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UM HOMEM É UM HOMEM Texto de Bertolt Brecht Tradução de Aldomar Conrado e Carlos Queiroz Telles PERSONAGENS FÉLIX FELIZARDO Um Estivador SENHORA FELIZARDO

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UM HOMEM

É UM HOMEM Texto de Bertolt Brecht

Tradução de Aldomar Conrado e

Carlos Queiroz Telles

PERSONAGENS

FÉLIX FELIZARDO – Um Estivador

SENHORA FELIZARDO

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ARMANDO MUELLER – Um Soldado

JEREMIAS LUCAS – Um Soldado

CHICO SARAIVA – Um Soldado

JUCA MALAQUIAS – Um Soldado

CHARLES CARALINDA – Um Sargento

VIÚVA LEOCÁDIA BEGBICK - Cantineira

WANG – Sacerdote Budista

SACRISTÃO

SOLDADOS

FIÉIS

Cena I – KILKOA

Félix Felizardo, sentado em sua cadeira, conversa com sua

mulher, certa manhã.

FÉLIX FELIZARDO – Sabe, minha mulher, eu hoje resolvi

comprar um peixe – dentro das nossas possibilidades

financeiras, é claro. Afinal, acho que um estivador pode se dar a

esse luxo, principalmente um estivador que não bebe, fuma

muito pouco e de quem se pode dizer: é um homem sem vícios.

O que é que tu achas? Devo comprar um peixe bem grande ou

um pequeno já é suficiente?

SENHORA FELIZARDO – Um pequeno é suficiente para nós.

FÉLIX FELIZARDO – E que peixe eu devo comprar?

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SENHORA FELIZARDO – Um jundiá. Mas toma cuidado com

as vendedoras. São muito assanhadas e estão sempre

provocando os homens. E tu tens um coração tão mole!

FÉLIX FELIZARDO – Tens razão! Mas como elas sabem que

eu sou um pobre estivador, não vão dar em cima de mim.

SENHORA FELIZARDO – Pois sim! Tu és como um elefante.

Parece a coisa mais lenta que existe na Terra, mas quando

começa a correr, vira uma locomotiva. E além do mais, cuidado

com os soldados! É a pior espécie de gente desse mundo e

estão chegando aos montes na cidade. Com certeza, estão

vadiando no Mercado. Devemos dar graças se ainda não

estiverem pilhando tudo ou matando alguém. Cuidado! Lembra-

te que estás sozinho e eles sempre andam em turmas de

quatro. É um perigo.

FÉLIX FELIZARDO – Ora, o que é que eles podem querer de

um pobre estivador?

SENHORA FELIZARDO – A gente nunca sabe...

FÉLIX FELIZARDO – Não te preocupa. E põe a água no fogo

para ferver. Eu estou com uma fome danada e em dez minutos

estarei de volta.

Cena II – RUA JUNTO AO PAGODE DO DEUS AMARELO

Quatro soldados param defronte ao Templo. Ao longe,

músicas militares das tropas que estão entrando na cidade.

ARMANDO – Atenção, alto! Chegamos a Kilkoa. Este lugar

pertence à Sua Majestade. Nosso exército está concentrado

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aqui para uma guerra prevista há muito tempo. Somos, ao todo,

mil soldados sequiosos para pacificar as fronteiras do Norte.

JEREMIAS – Mas para isto, é necessária muita cerveja. (Cai

por terra.).

CHICO – Os poderosos tanques de nossa Rainha precisam de

óleo e gasolina para percorrer estas merdas de estradas deste

imenso Eldorado. Nós - os soldados de nossa Rainha, em vez

de óleo e gasolina - precisamos de cerveja para colocar nossos

motores em marcha.

JEREMIAS – Quantas garrafas nós temos ainda?

CHICO – Somos quatro soldados e só temos quinze garrafas.

Logo, precisamos arranjar mais vinte e cinco para termos uma

quantidade razoável: dez garrafas por soldado!

ARMANDO – Mas onde é que vamos arranjar o dinheiro?

JUCA – As pessoas vivem dizendo que o Exército consome

muito dinheiro! Pois bem! Cada um desses templos possui mais

dinheiro do que seria preciso para deslocar um Regimento

inteiro de Londres até Calcutá.

CHICO – A idéia do nosso querido Juca deve ser examinada

com bastante atenção. É verdade que este templo está quase

em ruínas e todo cagado de moscas – mas pode muito bem

estar abarrotado de dinheiro!

JEREMIAS – Estou louco para beber um trago, Chico Saraiva.

JUCA – Calma, meu bem... Esta Ásia tem um coração estranho,

onde a gente só pode entrar com muito cuidado.

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JEREMIAS – Juca, Juca, minha mãe costumava dizer:

“Jeremias, meu tesouro adorado, podes fazer tudo o que

quiseres, mas abre bem o olho quando as coisas te parecerem

pretas”. E aqui, está tudo cheirando a piche.

ARMANDO – A porta não está fechada. Cuidado Juca! Pode ser

uma armadilha!

JUCA – Tens razão. Por esta porta é que não vamos entrar.

ARMANDO – E para que existem as janelas? Certamente não

foram feitas para os gatos...

JUCA – Peguem os cinturões e façam uma corda como se fosse

um anzol. Assim poderemos pescar o que existir dentro da caixa

das esmolas. Ótimo! (Avançam para as janelas. Juca

Malaquias quebra um vidro, olha através do buraco e inicia

a pesca.).

CHICO – Conseguiu pescar alguma coisa?

JUCA – Não, mas o meu capacete caiu lá dentro.

ARMANDO – Merda! Você não pode voltar para o

acampamento sem o capacete.

JUCA – Vou tentar pescá-lo. Que bosta de lugar! Venham ver!

Uma multidão de ratos!

ARMANDO – É melhor não insistir...

JUCA – Mas eu tenho que recuperar o meu capacete. Como é

que posso voltar para o acampamento sem ele?

ARMANDO – Conseguiu tocar no chão?

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JUCA – Ainda não.

ARMANDO – Então a gente pode arrombar a porta detrás.

JUCA – Desde que o templo não venha abaixo...

ARMANDO – Ai, ai, ai!...

JUCA – O que é que aconteceu?

ARMANDO – Minha mão ficou presa.

CHICO – É melhor parar com isso!

ARMANDO – Parar como? Minha mão vai ficar aí dentro, vai?

JUCA – E eu também tenho que pegar o meu capacete.

CHICO – Então experimentem atravessar as paredes.

ARMANDO – Ai, merda! (Puxa a mão para fora. Ela está

sangrando.) Eles vão me pagar por isto. Agora é que eu não

paro mais. Uma escada, depressa!

JUCA – Alto! Primeiro passem para cá as placas de

identificação! Os documentos militares devem estar sempre em

perfeito estado de conservação. Um homem não é tão

importante: pode ser substituído a qualquer momento. Mas no

dia em que uma placa de identificação deixar de ser um objeto

sagrado, Deus não existirá mais! (Entregam as placas de

identificação.).

CHICO – Chico Saraiva.

ARMANDO – Armando Mueller.

JEREMIAS – Jeremias Lucas.

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JUCA – Juca Malaquias, todos da Unidade de Metralhadoras do

Oitavo Regimento, sediado em Kankerdan. Não podemos atirar

senão os estragos do templo serão visíveis! Em frente, marche!

(Juca Malaquias, Armando e Chico Saraiva penetram no

templo.).

JEREMIAS (Gritando atrás deles) – Eu fico de guarda! Assim,

pelo menos, não posso ser acusado de participação ativa nesta

expedição filantrópica! (No alto, numa clarabóia, aparece o

rosto amarelo de Bonzo Wang.) Bom dia! O senhor é que é o

dono disso aqui? É um belo lugar, sem dúvida!

JUCA (Dentro do templo) – Me dá tua faca, para eu arrombar a

caixa de esmolas! (Wang sorri. Jeremias Lucas também.).

JEREMIAS (Para Wang) – É realmente uma desgraça

pertencer a um bando de macacos como estes. (O rosto de

Wang desaparece.) Venham todos para fora. Tem um sujeito

no andar de cima. (No interior do templo, com pequenos

intervalos, soam campainhas elétricas.).

JUCA – Cuidado! Vê onde mete esse pé! Que aconteceu,

Jeremias?

JEREMIAS – Um homem no primeiro andar.

JUCA – Um homem? Todos para fora, imediatamente! (Gritos e

imprecações dentro do templo: TIRA O PÉ DAÍ, CARA!

SALTA DE UMA VEZ! DESSE JEITO NÃO POSSO MEXER O

PÉ! MERDA! AGORA PERDI A BOTINA! NÃO VÁ ENTREGAR

OS PONTOS AGORA, CHICO! NUNCA! LÁ SE FOI MINHA

TÚNICA, JUCA! QUE IMPORTÂNCIA TEM UMA TÚNICA?

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AGORA MINHA CALÇA FICOU ESPETADA! É A PRESSA!

ESSE BESTA DO JEREMIAS!).

JEREMIAS – Então? Encontraram alguma coisa? Uísque?

Rum? Gim? Conhaque? Nem uma cervejinha?

ARMANDO – O Juca rasgou a calça na ponta de um bambu, e o

coturno do Chico Saraiva ficou preso numa ratoeira.

CHICO – E o “Nandinho” pendurado num fio elétrico.

JEREMIAS – Eu bem que avisei. A gente deve sempre entrar

numa casa pela porta da frente. (Jeremias Lucas entra no

templo pela porta. Os outros três saem por cima, pálidos,

esfarrapados, sangrando.).

CHICO – Temos que nos vingar!

JUCA – Este templo não usa métodos leais de combate. Foi

uma sujeira!

CHICO – Quero ver correr sangue!

JEREMIAS (Dentro do templo) – Minha gente!

CHICO (Avança sujo de sangue pelo teto e fica preso pelo

coturno) – Prendi agora o outro coturno.

JUCA – É demais! Vou metralhar tudo isto! (Os três soldados

descem e apontam as metralhadoras contra o templo.).

CHICO – Fogo! (Rajada de metralhadoras.).

JEREMIAS (Do lado de dentro) – O que é que vocês estão

fazendo? (Os três olham-se, aterrados.).

CHICO – Jeremias?

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JEREMIAS (Dentro do templo) – Aqui dentro! Vocês me

acertaram o dedo com uma bala!

ARMANDO – E o que é que tu estás fazendo aí nessa arapuca,

sua besta?

JEREMIAS (Aparecendo na porta) – Eu queria pegar o

dinheiro. Está aqui.

JUCA (Alegre) – É claro! O maior pau d’água de todos nós é

que tinha que descobrir o caminho certo, logo na primeira

tentativa. (Gritando.) Saia já, pela mesma porta!

JEREMIAS (Pondo a cabeça para fora da porta) – Por onde?

JUCA – Não fica aí parado feito um idiota!

CHICO – O que é que tem este imbecil?

JEREMIAS – Olhem!

JUCA – O quê?

JEREMIAS – Meus cabelos! Meus cabelos! Não posso ir nem

pra frente nem pra trás. Meus cabelos estão presos em algum

lugar! Juca: vem logo ver o que é que está prendendo o meu

cabelo. Vem me soltar. Eu estou preso pelos cabelos. (Chico

Saraiva aproxima-se de Jeremias na ponta dos pés, o olha

de cima a sua cabeça.).

CHICO – Ele ficou com o cabelo grudado no piche do batente!

JUCA (Berrando) – Tua faca, Armando. Só assim a gente pode

soltar o Jeremias. (Juca Malaquias liberta Jeremias. Este

avança titubeando.).

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CHICO (Divertindo-se) – Ele ficou meio careca!

JUCA (Olhando para Armando e Chico, com um tom glacial)

– Basta para nos trair.

ARMANDO – Esta careca é a nossa sentença de morte! (Juca

Malaquias, Armando e Chico Saraiva confidenciam.).

JUCA – Vamos até o acampamento buscar uma tesoura.

Voltamos de noite e raspamos toda a cabeça dele, para apagar

a falha no cabelo. (Entregando as placas de identificação.)

Armando Mueller...

ARMANDO (Pegando a sua placa) – Armando Mueller...

JUCA – Chico Saraiva!

CHICO (Pega sua placa) – Chico Saraiva!

JUCA – Jeremias Lucas! (Jeremias faz menção de levantar-

se.) A tua fica guardada comigo. (Aponta um palanquim no

pátio.) Te esconde ali e espera até o anoitecer. (Jeremias entra

no palanquim; os outros três distanciam-se, balançando a

cabeça, abatidos. Assim que eles desaparecem, Wang

aparece na porta do pagode, e examina a mecha de cabelos

que ficou grudada ali.).

Cena III – UMA ESTRADA ENTRE KILKOA E O

ACAMPAMENTO

O Sargento Caralinda sai detrás de um galpão onde prega

um aviso.

CARALINDA – Eu, Sargento do Exército Britânico, o Cinco de

Sangue, também conhecido como o Tigre do Kilkoa, jamais

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tomei conhecimento de algo tão fantástico! (Apontando com o

dedo o cartaz.) Arrasaram o Templo do Deus Amarelo. O teto

do pagode está crivado de balas. Mas deixaram uma pista. Ora,

se o teto está crivado de balas, alguém da Unidade de

Metralhadoras deve estar metido nisto. E se ficou no local do

crime um punhado de cabelo, deve existir por aí um homem com

um punhado de cabelos a menos. E dessa forma, os culpados

serão encontrados. Tudo muito simples. Quem vem lá?

(Esconde-se atrás do galpão. Os três soldados chegam e

tomam conhecimento do cartaz com terror. Depois

prosseguem o caminho, consternados. Caralinda sai do

galpão e sopra num apito de polícia. Os três param

petrificados.). Vocês não viram por acaso um homem com a

cabeça meio raspada?

CHICO – Não.

CARALINDA – Vou fazer agora mesmo uma inspeção. Tirem os

capacetes. E onde está o quarto homem do grupo?

ARMANDO – Ah, Sargento, ele está fazendo as suas

necessidades.

CARALINDA – Então, esperemos por ele. Talvez, quem sabe,

ele tenha visto um homem com a cabeça raspada. (Esperam.)

Puxa, como ele demora a fazer suas necessidades.

ARMANDO – É verdade, Sargento. (Esperam mais um

pouco.).

CHICO – Talvez ele tenha seguido por outro caminho.

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CARALINDA – Fiquem sabendo que vocês prefeririam ter

estourado no ventre de suas mães, do que aparecer na revista

da tropa sem o quarto homem. (Sai.).

ARMANDO – Tomara que este não seja o novo Sargento! Se

esta cascavel fizer a revista da tropa hoje à noite, já podemos

nos ajoelhar diante do Pelotão de Fuzilamento.

JUCA – Antes que o tambor toque a chamada, temos que ter o

nosso quarto homem.

CHICO – Lá vem um. Vamos observá-lo sem que ele desconfie

de nada. (Escondem-se no galpão. A Viúva Leocádia

aparece na estrada. Félix Felizardo vem ao seu lado,

carregando a cesta de pepinos da viúva.).

LEOCÁDIA – Por que o senhor se queixa? Não é pago por

hora?

FÉLIX FELIZARDO – Então? Já faz três horas!

LEOCÁDIA – Será pago, não se preocupe. Esta é uma estrada

pouco freqüentada. Aqui, qualquer sedutor poderia atacar uma

pobre mulher indefesa.

FÉLIX FELIZARDO – Ora, senhora, dona de uma cantina, deve

muito bem saber lidar com os soldados. E dizem que não há

nada pior do que eles sobre a face da Terra. Certamente a

senhora conhece golpes capazes de pôr um homem no chão.

LEOCÁDIA – Ah, cavalheiro, como pode dizer tais coisas perto

de uma jovem senhora? Certas palavras deixam nosso sangue

em tal estado de excitação...

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FÉLIX FELIZARDO – É que eu não passo de um pobre

estivador.

LEOCÁDIA – Está na hora da chamada dos soldados. Você vai

ver... Daqui a pouco o tambor começa a tocar e as estradas vão

ficar vazias...

FÉLIX FELIZARDO – Se é tão tarde assim, devo voltar correndo

para Kilkoa. Preciso comprar um peixe.

LEOCÁDIA – Posso lhe fazer uma pergunta, cavalheiro...

Senhor Felizardo, não é assim que se chama? A profissão de

estivador exige muita força?

