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Table of Contents

Sobre o livro

Índice

Copyright

Prefácio

Sobre o Autor

PARTE 1 – FISIOPATOLOGIA

Capítulo I: História e Epidemiologia

Capítulo II: Fibromialgia e síndromes de sensibilidade ...

Capítulo III: Fibromialgia como diagnóstico

Capítulo IV: Relações entre o sono e a fibromialgia

Capítulo V: A personalidade fibromiálgica e subgrupos ...

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Sobre o livro

Esta é uma versão demo. Para adquirir o livro completo, acesse:

http://papyrus.yourstory.com/web/66530/A-Ciencia-da-dor#

Desde as primeiras descrições de “neurastenia”, no século XIX, muito se aprendeusobre as condições funcionais que envolvem dor crônica. Infelizmente, esseconhecimento ainda não foi traduzido em melhora da qualidade de vida para seusportadores, uma vez que apenas uma minoria experimenta melhora significativados sintomas em longo prazo. Especialistas, e as entidades que os representam,assumem abertamente sua impotência em relação a essa questão, o que acaba porabrir espaço para um tumulto de propostas terapêuticas, algumas cabíveis e outrasmirabolantes. O Colégio Americano de Reumatologia faz referência aos“componentes existenciais, filosóficos e sociais” dessas doenças, eximindo-se deresponsabilidades que extrapolariam sua área de atuação. Tratar adequadamentedo assunto implica, efetivamente, transitar entre esses mundos. Como fazer issosem violentar os princípios que regem a ciência? Como enfrentar a terrível Babel?O presente livro utiliza a ciência como base, segue um pouco mais adiante com alógica e, finalmente, preenche os espaços vazios com ideias e conceitos,sedimentados ao longo de nossa história. É um caminho que passa pelaneuroanatomia, neurofisiologia, genética, epidemiologia, psicologia, biologia,sociologia e filosofia. Antônio Damasio, Oliver Sacks, Jaak Panksepp, CharlesDarwin, Erwin Schrödinger, Sigmund Freud, Wilhelm Reich, René Descartes,Sócrates, Aristóteles e Platão norteiam a narrativa que pretende lançar luz sobreessas lacunas e apresentar um novo modo de ver e tratar tais condições.

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Índice

Prefácio

Parte 1 - Fisiopatologia

Capítulo I: História e Epidemiologia

História

Epidemiologia

Prevalência relativa à idade, sexo e condições sociais

Impacto social

Capítulo II: Fibromialgia e síndromes de sensibilidade central

Sintomas na fibromialgia

Síndromes de sensibilidade central

Capítulo III: Fibromialgia como diagnóstico

Diagnóstico de exclusão: quando ouvir barulho de cascos, pense em zebras.

Dor local induzindo dor sistêmica

Capítulo IV: O sono e a fibromialgia.

Todos os fibromiálgicos dormem mal?

Todos os que dormem mal têm fibromialgia?

O sono e as diferenças entre os sexos

Modelos animais de privação de sono (e diferenças entre os sexos).

Comparações entre fibromialgia e demais síndromes de sensibilidadecentral

Dói porque não dorme, ou não dorme porque dói?

Porque o sono é ruim?

Capítulo V: A personalidade fibromiálgica e subgrupos na fibromialgia

Subgrupos na fibromialgia4

Fibromiálgicos tipo-1

Fibromiálgicos tipo-2

Catastrofização

Resumo esquemático de parte da fisiopatologia da fibromialgia

Capítulo VI: Bases genéticas da fibromialgia

Bases genéticas da fibromialgia

Interação ambiente-genes

Capítulo VII: Osistema nervoso

Anatomia básica

Sistema nervoso periférico

Sistema nervoso central

O desenvolvimento do sistema nervoso central

Capítulo VIII: Os circuitos neuroafetivos

Sistema límbico

Cérebro trino de MacLean

Capítulo IX: Origem biológica de nossas diretrizes primárias

Gerenciamento da homeostase

Mecanismos de monitoramento do meio externo (exterocepção)

Mecanismos de monitoramento do meio interno

Mecanismos de respostas às ameaças à homeostase

Capítulo X: Mapas e a representação da realidade.

Sentimentos e emoções

Capítulo XI: Busca e vias descendentes inibitórias da dor

Sistema motivacional de busca

Vias descendentes inibitórias da dor

Capítulo XII: Sistema de recompensa

Satisfação e saciedade

Importância biológica do consumo hedonista

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Capítulo XIII: Neurofisiologia do estresse e relações com as síndromes desensibilidade central

Eixo hipotálamo-pituitária-adrenal

Vasopressina (hormônio antidiurético)

Hormônio do crescimento (GH)

Estresse agudo versus crônico

Dessensibilização do eixo HPA

Plasticidade neuronal no eixo HPA

Plasticidade neuronal e depressão

Diferenças entre os sexos

Eixo HPA e GH na fibromialgia e nos distúrbios de sensibilidade central

Eixo HPA na depressão

Capítulo XIV: Sistema imune e o estresse

Sistema imune influenciando o sistema nervoso central - fibromialgiasecundária

Introdução à imunologia

Sistema inato/ imunidade natural

Sistema adaptativo

Estresse influenciando o sistema imune

Estresse agudo e autolimitado

Estresse breve e natural

Sequência de eventos estressantes

Estresse crônico

Estresse distante

Doenças associadas a alterações imunológicas do estresse

Susceptibilidades individuais aos efeitos do estresse sobre a imunidade.

Alterações imunológicas na depressão

Alterações imunológicas na fibromialgia

Capítulo XV: As diferentes formas dos "Eus"

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Proto-eu

Eu Nuclear

Eu autobiográfico

Self

Teoria das relações de objeto

O self na fibromialgia

Insuficiência, eternamente

A insuficiência do self na maternidade

Capítulo XVI: Empatia na fibromialgia

Capítulo XVII: Depressão e mecanismos de autodestruição

O papel da depressão

O Eros e Tânatos

O arco de Eros e a foice de Tânatos

O self entre Eros e Tânatos

Transtorno do estresse pós-traumático

Capítulo XVIII: Controle e confiança

Capítulo XIX: Fibromialgia segundo a psicologia

Neuroses

Sigmund Freud

Teoria estrutural de Sigmund Freud

Teoria do desenvolvimento psicossexual

Escolas derivadas da psicanálise clássica

Teoria Moderna do Conflito

Teoria das Relações Objetais

Psicologia do Self

Wilhelm Reich

Teoria da potência orgástica

Análise do Caráter

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Correlação evento-traços de personalidade

Capítulo XX: Síntese da proposta de fisiopatologia

Parte 2 - Tratamento

Capítulo XXI: Tratamentos medicamentosos

Analgésicos

Opióides

Analgésicos não opióides

Anti-inflamatórios

Anti-inflamatórios não esteroidais

Relaxantes musculares

Calmantes

Indutores do sono

Antidepressivos e anticonvulsivantes

Gabapentina e Pregabalina

Antidepressivos

Outras drogas

Associação de drogas

Limitações do tratamento Medicamentoso

Capítulos XXII: Princípios gerais no tratamento da fibromialgia

Pontos essenciais das diretrizes mundiais

Resposta ao tratamento padronizado

Capítulo XXIII: Imprinting de self e teoria da psico-economia

Imprinting no self

Self basal, self variável e teoria psico-econômica

Fatores modificadores do self variável

Instintos sociais

Instintos individuais

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Disponibilidade dos fatores modificadores do self

Relativa autonômica psico-econômica

Atividade de efeito social, individual e misto

Capítulo XXIV: Imprinting na neurofisiologia do estresse

Terapia cognitiva

Terapia de exposição

Capítulo XXV: Imprinting da sensibilidade à dor

Controlar a dor controlando o estresse

Abordagens medicamentosas ao imprinting do processamento da dor

Tratar a dor localizada

Minimizar o impacto afetivo da dor

Ação sobre as vias da dor

Promoção do sono de boa qualidade

Abordagens NÃO medicamentosas ao imprinting do processamento da dor

Tratar a dor localizada

Minimizar o impacto afetivo da dor

Ressignificação da dor

Saídas comportamentais adaptativas

Sentimentos não são tóxicos

Ação sobre as vias da dor

Promoção do sono de boa qualidade

Capítulo XXVI: Promoção do sono de boa qualidade

Cenoura

Chicote

Higiene do sono

Observar o corpo

Outras condições clínicas ou ambientais que prejudicam o sono

Crianças no quarto

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Capítulo XXVII: Reintegração do corpo físico

Negligência e abuso

Ineficiência psico-econômica

Intervenção externa

Risco real

Medidas de reestruturação

Rotina rígida (garantir condições mínimas de operação)

Expansão

Capítulo XXVIII: Conduzindo uma transformação segura

O novo deve surgir antes do velho se desfazer

Porque os fibromiálgicos não conseguem dizer "não"

Desatar nós

Capítulo XXIX: Orientações ao paciente

Reforço ao diagnóstico

Fibromialgia é uma doença real

Mecanismos envolvidos na fibromialgia

Recomendações práticas

Capítulo XXX: O papel do médico

Médico do pronto-socorro

Médico do atendimento ambulatorial

Confiança

Maturidade

Razões para a falha em proporcionar as mudanças necessárias

Dificuldades intransponíveis

Medo de mudanças

Capítulo XXXI: O papel do psicoterapeuta

Confiança e maturidade

Razões para a falha em proporcionar as mudanças necessárias

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Correção de aberrações cognitivas

Promoção da integração mente-corpo

Capítulo XXII: Atividades e técnicas diversas

Exercícios físicos

Eficácia das atividades físicas na fibromialgia

Fisioterapia e treinamentos personalizados

Terapias de movimentos meditativos

Yoga

Tai chi

Qigong

Técnicas meditativas

Mindfulness

Outros

Acupuntura

Manipulação

Biofeedback

Biodanza

Capítulo XXXIII: Fragmentos

Isadora

Soraia

Marina

Martin

Epílogo

Apêndices:

Apêndice I: Critérios para a classificação de Fibromialgia de 1990 –Colégio Americano de Reumatologia

Apêndice II: Critérios e escala de gravidade de Fibromialgia para estudosclínicos e epidemiológicos – Critérios ACR 2010 modificados

Apêndice III: Questionário de Dor de McGill – Versão curta (Português

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brasileiro)

Apêndice IV: Questionário Revisado sobre o Impacto da Fibromialgia(FIQR), português Brasileiro

Apêndice V: Questionário genérico de avaliação de qualidade de vida SF-36 (Brasil SF-36)

Apêndice VI: Características clínicas do leitor fibromiálgico

Referências

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Copyright

Autor

Pedro Ming Azevedo

Copirraite © 2016 Pedro Ming Azevedo

Primeira publicação usando Papyrus, 2016

ISBN :

Esta é uma versão demo. Para adquirir o livro completo, acesse:

http://papyrus.yourstory.com/web/66530/A-Ciencia-da-dor#

Este livro pode ser adquirido por educação, negócios, vendas ou uso promocional.Edição on-line também está disponível para este título. Para mais informações,contacte [email protected]

Embora toda precaução tenha sido tomada na preparação deste livro, a editora e osautores não assumem nenhuma responsabilidade por erros ou omissões, ou pordanos resultantes da utilização das informações aqui contidas.

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Prefácio

Eu já havia visto aquele mesmo padrão incontáveis vezes e talvez pudesse,inclusive, ter adivinhado o diagnóstico antes mesmo de ela entrar no consultório.Detalhes quase imperceptíveis, a desproporcional força dos trapézios e masseteres,uma postura levemente anteriorizada e elevada dos braços: consequência inevitávelpara aqueles que carregam o mundo nas costas. Seus olhos vivos, seu sorrisoconstante e sua postura ativa contrastavam com o relato que me fazia de dores ecustosa resistência. Contou-me, também, que já havia estado inúmeras vezes nessasituação: ortopedistas, neurologistas, clínicos gerais, ginecologistas ereumatologistas. Talvez por isso, tivesse optado por se queixar apenas da dor quemais a incomodava naquele momento. A “dor da vez” era em seus braços eirradiava para as mãos e cotovelos. Seu esposo, em um desabafo, aborrecido commais essa dor, havia insistido para ela voltar a um reumatologista. “Não é normalisso! Há de ser algum tipo de reumatismo. Você precisa ver isso!” Perguntasdirecionadas dissolveram sua resistência em falar sobre suas outras dores. Naverdade, ela praticamente não tinha recordações de períodos em que estivesse livredelas. Na adolescência já as sentia e, certamente, haviam piorado após onascimento do primeiro filho. Sua infância havia sido marcada por fortes, masocasionais, dores de cabeça, presentes até hoje. A elas somavam-se dor no pescoço,dor nos ombros, dor entre as escápulas, dor lombar, dor nas partes superiores dosglúteos, dor nas coxas... Seu sono era muito ruim – “Claro, como dormir comtanta dor?” No entanto, o alívio momentâneo das dores, proporcionado poranalgésicos ou anti-inflamatórios, nunca foi muito eficaz para sua melhora. E a“plaquinha”, fornecida pelo ortodontista, era sistematicamente destruída durante anoite.

