Terra Em Transe Na Entrevista Para a Positif

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Terra em Transe na Entrevista para a Positif Personagens Femininos Em Barravento, Deus e o Diabo, e também Terra em Transe, as mulheres têm consciência do que se passa, consciência da «história». EmBarravento, um personagem feminino dá a sua própria vida como exemplo, se sacrifica pelo povo, leva um homem a assumir uma posição política e morre. Eu tenho muita dificuldade em trabalhar com os personagens femininos. Escrevi diversos roteiros que não foram filmados, nos quais eu tinha dificuldades em criar personagens femininos, que são comigo sempre muito conscientes e têm influência moral ou política. Mas não Sílvia em Terra em Transe? Não, Sílvia certamente não, mas ela está em segundo plano, é uma espécie de musa, uma expressão da adolescência, que se torna imagem fugitiva. Sílvia aliás não diz uma palavra em Terra em Transe, porque não consegui colocar uma palavra em sua boca. Foram cortadas porque tudo o que ela dizia ficava ridículo. Sara talvez diga as coisas um pouco como homem. Talvez exista aqui um fenômeno de compensação porque não encontro freqüentemente na realidade brasileira mulheres tão conscientes. Atores Em Terra em Transe, são grandes atores de teatro, mas eu os escolhi em função do assunto. José Lewgoy, que faz o Vieira, é o ator de cinema mais popular do Brasil: ele faz sempre o chefe dos bandidos nos filmes de gangsters, e aparece também nas comédias. É espontâneo e inteligente. Paulo Autran é ator de teatro quase oficial, representa tragédias gregas, interpreta então um papel teatral, o personagem de um mistificador. Jardel Filho, que é o herói do filme, é também ator conhecido no Brasil. Já fez mais de quarenta filmes, trabalhou na Espanha e na Argentina. Em Terra em Transe, já foi outra história, com atores profissionais, com contratos pagos, que tinham que trabalhar no teatro à noite, que filmavam até as quatro horas da tarde e

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Glauber rocha melhor forma

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Terra em Transe na Entrevista para a PositifPersonagens FemininosEmBarravento,Deus e o Diabo, e tambmTerra em Transe, as mulheres tm conscincia do que se passa, conscincia da histria. EmBarravento, um personagem feminino d a sua prpria vida como exemplo,se sacrifica pelo povo, leva um homem a assumir uma posio poltica e morre.Eu tenhomuita dificuldade emtrabalharcom os personagensfemininos. Escrevidiversosroteirosquenoforam filmados, nos quais eu tinha dificuldades em criar personagens femininos, que so comigo sempre muito conscientes e tm influncia moral ou poltica. Mas no Slvia emTerra em Transe? No, Slvia certamente no, mas ela est em segundo plano, uma espcie demusa,umaexpresso daadolescncia,quese torna imagem fugitiva. Slvia alis no diz uma palavra emTerra emTranse,porqueno conseguicolocar uma spalavraemsua boca.Foram cortadas porque tudo o que ela dizia ficava ridculo. Sara talvez diga as coisas um pouco como homem.Talvez exista aquium fenmeno de compensao porqueno encontrofreqentemente na realidade brasileira mulheres to conscientes.AtoresEmTerraemTranse, so grandesatores de teatro, mas eu os escolhi em funo do assunto. Jos Lewgoy, que faz o Vieira, o ator de cinema mais popular doBrasil:ele fazsempre o chefe dos bandidos nos filmes degangsters, e aparece tambm nas comdias. espontneo e inteligente. Paulo Autran ator de teatro quase oficial, representa tragdias gregas, interpreta ento um papel teatral, o personagem de um mistificador. JardelFilho, que o heri do filme, tambm ator conhecido no Brasil.J fez mais de quarenta filmes, trabalhou na Espanha e na Argentina.EmTerra em Transe, j foi outra histria, com atores profissionais, com contratos pagos, que tinham que trabalhar no teatro noite, que