Um Ou Mais Graus de Separação

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Fui impulsionada quando menos esperava. O momento de incerteza transformou-se em realidade aumentada. Era preciso ocupar corpo e mente em algo que fosse produtivo.

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Um ou mais graus de separação

histórias de quem escreve por aí

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ORGANIZAÇÃO E PROJETO GRÁFICOIzadora Pimenta

CAPAMarlon Rosa Ricardo

REVISADO COM UMA AJUDINHA DOS AMIGOSAmauri Ter to, Fernando Galassi, Daniel Corrêa, Mariana Rosa, Ivan Perina, Allan Nucci e Ana Clara Matta.

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09 - Prefácio -> 15 - Júlia -> 17 - Camila -> 18- Daniel -> 20 - Lubis -> 22 - Allan -> 23 - Túlio -> 27- Izadora -> 31 - Mariana -> 33 - Fernando -> 35 - Amauri -> 37 - Ana Clara -> 38- Luiza -> 40 - Vinícius - > 41 - Guilherme -> 43- Marcos -> 44 - Aline -> 45 - Carol -> 47 - Jéssica -> 48 - L.C. -> 50 - Renata -> 52 - Ivan -> 54 - Carolina -> 56 - Bruna -> 59 - Marília -> 61 - Marina -> 62 - Lucas -> 63- Thiago -> 68 - Gustavo ->

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Prefácio

// Zero grau de separação

Fui impulsionada quando menos esperava. O momento de incerteza transformou-se em realidade aumentada. Era preciso ocupar corpo e mente em algo que fosse produtivo. Sempre quis escrever um livro. Sempre não: a primeira lembrança que tenho desta vontade data da minha quinta série. Cheguei a mostrar um trecho de algo que escrevi para a professora de Português e ela me fez ler em frente a toda a sala - algo que me deixa um tanto quanto embaraçada até os dias de hoje. Aquele texto não foi pra frente (nem deveria).Só que há vários e vários cadernos lotados de histórias e trechos inacabados em casa. Mas eles nunca saíram de sua zona de conforto, seu mundo micro. E, por saber e imaginar, tinha a certeza de que muitos amigos passavam pelo mesmo dilema. Se não eles, os amigos deles.Observava também meu colega de trabalho Vinícius Gandolphi (que está neste livro) publicando seus poemas diários em sua linha do tempo do Facebook e a vontade de despertar meus amigos escritores só crescia. Então comecei tímida. Assegurei-me nas aulas de Planejamento Gráf ico da faculdade e botei na cabeça de que tinha a capacidade para diagramar um e-book

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completo, mesmo que não tivesse lá muita paciência para contar centímetros. Logo comecei a convidar amigos, anunciei nas redes sociais e, quando vi, meu projeto já era destaque no site laboratório dos alunos do quarto ano. Depois, eu e o Vinícius concedemos uma entrevista para a Rádio CBN - daí foi quando assinei o compromisso de fato.Encarei as réguas e regras do InDesign CS6. Resolvi procurar por uma fonte sem serifa (mais leve para a leitura na tela do computador, dizem os professores desde o primeiro ano) que me agradasse esteticamente (espero não ter errado feio na decisão). Ao mesmo tempo escrevia com um grupo na faculdade a minha primeira monograf ia. Stanley Milgram e sua Teoria dos Seis Graus de Separação eram meus objetos de estudo - mas vale citar que esta é uma obsessão minha há certo tempo. Portanto, o título para este livro não tardou a vir. Com tudo isso na cabeça, cravei uma ideia: todas as pessoas que enviaram seus textos estavam ligadas de alguma forma entre si. Só que agora, nas mesmas páginas, nenhum grau as separa mais.

Izadora Pimenta

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Para Benedicto Silvio da Silva.Não hesitava em me comprar livros.

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“Fred Jones of Peoria, sitting in a sidewalk cafe in Tunis, and needing a light for his cigarette, asks the man at the next table for a match. They fall into conversation; the stranger is an Englishman who, it turns out, spent sever-al months in Detroit studying the operation of an interchangeable-bottle-cap-factory. “I know it’s a foolish question,” says Jones, “but did you ever by any chance run into a fellow named Ben Arkadian? He’s an old friend

of mine, manages a chain of supermarkets in Detroit...”

“Arkadian, Arkadian,” the Englishman mutters. “Why, upon my soul, I believe I do! Small chap, very energetic, raised merry hell with the factory

over a shipment of defective bottlecaps”

“No kidding!” Jones exclaims in amazement.

“Good lord, it’s a small world, isn’t it?””

The Small-World Problem, Stanley Milgram

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O veludo continuava suave em suas mãos. A textura era diferente – como se o tempo tivesse retirado parte de sua sensibilidade; não que ele

estivesse reclamando, mas o veludo daquela cadeira o fazia sentir-se em casa. Enquanto ele passava a mão pelo braço daquela cadeira, daquela velha, imensa poltrona, seu olhar cansado perdia-se pelo salão, e ele enxergava as luzes, as cadeiras, os risos, os belíssimos vestidos femininos que rodavam pelo salão. Enxergava também a reluzente árvore de natal, que pairava perto dele, com os embrulhos rodeando-a pelo chão. Enxergava-a também, atravessando o salão, buscando-o, com o seu olhar f irme, seu porte elegante – mas, quando ela chegava e a realidade voltava, ele apenas enxergava a velha árvore de natal; sem vida, vazia. Ele via a tinta da parede descascando suavemente, onde em tempos não tão distantes era tão belamente pintada. Ele via as teias de aranha que há muito cobriam os espelhos que não eram nem de longe o que costumavam ser.

Enxergava a escuridão na sombra dos móveis. O vento nas longas cortinas. O vazio. Os tapetes e tapeçarias. Enxergava a mesa vazia, suas cadeiras desocupadas. Sentia o silêncio. E mais, sentia o veludo da cadeira – da sua cadeira, aquela que sempre fora dele, e que agora estava envelhecida e mofada. Seu olhar mirava perdido ao redor do salão; seus óculos, abandonados em uma corrente ao redor do pescoço.

Ele descobrira a solidão. A solidão que os anos haviam

Veludo

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Júlia Thum S. Schmidt é estudante de Direito. Apaixonada pela Arte e sua capacidade de inspirar os mais diversos sentimentos.

trazido – e desejava, tão fortemente, que suas memórias simplesmente tomassem conta dessa descoberta e trouxessem de volta a cor, a vida, e o amor que ele tanto queria – e que tanto havia perdido; quiçá, para sempre.

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Aeroporto

para João Alberto Lameira de Oliveira

Há tão pouco te encontrei e já agora me despeçoMe sinto inquieta e jamais cessoEntrego-te ao portão e te vejo ser engolidoLogo somes; pela multidão, deglutido. Digerido, então, se encontra o meu mundoCansativo, denso e escuro, como um buraco profundoMeus sonhos perdem-se entre bagagens e rostos milhares,Entre quatro paredes e muitos pilares. E então se vaiPelo alto, mas não caiVoando pelos ares Sobrevoando maresE chega ao seu destino,Bradando o seu hino:- Ah, senhores passageiros, Como o destino é ligeiro!

Camila Fracalossi sempre se viu cercada de sonhos e fantasias, desde a infância, que lhe direcionaram rapidamente à leitura, à escrita e à poesia. Encontrou nelas sua força e apoio para os momentos mais difíceis juntamente com as pessoas maravilhosas que cruzaram sua vida.

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Emile B

Li sua mensagem mais cedosabia que um dia ia acontecermas não custa escrever queprocuro em nosso velho corredornas portas que você saiuo meu pedaço em suas mãos

sei que faz tempoe que tempo feito nao se desfazmas ainda tem um pouco meunem que sejam minhas mentirasjá te pedi tantas coisasmas nada que fosse sinceroquatro anos passam rápido

nossos nomes são seustudo que escreveu na peleem letras que nunca soubetodos os outros que te leram nunca saberão

que nosso passado era ume que se você correrir para longecom nossas canções nos braços delepor campos abertos de f ilmes num carroera de se esperar

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sei que não tem tempoe que f iz não se apagamas ainda tem um pouco meuo suf iciente para não ter medose traia uma vez comigof inja mais uma vezmesmo que só f inja

nossos nomes são ainda meustudo que escreveu na pelenossos segredos escondidosnossas lágrimas no horizontee eu sei de tudo

quando te conhecinao sabia amar e mentirhoje resta seus olhos pelas ruasobsessivos em minha compulsãode não te deixar irnão deixar partirum pedaço meu que nunca tiveem seus braçosdele.

Daniel Corrêa é um amador em tantas coisas que acham que ele faz muitas coisas. Seu último lançamento é o livro Tristes Camelos, de 2010.

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Pizza

Estava chovendo e eu não havia tirado os vasos da sacada do prédio. Os vasos, os nossos vasos, estavam f inalmente expostos. Embora a chuvosa

violenta lhes arrancasse a força, o de abril, o primeiro, ainda não perdera os brotos como os de agosto e setembro. Eu observava os vasos batalhando pela vida enquanto dentro de mim chovia mais que a chuva lá fora.

