. O melhor da crônica brasileira. 1 Ferreira Gullar...[ET al.]. – 5ª Ed. – Rio de Janeiro: José Olympio, 2007.

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Cronica

Transcript of Simulado Cronica 1

  • SIMULADO 1

    Duas e trs

    Levei um susto quando aquela voz soprou em

    minha nuca:

    - Se tu bom, mata essa: No durmo no Rio

    porque tenho pressa; duas e trs.

    Voltei-me para ver quem falava. Era um homem

    quarento, alto e gorducho, de roupas imundas,

    rasgadas, e cara encardida. Uma cara simptica

    de gngster regenerado.

    Ele ria:

    - Mata essa, vamos!

    Era de manh cedo, em junho, e fazia um frio

    agradvel. Acordara e, sem ter para onde ir,

    sentei-me naquele banco da praa Floriano, em

    frente Biblioteca Nacional, espera de que ela

    abrisse. Meu velho terno marrom esfiapava nas

    mangas, o sapato empoeirado, a barba por fazer.

    Esse homem est me tomando por um

    vagabundo, pensei comigo. E achei divertido.

    - Matar o qu?

    - A charada, meu besta!

    O velho se debruava em cima de mim, com um

    riso gozador. Fedia a suor e molambo. Afastei-o

    um pouco, com o brao e, meio sem saber o que

    fizesse, acedi.

    - Como mesmo a charada?

    - S repito esta vez, t bom? No durmo no Rio

    porque tenho pressa; duas e trs

    Sempre fui um fracasso para matar

    charadas. Fiz um esforo para penetrar nas

    palavras, mas em vo.

    - Digo mais. esclareceu-me o vagabundo.

    Chaves: No durmo no Rio e Rio. Conceito:

    pressa... Mas voc burro, hei.

    Donde diabo viera aquele cara impertinente,

    para me obrigar a resolver uma charada quela

    hora da manh? Mas meu orgulho estava em

    jogo. Pensava e o pensamento escapulia.

    - No consigo decifrar. No me amola.

    - Ento voc perdeu.

    - , perdi.

    - Ento paga.

    - Paga o qu?

    - Duas pratas, meu Z. Voc perdeu!

    Era incrvel. Comecei a rir. Ele tambm ria e

    dizia: Paga, duas pratas. Dei-lhe uma cdula de

    dois cruzeiros e fiquei ali rindo enquanto ele se

    afastava arrastando seus sapatos furados.

    Semanas depois, estava eu no Passeio Pblico,

    quando ele veio com a mesma conversa, com se

    nunca me tivesse visto. Mata essa: no durmo

    no Rio, porque tenho pressa; duas e trs.

    Respondi-lhe em cima da bucha: No durmo,

    velo; no Rio. cidade: velocidade. Ele ficou

    desapontado. Voc perdeu, disse-lhe eu.Paga

    duas pratas. Olhou-me srio, meteu a mo no

    bolso e estendeu-me duas notas imundas.

    Fomos tomar juntos um caf na Lapa.

    GULLAR, Ferreira. O melhor da crnica brasileira. 1

    Ferreira

    Gullar...[ET al.]. 5 Ed. Rio de Janeiro: Jos

    Olympio, 2007.

  • Aps ler o texto com ateno, responda as questes abaixo:

    01.A narrativa est em 1 ou 3 pessoa? Retire do texto um trecho que justifique sua resposta.

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    _____________________________________________________________________________

    02. Onde e quando aconteceu o primeiro encontro entre os dois homens?

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    _____________________________________________________________________________

    03.Para o narrador o que lhe pareceu ser o homem que o abordara? Assinale a alternativa

    correta:

    a) um vagabundo de rua b) um mgico de rua

    c) um vigarista d) um trabalhador desempregado

    04. Assinale a alternativa correta:

    a) O narrador achou muito comum e normal a abordagem que lhe foi feita pelo homem.

    b )O narrador repeliu, veementemente, o homem.

    c) Apesar de ter achado estranha a abordagem, o narrador acabou se envolvendo com a

    simpatia do desconhecido.

    d) O estranho queria extorquir o narrador.

    05. Qual a palavra que melhor se aproxima de um sinnimo para a palavra charada?

    a) duelo b) disputa c) comando d) enigma

    06. Na frase Este homem est me tomando por um vagabundo. a expresso

    destacada significa:

    a)parecendo com b) comparando com

    c) acompanhado por d) discordando de

    07. O narrador pagou duas pratas ao velho porque:

    a)jamais estivera naquela situao.

    b)pela conversa agradvel do homem.

    c)no conseguiu decifrar a charada.

    d)porque o homem estava com fome.

    08. Em Mata essa, vamos! o termo destacado tem o mesmo sentido de:

    a) elimina b) abate c) extermine d) resolve

    09. O texto se desenvolveu em torno:

    a)da amizade impossvel entre duas pessoas que pouco se conheciam.

    b)da camaradagem entre dois homens apreciadores de charadas

    c)do encontro inesperado entre pessoas que no se conheciam

    d)do hbito das pessoas frequentarem praas e bibliotecas

    10.A que se referem as palavras duas e trs, que formam o ttulo do texto?

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