Trazia a tiracolo uma enorme sacola de exames: de sangue até cintilografia óssea,passando por tomografias e ressonâncias. Enquanto folheava os exames, pedi queela resumisse o que eu encontraria ali. “Diversas ultrassonografias e ressonânciasapontaram tendinites e bursites. A ressonância da coluna mostrou bicos-de-papagaio e hérnia de disco, mas o ortopedista disse que isso não era nada. Algunsexames de sangue apontaram alterações, algumas vezes, mas ao repeti-los jáestavam normais.” Foi um resumo perfeito. Ainda havia alguns exames que euprecisaria solicitar (a criatividade de reumatologistas para solicitar exames é quase

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infinita) mas, sinceramente, ficaria muito surpreso se eles me apontassem outrodiagnóstico. O exame físico sugeriu epicondilite lateral em ambos os cotovelos eprovável tendinite dos extensores dos braços, além de um corpo tenso e doloridocomo um todo. Naquele momento, como de hábito, minha cabeça buscava frenéticae angustiadamente a melhor abordagem para discutir, com aquela paciente, odiagnóstico, suas causas, e a linha que seguiríamos para tratá-la. Entendo por quealguns médicos - provavelmente a maioria - prefeririam focar-se na epicondilite etendinite da vez e, simplesmente, empurrar o problema para a frente. Nessemomento, a consulta já passava de 45 minutos e, para dar o que essa pacienteprecisava, eu teria, ainda, de discutir assuntos profundos de ordem emocional desua personalidade, além de prescrever medicações. Aliás, é o consultório médico olugar adequado para se discutir “assuntos profundos de ordem emocional dapersonalidade” de pacientes? Diferentemente dos psicoterapeutas, não temos otreinamento necessário (o que é um grande absurdo, diga-se de passagem), nãovemos os pacientes com tanta frequência e estamos em uma posição hierárquica,digamos, não terapêutica. Na verdade, me arrependi todas as vezes que, na melhordas intenções, me dispus a dar a mão ao paciente e seguir com ele em uma incríveljornada até as profundezas do seu ser. É, sem dúvida, um momento intenso,catártico, transformador e de profunda entrega. Porém, enxugadas as lágrimas, opaciente está nu em espírito, frágil e sozinho. Nesse momento eu procuroencaminhá-lo a um bom psicoterapeuta, a fim de que a jornada para a curaprossiga da forma mais eficiente possível, mas o paciente reluta. Afinal, o vínculose fizera comigo e, assim, o papel de simples prescritor de drogas não era maispossível para mim.

Há poucos anos, li um artigo de revista no qual o autor se queixava do quechamava “relações vídeoclip”. Segundo ele, a “geração MTV” é capaz de enxergaro outro, e por ele se interessar, não só apenas por curtos períodos de tempo, comotambém em profundidades nanométricas, ainda assim apenas se o outro estivessepulando, piscando e se mexendo rapidamente o suficiente para gerar náuseas. Issofoi há alguns anos. O que ele diria hoje da geração Facebook?? Trata-se de umalonga história, mas estas mudanças sociais estão afetando na mesma medida avelha interação médico-paciente, que passa a ficar mais perto de uma relação-consumo, um meio de sedução política, um jeito de ganhar dinheiro. Mais do quenunca, o médico está despreparado para lidar com um paciente complexo e com umser humano profundo como o fibromiálgico, e essa incompetência fica clara (eassumida) em todas as publicações atuais sobre o assunto. Nos “Novos critériospara fibromialgia do Colégio Americano de Reumatologia: Uma jornada de vinte

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anos”, publicado em 2010, esta instituição norte-americana escreveu: “Os novoscritérios do Colégio Americano de Reumatologia (do inglês “ACR”) não devem servistos como o endosso da legitimidade da existência da fibromialgia – o critério éneutro neste ponto. Existência e legitimidade são conceitos que contêmcomponentes existenciais, filosóficos e sociais, e não estão resolvidos pela publicaçãodestes critérios” [1]. O balde de água fria vai direto ao ponto: o ACR, certamenteuma das principais referências mundiais em reumatologia, define que não é seupapel discutir assuntos existenciais, filosóficos ou sociais e, como consolo, oferecediagnósticos. As “diretrizes canadenses para o diagnóstico e manejo da síndromefibromiálgica”, publicadas em 2012, reconhecem, pelo menos, a existência da“síndrome”, seu aspecto multifacetário, a necessidade de uma abordagemmultidisciplinar e o fato de que cada paciente é único e merecedor de umaabordagem individualizada. Ao mesmo tempo, o artigo reconhece odesconhecimento sobre as causas do problema, considera a síndrome “incurável” esugere que a abordagem seja feita sobre os sintomas [2]. O “consenso brasileiro dotratamento da fibromialgia”, de 2010, segue o que propõe o título e se foca notratamento. E acrescenta: “Embora seja uma doença reconhecida há muito tempo,a fibromialgia vem sendo seriamente pesquisada, há apenas três décadas. Poucoainda se conhece sobre sua etiologia e patogênese. Até o momento, não existemtratamentos que sejam considerados muito eficazes”[3].

Creio que podemos fazer melhor que isso. O ACR está correto no que se refere aos“componentes existenciais, filosóficos e sociais” da doença. Tratar adequadamentedo assunto significa transitar entre esses mundos e enfrentar a terrível Babel.Além disso, a medicina luta, desesperadamente, contra seus próprios fantasmas nointuito de permanecer dentro do seleto grupo das ciências. O dicionário “NewOxford American Dictionary” define “ciência” como “atividade intelectual e práticaque abrange o estudo sistemático da estrutura e comportamento do mundo físico enatural através da observação e experiência”. O que assusta aqui é “estudosistemático”. Estudo sistemático significa um processo no qual cada uma dasvariáveis é, separadamente, controlada e manipulada, de maneira repetitiva, com ointuito de excluir subjetividade e acaso e atingir verdades constantes e estáveis.Como fazer isso em uma condição que envolve “componentes existenciais, filosóficose sociais”? Bom senso, senso comum, impressões individuais, obviedadessubjetivas não são bem-vindos e o cientista (ou médico) que se expressarconclamando esses mestres milenares estará se expondo ao ridículo. O presentelivro utiliza a ciência como base, segue um pouco mais adiante com a lógica e,finalmente, preenche os espaços vazios com ideias e conceitos sedimentados ao

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longo de nossa história. Sempre que as evidências científicas existirem, é claro, elasserão devidamente ostentadas. Imagino, inclusive, ser mais provável que o leitor seincomode com o excesso delas, e não o contrário.

Entre todos os desafios com os quais me deparei, ao escrever este livro, o maior foi oda linguagem. Diferentes leitores procuram diferentes linguagens e profundidades,e este livro é um pouco esquizofrênico em relação ao público que tenta alcançar.Visando um máximo efeito multiplicador, o público alvo inicial são os profissionaisda saúde que lidam com as síndromes dolorosas crônicas. Essas patologias sãoidealmente tratadas de forma multidisciplinar, o que significa que deverei falar amédicos, psicólogos, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, personal trainers,entre muitos outros. A formação, o interesse e a linguagem dos integrantes de cadaum desses grupos de profissionais já são extremamente diversos, e a possibilidadede este livro ser lido por pacientes e seus familiares ainda deve ser considerada. Aslongas explicações de termos e conceitos corriqueiros para os médicos certamenteaborrecerão muitos deles. Ao mesmo tempo, sei que a profusão de dados,experimentos e novos termos aborrecerá a muitos outros leitores.

Na tentativa de agradar a gregos e troianos, optei por introduzir ao final de cadacapítulo uma caixa de texto como esta, onde as ideias recém-apresentadas estarãodestacadas de forma resumida e mais intuitiva. Se a linguagem ou a profundidadedo texto principal for um incômodo, sinta-se livre em pular trechos e abraçar aideia geral contida nestes espaços.

Baseando-me em minhas experiências de consultório, discordo das enfáticasconclusões dos colegas autores das diretrizes: sabemos, sim, bastante sobre ascausas dessa condição, e, ao menos para uma significante parcela desses pacientes,a “cura” pode ser alcançada. Entendam por “cura” não só as mudanças“existenciais, filosóficas e sociais”, mas também as médicas e psicológicas que lhespossibilitarão uma vida mais completa, feliz e sem a dor disfuncional.

Boa sorte a todos nós!

Adendo para os leitores fibromiálgicos

Diante da desorientação da literatura e dos médicos sobre a condição com a qualvocê foi diagnosticado, e perante a ineficácia, a longo prazo, dos tratamentosconvencionais, é absolutamente compreensível que esteja buscando achar ocaminho por conta própria. Aliás, como você sempre fez. Isso é bom! Você verá aofinal do livro, que a ajuda proveniente de remédios e médicos é limitada, e que asmudanças mais importantes têm mesmo de vir de você. No entanto, é importanteque sejam aqui colocados alguns “poréns”:

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Em primeiro lugar, repetindo o que foi dito há pouco, a linguagem escolhida paraeste livro não é primariamente direcionada a você. Uma versão voltada para opaciente é mandatória, e está sendo planejada para um futuro próximo, mas porenquanto vamos nos virar com esta aqui. Temo que detalhes fisiopatológicos econceitos técnicos possam desfocar sua atenção das ideias que efetivamente devemser assimiladas por você. Em alguns capítulos, esse risco é especialmente grande, eeu procurei indicá-lo já na sinopse, logo abaixo do título. Em todos os capítulos,mas nesses em especial, sugiro que você ponha foco nas ideias gerais (resumidas aofinal do capítulo), e não no blá-blá-blá acadêmico.

Em segundo lugar, temo que alguns fibromiálgicos passem a duvidar dodiagnóstico ao perceberem que muitos dos sintomas descritos nesse livro nãocorrespondem aos seus, ao mesmo tempo em que muitos de seus sintomas não estãodescritos aqui. Fibromialgia é uma condição complexa, em cada paciente causadapor uma combinação diferente de fatores. Infinitas combinações são possíveis, ecada paciente é completamente diferente do outro. Se levarmos levássemos muito asério essas descrições, jamais poderia ser escrito um livro que servisse a mais deuma única pessoa. Acredito, contudo, que além da dor e do cansaço muitas outrascoisas unam os fibromiálgicos e que, portanto, vale a pena escrever um livro sobreo tema. Você está convidado a concordar ou discordar disso quando chegar ao final,pois erros são inerentes a qualquer generalização. Mesmo que você se reconheça emgrande parte deste livro, certamente, em algumas delas, isso não acontecerá.Aproveite tudo aquilo que lhe faça sentido.

Em terceiro lugar, temo que o leitor fibromiálgico possa, eventualmente, se sentirultrajado ao ver algumas de suas características exageradas e estereotipadas.Estereótipos e caricaturas têm em comum a tendência de exagerar ascaracterísticas mais salientes, e o resultado final é inevitavelmente meio distorcido.Nenhum paciente real se encaixa perfeitamente em um determinado estereótipo. Etodos, fibromiálgicos e não fibromiálgicos, possuem cada característica humana emalgum grau. Isto não tira o mérito dos estereótipos, pois estes servem bem quandoqueremos otimizar o reconhecimento do personagem ou de algumas de suascaracterísticas. Peço aos meus leitores fibromiálgicos que me perdoem por possíveisexcessos. Eles foram cometidos com a melhor das intenções, e mesmo que nãotenham servido para você, é possível que o façam para outros.

O quarto e último “porém” diz respeito à validade das informações contidas nestelivro. O vácuo criado pela falta de compreensão sobre a doença ou de umtratamento eficaz tende a ser preenchido por uma avalanche de propostas, algumas

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cabíveis e outras mirabolantes. O que garante que este livro não seja, ele próprio,recheado de propostas mirabolantes? Adoraria poder responder que minha largaexperiência no assunto, ou o amplo embasamento teórico contido nas próximaspáginas, se prestam a essas garantias, mas não posso. Conheço os vícios inerentesàs opiniões pessoais, os limites do raciocínio lógico e os do conhecimento científico.Todo o conteúdo aqui apresentado é nada se na prática não servir para que osfibromiálgicos tenham uma vida melhor. A validação das ideias aqui contidas éabsolutamente necessária, e eu o convido a ajudar a validá-las ou a refutá-las.Para tal, é preciso que você, leitor com o diagnóstico de fibromialgia firmado pormédico, invista seu tempo em um estudo interventivo. No final do livro, vocêencontrará uma série de apêndices. O apêndice I (os antigos critérios de 1990) émeramente informativo e não precisa ser respondido. O apêndice II corresponde aos“Critérios Diagnósticos de Fibromialgia de 2010” elaborados pelo ColégioAmericano de Reumatologia. O apêndice III corresponde à versão curta do“Questionário de Dor de McGill”, um método amplamente aceito de avaliação dedores crônicas. O apêndice IV diz respeito ao “Questionário sobre o Impacto daFibromialgia”, especialmente desenvolvido para avaliar a severidade da doença esua influência sobre a capacidade funcional dos pacientes que se encontram nessacondição. O apêndice V é a versão curta da “Pesquisa de 36 itens em Saúde”,usada para mensurar qualidade de vida de uma forma genérica. Por fim, oapêndice VI traz um questionário elaborado por mim que visa a entender quem évocê, por quantos tratamentos já passou e quais deles lhe fizeram algum sentido.Você, leitor fibromiálgico, está sendo convidado a responder a estes questionáriosANTES de ler este livro e 6 meses depois de tê-lo lido, a enviá-los ao autor, juntocom comentários que achar pertinentes, por correio normal ou correio eletrônico([email protected]). Não há necessidade de colocar seunome, apenas um endereço de e-mail. Todas as informações sobre você serãomantidas em sigilo. Formulários modificáveis destes mesmos questionários podemser baixados do endereço: http://www.reumatologiaavancada.com.br/ciencia-da-dor.

Preencher tantos questionários, sem dúvida, consome tempo e paciência, mas éuma forma de sua experiência servir para melhorar o entendimento que temossobre esta doença e, quem sabe, sobre a vida de muitos de seus semelhantes. Umafutura versão deste livro, melhorada e voltada especialmente para os pacientes,será elaborada a partir das respostas levantadas por esses questionários.