Em abril você disse que me amava; em maio foi a minha vez. Saudade é uma palavra que dói às vezes. Ou sempre. É assim que você costumava dizer. Sempre gostei dessa sua decisão, mas nunca a entendi, pois, veja bem, você era até que bem decidida. Teve uma vez em que você simplesmente decidiu que queria pizza; ora querida, pois estávamos nós duas em pleno centro da cidade à meia-noite e você queria pizza. Não conseguimos. Eu tentei, você tentou, mas simplesmente não tinha pizza. Eu queria que agora houvesse. Saudade é uma palavra que dói muito.

Mas aqui estou eu no apartamento, a chuva lá fora e os vasos na sacada. Não entendo muito bem o que eles estão fazendo ali, expostos daquele jeito. Eu deveria ir lá buscá-los, protegê-los da chuva – mas todos sabemos que aqui dentro chove também. Ela também sabe. Ou não. É isso que me preocupa: ela não saber. Porque se ela não souber não tem sentido eu deixar os vasos lá fora. Eu poderia trazê-los pra dentro e protegê-los e assim eles não correriam risco algum. É bom correr riscos,

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acredito eu. Sei, sabes, sabemos, que saudade é uma palavra que dói, mas a dor até que vale a pena quando os vasos não caem ou a planta não morre. Talvez seja por isso que eu tenha deixado a planta lá fora, para que a chuva a nutrisse. O que parece, todavia, é que essa está prestes a se afogar.

Em junho foi meu aniversário. Um dia depois foi o seu. Nosso aniversário também aconteceu. Viajei e te trouxe um presente. Você também me deu um presente: f lores. Mas não f lores de f loricultura, dessas que as atrizes ganham junto com uma cesta de bombons; você me deu f lores para que eu mesma as plantasse. “Te trouxe f lores”: fui presenteada com um pacotinho cheio de sementes dentro.

Ora, talvez esse tenha sido o nosso erro. Sementes. Mentes. Tu.

A chuva derrubou agosto. Julho permaneceu intacto, pois não te vi o mês inteiro. O vaso, já que a planta, que sempre fora mais fraquinha do que as outras, já nascera sem folhas.

Quando agosto caiu, caiu junto a ele os vasos de maio e junho; os outros, que estavam ainda mais expostos e afogados, continuaram ali. “Afogada’’. Lembro dela usando essa palavra. Aprendi hoje que saudade é uma palavra que não dói, mas afoga.

Lubis Purcino é estudante de cinema e amante do rock nacional. Pretende, quando possível, ganhar o Cannes por um belo documentário.

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Sinceridade

- Você gosta de mim?- Que pergunta ...- Você vai me amar pra sempre?- Não, pra sempre é muita coisa.- Mas e amanhã?- Estarei amando.- E quando eu me mudar?- Mudo junto.- E se eu engordar?- Eu não ligo.- E se eu f icar doente?- Cuidarei como sempre f iz.- Mesmo grávida, chata e estressada?- Aí, mais do que nunca.- E se eu envelhecer?- Você vai envelhecer! Vamos envelhecer!- Então, posso pedir uma coisa?- Se eu puder atender!- Me ame, enquanto eu precisar do seu amor!- Estou amando!

Allan Nucci é o cara das imagens, criadas ou fotografadas, que gosta de escrever. Já foi mais dos amigos, da família e das coisas simples da vida, hoje é um pouco mais dele mesmo. O cara das músicas, que não toca porra nenhuma, mas que deixa ser definido por elas, invarialvemente.

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Sobre a Dor

Pinturas rupestres. Faziam assim antigamente para se expressar. São traços feios e valorizados pela idade. Falam muito de uma época que não se tem

notícia. Anonimato terrível da verdade. Os habitantes do presente olham f ixamente para elas tentando achar uma resposta.

Como num quarto. Ele estava deitado numa cama. Perto, uma janela era escondida por uma cortina verde pequena, com uma fresta para o sol passar. As paredes brancas não o chamaram a atenção de primeira, tinha uma estante com duas toy arts interessantes e um bocado de CDs. Tudo em segundo plano. Ele estava olhando para o teto. A inf iltração de uma chuva passada desenhou vários símbolos sem lógica aparente, mas como as pinturas rupestres existem, ele num momento de sagacidade inferiu: “É a natureza tentando se comunicar comigo”.

Talvez. O passado também era anônimo, não fazia ideia de que lugar era aquele. Prestou atenção no teto porque desprezava o desespero, pouco adiantaria agir como um maluco numa situação dessas. Lembrou dos amigos que lhe contaram experiências parecidas. Era a sua vez.

Ainda vestia a camiseta, muito amarrotada, claro. Daí pra baixo, mais nada. Por ser uma cama de casal, imaginou alguém do seu lado. Devia existir vida além do travesseiros jogados, que impediam a visão da lateral direita. Depois de levantar descobriu a solidão naquele

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quarto quente. Passou a mão no rosto e bocejou. Alguém entrou no quarto logo em seguida.

- Dormiu mais que eu.- Você tem mais discos que eu, precisa de mais tempo.

Eu sou paciente. Mas então, deve gostar de café, fez café?Ela ensaiou um sorriso bobo e disse que sim. O

convite até a sala de estar foi tão agradável que ele esqueceu de por as calças, deixou as no mesmo lugar, jogadas numa cadeira derrubada no chão.

De longe, a mesa parecia grandinha. De perto você desejava que ela fosse maior. Havia alguns copos sujos, um jornal velho e uma xícara pela metade. Logo ela lhe arrumou uma também, deixou ele se servir. A garrafa térmica disputava espaço com um vaso de planta, planta de plástico. Na hora em que foi pegar o café percebeu um “radiohead” escrito no vaso. Após a primeira injeção de cafeína, comentou:

- Temos uma fã aqui.- Ah, quinze anos.- Não faz tanto tempo assim, né.- Poxa! Obrigada! Mas sou velha.- Vinte e três? - Não exagera.Foi a vez dela tomar café. Ao contrário dele, ela não

virou a xícara com pressa, mas também preferiu sem açúcar. Ela tem um rosto tão branco que deve liberar f locos do adoçante rejeitado em pro da bebida. Longos cabelos curtos, negros e ondulados. Fica linda de óculos. Se acha um pouco gorda, mas isso é história batida. Ele nem percebeu. Usava algo entre um vestido e uma camisola de cor branca, como a sua pela. Basicamente semi nua, em forma apaixonante de acordar. Ela encarou a mão dele segurando a xícara, percebeu uma cor estranha:

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- Pinta a unha?- Não, tirou isso donde? - Ela tá estranha, sei lá, vai ver quer dizer alguma

coisa. Ergueu a mão, olhou profundamente e mostrou a

palma para ela:- O futuro f ica na palma, não dos dedos.- Acho que você desconf ia que eu sei disso, não?- Claro.- Então não implique com a minha vontade de ler o

destino.- Se eu puder levar o destino na minha mão não tem

problema, sigo bem.- Mas ele foge do seu controle, não tá na sua mão. - Bem sei. Vim parar aqui, mas estou perdido.- Eu quis vir pra cá. Está só. - Vou morrer assim? O que os astros te sugerem?Agora ela sorriu de verdade.- Com o tempo a gente descobre, nós.- Não vai dar. Adorei te conhecer, e gostaria muito

de lembrar o seu nome. - Eu posso te contar.- Já me contou.- Sim, porém você não lembra.- Eu esqueci. Se isso aconteceu, não posso fazer nada.

O esquecimento vem para aliviar a dor, cria desapego dos prazeres e das tentativas falhas da imaginação. O que vejo por você é tão bonito que talvez nunca conseguiria esquecer, e se já o f iz, é melhor partir sem maiores danos.

- Deu sorte que eu não estou no período fértil.- Se for azar, eu não lembro. O debate falado acabou alí. Segui-se por dez minutos

de silêncio, olhares f ixos, carícias e beliscões trocadas

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Túlio Brasil é um idealista desnecessário.

debaixo da mesa (nada muito intimo), incontáveis suspiros e sete xícaras cheias. A garrafa acabou. Ele levantou, foi ao quarto e se vestiu. Quando voltou foi interrompido por um abraço dela, sem beijos. Três passos até a porta, lá ela declarou:

- Eu posso te chamar pelo seu nome.- Pode, mas eu não conto. - Eu sei.- Guarde contigo, pois meu sonho é esquecer. Se

sonhei errado ao menos tem alguém para me despertar.Acenou e seguiu pela direita. Direita o lembra direito,

por isso a direção. Era 35% dislexo, não sabia se estava certo ou errado na direção. Forjou uma certeza que nada superou, mas viva com vontade de voltar atrás.