FÉLIX FELIZARDO – Pois é... quem poderia pensar que tantos

acontecimentos imprevistos iriam me impedir de fazer o que eu

queria: comprar um peixe e voltar depressa para casa! Mas

quando me dão trela, eu sou mesmo uma locomotiva!

LEOCÁDIA – Claro, uma coisa é comprar um peixe para comer,

outra é ajudar uma dama a carregar sua cesta. Mas quem sabe

se a dama não estaria disposta a demonstrar seu

reconhecimento, de um modo a substituir o prazer de comer um

peixe?...

FÉLIX FELIZARDO – Para ser sincero, eu gostaria mesmo era

de comprar o peixe.

LEOCÁDIA – O senhor é um materialista!

FÉLIX FELIZARDO – Eu sou um sujeito engraçado: muitas

vezes, eu penso ainda na cama; ‘hoje eu quero um peixe’. Ou

então, ‘hoje eu estou louco para comer risoto’. E tem que ser

assim mesmo, caso contrário o mundo vem abaixo.

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LEOCÁDIA – Compreendo muito bem. Mas o senhor não acha

que está um pouco tarde demais? A esta hora todas as lojas

estão fechadas e o peixe já acabou.

FÉLIX FELIZARDO – Eu sou um homem cheio de imaginação.

Eu posso ter uma indigestão de peixe antes mesmo de comê-lo.

Existe muita gente que quando quer comprar um peixe compra o

peixe, depois o leva para casa, cozinha o peixe, come o peixe e

durante a noite, quando já não existe mais nada do peixe,

porque o estômago já se encarregou de destruí-lo, continua

pensando nele. E tudo isto somente porque não possui

imaginação.

LEOCÁDIA – Eu já vi que o senhor só pensa em si mesmo.

(Pausa.) Bem, já que é assim, faço uma proposta: com o

dinheiro destinado ao peixe, compre este pepino. O senhor sabe

muito bem que um pepino custa muito mais caro que um peixe,

mas eu terei o maior prazer em lhe fazer este favor, por ter me

ajudado a carregar a cesta.

FÉLIX FELIZARDO – Nada feito. Eu não preciso de nenhum

pepino.

LEOCÁDIA – Nunca pensei em receber tal afronta.

FÉLIX FELIZARDO – Não, por favor, não se ofenda! É que eu já

deixei a frigideira esquentando para fritar o peixe!

LEOCÁDIA – Entendo. Entendo. Será como o senhor quiser.

FÉLIX FELIZARDO – Por favor, acredite em mim quando eu

digo que teria muito prazer em lhe ser agradável.

LEOCÁDIA – Fique quieto. Quanto mais fala, mais se afunda.

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FÉLIX FELIZARDO – Eu não quero decepcionar a senhora. Se

ainda estiver disposta a vender o pepino, está aqui o dinheiro.

JUCA (Para Armando e Chico Saraiva) – Eis aqui um homem

que não sabe dizer não!

FÉLIX FELIZARDO – Cuidado. Tem soldado escondido por

aqui.

LEOCÁDIA – Só Deus sabe o que eles estão procurando por

estas bandas. Falta tão pouco tempo para a revista das tropas.

Passe a minha cesta. Não posso perder mais tempo

conversando. Se o senhor quiser, terei muito prazer em recebê-

lo no meu vagão-bar, que está no acampamento dos soldados.

Eu sou a viúva Leocádia Begbick e o meu vagão-bar é famoso

em toda a Índia. (Ela pega seus embrulhos e vai-se embora.).

JUCA – Eis o nosso homem.

ARMANDO – É um homem que não sabe dizer não.

CHICO – E tem a altura do nosso Jeremias.

ARMANDO – Linda noite, não é mesmo?

FÉLIX FELIZARDO – Tem razão, meu senhor. É uma linda

noite.

ARMANDO – É estranho, cavalheiro, mas não me sai da cabeça

que o senhor deve estar vindo de Kilkoa.

FÉLIX FELIZARDO – De Kilkoa? Tem razão. É lá que eu tenho

o meu barraco.

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ARMANDO – Estou particularmente encantado em lhe

conhecer...

FÉLIX FELIZARDO – Eu me chamo Félix Felizardo.

ARMANDO – Pois é. O senhor tem um barraco em Kilkoa, não

é?

FÉLIX FELIZARDO – O senhor já me conhecia para saber isto

tudo? Ou será que minha mulher...

ARMANDO – O seu nome... O seu nome... Espere um pouco...

Félix Felizardo!

FÉLIX FELIZARDO – É assim mesmo que eu me chamo!

ARMANDO – Eu logo vi. E tem mais: tenho a impressão de que

é casado. Mas o que é isto? Estamos perdendo tempo aqui.

Dois amigos meus: Chico Saraiva e Juca Malaquias. Vamos até

a nossa cantina. Lá podemos fumar um cachimbo à vontade.

(Pausa. Félix Felizardo observa-os desconfiado.).

FÉLIX FELIZARDO – Muito obrigado, mas eu não posso. Minha

mulher está me esperando em casa. E depois... pode parecer

até ridículo, mas eu não tenho nenhum cachimbo.

ARMANDO – Que importância tem isto? Fumamos então um

charuto. O senhor não pode recusar. Está uma noite tão linda!

FÉLIX FELIZARDO – Se é assim, não posso dizer não.

CHICO – Então vamos. Nós lhe oferecemos o charuto de

presente. (Saem os quatro.).

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Cena IV – A CANTINA DA VIÚVA LEOCÁDIA

Os soldados cantam a Canção do Vagão-bar da Viúva

Leocádia.

SOLDADOS (Cantando) – No vagão da Begbick / A gente

dorme, a gente bebe a gente fuma / Se quiser, por vinte anos, /

Descansando e fazendo a guerra / Pelo mundo inteiro! /

(Refrão.) Sempre que some um bom soldado / Quando a

batalha se avizinha / Ele tá aí! Ele tá aí! / Bebendo cachaça ou

uísque importado / Mastigando chiclete com água e farinha / Ou

comendo coisa mais fofinha! / Ele tá aí! Ele tá aí! / Sargento:

fecha a matraca e te estrepa sozinho. / Aqui se confundem o

inferno e o céu / A água e o vinho, o templo e o bordel. / Ele tá

aí! Ele tá aí! / Companheiro: salva a tua pele e o teu chapéu! /

No vagão da Begbick / Se compra o que se quer / Vodka, gim,

soda / Afeto, coragem e cigarros. / Se afogando na cerveja / Ou

bebendo sangue quente / A gente goza a vida / Furando a alma

dos outros / Acaba tirando sarro. / A cantina da viúva / Por

trilhos infinitos / Vai seguindo o comboio / Insensível às

fronteiras, ao cagaço e ao escarro! / (Refrão.) Sempre que

some um bom soldado...

LEOCÁDIA (Entrando) – Boa noite, senhores soldados. Eu sou

a viúva Begbick e este é o meu Vagão-bar. Engatado nos trens

da Rainha inglesa, ele roda sobre os trilhos de todas as estradas

de ferro de toda a Índia, onde serve de refúgio para todo o

soldado mortificado. (Os três soldados estão à porta, com

Félix Felizardo, que eles empurram para trás.).

JUCA – É aqui a cantina do Oitavo Regimento?

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CHICO – A senhora é a Viúva Begbick, dona da cantina mais

famosa do mundo inteiro? Nós somos os metralhadores do

Oitavo Regimento.

LEOCÁDIA – Sou eu sim. Mas vocês são somente três? Onde

está o quarto soldado? (Eles entram sem responder, juntam

duas mesas, colocam-nas à esquerda, onde fazem uma

espécie de tabique. Os outros fregueses olham-nos com

espanto.).

ARMANDO – Que tipo de homem é o Sargento?

LEOCÁDIA – Nada amável.

CHICO – Que merda que ele não seja um homem amável.

LEOCÁDIA – Ele é conhecido como o Cinco de Sangue,

também como o Tigre de Kilkoa, e até Homem-tufão, para os

íntimos. Tem um olfato totalmente sobrenatural. Fareja de longe

qualquer crime. (Armando e Chico olham-se.).

JUCA – Ah!

LEOCÁDIA (Para os fregueses) – Vocês têm aqui os

famigerados metralhadores que decidiram a sorte na Batalha de

Haiderabad, e que são conhecidos como a escória do Exército.

UM SOLDADO – Tem toda razão. Eles só enchem o saco!

Parece até que os crimes são a própria sombra deles. (Um

soldado coloca o cartaz de prisão na parede.).

OUTRO SOLDADO – Vejam só! Eles entraram aqui há dois

segundos, e já apareceu um aviso na parede. (Os fregueses

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levantam-se. Deixam lentamente a cantina. Juca Malaquias

assovia.).

FÉLIX FELIZARDO – Conheço bem este tipo de

estabelecimento. Música de fundo para o jantar. Cardápios. No

Hotel Sião existe um maravilhoso, dourado e branco. Para as

pessoas que têm boas relações, tudo é fácil. Lá existe, entre

outras coisas, o Molho de Chicauca. E, olhem que este Molho

de Chicauca é das coisas mais modestas que eles oferecem.

ARMANDO (Empurrando Félix Felizardo em direção ao

tabique) – Meu querido amigo, o senhor poderia fazer um

enorme favor para três soldados aflitos? E será um favor que

não lhe custará nada.

CHICO – O nosso quarto companheiro ainda não terminou de

dizer adeus à sua mulher, e se não formos quatro na hora da

revista do Regimento, seremos jogados nas celas sombrias de

Kilkoa.

JUCA – O que precisamos é simples. Basta que você vista este

uniforme de soldado, venha conosco para a revista do

Regimento e, na hora exata, quando chamarem pelo nome do

nosso camarada, você responde por ele. É só uma questão de

ordem.

ARMANDO – É só isto.

CHICO – E você pode fumar um ou mais charutos. Às nossas

custas.

FÉLIX FELIZARDO – Não vão pensar, por favor, que não

desejo ajudá-los, mas acontece que tenho pressa de chegar em

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casa. Comprei um pepino para o jantar, e por isto não posso

fazer o que me pedem.

ARMANDO – Obrigado. Confesso que não esperava outra

coisa. Não pode fazer o que gostaria de fazer. Gostaria de ir

para casa, mas não pode. Obrigado, muito obrigado por

corresponder dessa forma à confiança que depositamos no

senhor. Deixe-me apertar sua mão, companheiro. (Aperta

veementemente a mão de Félix Felizardo. Juca Malaquias

aponta-lhe imperiosamente o tabique formado pelas mesas.

Félix Felizardo vai até lá. Os soldados precipitam-se e

despem-no inteiramente.).

JUCA – Permita que, para o objetivo já mencionado, lhe

coloquemos a farda de honra do grande Exército Britânico.

(Toca a campainha. Leocádia aparece.) Viúva Begbick:

podemos falar francamente com a senhora? Estamos

precisando, com urgência, de um uniforme completo. (Leocádia

vai procurar uma caixa de papelão que joga para Juca

Malaquias – que, por sua vez, atira-a para Chico Saraiva.).

CHICO (Para Félix Felizardo) – Pronto. Eis a farda de honra.

Foi comprada para você.

ARMANDO (Mostrando a calça) – Enfia esta calça, irmão Félix

Felizardo.

CHICO (Para Leocádia) – Ele perdeu seu uniforme. (Os três

soldados vestem Félix Felizardo.).

LEOCÁDIA – Ah, ele perdeu o uniforme?

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CHICO – Sim, no banho: um chinês armou tais confusões, que o

nosso companheiro acabou perdendo a farda.

LEOCÁDIA – Ah, sei, no banho...

ARMANDO – Bem, para não lhe esconder nada, Viúva Begbick,

trata-se de uma farsa.

LEOCÁDIA – Hmmm... de uma farsa?

CHICO – Não é verdade, cavalheiro? Não se trata de uma

farsa?

FÉLIX FELIZARDO – Sim, e tudo por causa de um charuto. (Ele

ri. Os três soldados também.).

LEOCÁDIA – Uma mulher frágil não pode se defender de quatro

homens tão fortes! Bem, pelo menos ninguém poderá me acusar

de não haver nunca ajudado um homem a vestir as calças. (Ela

vai até um quadro-negro e anota: uma calça, um paletó,

etc.).

FÉLIX FELIZARDO – O que isto significa, exatamente?

ARMANDO – Não significa nada.

FÉLIX FELIZARDO – Se isto for descoberto, não corro nenhum

perigo?

CHICO – De jeito nenhum. É só uma vez.

FÉLIX FELIZARDO – Bem. Uma vez só... Não deve haver

nenhum perigo.

LEOCÁDIA – Bem, o uniforme custa R$1.500,00.

CHICO – Sanguessuga! Só pagamos R$1.008,00 no máximo.

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ARMANDO (Na janela) – Ih, o céu está preteando. Se chover, o

palanquim vai ficar todo molhado; se o palanquim se molha, eles

vão guardá-lo no Pagode, encontrarão Jeremias e, se

encontram Jeremias, estamos condenados.

FÉLIX FELIZARDO – Muito pequeno. Não cabe em mim.

CHICO – Entenderam? Não cabe nele.

FÉLIX FELIZARDO – As botas também. Estão me apertando

muito.

CHICO – Tudo está muito apertado. Não presta para nada.

Oitocentos mangos!

JUCA – Te agüenta aí, Chico Saraiva! A gente paga R$1.200,00

em lugar de R$1.500,00, já que tudo está tão apertado e as

botas estão doendo nos pés dele. Certo?

FÉLIX FELIZARDO – Juro que está doendo muito. Ai, meu

Deus!

LEOCÁDIA (Leva Juca Malaquias para trás e aponta o aviso)

– Há mais de uma hora que todo o mundo lê esse aviso. Alguns

soldados praticaram um crime na cidade. Os culpados ainda não

foram encontrados. Exatamente por isto o uniforme vai custar

R$1.500,00. Caso contrário, o Batalhão vai ser envolvido no

crime.

CHICO – Pô! R$1.200,00 já é demais!

JUCA – Ô, Galego! Será que tu não percebeu nada?

R$3.000,00!

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LEOCÁDIA – Viram? No vagão-bar da Viúva Begbick, pode-se

passar uma esponja em tudo o que possa manchar a honra de

um soldado.

ARMANDO – Por falar nisso, a senhora acha que vai chover?

LEOCÁDIA – Para ter certeza, teria que ver o Tigre de Kilkoa.

Em tempo de chuva, ele se enche de cio. Ele se transfigura.

ARMANDO – Para que a nossa farsa dê certo, é preciso que

não chova.

LEOCÁDIA – Pelo contrário, meus rapazes! Quando chove, o

Sargento, o homem mais perigoso de todo o Exército Britânico,

torna-se completamente inofensivo, como um recém-nascido.

Quando é acometido por um de seus ataques de sensualidade,

fica cego a tudo em sua volta.

UM SOLDADO (Grita da porta) – Venham todos para a revista.

É o caso do crime do Pagode. Parece que está faltando um

homem. Vai haver uma chamada nominal e controle das placas

de identificação.

JUCA – A placa de identificação!

FÉLIX FELIZARDO (Ajoelhado, arruma sua roupa) – Tenho o

hábito de cuidar das minhas coisas.

JUCA (Para Félix Felizardo) – Tome. É a sua placa de

identificação. Você só tem que responder: “presente!”, quando

chamarem o nome do nosso camarada. Mas você vai responder

o mais alto e o mais claro possível. É uma coisa à toa.

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CHICO – O nome do nosso companheiro que se perdeu é

Jeremias Lucas! Jeremias Lucas!

FÉLIX FELIZARDO – Jeremias Lucas!

JUCA (Para Félix Felizardo, enquanto saem) – É uma grande

felicidade encontrar pessoas educadas, que sabem se conduzir

como é preciso em todas as circunstâncias.

FÉLIX FELIZARDO (Parando antes da porta) – E a minha

gorjeta?

JUCA – Uma garrafa de uísque... Venha!

FÉLIX FELIZARDO – Meus senhores, minha condição de

estivador me obriga a ser preciso em todas as circunstâncias.

Eu tinha pensado em duas caixas de charutos e cinco garrafas

de uísque.

ARMANDO – Mas estamos precisando do senhor para a revista

da tropa.

FÉLIX FELIZARDO – Exatamente.

CHICO – Está bem. Duas caixas de charutos e quatro garrafas

de uísque.

FÉLIX FELIZARDO – Três caixas e cinco garrafas.

ARMANDO – O quê? Você disse duas caixas ainda agora.