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Sobre o Autor

Dr. Pedro Ming formou-se em medicina em 1998 e especializou-se emreumatologia em 2002, ambos os cursos feitos pela Faculdade de Medicina daUSP. Em 2009, defendeu, nessa mesma instituição, seu doutorado em genética dedoenças autoimunes. O mesmo assunto foi aprofundado em um pós-doutorado em2013, na Universidade de Auckland, Nova Zelândia. Desde 2007, leciona noserviço de Reumatologia da Faculdade Evangélica do Paraná, onde é responsávelpor conduzir alunos e residentes em ambulatório de doenças autoimunes. Desde2014, orienta alunos de mestrado e doutorado no Instituto de Pesquisas Médicas(IPEM) - ligado a mesma instituição paranaense - e ministra aulas em cursos depós-graduação do Hospital Israelita Albert Einstein em São Paulo. É autor dediversos artigos publicados em revistas médicas internacionais, e de 3 capítulos delivro, dois deles em livros considerados os mais importantes de sua especialidade(Rheumatology Text Book, 6a e 7a edições, Marc C. Hochberg e Kelley's Textbookof Rheumatology, 10a edição). Paralelamente a essas atividades acadêmicas,atende em consultório particular desde 2003, onde vem enriquecendo sua vastaexperiência no tratamento de pacientes fibromiálgicos e outros portadores desíndromes dolorosas crônicas.

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PARTE 1 – FISIOPATOLOGIA

Capítulo I: História e epidemiologia

Capítulo II: Fibromialgia e síndromes de sensibilidade central

Capítulo III: Fibromialgia como um diagnóstico

Capítulo IV: Relações entre o sono e a fibromialgia.

Capítulo V: A personalidade fibromiálgica e subgrupos na fibromialgia

Capítulo VI: Bases genéticas da fibromialgia

Capítulo VII: O sistema nervoso

Capítulo VIII: Os circuitos neuroafetivos

Capítulo IX: Origem biológica de nossas diretrizes primárias

Capítulo X: Mapas e a representação da realidade.

Capítulo XI: Busca e vias descendentes inibitórias da dor

Capítulo XII: Sistema de recompensa

Capítulo XIII: Neurofisiologia do estresse e relações com as síndromes desensibilidade central

Capítulo XIV: Sistema imune e o estresse

Capítulo XV: As diferentes formas dos "Eus"

Capítulo XVI: Empatia na fibromialgia

Capítulo XVII: Depressão e mecanismos de autodestruição

Capítulo XVIII: Controle e confiança

Capítulo XIX: Fibromialgia segundo a psicologia

Capítulo XX: Síntese da proposta de fisiopatologia

Esta é uma versão demo. Para adquirir o livro completo, acesse:

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Capítulo I: História e Epidemiologia

(Um pouco da história, epidemiologia e do impacto da fibromialgia na sociedade.Capítulo de importância apenas relativa para pacientes, mas de fácil compreensão).

HistóriaComo veremos mais para frente, quadros muito semelhantes à fibromialgia podemser artificialmente desencadeados em camundongos, coelhos, macacos e outrosmamíferos. Se estes pobres “voluntários compulsórios” de nossos experimentos,relativamente distantes (ou relativamente próximos) do ponto de vista evolutivo,são capazes de sentir as dores da fibromialgia, então é provável que esta síndrometenha acompanhado nossa espécie desde seu início. No entanto ela não haviarecebido nenhuma atenção específica de nossos antepassados médicos antes doséculo XVIII. Descrições de dores musculares difusas podem ser encontradas naliteratura daquele século, e o termo “reumatismo muscular” era às vezes utilizadopara descrever doenças musculoesqueléticas dolorosas crônicas não deformantes. Noséculo XIX o termo “neurasthenia” era usado para descrever dor, fadiga mental euma série de outros sintomas comuns ao que hoje é chamado fibromialgia. Noinício do século XX o termo “fibrosite” foi cunhado por Sir William Gowers em‘Lumbago: Its Lessons and Analogues.’ (1904, Lecture, National Hospital ofNervous Diseases, London, British Medical Journal 1: 117–121). “Fibrose” é umtermo da patologia médica que se refere ao processo onde o tecido normal ésubstituído por um tecido cicatricial. O sufixo “ite” refere-se a processosinflamatórios. Nem cicatrização, nem inflamação realmente ocorrem nestedistúrbio e, portanto, o nome “fibrosite” não é adequado. Todavia o termo seguiusendo usado até a sétima ou oitava década daquele século, quando a literaturamédica começou a atribuir processos envolvendo o sistema nervoso central àetiologia da doença [4]. Em 1950 Dr. Wallace Graham introduziu o conceito deuma síndrome dolorosa ocorrendo na ausência de uma doença orgânica específica[5]. Entre 1965 e 1968 Eugene F. Traut escreveu artigos sobre o tema, incluindosono ruim, fadiga, cefaleia, colite, ansiedade e pontos do corpo especialmentedolorosos à palpação, do inglês, “tender points”. Finalmente em 1975 o termo“fibromialgia” foi introduzido por Hench [6]. “Fibro” continuava sendo

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tecnicamente inadequado, mas foi mantido do nome prévio. “Algia” vem do grego,αλγία, e quer dizer dor [7]. Em 1976 Smythe–Moldofsky pela primeirapromoveu o sono ruim de simples sintoma a um papel causal, e mostrou que ostender points auxiliavam no diagnóstico. Segundo sua proposta dor difusa, e maisde 11 pontos dolorosos dos 14 descritos eram necessários para o diagnóstico.Estávamos um pouco mais próximos, mas até este ponto não havia uma definiçãominimamente acurada da síndrome que permitisse a seleção de grupos de pacienteshomogêneos o suficiente para a realização de estudos sistemáticos, ou mesmo paraque sua prevalência fosse estimada. Isso foi conquistado apenas em 1990, quando oColégio Americano de Reumatologia (ACR em inglês) publicou seu critériodiagnóstico [8], largamente utilizado, e só recentemente modificado [9]. Estaúltima modificação procurou simplificar o diagnóstico, e retirou a necessidade dapesquisa dos “tender points” (ou pontos gatilhos, em português). Isso abriu apossibilidade para a validação de um método de pesquisa em massa, umquestionário que evita a necessidade da presença física de um médico, e pode serenviado pelo correio (fibromyalgia research survey criteria). Portantopraticamente todo o conhecimento científico que temos desta doença foi acumuladonestas últimas três a quatro décadas.

EpidemiologiaEm 1995 a primeira estimativa mais confiável da prevalência da fibromialgia foipublicada [10]. Wolfe e colaboradores pesquisaram a presença de dor localizada,dor generalizada ou ausência de dor em uma amostra (3006 pessoas) consideradaestatisticamente representante da cidade de Wichita (Kansas, EUA), e depoisexaminaram mais a fundo aquelas que referiram alguma dor. Os resultadosapontaram que 2% daquela população como um todo, 3,4% das mulheres, e 0,5%dos homens poderiam ser classificados como portadores de fibromialgia. Os autorescitaram também que a prevalência da doença crescia com a idade até um pico entreos 60 e 79 anos.

Outros estudos semelhantes foram realizados em outras populações e encontraramresultados parecidos [11], portanto este trabalho de Wichita foi e continua sendolargamente utilizado como a principal referência quando se cita a prevalência dafibromialgia. No entanto será que os achados desta(s) cidade(s) em particularpodem ser generalizados para o resto do mundo? A prevalência da doença é amesma em todos os níveis sociais e em todas as culturas? O método utilizado é omais acurado?

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Recentemente outro estudo epidemiológico foi realizado no condado de Olmsted(Minnesota, EUA) [12]. Nele a prevalência foi estimada de 2 formas diferentes.Em primeiro lugar os autores enviaram pelo correio os supracitados questionáriosdiagnósticos de fibromialgia para uma grande amostra de habitantes desta cidade,escolhidos por sorteio. Em segundo lugar todos os prontuários dos serviços médicosda cidade foram revistos em busca do diagnóstico. De acordo com o primeirométodo 6,4% da população de Olmsted é portadora de fibromialgia. De acordo como segundo método, apenas 1,1% o é. Ambos os métodos podem ser criticados:apenas 27,6% dos questionários foram respondidos, e é de se esperar que aquelesque sofrem de dores crônicas tenham maior disponibilidade para responder questõessobre dores crônicas. Portanto estes 6,4% poderiam estar superestimados.Igualmente, há uma tendência dos médicos a não descreverem a fibromialgia emseus prontuários, porque sentem que não podem fazer nada por isso, ou porquefocam em “problemas mais concretos”. O fato é que provavelmente este 1,1%também seja irreal. De qualquer forma o estudo aponta a possibilidade de que aprevalência da fibromialgia seja subdiagnosticada e, portanto, ser bem maior doque a descrita.

A Europa ilustra bem o quanto o método de pesquisa influencia a resposta obtida.Na França uma pesquisa realizada em 2008, na qual uma amostra de 1014indivíduos maiores que 15 anos responderam a um questionário pelo telefone,identificou uma prevalência de 1,4% de fibromiálgicos em sua população [13].Outra pesquisa realizada na Alemanha encontrou o código referente à fibromialgia(CID M79.7) em apenas 0,45% dos prontuários dos mais de 1,6 milhões deassociados de uma empresa de seguro de saúde [14]. Enquanto isso, uma revisãosistemática de todos os artigos publicados até 2011 sobre fibromialgia envolvendopopulações de países europeus estimou a prevalência de “dor crônica não resultantede outras comorbidades” em de 7,4% a 46% (média de 27%)[15].

No Brasil, um estudo realizado na cidade de Montes Claros (Minas Gerais), afibromialgia foi a segunda doença reumática mais frequente, perdendo apenas paraa osteoartrite (artrose). Segundo este trabalho, a fibromialgia faz parte da vida de2,5% da população, e o pico encontra-se entre 35 e 44 anos de idade [3]. Outroestudo interrogou por telefone todos os (758) pacientes registrados no sistemapúblico de saúde da cidade de Embu (São Paulo), quando à presença de dor.Aqueles que responderam positivamente foram convidados a uma consulta onde odiagnóstico foi mais profundamente avaliado. Fibromialgia estava presente em4,4% dos indivíduos desta população específica, de baixa renda. Um pouco maiorque a encontrada na maioria dos estudos [16].

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Pelo menos 10% da população em geral apresenta dor crônica generalizada nãosecundária a nenhuma doença ou anormalidade estrutural específica, mas nemtodos preenchem os critérios para a síndrome [17]. Recentemente um estudo reuniuos achados de todos os grandes estudos sobre a prevalência de fibromialgia natentativa de estimar a prevalência mundial desta condição segundo os critérios de2010 do ACR. A prevalência mundial deste distúrbio, segundo este estudo, foi de2,7%, variando de 0,4% na Grécia a 9,3%, na Tunísia. A prevalência média nasAméricas foi de 3,1%, na Europa de 2,5% e na Ásia de 1,7% [18].

Prevalência relativa à idade, sexo e condições sociais.Este estudo de Embu levanta a seguinte questão: fibromialgia atinge de formaconstante as diferentes camadas sociais da população? Diversos pequenos estudos eevidências indiretas efetivamente sugerem uma associação inversa entre rendafamiliar e fibromialgia. O mesmo padrão foi sugerido por estudos que avaliaramnível educacional e prevalência da síndrome [18]. A impressão geral é que ela seriarealmente mais prevalente nas camadas menos favorecidas.

Estudos baseados no critério do ACR de 1990 estimaram que fibromialgia fosse desete a nove vezes mais frequente em mulheres do que em homens [19].Interessantemente, os estudos mais recentes, baseados do critério do ACR de 2010estimaram a razão mulheres-homens em apenas 3 para 1 [18]. As razões dessadiferença não são claras, mas provavelmente envolve o fato de a última versão doscritérios ser desenhada para o uso em forma de questionários, que dispensam oexame físico. Isto permite o deslocamento da população pesquisada dos centrosmédicos para a comunidade. Mais de 40% dos pacientes encaminhados paraserviços terciários especializados em dor encaixam-se nos critérios de fibromialgia[17].

Muitos estudos mostraram que a incidência de fibromialgia cresce com a idade atéum pico na meia idade (30 a 50 anos). Outros observaram a continuidade destatendência mesmo após os 50 anos, pelo menos até aproximadamente a sétimadécada de vida [18], quando começaria a decrescer [20]. Adolescentes e criançasnão estão livres das dores difusas. Neles o diagnóstico leva o nome de “fibromialgiajuvenil primária”. Ela tipicamente se inicia após os 13 anos e tem seu pico aos 14,mas o início mais precoce é possível. A prevalência de fibromialgia em crianças emfoi 1,2% [21], 1,4% [22] e 6,2% [23], em três diferentes estudos. Entretanto,apenas cerca de 25% daquelas que inicialmente preencheram critérios para asíndrome ainda os preenchiam após 1 ano [22, 24]. É difícil interpretar esta

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informação. Ela poderia significar um melhor prognóstico, mas esta não é aimpressão dos especialistas. Alternativamente, o diagnóstico da síndrome nestafaixa etária seria mais difícil e menos confiável. Isso é facilmente compreendidoquanto mantemos em vista a dificuldade que as crianças têm de expressar dor,sentimentos e quantificar tempo. Isso compromete diretamente a confiabilidade dosquestionários e exame físico nos quais o diagnóstico é baseado.

Ao longo deste livro discutiremos mais a fundo as teorias que tentam explicar estadoença, e como elas abraçam estas particularidades epidemiológicas.

Impacto socialEntre todas as causas de dor crônica abordadas na revisão europeia supracitada[13], a fibromialgia foi associada à maior taxa de desemprego (6%) [25],requerimentos de benefícios por incapacidade (até 29,9%) [26] e ao maior númerode faltas no trabalho [25].

