Truffaut a Vertigem Do Feminino

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outraspalavras.net http://outraspalavras.net/destaques/truffaut-e-a-vertigem-do-feminino/ José Geraldo Couto Truffaut: a vertigem do feminino Exposição recorda diretor que mostrava os homens desarmados diante da mulher ou do cinema e que, em oposição a Godard, quis expandir recursos da narrativa cinematográfica clássica Por José Geraldo Couto, no blog do IMS Há cineastas que são admirados e respeitados a uma certa distância, como que olhados de baixo para cima: Lang, Hitchcock, Bresson, Kubrick. Outros são sobretudo amados: Renoir, Fellini, Kurosawa, Truffaut. Há na obra destes últimos um calor humano que dá ao espectador a ilusão de ser amigo pessoal, íntimo, de cada um deles. É mais do que provável, portanto, que a megaexposição “Truffaut: um cineasta apaixonado”, aberta no Museu da Imagem e do Som de São Paulo, converta-se num acontecimento inesquecível para os cinéfilos paulistanos e visitantes da cidade. A mostra, que vai até 18 de outubro, traz cerca de 600 itens, entre desenhos, fotos, objetos de cena e pessoais, livros, revistas, roteiros, trechos de filmes e entrevistas do diretor. Mas o que torna Truffaut tão querido? Sua filmografia é irregular, com sucessos e fracassos tanto de público como de crítica, incursões nem sempre bem-sucedidas em distintos gêneros, do drama de época à ficção científica, da comédia ao policial. Mesmo em seus pontos mais baixos, porém, é perceptível o seu amor ao cinema, a sua entrega plena a essa arte que ele via como a forma contemporânea de realização de uma necessidade multimilenar do homem, a de criar ficções – e acreditar nelas, ao menos por um par de horas. Mulher, cinema, infância Em meio a essa obra plural, heterogênea, dois eixos principais se destacam: a relação de Truffaut com o amor – ou

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    Jos GeraldoCouto

    Truffaut: a vertigem do feminino

    Exposio recorda diretor que mostrava os homens desarmados diante da mulher ou do cinema e que, em oposioa Godard, quis expandir recursos da narrativa cinematogrfica clssica

    Por Jos Geraldo Couto, no blog do IMS

    H cineastas que so admirados e respeitados a uma certa distncia, como que olhados de baixo para cima: Lang,Hitchcock, Bresson, Kubrick. Outros so sobretudo amados: Renoir, Fellini, Kurosawa, Truffaut. H na obra destesltimos um calor humano que d ao espectador a iluso de ser amigo pessoal, ntimo, de cada um deles.

    mais do que provvel, portanto, que a megaexposio Truffaut: um cineasta apaixonado, aberta no Museu daImagem e do Som de So Paulo, converta-se num acontecimento inesquecvel para os cinfilos paulistanos evisitantes da cidade. A mostra, que vai at 18 de outubro, traz cerca de 600 itens, entre desenhos, fotos, objetos decena e pessoais, livros, revistas, roteiros, trechos de filmes e entrevistas do diretor.

    Mas o que torna Truffaut to querido? Sua filmografia irregular, com sucessos e fracassos tanto de pblico comode crtica, incurses nem sempre bem-sucedidas em distintos gneros, do drama de poca fico cientfica, dacomdia ao policial. Mesmo em seus pontos mais baixos, porm, perceptvel o seu amor ao cinema, a sua entregaplena a essa arte que ele via como a forma contempornea de realizao de uma necessidade multimilenar dohomem, a de criar fices e acreditar nelas, ao menos por um par de horas.

    Mulher, cinema, infncia

    Em meio a essa obra plural, heterognea, dois eixos principais se destacam: a relao de Truffaut com o amor ou

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  • antes, com a mulher e a relao com o prprio cinema. Um tema subsidirio seria o da infncia, mas veremos queno fundo ele tem a ver com os outros dois.

    No corao do cinema de Truffaut est a mulher. No por acaso, ele disse certa vez, em tom mais ou menos srio,que o papel do diretor de cinema mostrar uma mulher bonita fazendo coisas bonitas. No se trata de um cinemaque busque o ponto de vista feminino. Com exceo, talvez, de A noiva estava de preto (1967) e de A histria deAdele H (1975), quase sempre o que vemos no centro de seus filmes um homem fascinado, perplexo edesconcertado pela mulher.

