Tolentino Mendonça por Maria João Avillez, i 200912

download Tolentino Mendonça por Maria João Avillez, i 200912

of 7

Transcript of Tolentino Mendonça por Maria João Avillez, i 200912

  • 8/14/2019 Tolentino Mendona por Maria Joo Avillez, i 200912

    1/7

    Tolentino Mendona "O cristianismo, graas a Deus, venceu a

    tentao de declarar inimigos"

    Maria Joo Avillez, Publicado em 26 de Dezembro

    http://www.ionline.pt/conteudo/39215-tolentino-mendonca-o-cristianismo-gracas-deus-venceu-tentacao-declarar-inimigos

    No so precisas mais palavras, bastam as dele: ningum as colhe assim, ningumas pe deste modo ao nosso servio, ningum acerta assim com elas nas almas,ningum perfura assim os coraes. Por isso a sua luz - e o seu esplendorespiritual, e o seu fulgor criativo - irradiam em diversos meios. Em todos temamigos, seguidores, admiradores, companheiros.

    Jos Tolentino Mendona, 44 anos, sacerdote, poeta e intelectual fecundssimo, temo raro dom de interpelar, tocar, marcar. Para "servir" para l de credos, idades evidas.

    Com a preocupao de levar Deus at eles? "No. Eu respeito muito os percursos

    de cada um. Cada pessoa transporta uma histria que sagrada. Gosto de areconhecer como ."

    Quem o ler j a seguir tambm vai reconhecer a humildade luminosa das suasderivaes sobre o homem e o sagrado, o homem e o mundo, o homem e aesperana. E como se trata dele valeu muito a pena, valeu sobretudo a pena perderalgum tempo a ouvi-lo falar-nos assim de Deus.

    http://www.ionline.pt/conteudo/39215-tolentino-mendonca-o-cristianismo-gracas-deus-venceu-tentacao-declarar-inimigoshttp://www.ionline.pt/conteudo/39215-tolentino-mendonca-o-cristianismo-gracas-deus-venceu-tentacao-declarar-inimigoshttp://www.ionline.pt/conteudo/39215-tolentino-mendonca-o-cristianismo-gracas-deus-venceu-tentacao-declarar-inimigoshttp://www.ionline.pt/conteudo/39215-tolentino-mendonca-o-cristianismo-gracas-deus-venceu-tentacao-declarar-inimigoshttp://www.ionline.pt/conteudo/39215-tolentino-mendonca-o-cristianismo-gracas-deus-venceu-tentacao-declarar-inimigos
  • 8/14/2019 Tolentino Mendona por Maria Joo Avillez, i 200912

    2/7

    Vamos perder um pouco de tempo com Deus. No tanto devido quadranatalcia como devido a si: pode falar-se de Jos Tolentino de Mendonacomo poeta, homem de cultura, intelectual brilhante, mas no se deve falarde si sem o ligar a Deus - pois no?

    Eu sinto que a procura de Deus a dimenso mais forte da minha existncia. Emltima anlise dessa procura - humilde, inacabada, sempre a ser refeita - que mealimento. Vivo na sua expectativa, deslumbro-me com a revelao surpreendente epolifnica da sua presena, sofro e interrogo o seu silncio... Com a conscinciaprofunda, porm, de que estes contornos mais intensos ou mais frgeis da minhaprocura no so os mais importantes. Importante , nas horas da graa ounaquelas de densa escurido, saber-se buscado, saber que Deus quem nosprocura...

    Quando que Ele se tornou obrigatrio? Obrigatrio como respirar?

    Uma amizade no comea no momento em que explicitada. Para chegar a serexplicitada tem primeiro de crescer em silncio nos coraes, de se construir lentae misteriosamente em mltiplos encontros, de se consolidar num trfico ntimo desinais... H uma frase de Blanchot que explica deste modo a forma como todosexperimentamos a amizade: "J ramos amigos e no sabamos." A amizade comDeus a mesma coisa. Quando que Ele se tornou obrigatrio? Tenho deresponder, para ser verdadeiro: muito antes que eu o soubesse. Vm-me cabeaaqueles versos de Mrio Cesariny: "Tu ests em mim como eu estive nobero./Como a rvore sob a sua crosta./Como o navio no fundo do mar."

    Mas como "percebeu" que Deus estava a falar consigo? Nesse "silncio nocorao" que agora evocou?

    "A Deus nunca ningum o viu", diz-nos S. Joo. O nosso encontro com Deus ,nesta nossa condio histrica, um encontro mediado. Eu diria que, no meu caso,esse encontro foi decididamente mediado pelo espanto. Descubro-me enamoradode um espanto fundamental. No consigo mais tirar dali os olhos ou o corao. No s o assombro perante "a espantosa realidade das coisas", de que Fernando

    Pessoa falava, e que em si mesmo j tanto! O maior assombro pela vocaodivina do homem que est em ns inapagavelmente inscrita. Quando o quesabemos de Deus nos constrange, nos cerca, nos pressiona, nos compromete, nosdeixa sem sada (e estou a citar palavras de dois grandes crentes, S. Paulo e oprofeta Jeremias), ento percebemos que connosco que Deus est a falar.