Em 2010, na Espanha, um estudo calculou os custos diretos e indiretos dafibromialgia [27]. Para isso, diversos centros de saúde acompanharam 232pacientes com fibromialgia primária (sem outras doenças concomitantes) e 110indivíduos não fibromiálgicos e sem outras doenças, pareados por idade e sexo.Durante os 3 meses de duração do estudo foram registrados o uso do sistema desaúde, os tratamentos realizados, os gastos pessoais, a situação ocupacional etrabalhista, os dias de falta ao trabalho, etc. Os pacientes fibromiálgicos gastaramem média €1234,50 por mês (€492,10 diretamente e €742,40 indiretamente)enquanto os grupo controle gastou uma média mensal de €193,80 (€134,30diretamente e €59,60 indiretamente). Subtraindo o gasto “normal” em saúde (ogasto do grupo controle) do montante gasto pelo fibromiálgico, chegamos àconclusão de que € 1040.70 por mês foram gastos por causa da doença (para cadaindivíduo). A Espanha tinha em 2012 uma população de 47,2 milhões dehabitantes. Se considerarmos corretos os 2% de prevalência de fibromialgia,teríamos 944.000 fibromiálgicos. Se todos eles se comportarem da mesma formaque os 232 avaliados por este estudo, Espanha estaria gastando mensalmente €982.420.800,00, quase 1 bilhão de Euros, com esta doença.

Estes números não podem ser traduzidos diretamente para outros países. Cadauma das variáveis medidas diverge de país para país (custos e acessos àsfacilidades de saúde, valores e acesso aos benefícios, taxa de falta ao trabalho, custodo dia de trabalho, etc.). Eles servem, entretanto, para dar uma boa ideia dotamanho do problema e de quanto nós precisamos de medidas efetivas para tratar e

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prevenir esta condição. A incapacidade para o trabalho é alegada por 31% dospacientes fibromiálgicos [28]. Certamente não é sem interesses econômicos queconsensos e diretrizes de vários países, entre eles o Brasil, concluem que a condiçãonão deve justificar afastamento do trabalho [3].

É importante manter em mente que para calcular o impacto social (e econômico)que a fibromialgia tem em nossa sociedade precisamos nos basear em dadosepidemiológicos. Estes dados, por sua vez, se baseiam em estudos que utilizaram oscritérios do CAR de 1990 (e mais recentemente 2010), logo são totalmentedependentes da definição de fibromialgia adotada por esta instituição. Veremos aseguir que esta definição pode (e deve) ser relativizada, e que sob muitos pontos devista o que chamamos de “fibromialgia” na verdade abrange uma gama muitomaior de condições, e é responsável por um impacto social muito maior do que orelatado.

Resumo do Capítulo I:

História, epidemiologia e impacto da fibromialgia na sociedade.

• A fibromialgia só passou a ser reconhecida pela medicina recentemente, entãonão temos como saber se sempre esteve aqui ou se é uma “doença da modernidade”.

• A proporção de pessoas que são afetadas pela fibromialgia varia em cadapopulação e em cada estudo. Dois por cento é o número mais frequentementeabraçado.

• Podemos ser mais flexíveis sobre o que chamamos de “fibromialgia”. Neste casomuito mais gente pode sofrer do problema. “Dor crônica não resultante de outrasdoenças” acomete de 7,4% a 46% das pessoas, segundo um estudo Europeu.

• Fibromialgia é de 7 a 9 vezes mais frequente em mulheres do que em homens.

• É possível, mas mais infrequente em crianças. O diagnóstico, nelas, também émais complicado. É mais frequente após a adolescência.

• O pico da frequência varia entre estudos. A maioria o aponta próximo aos 60-70anos de idade.

• Fibromialgia pode ser bastante debilitante, levando a faltas no trabalho,desemprego, exames e consultas médicas em excesso. Isto tem um gigantescoimpacto financeiro e social em todos os países.

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Capítulo II: Fibromialgia e síndromesde sensibilidade central

(Descrição do quadro clínico, definição da síndrome e apresentação do contínuo desíndromes de sensibilidade central. Capítulo importante e de fácil compreensão parapacientes)

Fátima tem 52 anos e refere “dor no corpo todo”. Descreve a dor como sendo “nacarne”, não nas “juntas” (mas não consegue afirmar com certeza a ausênciacompleta de dor nas articulações). Dói o dia inteiro, mas a dor é particularmentemais forte ao acordar (“parece que levei uma surra na noite anterior”). Sente umadiscreta melhora ao longo do dia, mas no final da tarde a dor volta com toda a suaintensidade. Dorme muito mal. “A cabeça não para”, diz. Todos os problemas dahumanidade passam em sua mente, em especial os dos parentes próximos. “Não seicomo meu marido consegue dormir. Parece que ele não se preocupa!”. Acordacansada, como se não tivesse dormido, e concorda quando sugiro o adjetivo “nãoreparador” para descrever seu sono. A sensação de cansaço e sonolência aacompanha por todo o dia.

Fátima refere também que pela manhã, muitas vezes, suas mãos estão inchadas,outras vezes formigam ou ficam dormentes. Queixa-se ainda de uma frequenterespiração difícil, sente-se como se houvesse um grande peso sobre o peito. Essasensação desaparece após alguns minutos ou horas, mas tende a voltar ao longo dodia. Dores de cabeça são comuns, quase diárias. Quando pergunto sobre depressãoela suspira fundo e responde: “é possível”.

Fátima é uma paciente fibromiálgica típica. Dor difusa que piora pela manhã e nofinal da tarde, rigidez no corpo e edema de mãos pela manhã, sono ruim, fadigadurante o dia, dormência e formigamentos ocasionais nos membros, sintomasrespiratórios não explicáveis por alterações orgânicas nas vias aéreas, cefaleiafrequente, (possível) depressão. Outra típica característica de Fátima é a tendênciaem se preocupar demais com os outros. “Demais” não em comparação àpreocupação do esposo- isso pode até ser um parâmetro, mas não poderíamosafirmar que “anormal” é ela, não ele. A preocupação se torna excessiva quandoafeta negativa e descontroladamente a vida de Fátima não permitindo que ela

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relaxe ou durma. Tal característica tem sido desmembrada pela literatura comoansiedade e “catastrofização”. Apesar de catastrofização nunca ter sidoexpressamente definido, há um consenso geral de que o termo signifique umatendência a atribuir significados exageradamente negativos a estímulos dolorosos eambientais [29]. Fatos cotidianos na vida de outras pessoas têm um pesoexagerado e negativo para Fátima. Aprofundaremos bastante este tema um poucomais adiante.

Ocorre, na fibromialgia, uma particularidade desafiadora: não existem exameslaboratoriais que permitam confirmar o diagnóstico. Sendo o diagnósticocompletamente clínico e subjetivo, médicos costumavam atribuir o rótulofibromialgia a quadros substancialmente diferentes. Os critérios do ACR de 1990tentaram organizar esse caos. Para isso, 16 centros médicos terciários nos EUA eCanadá compararam 293 pacientes, arbitrariamente chamados de“fibromiálgicos”, com 265 controles, arbitrariamente chamados “normais”,pareados por idade e sexo, determinando os sinais e sintomas que mais eficazmentediferenciariam a doença da ausência dela. O método é curioso porque tenta gerarcritérios objetivos a partir de participantes classificados como doentes ou normaisde maneira absolutamente subjetiva. Apesar de útil, a manobra tem o efeitocolateral de delimitar as fronteiras da doença de forma igualmente arbitraria. Se oscritérios fossem frouxos demais incluiriam muita gente “normal”. Se fossemestreitos demais, deixariam, de fora, muita gente “doente”. E “estreito” ou “frouxo”seriam definidos tendo-se como parâmetro aqueles cabalísticos 293 pacientes. Osautores testaram nesses pacientes e controles as variáveis que haviam sidorelatadas previamente como capazes de diferenciar fibromialgia primária de“normais”. Entendam por fibromialgia primária aquela que ocorre em indivíduosque não apresentam outras doenças crônicas concomitantes, em especial asinflamatórias e outras capazes de provocar dor - quando presentes, a fibromialgia échamada de secundária. O grupo de 1990 compreendia 158 casos de fibromialgiaprimária e 135 de secundária. Os achados e suas respectivas frequênciasencontram-se resumidos na tabela abaixo:

Tabela 1: Comparação das principais variáveis clínicas nos pacientes comfibromialgia primária, secundária e controles [8].

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“Distúrbios do sono” foi caracterizado como sintoma, se o paciente referisse acordarcansado ou não revigorado “frequentemente” ou “sempre”. Se esse sintomaocorresse “nunca” ou “raramente” o sintoma seria considerado ausente. O mesmosistema foi utilizado para as demais variáveis. Síndrome do cólon irritável foidefinida como presença de “alterações periódicas nos hábitos intestinais, com dor oudistensão abdominal baixa, usualmente aliviada ou agravada por movimentosintestinais” e ausência de sangue nas fezes. “Dor no corpo todo” é um parâmetrofrouxo e permite, propositadamente, a subjetividade do paciente na resposta. Aocontrário, “dor difusa” requer a presença de dor em todos os seguintes seguimentosdo corpo: lado esquerdo, lado direito, acima da cintura, abaixo da cintura e axial(coluna cervical, parte anterior do tórax ou dor lombar). É interessante destacarque 71,1% dos controles também apresentaram dor difusa! Isso provavelmenteaconteceu em função do método de seleção desses participantes. Os controlesescolhidos eram os próximos pacientes que aparecessem nos centros procurandoauxilio em função de dor cervical, dor lombar, tendinite localizada ou sintomasrelacionados a traumas. Outros diagnósticos reumatológicos como lúpus, artritereumatóide ou similares só eram critérios de exclusão de participantes do grupocontrole se considerados definitivos. Na dúvida, tais participantes eram incluídos.Ou seja, esses “normais” não eram tão normais assim. Isso certamente nãoagradou a todos, mas pode ser interessante no contexto de um estudo que visaparâmetros para não só separar fibromiálgicos de “normais”, como tambémpacientes com outras condições médicas.

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Foram avaliados vinte e quatro pontos específicos do corpo, os quais os autoresacreditavam ser especialmente doloridos em pacientes fibromiálgicos. Paradiminuir a subjetividade entre examinadores, os pontos eram comprimidos com umaparelho especial, chamado dolorímetro, que marca, com precisão, a pressão queestava sendo aplicada a cada ponto. Dezoito desses pontos foram consideradoshiperálgicos (“algia” = dor), nos fibromiálgicos, ao ponto de, estatisticamente,ajudarem a diferenciar pacientes dos controles. Esses “pontos dolorosos” foram,inclusive, os fatores isolados mais eficientes em separar os dois grupos, o quegarantiu a eles um lugar de destaque na história dessa doença.

Pacientes e controles também foram perguntados sobre fatores que pioravam oumelhoravam seus sintomas como barulho, frio, calor, humidade, mudançasclimáticas, sono ruim, ansiedade, estresse, fadiga. Efetivamente, 60 a70% dospacientes concordaram com a influência, em seus sintomas, da maioria dessesfatores. Esse dado é instrutivo, mas não ajudou a separar casos de controles, umavez que uma proporção semelhante de controles também apontou esses fatores comomodificadores de seus sintomas.

Dentre todos, os sintomas mais característicos do grupo fibromiálgico foramfadiga, distúrbios de sono e rigidez matinal, presentes em 73-85% dos pacientes.

Sintomas na fibromialgiaAlém da dor difusa, fadiga, rigidez matinal e distúrbio de sono supracitados,outros sintomas são comumente referidos. Entre eles podemos citar: dormências,formigamentos, sensibilidades anormais na pele ou mucosas, disgeusia (aberraçõesno paladar), dor de cabeça (ver abaixo), distúrbios cognitivos (ver abaixo),distúrbios psiquiátricos (ver abaixo), dores e distensões abdominais recorrentes,costocondrite (dor na parede anterior do peito), dor para urinar, urgênciamiccional, necessidade frequente de esvaziar a bexiga, olhos secos, palpitações,episódios recorrentes de falta de ar, dismenorreia (menstruação exageradamentedolorida), dor durante a relação sexual, disfunções sexuais, disfagia (dificuldadespara deglutição), sudorese noturna e ganho de peso. Exceto por dor difusa por maisde 3 meses (definição da síndrome), na ausência de outra condição que explique ador, nenhum outro sintoma é obrigatório para o diagnóstico da síndrome.

Distúrbios cognitivos estão presentes na maioria dos pacientes e são,frequentemente, referidos como “fibro fog” (nevoeiro, em inglês). Os pacientesdescrevem, tipicamente, dificuldades com atenção, foco, e na realização deatividades que exijem reações rápidas. Testes neuropsicológicos confirmam

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anormalidades diferentes das encontradas em doenças psiquiátricas, algumas delasassociadas à fibromialgia como, por exemplo, depressão [30]. Análisesmorfométricas realizadas por meio de ressonância magnética indicam, nosfibromiálgicos, uma diminuição significante do volume da substância cinzentatotal, além de um aumento de 3 vezes na perda normal dessa substância relativaao envelhecimento [31]. O grau de perda foi proporcional ao tempo de doença. Essaperda, também reportada em outras condições associadas à dor crônica e aoestresse, não só foi mais importante exatamente nas regiões relacionadas aoprocessamento da dor e do estresse, mas também foi significante em áreasrelacionadas ao funcionamento cognitivo [32].

Depressão e/ou ansiedade estão presentes em 30% a 50% dos fibromiálgicos, e22% dos fibromiálgicos que têm depressão preenchem critérios para depressãomaior [33].