filmavam at as quatro horas da tarde e alguns mesmos se recusavam a falar com os assistentes. Com os atores principais as relaes eram profissionais. Eu sofria porque achava que poderia conseguir mais no filme, se os atores tivessem compreendido melhor seu papel. Queriam trabalhar neste filme porque pensavam que se tratava de filme importante, s isso.Aquele que interpreta Diaz, dizia que no estava de acordo com o seu papel, por ser um homem de esquerda e no querer interpretar o homem da direita. Aquele que interpretou Vieira pretendia ser sofisticado, e por isso no podia interpretar um heri populista. O personagem principal sentia-se bem e gostava do papel.Paulo Martins e Aspectos do Filme EmDeus e o Diabo, o personagem de Antnio das Mortes est a servio da represso e , ao mesmo tempo, um agente da histria, uma conscincia crtica em relao aos personagens. Voc no recorreu a este tipo de personagem emTerra em Transe, voc abandonou esta construo de personagem-testemunha. Antnio das Mortes , emDeus e o Diabo, o nico personagem que eu realmente elaborei; os outros so personagens verdadeiros num contexto histrico determinado, e podem ser identificados. Com Antnio eu apresentava a descrio de uma conscinciaambgua, de uma conscincia em transe. Antnio que personagem primitivo, um campons, um aventureiro, vamos encontr-lo mais desenvolvido em todas as contradies do Paulo Martins deTerra em Transe. Paulo Martins, como Antnio, um cara que vai direita e esquerda, que tem m conscincia dos problemas polticos e sociais. Encontramos nele uma revoluo recorrendo s contradies, e disso ele morre. , alis, uma parbola sobre a poltica dos partidos comunistas na Amrica Latina. Para mim, Paulo Martins representa, no fundo, um comunista tpico da Amrica Latina. Pertence ao Partido sem pertencer. Tem uma amante que do Partido. Coloca-se a servio do Partido quando este o pressiona, mas gosta tambm muito da burguesia a servio da qual ele est. No fundo ele despreza o povo. Ele acredita na massa como um fenmeno espontneo, mas acontece que a massa complexa. A Revoluo no estoura quando ele o deseja e por isso ele assume posio quixotesca. No fim da tragdia, ele morre. Antnio mais primitivo, recebe dinheiro do poder, deve matar os pobres, o beato e o cangaceiro, e ele sabe que essas pessoas no so ms porque so vtimas de um certo contexto social do qual no tm conscincia. Antnio um brbaro, enquanto Paulo intelectual. Eu gostaria de retomar noTerra em Transealguns elementos da estrutura deDeus e o Diabo. Encontramos nas cidades a mesma hierarquia do campo; uma herana do tempo do latifndio, de uma mentalidade da Idade Mdia com, certamente, influncias da civilizao moderna. EmTerra em Transe, a maior ambio que eu tinha era denunciar essas estruturas e paralelamente mostrar uma estrutura dramtica em vias de se destruir. por isso queTerra em Transetem relao comDeus e o Diabo. Trata-se da destruio de um discurso que j foi iniciado emDeus e o Diabo.Voc ento tentou tambm empreender essa destruio do ponto de vista esttico? Deus e o Diabo um filme narrativo, um discurso...Terra em Transej mais antidramtico, um filme que se destri, com uma montagem de repeties. No momento eu gostaria de mudar, pois acho que h uma sada poltica que realmente atual e vlida, e que responde a todas as insuficincias tericas dos Partidos Comunistas tradicionais latino-americanos. Personagens como Paulo Martins ou Antnio das Mortes no me interessam mais. Eu acho, par exemplo, que Che Guevara o verdadeiro personagem moderno, toma posio contra ela. o verdadeiro heri pico, nem o intelectual como Paulo, nem o primitivo como Antnio.Mas, alis, a significao implcita deTerra em Transe que a aliana do intelectual com a burguesia leva sempre ao fracasso. Acho que as respostas s dvidas de um personagem, como Paulo - dvidas que alis caracterizam toda minha gerao