    O que determina antes de mais a sua relao com Ele? No seu casoparticular, pessoal, possvel definir os laos que tecem essa espcie dedependncia?

    H uma orao que aprendi, e dizem-me que se reza em Taiz: "Senhor, estou aqui espera de nada." Com o tempo, esta orao tem-se tornado a paisagem de fundo

  • 8/14/2019 Tolentino Mendona por Maria Joo Avillez, i 200912

    3/7

    do meu caminho espiritual. Acho que posso dizer que vivo na dependncia de Deus.Jesus Cristo o objecto da minha f. Com todas as minhas falhas e incertezas,procuro que a sua humanidade se torne inspirao para a minha. Mas peo a Deusa liberdade e a gratuidade necessrias ao amor. Eu no creio para que Deus mefacilite a vida ou a resolva por mim. Os msticos ensinam que "a rosa semporqu".

    O seu caminho em nome dessa "rosa sem porqu" tem sido, tal comoocorre com a vida, marcado por etapas, por estaes diferentes? Etambm, como na vida, por sobressaltos, debilidades, angstias?

    No me revejo nada em descries asspticas ou formatadas da experinciareligiosa. A f no instantnea, um caminho. No clebre ensaio de Unamuno elefala da "agonia do cristianismo". O cristianismo agnico, d luta. Alguns passosbblicos relatam uma luta literal, como aquele passo extraordinrio da luta de Jacobcom o anjo. Nesta luta entram todas as nossas interrogaes e dvidas, que naminha opinio desempenham um papel muito mais importante que aquele que lhereconhecemos.

    E h tambm a poesia, a sua fulgurante e to sussurrante poesia... Quequase nos pe em sentido perante o que est para alm de ns, e nessesentido deveria ser indizvel - mas para si no ... Pode ela significar a pazdo guerreiro alistado nessa luta que assumiu? Ou pelo contrrio escreverpoesia faz parte dessa luta?

    Quem l os meus versos procura da nomeao de Deus pode at ficar desiludido,pois a nomeao explcita de Deus escassa. Sou um poeta profano. Pode parecerparadoxal, mas essa tambm a minha forma de testemunhar o religioso.

    Escreve todos os dias? Escreve sempre?

    Acho que o sentido por excelncia de um escritor o ouvido. E, mesmo se noescrevo todos os dias, estou sempre atento conversa humana, s palavras, aoseu ritmo, sua temperatura. Estou sempre a tomar apontamentos, pequenas

    anotaes. E da parto para outras associaes, preencho lacunas, continuo frases.Essa a minha oficina.

    Ainda a propsito de palavras: andou de roda da Bblia, estudou-a,reflectiu-a, traduziu-a. Fruto disso esto a dois belssimos volumes com asua "assinatura". Um dia o sacerdote-poeta resolveu pegar na Bblia e dar-lhe actualidade e premncia na nossa lngua?

    Sinto que esse um dos contributos que sou chamado a dar. A Bblia o grandecdigo para entender imaginao, razo e corao, pelo menos do mundo

    ocidental. E preciso no esquecer que a prpria irrupo da modernidadeprimeiramente se formulou como reivindicao do acesso Bblia. Ela o sub-texto

  • 8/14/2019 Tolentino Mendona por Maria Joo Avillez, i 200912

    4/7

    necessrio para entender a fundo expresses muito diversas da nossa cultura. Apoetisa brasileira Adlia Prado diz com graa e pertinncia: "tudo Bblia", nosentido em que ela est por todo o lado na chamada cultura erudita e na culturapopular. Alm desta incomparvel valncia cultural, a Bblia sobretudo um textoreligioso, um marco identitrio, uma referncia onde o divino e o humano seencontram, uma palavra peculiar.

    Falou de um marco identitrio. Mas como lidar com a atitude ou as vozesque dizem Deus hoje desaparecido por trs da agonia dos valores? Dadecadncia da civilizao ocidental, da ditadura do relativismo, davertigem do politicamente correcto, da demencial violncia dos dias e pora fora? verdade, como comodamente se faz crer, que nunca foi to difcilfalar de Deus como hoje?

    O problema no falar de Deus. Um dos livros que mais me impressionaram navida foi as "Cartas/Dirio" de Etty Hillesum. Essa extraordinria rapariga deAmesterdo, que numa das horas mais sombrias do sculo xx, se oferece comovoluntria para um campo de concentrao mostra-nos que possvel falar de Deusmesmo nos stios mais dolorosos do mundo e mais recnditos da alma. NenhumAuschwitz cala a poesia de Deus! O problema o homem. a implacvel reduodo que o humano significa. a fragmentao que nos estilhaa e nos deixa sempossibilidades ou com muito menos possibilidades de aceder a uma existnciaautntica.

    excessivo dizer que o povo cristo se sente ameaado, humilhado? Queh quem o olhe quase j como uma minoria que tem de pedir desculpa,

    justificar-se e explicar-se? H uma guerra religiosa no horizonte, oumesmo j iniciada?