Mais de 50% dos pacientes fibromiálgicos apresentam dor de cabeça, incluindo asformas tensional e enxaquecosa [34]. O oposto também é verdadeiro, uma grandequantidade dos pacientes atendidos em centros terciários de tratamento de dores decabeça preenchem critérios para fibromialgia [18].

Síndromes de sensibilidade centralOutro dado de particular interesse: neste trabalho 31,5% dos pacientesfibromiálgicos apresentaram história de depressão, 26,3% urgência urinária e40,6% dismenorreia. Dismenorreia traduz a queixa de dor excessiva durante operíodo menstrual. Urgência urinária pode ser descrita como um desconforto agudona região da uretra e bexiga, que provoca a necessidade imediata de esvaziá-la,mesmo quando não está totalmente cheia e na ausência de infecção urinária. Essessintomas são os principais componentes de outras síndromes clínicas específicas:depressão essencial, síndrome da bexiga dolorosa e dismenorreia primária,respectivamente.

A associação entre fibromialgia, doenças inflamatórias ou outras condiçõesdolorosas crônicas causadas por alterações estruturais (artrose, por exemplo) éclássica e leva o nome de fibromialgia secundária. O interessante sobre as condiçõesdescritas no parágrafo prévio é que elas, como a fibromialgia primária, tambémsão descritas como não tendo uma causa estrutural conhecida. Muitas outrasexistem: síndrome do cólon irritável, dispepsia funcional, síndrome da fadigacrônica, disfunção temporomandibular miogênica, cefaleia tensional, enxaqueca,síndromes dolorosas regionais, lombalgia idiopática, síndrome das pernas

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inquietas, movimento de membros durante o sono, cistite intersticial, prostatitecrônica idiopática, dor pélvica crônica, endometriose, sensibilidades químicasmúltiplas, distúrbios pós-traumáticos, síndrome da guerra do golfo, vulvodíneaentre outras. Cada um desses termos tenta definir um conjunto de sintomas não sóamplamente redundantes entre as síndromes, como também variáveis entreindivíduos. A associação entre fibromialgia e essas outras condições clínicas “semcausas orgânicas definidas” foi inicialmente descrita em 1981 [35] e,posteriormente, confirmado por outros estudos (Tabela 2). O autor propôs ummodelo no qual essas síndromes seriam, em parte, sobrepostas (figura 1) e teriam,em comum, uma sensibilização prolongada do sistema nervoso central, por issochamou-as coletivamente de “síndromes de sensibilidade central”.

Tabela 2: Prevalência de fibromialgia em pacientes diagnosticados com outras“Síndromes de sensibilidade central” [35, 36].

Figura 1: Síndromes de hipersensibilidade central. O termo compreende uma sériede síndromes (conjunto de sintomas) que frequentemente se sobrepõe. Assim,indivíduos portadores de uma síndrome apresentam sintomas tipicamenteatribuídos a outras dessas síndromes com maior frequência do que a população emgeral.

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Se é verdade que todas essas síndromes compreendem um único continuum e sãoexpressões diferentes de uma mesma condição, então os sintomas da fibromialgiasão tão abrangentes quanto a soma de todas elas. Nesse caso, o que o CAR fez nacriação de seus critérios foi apenas separar um subgrupo, cujos principais sintomasgiram em torno da dor difusa.

Seguindo esse raciocínio, as palavras “doença” e “moléstia” costumam serconsideradas academicamente imprecisas ou erradas, quando aplicadas ao contextode fibromialgia. Esse mesmo preciosismo dá preferência a termos como “distúrbiosde somatização”, “sintomas sem explicação médica”, “doenças sem causaorgânica”, que passam conotação de condição benigna e de menor importância.Neste livro, assim como em grande parte da literatura médica, os termos doença,síndrome, condição, moléstia, etc. são livremente utilizados como sinônimos.Dentre eles, considero o mais adequado “síndrome”, uma vez que fibromialgia édor associada a uma série de outros sintomas (síndrome = conjunto de sintomas).

Resumo do Capítulo II:

Descrição do quadro clínico, definição da síndrome e apresentação do contínuo desíndromes de sensibilidade central.

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• O diagnóstico de fibromialgia é completamente clínico: não existem exameslaboratoriais que permitam confirmar o diagnóstico.

• Existe uma série de outras condições, nas quais os pacientes apresentamsintomas importantes e exames laboratoriais normais. Essas condições sãofrequentemente associadas à fibromialgia e muitos autores acreditam que se tratamde múltiplas expressões de uma mesma condição. Todas elas apresentam emcomum uma sensibilidade exagerada do sistema nervoso, por isso o conjunto delasfoi chamado de “síndromes de sensibilidade central”.

• Na tentativa de definir melhor o que deve ser chamado de fibromialgia, o colégioamericano de reumatologia (CAR) estudou quais os sintomas mais comuns empacientes com esse diagnóstico em relação àqueles presentes em pacientes sem estediagnóstico. Com isso, o CAR definiu fibromialgia como um conjunto de sintomasque giram em torno de dor difusa, e deixou de fora outras condições da síndrome desensibilidade central. Segundo esse critério, os principais sintomas da fibromialgiasão: dor difusa e dor em 11 dos 18 "pontos gatilhos" (para os fibromiálgicos, pontosno corpo especialmente doloridos à palpação).

• Outros sintomas são comuns (mas não obrigatórios) na fibromialgia, incluindo:piora dos sintomas pela manhã e à noite; rigidez do corpo pela manhã que melhoracomo o "uso"; distúrbios de sono; fadiga; edema das mãos - principalmente pelamanhã; formigamento ou dormência nas mãos; preocupação demasiada com osproblemas; ansiedade; dores de cabeça e sintomas gastro-intestinais.

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Capítulo III: Fibromialgia comodiagnóstico

(Descreve as dificuldades e a utilidade de definir um diagnóstico de fronteirassubjetivas. Dor local induzindo dor generalizada. Importante para pacientes.Dificuldade média)

Paulo tinha 41 anos e também me procurou por causa de dor generalizada. Tudohavia se iniciado cerca de 4 semanas antes: forte dor cervical nascida de uma noitemal dormida. Há muitos anos, ele vinha sofrendo de refluxo gastresofágico,condição na qual a válvula que separa o estômago do esôfago não funcionaadequadamente, e o suco gástrico acaba queimando o esôfago, principalmentequando o paciente está deitado. Um ano antes, ele havia consultado umgastroenterologista e seguiu o tratamento: seis meses de tratamento clínico compantoprazol (antiácido), elevação da cabeceira da cama e orientações dietéticas,mas tudo isso havia sido apenas moderadamente eficaz. Se ele comesse muito ànoite, tomasse alguma bebida alcoólica ou estivesse passando por períodosespecialmente estressantes, a montanha de travesseiros teria de ser resgatada.Frente ao fato de que o paciente era magro, o tratamento clínico não havia sidoeficaz, a endoscopia não havia mostrado hérnia-hiatal (fatores modificáveis) e opaciente ainda experimentava sintomas intensos, o gastro propôs uma cirurgia deválvula para impedir o refluxo. Uma série de medos reais, mas também irreais,levaram Paulo a declinar da proposta e, desde então, vivia controlando o problemacom o pantoprazol e as tais medidas clínicas. Em uma dessas longas noites quepassava sentado, acreditava que havia dado um “mau jeito” no pescoço. A base deseu crânio e a porção superior do seu pescoço doiam com qualquer movimentobrusco que fazia, o que o levou a “segurar” os movimentos do pescoço com amusculatura que, progressivamente, ficava tensa e dolorida. As noitessubsequentes foram ainda piores. Nenhuma posição era confortável, pequenosmovimentos causavam dor, e o refluxo piorava a olhos vistos, apesar de fazer usode pantoprazol e de ir para cama com a barriga completamente vazia. Umortopedista de um pronto-socorro realizou um raio-x e atribuiu a dor inicial a um“começo de artrose” e as demais dores a contraturas musculares. Os anti-

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inflamatórios prescritos ajudaram bastante a aliviar a dor do pescoço, o que,entretanto, não se traduziu em um sono melhor. Ao longo das semanas foi ficandocada vez mais exausto, com todo o corpo dolorido, emocionalmente frágil e comgrande dificuldade de se concentrar, lembrar coisas e, sobretudo, achar uma posiçãoconfortável que o permitisse trabalhar. Complicando um pouco mais a situação, elerelatava que, ao longo da vida, “colecionava” medicações às quais era intolerante:relaxantes musculares e pró-cinéticos (promotores de esvaziamento gástricoacelerado), e outras medicações que visam melhoria do sono ou humor o levavam,frequentemente, a uma estranha “angústia”, a uma necessidade de ficar semovimentando, a um sono agitado ou a um excesso de sonolência no dia seguinte.Tripliquei a dose do pantoprazol, mantive o anti-inflamatório e associei umaínfima dose de nortriptilina (1/4 do menor comprimido). Essa última medicaçãopertence à classe dos antidepressivos, no entanto tal dose não era antidepressão,pois meu intuito não era (diretamente) melhorar o seu humor. Um dos “efeitoscolaterais” dessa medicação (veremos mais tarde que ela age também de outrosmodos na dor crônica) é sono intenso, e esse era meu objetivo. Avisei-o que acharmedicação e dose ideais poderia tomar algum tempo. Um quarto do comprimidopoderia igualmente ser pouco ou muito para ele. Sugeri que ele iniciasse o esquemana sexta-feira e que me ligasse no sábado para juntos acertarmos a dose. Eleconhecia a medicação porque sua mãe havia sido diagnosticada com fibromialgia ehavia tomado a mesma droga por um período. Apenas na quarta-feira tivenotícias dele. No retorno, Paulo me contou que havia dormido bem com asmedicações e havia acordado apenas 1 vez - em função do refluxo - , mas queajeitou os travesseiros e voltou a dormir imediatamente. Passou o dia seguintelevemente sonolento, mas bastante “lentificado”. Tentou trabalhar, mas a cabeçanebulosa logo o convenceu a fazer outra coisa. Prevendo um dia “inútil”, foi com aesposa e as crianças para a praia. Curiosamente, Paulo relatou que, em geral,passar o dia na praia é, para ele, tão ou mais cansativo do que um dia no trabalho.A casa fica fechada por semanas inteiras e exige faxinas e consertos. Na praia, ascrianças clamam sua presença e participação nas brincadeiras que, por maisprazeroso que seja, causam cansaço. Durante a viagem, e em outros momentos,sua esposa “iria emendar um problema no outro”, de gente que ele conhece ou nãoconhece. Mesmo sabendo que “mulheres fazem isso”, e a conversa não era umpedido de ajuda para nenhuma daqueles personagens, ele sempre saia, dessasconversas, angustiado e com aqueles problemas todos “ocupando sua memóriaRAM”. Aquele final de semana, no entanto, havia sido diferente. Ele tinha adesculpa da dor e da medicação. Não pôde trabalhar, brincou um pouco com ascrianças e não se sentiu culpado em dizer chega, e sua esposa procurou poupá-lo de

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afazeres e de “problemas”. Há muito tempo, reconhecia ele, não havia descansadotanto, se cuidado tanto e dormido tão bem. O sono era espontâneo e profundo,mesmo estando sentado na cama e tendo suspendido a nortriptilina na noiteseguinte. Manteve o anti-inflamatório por apenas mais 2 dias e me perguntava sedeveria diminuir a dose do pantoprazol. Não sentia mais dores.

Esse caso é interessante por diversas razões, e voltaremos a ele ainda algumasvezes. Em primeiro lugar, esse paciente tem fibromialgia? Quando entrou pelaprimeira vez no meu consultório ele apresentava todas as características descritasnos critérios do CAR de 1990 ou de 2010 (para detalhes, veja os critérios, noapêndice, ao final do livro): dor difusa, intensidade dos sintomas, sono ruim, sononão reparador, pontos gatilhos, sintomas cognitivos (dificuldade de concentração ememória)... Mesmo assim, tecnicamente falando, a resposta é não. Ambos oscritérios requerem ao menos 3 meses de dor difusa, e a versão de 2010 expressaclaramente a necessidade da ausência de outras causas que expliquem a dor. Esseúltimo ponto nos leva a outra importante observação: fibromialgia é umdiagnóstico de exclusão.

Diagnóstico de exclusão: quando ouvir barulho de cascos, penseem zebras.Apesar de ser uma condição capaz de imprimir extremo sofrimento, a fibromialgiaé vista, frequentemente, por leigos e médicos, como condição “benigna”.Dependendo do significado que se atribua a tal palavra, essa visão pode estarcorreta. É verdade que a fibromialgia não ameaça diretamente a vida ou aintegridade física de seus portadores. A falha em diagnosticar fibromialgia não énada quando comparada à falha em diagnosticar outras condições mais graves quetambém podem cursar com dor difusa como artrite reumatóide, lúpus ou câncer. Ocritério de 1990 do CAR afirma que a presença de outros diagnósticos não exclui apossibilidade de haver fibromialgia concomitantemente, e isso é mantido no critériode 2010. No entanto, ambos afirmam (e é de bom senso) que devemos excluiroutras doenças que possam mimetizar a fibromialgia, antes de atribuir-lhe a causadas dores. A isso chamamos de “diagnóstico de exclusão”. A lista de patologiascapazes de mimetizar a fibromialgia (diagnósticos diferenciais) é infindável. Atabela 3, a seguir, inclui uma ínfima parte delas.

Tabela 3. Alguns diagnósticos diferenciais de dor difusa e/ou fadiga. A tabela não

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é completa em absoluto, e tem intuito meramente ilustrativo.

• Lesão por Esforço Repetitivo (LER) / Distúrbio Osteomuscular Relacionado aoTrabalho (DORT).