FÉLIX FELIZARDO – Se começarem a fazer isto comigo, então

eu quero cinco caixas e oito garrafas. (Toque militar.).

JUCA – É preciso ir já!

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CHICO – Está certo. Está certo. Mas tem que vir agora com a

gente.

FÉLIX FELIZARDO – Combinado!

JUCA – Como é seu nome?

FÉLIX FELIZARDO – Jeremias.

ARMANDO – Tomara que não chova! (Saem os quatro.

Leocádia começa a cobrir seu vagão com lonas. Armando

volta.) Viúva Begbick: vai chover! Ai o Cinco de Sangue! É

preciso salvar estes quatro bebedores de cerveja! A senhora fica

encarregada de encilhar este tigre no cio, para que o sangue

sequioso embote os olhos e a sua disciplina. (Sai.).

LEOCÁDIA (Vendo-o partir) – Aquele homem não se chama

Jeremias. Trata-se do estivador Félix Felizardo, de Kilkoa.

Agora, diante dos olhos do Cinco de Sangue vai se perfilar um

homem que não é soldado. (Defronte de um espelho.) Vou me

embelezar para que o Sargento fique mais tempo comigo.

(Novo toque militar. Entra o Sargento Caralinda. Begbick

lança-lhe olhares fulminantes pelo espelho e senta-se numa

cadeira.).

CARALINDA – Não fique me olhando assim, com este olhar

devorador, Babilônia Ressuscitada! Já tenho muito com o que

me preocupar. Há mais de três dias que durmo mal, e só tomo

banho frio. Quinta feira fui obrigado a decretar Estado de Sítio

para pode dominar esta minha impetuosidade. E não podia ser

de outro jeito. Estou na pista de um crime sem precedentes na

história do Exército!

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LEOCÁDIA – Tigre de Kilkoa: liberta a tua natureza ardente!

Ninguém te vê! Ninguém saberá de nada! Aprende a te

conhecer na cava da minha axila, nos meus cabelos. E na curva

dos meus joelhos esquece o acaso do teu nome. Ordem

obscura! Disciplina morna! Agora, Cinco de Sangue, vem, vem

ao meu lado nesta noite tépida de chuva e torna-te aquilo que

temes tanto: um homem! Que contradição! Um que deve ser e

por isso não quer ser. Vem, homem! Tal como a natureza te fez.

Sem armas! Emaranhado em ti mesmo, confuso, selvagem e

indefeso. Entregue aos teus instintos e sem armas pela tua

própria força. Vem! O homem é assim!

CARALINDA – Nunca! A ruína da humanidade começou

quando o primeiro cafajeste se esqueceu de abotoar a

braguilha. O Regulamento do Exército é um livro cheio de

lacunas, mas é o único que pode salvar a humanidade. Oferece-

nos uma coluna vertebral e tira a nossa responsabilidade diante

de Deus. Na verdade, deveríamos cavar um grande buraco na

terra, enchê-lo de dinamite e fazer explodir pelos ares o globo

inteiro: talvez só assim eles percebessem que estamos agindo

seriamente. Seria tão simples. Mas poderá o Cinco de Sangue

passar esta noite de chuva, sem a carne desta viúva?

LEOCÁDIA – De qualquer jeito, se vieres à minha casa esta

noite, quero te ver vestido de preto e com chapéu coco. (Uma

voz ordena de fora.).

VOZ – Os metralhadores para a chamada nominal!

CARALINDA – Preciso ficar sentado aqui, e olhar esta escória

que vai responder à chamada! (Senta-se.).

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OS SOLDADOS (Fora) – Chico Saraiva, Juca Malaquias,

Armando Mueller...

CARALINDA – Silêncio estranho!

FÉLIX FELIZARDO (Fora) – Jeremias Lucas.

LEOCÁDIA – Está tudo na mais perfeita ordem.

CARALINDA – Eles inventaram mais uma. Insubordinação em

serviço e insubordinação fora de serviço. (Levanta-se e faz

menção de sair.).

LEOCÁDIA (Gritando) – Escuta bem o que vou te dizer

Sargento: não te dou três noites desta chuva do Nepal para que

te tornes clemente com todas as fraquezas humanas! És o

homem mais sensual que existe na face da Terra. Tomarás

acento na mesa da insubordinação e os profanadores do templo

te farão baixar os olhos, pois os teus crimes serão mais

numerosos que os grãos de areia das praias.

CARALINDA – Ha, ha!... Se isto acontecer, minha querida, eu

mesmo tomarei medidas radicais contra a luxúria do Cinco de

Sangue. É muito simples. (Sai. Continua falando fora.) Que

sejam enterrados oito homens até o umbigo, na areia ardente,

por corte irregular do cabelo! (Entram Juca Malaquias,

Armando, Chico Saraiva e Félix Felizardo. Félix Felizardo

avança.).

JUCA – Uma tesoura, viúva Begbick!

FÉLIX FELIZARDO (Para o público) – Um pequeno favor

assim, entre cavalheiros, não pode fazer mal a ninguém. Tudo

se resume nisto: em viver e deixar viver. Agora esvaziarei minha

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garrafa de uísque e direi a mim mesmo: “fizeste um favor a

estes senhores”. Eis a única coisa que importa realmente no

mundo: fechar, às vezes, os olhos e dizer “Jeremias Lucas”,

como se diz “boa noite”, e, desta forma, as pessoas gostam da

gente e tudo fica muito mais fácil.

JUCA – Vamos agora buscar o Jeremias!

ARMANDO – Sopra um vento que anuncia grandes

tempestades. (Os três soldados voltam-se para Félix

Felizardo.).

JUCA – Desculpe. Estamos com muita pressa.

ARMANDO – Temos ainda que cortar o cabelo de um

cavalheiro. (Vão em direção à porta. Félix Felizardo corre

atrás.).

FÉLIX FELIZARDO – Não posso ajudar em nada?

JUCA – Em nada. Não precisamos de mais nada. (Para

Leocádia.) Cinco caixas de charutos e oito garrafas de uísque

para este homem. (Saindo.) Há gente que não sossega

enquanto não enfia o nariz no problema dos outros. É só lhes

estender o pé e querem logo a mão. (Os três soldados saem

depressa.).

FÉLIX FELIZARDO – Bem, agora eu deveria ir embora. Mas

será que a gente deve ir embora quando nos mandam embora?

Quem sabe, depois não vão precisar de mim mais uma vez? E

será certo partir quando alguém pode precisar de nós? A não

ser quando tem que ser; nunca se deve ir embora. (Félix

Felizardo vai até o fundo e senta-se numa cadeira perto da

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porta. A viúva Begbick traz as caixas de charutos e as

garrafas e coloca-os em volta de Félix Felizardo.).

LEOCÁDIA – Tenho a impressão de que já nos vimos em algum

lugar... (Félix Felizardo balança a cabeça negativamente.)

Seu nome não é Félix Felizardo?

FÉLIX FELIZARDO – Não. (A viúva Begbick sai balançando a

cabeça. Cai a noite. Félix Felizardo adormece sobre a mesa.

Voz da viúva Begbick cantando em tom de serenata.).

LEOCÁDIA (Cantando fora de cena) – Não te esforces em

reter / A onda que traz o mar / Ali mesmo aos teus pés / Outras

ondas, tantas outras, muitas ondas vão morrer. /

Cena V – INTERIOR DO TEMPLO DO DEUS AMARELO

O Bonzo Wang e seu sacristão chinês.

SACRISTÃO – Está chovendo.

WANG – Traz o palanquim para um lugar seco. (O Sacristão

sai.) Roubaram o dinheiro. O teto do Pagode está todo furado

de balas. E agora chove sobre minha cabeça. (O Sacristão

arrasta o palanquim para dentro. Gemidos no interior do

palanquim.) O que é isto? (Olha dentro do palanquim.) Eu

bem sabia, quando vi o palanquim todo emporcalhado! Só podia

ser obra de um homem branco. E ele veste um uniforme! E está

careca num lugar da cabeça! É o ladrão! Foi escalpelado a frio.

O que é que a gente pode fazer com ele? Sendo soldado, não

tem nenhuma inteligência. Um soldado de Sua Majestade, a

Rainha, todo sujo de vômito, mais desamparado que um pinto

Page 30: UM HOMEM É UM HOMEM - ieacen.files.wordpress.com · Eu estou com uma fome danada e em dez minutos estarei de volta. ... olha através do buraco e inicia a pesca.). CHICO – Conseguiu

sem galinha, bêbado a ponto de não reconhecer a própria mãe.

Eu poderia entregá-lo à Polícia. Mas para quê? Já que o

dinheiro foi roubado mesmo, de que serve a Justiça? Ele só

sabe grunhir feito um porco. (Furioso.) Vem cá, imbecil, arranca

esse verme daí, leva-o para o Oratório, e deixa que a cabeça

dele fique de fora. Pelo menos poderemos fazer dele um deus.

(O Sacristão coloca Jeremias dentro do Oratório.) Pega um

pedaço de papel. Rápido. Rápido. Precisamos colocar bandeiras

de papel na frente do Templo e encher as paredes com

cartazes. Quero fazer as coisas da melhor maneira possível,

sem pechinchar, com cartazes que todo mundo possa ver. De

que serve um deus, se ninguém fala dele? (Batem à porta.)

Quem será que bate numa hora dessas?

CHICO (De fora) – Três soldados.

WANG – São os companheiros dele. (Faz os três soldados

entrarem.).

CHICO – Procuramos um cavalheiro, ou para ser mais exato,

um soldado. Ele está deitado numa caixa de couro, que se

encontrava na frente deste Templo rico e distinto. Deve estar

dormindo agora.

WANG – Desejo-lhe um repouso bem agradável.

CHICO – Mas a caixa desapareceu...

WANG – Compreendo sua impaciência: ela é fruto da incerteza.

Acontece comigo o mesmo: procuro umas pessoas, ou para ser

mais exato três soldados, e não consigo encontrá-los.

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JUCA – Aconselharia ao senhor desistir dessa procura. Seria

mais prudente. Agora, parece-me, que o senhor deve saber

onde se encontra a caixa.

WANG – Ai de mim! Não sei. O mais difícil é que os soldados

vestem o mesmo uniforme.

CHICO – Isto não tem nada de difícil. Existe um doente, meu

senhor, no palanquim que tanto procuramos.

ARMANDO – E trata-se de uma doença estranha que fez o

rapaz perder alguns cabelos. Precisa de um socorro imediato.

JUCA – O senhor não viu ninguém assim?

WANG – Sinto muito, mas não. Encontrei alguns cabelos por

aqui. Para falar a verdade foram levados por um Sargento do

vosso Regimento. Ele desejava devolvê-los ao tal soldado

‘doente’. (Jeremias geme dentro do Oratório.).

CHICO – O que foi isto?

WANG – É a minha vaca de estimação que está dormindo.

JUCA – Aquele será o palanquim onde escondemos o

Jeremias? Podemos dar uma olhada lá dentro?

WANG – Devo-lhes falar sinceramente. Trata-se de outro

palanquim.

CHICO – Está mais vomitado que um banheiro em baile de

chope. É evidente. Jeremias estava ali dentro.

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WANG – Meus senhores, como seria possível? Quem iria ficar

num palanquim tão imundo? (Jeremias geme fortemente

dentro do Oratório.).

JUCA – Precisamos encontrar o nosso quarto homem, custe o

que custar, nem que tenhamos que esquartejar nossas próprias

mães.

WANG – Mas o homem que os senhores procuram não se

encontra aqui. No entanto, para lhes provar que não se encontra

aqui o homem que os senhores afirmam que se encontra,

permitam-me que lhes explique tudo com o auxílio de um

desenho. Permitam que esse vosso indigno criado faça um

esboço aqui, com giz, dos quatro criminosos. (Desenha sobre a

porta do cofre de óbolos.) Um deles tem um rosto, percebem?

Mas os outros três, por mais incrível que pareça, não possuem

rosto. Estes três não podem ser reconhecidos. Ora, aquele que

tem um rosto não tem nenhum dinheiro: portanto, não se trata

de um ladrão. E aqueles que ficaram com o dinheiro não

possuem rosto, logo não poderemos reconhecê-los. As coisas

permanecerão assim enquanto os quatro não estiverem juntos.

Mas se eles se reunirem, imediatamente aparecerão mais três

rostos e será fácil descobrir os ladrões do dinheiro. Não posso

acreditar que o homem que pensam estar aqui esteja aqui

realmente. (Os três soldados ameaçam-no com suas armas,

mas a um sinal de Wang, o Sacristão aparece acompanhado

de fiéis do Templo chinês.).

ARMANDO – Não desejamos incomodar por mais tempo a

vossa noite, meu senhor. E além do mais, o chá daqui não cai

muito bem. Mas o desenho é um primor! Vamos!

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WANG – Sinto-me constrangido por vê-los partir.

JUCA – Pode acreditar. Nada será capaz de impedir o nosso

companheiro de nos encontrar.

WANG – Quem sabe?

JUCA – Quando ele tiver curtido a sua cerveja, ele virá ao nosso

encontro. (Os três soldados saem com grandes

reverências.).

JEREMIAS (Dentro do Oratório) – Ei!... (Wang chama

atenção dos fiéis para o novo Deus.).

Cena VI – A CANTINA

Tarde da noite. Félix Felizardo dorme; debruçado sobre a

mesa. Os três soldados aparecem na janela.

CHICO – Vejam. Ele ainda está ali. Não parece um mamute

irlandês?

JUCA – Não deve ter ido embora por causa da chuva.

ARMANDO – Quem sabe? Ainda bem! Vamos precisar dele

mais uma vez.

CHICO – Mas vocês acham que o Jeremias...

ARMANDO – Eu tenho certeza. O Jeremias não voltará mais.

CHICO – E a gente vai ter que contar de novo a mesma história

a este estivador?

ARMANDO – O que é que você acha Juca?

Page 34: UM HOMEM É UM HOMEM - ieacen.files.wordpress.com · Eu estou com uma fome danada e em dez minutos estarei de volta. ... olha através do buraco e inicia a pesca.). CHICO – Conseguiu

JUCA – Eu vou é dormir.

ARMANDO – Muito bem. É uma ótima solução. Aí o nosso

estivador acorda, vai embora, e nossas cabeças rolarão.

CHICO – Você tem razão. Mas eu também tenho que dormir um

pouco. A resistência humana tem limites.

ARMANDO – É... Talvez seja mesmo a coisa mais sensata a

fazer. Que merda! E tudo por causa da chuva... (Os três

soldados saem.).

Cena VII – O INTERIOR DO TEMPLO

Amanhece. Cartazes imensos por todos os lados. Ruídos de

um velho gramofone e de um tambor. No fundo, importantes

cerimônias religiosas.

WANG (Ao Sacristão, aproximando-se do Oratório) –

Amassa mais depressa esta bosta de camelo! (Ao Oratório.)

Você ainda está dormindo, soldado?

JEREMIAS (Dentro do Oratório) – Como é Armando? Falta

muito? Puxa! Esse carro sacoleja feito uma cama de bordel e é

mais estreito que uma latrina.

WANG – O senhor se engana, soldado, se pensa que está

dentro de um carro. É a cerveja que faz a sua cabeça sacolejar.

JEREMIAS – Que merda! Que voz é essa de gramofone? Isto

não pode parar?

WANG – Sai daí, soldado, e vem comer um pedaço de carne!

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JEREMIAS (Dentro do Oratório) – Que bom - Chico Saraiva!

Um pedaço de carne vem mesmo a calhar! (Bate contra o

Oratório.).

WANG (Correndo para trás) – Silêncio pecadores! O deus

reclama cinco moedas de cada um! Vejam como ele bate contra

as paredes do Santo Oratório. Ele se recusa a lhes conceder

suas graças. Faça a coleta Mal Sing.

JEREMIAS (Dentro do Oratório) – Juca, Juca, onde é que eu

estou?

WANG – Bate mais um pouco, soldado. Do outro lado, meu

General. Com os dois pés. Bem forte.

JEREMIAS (Dentro do Oratório) – Mas o que é que está

acontecendo? Onde é que vocês estão?

WANG – Teu humilde servidor anseia por saber que comidas e

bebidas desejas, precioso soldado.

JEREMIAS (Dentro do Oratório) – Mas quem é você? Parece

a voz de uma ratazana gorda!

WANG – A voz de ratazana que nem é tão gorda assim, é do

teu amigo Wang, Coronel.

JEREMIAS (Dentro do Oratório) – Que cidade é esta?