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Tipo Chocolate 70% Cacau

Querido (nem sei se ainda devo te chamar assim – se é que algum dia eu chamei, nem me lembro), eu não deveria ter ido te ver, acho. Mas era a

chuva desanimadora, o cachorro recolhido há dias (sentiu falta do seu chinelo) e aquele vinho que sobrou do Natal me encarando. Era quarta-feira, sua ausência marcada pela televisão exibindo seriados enquanto os vizinhos comemoravam o gol do Neymar que desestabilizara (por pouco tempo) o Corinthians. Ver jogo sem você não tem graça – nem aparece aquela vontadinha de comer amendoim verde com cerveja. Nem tenho time de futebol para torcer por minha própria conta.

Então eu fui te ver. Um tanto quanto perturbada. Utilizei de uma inquietação boba para que você se sensibilizasse um pouco, mas tudo não passava de uma armadilha que você f isgava ao entrelaçar os dedos nos meus, segurando-se para não me abraçar de vez. Reparei que seu apartamento estava impecável, como você sempre gostou – eu é que vez ou outra era relaxada mesmo.

Você diz que a gente não deve mais f icar junto. Abri o vinho do Natal (levei) e comecei a tagarelar

bobagens, lhe estimulando a fazer o mesmo, mesmo que você nunca o f izesse assim, usualmente. Naquele dia você fez. Mais do que o normal permitido. Percebi preocupação em seus olhos: era tudo para se impedir de dizer aquelas outras coisas, o assunto no qual a gente evitou tocar. Foram quase cinco meses sem trocar uma

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palavra um com o outro. Por medo, só podia. Mas agora você se interessava. Desconf iara das minhas intenções ao decidir ir para São Paulo nas férias. E a camiseta que você usava? Aquela surrada do Nirvana. A mesma de quando disse que me amava pela primeira vez. Eu amava Bernardo.

Eu até iria pedir desculpas por algo que você nem sabe. Fraqueza e bebedeira, sabe? Seu amigo se aproveitou da situação, nem é tão seu amigo assim – e você costumava valorizar as suas saídas com ele ao invés de se dedicar a mim (não que eu ligasse). Eu também iria te contar o f inal estranho de tal noite: terminamos falando de você. Mas ao invés de contar tudo isso, elogiei seu último artigo. E você me disse que precisava correr com outro ainda naquele dia. Sabia ali que devia estar incomodando, sei lá. Só que continuei parada no mesmo lugar: você é que vinha me incomodando, psicologicamente, e eu não poderia deixar de resolver isso comigo mesma.

Comecei a lhe falar sobre aquele dia no qual eu não estava com vontade de organizar as almofadas que estavam no chão desde a noite anterior, quando nós havíamos deitado para assistir a novela das oito com duas garrafas de cerveja. As garrafas ainda estavam no chão também. Os controles do videogame espalhados. Mais bagunça. Tirando as garrafas, eu acreditava que nós iríamos usar tudo de novo mais à noite. Então eu só tirei as garrafas, depois coloquei outras, cheias, para gelar. E não lembrava o porquê de estar relembrando estes detalhes tão inúteis assim, do nada.

“É porque aquele não era um dia qualquer”, você lembrou. Claro. Começamos a nos lembrar juntos. Foi o dia no qual você me prometeu que tudo seria of icial em breve. Nosso quase-casamento iria se tornar of icial. E

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eu confessei que não sabia se esperava mais por esse dia ou pela nossa próxima viagem de férias. Lembrei que não sabia o que te comprar no Natal – aquele do vinho. E lembrei também que não éramos muito de cumprir as nossas promessas.

Ao perceber a nostalgia, você interrompeu o assunto para falar sobre seus problemas incuráveis (nunca importaram os meus esforços). Me contou que vez ou outra colocava um disco do Radiohead – In Rainbows, de preferência – para esquecer da sua vontade de se matar. “Ele me mata um pouco, mas também me lembra de que viver é bom. Daí eu f ico”. Então eu queria te abraçar. Encarei o teto, a lâmpada f luorescente me cegara por segundos. Você riu de mim daquele seu jeito: discreto, mostrando os dentes tortos, sem som.

Enquanto você foi ao banheiro, continuei me lembrando da nossa vida a dois. O amor verdadeiro tinha vista para o mar - o pessoal do Pullovers (lembra de Pullovers?) não sabia de nada. Mesmo que uma vista meio corrompida pelos outros prédios à frente – três, para ser mais precisa. Mas era só sair na varanda e sentir o barulho e o cheiro daquelas águas inquietas. A ideia me seduzira tanto que eu já estava ali por longos quatro anos, e não conseguia pensar em outro ideal de felicidade que não aquele.

Só que agora você me forçara a encarar o mar sozinha. E eu tento encontrar forças para tal. Não choro por sua causa por aí, mas algo me diz que a tristeza f ica acumulada. Daí é só acontecer algo meio píf io, destes motivos que a gente chora quando está na TPM, que eu desabo, em qualquer lugar. É como ter uma TPM eterna. Meus colegas de trabalho vêm me presenteando com chocolates quase todos os dias. Distribuindo abraços.

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Me exponho ao ridículo, sou a chorona da quarta série de novo.

Quando você voltou, forjei um sorriso. Falei-lhe da novela (você prefere a Nina e eu, a Carminha), da última da minha vizinha da qual costumávamos rir, enchi sua taça mais algumas vezes. E logo disse que precisava ir. E você teve a coragem de me dizer que achava melhor que eu fosse mesmo. Não por mim, justif icou. Pelo artigo que você tinha de terminar. “Pra amanhã” - frisou.

Querido (de novo), a vontade era de dormir em frente à porta do seu apartamento. Uma forma diferente de rastejar aos seus pés. Uma forma torta. Uma forma idiota.

Só cheguei em casa e dei um chinelo para o cachorro. Abri uma cerveja, um saquinho de amendoim verde. Liguei a televisão na reprise do jogo e torci pelo Corinthians – ao contrário do que você faria. “Fazer o quê” – havia dito eu quando deixamos de ser nós. “Melhor assim” – disse você.

Ainda chovia, mas o Corinthians ganhou.

Izadora Pimenta é jornalista e personagem de comédias românticas nas horas vagas.

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Vermelho

A vida já não me fornecia as mesmas regalias há anos, e lá estava eu caminhando sem rumo pela cidade afora, à procura de um pouco de comida

para sustentar a mim e ao meu f ilho. De pés descalços e em situação miserável eu sentia o vento forte batendo contra o meu corpo, e de mãos dadas eu percebia o garoto cabisbaixo, como alguém rendido à condição social que estava, e já sem muitas esperanças de recuperar a dignidade que lhe cabia.

Eu havia perdido o emprego, que nunca tinha sido muito bom, há aproximadamente dois anos. Era funcionário de uma fábrica de doces e ganhava lá meus trocadinhos que dava para viver. Infelizmente as máquinas tomaram o meu lugar, e tudo o que consegui desde então foram trabalhos temporários, ganhando uma mixaria aqui e ali que mal dava para pagar o aluguel. Fiquei sem casa, sem comida e com um f ilho para criar. Passei então a pedir uns trocados nos semáforos, casas, edifícios, mas ainda era muito pouco. Emprego? Só milagre para fazer aparecer, porém nem em Deus eu cria mais.

Sentei na calçada e logo meu f ilho passou a choramingar de fome: “Ela não passa, papai”, e já sem saber mais o que fazer e a que me submeter, sem saber aonde esconder meu rosto sujo de vergonha, vi uma moça passar. Vestia um xale carmim que combinava com seu sapato de marca, toda pomposa. Ainda usava um chapeuzinho vermelho e carregava com seus dedos

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recheados de reluzentes anéis de pedras – que chegavam a me incomodar terrivelmente de tão brilhantes que eram – uma cesta cheia de doces. Meu menino correu rapidamente para perto da moça e roubou-lhe um doce da cesta sem ao menos pensar. “Seu ladrãozinho!”, ela gritou. Num piscar de olhos a moça, com seus anéis todos pontiagudos de brilhantes imensos, tacou a mão na cara do meu f ilho e correu. O menino pôs-se a chorar e vi que escorria sangue de sua testa.

Sem hesitar, corri atrás da moça. Ela havia de me dar doces, nem que fosse à força. Não merecíamos tanta humilhação jamais; a condição desumana e patética na qual vivíamos já não era suf iciente? Por que tínhamos que ser tratados assim? Foi então que a alcancei e escondido a vi perto de uma casa, distraída e a gritar ao bater na porta “Vovó, você está aí? Fui roubada!”. Agarrei-a por trás e roubei-lhe a cesta. Corri. “Parado! Mãos ao alto!”. Continuei correndo. Tiro. Dor. Polícia. E um chapeuzinho vermelho a me olhar ensanguentado no chão.

Mariana Rosa acredita que não somos nós que conduzimos, e sim as marcas.