e eu mesmo, a figura de Guevara. No estou dizendo isso porque se fala neste momento em sua morte, pois eu j pensei muito nisso e tudo me leva neste momento a fazer um filme a respeito de um personagem como ele, burgus que se desliga de sua cultura e faz a revoluo. Ele d uma resposta por sua prpria existncia e agora com sua lenda, ele traz resposta a uma srie de problemas da Amrica Latina.Antnio das Mortes est alm de Paulo Martins. Ele um pouco a racionalidade da histria. Sendo Antnio das Mortes primitivo e no tendo vivido os compromissos e a educao burguesa de Paulo, ele pode se tornar mais rapidamente um personagem, revolucionrio; mas tambm Paulo pode se tomar revolucionrio. No abandonei o personagem de Antnio, quero voltar a ele mais tarde. No Brasil, o personagem do filme que adquiriu mais popularidade e a eleDeus e o Diabodeve seu semi-sucesso; ele se comunicou com os espectadores. Quero fazer uma espcie de anti-western, brigas entre proprietrios de terra e camponeses, etc, e quero ambientar Antnio nesta situao.Voc disse que, em Paulo Martins, h um lado Antnio das Mortes, mas h tambm um lado Manuel, porque Paulo vai tambm de um para outro, como Manuel ia do Deus Negro ao Diabo Loiro. Pensa-se tambm em Corisco: o personagem de Corisco obcecado pela morte e por uma espcie de sonho metafsico que muito curioso num bandido, e Paulo, o poeta, tambm pensa na morte. verdade, porque ele um pouco, como poeta, aquilo que Corisco como bandido. tambm um aventureiro que beira o perigo. Alis, s pela morte Paulo Martins poder se salvar; pois, inclusive, se escolher a revoluo, ou seja, se ele se tornar um revolucionrio, ele escolhe tambm a morte e esta escolha lhe d possibilidade de vitria. Ele deve portanto se preparar para a morte. Trata-se de uma deciso para a qual devem-se romper todas as amarras. No estou pronto para isso. uma contingncia trgica que todo homem do Terceiro Mundo deve enfrentar. Pode ser encarada, se quiserem, como posio neo-romntica, mas muito didtica tambm. O que Guevara valoriza que a guerrilha no uma aventura romntica, mas epopia didtica. Um pouco como os personagens dewestern, com uma ressalva: a misso muito precisa, trata-se de politizar. Alis, vejo nisso o incio de uma nova cultura, de um novo comportamento, de um novo estilo de homem e de ao; pormenorizando: a fala, as vestimentas e o comportamento dos guerrilheiros so algo novo.A morte de Paulo tem aspecto esttico. Em si, ela no tem nenhuma significao, porque no altera nada. Sim, porque ele toma conscincia; neste momento preciso, ele morre por causa de um acidente, mas ele declara que no se deve. Diz que preciso aceitar a violncia, enfrentar o destino num corpo a corpo. Em outro momento do filme, ele dizia a Sara que, quando se tiver conscincia clara e completa de tudo, s a violncia permanecer, ele diz isto depois do comcio poltico; lembra-a que dentro da massa existe o homem, e que o homem difcil de manipular, mais difcil que a massa. Ele, claro, no pode aceitar a violncia, por ser impotente, no tem organizao para isso. No momento de sua morte, ele sabe que a violncia o caminho da revoluo.Os Cantos de MaldororO monlogo deTerra em Transe muito bonito e interessante saber que voc queria intitular seu filme Maldoror. Eu li muitoOs Cantos de Maldoror, infelizmente em portugus, porque no Brasil no encontrei a edio francesa. O que me marcou neste livro a tortura permanente. H um realismo do vmito. Foi muito criticada a estrutura do filme, seu aspecto irrisrio. Queria dar mesmo esta aparncia de vmito e acho que Paulo homem que vomita at os seus poemas e as ltimas seqncias do filme so um vmito contnuo. O discurso evidentemente inferior ao de Lautramont, mas h nele a mesma angstia. Voc escreveu primeiro este monlogo? Sim, depois alguns outros poemas e finalmente o roteiro. Filmei e, na montagem, inseri o monlogo.