WANG – Uma cidade miserável, um pequeno buraco que se

chama Kilkoa.

JEREMIAS (Dentro do Oratório) – Deixe-me sair daqui!

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WANG (Falando para trás) – Quando você tiver acabado de

amassar a bosta de camelo, põe na bandeja, bate no tambor, e

acende todas as bolas de bosta. (Para Jeremias.)

Imediatamente, se prometeres não fugir, precioso soldado.

JEREMIAS (Dentro do Oratório) – Abre de uma vez, voz de

ratazana, abre! Está me escutando?

WANG – Atenção! Atenção! Fiéis! Esperai um pouco ainda. O

deus vos fala com três estrondos de trovão! Contai bem os

estrondos. Quatro. Não. São cinco. Que pena, são somente

cinco moedas que deveis oferecer. (Bate amigavelmente no

Oratório.) Precioso soldado, eis um filé mignon para aplacar a

vossa fome.

JEREMIAS (Dentro do Oratório) – Ai, eu estou sentindo as

minhas tripas pegando fogo! Devo ter bebido álcool puro! Que

ressaca! Agora tenho que comer tanto quanto bebi.

WANG – Até uma vaca inteira, se quiseres. Já tem um filezinho

pronto. Apenas tenho medo que fujas. Promete-me que não vais

fugir?

JEREMIAS (Dentro do Oratório) – Primeiro quero ver o filé

mignon. (Wang deixa-o sair.) Como é que eu cheguei aqui?

WANG – Conduzido pelas nuvens, meu General. Conduzido

pelas nuvens.

JEREMIAS – Mas onde é que eu estava quando você me

encontrou?

WANG – Condescendeste em repousar num velho palanquim,

Excelência.

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JEREMIAS – E onde estão os meus camaradas? Onde está o

Oitavo Regimento? Onde estão os metralhadores? Onde estão

os doze transportes militares e as quatro partidas de elefantes?

Onde está o Exército Britânico? Onde estão todos, ó

escarradeira amarela?

WANG – Todos partiram o mês passado, para além dos Montes

de Pandejab. Mas o filé mignon está aqui!

JEREMIAS – O quê? E eu? Onde me encontro? O que é que eu

fazia quando eles partiram para além de Pandejab?

WANG – A cerveja. Demasiada cerveja. Milhares de garrafas, e

também ganhaste algum dinheiro.

JEREMIAS – Ninguém veio me procurar?

WANG – Não.

JEREMIAS – Que merda!

WANG – E se chegarem agora, procurando um homem que

veste uniforme de soldado branco, devo trazê-los até vós,

Ministro da Guerra?

JEREMIAS – Não. Não. É melhor não!

WANG – Se desejavas viver em paz, refugia-te neste Oratório,

quando chegarem os homens de desejam te fazer mal.

JEREMIAS – Onde está o filé mignon? (Senta-se e come.)

Muito pequeno! Que barulho medonho é esse? (Ao rufar do

tambor, a fumaça das bolas de bosta de camelo sobe para o

teto.).

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WANG – Os fiéis estão ajoelhados lá dentro, rezando.

JEREMIAS – Esta carne foi tirada de uma vaca velha e nervosa.

Para quem eles estão rezando?

WANG – Isto é segredo deles.

JEREMIAS (Comendo mais depressa) – O bife é bom, mas eu

não devia estar aqui. Chico Saraiva e Armando devem ter me

esperado, tenho certeza. Talvez ainda estejam me esperando.

Ótimo. É feio eu ficar comendo. Agora Chico Saraiva deve estar

dizendo para o Armando: “Jeremias vai voltar. Quando passar a

ressaca ele vai voltar”. O Juca, talvez não tenha tanta certeza,

porque aquele cara não é lá flor que se cheire. Mas o Chico

Saraiva e o Armando, não. Eles devem estar dizendo: “Jeremias

vai voltar”. Não há dúvida. Eu precisava mesmo de um pouco de

carne depois daquele líquido todo que eu entornei. Se ao menos

o ‘Nandinho’ não confiasse tanto em mim... Tenho certeza que

ele está dizendo: “o Jeremias não é capaz de nos trair”. E como

é que eu posso suportar tudo isso? Não é direito eu ficar

sentado aqui, comendo. Mas esta carne está tão gostosa!

Cena VIII – A CANTINA

Manhã. Félix Felizardo dorme sobre a mesa. Os três

soldados tomam café.

CHICO – O Jeremias vai voltar.

ARMANDO – O Jeremias não é capaz de nos trair.

CHICO – Quando passar a ressaca, o Jeremias vai voltar.

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JUCA – Vamos ver! Em todo caso, é indispensável manter este

estivador ao nosso alcance, enquanto o Jeremias estiver fora de

circulação.

ARMANDO – Ele estará sempre ao nosso alcance.

CHICO – Ele deve estar congelado, depois de passar toda uma

noite nessa cadeira.

JUCA – Enquanto nós, que dormimos bem, estamos de novo

em plena forma!

CHICO – Jeremias voltará. Se eu vejo realmente as coisas

através da lógica militar de quem dormiu muito bem, tudo me

parece muito claro. Quando acordar vai querer tomar a sua

cervejinha e virá correndo à nossa procura. (Entra Wang. Vai

ao balcão e toca a campainha. Entra a Viúva Begbick.).

WANG – Eu quero dez garrafas de cerveja.

LEOCÁDIA – Dez garrafas de cerveja? Para um branco? Aqui

nesta cantina não servimos a ralé. Seja branca ou amarela. (Ela

entrega as dez garrafas.).

WANG – Sim. Para um branco. (Wang sai com uma

reverência para os soldados. Armando, Chico Saraiva e

Juca Malaquias olham-se.).

JUCA – Jeremias agora não volta mais. Bem, precisamos

encher o nosso tanque com cerveja. Viúva Begbick: de agora

em diante, tenha sempre à nossa disposição vinte cervejas e

dez garrafas de uísque. (A Viúva Begbick serve a cerveja e

sai. Os três soldados bebem, observando Félix Felizardo

que dorme.).

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CHICO – Mas o que é que a gente vai fazer, Juca? Uma placa

de identificação é tudo o que resta de Jeremias.

JUCA – É o bastante. Com ela vamos fabricar um novo

Jeremias. A gente dá importância demais às pessoas. Um

indivíduo isolado não vale nada. Só começa a valer quando são

mais de duzentos. Naturalmente, cada um com liberdade de ter

a sua opinião. Uma opinião não pesa nada. Um homem

tranqüilo pode tranqüilamente adotar duas ou mesmo três

opiniões diferentes.

ARMANDO – E por mim, pode até tomar no cu com todas estas

idéias diferentes.

CHICO – Mas o que é que ele vai dizer se o transformarmos

num soldado chamado Jeremias Lucas?

JUCA – As pessoas desse tipo transformam-se noutras,

espontaneamente. Jogue-o no mar e logo terá barbatanas entre

os dedos, já que ele nada tem a perder.

ARMANDO – Queira ou não queira, ele tem que se transformar

no nosso quarto homem.

CHICO (Acordando Félix Felizardo) – Meu caro senhor, que

bom que esteja ainda aí! Por causa de circunstâncias

extremamente desagradáveis, o nosso camarada Jeremias não

apareceu no tempo devido.

JUCA – O senhor é de origem irlandesa?

FÉLIX FELIZARDO – Acho que sim.

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JUCA – Isto é uma vantagem. Espero que não tenha mais de

quarenta anos, senhor Félix Felizardo.

FÉLIX FELIZARDO – Não. Sou bem mais moço.

JUCA – Perfeito. Por acaso tem os pés chatos?

FÉLIX FELIZARDO – Um pouco.

JUCA – Isto é fundamental. Sua sorte está lançada. O senhor

tem todas as chances de permanecer definitivamente aqui.

FÉLIX FELIZARDO – Não dá, infelizmente. Minha mulher está

me esperando por causa de um peixe.

CHICO – Compreendo seus escrúpulos. São bem dignos de um

filho da Irlanda. Mas a sua pessoa nos agrada.

ARMANDO – E o melhor é que está na medida certa. Existe

realmente a possibilidade do senhor se tornar um grande

soldado. (Félix Felizardo fica quieto.).

JUCA – A vida de um soldado é cheia de recompensas. Toda

semana, nos dão um punhado de dinheiro, o suficiente para

percorrer a Índia inteira, visitar suas ruas e templos. Examine

este confortável saco de lona que é fornecido gratuitamente a

todos os soldados. E veja este fuzil com a marca da firma

Everett & Cia. A maior parte do tempo pescamos, por mero

divertimento. A ‘mamãe’, é assim que chamamos delicadamente

o Exército, nos fornece caniços e anzóis. Enquanto pescamos

diversas bandas militares enchem os ares com as suas

melodias. O resto do dia a gente passa fumando dentro de um

bangalô, ou então contemplando palácios dourados de um

desses rajás, que você pode perfeitamente fuzilar se lhe der na

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veneta. As mulheres agarram-se às nossas calças, e importante,

sem pedir nenhum dinheiro. (Félix Felizardo permanece

calado.).

CHICO – E em tempo de guerra a vida de um soldado se torna

maravilhosa! Só no campo de batalha o homem atinge a

plenitude de sua grandeza. Você sabe que estamos vivendo

numa grande época? Cada vez que a gente é enviado para um

combate, recebemos, gratuitamente, uma grande garrafa de

cachaça, com a finalidade de insuflar a nossa coragem de modo

desmesurado.

FÉLIX FELIZARDO – A vida de um soldado é cheia de

recompensas.

JUCA – Claro. Então, guarde seu uniforme com esses lindos

botões de metal. De agora em diante o senhor tem o direito de

ser chamado de senhor Jeremias.

FÉLIX FELIZARDO – Vocês não estão querendo arruinar vida

de um pobre estivador?

ARMANDO – Mas por que essa desconfiança, homem de

Deus?

JUCA – Como é? Está querendo ir embora?

FÉLIX FELIZARDO – Estou sim.

ARMANDO – Chico Saraiva: vai buscar a roupa dele.

CHICO (Com as roupas) – Mas o que é que o impede de ser

Jeremias? (Caralinda aparece na janela.).

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FÉLIX FELIZARDO – É que eu me chamo Félix Felizardo.

(Encaminham-se para a porta. Os três soldados se olham.).

JUCA – Espere um pouco.

CHICO – O senhor conhece o ditado devagar se vai ao longe?

JUCA – Pois o senhor está tratando de negócios com os três

homens que não estão acostumados a negociar com

estrangeiros.

ARMANDO – Q ualquer que seja o seu nome, pagaremos pelo

que nos fizer.

JUCA – Bem, trata-se... por favor, não vá embora... de um

negócio. (Félix Felizardo pára.).

ARMANDO – Garanto a você, que neste momento, em Kilkoa,

não pode haver um negócio melhor.

JUCA – E é nosso dever lhe oferecer uma participação neste

negócio sensacional.

FÉLIX FELIZARDO – Um negócio?

JUCA – Poderia ser. Mas parece que o senhor não tem tempo.

FÉLIX FELIZARDO – Bem... Tempo se arranja, não é?

JUCA – Quer dizer, então, que o senhor poderia arranjar tempo.

Lord Kitchner também conseguiu arranjar tempo para conquistar

o Egito.

FÉLIX FELIZARDO – Eu sei. Eu sei. Quer dizer então que se

trata de um grande negócio?

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CHICO – Depende da situação da pessoa. Por exemplo: para o

Marajá de Petchavar seria, sem dúvida, um grande negócio.

Mas para o senhor, talvez, seja um pequeno negócio.

FÉLIX FELIZARDO – E o que é que eu tenho de fazer?

ARMANDO – Nada.

CHICO – A única exigência seria sacrificar a sua barba. Ela

poderia chamar a atenção e isto não convém.

FÉLIX FELIZARDO – Ah! (Pega suas coisas e encaminha-se

para a porta.).

CHICO – Trata-se de um elefante.

FÉLIX FELIZARDO – Um elefante? Um elefante? Mas um

elefante é uma mina de ouro. (Excitado, pega uma cadeira e

senta-se no meio dos três.) Quem tem um elefante nunca

termina esticando as canelas como indigente.

JUCA – Nós temos um elefante.

FÉLIX FELIZARDO – E seria um elefante que a gente poderia

ter logo à mão?

CHICO – Um elefante! Ele está querendo um elefante!

FÉLIX FELIZARDO – Quer dizer que existe mesmo um elefante

disponível?

CHICO – Como é possível negociar um elefante se ele não

estiver disponível?

FÉLIX FELIZARDO – Bem, se é assim, senhor Chico Saraiva,

bem que eu gostaria de ter a minha fatia desse bolo.

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JUCA (Hesitante) – Se não existisse esse maldito Tigre de

Kilkoa!

FÉLIX FELIZARDO – Mas é um elefante ou um tigre?

CHICO – Fala baixo. Você está dizendo o nome do Homem-

Tufão, do Cinco de Sangue, do Tigre de Kilkoa, o nosso

Sargento.

FÉLIX FELIZARDO – E o que é que ele fez para ser chamado

assim?

CHICO – Nada de especial. Uma vez por outra, ele pega um

que respondeu com nome falso na revista da tropa, enrola-o

numa lona de dois metros quadrados e o atira debaixo das patas

dos elefantes.

FÉLIX FELIZARDO – Então para enganá-lo é preciso um

homem com muita cabeça.

JUCA – Exatamente como a que o senhor tem.

CHICO – Quanta coisa há de ter dentro dela!...

FÉLIX FELIZARDO – Nem tanto. É verdade que conheço uma

adivinhação que poderia lhes interessar. Já que são pessoas

instruídas.

ARMANDO – Ótimo. Nós somos loucos por adivinhações.

FÉLIX FELIZARDO – É branco, é mamífero, e tanto vê pela

frente quanto por trás.

ARMANDO – Mas esta é danada!

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FÉLIX FELIZARDO – Não vão adivinhar nunca. Eu também não

consegui. Um mamífero branco que vê tanto por trás quanto

pela frente: só pode ser um cavalo branco e cego.

JUCA – Que maravilha! Nunca poderia adivinhar!

CHICO – E o senhor guarda isso de cor com tanta facilidade!

FÉLIX FELIZARDO – Na maioria dos casos guardo de cabeça,

porque eu escrevo muito mal. Bem, eu tenho a impressão de

que sou o homem indicado para quase toda a espécie de

negócios. (Os três soldados sentam-se numa mesa da

cantina; Félix Felizardo vai procurar uma de suas caixas de

charutos e oferece aos três soldados.).

JUCA – Fogo!

FÉLIX FELIZARDO (Acende-lhe o charuto) – Se me permitem,

vou lhes provar que fizeram bem em me escolher para sócio.

Não terão, por acaso, alguns objetos pesados?

ARMANDO (Apontando os pesos e halteres perto da porta)

– Ali!

FÉLIX FELIZARDO (Levantando um peso) – Eu faço parte do

Clube Atlético de Kilkoa!

JUCA (Estendendo-lhe uma cerveja) – Dá para notar!

FÉLIX FELIZARDO (Bebendo) – Nós, da equipe de luta livre,

temos algumas regras. Por exemplo: quando se entra numa sala

com muita gente, já na porta deve-se estufar o peito, depois

levantar os braços e após, caminhar, deixando os braços

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balançar naturalmente. (Bebe.) Podem contar comigo pro que

der e vier!

CARALINDA (Entrando) – Alguém aí se chama Félix

Felizardo? Tem uma mulher lá fora procurando por ele!

FÉLIX FELIZARDO – Felizardo! Felizardo! O homem que ela

procura se chama Félix Felizardo! (Caralinda observa-o e vai

procurar a senhora Felizardo.).

FÉLIX FELIZARDO (Para os soldados) – Não se preocupem!

Félix Felizardo sabe distinguir para que lado sopra o vento!

CARALINDA – Entre, minha senhora. Aqui tem alguém que

conhece o seu marido. (Volta, acompanhado da Senhora

Felizardo.).

SENHOR FELIZARDO – Desculpem-me, senhores! Sou uma

pobre mulher que se encontra em maus lençóis, e estou tão mal

vestida... é que saí às pressas... Mas olha: que história é essa,

Félix? Por que é que tu estás tão mal vestido?

FÉLIX FELIZARDO – A senhora está falando comigo?

SENHORA FELIZARDO – Não estou entendendo nada. Como é

que tu te meteste nesse uniforme? Mas tu tens cada uma!