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Durmo tarde, acordo cedo

Durmo tarde, acordo cedo. Meu bom dia já amanhece mais amargo que o café que tomei. Desperto de vez com um insulto velado e um

barulho de arranque. Viro em volta, arrumo a cama, torço os dedos e vou pegar mais café. O resultado é mais um insulto velado com direito a uma resposta minha bem da escancarada. Emudecimento alheio me abre o caminho pra correr até o jornal: propaganda de pomada, coluna social com a meia dúzia de dondocas da semana, e um artigo minúsculo citando Farenheit 451 e o quanto Truffaut foi criativo nisso. As costumeiras fraudes políticas em colunas menores do que as de cinema retrô e mais do de sempre, até que leio sobre um show que pode ser legal e tem um tempo pra chegar. Lembro de quanto tenho na carteira e faço que esqueço. Ligo a televisão e a alienação culinarista dá ainda mais sono. Acordo com um terceiro esporro. Levanto, boto o jeans e f ico pensando quando é que isso vai mudar.

A torcicolo chega pra dizer um oi assim que insisto em um segundo alongamento e boto o tênis velho que gosto. Gosto este ignorado pelas forças maiores que insistem em jogá-lo fora e trocar por um sapatênis de cores nobres. Abro e fecho o portão na mesma velocidade sem fazer alarde pra não parecer um rebelde sem causa, apesar ter a mente apontada para tal atitude especialmente hoje. Equilibrando-me na guia da calçada, olho reto, pra cima e pra baixo a cada solavanco em

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que quase caio. Vale mais se ralar na rua que ouvir a ladainha feita em casa, que ecoa por dentro.

Sigo até o ponto de ônibus e me recosto no banco que um dia já teve a pintura amarela. Esfria um pouco e a blusa amarrada na cintura foi uma boa escolha antes de sair. Passa bola de poeira, passa cachorro, passa sorveteiro, senhoras de bengala e lenço. Só não o maldito 50-447. Amarro o tênis, arrumo a hora, cutuco o machucado, e nada.

Enf im passa o pau-de-arara de metal, porque é bem isso que ele é. Ele está vazio, mas subo mesmo estando perto do ponto f inal.

- Você aqui de novo, moleque? Já sabe que tem só mais dois pontos na cidade, e o último dá naquela encruzilhada.

- Segue em frente enquanto eu decido. Durmo tarde, acordo cedo.

Fernando Galassi é jornalista por formação, fotógrafo sazonal e aventureiro no design gráfico.

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Tempos Modernos

Tempos modernos. Vida urbana. A individualidade tão exaltada na era vinte e um, agredida nos compartimentos metálicos, carcaças de ferro sobre

trilhos ou rodas. No trem. Do fundo do trem surgiu um som insistente, repetia-se um refrão de baixo calão, chulo, de desonra. Senhoras sentadas cochichavam, incomodadas, inquietas, afetadas.

Incômodo. Como cisco f ino em olho recém aberto na manhã, como farpa pontiaguda de dor onipresente na carne de um dedão. Incômodo. Como enxaqueca seca em feriado de sol. Como cólica latente em ventre sensível. Sentia-se um incômodo mútuo. União de pensamentos em favor da oxidação de baterias, pilhas ou qualquer força química que dava vida ao objeto eletrônico portátil e insuportável.

No pensamento, eu me dirigia até o último banco do vagão, arrancava da mão do indivíduo seu aparelho mimado, apertava com força o botão liga / desliga e o lançava pela janela ao outro lado dos trilhos. Ou melhor, com um sorriso ironicamente amarelo, pedia por gentileza, que o nobre cavalheiro de boné e tatuagem, diminuísse o volume de seu estimado tocador de música, ou por obséquio, descesse na parada mais próxima e comprasse um par de fones, ouvidores intra-auriculares, num bazar de esquina. Mas isso não passou de pensamento.

Conformado em minha covardia, o corpo mirrado

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Amauri Terto é estudante de jornalismo, fã de cinema latino-americano, contos de Rubem Fonseca e expresso com leite. Gosta de escrever textos sobre infância e velhice, só não sabe muito bem por quê. Freud deve explicar.

em comparação a estrutura óssea e brutal excesso de massa muscular do ser humano responsável pela desordem sonora do ambiente de ar condicionado, esperei chegar a minha estação. Com cautela, assim que a porta se abriu, saí. Do lado de fora, caminhei. O dedo médio entre as páginas do livro, o ser no vagão tido como desgosto de um passado recente e minha individualidade plenamente restituída.

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A bird f lew into a crowded busFlapped his wings through that metal boxCollided and crashed onto the closed windowsbreathed the heavy and heated air

A bird f lew into a crowded busand his bird heart f illed with despairwas beating even faster than its wingsit hoped for white skies, for the gusting wind

A bird f lew into a crowded busand glided and tumbled through the worried headsAnd messed with tidy hairs and messed up mindsAnd screams joined the f lapping wings noise

More birds f lew into a crowded busThey go inside, they pay, they leaveBut leaving is never leaving at allTheir wings are clipped by the shut-down windows

I f lew into a crowded busHoping to see white skies againHoping to see white skies at allHoping to see white skies if onceBut the metal is what I’ve gotAnd the desperate sound of wings hitting windowswindows that hide those white skies from me.

Ride

Ana Clara Matta tem 21 anos, é estudante de Comunicação Social na UFMG e editora do Rock 'n' Beats.

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Zero

O problema não é o coração sair pela boca. O problema é parecer que vai sair pelos ouvidos, e você o escuta fazendo o percurso.

É como o relógio inconveniente da cabeceira, marcando os segundos que giram pra sempre pra sempre e pra sempre e avisando que a madrugada passa e você não dorme, em meio à luta vã contra a terrível sensação de perder o ar ao ser impelido a respirar na mesma velocidade dos segundos. Mas você não respira: sem ar, há de desacelerar – e a lógica falha. É o medo dissolvido no sangue, quando a felicidade não é compatível com os sintomas, mas está ali.

O problema não é o coração quase sair pelos ouvidos e você escutar o percurso. O problema é escutarem (sujeito ocultoindeterminado) os seus segundos do relógio. E notarem, um pouco mais baixo do que quem sente, que eles parecem incômodos e violentos dentro daquela correria cega (a correria interna e silenciosa, externamente estagnada e inerte, que faz qualquer lençol parecer pesado. Ou é o próprio ar que anda denso).

Fechar os olhos quando não há nada além da mesma escuridão inicial para se ver só é útil para pensar no que se quer sem o constrangimento dos olhos abertos. A falta de visão justif ica toda ação adormecida, preocupada mais em sonhar. Sem hora pra acordar, sem medo de degraus. É a surpresa, bem embalada o suf iciente pra assustar: bomba-relógio, camuf lada entre

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os celofanes que o frio faz questão de tornar fosco e que qualquer mão morna bem intencionada consegue devolver o brilho.

O relógio, os segundos, a bomba. Decrescendo, uma hora chega à zero, e não há f ios, botões ou ponteiros que impeçam qualquer consequência indolor. Cortar é uma opção que não leva à solução – e ainda que levasse, escolher o labirinto seria a prova f inal de amor próprio ou coragem, mas não se pode exigir demais de um aprendiz: f icaria parado até se achar ou ser achado.

Zero: o f im é a explosão, a explosão é o (re)começo. Dois caminhos inevitáveis. O tempo, que passou tão lento mas tem tido pressa, ensaia para zerar. Ele corre para que os desesperados vomitem logo o coração sem precisar escutá-lo seguindo o percurso; corre para os que beberam demais e se esqueceram de que o dia de se arrepender não é domingo. E até os ociosos veem o lapso de pressa dos ponteiros sem mesmo saber que horas são, insistindo que o sétimo dia pode ser o primeiro. E pra gente sempre é.

Luiza Judice é apreciadora do ócio, guitarrista três-acordes, quase-jornalista com futuro incerto e ursinho carinhoso nas horas vagas.

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Dor nos Ombros

Cada um é atlas de seu próprio mundoEu sou também, não negoPois se não fosse, teria eu menos chanceDe dizer o que pretendo

Mas, como nem tudo é certoNão sou eu quem segura meu mundo sozinhoTem sempre um amigo, um camarada, uma possibilidadeque alivia a tensão dos meus ombros

Mas, às vezes, mesmo sem quererHá quem faça pressão até não mais suportarE meu mundinho, tadinhosai rolando feito bola de bilharaté bater na parede de quem empurrouou pior, até acabar na caçapa das ideias de ninguém

E aí, não tem boa notícia que o faça levantar

A não ser a certeza do f im do jogo

Vinícius Gandolphi é poeta, jornalista, social media, dublê de corpo, tenista, aeromodelista, tatuador, professor, voz e violão, tradutor, filósofo, chef, astronauta e pecuarista nas horas vagas.