Mar e Trilha Sonora No fim deDeus e o Diabo dito que o mar ser serto, e o incio deTerra em Transe tambm o mar, o oceano: voc pensou nisso? Sim, muito claro; eu nem queria fazer uma referncia simblica acho queTerra em Transe o desenvolvimento natural deDeus e o Diabo: as pessoas chegam ao mar. Chega-se pelo mar cidade e, no fim, acabamos num deserto onde no h a msica da esperana como emDeus e o Diabo, mas o rudo das metralhadoras que se sobrepe msica do filme. Msica e metralhadoras, e em seguida rudos de guerra, ou seja, um canto de esperana. No uma cano no estilo realismo socialista, no o sentimento da revoluo, algo mais duro e mais grave. Fiquei feliz em ter colocado isto no filme, porque um ms mais tarde, quando li a comunicao de Che naTricontinental, ele dizia: Pouco importa o lugar onde encontrarei a morte. Que ela seja bem-vinda desde que nosso apelo seja ouvido... e que no repicar das metralhadoras outros homens se levantem para entoar cantos fnebres e lanar novos gritos de guerra e de vitria. Mas qual a cano do incio de Terra em Transe?

A cano de Terra em Transe uma cano africana, canta da em lngua africana no Brasil, e sua nica finalidade evocar um certo lugar, certa atmosfera dos mares tropicais, dos palcios barrocos. Esta cano cantada em vrios lugares, sobretudo na Bahia; Barravento tambm comea com uma cano africana. O mar um mito para o campons pobre, e pelo mar que os portugueses chegaram no Brasil.Voc utilizou Villa Lobos, Bach, Verdi e tambm um msico brasileiro, Carlos Gomes, no seu ltimo filme. Villa Lobos me influenciou muito, eu j disse. Carlos Gomes compositor de pera brasileira do comeo do sculo; ele inspirou-se muito em Verdi, e ainda muito apreciado. Nos programas da Rdio Federal que se chama a Voz do Brasil, quando o presidente vai falar, toca-se Carlos Gomes. Eu utilizei sua msica para as seqncias com Diaz, quando ele passeia no seu jardim, e quando h no filme uma inteno de pardia. De Verdi coloquei Otelo, porque era uma discusso sobre os cimes e a amizade e porque queria sublimar tambm um lado homossexual e solitrio em Diaz.

Mrio Faustino, Citao InicialQuase no comeo do filme h uma citao no legendada de Mrio Faustino. Mrio Faustino foi o maior poeta brasileiro de minha gerao, morreu aos 33 anos num acidente de avio. Escreveu um livro que se tornou muito popular entre a juventude, chamado O Homem e sua Hora. E no poema Epitfio para um Poeta ele dizia: No conseguiu firmar o nobre pacto Entre o cosmos sangrento e a alma pura... Gladiador defunto mas intacto (Tanta violncia, mas tanta ternura) Foi isto que coloquei em meu filme, como homenagem; ele era um pouco como Paulo Martins.