    Isso particularmente visvel na srie com o personagem Antoine Doinel (Jean-Pierre Laud) Osincompreendidos, Antoine e Colette, Beijos proibidos, Domiclio conjugal, O amor em fuga e em filmes como Julese Jim, A noite americana, De repente num domingo e, claro, O homem que amava as mulheres . Um trechoadmirvel deste ltimo sintetiza essa fascinao, esse desconcerto, essa vertigem diante do feminino:

    Desnecessrio dizer que um certo feminismo afoito censurou essa adorao mulher como uma forma disfarada einsidiosa de machismo. Pacincia. Desnecessrio tambm notar que Truffaut, como George Cukor, foi um diretor debelas atrizes: Jeanne Moreau, Franoise Dorleac, Catherine Deneuve, Jacqueline Bisset, Isabelle Adjani, FannyArdant. De todas ele soube captar a delicadeza, a fora e o mistrio.

    Godard: amor e dio

    Mas o encanto de Truffaut vem tambm de sua relao rica e complexa com o prprio cinema. Curiosamente foiessa paixo comum que o aproximou e depois o afastou radicalmente de Jean-Luc Godard, o outro grande nome desua turma e gerao, a dos Cahiers du Cinma e da Nouvelle Vague.

    Ambos discpulos de Andr Bazin, eles militaram juntos como crticos nos Cahiers em defesa do cinema norte-americano de autor (Ford, Hawks, Hitchcock, Welles) e contra o acadmico e embolorado cinema de qualidadefrancesa que vigorava nos anos 1950. Truffaut escreveu o roteiro do primeiro longa de Godard (Acossado, 1959) ejuntos fizeram o lindo curta Une histoire deau (1961). Depois dessa fase heroica, afastaram-se cada vez mais.Enquanto Godard radicalizava sua ruptura com o cinema narrativo convencional, Truffaut buscava se aprimorar eaprofundar no domnio dessa narrativa, chegando a declarar que, com o tempo, descobriu que no havia nada comoa decupagem clssica, isto , com o cinema ilusionista, que conduz o olhar do espectador sem que este perceba.

    No centro dessa discrdia est A noite americana (1973), em que o prprio Truffaut atua como um cineasta s voltascom os dramas e comdias dos bastidores da realizao de um filme. um dos grandes sucessos da carreira dodiretor e um dos filmes mais queridos por seus admiradores. Mas Godard, que havia desconstrudo esttica epoliticamente a realizao cinematogrfica em O desprezo (1963), acusou o ex-amigo de mistificar e falsearseu mtier. (Curiosamente, as trilhas dos dois filmes foram compostas pelo grande Georges Delerue, parceirohabitual de Truffaut.)

    No necessrio tomar partido de um ou de outro, nem tampouco considerar que o verdadeiro cinema o deTruffaut ou o de Godard. Mais vale encarar essa relao de amor e dio como um momento nico do cinema, emque duas obras distintas ao extremo, mas ligadas de modo umbilical, iluminam-se mutuamente e enriquecem asensibilidade do espectador. Neste trecho de A noite americana, vemos uma dupla homenagem do diretor a Deleruee a seus cineastas favoritos:

    O homem-menino

    Chegamos ento infncia, tema caro a Truffaut. Crianas ou pr-adolescentes esto no centro de Osincompreendidos, O garoto selvagem e Idade da inocncia, mas o que me parece mais interessante o modocomo, em praticamente todos os filmes do diretor, os homens adultos se desarmam, se fragilizam e de certo modovoltam a ser crianas diante da mulher e diante do prprio cinema.

  • Antoine Doinel um adulto que ao longo do tempo se casa, tem vrios empregos e no entanto segue sendo ummenino confuso e travesso, assim como o protagonista (Charles Denner) de O homem que amava as mulheres . EFerrand, o cineasta de A noite americana vivido pelo prprio Truffaut, no deixa de ver o seu ofcio como uma grandebrincadeira de faz-de-conta, ou, como disse Orson Welles, o maior trenzinho eltrico que um garoto j teve.

    Faltou falar de outra relao fundamental, entre Truffaut e a literatura, mas fica para outra ocasio.

    Para finalizar, como um regalo ou um aperitivo, vai aqui um trecho de Jules e Jim em que comparecem o amor, aamizade, a infncia, o cinema, tudo junto e misturado, mostrando de resto que, com ou sem trapaa, em Truffaut amulher sempre vence:

    Truffaut: a vertigem do feminino