UMA CONDUTA SISTEMÁTICA ENTRE MÉDICO … · sociologia compreensiva, ... pesquisas de campo e...
Transcript of UMA CONDUTA SISTEMÁTICA ENTRE MÉDICO … · sociologia compreensiva, ... pesquisas de campo e...
UMA CONDUTA SISTEMÁTICA ENTRE MÉDICO PESQUISADORES NA
VIRADA DO SÉCULO XIX PARA O XX
DANIEL GUERRINI1
Resumo: Este artigo discute a atuação de médicos sanitaristas na virada do século XIX
para o XX, que foi fundamental para a institucionalização da pesquisa científica no
Brasil. Através de uma análise ideal-típica da realidade, baseada nos pressupostos da
sociologia compreensiva, observa-se a ação de um grupo social, que colocou como
objetivo a modernização da sociedade segundo os ideais científicos da microbiologia e da
medicina experimental. Assim orientada, a ação desse grupo entra em choque com as
políticas de modernização controlada do Brasil daquele período. Essas políticas
autoritárias apoiavam, de maneira intermitente, pesquisas com fins utilitários. Mas a ação
dos pesquisadores, executada a partir do seu compromisso com os valores da atividade
científica, conseguiu alcançar estabilidade e continuidade nas atividades de pesquisa que
conduziam. Nesta análise observa-se, em meio a um período de acentuada e conturbada
modernização sociocultural do país, o início de um processo de diferenciação e
autonomização das suas esferas culturais.
Palavras-chave: Instruções; Artigo; Diretrizes; Normas; Palavras-chave.
INTRODUÇÃO
Este artigo propõe uma análise ideal-típica das ações de grupos e agentes sociais
envolvidos no desenvolvimento e estabelecimento da medicina experimental no país,
centrando na rede estendida de agentes ligados direta e indiretamente ao Instituto
Oswaldo Cruz (IOC), do Rio de Janeiro, na virada para o século XX. A abordagem
proposta tem como objetivo maior evidenciar o processo de diferenciação e
autonomização das esferas culturais – i.e. racionalização cultural – no Brasil, processo
este que, a despeito dos variados marcos teóricos utilizados na literatura, tem sido por
1 Universidade Tecnológica Federal do Paraná / Departamento de Ciências Sociais e Humanas,
Brasil. [email protected] / [email protected]
esta negligenciado em proveito de análises críticas que tendem a deixar indistintas esferas
sociais e culturais.
A análise ideal-típica, como mostram Schnapper (2000), Bourdieu e Passeron
(2013), Freund (2003) e Weber (1999), constrói um modelo de curso de ação baseada na
relação com um conjunto coerente de valores, que no caso é aquele ligado à atividade
científica. As ações históricas selecionadas são então analisadas como se seguissem esse
conjunto valorativo e, a partir do curso da ação empírica e seus desdobramentos, deduz-
se as motivações que efetivamente a guiaram e o quanto se aproximaram ou afastaram do
modelo teórico construído.
Toda interpretação é aqui realizada a partir de fontes indiretas, além do Relatório
de Viagem Científica de Arthur Neiva e Belisário Penna (1916). O objetivo não é trazer
nenhum dado novo sobre esses fenômenos já estudados à exaustão, mas uma nova
interpretação, com pressupostos e consequências teóricos relevantes. O argumento central
é de que através de uma conduta sistemática orientada à pesquisa científica, os médicos
ligados à microbiologia da virada do século XIX para o XX assumiram uma autonomia
relativa em relação ao padrão de dominação tradicional e oligárquica da época. Apesar de
serem obviamente parte das elites culturais (quando não político-econômicas) do país, o
foco deste trabalho centra-se na sua atuação como pesquisadores e agentes das políticas
de saneamento de cidades e regiões brasileiras. Como tais, estes agentes se orientavam
segundo um ideal de modernização do país a partir de sua visão de mundo científica.
Na época, tal visão dizia respeito à nova teoria microbiana e seu papel no estudo
etiológico das doenças tropicais. Tentava-se superar a medicina baseada na observação de
sintomas e substituí-la por uma medicina feita a partir de pesquisas experimentais e,
nesse sentido, mais científica. O estudo das ‘verdadeiras’ causas das doenças, através de
pesquisas de campo e laboratoriais, guiou a ação dos agentes analisados, mudando a sua
concepção acerca da sociedade brasileira e fundamentando uma intervenção no mundo
que se tornava crítica em relação ao horizonte cultural das políticas que os sustentavam.