Esttica e InflunciasParadoxalmente, a parte dedicada ao imaginrio talvez maior emTerra em Transeque emDeus e o Diabo. Quando filmeiDeus e o Diabo, gostei muito da paisagem e da figura de Corisco tambm, e inclusive se assumi uma atitude crtica, sentia-me ligado a estes personagens. Ao contrrio, como eu detestava todas as coisas apresentadas emTerra em Transe, filmei com certa repulso. Lembro-me de que dizia ao montador: estou enojado porque no acho que haja um nico plano bonito neste filme. Todos os planos so feios, porque se trata de pessoas prejudiciais, de uma paisagem podre, de um falso barroco, O roteiro me impedia de chegar espcie de fascinao plstica que se encontra em Deus e o Diabo. s vezes, pode ser que eu tenha tentado escapar a este ambiente, mas o perigo consistia em atribuir valores aos elementos alienados. O filme foi freqentemente filmado com a cmara na mo, de modo flexvel. Sente-se a pele dos personagens, procurei um tom documentrio. Tudo o que pode parecer imaginrio de fato verdadeiro. Fui, por exemplo, consultar arquivos de jornais para ver fotografias de polticos. Quando o Presidente Kubitschek chega a Braslia, por exemplo, os ndios lhe levam um cocar de cacique etc. Quando filmei o comcio onde o velho senador comea a danar com as pessoas, mandei vir uma verdadeira escola de samba e botei Vieira no meio. Fizera a mesma coisa com Deus e o Diabo, porque l tambm os camponeses pensavam que aquele que interpretava Sebastio era um verdadeiro beato. No tinha previsto a cena da dana do senador, mas num determinado momento o ator se empolgou pela msica e pelo discurso poltico: ele comeou a danar e filmamos o conjunto com a cmara na mo. Pablo Neruda j falava de surrealismo concreto por ser este aspecto surreal um fato dentro da realidade da Amrica Latina e do Terceiro Mundo. Encontramos este surrealismo concreto em Asturias, Alejo Carpentier ou Nicolau Guilln.

Voc tem gosto pelos conflitos, entre a chama e as exploses de violncia emDeus e o Diabo,entre a imagem e um comentrio que no est diretamente relacionado com ela emTerra em Transe.Voc valoriza muito a montagem. H poucos dias, um amigo brasileiro me perguntou quando eu vou resolver contar uma histria num filme. Caio sempre num conflito e tento abrir um discurso crtico sobre a histria. O cinema poltico uma discusso sobre estes fatos. E acho que a montagem est ligada a esta acumulao de vrios conflitos, ao mesmo tempo subjetivos e objetivos. Gosto muito de Faulkner, porque h sempre nele uma acumulao simultnea e progressiva dos conflitos. Por outro lado, o meio social, os negros, a gente do Sul, isto poderia ser tambm o Nordeste do Brasil, ou algum pas da Amrica Latina. Existe alis um romance de Faulkner que eu quero filmar, The Wild Palms.Disseram, em nossa opinio sem razo alguma, que voc discpulo de Buuel, quando pelo contrrio, formalmente ao menos, pensamos em Welles, emTerra em Transe. Da mesma maneira pode-se fazer um filme dewesternou de cangao tomando lies de Hawks ou de Ford mas invertendo o contedo e forma: isto a antropofagia esttica.H no seu filme uma impresso muito grande de violncia, mas voc no a mostra. V-se o revlver na boca do campons e tudo, ou ento o suicdio de lvaro sugerido. Quando a violncia mostrada de forma descritiva, ela agrada ao pblico, porque estimula seus instintos sadomasoquistas; mas o que eu queria mostrar era a idia da violncia, e s vezes mesmo uma certa frustrao da violncia. Devemos refletir sobre a violncia e no fazer um espetculo com ela.H alis um detalhe interessante a propsito deTerra em Transe: todo mundo apresenta sempre os revlveres ou as armas com os braos estendidos. Sim, como a poltica brasileira, que uma poltica onde ningum atira nunca; um comentrio irnico da situao. Por que h uma barreira constante de polcia? uma zona governamental, h um golpe de Estado, a presena dos soldados ento normal. E alis, o filme sendo emflashback, v-se no final que durante a sua fuga Paulo cruza com diversos caminhes do Exrcito.Um detalhe d fuga de Paulo e sobretudo ao fato que ele est ferido pela polcia um aspecto imaginrio: quando o policial atira nele, sua ao fragmentada em vrios planos e isso d a seus movimentos alguma coisa de mecnico e irreal. Em umwesternou em um filme policial pode-se dar o movimento todo, faz-se um filme pelo prazer de filmar esse gnero de coisa; mas emDeus e o Diabo, quando Antnio das Mortes apresentado pela primeira vez, em ao, isto , matando, eu fragmentei tambm essa cena, pois o interessante no a ao em si mesma, mas o seu carter simblico.O personagem do Negro que marca os comcios polticos interessante; como o cego doDeus e o Diabo. algum que vai ser a memria dos acontecimentos, tambm uma referncia ao cinema direto.