JUCA – Esta mulher não é boa da cabeça!

SENHORA FELIZARDO – Não é nada engraçado ter um marido

que nunca sabe dizer não.

FÉLIX FELIZARDO – Eu gostaria de saber com quem ela está

falando.

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JUCA – E o pior é que ela está começando a nos insultar!

CARALINDA – Pois eu acho exatamente o contrário. Continue

Senhora Felizardo. Sua voz me soa muito bem.

SENHORA FELIZARDO – Não estou entendendo em que

trapalhada tu te meteste. Mas algo me diz que isto não vai

terminar bem. Vamos para casa, homem! Que é que houve?

Perdeu a voz?

FÉLIX FELIZARDO – Devagar, minha senhora! Estou vendo

que é comigo que a senhora está falando. Mas a senhora está

me confundindo com algum outro... E isto é muito desagradável,

além de ser inconveniente.

SENHORA FELIZARDO – Como assim? Eu te tomando por

outro? Tu bebeste? Ah... ele não agüenta uma gota de álcool!

FÉLIX FELIZARDO – Eu sou o seu Félix Felizardo tanto quanto

Comandante do Exército!

SENHORA FELIZARDO – Ontem, exatamente a esta hora,

coloquei a frigideira no fogo, como tu mandaste, e fiquei

esperando o peixe prometido.

FÉLIX FELIZARDO – E agora vem com esta história de peixe!

Não vê o papel que está fazendo? E ainda na frente de todos os

meus companheiros!

CARALINDA – É um caso muito estranho! Estou bestificado!

Algum de vocês conhece esta mulher? (Os três soldados

balançam a cabeça negativamente.) E você?

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FÉLIX FELIZARDO – Já vi muita coisa em minha vida, desde a

Irlanda até Kilkoa, mas esta mulher, nunca!

CARALINDA – Diz a ela como é que você se chama.

FÉLIX FELIZARDO – Jeremias Lucas!

SENHORA FELIZARDO – Mas isto é incrível! Por mais que olhe

para ele, não posso deixar de ter certeza que se trata do Félix, o

estivador, meu marido. Mas começo a achar que há nele algo de

diferente, que eu não sei explicar direito.

CARALINDA – Bem, vamos explicar isto depois. (Sai com a

mulher de Félix Felizardo.).

FÉLIX FELIZARDO (Vai dançando para o meio do palco e

canta) – Ó lua do Alabama / Minha bela, minha bela, / Vamos

para a cama. / A minha querida mãe / Quer ver filhos de seu

filho / A quem tanto ama! / (Aproxima-se, radiante, de

Armando.) De um Felizardo nunca se pode dizer que não soube

puxar a brasa pro seu lado.

JUCA (Para Chico) – Antes que o sol se ponha sete vezes, este

homem há de ser outro!

CHICO – E tu achas que isto é possível? Transformar um

homem noutro homem?

JUCA – Sim, todos os homens são iguais. Um homem é um

homem.

CHICO – Mas o Exército pode levantar acampamento de um

momento para outro, Juca.

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JUCA – Naturalmente que pode. Mas a cantina ainda está

armada. E a Artilharia ainda está organizando corridas de

cavalos! Eu te digo: Deus não vai nos pregar uma peça destas,

deixando o Exército partir ainda hoje. Ele vai pensar antes de

permitir uma coisa dessas duas vezes.

CHICO – Escuta! (Toques de partida e rufar de tambores. Os

três soldados colocam-se em fileira.).

CARALINDA (Entrando, aos gritos, por trás) – O Exército vai

partir para a fronteira do Norte! Embarque às duas e dez da

madrugada!

Interlúdio

LEOCÁDIA – O senhor Bertolt Brecht afirma: um homem é um

homem! / Mas isto qualquer um pode afirmar. / No entanto, o

senhor Brecht também prova / Que é possível fazer o que se

quiser de um homem: / Desmontá-lo, remontá-lo como um

automóvel, / Sem que nada se perca dele, e isto é fantástico! /

Esta noite vão pedir ao nosso homem, com ternura e sem

nenhuma coação / Que siga a engrenagem universal, / E

esqueça o pequeno peixe que tanto desejava. / Em qualquer

outro ele poderá ser transformado. / Sua docilidade é

inigualável. / Se quisermos, / Poderemos transformá-lo num

facínora do dia para a noite. / O senhor Brecht espera que vocês

saibam / Que o solo em que pisam / Pode se transformar em

areia movediça. / E que por isso compreendam, ao ver Félix

Felizardo / Que a vida neste mundo é um perigo constante. /

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Cena IX - A CANTINA

Rumor do Exército que parte. Uma voz poderosa grita no

fundo da cena.

VOZ – Foi deflagrada, a guerra prevista pelos técnicos há tanto

tempo. O Exército se desloca para as fronteiras do Norte. A

Rainha ordena aos seus soldados que embarquem nos trens,

com seus elefantes e seus canhões. E o vosso General ordena:

todo o mundo deve estar nos trens antes que a lua apareça. (A

Viúva Begbick está sentada atrás do balcão da cantina e

fuma.).

LEOCÁDIA – Na cidade de Icó, sempre cheia de gente e onde

ninguém fica, existe uma canção sobre o fluir das coisas. É mais

ou menos assim. (Canta.) Não te esforces em reter / A onda que

traz o mar / Ali mesmo, aos teus pés, tantas outras / Outras

ondas, muitas ondas vão morrer. / (Ela levanta-se, pega um

bastão e retira os toldos de lona, enquanto diz os versos

seguintes.) Passei três anos no mesmo lugar / Sob o mesmo

teto / E nunca me senti sozinha. / Um homem me sustentava, / E

jamais houve alguém igual a ele. / Um belo dia, / Estava

estendido, irreconhecível, / Sob as bandeiras da morte. / No

entanto, / Como em todas as outras noites, / Sentei-me na mesa

para jantar. / E logo aluguei a estranhos / O quarto em que nos

amamos tantas vezes! / Com esse aluguel, alimentei-me. / E

mesmo agora, quando o quarto / Não me pertence mais,

continuo comendo. / Por isto, canto a canção. / (Canta.) Não te

esforces em reter / A onda que traz o mar / Ali mesmo aos teus

pés, tantas outras / Outras ondas, muitas ondas vão morrer. /

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(Volta a sentar-se no balcão da cantina; os três soldados

entram em companhia de vários soldados.).

JUCA (Ao centro) – Camaradas: estourou a guerra! Acabou o

tempo da desordem! Não se pode mais levar em conta os

interesses particulares! Eis porque o estivador Félix Felizardo,

de Kilkoa, deve ser transformado, de qualquer modo em

Jeremias Lucas. Para que isto aconteça, precisamos envolvê-lo

numa negociata, como é de praxe em nossa época. Vamos

fabricar um elefante com as nossas próprias mãos. Chico

Saraiva: pega essa vara e a cabeça do elefante que está

pregada na parede. E você, Armando, apanha esta garrafa e

despeja o conteúdo cada vez que o Felizardo olhar para este

lado: é preciso que ele pense que o elefante está mijando. Eu

vou cobrir vocês com este mapa do Estado Maior. (Fabricam

um elefante artificial.) Vamos dar este elefante de presente ao

Félix Felizardo, em seguida, arranjaremos um comprador. Se ele

quiser vender o elefante, diremos: “como? Você vai vender um

elefante que pertence ao nosso glorioso Exército?” Então ele vai

dar graças a Deus por ter-se transformado no soldado Jeremias

Lucas, que vai combater nas fronteiras do Norte e se arriscar a

ser fuzilado como o delinqüente Félix Felizardo.

UM SOLDADO – Tu achas que ele vai acreditar que isto é um

elefante?

ARMANDO – Mas por que não? Não está parecido?

JUCA – Posso jurar que ele vai achar que se trata de um

elefante verdadeiro. Até esta garrafa de cerveja será para ele

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um elefante, desde que apareça alguém que lhe diga: “quero

comprar este elefante”.

UM SOLDADO – Então, vamos arranjar imediatamente um

comprador.

JUCA (Chamando) – Viúva Begbick! (Leocádia entra.) A

senhora quer desempenhar o papel de uma compradora?

LEOCÁDIA – Aceito, sim. Mas vocês terão que ajudar a

desmontar a minha cantina.

JUCA – O negócio é o seguinte: a senhora vai dizer ao homem

que entrar aqui, que está interessada neste elefante e deseja

comprá-lo. Depois lhe ajudaremos a desmontar a cantina. Uma

mão lava a outra.

LEOCÁDIA – Está bem. (Volta para o seu lugar.).

FÉLIX FELIZARDO (Entrando) – O elefante já está aí?

JUCA – O negócio caminha de vento em popa. A mercadoria é

o elefante Billy Humph, ainda não registrado no Exército. A

transação propriamente dita consiste em vendê-lo, mais ou

menos em segredo, é claro, a um particular.

FÉLIX FELIZARDO – Maravilhoso. E quem fará a venda?

JUCA – Aquele que assinar a transação, como proprietário.

FÉLIX FELIZARDO – E quem é o proprietário?

JUCA – O senhor aceitaria assinar?

FÉLIX FELIZARDO – Já tem comprador?

JUCA – Já.

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FÉLIX FELIZARDO – Mas ninguém vai saber que eu assinei

como proprietário?

JUCA – De modo algum. Aceita um charuto?

FÉLIX FELIZARDO (Desconfiado) – Por quê?

JUCA – É para o senhor manter o sangue frio. Cá entre nós, o

elefante está um pouco resfriado.

FÉLIX FELIZARDO – Onde está o comprador?

LEOCÁDIA (Avançando) – Ah, Senhor Felizardo, estou louca

por um elefante. O senhor não terá um, por acaso?

FÉLIX FELIZARDO – Viúva Begbick, talvez eu tenha a

mercadoria que procura.

LEOCÁDIA – Antes, porém, levem a parede. Os canhões vão

passar daqui a pouco.

OS SOLDADOS – Pois não. (Os soldados desmontam as

paredes da cantina.).

ARMANDO (À Viúva Begbick) – Eu posso lhe assegurar -

viúva Begbick, que visto de uma perspectiva mais inserida no

contexto, o que se passa aqui é um acontecimento histórico. E o

que está ocorrendo exatamente aqui? A personalidade de um

ser humano vai ser examinada através de um microscópio.

Vamos ver o que existe no íntimo do indivíduo. E vamos

proceder com rigor científico, graças à técnica! Através do

trabalho da máquina, a estatura do grande homem e do

pequeno homem ficou igual. Ah... a personalidade! Já entre os

assírios, a personalidade de um homem era representada por

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uma árvore que se ramifica. Pois que se ramifique! Nós vamos

dobrar esta árvore. E o que foi mesmo que disse Copérnico? O

que é que gira? A Terra! Ora, a Terra, e, portanto, o homem que

está sobre ela. Isto segundo Copérnico. Quer dizer que o

homem não se encontra no centro de nada. Dê uma olhada ao

seu redor. Isto poderia ser o centro? Eis um fato histórico. O

homem não é nada! A ciência moderna provou que tudo é

relativo. Até a senhora, Viúva Leocádia. Até mesmo eu... Somos

relativos. Olhe-me bem nos olhos. O instante é histórico. O

homem pode-se encontrar no centro, mas, relativamente. (Os

dois saem.).

Número 1

JUCA (Gritando) – Número um: o caso do elefante! A Unidade

de Metralhadores entrega um elefante a um homem que não

deseja que seu nome seja conhecido.

FÉLIX FELIZARDO – Preciso de mais um trago de Cherry

Brandy e também da baforada de um bom charuto. Depois

disso, vamos à vida.

JUCA (Apresentando-lhe o elefante) – Eis aqui Billy Humph,

campeão da província de Bengala, a serviço do grande Exército

Britânico.

FÉLIX FELIZARDO (Vê o elefante e se assusta) – Ele

pertence ao Exército?

UM SOLDADO – Coitado. Está muito resfriado. Vê-se logo,

pelos panos que enrolaram nele.

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FÉLIX FELIZARDO (Inquieto, gira em torno do elefante) – Os

panos não são o pior.

LEOCÁDIA – Sou a compradora. (Apontando o elefante.)

Quem quer me vender este elefante?

FÉLIX FELIZARDO – A senhora está falando sério? Quer

mesmo comprar o elefante?

LEOCÁDIA – Ah! Não tem importância que ele seja grande ou

pequeno. Desde menina eu desejo ter um elefante.

FÉLIX FELIZARDO – E era um igual a este, que a senhora

queria?

LEOCÁDIA – Quando eu era menina desejava ter um elefante

que fosse tão grande como o Himalaia; mas com o passar do

tempo, a gente limita as ambições.

FÉLIX FELIZARDO – Bem, senhora viúva. Aqui pra nós, se a

senhora quer mesmo comprar o elefante, eu sou o dono.

UM SOLDADO (Vem correndo do fundo da cena) – Ei,

cuidado! O Cinco de Sangue está inspecionando os vagões!

OUTRO SOLDADO – O Homem-Tufão?

LEOCÁDIA – Não tenham medo. Não vou consentir que levem

este elefante. (Leocádia sai rapidamente com os soldados.).

JUCA (Para Félix Felizardo) – Cuide do elefante por alguns

instantes. (Entrega a Félix Felizardo a corda que amarra o

elefante.).

FÉLIX FELIZARDO – E para onde eu devo ir?

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JUCA – Você fica aqui mesmo. (Juca Malaquias vai ao

encontro dos outros soldados. Félix Felizardo segura o

elefante pela ponta da corda.).

FÉLIX FELIZARDO (Sozinho) – Minha mãe costumava me

dizer: ninguém sabe nada com certeza, mas você Félix, você,

nem isto sabe! Ontem, Félix, você saiu para comprar um peixe

pequeno. E hoje você é dono de um grande elefante! Quem

sabe o que te acontecerá amanhã? Bem, nada disso interessa

desde que haja dinheiro para meter no bolso.

JUCA (Olha para dentro) – Puxa, ele nem olhou para cá.

Passou tão longe, quanto possível. (Vê-se Caralinda passar no

fundo.) O Tigre de Kilkoa passou se esgueirando feito um gato

acuado. (Juca Malaquias entra com a Viúva Begbick e os

outros soldados.).

Número 2

JUCA (Gritando) – E agora o número dois: a venda do elefante.

O homem que não deseja que seu nome seja conhecido vende

o seu elefante. (Félix Felizardo vai buscar uma campainha e

a Viúva Begbick coloca um balde no meio da cena.).

UM SOLDADO – Tu ainda tens alguma dúvida sobre o elefante?

FÉLIX FELIZARDO – Já que encontrei um comprador, de que

servem as dúvidas?

JUCA – Tem razão. Tudo o que é vendível está na mais perfeita

ordem.

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FÉLIX FELIZARDO – Não posso dizer o contrário. Um elefante

é um elefante, desde que se encontre um comprador. (Sobe no

balde e começa a leiloar o elefante. O elefante está ao seu

lado, no meio do grupo.) Vai começar o leilão! O elefante Billy

Humph, campeão da Província de Bengala vai ser vendido!

Nascido no Punjab Meridional e amparado no parto por seis

marajás, de mãe branca, com sessenta e cinco anos de idade,

pouco para um elefante, pesando mil e trezentos quilos e

podendo estraçalhar uma floresta milenária como um salgueiro

pelo vento, representa uma pequena fortuna para quem o

comprar.

JUCA – Eis aqui a Viúva Begbick com um cheque na mão.

LEOCÁDIA – Este elefante lhe pertence de verdade?

FÉLIX FELIZARDO – Como os meus próprios pés.

UM SOLDADO – Este elefante deve ser bastante velho...

LEOCÁDIA – Então, o preço deve ser mais baixo.

FÉLIX FELIZARDO – O preço é de duzentas rúpias, e ele

manterá este valor até o dia em que baixar à sepultura.

LEOCÁDIA (Examinando o elefante) – Duzentas rúpias, com

este ventre arriado?

FÉLIX FELIZARDO – É exatamente o que convém a uma viúva.

LEOCÁDIA – Bem. Mas o senhor me garante que ele goza de

boa saúde? (O elefante urina.) Ótimo. Isto prova que o elefante

funciona bem. Quinhentas rúpias.

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FÉLIX FELIZARDO – Quinhentas rúpias! Dou-lhe uma, dou-lhe

duas, dou-lhe três! Bem, Senhora Viúva, eu - o atual proprietário

do elefante - transfiro a minha propriedade para a senhora.