• Medicamentos

- Estatinas / fibratos (contra colesterol e triglicérides)

- Antimaláricos (contra alguns tipos de reumatismos)

• Distúrbios Hormonais

- Hipotireoidismo

- Hiperparatireoidismo

- Síndrome de Cushing

- Síndrome de Addison

- Diabetes mélitus

• Distúrbios Neurológicos

- Miastenia gravis

- Esclerose múltipla

• Câncer

• Distúrbios Infecciosos

- Hepatites (B, C)

- Virus da imunodeficiência humana (HIV)

- Doença de Lyme / síndrome Baggio-Yoshinari

- Tuberculose

• Distúrbios Reumáticos

- Artrite reumatoide

- Lupus eritematoso sistêmico

- Síndrome de Sjögren

- Espondilite anquilosante

- Polimialgia reumática

- Miopatias inflamatórias ou metabólicas

- Síndromes dolorosas regionais41

Na prática, excluir outras causas e diagnosticar fibromialgia exige cuidadosaconsulta médica, exame físico, exames laboratoriais e, frequentemente, o passar dotempo. Em ambulatórios de fibromialgia de todo o mundo, mesmo em centroshiperespecializados, uma parcela dos pacientes, inicialmente diagnosticada comfibromialgia, revelará, mais tarde, outras doenças (Esse fato deixa sempre apergunta: já teriam essas patologias acometido esses pacientes na época em queforam diagnosticados com fibromialgia ou foram as mesmas desenvolvidas, poracaso, em um paciente fibromiálgico? Afinal, ter fibromialgia não garanteproteção a outras doenças). Tanto a consulta inicial como cada uma dassubsequentes, de um paciente fibromiálgico, deve ser individualizada e atenta.Mesmo que o diagnóstico esteja fechado no prontuário, deve estar sempre aberto nacabeça do médico.

O caso de Paulo, acima descrito, é um bom exemplo de situações que escapam àsfórmulas prontas e desafiam os amantes do literal. Em primeira análise, apresentauma série de elementos que dificilmente podem estar interligados: mau jeito nopescoço, dor cervical, artrose, dor generalizada, refluxo, cansaço, dificuldade dememória e atenção. Como colocar esses elementos linearmente, de forma aesclarecer relações causa-efeito? Existe uma relação causa-efeito? Uma tentativasimplista de organizar esse caso clínico, mantendo-se a linha unicista (que parte doprincípio de que todos os elementos estão conectados), seria a seguinte: durante anoite, o refluxo levaria à dor epigástrica/ retroesternal, que levaria a despertares eà necessidade de dormir sentado, que levariam a posturas viciosas, que levariam àsobrecarga de articulações (e outras estruturas osteomusculares) já fragilizadaspela artrose, que levaria ao “mau jeito” no pescoço. A dor no pescoço leva a umatensão muscular constante na tentativa de “segurar o pescoço” e evitar a dor. Essatensão ocorre durante o dia, mas também à noite, piorando ainda mais o sono. Osono de má qualidade leva à dificuldade de concentração, à memória ruim e a umcorpo mais tenso, além de um humor deprimido e irritadiço. A necessidade defuncionar normalmente sob essas condições piora o estado emocional e leva opaciente a esforçar-se ao limite, tanto física quanto psicologicamente, causandouma piora nos sintomas físicos e psicológicos. Todo esse ciclo-vicioso leva àescalada vertical dos sintomas e a tensão constante espalha a dor pelo corpo todo. Aexpectativa da dor, a previsão de mais uma noite terrível e interminável, levam-noa uma atenção exagerada sobre os sintomas, a conteúdos negativos do pensamentoe à catastrofização.

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Portanto, poderíamos incluir refluxo na lista de diagnósticos diferenciais defibromialgia? De acordo com os critérios do CAR, e com o que certamente diriauma grande parcela dos reumatologistas, esse paciente não se enquadra aodiagnóstico de fibromialgia. Se assumirmos tal fato e usarmos o raciocínio unicistaacima citado, está correto, sim, incluir refluxo como diagnóstico diferencial defibromialgia. Na prática clínica, em consultório, temos a oportunidade dedesvendar diversas outras situações extremamente sutis que seguem caminhossemelhantes, levando a síndromes indistinguíveis da fibromialgia. A título deilustração, posso citar outro paciente, bastante alérgico, que ficava sufocado porasma e rinite sempre que aproximava a cabeça do colchão. Seu sono era péssimo, eele passou a apresentar uma série de sintomas comuns à fibromialgia, incluindodor difusa, totalmente revertidos com o tratamento dessas condições alérgicas.

Rinite, asma, apneia do sono, doença de um filho, ronco do marido, excesso detrabalho físico ou mental... Em nenhuma dessas ocasiões, exames laboratoriais oucritérios diagnósticos permitiriam encontrar a peça central que possibilitariamontar o quebra-cabeça. Na fibromialgia, a ausência de uma alteraçãolaboratorial sinalizadora, a complexa natureza de sua fisiopatologia e o vastonúmero de diagnósticos diferenciais exige, como em poucas doenças, umaabordagem extremamente individual. Os critérios do CAR, segundo a mesmaentidade, objetivam separar um grupo homogêneo o suficiente para a realização deestudos clínicos, e não de diagnóstico da doença de determinado paciente.

Deixando de lado, então, os critérios do CAR e buscando olhar maisprofundamente para esse paciente, observamos o seguinte: seu refluxo não temcausa física conhecida e piora em situações de estresse. São característicastipicamente encontradas na “dispepsia funcional”, umas das síndromes desensibilidade central recém-mencionadas. Sensibilidades químicas múltiplas, outradessas síndromes, poderiam explicar sua longa lista de remédios não tolerados.Veremos a seguir que fibromialgia tende a ser mais comum em famílias defibromiálgicos, e sua mãe havia recebido tal diagnóstico. A maneira incomum comque Paulo carregava nas costas os problemas de terceiros trazidos a ele por suaesposa e a excessiva culpa que sente ao botar limites nos filhos são muitosemelhantes a alguns dos principais padrões psicológicos do fibromiálgico. Por fim,catastrofização e sono ruim são típicos da síndrome fibromiálgica. Será que todosnós desenvolveríamos dor generalizada em função de refluxo (ou de artrose nopescoço)? Retornamos à pergunta: esse paciente realmente não tem fibromialgia?

Se meu objetivo foi alcançado, o leitor, neste momento, já entendeu que odiagnóstico de fibromialgia depende totalmente de onde você quer colocar suas

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fronteiras. Como vimos no capitulo I, pelo menos 10% da população em geralapresenta dor crônica generalizada não secundária a nenhuma doença ouanormalidade estrutural específica [17], mas apenas em torno de 2,7% das pessoaspreenchem critérios para ela [18].

Para o médico, o importante é compreender quais as causas do sintoma do pacientee poder ajudá-lo. Por estranho que pareça, rotular o paciente pode ser mais dametade do tratamento. O típico paciente fibromiálgico peregrina, por anos, demédico em médico buscando as causas de seus sintomas e a certeza de que não háoutras doenças por trás deles. Se o médico puder mostrar-lhe, claramente, que seuspiores fantasmas são irreais e quais são os mecanismos que determinam seussintomas, já será um grande alívio para ele. Para outros, por preconceito ouignorância, ser rotulado de fibromiálgico é como ser chamado de louco, preguiçosoou carente afetivo. Uma vez entendido o mecanismo que leva aos sintomas, o usoou não do termo “fibromialgia” deve ser determinado pela praticidade dessa ação.O tratamento, como no caso de Paulo, independe do rótulo.

Dor local induzindo dor sistêmicaDurante a interpretação “unicista” do caso clínico acima citado, a conexão entre ador local no pescoço e a dor generalizada foi um tanto quanto forçada e merecemais atenção. No texto, a tentativa de proteger a área dolorida no pescoço terialevado o paciente a tentar “segurar os movimentos do pescoço com a musculaturaque, progressivamente, ficava tensa e dolorida”. A mobilização do grupo muscularque fica em volta da região lesionada estaria por trás da transformação da dor localem uma dor regional. Além disso, o texto sugere que o próximo salto - da dorregional para a generalizada -, teria sido influenciado pelo sono ruim, mas nãooferece maiores explicações. Isso realmente acontece? Por quais vias?

Um modelo de pesquisa em animais, que procura induzir fibromialgia emratinhos, tem muito a dizer sobre tal assunto. Nele, cada animal recebe, sobanestesia, uma injeção de ácido lático em uma das panturrilhas, e o procedimento érepetido 5 dias depois. Ácido lático é normalmente produzido nos músculos, apósatividade (anaeróbica), e não causa nenhum dano ao tecido. No entanto, o seuacúmulo, como o que ocorre após atividades físicas intensas, causa bastante dor.Após a segunda injeção, os ratinhos passam a apresentar, por 2 semanas ou mais,hiperalgesia e alodínea em todo o corpo, além de hiperalgesia nas vísceras- formasemelhante ao visto na síndrome do colo irritável [37]. Hiperalgesia é aexacerbação da dor em resposta a um estímulo normalmente doloroso, alodínea é

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dor em resposta a um estímulo normalmente não doloroso. Uma enorme parcelados fibromiálgicos e dos indivíduos diagnosticados com outras condições“funcionais” (sem causa orgânica) apresentam hiperalgesia e alodínea, além dehipersensibilidade a outros estímulos como luz e barulho - a ponto de hiperalgesia ealodínea definirem as síndromes de sensibilidade central para muitos autores.Essas pessoas sofrem, fundamentalmente, de alterações no processamento centraldesses estímulos, e não de anormalidades restritas a uma determinada região ondea dor é sentida [38]. O fato de os ratinhos experimentarem hiperalgesia e alodíneano corpo todo, incluindo o lado oposto à injeção e às vísceras, deixa claro que osmecanismos envolvidos nesse processo passam pelo sistema nervoso central – o quepode ser demonstrado de várias formas. Primeiramente, a administração de umanticonvulsivante (antagonista do receptor de glutamato) no sistema nervosocentral, antes da segunda injeção de ácido lático, inibiu o desenvolvimento dahiperalgesia e alodínea no experimento acima descrito. Da mesma forma, a injeçãode um anestésico na medula espinhal, em uma posição que bloqueia a influência docérebro sobre o corpo, também prevê o resultado do experimento [37].

Entender tal “diálogo” entre o sistema nervoso central e o periférico vai nos ajudara compreender alguns dos mecanismos da fibromialgia. O fenômeno evidenciadopor esse modelo animal de fibromialgia tem recebido 3 explicações principais. Aprimeira delas foi chamada de “windup” (do Inglês, “conclusão”, “término”). Essetermo reflete a excitabilidade crescente de alguns neurônios: após um estímulodoloroso os neurônios ficam mais sensíveis, e o segundo estímulo é mais facilmentepercebido. Isso ocorre em todos nós, mas é mais intenso nos pacientesfibromiálgicos. Uma evidência de que o fenômeno windup tem um papel no modeloanimal citado é o fato de que a segunda injeção é necessária. Não importa quãoforte seja o estímulo inicial, hiperalgesia e alodínea só vão ocorrer se um segundoestímulo for dado. O windup é um exemplo do que chamamos de neuroplasticidadee ocorre em diversos níveis do nosso sistema nervoso, inclusive nas fibras nervosasperiféricas tipo C, especializadas em transmitir dor, e na medula. Ele traduzmudanças neuronais que visam a adaptação às mudanças do meio externo ouinterno. Nesse caso, ela é mediada, principalmente, pela expressão de receptores deum neurotransmissor na medula (aspartato). O estímulo doloroso na panturrilhaativa as fibras periféricas da dor, que ativam fibras da medula e levam o estímulopara o cérebro. Dor significa lesão ou risco de lesão. É interessante o corpo ficaralerta para novos eventos, que poderiam ocorrer em qualquer lugar do corpo, nãonecessariamente no mesmo. Portanto, a ativação repetida dos neurônios da viaascendente da dor, na medula, estimula a produção de mais receptores para

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neurotransmissores aumentando a sensibilidade dessa via.

A segunda explicação para o modelo animal supracitado é a atenção. Estar “alertapara novos eventos” ocorre tanto na periferia e na medula (windup) quanto nasáreas mais elevadas do cérebro. A dor é rapidamente trazida para todos os níveisde nossa consciência, e o esforço em compreender e evitar novos eventos ocorre emtodos os níveis. Principalmente após eventos repetidos, estaremos mais atentos anovas ocorrências, e atenção significa diminuir o ruído causado por outrosestímulos e amplificar o estímulo em questão.

Ao mesmo tempo em que “estar alerta para a dor” amplifica sua percepção emcada um de nós, esse fenômeno é ainda mais importante nos fibromiálgicos.Estudos de ressonância magnética funcional, realizados em indivíduos que sabiamque receberiam um estímulo doloroso, mostraram que os fibromiálgicos ativavamas áreas envolvidas no processamento da dor mais do que controles normais oupacientes com artrite reumatóide [39]. Fatores afetivos influenciam o pesoemocional que a dor assumirá e, portanto, influenciam toda a percepção da dor. Épossível que tais fatores estejam por trás tanto da hiperalgesia e alodínea quantodessa hiperativação das áreas envolvidas no processamento da dor à antecipação deum evento doloroso observado nos fibromiálgicos. Isso também é sugerido porestudos de neuroimagem, que evidenciam nesses pacientes uma ativaçãoexacerbada em diversas áreas envolvidas no processamento afetivo (ínsulaanterior, amigdala, córtice anterior cingulado) em resposta a estímulos dolorosos[40-43].