Castro Alves E a cano A praa do povo como o cu do condor>>? um verso de um poeta romntico brasileiro do sculo passado, Castro Alves, falecido aos 23 anos de tuberculose. muito popular. Lutou em prol da abolio da escravatura dos negros, contra a monarquia, e em prol da Repblica. Ele fazia comcios onde improvisava a sua poesia e escreveu um poema intitulado O povo no poder, ao qual pertence o verso encontrado emTerra em Transe.Martin FierroE quanto a Martn Fierro ? Torre-Nilson est realizando um filme que a epopia de Martn Fierro. um poema pico revolucionrio dos gachos da Argentina; e como estava fazendo um filme num esprito latino-americano, achei bom colocar uma citao de Martn Fierro. Vieira, lder populista, l esta obra que um poema progressista.SaraPaulo falando com Sara diz: Eu tenho fome de absoluto, e ela responde: A fome, a fome fsica. Sara personagem que tem uma experincia mais direta e mais realista da situao poltica, mas ao mesmo tempo ela fica com Vieira, o mistificador. Ela lcida, mas sempre comunista, sempre fiel linha do Partido. Quando Sara vem com seus dois amigos ver Paulo para conseguir de uma vez sua adeso a Vieira, ele est consciente de que uma unio com Vieira no levar a nada de positivo, mas nesse momento a sua conscincia poltica sofre interferncia existencial: como ele ama Sara, liga-se a Vieira por causa dela. No fim Paulo derrotado, ela o deixa; um personagem lcido e poltico; ela continua a luta; o nico carter coerente deTerra em Transe.

Cinema Novo e AntropofagiaNo texto em que Positif(n 73)publicou A Esttica da Fome voc dizia que o Cinema Novo tinha agora necessidade de fazer uma reviso dele mesmo. Em que ponto est ele, no fim de 1967? Depois dos primeiros filmes do Cinema Novo, organizamos uma sociedade de distribuio no Brasil, que os procura tambm colocar no mercado internacional. Ns temos uma certa liberdade econmica, que nos permite produzir nossos prprios filmes com toda independncia. Paralelamente, eu acho que h um certo desenvolvimento das idias e tambm da tcnica e da expresso. O prximo filme de Nelson Pereira dos Santos, por exemplo, bem mais ambicioso que Vidas Secas; da mesma maneira Carlos Diegues, cujo Os Herdeiros mais poltico e mais ambicioso do que suas obras anteriores; e tambm Walter Lima Jr., que filma Brasil Ano 2000, e Joaquim Pedro com Macunama, o mesmo para Hirszmann com a Garota de Ipanema, para Gustavo Dahl com o Bravo Guerreiro, para Paulo Gil Soares, Proezas de Satans, para Bressane com Cara a Cara, e para Paulo Csar Sarraceni com Capitu. Muitos filmes esto sendo feitos. O Cinema Novo viver nos anos de 68-69 seus momentos decisivos. Se quatro ou cinco filmes forem do nvel de Terra em Transe, teremos realmente uma revoluo no movimento e o Cinema Novo ter sada. Seno o Cinema Novo passar por uma crise que no ser definitiva, que s acontecer no caso de uma crise poltica, com censura total, etc... Ns chegamos concluso de que sem uma certa liberdade econmica no haver liberdade artstica, nem poltica, e por isso que o Cinema Novo no tem esttica definida.Parece que o Cinema Novo vai, nesse momento, do campo para a cidade. Seus trs primeiros filmes importantes(Vidas Secas, Deus e o DiaboeOs Fuzis) eram sobre o Nordeste, e agora ele aprofunda os problemas da cidade, no momento