    O cristianismo atravessa uma estao de turbulncia, no embate deste processo -em grande medida ainda em curso - de recomposio dos itinerrios dahumanidade e tambm dos da crena. H indicadores que atestam uma eroso: adiminuio da prtica religiosa e do nmero dos que se declaram cristos; afragilizao da presena do religioso no espao pblico; uma certa desqualificao

    cultural que hoje rodeia o cristianismo ( isso, como se o homem de f tivesse deexplicar-se para o ser); o reforo de uma militncia anti-religiosa que se v, porexemplo, na ideia avulsa de que as religies so responsveis pela violncia quegrassa no mundo ou na acusao de que os textos sagrados judaico-cristos soum catlogo de intolerncia e barbrie...

    Ento a minha pergunta faz sentido...

    Mas, por outro lado, o cristianismo, graas a Deus, venceu a tentao de declararinimigos. O cristianismo no tem inimigos. O seus inimigos so a fome, o

    sofrimento, as injustias e desigualdades, a ausncia de sentido... Gosto de pensarno ttulo de um livro de Albert Rouet, antigo bispo de Poitiers: "A chance de um

  • 8/14/2019 Tolentino Mendona por Maria Joo Avillez, i 200912

    5/7

  • 8/14/2019 Tolentino Mendona por Maria Joo Avillez, i 200912

    6/7

    fenmeno que se passa no Porto. Dou um exemplo recente: as primeirasmensagens que recebi a anunciar e a comentar a atribuio do Prmio Pessoa a D.Manuel Clemente foram de tripeiros do mundo da cultura, que no tm sequerprtica religiosa crist, mas que se reconhecem com entusiasmo na cordialidade ena inteligncia de um bispo que capaz de se fazer ouvir num bairro social e nactedra de uma universidade; que visita pastoralmente as parquias e organismosda diocese, mas no deixa de tirar um bocadinho para dar um salto a uma livraria efazer dois passos a p pela cidade; um bispo que nas suas catequeses cita comigual maestria os vultos da histria antiga e da contempornea, os Padres daIgreja, e os poetas do seu tempo (Sophia, Fernando Echevarra, Daniel Faria). Valea pena ouvir D. Manuel Clemente... Um dos traos constantes na sua leitura darealidade das pessoas e do mundo a esperana. Lembro-me dele h 20 anosatrs, na equipa reitoral do Seminrio dos Olivais, e de como ele nos desconcertavacom um ptimo, quando os juzos apressados que fazamos sublinhavamsobretudo dificuldades. Criando em torno a si um ambiente de grande exigncia, D.Manuel aplica de forma sistemtica um olhar de esperana a todas as situaes.

    Vale a pena ouvi-lo, mas no estranhou que poucas horas aps serconhecida a notcia do seu prmio ela se tenha quase totalmente sumidoda nossa vista e dos palcos dos media?

    O prmio representa uma forte chamada de ateno - muito importante que o jritenha referido a dimenso tica, porque h de facto um sentido profundo dosvalores no pensamento e na aco de D. Manuel - mas claramente a atenomeditica precria e circunstancial. Muitas vezes s a cultura do folhetim, deque falava Hermann Hesse. Temos de complement-la com outras formas, maispersistentes, de interesse e acompanhamento.

    O Papa Bento XVI atendeu recentemente importncia da criao artsticanuma reunio com artistas que promoveu no Vaticano. O padre Tolentinofoi o portugus que esteve presente em Roma.

    O recente encontro de Bento XVI com os artistas quis explicitamente situar-se naesteira de experincias recentes de outros pontfices, nomeadamente Paulo VI, que

    na atmosfera do Conclio Vaticano II teve um encontro histrico com o mundo dasartes e da inteligncia precisamente na Capela Sistina (onde este de agora tambmocorreu), e Joo Paulo II, que, no contexto do Grande Jubileu do Ano 2000,escreveu uma "Carta aos Artistas", que um dos seus textos mais vibrantes. BentoXVI (apoiado na iniciativa do presidente do Pontifcio Conselho para a Cultura,Gianfranco Ravasi) reafirmou o patrimnio espiritual imenso que representa aamizade entre a Igreja e os artistas, sublinhando a necessidade de uma "aliananova" para revitalizar a esttica crist. O discurso do Papa foi uma impressionantelio sobre a afinidade electiva que une a arte e o percurso crente na procura daverdade. Na ferida e no jbilo h uma espcie de ptria comum.

  • 8/14/2019 Tolentino Mendona por Maria Joo Avillez, i 200912

    7/7