Se o sistema periférico se comunica com o central pelas vias ascendentes, ocontrário, pelas vias descendentes, também ocorre. Dentre elas convém destacar asvias descendentes inibitórias da dor (ver capítulo XI), que agem sobre os neurôniosda dor na medula espinhal diminuindo sua ação. Esses mecanismos sãoresponsáveis, entre outras coisas, pela intensa analgesia que experimentamos emsituações de estresse agudo intenso. É o policial que só percebe que foi baleadoquando acaba o tiroteio, ou o jogador de futebol que só sente a fratura quando operigo de gol passou. No calor dos acontecimentos, não sentimos as lesões sofridas,e só quando a situação se acalma é que nos damos conta dos prejuízos. Isso ocorreporque o sistema nervoso central inibe, na medula espinhal, os sinais de dor vindosda periferia. Nos ratinhos do experimento acima, esse mecanismo está (ao menosparcialmente) desligado. Neles, mesmo em situações de estresse, a dor ascende pelamedula em vez de ser inibida. Isso pode ser interpretado como um esforço extra dosistema nervoso central no sentido de identificar e evitar novas lesões. O mesmofenômeno, a diminuição da atividade da via descendente inibitória da dor, também

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é observado nos pacientes fibromiálgicos [37].

É certo que outros mecanismos, além dos citados, implicam hiperalgesia e alodíneaexperimentados nesses modelos animais e nos pacientes fibromiálgicos (e eles serãoabordados ao longo deste livro), mas, por agora, o importante é destacar que dorrepetida ou duradora leva a maior percepção da dor como um todo. Essesmecanismos estão por trás da transformação da dor localizada na dor generalizadaem Paulo e, muito provavelmente, também em pacientes com dor localizada deorigem mecânica, como aqueles que sofrem de artrose. Artrose é o desgaste dacartilagem das articulações (e as mudanças decorrentes desse desgaste). Avelocidade com que isto acontece varia de pessoa a pessoa, mas quem viver osuficiente terá o problema. É um processo primariamente mecânico, há poucaparticipação do sistema imune e relativamente pouca inflamação (exceto quando asdeformidades estão bastante avançadas). Mesmo sendo a artrose um processolocalizado, esses pacientes estão mais sujeitos a desenvolver fibromialgia do que apopulação em geral. Esse fato apresenta óbvias implicações terapêuticas (adiminuição da ação das vias descendentes da dor tem que ser levada em conta ao setratar pacientes com artrose ou outras patologias de dor localizada crônica), etambém diagnósticas: ao se deparar com um quadro de “fibromialgia” o médicodeve considerar dor localizada entre os possíveis desencadeantes do processo.

Resumo do Capítulo III:

Diagnóstico da fibromialgia, suas dificuldades e conveniências. Dor localinduzindo dor generalizada.

• Diagnosticar fibromialgia exige a exclusão de todas as outras doenças quetambém podem causar sintomas semelhantes.

• É possível (e não raro) fibromialgia coexistir com outras condições clínicas.Todas precisam ser diagnosticas e tratadas.

• Os itens acima exigem cuidadosa consulta médica, cuidadoso exame físico,exames laboratoriais e, frequentemente, o passar do tempo.

• Dor localizada e diversas outras situações podem desencadear fibromialgia emqualquer um de nós, mas principalmente em indivíduos propensos. Tanto o médicoquanto o paciente devem estar atentos a esses desencadeantes.

• O modo pelo qual a dor localizada contínua ou repetitiva pode levar à dorgeneralizada passa pelo desenvolvimento de uma sensibilidade exagerada à dor, ao

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toque, aos sons e à temperatura. Isto é chamado de “hipersensibilidade” e é umacaracterística central do fibromiálgico. Ela acontece na medula espinhal e nocérebro, não no corpo em si.

• A definição de fibromialgia é arbitrária e relativa. Esse diagnóstico só deve serempregado se ajudar-nos a compreender e modificar os sintomas, e diminuir oreceio de doenças mais graves.

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Capítulo IV: Relações entre o sono e afibromialgia

(Descreve as relações entre o sono, a fibromialgia e as demais síndromes desensibilidade central. Muito importante para pacientes. Dificuldade baixa)

Uma senhora de 55 anos, que vinha sentindo dor generalizada háaproximadamente 10 anos, procurou um serviço de reumatologia. Ela já tinha odiagnóstico de fibromialgia e relatava que suas dores não respondiam de formaconsistente ao uso de anti-inflamatórios, antidepressivos ou fisioterapia, prescritos,no passado, por diversos médicos que havia consultado. Ela se queixava, também,de cansaço intenso pela manhã, sonolência durante o dia, e um sono não reparadordurante a noite, mesmo dormindo 8 horas ou mais por dia. O resto de sua históriaclínica era pouco significante, exceto por obesidade, “pré-diabetes” e hipertensãoarterial - que controlava com remédios - e roncos. Esse último elemento não foireferido espontaneamente, e poderia muito bem ter passado despercebido. Apaciente, de fato, preenchia os critérios do CAR para fibromialgia. Entre os examesque trazia havia uma polissonografia. Nesse exame, o sono é monitorado emrelação a uma ampla gama de parâmetros bio-fisiológicos, incluindo ondaseletromagnéticas cerebrais, movimentos oculares involuntários, movimentosmusculares, pressão arterial, movimentos respiratórios e oxigenação do sangue.Ele é feito para diagnosticar ou descartar um grande número de distúrbios do sonoe, nessa paciente, de fato, diagnosticou uma importante apneia obstrutiva. Emfunção de particularidades anatômicas das vias aéreas, da obesidade e do passardos anos, o palato dessa paciente, durante o sono, caia sobre sua faringe impedindoa livre passagem do ar. Em outras palavras, ela roncava muito e, com isso, nãoconseguia garantir uma oxigenação adequada do sangue. Não há estímulo maisforte do que a asfixia para levar ao despertar. Para evitar o afogamento, essapaciente, bem como todos os que sofrem de apneia grave, superficializava o sono.Grande parte dos pacientes não chega a se recordar desses “despertares”, mesmoporque são frequentemente incompletos. Claro que uma noite de sono superficial,cheia de despertares e asfixias não é capaz de garantir a renovação, o relaxamentoe os demais benefícios de uma noite bem dormida. A paciente foi tratada com o uso

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de CEPAP (do inglês, pressão positiva contínua em vias aéreas), um aparelholigado em uma máscara especial que empurra o ar para dentro das vias aéreasimpedindo a obstrução causada pela queda do palato. Semanas após o início do usodo CEPAP, todas as anomalias da polissonografia e todos os sintomas atribuídosà fibromialgia sumiram completamente, e assim permaneceram até o momento emque este livro foi escrito (2 anos depois) [44].

Esse caso, muito menos raro do que a literatura poderia sugerir, ilustra dois fatosnotáveis. Em primeiro lugar, muitas das pessoas que são chamadas defibromiálgicas têm, na verdade, apneia ou outro distúrbio do sono. Não háconsenso sobre quais pacientes deveriam ser estudados nesse sentido com maisprofundidade. Idealmente, todos deveriam sê-lo, mas isso levaria a gastosproibitivos e ao golpe de misericórdia de nosso já moribundo sistema de saúde. Otratamento da apneia do sono também é caro, e dificilmente poderia ser custeadoem massa. Na prática, a maioria dos médicos solicita uma polissonografia apenasquando há suspeita de um sono de má qualidade, e quando o tratamento de umpossível distúrbio do sono é acessível. Em segundo lugar, mas não menosimportante, está a constatação de que o sono de má qualidade pode provocar doresdifusas, fadiga e muitos outros sintomas idênticos aos encontrados na fibromialgia.Naquela paciente, o sono ruim era causado pela apneia. Resolvida a apneia, o sonose reestabeleceu e os sintomas sumiram. Um pequeno, mas curioso, estudopublicado em 2009 mostrou que os roncadores não são as únicas vítimas de seusafogamentos. As 17 esposas de portadores de apneia do sono, estudadas notrabalho, apresentaram índices de sensibilidade à dor, pontos gatilhos, estresse equalidade de sono significantemente piores quando comparados aos resultadosobtidos no caso de esposas de não roncadores (pareadas por idade e menopausa). Emais, esses parâmetros apresentaram correlação direta com o grau das alteraçõesde sono encontradas nas polissonografias de seus esposos [45]. Muitas mulheresdesenvolvem fibromialgia durante a difícil fase em que seus bebês não as deixamdormir, e boa parte delas volta ao normal quando as noites lhes são devolvidas.Em um estudo realizado há mais de 25 anos, voluntários normais foram privadosdas fases mais profundas do sono e desenvolveram muitas características dafibromialgia, incluindo dor muscular difusa, dor ao toque e fadiga [46]. Desdeentão, outros estudos semelhantes foram realizados e, principalmente aquelesbaseados na privação total de sono ou de 2 fases específicas dele (o sono “REM” e o“de ondas lentas”), também confirmaram as aberrações dolorosas desencadeadasem indivíduos normais [47]. Dois desses estudos documentaram a recuperaçãocompleta de seus voluntários após algumas noites de sono de boa qualidade. Por

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último, praticamente todos os remédios que se mostraram eficazes na fibromialgiatêm efeito também sobre a qualidade do sono.

Seria, então, a fibromialgia “apenas” um distúrbio de sono? Se isso for verdade,um sono ruim será condição sine qua non para o desenvolvimento dos sintomas.Esse fato leva à pergunta:

Todos os fibromiálgicos dormem mal?

“Sono não reparador” e fadiga (mas também rigidez no corpo e dificuldades deconcentração e memória) são os sintomas mais comuns da fibromialgia, segundoum estudo norte-americano envolvendo mais de 2500 pacientes. Em outro,prospectivo e envolvendo quase 500 fibromiálgicos, 94,7% deles referiu persistentemá qualidade do sono [48]. No estudo que deu origem aos critérios do CAR de2010, sono não reparador foi o segundo fator mais importante para a diferenciaçãodos casos e controles, logo após dor difusa (o elemento central do diagnóstico dadoença). Interessantemente, aqueles com fibromialgia em atividade relataram maisproblemas de sono do que aqueles com fibromialgia apenas no passado. Isso poderiaindicar que uma pessoa com tendências a desenvolver fibromialgia só apresentasintomas (ou os apresenta mais intensamente) nas fases em que se está tendo umsono pior. Efetivamente, a análise do diário de cerca de 50 pacientes comfibromialgia, acompanhadas prospectivamente por 30 dias, mostrou que os dias demaior dor eram precedidos das noites mais mal dormidas [49]. Essa abordagem éinteressante porque nem sempre a relação temporal entre o sono ruim e a dor éespontaneamente observada pelos pacientes. A própria consciência da má qualidadedo sono não é universal. Isso explicaria por que os estudos prospectivos e os queutilizam a polissonografia tendem a apresentar proporções de indivíduos comproblemas de sono mais próximas dos 100%.

Todos os que dormem mal têm fibromialgia?

A consistência dos dados associando sono de má qualidade aos sintomas dafibromialgia levanta a questão acima. Existe algo diferente nos fibromiálgicos, outodos os que dormem mal vão desenvolver fibromialgia?

Em uma pesquisa de saúde de 2009, na qual 75.000 norte-americanos foramentrevistados, o sono ruim causava muito mais impacto na qualidade de vida dosfibromiálgicos do que naqueles que não sofriam dessa síndrome [50]. Da mesmaforma, no estudo que deu origem aos critérios do CAR de 1990, fadiga e distúrbiosdo sono estão quase tão presentes no grupo controle quanto no grupo dos

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fibromiálgicos. Mas apesar de dormirem mal, os primeiros não desenvolveramfibromialgia.

É possível que qualquer pessoa venha a desenvolver sintomas semelhantes aos dafibromialgia se for, sistematicamente, privada de seu sono, mas a sensibilidade decada indivíduo a essa tortura parece variar bastante.

O sono e as diferenças entre os sexosEncontramos na discrepância entre a proporção de fibromiálgicos do sexo femininoversus masculino um bom exemplo sobre como indivíduos podem ser afetados deforma diferente pela privação de sono. Se o sono tem toda essa influência sobre ador generalizada, e existem de 7 a 9 fibromiálgicas para cada fibromiálgico,poderíamos concluir que elas têm um sono muito pior que o deles. Entretanto, umaanálise combinada de todos os artigos sobre insônia, publicados até 2006, estimouque as mulheres sofrem desse mal apenas 1,41 vezes mais que os homens [51]. Taldesproporção pode, ainda, estar superestimada. Estudos baseados empolissonografia (e não em queixas) sugerem que, na verdade, elas dormem melhordo que eles. Em um deles, as mulheres caíram no sono mais rapidamente, tiverammaior eficiência em relação a ele - com maior tempo efetivo de sono e menor devigília [52]. Aparentemente, as mulheres não têm um sono pior que o dos homens,mas são muito mais sensíveis às consequências de uma noite mal dormida. Essadiferença parece começar na puberdade, ser mais sensível aos ciclos menstruais epiorar na menopausa, evidenciando o papel dos hormônios femininos em taiscaracterísticas [53].