Essa intervenção foi eficaz mesmo diante das adversidades colocadas pela sociabilidade
senhorial e pela política oligárquica que ainda vigoravam na época. Do ponto de vista
teórico, o que se observa a partir desses fenômenos empíricos é um processo de
racionalização cultural, que ampliou os horizontes da modernização que se impunham
pelas elites.
UMA MODERNIZAÇÃO DE HORIZONTES CULTURAIS MAIS AMPLOS
A análise da atuação dos pesquisadores ligados à medicina experimental é situada
no contexto do que Florestan Fernandes (2006) chamou de política de modernização
controlada. Foi um período de grandes mudanças socioeconômicas e culturais
(BENCHIMOL, 1992; CARVALHO, 1987; SILVA, 2014; SEVCENKO, 2010;
CUKERMIAN, 2007; HOLLANDA, 1995). Moldou-se, à época, uma política de caráter
autoritário, que adquiriu especial ênfase a partir da segunda metade do século XIX, com
ascensão da oligarquia cafeeira do sudeste brasileiro. A ascensão dessa oligarquia colocou
em pauta a necessidade de o Brasil se modernizar para inserir-se no mercado mundial a
partir dos nexos da produção agrícola exportadora. O período marca a passagem do
regime de trabalho escravo para o assalariado, acentuando o processo de modernização e
inserção do país no mercado mundial capitalista através da importação de capitais e bens
industrializados e exportação de produtos agrícolas. O caráter controlado advém de ser
esse processo de modernização claramente dominado por uma elite oligárquica, que,
diante das manifestações e expressões populares ocorridas à época em razão das
mudanças que se impunham, reprimiam-nas violentamente. O horizonte das
transformações jurídico-políticas que se implementavam era aquele definido pelos grupos
no poder, com a anuência e o endosso dos estratos urbanos intermediários em ascensão.
O fato de as instituições de pesquisa científica terem sido criadas
concomitantemente ao desenvolvimento das estruturas econômicas capitalistas e do
Estado modernas não autoriza a conclusão fácil de que a ciência serviu, estava atrelada,
tomou parte, imiscui-se, ou qualquer outra forma de amalgamento que se queira, aos
interesses dominantes da época. Autores de perspectivas tão díspares e analisando
contextos diversos como Morel (1979), Corrêa (2003), Benchimol (1992), Cukierman
(2007) e Sevcenko (2010) assumem esse caminho em suas análises. O fato de cientistas e
pesquisadores no Brasil serem parte de uma elite cultural em um país agudamente
segregado e de profundas desigualdades socioeconômicas talvez conduzam as leituras
para esse tipo de argumento. Entretanto, em ciência, a capacidade de síntese deve ser
precedida pela análise, e o estabelecimento dos nexos entre as partes não pode levar ao
ofuscamento de suas características particulares para o benefício das características
gerais.
A situação da atividade científica durante o século XIX e entrada para o XX,
como dito, não era estável. Paralelamente às escolas profissionais isoladas,
desenvolveram-se diversos institutos de pesquisa científica. Alguns deles são: a Escola de
Minas de Ouro Preto, o Observatório Nacional, o Museu Nacional, o Instituto
Agronômico de Campinas, a Escola Agrícola de Taquari, no Rio Grande do Sul criada, o
Instituto Bacteriológico de São Paulo, o Instituto Butantã em São Paulo, o Instituto
Soroterápico Federal, mais tarde Instituto Oswaldo Cruz, do Rio de Janeiro, e o Instituto
Biológico de São Paulo (SCHWARTZMAN, 1981; CUNHA, 2007, STEPAN, 1976;
CARVALHO, 2010; MORIZE, 1987; TEIXEIRA, 1989; FIOCRUZ, [201-]; SILVA,
2014). Criados com resistências política e social, eles contavam com parcos e
intermitentes recursos. Como afirmam Stepan (1976), Britto (1995), Carreta (2011) e
Silva (2014), tratava-se de um período em que a sociedade de modo geral não reconhecia
a importância da atividade científica. As instituições existentes, portanto, careciam de
legitimidade.