Agora, dê-me o cheque.

LEOCÁDIA – Seu nome?

FÉLIX FELIZARDO – Não posso dizê-lo.

LEOCÁDIA – Senhor Juca Malaquias, por favor, me empreste

uma caneta para eu poder passar o cheque para este senhor

que não deseja dizer o seu nome.

JUCA (À parte, para os soldados) – Quando ele pegar o

cheque: prendam-no.

LEOCÁDIA – Bem, eis aqui o seu cheque, ó homem que não

deseja dizer o seu nome.

FÉLIX FELIZARDO – E eis aqui o vosso elefante, Senhora

Viúva.

UM SOLDADO (Segurando Félix Felizardo pelo ombro) – O

que é que o senhor acaba de fazer? Pergunto-lhe em nome do

Exército Britânico!

FÉLIX FELIZARDO – Eu? Nada. (Ri bancando o ingênuo.).

O SOLDADO – Que elefante é este?

FÉLIX FELIZARDO – Qual? De que elefante o senhor está

falando?

O SOLDADO – Estou falando precisamente deste aí. Não tente

me enrolar, seu bosta fofa!

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FÉLIX FELIZARDO – Nunca vi este elefante na minha vida.

OS SOLDADOS – Oh!...

UM SOLDADO – Somos testemunhas que este senhor disse:

“eu sou o proprietário deste elefante”.

LEOCÁDIA – Chegou a dizer que o elefante lhe pertencia tanto

quanto os seus próprios pés.

FÉLIX FELIZARDO (Tentando ir embora) – Bem, lastimo

muito, mas tenho que ir para a minha casa. Minha mulher me

espera com impaciência. (Tenta passar entre o grupo de

soldados.) Voltarei para discutir o caso com vocês. Boa noite!

(Ao elefante que o segue.) Fique quieto, Billy, e não faça

nenhuma besteira!

JUCA – Alto! Apontem os revólveres para este bandido. (Chico

Saraiva, debaixo do elefante, estoura numa gargalhada.

Juca Malaquias dá-lhe um pontapé.) Quieto!

CHICO – Que merda! (Félix Felizardo, inteiramente tonto,

olha para Chico Saraiva, depois para cada uma das

pessoas. O elefante foge.).

LEOCÁDIA – Mas o que é isto? Não era um elefante de

verdade! Dei meu dinheiro por um elefante falso!

JUCA – Viúva Begbick: o criminoso vai ser amarrado

imediatamente numa corda e jogado numa latrina. (Os

soldados amarram Félix Felizardo e jogam-no numa latrina,

de modo que a cabeça fique visível. Ouve-se passar a

Artilharia.).

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LEOCÁDIA – Já estão embarcando a Artilharia. E a minha

cantina? Não é só esse homem que vocês precisam desmontar.

A minha cantina, também. (Os soldados começam a

desmontar a cantina. Antes de terminarem, Juca Malaquias

manda-os embora. Begbick vem com uma cesta cheia de

lonas sujas. Ajoelha-se numa pequena fossa e começa a

lavá-las. Félix Felizardo escuta-a cantar. Begbick cantando.)

Eu também já tive um nome / E era um nome conhecido / Todos

me diziam que tinha um nome honrado. / Mas numa noite

dessas / Sozinha entre amigos afoguei a solidão / Na manhã

seguinte, na minha porta, bem claro e com giz / Estava escrito

uma sentença: um palavrão. / O leiteiro cruzou ao largo, o

padeiro não trouxe o pão. / Uma noite e quatro copos / E lá se

foi a reputação. / Qualquer pano quando suja / Fica branco se é

lavado / Mas olhando contra o sol / Vê-se logo que é manchado.

/ (Fala.) Não repitas o teu nome com tanta certeza. Por quê?

Sempre será de um outro. E por que gritar aos quatro ventos as

tuas opiniões? Esquece! Elas sempre estão mudando. Não paga

a pena se preocupar com as coisas a não ser enquanto duram.

(Canta.) Não te esforces em reter / A onda que traz o mar. / Ali

mesmo, aos teus pés / Outras ondas, tantas outras, muitas

ondas vão morrer. /

Número 3

JUCA (Gritando) – E agora, o número três: o julgamento de um

homem que não queria dizer o seu nome. Formem um círculo

em torno do criminoso. Não vamos parar até que toda a verdade

seja esclarecida.

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FÉLIX FELIZARDO – Eu posso dizer uma palavra?

JUCA – Tu já falaste demais esta noite, meu caro amigo. Como

se chamava o homem que vendeu o elefante? Quem sabe?

UM SOLDADO – Félix Felizardo.

JUCA – Alguém será capaz de testemunhar isto?

OS SOLDADOS – Todos nós.

JUCA – Que diz a isto o acusado?

FÉLIX FELIZARDO – Eu digo que se tratava de alguém que não

queria dizer o seu nome. (Os soldados murmuram.).

UM SOLDADO – Ele disse que se chamava Félix Felizardo. Eu

ouvi bem.

JUCA – Félix Felizardo és tu?

FÉLIX FELIZARDO (Entre dentes) – Não. Não sou Félix

Felizardo.

JUCA – E, talvez, não estivesse presente quando colocaram o

elefante em leilão?

FÉLIX FELIZARDO – Não. Não estava presente.

JUCA – Quer dizer que quem fez a venda foi um homem

chamado Félix Felizardo?

FÉLIX FELIZARDO – Isto é possível. Posso testemunhar.

JUCA – Então tu estavas presente?

FÉLIX FELIZARDO – Se for necessário, posso até jurar.

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JUCA – Vocês escutaram? Ou estão vendo a lua? Ela está lá

fora, linda, e a gente, aqui dentro, resolvendo a sujeira desse

caso do elefante. Aliás, quanto ao elefante, ele nem, sequer,

parecia um elefante.

ARMANDO – É o mínimo que se pode dizer.

UM SOLDADO – O homem dizia que era um elefante. Mas o

bicho era de papel.

JUCA – Então, ele vendeu um elefante falso. E isto é passível

de pena de morte. Qual é a tua opinião?

FÉLIX FELIZARDO – Bem, um elefante de verdade, talvez, não

tivesse tomado o elefante em questão como um elefante

verdadeiro. Mas é muito difícil - senhores da Corte de Justiça -

ver claro num assunto tão confuso.

JUCA – Tens razão. Está tudo muito confuso. Mas eu acredito

que não existe outra saída: tu vais ser fuzilado, pois se trata do

único suspeito que possuímos. (Félix Felizardo cala-se.)

Escuta aqui: ouvi falar de um homem, que na revista das tropas,

respondeu como se o seu nome fosse Jeremias. No entanto,

esse mesmo homem, em outras ocasiões afirma que seu nome

é Félix Felizardo. Serás tu, por acaso, esse Jeremias?

FÉLIX FELIZARDO – Não.

JUCA – Não sabe responder. Então, deve se tratar de alguém

que não deseja que seu nome seja pronunciado. E é capaz de

ser o mesmo homem, que na venda do elefante, não quis que

seu nome fosse revelado. Não responde nada? O teu silêncio é

altamente comprometedor. Vale quase uma confissão de culpa.

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O cara que vendeu o elefante tinha uma barba: tu também tens

barba. Venham todos. Vamos deliberar. (Vai para o fundo da

cena com os soldados. Dois soldados vigiam Félix

Felizardo.) Agora, ele não quer mais ser Félix Felizardo.

FÉLIX FELIZARDO (Depois de uma pausa) – Vocês estão

ouvindo o que eles dizem?

UM SOLDADO – Não.

FÉLIX FELIZARDO – Será que estão dizendo que eu me chamo

Felizardo?

PRIMEIRO SOLDADO – Estão dizendo que não existe muita

certeza disto.

FÉLIX FELIZARDO – Não esqueça: um homem sozinho não

vale coisa nenhuma.

SEGUNDO SOLDADO – Já se sabe, por acaso, contra quem

vamos guerrear?

PRIMEIRO SOLDADO – Bem, depende do que precisarem: se

estiverem precisando de algodão, será contra o Tibete; mas se

precisarem de lã, então a guerra será contra o Pamir.

ARMANDO (Aproximando-se) – Meu Deus! Não é o Félix

Felizardo que está aí amarrado?

PRIMEIRO SOLDADO – Vamos, responde.

FÉLIX FELIZARDO – Tu deves estar me tomando por outra

pessoa, Armando. Olha bem pra mim.

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ARMANDO – Então tu não és Félix Felizardo. (Félix Felizardo

balança a cabeça negativamente.) Vão-se embora. Preciso

falar com este homem. Ele foi condenado à morte. (Os dois

soldados vão para o fundo da cena.).

FÉLIX FELIZARDO – Já decidiram? Armando: ajuda-me, tu és

um grande soldado.

ARMANDO – Mas como é que aconteceu isto?

FÉLIX FELIZARDO – Mas eu não sei de nada! Fumamos,

bebemos e conversamos tanto que eu já perdi o fio da história.

ARMANDO – Disseram-me que um homem chamado Félix

Felizardo devia morrer.

FÉLIX FELIZARDO – Não pode ser.

ARMANDO – De uma vez por todas, homem: você é ou não é

Félix Felizardo?

FÉLIX FELIZARDO – Armando, limpa o suor do meu rosto.

ARMANDO (Atendendo ao pedido) – Escuta. Olha bem nos

meus olhos. Aqui é Armando, teu amigo. Tu és ou não és Félix

Felizardo, de Kilkoa?

FÉLIX FELIZARDO – Não. Tu estás enganado.

ARMANDO – Nós éramos quatro quando chegamos de

Kannerdan. Será você o quarto homem?

FÉLIX FELIZARDO – Sim. Eu estava em Kannerdan com

vocês.

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ARMANDO (Voltando-se para os soldados no fundo da

cena) – A lua ainda não chegou ao meio do céu, e este homem

já quer se chamar de Jeremias.

JUCA – Está ótimo. Mas é melhor ameaçá-lo um pouco mais

com a pena de morte. (Ouve-se o ruído dos canhões

passarem rolando.).

LEOCÁDIA (Entrando) – Os canhões, Juca. Ajuda-me a dobrar

as lonas. Vamos. Vamos. Desmontem tudo. (Os soldados

levam as peças da cantina para o trem; só fica um tabique.

Juca Malaquias e a Viúva Begbick dobram as lonas da

cantina. Leocádia canta.) Já falei com muita gente, / E já ouvi

as mais diversas opiniões. / Muita gente disse de muita coisa:

isto é certo! / Ao virarem as costas, diziam exatamente o

contrário, / E dessa nova versão diziam também: isto é certo! /

Daí eu disse cá pra mim: de todas as coisas / A mais certa é a

dúvida! / (Juca Malaquias vai até o fundo da cena. Leocádia

com a cesta de lonas lavadas vai também para o fundo da

cena. Ao passar perto de Félix Felizardo, canta.) Não te

esforces em reter / A onda que traz o mar. / Ali mesmo, aos teus

pés / Outras ondas, tantas outras, muitas ondas vão morrer. /

FÉLIX FELIZARDO – Senhora viúva, por favor, pegue uma

tesoura e me corte esta barba.

LEOCÁDIA – Por quê?

FÉLIX FELIZARDO – Eu sei por quê. É o bastante. (Leocádia

corta-lhe a barba, guarda-a num pano e leva tudo para o

vagão. Os soldados voltam à cena.).

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Número 4

JUCA (Gritando) – Agora, o número quatro: execução de Félix

Felizardo no acampamento militar de Kilkoa!

LEOCÁDIA (Aproximando-se de Juca) – Senhor Juca

Malaquias: tenho aqui uma coisa para lhe entregar. (Ela

segreda com Juca Malaquias e lhe entrega o pano com a

barba.).

JUCA (Indo para a latrina onde está Félix Felizardo) –

Acusado: tem alguma coisa a declarar?

FÉLIX FELIZARDO – Senhores Membros da Corte: ouvi dizer

que o criminoso responsável pela venda do elefante tinha barba.

Eu não tenho.

JUCA (Mostra-lhe, sem uma palavra, a barba do pano; os

outros riem) – E isto o que é? Agora, meu amigo, tu te

desmascaraste por completo. Se tu cortaste a barba, é porque

pesava na consciência. Vem. Homem sem nome, escuta a

sentença: a Corte Marcial de Kilkoa te condena à morte. Serás

fuzilado! (Os soldados retiram Félix Felizardo do buraco.).

FÉLIX FELIZARDO – Não pode ser!

JUCA – É o que vai acontecer. Escuta bem: serás fuzilado por

apropriação indébita de um elefante das Forças Armadas e por

vender o que não te pertencia, o que, em outras palavras,

significa roubo. E mais: por ter vendido um elefante que não era

um elefante, o que é uma tremenda malandragem; e ainda por

não poder fornecer nenhum documento de identidade, o que

significa que podes ser um espião, acusado de alta traição.

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FÉLIX FELIZARDO – Juca: o que é que eu fiz para ser tratado

desta forma?

JUCA – Vem agora e porta-te como um bom soldado. Marcha!

Rumo ao Pelotão de Fuzilamento!

FÉLIX FELIZARDO – Não tão depressa assim. Eu não sou

aquele que vocês procuram. Eu me chamo Jeremias. Juro. Juro.

Juro. O que significa um elefante comparado à vida de um

homem? Eu não vi este elefante. Era um rolo de cordas que eu

tinha na mão. Por favor, não me matem! Eu não me chamo Félix

Felizardo, não! Não sou eu! Não sou eu!

ARMANDO – Você sabe muito bem que é Félix Felizardo. E vai

morrer debaixo de três seringueiras de Kilkoa. Vamos, Félix

Felizardo.

FÉLIX FELIZARDO – Ó meu Deus! Parem! É preciso lavrar os

autos da condenação! É preciso anotar nos autos todas as

minhas defesas, e, sobretudo, que eu não me chamo Félix

Felizardo. É preciso ponderar. Não se pode julgar assim com

tanta rapidez, quando se trata da vida de um homem!

ARMANDO – Marcha!

FÉLIX FELIZARDO – Mas como marchar? Eu não sou o

homem que vocês procuram! O que eu queria era comprar um

peixe, mas onde se encontram os peixes desta terra? Por que

os canhões estão troando? E por que essas fanfarras? Eu daqui

não arredo o pé. Finco meus pés no chão. Me agarro no capim.

Parem com isso! Será que não existe ninguém para impedir um

homem de ser morto?

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LEOCÁDIA – Se não liquidarem com isto até o embarque dos

elefantes, vocês vão entrar bem... (Ela sai. Félix Felizardo é

levado para o fundo da cena; ele grita como o protagonista

de uma tragédia.).

ARMANDO – Abram caminho para o condenado à morte!

OS SOLDADOS – Vejam esse aí: vai ser fuzilado. Talvez seja

uma pena matá-lo; é tão jovem ainda. E, coitado, nem mesmo

sabe como se meteu nessa embrulhada!

JUCA – Alto! Queres fazer pipi pela última vez?

FÉLIX FELIZARDO – Quero.

JUCA – Vigiem-no bem.

FÉLIX FELIZARDO – Ouvi dizer que deverão partir antes do

embarque dos elefantes. Então, eu devo agir o mais lentamente

possível, para dar tempo aos elefantes chegarem.

OS SOLDADOS – Depressa!

FÉLIX FELIZARDO – Não posso. É a lua?

OS SOLDADOS – É sim. Já é muito tarde.

FÉLIX FELIZARDO – Ali não é o bar da viúva, onde se passava

as noites a beber?

JUCA – Não, meu rapaz. Este é o lugar dos fuzilamentos, e ali é

o muro onde todo mundo se borra. Atenção! Formem o pelotão.

Carreguem as carabinas!

OS SOLDADOS – Não dá para enxergar nada.

JUCA – Está muito escuro, mesmo.

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FÉLIX FELIZARDO – Estão vendo? Não vai dar certo. Vocês

não vão poder atirar.

JUCA (Para Armando) – Pega uma lanterna lá dentro e coloca

ao lado dele. (Vendam os olhos de Félix Felizardo.)

Carreguem as armas! (Em voz baixa.) Mas o que é que tu estás

fazendo, Chico Saraiva? Metendo uma bala no cano? Tira essa

bala daí!

CHICO – Desculpa. Eu ia carregando a arma de verdade. Ia ser

uma desgraça! (Escutam-se os elefantes aproximando-se. Os

soldados ficam, um momento, petrificados.).