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Mãos Frias e o Coração em Embulição

Eo resumo não vale uma citação. Eu queria que a vida fosse feito uma apresentação onde pudéssemos excluir os slides ruins que já passaram e escolher

os melhores para serem mostrados no futuro. Mas daí f icava sem graça. Tudo tão bonito, sem ter pelo que lutar. Por quem, ou algo, ou no f im, alguém. Muito menos por si mesmo. E tudo que tentei jogar na lixeira, me volta à mente como se eu precisasse viver daquilo, f izesse questão de carregar essas belezas sofridas estampadas. E independente de apagar da lista, o número e endereço, ainda que antigos, se fundiram ao fundo da memória. Encubro com o mais belo pano, para que sem a luz do dia possa enf im desfalecer; então terei um cômodo arrumado para que tal pano sirva de forro a um sentimento novo e mais bonito. Hão de dizer que isso não se faz, que é brincar com os sentimentos dos outros. No entanto há um ponto em que se chega no qual não existe qualquer restrição; onde a palavra ‘usar’ se entrelaça à palavra ‘afeto’ e não há como separá-las. No f im, a primeira se esvai de pouco em pouco, deixando a segunda mais que confortável. E quão gostoso é esse sentimento de confortabilidade! Nos dá um ânimo e tanto. Autoestima e cia se alegram e o ar gracioso emanado é contagioso. No mais, estou indo embora, partindo rumo aos que me queiram. Sem deixar desejos, nem lamúrias por aí. E nenhum ressentimento moído ou recalcado. Apenas

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uma vaga para qualquer coisa que me mantenha nesse estado inercioso de felicidade.

Guilherme Pietrobon é um dentista em formação e pseudo-escritor não só nas horas vagas.

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Toque

Hoje eu só queria encostar o meu corpo no seu e que você não sentisse nojo de mim. Que você não se incomodasse com os meus carinhos. Carinhos

que lhe faço por precisar que me acariciem.

Hoje, eu só precisava poder sussurrar algumas besteiras e você não me julgar. Ter seus olhos quentes em mim e lhe dar meu sorriso comedido mais sincero.

Hoje eu só precisava do gosto da sua boca misturado ao das minhas lágrimas.

Hoje o dia não foi bom (e não ter você aqui comigo – nunca tive – só piora).

Marcos Germano estuda (ou tenta) literatura. Um dia chegará ao status de escritor amador bom. Por hora, é só um escrevedor.

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Novembro

Se, nessa inconstância de mim, o querer se subjuga, não é por deixar de sê-lo, assim, crescente: é por temer querer em excesso. Se, nessa distância física, o

silêncio não se cala, é porque me ouço, e eu falo demais. Mas se, na iminente explosão, eu não for feita de calor, eu nem sei... Porque se, em mim, eu já te encontro tanto, um tanto de mim também tem que f icar aí, em ebulição. Mas... Se, na minha vontade de você, o sentimento latente se revela tão mais intenso, não há, no entanto, excesso de querer: é a medida certa pra acalmar meu coração na paciente espera e esquentar meu corpo enquanto você não chega.

Aline Fortunato é estudante de arquitetura. Gosta de ler, escrever e viajar.

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Alguns dias eu vou estar bemNo dia seguinte, posso só querer o silêncioE depois, querer ser ouvida...Às vezes, vou querer somente ouvir...Por outras, vou querer dialogar.Compartilhar, somar, subtrair...Multiplicar.. sempre multiplicar amor.Vou querer atenção demais,Vou querer atenção de menos...Um abraço apertado, espaço na cama.

Sou mulher, posso querer tudo ao mesmo tempo e agora.Posso não querer nada.

Só posso te querer.E quero.

E desculpa se às vezes só não sei o que queroNão sei o que sintoNão sei o que souO que tem você a ver com isso?Só quero que esteja aliQue me segure, me apoieMe abrace quando estiver muito chataSorria quando eu for tão especialMe ame quando eu tiver raivaMe beije quando eu não puder calar.

Era Uma Vez Uma Mulher

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Me beije. Me beije forte.

Eu escolhi isso. Você também escolheu.E só pode ser bom.Que seja cada vez melhor.Que seja cada vez maior. Que não leve a lugar algum.Que apenas leve, tão leve quanto é o amor.Tão intenso quanto é a paixão. Tão profundo como o riso de um palhaço. Tão simples quanto acordar. Tão complexo quanto estar.

Que seja. Que esteja.

Que viva. Que ame. Que nunca apague.

Carol Tavares é ex-editora de conteúdo da TV Minuto, na Bandeirantes, ex-repórter do Portal MTV por quase três anos e atual jornalista que trabalha por conta. Apaixonada por música, pelo namorado e pelas fotos de seu acampamento no Jalapão.

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Nosso Encontro

A história de como a gente se conheceu é tão descompassada quanto a nossa capacidade de expressar sentimentos. Você me conheceu antes

e sempre disse que precisava urgentemente desses cinco anos de vantagem antes da distração tratar de colocar os meus olhos em você.

Na pressa eu não te dei atenção, passou batida a sua expressão triste ao me ver atravessar a rua com um cara que podia ser o seu melhor amigo, mas era o outro. Você arquitetou, emendou e apurou uma porção de meias verdades e muitas mentiras sobre mim até tomar coragem para entrar na minha vida.

Tanta conf iança se converteu em atração mútua. Mas você estava errado e a porção de mentiras que recolheu junto as meias verdades quase acabaram com o que pra mim não tinha nem início certo. Você entendeu, eu te vi, você por milagre ou sabe lá o quê, não deixou de gostar de mim quando começou a ver minhas verdades. Eu me apaixonei por você.

Nossa história é linda, nossa relação muda, transmuta e não acaba. O casamento sim.

O que você não sabia é que eu te conheci antes, naquela festa que você nem lembra. Eu te vi e te guardei. Você estava na minha vida antes de decidir se entraria nela. E pra provar que nem tudo de mim você conheceu, só te contei isso no dia em que você foi embora.

Jéssica Kruck não leu Guerra e Paz.

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O Sol já havia nascido quando as duas garotas encontravam-se na cama, sob o cobertor. A mão de uma delas escorria vagarosamente por

baixo da camiseta da outra, seus dedos acariciavam a pele macia, formando pequeno círculos incrivelmente agradáveis. Em pouco tempo, a outra menina, sensibilizada com as carícias, envolveu-se em um abraço aconchegante, correspondendo com a mesma destreza a intensidade do momento.

Seus cabelos negros contrastavam com as claras cores do travesseiro compartilhado, e seus olhos igualmente escuros se f itavam na penumbra do quarto, eliminando todo e qualquer vestígio da saudade que as consumira por tanto tempo.

Nenhuma das duas garotas jamais havia sentido coisa igual. A forte amizade e conexão entre ambas levaram-nas a tal experiência, apesar de seus doces lábios ainda não terem se tocado. Nada lhes parecia errado, apenas não convencional, e o contato causava arrepios inexplicáveis.

A única coisa que temiam era a reação previsivemente preconceituosa que as pessoas apresentariam. Seus pais, seus amigos, todos provavelmente as olhariam com outros olhos a partir deste dia, passariam a tratá-las diferentemente em relação às outras pessoas, aqueles casais comuns, quando na verdade, nada havia mudado. E era exatamente por este motivo que as garotas

Upside Down

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L. C. é publicitária e curiosa. Acha que tudo o que precisamos é amor e amor é tudo o que precisamos.

decidiram guardar o segredo, discretamente, até que as pessoas ao seu redor pudessem se acostumar e aceitar a ideia. Mesmo porque não foi uma escolha, apenas ocorreu, e nenhuma sentia culpa ou vergonha por isso. Era uma questão de tempo.

Uma história de amor às avessas estava iniciando-se.

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Decidiu escrever uma crônica. Aproveitando-se da situação nada lisonjeira em que se encontrava, permitiu-se sentir o que nem sabia que sentia, mas

estava lá. O último dos nove namorados que tivera até então, despediu-se dela com palavras duras de adeus e “esse mal eu não quero mais”. Arranjou-se com outra em uma semana, depois mais outra, depois sabe-se lá quantas; e encerrou o assunto.

Como f icasse sozinha, tratou de alimentar fantasias pueris e falsos desejos, apenas para ter com o quê ocupar a mente e o coração. Quase que por brincadeira – e um pouquinho de vingança -, escolheu um rapaz a quem só conhecia de vista e ouvir dizer. Sabia que tinha todas as qualidades que qualquer um aprovaria. E estava solteiro. Decidiu instantaneamente que, sem dúvida, aquele era um bom partido.

Mas a solidão é traiçoeira e tratou logo de espetar-lhe o coração com o veneno sem antídotos do amor. Apaixonou-se pelo tipo escolhido a dedo e para que o estrago f icasse bem feito, não tardou em se obcecar. Virou noites buscando-lhe o passado e o presente, invadiu a privacidade frágil de seus amigos, suspirou notes a f io por fotos e até tentou certif icar-se de que suas orientações sexuais eram compatíveis. “Nos dias de hoje, nunca se sabe”, justif icou-se. Em seu delírio de amor, acreditou possível que o moço viesse a se interessar por ela, se é que já não cultivava algum interesse, por que não?

Crônica Sem Graça

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Renata Arruda é uma ariana que gosta de cinema, café, som de violão e dias nublados. É jornalista por opção e escreve bobagens por vocação.