em que Guevara mostra que, ao contrrio, preciso sair da cidade e comear pelo campo. Os tericos diziam que no se devia fazer filmes sobre o campo, porque a poltica se faz na cidade. No Brasil se faz na cidade e no deserto, em toda parte. No filme de Walter Lima Jr. ela no se faz nem na cidade, nem no campo, mas no ano 2000, uma espcie descience fictionpoltico. Nelson Pereira dos Santos vai film-la entre os ndios. histria de antropofagia com um ttulo muito engraado em francs: "Comme il tait bon mon petit Franais. Ele se utilizou da narrao de um jovem soldado francs que, durante as invases francesas no Brasil, foi preso pelos ndios; ele lhes ensina o francs e tambm a tcnica de guer ra. Ele recebe uma mulher de presente, depois os ndios antropfagos querem com-lo, porque o respeitam. Nelson quer fazer um comentrio sobre as relaes entre colonizadores e colonizados e sobre intercmbios culturais. muito interessante, porque se a antropofagia no existe mais no Brasil como tal, h um esprito filosfico que se chama antropofgico.OutrosEm cena muito realista, voc utiliza o que vem a ser a estrutura de conjunto deDeus e o Diabo: um personagem fala em nome do povo. comum no Brasil esse gnero de jogo simblico? Para filmar essa cena, coloquei Vieira, o autor, no meio do povo, e eles pensaram que se tratava realmente de um comcio poltico, que Vieira era mesmo um candidato. E mesmo nas cenas do interior, quando Vieira cumprimenta as pessoas da cidade, era como um comcio poltico. Ele chegou e comeou a fazer seu discurso, e nesse momento a polcia quis interromper a filmagem porque havia agitao, as pessoas queriam votar naquele homem (era na poca das eleies para deputado). Eu aproveitei, filmamos ao vivo, bem rpido, num domingo tarde. a cena do incio da campanha eleitoral de Vieira e tudo o que h nessa cena nasceu espontaneamente. Eldorado o nome de uma cidade? No, Eldorado antes o mito latino-americano do ouro. Quando os espanhis chegaram na Amrica, falavam de Eldorado. No filme Eldorado ao mesmo tempo o nome da Capital e do Estado, enquanto que Alecrim o nome de uma cidade, uma provncia do Estado de Eldorado. Isso poder criar algumas dificuldades de compreenso na Europa onde, contrariamente Amrica Latina, no existem capitais com o mesmo nome do pas. Alecrim, sendo uma provncia portuguesa muito conhecida, trouxe tambm problemas ao espectador brasileiro.Esse tipo de confuso, como essa de Alecrim, por exemplo, torna-se grave, porque impede o compreenso de uma coisa importante que a construo do filme, que ela clara. Voc no acha que no fim voc mostra a situao de uma maneira direta demais, porque voc est to empenhado, e isso impede a compreenso? O plano final longo (um minuto), e ele perturba mesmo um pouco, mas eu acho que depois de 40 segundos, as pessoas comeam a compreender que essas metralhadoras tm significado; eu insisti na durao. Quanto ao desgosto do heri pelo carnaval, talvez seja muito vago, como palavra, mas a poltica brasileira verdadeiramente um carnaval. A civilizao brasileira decadente. Ns somos realmente podres, estreis e preguiosos, de grande incapacidade artesanal e duma energia irracional que acaba, ento, sempre no vazio. Tentei fazer com que o filme seja a expresso deste carnaval e de meu nojo violento diante da situao.