LEOCÁDIA (Detrás do palco) – Os elefantes estão chegando!

JUCA – Tanto faz. Ele deve ser fuzilado. Vou contar até três.

Um...

FÉLIX FELIZARDO – Agora, vamos parar com isso, Juca. Além

do mais, os elefantes já chegaram. Ainda preciso ficar aqui,

imóvel? Mas o que é que vocês têm que não dizem nada?

JUCA – Dois...

FÉLIX FELIZARDO – Você é engraçado, Juca. Não posso ver

nada, porque estou com esta venda nos olhos. Dá até para

acreditar que tudo isto é verdade...

JUCA – Dois mais um fazem...

FÉLIX FELIZARDO – Pare! Não diz três, senão tu vais morrer

de remorso! Se vocês atirarem, vão me matar! Alto! Ainda não.

Escutem-me! Eu confesso! Confesso que não sei o que me

aconteceu. Vocês têm que me acreditar! Não riam, mas eu sou

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alguém que não sabe quem é! Mas sei de uma coisa: não sou

Félix Felizardo. Sei também que não devo ser fuzilado. Então

quem sou? Isto eu esqueci: ontem de noite, quando chovia,

ainda me lembrava. Chovia muito, ontem, não foi? Suplico que

olhem em torno de vocês, e escutem essa voz que é minha.

Suplico, dêem a essa voz o nome que quiserem, até mesmo de

Félix Felizardo, mas tenham piedade! Dêem-me um pedaço de

carne! Se vocês encontrarem alguém que esqueceu quem é,

este alguém sou eu. Deixem-me fugir, pelo amor de Deus! (Juca

Malaquias diz alguma coisa ao ouvido de Chico Saraiva. Ele

corre para Félix Felizardo e levanta um grosso cacete sobre

a sua cabeça.).

JUCA – Três! (Félix Felizardo dá um grito.) Fogo! (Félix

Felizardo desmaia, pois Chico Saraiva bateu com o cacete

em sua cabeça.) Atirem! Ele precisa acreditar que morreu! (Os

soldados atiram para o alto.) Deixem-no deitado aí. Preparem-

se para o embarque. (Félix Felizardo fica deitado. Todos os

outros saem.).

Número 4A

Diante da cantina encaixotada, a Viúva Begbick e os três

soldados estão sentados em volta de uma mesa. Félix

Felizardo está ao lado, coberto por um saco.

ARMANDO – Ih, o Sargento está chegando. Será que a senhora

poderia impedi-lo de meter o nariz em nossos negócios, Viúva

Begbick? (Vê-se Caralinda aproximar-se. Está a paisano.).

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LEOCÁDIA – Ele está a paisano. (Para Caralinda, que parou à

distância.) Te senta aí com a gente, Charles!

CARALINDA – Estás aí, minha Gomorra precoce? (Diante de

Félix Felizardo.) Ué! Servindo formicida? (Pausa. Dá um soco

na mesa.) Sentido! (Gargalhadas.) Que vergonha! Filhos de

uma mãe! Esculachando a minha beca! Em que se transforma o

meu nome, que é famoso desde Calcutá até Cooch-Behar? Eu,

um grande herói! E o meu passado glorioso, onde fica? Deixo de

usar o uniforme e ponho na cabeça um chapéu coco, e logo,

todo mundo no Exército deixará de me chamar de Cinco de

Sangue. (Bebe.) Mas esperem eu acabar a minha cerveja, que

os esmagarei como se fossem um punhado de piolhos.

JUCA – Meu caro Sargento Charles Caralinda: dê-nos uma

demonstração do vosso talento de atirador!

CARALINDA – Não!

LEOCÁDIA – Só uma mulher, em dez, seria capaz de resistir a

um atirador de verdade!

CHICO – Vamos, Caralinda, atira!

LEOCÁDIA – Faça isto por mim!

CARALINDA – Ai, Babilônia! Vou colocar um ovo ali. A quantos

passos de distância vocês querem que eu atire?

CHICO – Quatro.

CARALINDA (Recua dez passos, enquanto a Viúva Begbick

conta em voz alta) – E com uma pistola comum do Exército!

(Atira.).

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ARMANDO (Indo ver o ovo) – O ovo está inteirinho!

CHICO – Sem nenhum arranhão!

JUCA – Até engordou um pouco!

CARALINDA – Ora vejam! E eu estava certo que ia esmigalhá-

lo. (Gargalhadas.) Quero bebida! Ainda hei de mostrar a todos

porque me chamam o Cinco de Sangue!

JUCA – Foi só para aparecer!

CARALINDA – Devo contar Viúva Begbick?

LEOCÁDIA – Só uma mulher entre sete seria capaz de resistir a

um homem selvagem e sanguinário!

CARALINDA – Bem. Vamos fazer de conta que aqui é o Rio

Tchadsé. Ali estão cinco hindus. As mãos amarradas para trás.

Então, eu apareço com a minha pistola, balanço o cano na cara

deles e digo: “esta pistola já negou fogo várias vezes. Vou

experimentá-la para ver se está em ordem”. Aí, atirei. Cinco

vezes. Pronto, meus senhores. Foi assim que me batizaram de

Cinco de Sangue. (Senta-se.).

ARMANDO – Então foi dessa maneira que o senhor conquistou

a fama que deixou esta Viúva gamada? Partindo-se de um

ponto de vista humano, sua conduta deixa muito a desejar, e a

gente poderia até lhe chamar de um bom crápula!

LEOCÁDIA – Então, o senhor é um monstro?

CARALINDA – Lastimaria muito que a senhora encarasse o

caso desta maneira. Sua opinião me importa bastante!

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LEOCÁDIA – As minhas palavras valem mais do que a dos

outros?

CARALINDA (Olhando-a profundamente nos olhos) –

Exatamente!

LEOCÁDIA – Bem, meu caro, o que tenho a dizer é o seguinte:

eu preciso embarcar minha cantina, e não posso perder mais

nem um minuto com problemas particulares. (Ouve-se o galope

dos Lanceiros.).

CHICO – O senhor pretende insistir nas suas investidas

amorosas, quando os Lanceiros e seus cavalos estão chegando

na estação e quando ordens superiores ordenam que a cantina

deve ser embarcada?

CARALINDA (Com um rugido) – Perfeitamente. Insisto! Quero

mais bebida!

CHICO – Neste caso, vamos ajustar logo as contas com o

senhor!

ARMANDO – A alguns passos daqui, está estendido, um

homem vestido com o uniforme do Exército Britânico. Está

repousando dos rudes trabalhos que teve que executar durante

o dia. Há vinte e quatro horas, ele ainda engatinhava,

militarmente falando. A voz da esposa fazia-o tremer. Sozinho,

ele era incapaz de comprar um peixe. Por um charuto, esquecia

o nome do próprio pai. Algumas pessoas interessam-se pelo seu

destino e resolveram oferecer-lhe um emprego. Depois de um

processo lento e doloroso, ele se transformou num homem de

verdade, um homem que saberá ocupar o seu lugar nos

combates que virão. O senhor tomou o caminho inverso, e

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transformou-se num civil. Na hora em que o Exército se desloca

para pacificar as fronteiras do Norte, tarefa para a qual a cerveja

é necessária, o senhor vem impedir a cantineira de providenciar

o embarque da sua cantina e da sua benéfica cerveja.

CHICO – Como é que o senhor vai poder ouvir os nossos

nomes na hora da revista? E como vai poder escrevê-los na sua

caderneta?

JUCA – E como vai poder se apresentar nesse estado, diante

da Companhia que está ansiosa para enfrentar seus

inumeráveis inimigos? Sentido! (Caralinda levanta-se

cambaleando.).

CHICO – Isto é ficar em posição de sentido? (Dá um pontapé

na bunda de Caralinda, para o fundo.).

UM SOLDADO (Vem correndo e fica parado no fundo) – O

Sargento Charles está aqui? Ele deve ir depressa reunir a sua

Companhia na Plataforma de Carga.

CARALINDA – Não digas que sou eu.

ARMANDO – Não. Aqui não tem nenhum Sargento.

Número 5

A Viúva Begbick e os três soldados contemplam Félix

Felizardo, que continua deitado debaixo do saco de lona.

JUCA – Viúva Begbick: o fim de nossa operação se aproxima.

Acredito que o nosso homem já está totalmente transformado.

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CHICO – O que ela precisa agora é de calor humano.

ARMANDO – A senhora terá por acaso o calor humano de que

ele precisa?

LEOCÁDIA – Sim, e também alguma coisa para ele comer.

Segura esse caixote aí e escreve: Félix Felizardo; no outro lado

uma cruz. (Os soldados obedecem.) Agora façam um cortejo

fúnebre e enterrem-no. Tudo isto não pode levar mais que nove

minutos. Já passa um minuto das duas horas.

JUCA (Gritando) – E agora o número cinco: enterro e elogio

fúnebre de Félix Felizardo, o último homem de personalidade.

(Os soldados entram amontoando as mochilas.) Segurem

esse caixão e formem um lindo cortejo fúnebre. (Os soldados

alinham-se, no fundo da cena, em cortejo, conduzindo o

caixão.).

ARMANDO – E eu chego e digo: “tu vais pronunciar o discurso

em memória do Felizardo”. (Para Leocádia.) Ele não vai comer

nada!

LEOCÁDIA – Gente desse tipo come até debaixo da terra! (Ela

aproxima-se de Félix Felizardo. Descobre-o e lhe entrega

comida.).

FÉLIX FELIZARDO – Mais! (Ela lhe entrega mais comida;

depois faz um sinal para Juca Malaquias e o cortejo fúnebre

avança.) De quem é aquele enterro?

LEOCÁDIA – De alguém que foi fuzilado agora mesmo.

FÉLIX FELIZARDO – Como se chamava?

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LEOCÁDIA – Se não me engano, era conhecido como Félix

Felizardo.

FÉLIX FELIZARDO – E o que vão fazer agora?

LEOCÁDIA – Com quem?

FÉLIX FELIZARDO – Com esse tal Felizardo.

LEOCÁDIA – Enterrá-lo.

FÉLIX FELIZARDO – Era um homem bom, eu era um homem

ruim?

LEOCÁDIA – Era um homem perigoso.

FÉLIX FELIZARDO – Claro... Se foi fuzilado... Eu estava

presente. (O cortejo fúnebre continua o seu caminho.

Armando pára e dirige-se a Félix Felizardo.).

ARMANDO – Veja só quem está aí! Jeremias! Depressa. É

preciso que tu pronuncies a oração fúnebre em memória desse

tal de Felizardo. Tu o conhecias melhor do que todos nós: não é

verdade?

FÉLIX FELIZARDO – Ei, vocês estão me vendo mesmo aqui

onde eu estou? (Armando aponta para ele.) O que é que eu

estou fazendo agora? (Dobra o braço.).

ARMANDO – Tu estás dobrando o braço. (Félix Felizardo

desdobra o braço.).

FÉLIX FELIZARDO – Já dobrei duas vezes. E agora?

ARMANDO – Agora tu marchas como um soldado.

FÉLIX FELIZARDO – Vocês também marcham assim?

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ARMANDO – E xatamente.

FÉLIX FELIZARDO – Se tu precisares de alguma coisa de mim,

como vais me chamar?

ARMANDO – Jeremias!

FÉLIX FELIZARDO – Vamos experimentar. Ordena: Jeremias!

Dá uma volta!

ARMANDO – Jeremias: dá uma volta! Caminha até debaixo das

seringueiras e reza uma oração fúnebre em memória do

Felizardo.

FÉLIX FELIZARDO (Vai lentamente até o caixão) – Ele está aí

dentro? (Anda em volta dos que seguram o caixão. Anda

cada vez mais depressa e faz menção de fugir. A viúva

Begbick impede-o.).

LEOCÁDIA – Mas o que é que há? Não estás te sentindo bem?

Toma um pouco do óleo de rícino. É o remédio que o Exército

aconselha para todas as doenças. As doenças que não são

curáveis com óleo de rícino, nunca atingem um militar. Tu

queres um pouco?

FÉLIX FELIZARDO (Balança a cabeça negativamente.

Cantando) – Minha mãe marcou na folhinha / O dia em que

nasci. / O menino que berrava era eu. / Esse amontoado de

cabelos, unhas e carne, / Sou eu, sou eu.

ARMANDO – Sim, Jeremias Lucas! Jeremias Lucas da cidade

de Tiperary.

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FÉLIX FELIZARDO – Um homem que carregava pepinos para

ganhar algum dinheiro, foi enganado por um elefante. Esse

homem teve que dormir numa cadeira, enquanto o tempo

passava e na sua casa fervia a água no fogão à espera de um

peixe que nunca chegou. Como os metralhadores ainda não

estivessem preparados, lhe deram de presente charutos para

entretê-lo e depois o castigaram com cinco tiros, aliás, um

falhou. Qual era o nome dele?

JUCA – Jeremias. Jeremias Lucas. (Ouve-se o apito de

trens.).

OS SOLDADOS – Os trens já estão apitando. Se arranjem

sozinhos. (Abandonam o caixão e saem correndo.).

ARMANDO – O comboio parte dentro de seis minutos. É preciso

que ele embarque, de qualquer jeito.

JUCA – Escutem! Olha, Armando! Nós não somos mais do que

três retardatários e já que o fio que nos impede de desabar

sobre o abismo está meio partido, ouçam o que vou dizer;

defronte ao último muro de Kilkoa, às duas horas da manhã.

Temos que conceder ainda um pouco de tempo ao homem que

nos é necessário, já que ele está se transformando para toda a

eternidade. Por isto, eu, Juca Malaquias, aponto meu revólver

para matar quem se mover.

CHICO – Mas se ele olhar para dentro do caixão está tudo

perdido. (Félix Felizardo senta-se perto do caixão.).

FÉLIX FELIZARDO - Eu morreria também um pouco / Se visse

neste caixão o rosto único e determinado / De um homem que

cheguei a conhecer. / Eis por que não posso abrir esta caixa. /

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Talvez eu seja aquele que acaba de nascer. / Solto, nesta terra

de mudanças entre seringueiras / E choças, sem cordão

umbilical, procurando terra firme / E eu, ambos com o mesmo

medo. / Um homem não é nada até que lhe ponham um nome. /

No entanto eu gostaria de olhar para esta caixa / Porque nosso

coração fica ligado àquele que nos fez nascer. / Uma floresta

existe, / Se ninguém passar por ela? / E para esse alguém que

passar por ela, / Conferindo-lhe a existência, / Deixará suas

pegadas para ser reconhecido? / E como ter certeza que esse

alguém passou mesmo, / Se depois vier a água / E apagar a

marca de seus passos? / O que é que vocês acham? / Quem

poderá garantir a Félix Felizardo / Que ele é mesmo Félix

Felizardo? / Se lhe arrancarem um braço, / E o colocarem na

fenda de um muro, / O olho de Félix Felizardo poderá

reconhecer o braço? / E o pé de Félix Felizardo poderá gritar: é

o braço de Félix Felizardo! / Não, não vou olhar para dentro do

caixão. / Além do mais, para mim, é tão pequena / A diferença

entre o sim e o não. / E se Félix Felizardo não fosse Félix

Felizardo, / Ele seria o filho pau d’água de uma mãe, / Que seria

a mãe de outro, / Se ela não fosse a dele? E ele continuaria / A

ser o mesmo pau d’água? / E se ele fosse concebido em março

em lugar de setembro, / Sem levar em conta que poderia ter

sido concebido / Em lugar de março, no setembro do mesmo

ano / Ou do ano anterior... / Por que a diferença de um ano,

somente um ano, / Pode transformar um homem em outro

homem? / Por isto, eu, os meus dois eus, / Somos usados e,

portanto são úteis. / E da mesma maneira que não olhei

detidamente o elefante, / Não tenho porque olhar detidamente

para dentro de mim mesmo. / Me desfaço das coisas que não

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convêm. / E sou feliz. / (Ouvem-se os trens partindo.) Para

onde partem estes trens?

LEOCÁDIA – Cem mil homens marcham juntos e na mesma

direção: do Sul para o Norte. Quando um homem é arrastado

por tal correnteza, procura ficar ao lado de dois outros homens,

um à direita, outro, à esquerda. E trata também de arranjar um

fuzil, uma mochila, uma placa de identidade, com um número

para que se saiba a que Unidade pertence se for encontrado

morto. Dessa forma escapará da vala comum. Tu já tens a tua

placa de identificação?