De sua parte, ele sabia-lhe o nome e conhecia-lhe o rosto, mas isso era tudo. Já tinha o suf iciente.

Ardia de desejo toda vez que lhe via a cara e amigo nenhum se atreveu a dizer que estava delirando. “Vai, tenta”, empurravam-na para a cova dos leões. Pôs-se a consultar os astros, os números e as cartas e esses, mais frios e sensatos, lhe diziam “vai com calma, pera lá”.

Leu tantas dicas e pensou em tantas formas de seduzir e conquistar, que acabou sentindo preguiça. Na única vez em que, por inciativa própria, o moço foi ter com ela, agiu como se em nada estivesse impressionada. Travaram falsa amizade e logo ele se recolheu no seu canto e na sua vida animada de pessoas interessantes, festas e belas modelos.

Não se pode dizer que não foi bem-sucedida: logrou esquecer o outro, mesmo que metendo-se em confusão sentimental ainda maior. Esquecida e ignorada como estava, não sabia se devia expor-se ao ridículo de uma vez ou prosseguir em silêncio com essa paixão não correspondida.

Ainda não se decidiu. Não sabe como a crônica termina.

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Expectativa

Esse negócio de expectativa é horrível, né? Não basta já ter passado uma noite ótima, tem que ter outra. E não pode ser uma coisa natural e espontânea, tem

que ser na hora. I want you now, I want you now. Quer conversar, interpreta qualquer demora como falta de interesse, f ica com medo de estar sendo invasivo demais, acha que está fazendo papel de palhaço, tem certeza que está fazendo papel de palhaço, pensa em desistir e desencanar logo para não sofrer, sofre por pensar na hipótese de “então aquilo tudo foi momentâneo e chega”, já faz uma fogueira com todos os convites de casamento que você fez antecipadamente porque tinha CERTEZA que tinha encontrado o amor de sua vida, faz um cadastro em sites para encontrar casais, pensa em tomar todo o conteúdo alcoólico de sua casa, cogita se jogar pela janelATÉ QUE o contato é estabelecido.

Daí você f ica todo besta, lembra dos momentos lindos, planeja o futuro, pensa de como vai ser lindo quando vocês casarem, liga para seu melhor amigo convidando para ser padrinho do seu lindo casamento, fala para a mãe que provavelmente ela será chamada de “sogrinha mais linda do mundo” – tudo isso em menos de 3 lindos segundos, tempo que você demora para responder a linda mensagem.

Então vem a demora. A resposta não vem, você acha que respondeu rápido demais, deveria ter sido mais blasé, falou muito informal, falou muito formal, usou emoticon onde não devia, não usou emoticon onde

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Ivan Perina é professor de Português por opção, leonino por nascença, vegetariano por nojo, pesquisador de gramática por amor, colecionador de pichações por diversão, baladeiro por necessidade.

devia, quer voltar à escola para ter aulas de português, lembra que não existe aula para saber como conversar nessas situações, pensa em fundar uma escola específ ica para issA RESPOSTA VEIO.

A conversa segue, você f ica pisando em ovos, uma quase conf iança vem, e vai, e vem, e vai, e vem, e vai, e f ica, e sai, e desaparece, e volta com força total, papo aparece, papo some, alguma frase fofa é dita, alguma frase que você interpreta como “nunca mais quero te ver” é dita, chega hora de ir dormir, ocorre a despedida.

Você agradece a Deus por essa paz de espírito que você existe o pensamento de “será que ainda nos falaremos”? Comenta com todos seus amigos sobre o que aconteceu, f ica feliz da vida, está quase pensando em ir dormir, eis que…

Fica on novamente. Expectativa de que irá falar, não fala, insanidade, por que não falou comigo, esqueceu de mim, saiu para me evitar e voltou na surdina, voltou para falar com outra pessoa, voltou para terminar tudo comigo, voltou para trazer dor e sofrimento?

Acho que a última alternativa é válida. Só não é válido viver assim.

Escrito do sábado para domingo 14 de fevereiro de 2011 à uma e trinta e um da manhã ao som de Chromeo e Muse.

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Falta-me-falta

Me falta alguém pra ouvir minhas piadas e dar risada depois, mesmo que elas não tenham graça. Me falta alguém pra me obrigar a fazer as

coisas do jeito certo quando eu não to nem aí pra nada. Me falta alguém pra me fazer mudar de ideia e começar a acreditar em coisas que eu já não acreditava.

Me falta um sorriso insistente quando eu to brava, um cafuné sem sentido quando eu to cansada, um abraço quieto quando eu não quero dizer nada. Me falta um ouvido para escutar todas as minhas dúvidas sobre o mundo e um comentário que me faça rir e parar de pensar tanto.

Me falta compreensão quando eu dou uma de maluca e companhia quando eu não quero enlouquecer sozinha. Me falta paciência para aguentar meu choro sem sentido e coragem para chorar junto comigo.

Me falta um olhar que queira dizer tudo mesmo que não diga nada e também falta aquela brincadeira de que tem que parecer sério mas no f inal todo mundo dá risada.

Me falta alguém que não se importe se eu ponho o pronome no início da frase, se eu jogo o carro na frente dos bois, se eu transformo uma mensagem não respondida em uma guerra química, se eu f ico brava com uma brincadeira boba.

Me falta mãos dadas, cinema, pipoca, bala de goma e coca-cola.

Me sobra tanta coisa que me falta.

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Carolina Ruedas tem 20 anos. Faz letras mas pensa em números. Estudante de teatro. Um livro não correspondido e alguns amores não publicados ou vice-versa.

Mas também me sobra liberdade, me sobra vontade, me sobra coragem, me sobra amizade, me sobra alegria, me sobra miopia, me sobra cabelo, me sobra amor. Sobra tanto amor que as vezes eu transbordo por aí. E as pessoas correm, me acham estranha, impulsiva, grudenta, equivocada, maluca, desesperada.

E é aí que mesmo cheia de amor eu choro e pra parar de chorar eu conto piadas e quando eu conto piadas eu percebo que me falta alguém pra ouvir minhas piadas e dar risada depois, mesmo que elas não tenham graça…

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O Cara Errado

Eu vou ser sincera com vocês: não é que eu me apaixone só por um determinado tipo físico de homens, mas tenho uma preferência aos morenos

de olhos castanhos. Sim, daqueles que mais tem por aí. Por muito tempo me interessei exclusivamente por estes, até que meu caminho cruzou o de um loiro de olhos azuis.

Fiquei pasma como todo mundo comentava de sua beleza, e perdia muito tempo olhando pra ele. Acho que parte de mim, devido a toda essa atenção, simplesmente resolveu ignorar aquela presença, enquanto outra parte pensava: se já é difícil conseguir um parceiro de beleza comum, imagina um que todo mundo repara, comenta e se apaixona?

Mas acabou que apesar da minha inicial falta de interesse, acabamos literalmente nos cruzando. E então acabei não só conversando com ele, como analisando sua beleza e seu jeito. Se a beleza era angelical, o jeito era o oposto: bruto, quase um ogro, tomava decisões sem pensar no que iam dizer e pensar e só sabia beber, fumar e tocar bateria.

Um pouco mais de conversa e eu, apesar de ter achado ele até mais interessante do que eu pensava, resolvi que não f icaria muito tempo ali por perto. Mas foi neste momento que fui pega de surpresa. Se aquela era a primeira noite que eu o via, ele não podia dizer o mesmo sobre mim. Segundo ele, já havia me visto e até f icado interessado. Quem diria? Não que eu não me

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valorize, mas não sou dessas que os outros costumam reparar, muito menos um cara que tem atenção de tanta gente.

Claro que isso fez com que minha vontade de sair correndo dali o mais rápido possível caiu por terra. Vamos combinar: eu podia até não estar tão interessada no inicio, mas aquela informação, junto com os outros fatos, mudava tudo. Conclusão? Começamos a conversar sobre tudo, tudo mesmo. Fomos de religião á f ilhos, no período de cinco ou seis cervejas. Também falamos sobre o comportamento ogro dele, e o meu de santinha do pau oco. E quando acabou a conversa, sobrou só o clima, e nos rendemos a ele.

Ninguém no começo da noite podia suspeitar disso que estava acontecendo. A pessoa que menos esperava não só me surpreendeu como acabou me conquistando sem eu perceber. Há quem diga que opostos nunca funcionam, mas naquele momento ser oposto foi o que fez dar certo. Eu não precisei mudar o meu jeito pra noite seguir esse rumo, e nem ele. Discordamos em quase tudo, mas respeitamos o jeito de pensar de cada um.

Por várias vezes após essa noite nos encontramos, e a rotina dessa noite sempre se repetia. Litros de cerveja, muita conversa, mãos dadas e beijos. Não falávamos sobre nós, creio que sabíamos que esse nós era algo momentâneo, algo que acrescentaria muito mais do que podíamos imaginar, pois apesar de ser tudo muito bom e bonito, em momento algum paramos pra cuidar, cultivar aquilo. Ele não era o cara certo pra passar mais tempo junto, mas sim, um ogro muito bonito e que me fez muito bem no tempo que esteve ao meu lado.