Modelos animais de privação de sono (e diferenças entre sexos).Maldades à parte, os modelos animais que tentam reproduzir fibromialgia emcamundongos permitem importantes insights para a compreensão do problema e,por diversas vezes, serão mencionados ao longo deste livro. Um deles é baseado naprivação de sono, que pode ser completa ou apenas na fase de ondas lentas. Noexperimento com privação completa, que durou 15 dias consecutivos, erampermitidas, aos camundongos, apenas 3 horas de sono por dia. Sempre que ospobres animais tentavam dormir ultrapassando esse número de horas, o chão seabria sob suas patas e eles caiam em um tanque de água. O outro experimentoocorria da mesma forma, mas nele as ondas cerebrais eram monitoradas e o banhoacontecia apenas quando eles estavam iniciando o sono de ondas lentas (outras

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fases do sono eram permitidas). Antes e depois de cada experimento, a sensibilidadedos camundongos à dor era testada colocando-os sobre uma plataforma quente. Otempo que os animais levavam para pular, retirar as patas ou lambê-las foi usadocomo medida indireta da sensibilidade à dor. Não existem modelos animaisperfeitos, e o acima descrito é claramente limitado por não estar medindo dorgeneralizada, pontos gatilhos, ou outro sintoma clássico da fibromialgia. Aindaassim é importante, porque essa hipersensibilidade térmica também ocorre nosfibromiálgicos (e é encontrada, também, em muitos outros diagnósticoscompreendidos nas síndromes de sensibilidade central), e também porque avalia ahipótese da hipersensibilidade à dor causada pela alteração do sono. Em ambos osexperimentos, os ratinhos ficaram muito mais sensíveis aos estímulos dolorososapós a privação de sono. Vinte e quatro horas de sono livre, depois dos 15 dias detortura, ajudaram aqueles privados das ondas lentas a recuperar a sensibilidadenormal, mas isso não ocorreu nos animais privados do sono total.Interessantemente, o efeito da privação de sono não foi igual entre os sexos. Fêmeasforam muito mais afetadas que os machos. Alguns hormônios foram dosados, e asfêmeas apresentaram baixas concentrações de estradiol (hormônio feminino) após oexperimento, enquanto os machos apresentaram altas concentrações de cortisona[54]. A cortisona é um potente anti-inflamatório secretado pelas glândulasadrenais, capaz de promover analgesia e outros artifícios muito eficazes paraajudar a enfrentar situações de estresse agudo. É bastante plausível que essaprodução exacerbada de cortisona seja um dos fatores que protegem os homens dedesenvolver fibromialgia, da mesma forma em que isso ocorre com o sexo oposto. Aprodução crônica de (ou uso crônico de medicamentos que contém) cortisona tem,no entanto, consequências indesejadas: hipertensão, obesidade, propensão parainfarto e derrame, entre outros. Portanto, os homens sentem menos dor após noitesmal dormidas, mas, em longo prazo, pagam um maior preço. A evolução desseexperimento parece confirmar tal hipótese. Ratinhos submetidos ao mesmoprotocolo, mas privados do sono por tempo mais longo, apresentaram o mesmopadrão, segundo o qual os ratos machos apresentaram mais hipertensão e ACTH(hormônio que estimula a produção de cortisona) [55].

Comparações entre fibromialgia e demais síndromes de sensibilidade central

Se homens e mulheres têm taxas semelhantes de distúrbios do sono, mas eles têmmenos fibromialgia porque sentem menos dor, é de se esperar que a diferença deincidência entre os sexos diminua nas outras doenças que compõem a síndrome desensibilidade central, nas quais a dor (generalizada) não é o pivô central dodiagnóstico. Em algumas delas, a diferença, obviamente, não pode ser calculada,

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como na prostatite crônica idiopática, ou síndrome vulvo-vestibular (mulheres nãotêm próstata e homens não têm vulva). Nas demais, no entanto, quando os dadosestão disponíveis, a desproporção entre os sexos realmente despenca, maspermanece maior entre as mulheres (tabela 4). É possível que, em outrassíndromes, a cortisona também tenha um efeito protetor, mas tal explicação é bemsimplista e certamente incompleta. Outros fatores hormonais, neurológicos,psicológicos e sociais influenciam diretamente tais síndromes e serão abordados aolongo do livro.

Tabela 4: Proporção entre os sexos em algumas das síndromes de sensibilidadecentral (SSC). M=mulheres, H=homens, Ref= referência.

Outra questão importante é o quanto o sono ruim também influencia as outrassíndromes que compõe a síndrome de sensibilidade central. Dados sobre esse fatosão muito mais escassos, e a comparação direta com os da fibromialgia éproblemática, em função de variações nos métodos de pesquisa (uso ou não depolissonografia, definição usada para o diagnóstico de cada síndrome, etc.). Atabela 5, abaixo, é uma tentativa aproximada de quantificar essa influência.

Tabela 5: Prevalência aproximada de distúrbios do sono nas síndromes desensibilidade central. Refs = referências.

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Um aspecto da tabela salta aos olhos: distúrbios de sono parecem, em geral, menosfrequentes nessas outras síndromes do que na fibromialgia e, ao mesmo tempo,permanecem bastante prevalentes nelas. Aparentemente, essas outras condiçõestambém são susceptíveis aos efeitos de noites mal dormidas, o que fala a favor deraízes fisiopatológicas em comum. A própria hipersensibilidade central, descrita emgrande parte dessas síndromes, é diretamente influenciável pelo sono e se destacacomo o grande candidato a ser o elo entre elas. Não está totalmente claro, até omomento, o que leva um portador dessa hipersensibilidade a expressar um ou outrodeterminado conjunto de sintomas. O pouco que se sabe sobre tais particularidadesindividuais será discutido ao longo do livro. Por hora digamos que a correntequebra onde o elo é mais fraco. Cada um de nós tem, por diversas razões, seucalcanhar de Aquiles. O sono ruim causa mais sintomas gastrointestinais nospacientes com síndrome do cólon irritável porque eles têm um sistema digestivoparticularmente sensível. O sono ruim causa mais dor de cabeça nos indivíduoscom cefaleia tensional porque eles têm uma maior tendência a contrair amusculatura do ombro e pescoço etc. Cada um desses diagnósticos apenas reúnepessoas nas quais uma resposta específica se sobressai em relação às demais, etodas elas associadas a uma sensibilidade exagerada do sistema nervoso central afatores estressantes no ambiente em que o indivíduo está inserido. As respostas nãosão mutualmente excludentes. A maioria de nós expressa a tensão exagerada demais de uma maneira e, portanto, não é estranho que essas diferentes síndromes

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frequentemente se sobreponham.

Como vimos, privação de sono pode levar à dor generalizada (e diminuição dasensibilidade à dor) mesmo em pessoas “normais”. O fato de os distúrbios de sonoserem mais prevalentes na fibromialgia do que nas demais síndromes desensibilidade central levanta a suspeita de que, ao escolher dor generalizada comoelemento principal de seus critérios para fibromialgia, o CAR tenha, sem querer,escolhido, também, distúrbios de sono.

É importante lembrar aqui que a definição de fibromialgia é artificial e passível deflexibilização. Assim, se estendermos um pouco as fronteiras desse diagnóstico,estaremos incluindo mais pessoas com características das outras síndromes desensibilidade central, nas quais o sono ruim é menos prevalente. Tendo isso sidodiscutido, devemos dar outra resposta à pergunta feita lá no início deste capítulo?“Todos os fibromiálgicos dormem mal?”. A resposta correta seria: depende dadefinição de fibromialgia. Na definição do CAR, a maciça maioria dosfibromiálgicos tem distúrbio de sono.

Dói porque não dorme ou não dorme porque dói?

“Como dormir, se o corpo parece desmontar de tanta dor”? A pergunta é muitofrequente em consultório, bastante pertinente também. Em outras doençasreumáticas, como artrose e artrite reumatoide, a dor tem origem bastante física eestrutural, e nelas o sono é, também, frequentemente ruim, portanto, “não dormeporque dói”. Interessantemente, nessas doenças o sono ruim também piora apercepção da dor [53], ou seja, mesmo a sequência óbvia sendo “não dorme porquedói”, o inverso desempenha, também, um papel importante.

Na fibromialgia, o evento primário é mais nebuloso. Por um lado, o sono ruimparece levar à dor. Tratar o sono, em particular as fases de ondas lentas, quasesempre melhora a dor. Uma vez estando lá, a dor torna-se mais um elementoimportante na manutenção do ciclo-vicioso provocando uma maior sensibilidadecentral, como detalhado no caso de Paulo. Adicionalmente, tendinites, bursites eoutras “ites” ocorrem com mais frequência nos fibromiálgicos do que na populaçãoem geral e são, também, causa importante de dor. Não está claro se eles sofremmais com isso, ou se sentem mais tais inflamações, o que levaria a uma maiorprocura de ajuda médica e a uma maior frequência de diagnóstico - provavelmenteambos. Sentem mais porque têm um limiar menor da percepção da dor e sofremmais com isso porque vivem em constante tensão. Durante a noite, quando aquele

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tendão ou grupo muscular deveria estar relaxado, descansando, está em francotrabalho. De novo, por um lado a dor das “ites” dificulta o sono, por outro seriamfacilitadas pela falta de sono.

Para a grande maioria dos pesquisadores da fibromialgia, o evento inicial é a jádiscutida hipersensibilidade central. Afinal, como vimos, nem todo mundo que teminsônia têm fibromialgia. Pacientes fibromiálgicos apresentam, frequentemente,uma hipersensibilidade global, envolvendo não apenas dor, como tambémtemperatura, som, luz e odores fortes. Seria essa hipersensibilidade o eventoprimário que levaria ao sono ruim e à dor. O que torna tudo ainda um pouco maisdifícil é que a fragmentação do sono de ondas lentas também leva a essahipersensibilidade global em indivíduos não fibromiálgicos [47]. De novo o ciclo-vicioso.

Em resumo: ambos acontecem. O sono ruim leva à dor, e vice-versa. O fato deexistir uma pequena quantidade de fibromiálgicos que dormem bem, leva-nos acrer que o evento inicial não seja o distúrbio de sono, o que, no entanto, não colocaa dor obrigatoriamente no papel causal. Isso pode até acontecer, como nafibromialgia secundária à artrose. Mas, ao mesmo tempo, apenas uma porção dospacientes com artrose avançada vão desenvolver fibromialgia, o que aponta anecessidade de outro(s) ingrediente(s) na receita. Aparentemente ambos, dor e sonoruim, são precedidos por outras características que levam à propensão para afibromialgia. Quais seriam elas?

Porque o sono é ruim?

A chave para desvendar o quebra-cabeça é entender os mecanismos que levam aosono ruim. Quando inquiridos, a resposta dos fibromiálgicos (que têm consciênciade sua dificuldade de sono) é unânime: “Não durmo porque minha cabeça nãodesliga”. Um turbilhão de coisas e problemas invade a cabeça do fibromiálgicoassim que ele se deita. Mas, honestamente, isso também acontece com todos aquelesque não sofrem de fibromialgia. O que diferencia o fibromiálgico é sua incapacidadede se desvencilhar desses pensamentos e dormir. Mas caso durma, tem dificuldadespara aprofundar o sono. E se aprofunda o sono, alguma coisa interrompe esseestágio supeficializando sua consciência. Isso fica claro, também, nos estudos compolissonografia. Neles, os achados mais frequentes são o aumento do tempo até oinício do sono, diminuição das fases de ondas lentas (sono profundo) e REM (sonoleve), e a intrusão de ondas alfa no sono de ondas delta. Essa última alteração(sono alfa-delta) é considerada um estado de hipervigilância [47]. Essa última

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palavra é chave e traduz a dificuldade do fibromiálgico em “desligar a cabeça”. Éimportante acrescentar, no entanto, que nenhuma dessas alteraçõespolissonográficas são exclusivas do fibromiálgico. Elas são vistas, também, emdiversos outros distúrbios do sono. Por que, então, a “hipervigilância”? Em outraspalavras: Por que “a cabeça não desliga”? A resposta fica mais clara quandoentendemos a personalidade do fibromiálgico.

Resumo do Capítulo IV:

São descritas as relações entre o sono, a fibromialgia e as demais síndromes desensibilidade central.

• Existe uma forte relação entre sono ruim e dor generalizada. Sono ruim podecausar sintomas muito semelhantes aos da fibromialgia em pessoas comuns edesencadear crises em fibromiálgicos.

• A grande maioria dos fibromiálgicos tem sono inadequado, mas alguns deles nãopercebem.

• Homens e mulheres reagem de maneira diferente ao sono ruim. Em longo prazo,eles desenvolvem mais hipertensão, obesidade e risco para doençascardiovasculares, enquanto elas sentem mais dor generalizada. Diferentes taxas deprodução de cortisona (um dos principais hormônios de estresse) explicam em parteessas diferenças, as quais influenciam a maior propensão que as mulheres têm paradesenvolver fibromialgia.

• Na fibromialgia ocorre o que chamamos de hipersensibilidade central: umasensibilidade exagerada do sistema nervoso a estímulos ambientais. Outrascondições médicas também têm tal característica e, frequentemente, apresentamsintomas que se sobrepõem aos de fibromialgia. Juntas, tais condições sãochamadas de “síndromes de hipersensibilidade central”.

• Qualidade do sono também influencia os sintomas das outras doenças dasíndrome de sensibilidade central, mas não tanto quanto influencia os dafibromialgia. Ao mesmo tempo, o sono ruim também é frequentemente referidopelos pacientes de tais síndromes, mas não tão frequentemente quanto pelosfibromiálgicos. O sono influencia a sensibilidade central a eventos estressantes, porisso influencia a todas essas condições. Mas a estreita relação entre sono e dor(mesmo em pessoas normais) pode explicar a especial relação entre distúrbios dosono e fibromialgia.

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• Dói porque não dorme, ou não dorme porque dói? Ambos acontecem. O sonoruim leva à dor, e a dor leva ao sono ruim. No entanto, nem todo mundo que temdor vai desenvolver fibromialgia, assim como nem todo mundo que dorme mal ofará também. É necessário algo mais, e este "algo mais" parece ser um estado dealerta constante - A chamada “hipervigilância”.

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Capítulo V: A personalidadefibromiálgica e subgrupos na

fibromialgia

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