FÉLIX FELIZARDO – Já.

LEOCÁDIA – E o que é que está escrito nela?

FÉLIX FELIZARDO – Jeremias Lucas.

LOCÁDIA – Vai te lavar. Pareces um porco!

FÉLIX FELIZARDO – E quem é o inimigo?

LEOCÁDIA – Ninguém sabe.

FÉLIX FELIZARDO – A senhora sabe de uma coisa? Um

homem não vale nada até que lhe dêem um nome. (Os

soldados entram com mochilas.).

OS SOLDADOS – Todos para o trem! A Unidade está completa,

ou falta alguém?

JUCA – Já vamos. E agora, camarada Jeremias, o discurso em

memória de Felizardo.

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FÉLIX FELIZARDO (Girando em volta do caixão) – Levem

este caixão, que tem um corpo misterioso dentro, e depois o

enterrem nesta terra de Kilkoa. E ouçam as palavras

pronunciadas de improviso por Jeremias Lucas. Aqui jaz Félix

Felizardo, um homem que foi fuzilado. Certa manhã, ele saiu de

casa para comprar um pequeno peixe, e na noite do mesmo dia,

ele era dono de um elefante, e nesta mesma noite, foi fuzilado.

E, digam o que disserem, foi um pequeno equívoco o que

aconteceu. Além do mais estava embriagado. Refrescou: como

acontece sempre de madrugada, e acho melhor a gente ir

embora. (Afastando-se do esquife.) Mas por que estão todos

equipados?

CHICO – Embarcamos esta manhã, para a fronteira do Norte.

FÉLIX FELIZARDO – E o meu equipamento, onde está?

CHICO – Um equipamento completo para o nosso quarto

homem! (Passam soldados, arrastando uma trouxa

envolvida em esteiras.).

JUCA – Demorou, mas este cachorro levou o que merecia!

(Apontando a trouxa.) E chamavam isto de Cinco de Sangue,

Tigre de Kilkoa, Furacão Humano! (Saem.).

Cena 10 – NO VAGÃO

ARMANDO – Eta, mundo horrível! Não se pode confiar em mais

ninguém!

CHICO – O homem é, de todas as criaturas, a mais reles e a

mais fraca.

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ARMANDO – Já comemos poeira de todas as estradas que o

sol tem visto. E por onde fomos só encontramos traição e mais

traição. Esse cara nem bem sabe fazer continência e já está

levando os nossos cobertores. E a gente que se estrepe!

Confesso que não sei mais o que fazer. Vamos pedir à Viúva

Begbick que se deite com ele, para ver se ele fica satisfeito.

(Dirigem-se para a Viúva Begbick.) Leocádia: nós estamos

caindo de sono e temos medo de não poder cuidar do nosso

doente. Te deita aí para ver se ele sossega.

LEOCÁDIA (Entra sonolenta) – Em troca vocês me dão o

soldo da semana!

JUCA – Combinado. (Leocádia deita-se ao lado de Félix

Felizardo. Armando se cobre com um jornal.).

FÉLIX FELIZARDO (Acorda) – O que é que está sacolejando?

JUCA (Para os outros) – É um elefante, seu enchedor de saco!

FÉLIX FELIZARDO – E este assovio?

JUCA (Para os outros) – É o peixe fritando!

FÉLIX FELIZARDO (Levantando-se com esforço e olhando

pela janela) – Uma mulher, sacos de dormir, postes

telegráficos: é um trem!

ARMANDO – Todos dormindo! (Os três fingem dormir.).

FÉLIX FELIZARDO (Acordando um soldado) – Ei!...

SOLDADO – Que é?

FÉLIX FELIZARDO – Para onde vão vocês?

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UM SOLDADO (Abrindo um olho) – Pra frente! (Continua a

dormir.).

FÉLIX FELIZARDO – São soldados. (Acorda outro, depois de

ter olhado para fora da janela.) Que horas são? Que dia é

hoje?

UM SOLDADO – Nem quinta nem sexta. Muito antes pelo

contrário.

FÉLIX FELIZARDO – Preciso desembarcar.

SOLDADO – Pula a janela!

FÉLIX FELIZARDO – Se o trem não parar e todos continuarem

dormindo, eu também vou dormir, até que resolva parar. (Vê a

Viúva Begbick.) Uma mulher!

ARMANDO – Bom dia, camarada.

FÉLIX FELIZARDO – Que prazer encontrar o senhor.

ARMANDO – Mas tu, hein? Deitado com uma mulher aqui na

frente de todo mundo.

FÉLIX FELIZARDO – Ninguém é senhor de si. Acordo e

encontro uma mulher ao meu lado.

ARMANDO – Pois é.

FÉLIX FELIZARDO – O senhor acredita que, às vezes, eu não

sei o nome da mulher que dormiu comigo. De homem para

homem, senhor Armando, a verdade é que eu não conheço

essa mulher. Quem é?

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ARMANDO – Seu fanfarrão! Então não conhece tua amiga, a

Viúva Begbick? É preciso refrescar esta cachola! Vai ver que

esqueceste o teu nome também?

FÉLIX FELIZARDO – Não.

ARMANDO – Qual é? (Felix Felizardo fica em silêncio.) Sabe

ou não sabe?

FÉLIX FELIZARDO – Sei.

ARMANDO – Ótimo. Quando vai para a guerra, um homem

deve saber quem é.

FÉLIX FELIZARDO – Guerra?

ARMANDO – Contra o Tibete.

FÉLIX FELIZARDO – Se alguém não se lembrasse do próprio

nome por um instante, seria estranho, não é? Sempre quis

conhecer o Tibete. A esposa de um amigo me dizia que o povo

de lá é tudo boa gente.

LEOCÁDIA – Jeremias...

FÉLIX FELIZARDO – Quem?

ARMANDO – Quer me parecer que é contigo.

FÉLIX FELIZARDO – Aqui.

LEOCÁDIA – Benzinho: me dá um beijo?

FÉLIX FELIZARDO – Com prazer. Só acho que a senhora está

me confundindo com outro.

LEOCÁDIA – Jeremias!...

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ARMANDO – O cara não anda bem. Diz que não te conhece.

LOCÁDIA – E agora este vexame.

FÉLIX FELIZARDO – Vou enfiar a cabeça nesta bacia com

água e tudo ficará claro. (Enfia a cabeça na bacia.).

LEOCÁDIA – Me reconheces agora?

FÉLIX FELIZARDO (Mente) – Sim.

CHICO – Então já sabes também o teu nome?

FÉLIX FELIZARDO (Manhoso) – Quem é que disse que eu não

sabia?

CHICO – Parecias um louco querendo ser o que não eras.

FÉLIX FELIZARDO – Eu não sabia quem era?

ARMANDO – Parece que não melhoraste. É preciso cuidado

contigo. Ontem à noite quando a gente te chamava pelo nome

verdadeiro ficavas uma fera.

FÉLIX FELIZARDO – Eu só sei que me chamo Félix Felizardo.

ARMANDO – Tudo de novo! É melhor chamá-lo de Félix

Felizardo se não quiser comprar briga.

CARALINDA – Ó desgraça das desgraças! Que será do meu

nome? Me atiraram no vagão como se joga um animal no

matadouro. Me taparam a boca com um chapéu de civil.

Estraçalho este trem. Rasgo estes vagões. Vai ser uma limpeza.

FÉLIX FELIZARDO – Também lhe aconteceu alguma coisa com

o nome?

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CARALINDA – Tu vais ser o primeiro. Uma limpeza. Hoje

mesmo espatifo os covardes e os corajosos! (Vê Leocádia

sentada e sorrindo.) Tu ainda estás aí, Gomorra? O que é feito

do meu nome? E esta roupa? Achas que me assenta?

LEOCÁDIA – Queres dormir comigo?

CARALINDA – Vai embora! Os olhos da nação convergem

sobre este herói. O Cinco de Sangue. O Tigre de Kilkoa, o

Furacão Humano. Das páginas dos livros em letras de ouro,

para a história e a eternidade.

LEOCÁDIA – Se não quiseres, não vem.

CARALINDA – Ah, mulher, sentada assim, me atiças e me pões

o sangue a queimar as veias e os poros.

LEOCÁDIA – Corta alguns fora!

CARALINDA – Não repete! (Sai.).

FÉLIX FELIZARDO (Á Caralinda) – Um nome é coisa tão

incerta. Não paga a pena aborrecer-se!

CARALINDA (Voz fora) – Vai ser uma limpeza! Uma corda. Um

revólver. Uma solução: insubordinados levarão chumbo! Charlie:

te prepara! E não terei mais que gastar um centavo com as

mulheres. Com responsabilidade e sem sequer apagar o

cachimbo. Tem de ser, para ressuscitar o Cinco de Sangue.

Fogo! (Ouve-se um tiro.).

FÉLIX FELIZARDO – Este senhor acaba de dar um tiro, para

salvar seu nome. Um tiro em sua semente. Agora eu percebo

em que dá tamanha teimosia e a idiotice de quem anda

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descontente por causa do nome. (Corre para junto de

Leocádia.) E não julgues que eu não te conheço.

LEOCÁDIA – E tu sabes quem és?

FÉLIX FELIZARDO – Jeremias Lucas!

JUCA – Canhões! Chegamos!

Cena XI – NO TIBETE

Diante da fortaleza de Sir El Dchowr. Jeremias Lucas espera

- sentado sobre um monte - por entre o troar dos canhões.

VOZES (Vindas de baixo) – O caminho acaba aqui. Aquela é a

fortaleza de Sir El Dechovre que está barrando a passagem.

FÉLIX FELIZARDO (Por detrás do monte) – Vamos! Vamos!

Senão chegamos atrasados! (Surge transportando um canhão

sem cano.) Pra fora do vagão, pra dentro da chacina!

JEREMIAS – O senhor não viu, por acaso, uma esquadra de

metralhadoras com somente três homens?

FÉLIX FELIZARDO (Sem se deter, como uma máquina de

guerra) – Olha: isto nem é possível, senhor soldado. A nossa

esquadra, por exemplo, tem quatro homens. Um à direita, outro

à esquerda e outro atrás.

LEOCÁDIA (Surge com o cano do canhão às costas) – Não

tão depressa. Tens mais fôlego que um touro. (Surgem três

soldados arrastando as metralhadoras.).

Page 89: UM HOMEM É UM HOMEM - ieacen.files.wordpress.com · Eu estou com uma fome danada e em dez minutos estarei de volta. ... olha através do buraco e inicia a pesca.). CHICO – Conseguiu

JEREMIAS – Ei, Juca! Armando! Chico Saraiva! Eu voltei! (Os

três soldados fazem de conta que não o vêem.).

ARMANDO – Precisamos armar as metralhadoras.

JUCA – O barulho dos canhões é tão grande, que a gente nem

escuta a própria voz.

CHICO – Uma pontaria caprichada na fortaleza.

FÉLIX FELIZARDO – Quero ser o primeiro a atirar. O obstáculo

à nossa frente tem de ruir. Os homens devem estar impacientes

e eu sinto o desejo de cravar os dentes na nuca do inimigo.

(Arma o canhão ajudado por Leocádia.).

JEREMIAS – Salve companheiros! Tudo bem? Uns

contratempos me prenderam pelo caminho. Ninguém ficou

chateado? Que bom estarmos juntos. Por que não dizem nada?

CHICO – Podemos ser-lhe útil em alguma coisa? (Oferece um

prato de arroz para Felizardo.) Come a tua porção que a

batalha já vai começar!

FÉLIX FELIZARDO (Come) – Primeiro o arroz e depois um

uisquezinho. E eu, enquanto encho a barriga, vou dando uma

olhada na fortaleza para estudar os pontos fracos.

JEREMIAS – Mudaste de voz, Chico Saraiva, mas as tuas

brincadeiras não mudaram.

JUCA – Olha amigo: errou de porta. Será que não desconfia?

CHICO – Nem o conhecemos.

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ARMANDO – É bem possível que a gente tenha se encontrado

por aí. Mas o Exército tem homens aos milhares.

FÉLIX FELIZARDO – Tem mais comida?

JEREMIAS – Vocês nem parecem os mesmos.

JUCA – A vida aqui é assim.

JEREMIAS – Eu sou o Lucas.

FÉLIX FELIZARDO – Mais! A batalha abre o apetite e esta

fortaleza é um ótimo prato. (Chico Saraiva serve pela terceira

vez.).

JEREMIAS – E esse cara comendo toda a ração, quem é?

JUCA – Não é da sua conta.

ARMANDO – O nosso Jeremias nunca nos teria denunciado, ou

abandonado ou se atrasado com contratempos. Por isso o

senhor não pode ser o nosso Jeremias.

JEREMIAS – Sou eu! É claro que sou!

FÉLIX FELIZARDO (Aproxima-se de Lucas com o último

prato) – Calma! (Para os outros.) Não regula bem. (Para

Lucas.) O senhor passou muito tempo sem comer? Quer água?

(Para os outros.) Ele não sabe quem é. (Para Jeremias

Lucas.) O senhor precisa de um passe para poder andar por aí.

Chico Saraiva: vai até a caixa do canhão e pega o passe do

Felizardo, aquele sujeito que tantas vezes vos fez rir às minhas

custas. (Chico Saraiva corre.) Um sujeito como eu, provindo de

cidades onde se espreitam os incautos e os ingênuos, sabe

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como é bom ter assentado, preto no branco, um nome. Sempre

há alguém querendo tirar proveito. (Entrega o passe.) Toma.

JEREMIAS – Tu és o único que presta.

FÉLIX FELIZARDO – Bem, para poupar os ouvidos dessas

lamúrias, vou acionar o canhão. Como é que se começa

Leocádia?

JEREMIAS – Patifes! Hão de marchar até o fim do mundo e

voltar pelo mesmo caminho. E o diabo que lhes ensinou a lição

baterá às portas na cara. E toca a marchar ao sol pelos desertos

e à noite pelas planícies onduladas e verdes, só porque

abandonaram um companheiro. (Os três silenciam.).

FÉLIX FELIZARDO – Vamos lá. Cinco tiros bastam. (Dispara o

primeiro tiro.).

LEOCÁDIA (Fumando um charuto) – Tu és da raça dos

grandes soldados que faziam o inimigo se borrar. Cinco deles

bastavam para deixar uma mulher em apuros. (Dispara o

segundo tiro.) E tenho testemunhas de que nas grandes

batalhas não eram os piores homens que se lembravam dos

meus beijos. Por uma noite com a Viúva juntavam os tostões do

soldo um a um. E eram nomes como o de Gengis-Khan.

(Dispara o terceiro tiro.) Um abraço da querida Begbick os

deixava animados. Leiam na Times a calma com que lutavam.

(Dispara o quarto tiro.).

FÉLIX FELIZARDO – Aquele monte, de monte só tem o nome!

(Começa a sair fumaça da fortaleza.).

CHICO – Olhem! (Caralinda entra.).

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FÉLIX FELIZARDO – Meu Deus! Senti o gosto do sangue!

CARALINDA – Que palhaçada é esta? Queres levar o país todo

pelos ares? Vêem a minha mão? Firme. (Aponta o revólver

para Felizardo.) Não treme absolutamente nada! Vai ser uma

limpeza. Olha a luz do dia pela última vez.

FÉLIX FELIZARDO (Afadigado, dispara) – Só mais um. (Do

desfiladeiro eleva-se um clamor de júbilo. Caiu a fortaleza.).

CARALINDA – Ah! O ruído das tropas em marcha; a que estou

acostumado. (Para Felizardo.) Quem és?

VOZES DE SOLDADOS – Quem foi?

FÉLIX FELIZARDO – Sou eu. Jeremias Lucas. (A fortaleza

começa a queimar. Sai um clamor distante e multiforme.).

VOZ DISTANTE – Está em chamas a fortaleza, abrigo para sete

mil habitantes. Lavradores, operários e comerciantes. Gente

trabalhadora e pacífica.

FÉLIX FELIZARDO – Mas que tenho eu com isso? Gritos e

mais gritos. E eu ansioso por cravar os dentes no pescoço do

inimigo, de privar os filhos do alimento, de cumprir a missão dos

vencedores. Passem para cá as placas! (Os outros estendem

as placas.).

CHICO – Chico Saraiva.

ARMANDO – Armando Mueller.

JUCA – Juca Malaquias.

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FÉLIX FELIZARDO – Jeremias Lucas. Mexam-se.

Atravessaremos a fronteira. (Saem os quatro.).

FIM