O tempo passou e claro, como nós dois já sabíamos, tudo mudou. Nossas vidas tomaram rumos diferentes,

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e eventualmente quando os caminhos se cruzam é pelo tempo de um sorriso. Mas é quando eu vejo aquele cabelo loiro que percebo: grandes e bons momentos surgem de onde e com quem a gente menos espera, quando nos permitimos viver e conhecer o diferente, o que nunca nos passou pela cabeça.

Bruna Bianconi tem 22 anos. É alguém que ainda espera a chance de estudar e se formar em publicidade.

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Expectativa x Realidade

Volto para casa à noite. Não há muitas pessoas na rua nesse horário. A maior parte da caminhada é bem solitária. Viro a esquina e vejo pessoas

esperando no ponto de ônibus, provavelmente moram em outra cidade. Passo por um garoto bonito, abraçado a uma mochila, que espera por seu ônibus num canto isolado. Desço uma ladeira e a luz de um poste com defeito apaga. Todo dia é assim.

Com o tempo, essa parte se tornou a mais esperada do meu dia. Há certa magia nessa rotina. Não sei ao certo para onde essas pessoas vão, como se chama o garoto bonito ou por que a lâmpada do poste se apaga quando eu passo. O certo é que todo dia isso acontece e todos esses pequenos mistérios me encantam.

Um dia o garoto bonito olhou para mim com interesse. Acho que ele deu um pequeno aceno com a cabeça, como se nos conhecêssemos. Esbocei um sorriso. Ou pelo menos acho que o f iz. No fundo penso que ele sempre estará lá me esperando. Esperando que um dia eu pare e coloque a conversa em dia, conte as novidades, mas eu sempre estou apressada demais para fazer isso. Dia após dia ele se contenta apenas com o meu aceno.

Quando me deitei nessa noite, f iquei um tempo imaginando como seria nossa conversa, se eu tivesse coragem. Eu perguntaria seu nome, ele responderia. Provavelmente algum nome bíblico. Ele diria que faz algum curso de exatas, e admiraria minha coragem de estudar humanas. Eu perguntaria o que estava tocando

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no fone de ouvido dele e certamente seria algo da minha banda favorita. Descobriríamos que temos muito em comum, e marcaríamos de nos encontrar toda noite para conversar.

No outro dia, eu acordei decidida a conversar com ele. Provavelmente a ideia mais louca da minha vida, mas decidi arriscar. Naquela noite eu conversaria com o garoto do ponto de ônibus.

Minha aula demorou um pouco mais para acabar, mas como eu estava esperando a saída todo esse tempo, assim que o professor liberou, eu quase saí correndo. Olhei no relógio. Estava quatro minutos atrasada. Com sorte eu ainda conseguiria chegar a tempo.

Virei a esquina e comecei a ouvir uma música. Logo reconheci, era um funk carioca. Entrando em seu ônibus, o rapaz bonito. A música vinha do celular dele. Ao notar isso, tropecei no meio-f io e por pouco não caí. O garoto viu o que acontecia comigo e riu. Dentro do ônibus alguém gritou:

“VAMBORA, WASHINGTON!” Decepcionada com minhas expectativas frustradas,

desci a rua no meu caminho habitual. A luz do poste não piscou nesse dia. Descobri no dia seguinte que a companhia elétrica está reformando a rede de luz.

Def initivamente, como diria Douglas Adams, “a realidade está frequentemente incorreta”.

Marília Rocha Lopes tem 18 anos. Socially awkward, viciada em coisas nerds, porém, está longe de ser uma. Estuda história na UNIFAL-MG e sonha com um futuro no qual ganhe dinheiro com isso.

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Sonhos Empoeirados

Cadernos amarelados e antigos- sob a poeira acumulada -encontro, sem querer, sonhos caídosperdidos em conjunto, entre o nada

Fotograf ias, cartas, recortes de jornalPlanos, amores, um panf leto banalUma gaveta fechada - parte da vidapelo tempo, a parte, porém, esquecida

Nostalgia ocupa entre as lagrimas e os objetosParecem pertencer à vida alheia, desocupadaFuturos renegados de passados rabiscadosSonhos empoeirados se perdem no trajeto

Marina Bastos deveria ser escritora, mas ainda não aprendeu a fazer biografias de uma linha.

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Jovem

Sou consumista, ufanista, analista de revistasnão sou ninguémum deserto de ideiasdançando psytrance

Sou alienado, esculachadoVivo uma vida de escrachoUm ignorante

Sonhava viver uma revoluçãoAqui estou eu, exaustoAssistindo as mudanças pela televisão

Se penso, logo existoDeixei de ser, sou um abismo.

Lucas Santana é cético, esquerdista frustrado e entusiasta da era digital. Tentando tornar-se um jornalista. Enquanto isso, trabalha para man-ter-se são.

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Melhores Amigos

Que mundo estranho. Que sensação estranha. Não consigo lembrar de coisa alguma que se passou antes de hoje na minha vida. Será que

perdi a memória? Estou num quarto cor-de-rosa todo enfeitado, mas sou um menino, não estou entendendo nada.

Vou até a extremidade do quarto onde a janela não faz esforços para ref letir o sol, que brilha com intensidade. Sobre o criado-mudo ao lado da cama, vejo alguns porta-retratos com fotos de uma menina da minha idade, uns seis anos, com a família. Provavelmente esse é o quarto dela.

Ouço passos vindos da escada, subindo em direção ao quarto onde estou, e me escondo embaixo da cama, apavorado. Uma mulher entra no quarto poucos segundos depois de eu conseguir me esconder a tempo.

- Júlia, quantas vezes eu já falei pra você guardar os seus brinquedos no baú quando terminar de brincar? – grita aquela mulher bem alta e magricela, e que tem os cabelos negros como a escuridão.

Não consigo ouvir claramente a resposta, mas uma voz frágil e aguda resmunga alguma coisa lá de baixo. A moça dá uma olhada no quarto mas logo sai, deixando a porta entreaberta.

Que horas são? Será que estou aqui há muitas horas, dias ou só por esses minutos? Por que não consigo ter alguma lembrança sobre quem eu sou? Nem meu nome eu sei. Minha mãe deve estar preocupada, se é

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que eu tenho uma. Ou de repente eu more aqui mesmo nesta casa...

Finalmente a menina da voz aguda abre totalmente a porta, e eu distraído pelos meus pensamentos, tomo um susto e prendo a respiração, pois ainda estou embaixo da cama.

Essa é a menina das fotos, a dona do quarto. Júlia está chamando por alguém, o nome parece ser bem feio, algo parecido com tomate, mas não tenho certeza. Me escondo o melhor que posso, pois não quero que ninguém me descubra, muito menos ela. Mas é tentando arrumar uma posição um pouco confortável ali embaixo da cama, que sem querer minha perna esquerda aparece perto do criado-mudo na mesma hora em que Júlia está olhando para cá.

– Vem aqui, seu menino bobo, não fuja de mim. – sinto minha perna sendo arrastada junto com todo meu corpo. Como essa menina é assim tão forte? – A partir de hoje você é o meu mais novo melhor amigo.

Enquanto minha cabeça gira por causa daquela voz estridente, Júlia me ajuda a f icar de pé.

– Tomate, esse será seu nome! – Mas quem é você, do que você está falando? –

pergunto, confuso.– Oi Tomate, eu sou a Júlia, sua melhor amiga. Olha,

não fala nada pra mamãe, mas você é meu amiguinho que eu inventei.

– Como assim “que você inventou”? – Faço o gesto de aspas com as mãos e sento na cama, em meio a todas aquelas estampas rosas no lençol e travesseiro.

– É, eu inventei sim! Mas ninguém vai desconf iar, pode f icar tranquilo.

– Tá bom, mas como é meu nome mesmo? – Tomate.

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– Tomate? T-O-M-A-T-E? – Não gostou? Achei tão bonitinho! Na verdade

seu nome é Tomas, Tomate é só um apelido. – Ahh tá. – Júlia senta ao meu lado na cama e

tira os sapatos. Ela está usando um vestido branco com bolinhas azuis, e uma tiara rosa sobre seus cabelos castanhos. – Onde eu vou dormir? Eu preciso comer?

– Não, você não precisa comer nem dormir, eu te inventei só pra você brincar comigo e fazer o que eu mandar. Quando eu dormir, você pode f icar no balãozinho de sonho que f ica em cima da minha cabeça toda noite.

– Hmm, entendi. Tudo bem.– Tomate, você f ica aí na cama enquanto eu arrumo

meus brinquedos no baú, tá bom? A mamãe vai f icar brava se eu não deixar tudo no lugar.

– Tá.Fico ali sentado por uns dez minutos, observando

Júlia empilhar suas bonecas num baú de madeira, junto com algumas panelas de plástico e um chapéu de caubói. Ela termina de guardar tudo, fecha o baú e sai do quarto, sem ao menos olhar ou dizer algo para mim.

Então é isso: sou um menino inventado, ela me chama de Tomate e sei lá se ela gosta de mim mesmo. O que deve fazer um menino de mentira? Meus pensamentos também são de mentira. Eu devo mesmo me importar com o que Júlia pensa, se meus sentimentos também não existem? Deixa pra lá...

Em poucos minutos, Júlia volta ao quarto e me diz que já se passa das sete e a janta está pronta, que ela guardou um lugar à mesa para que eu f ique ao seu lado enquanto ela come. Com muita vergonha, enrubesço ao descer as escadas e ver a mãe e o pai de Júlia sentados em suas devidas cadeiras na sala de jantar, discutindo

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algo sobre contas, dinheiro e trabalho.– Mãe, trouxe o Tomate para jantar com a gente!

– apresentou-me Júlia aos seus pais. A cara de espanto de sua mãe não dava pra ter certeza se era por minha presença atrapalhar os assuntos da família ou se especif icamente pelo meu apelido, que Júlia não deveria ter dito assim, na frente de todos.

– Oi... meu nome é Tomas.– Quem é Tomate, Julinha? – disse seu pai, ignorando

totalmente o fato de que eu estava ali, no pé da escada enquanto a menina pulava os dois últimos degraus.

– Tomas! – repeti com entusiasmo, tentando disfarçar o apelido sem graça.

– Tomate é o meu amigo novo, papai, ele vai sentar do meu lado hoje, tá bom? – Júlia puxa uma cadeira para que eu me sente e puxa a outra para ela. O tic-tac do relógio de parede é o único barulho que se ouve durante um silêncio perturbador que dura alguns segundos.

Papai e mamãe, como ela os chama, estão com uma cara séria de preocupação, não parecem muito contentes. Tudo indica que eu sou a causa do problema.

– Filha, é bom que você saiba que não tem ninguém do seu lado. A gente já conversou sobre amiguinhos imaginários, não é mesmo? – disse a mãe.

- Sim, mamãe, mas é que...– Sem mas, a conversa está encerrada e hoje você

vai jantar no seu quarto para repensar suas atitudes, mocinha. – Os olhos de Júlia se enchem de lágrimas e ela sobe correndo as escadas, para o seu quarto. Dá para ouvir a porta batendo com muita força daqui debaixo.

Levanto da cadeira e volto ao pé da escada. As coisas não são como eu pensei, mesmo tendo pensado muito pouco até agora. Estava começando a me acostumar com a ideia de ter uma família que gostasse

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de mim, mas parece que sou só um empecilho para eles. Espero que Júlia deixe pelo menos eu morar em seu quarto, prometo nunca mais sair de lá.

Subindo as escadas desolado, ouço os pais conversando ainda à mesa, e paro de costas para ouvi-los.

– Você sabe, querido, a Júlia ainda não superou o meu aborto espontâneo. – disse a mãe.

– Eu sei. Desde que você f icou sabendo que estava grávida do Tomas, ela f icou muito ansiosa para ter um irmãozinho. Vamos ter que conversar com ela mais uma vez e explicar tudo de novo, ou levá-la a um psicólogo que cuide desses casos.

– Sim, você tem razão. Isso só me deixa mais atormentado. Agora eu

não sei quem sou. Se eu sou imaginário, se eu existo de verdade ou se existi numa barriga desafortunada e só estou vagando por aqui. Deve ser tudo uma coincidência, af inal eu sou fruto da imaginação da Júlia e melhor que seja assim.

Volto ao quarto, esperando que Júlia esteja lá, mas consigo ouvir distante o choro dela trancada no banheiro. Sem ter o que fazer, tenho uma ideia. Vou até o baú de brinquedos e tiro o chapéu de caubói de lá. Coloco em minha cabeça e brinco de bang-bang. Atiro para todos os lados. Por um segundo, ouço uma voz e percebo que tem alguém atrás de mim, onde não deveria haver ninguém. Mesmo assim me apresento.

– Oi, eu sou o Tomate, e você? Quer ser o meu mais novo melhor amigo?

Thiago Dalleck é uma cabeça e várias ideias, um pouco de acidez e uma dose de escrúpulos. Sal a gosto.

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O Último Pedaço de Pizza

O final de semana havia sido maravilhoso, a festa com toda a família no domingo à noite encerrou o feriado com todos os pratos pesados possíveis:

pizza, macarrão, lasanha etc. Era de se esperar que tudo aquilo tivesse que sair.

- Júlio, vá dormir, querido, você tem aula amanhã! – avisou minha mãe.

Acabei o meu último pedaço de pizza e fui direto pra cama.

No dia seguinte, primeiro dia letivo do 9º ano, acordei como se tivesse dormido cedo, a ansiedade e a alegria de reencontrar os amigos me mantinham acordado. Como era de costume, minha mãe me deixou na porta da escola. Aproveitei a meia hora antes da primeira aula da melhor maneira possível, colocando todas as novidades das férias em dia com o pessoal.

O sinal bateu. Entrei na sala de aula e procurei a cadeira em que costumava me sentar desde o 6º ano: f ileira do meio, no meio da f ileira. Quase ao mesmo tempo que os alunos, entrou o novo professor, de Física, o professor com fama de mau e detentor do respeito de todos os alunos da escola.

- Não acredito que caímos com esse professor, ainda mais na primeira aula da semana. – sussurrou Betina.

- Ele não deve ser tão ruim quanto dizem. – opinou Zeca.

- Silêncio!!! – ordenou o professor A. Nosliw.- Esquece – disse Zeca.

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O professor começou a aula, nem se apresentou, preferiu que conhecêssemos outra “pessoa”, a cinemática.

Já estávamos na metade da primeira das duas aulas de física quando aquele maldito último pedaço de pizza, aquele que eu insisti em terminar, decidiu que precisava sair de qualquer jeito. Decidi agüentar, mas não conseguia. Fechei os olhos por um momento: a dor parecia mais forte. Quando abri os olhos, vi Maria saindo da classe.

- Não acredito, ele deixou a Maria sair? – perguntei a Zeca.

- É, corajosa essa Maria, acho que ele deixa sair a primeira pessoa que pede pela coragem. – brincou Zeca.

Não agüentava mais: a dor era mais insuportável que qualquer bronca que eu viesse a levar, que qualquer banheiro sujo da escola que eu tivesse que usar.

- Sr. Nosliw, posso ir ao banheiro?- Tem gente lá fora.- Eu sei, mas e quando ela voltar?- Ah, não.- Mas Sr. Nos...- Chega.Já estávamos no f inal da primeira aula, Maria havia

voltado e o professor insistia em falar da cinemática enquanto eu suava frio na carteira usando todas as minhas forças para controlar o monstro dentro de mim. Me levantei, caminhei até o Sr. Nosliw e simplesmente falei a verdade:

- Sr. Nosliw, eu realmente preciso ir ao banheiro, é uma emergência.

Ele se curvou e fez um sinal para eu chegar mais perto e me respondeu:

- Então chame os bombeiros.Nem pude implorar; precisei voltar à carteira, já que

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era mais fácil agüentar a dor sentado do que em pé. O professor não pensou duas vezes antes de voltar a falar. Me coloquei a pensar em uma maneira de sair, talvez correndo que nem louco... não. Até abrir a porta, o Sr. Nosliw já teria me segurado. Que tal gritar um palavrão na sala de aula para que ele me mandasse para fora?

Com o Sr. Nosliw não f icaria só por isso, ele acabaria comigo pelo resto do ano e não me mandaria apenas para fora, com certeza ganharia uma suspensão de uns três dias.

Pensar e segurar aquela dor não era possível. Só de parar aqueles cinco minutos para pensar, a dor tinha ganhado uma enorme vantagem sobre mim. Precisava sair naquele instante. Levantei a mão; o professor foi mais rápido.

- Pare com isso, garoto, parece que está quase cagando nas calças!

- Mas eu pr...- Essa nova geração não agüenta nem duas míseras

aulas, qualquer copinho de água que tomam antes de entrar na sala já é desculpa para sair! Na minha época, nós não tínhamos nem coragem de pedir uma coisa dessas para o professor.

- Professor.- Vá, vá logo.- Deixa pra lá, não preciso mais sair.

Gustavo Fracalossi é técnico em Construção Civil e escreveu esta crônica só para extravasar sua (peculiar) criatividade divertida.

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// Agradecimentos

Agradeço a todos aqueles - participantes ou não do projeto - que tornaram este livro possível. Minha família, por todo o suporte ao longo destes vinte anos. E agradeço também as dores, que geralmente são o estopim para a atividade mais prazerosa de todas: a escrita.

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“...há vários e vários cadernos lotados de histórias e trechos inacabados em casa. Mas eles nunca saíram de sua zona de conforto, seu mundo micro. E, por saber e imaginar, tinha a certeza de que muitos amigos passavam pelo mesmo dilema. Se não eles, os amigos deles.”