A grande maioria dos institutos teve existência intermitente ao longo do século
XIX. O Observatório Nacional e a Escola de Minas de Ouro Preto passaram longos
períodos do século XIX inativos (Morize, 1987; Sodré, 1987; Carvalho, 2010; Teixeira,
1989). Nas palavras de um diretor do Observatório, este vivia sob pressão de uma
“opinião pública [que] não estava bastante madura para possuir grandes estabelecimentos
científicos” (Emanuel Liais apud Sodré, 1987, p. 11). Isso ocorreu também como o O
Instituto Bacteriológico de São Paulo (STEPAN, 1976) e com a Escola Agrícola de
Taquari, criada em 1891 no Rio Grande do Sul, e fechada após a primeira turma de
engenheiros agrônomos se formarem (FIOCRUZ, [201-]).
A intermitência dos institutos está ligada, portanto, à falta de legitimidade da
atividade de pesquisa, associada à visão das elites regionais e nacionais de que esta não
passava de um recurso instrumental para fins imediatos. Maximiano Antônio da Silva
Leite, lente de Matemática da Academia de Marinha, trabalhando no Observatório
Nacional, expõe o dilema da instrumentalização da pesquisa, para quem em astronomia
“é preciso saber observar, sem o que a Ciência é mais curiosa que útil, e neste caso não
teria a proteção dos Governos” (apud MORIZE, 1987, p. 44). A ideia da utilidade da
ciência foi o que uniu o projeto de modernização das elites às concepções dos próprios
agentes desta atividade. Estabeleceu-se no horizonte da atividade científica a busca por
uma utilidade imediata, sem o que, sabia-se, não haveria apoio ou proteção dos governos
e sociedade. Como afirma Britto (1995), a ideologia da utilidade social foi largamente
utilizada a fim de angariar reconhecimento social e legitimidade à ciência.
O conhecimento médico e das engenharias se colocava, naquele momento, como
grande aliado dessa modernização autoritária, que objetivava equiparar o Brasil, ou ao
menos partes suas, às grandes cidades europeias. Negava-se o passado colonial bem
como as práticas e valores associados à população em geral, caracterizada como
ignorante, incapaz, inferior, incivilizada, etc. (BENCHIMOL, 1992; CARVALHO, 1987;
CUKIERMAN, 2007; SEVCENKO, 2010; SILVA, 2014; SÁ, 2009; OLIVEIRA, 1997).
Mas o conhecimento científico era instrumentalizado segundo os projetos de
modernização, o que é diferente de reconhecê-lo como legítimo. Atribuía-se-lhe a
capacidade de soterrar o passado colonial, vexaminoso para uma elite que se aprazia em
exibir suas conexões e proximidades com a civilização europeia (BENCHIMOL, 1992;
CUKIERMAN, 2007; SEVCENKO, 2010; SILVA, 2014). E foi nesse contexto que se
abriu a possibilidade de autonomização da esfera científica, conferindo estabilidade
social às suas atividades conspícuas. Mas como agiram os grupos responsáveis por esses
processos? Como foi sua adesão aos valores da atividade científica moderna e o que isso
significou para o curso de suas ações naquela sociedade?
Os funcionários do IOC também se queixavam das tentativas do governo em fazer
do instituto uma fábrica de vacinas. Os planos imediatistas fizeram, por exemplo, com
que o Instituto, após conter a peste bubônica da Capital do país (na época, Rio de
Janeiro)1, buscasse financiamento através de outros projetos sanitários (em outros
Estados com governos e empresas) (SÁ, 2009; BRITTO, 1995; A-FERNANDES, 1990;
CUNHA, 2007; SCHWARTZMAN, 2001; CUKIERMAN, 2007; THIELEN e SANTOS,
2002; STEPAN, 1976; AZEVEDO e FERREIRA, 2012).
Ao que indica a literatura, esse apoio político instrumental abria oportunidades
estruturais para a institucionalização da ciência, mas seu estreito horizonte cultural
dificultava muito o processo. Os pesquisadores assumiram vários cursos de ação, mas
todos com o claro objetivo de apoiar a atividade científica. Stepan (1976) considera o
papel de empreendedor científico de Osvaldo Cruz um dos fatores determinantes na
capacidade do IOC institucionalizar-se. Ele assumiu as tarefas administrativas necessárias
naquele momento crucial de institucionalização da atividade científica e foi responsável
pelo recrutamento e treinamento de um quadro altamente qualificado dentro do instituto
que dirigia2. Carreta (2011), por outro lado, expõe como Osvaldo Cruz desviava o foco
das incertezas que rondavam a soroterapia, valorizando a continuidade do apoio à
pesquisa para que se alcançasse, no futuro, melhores resultados. Delaporte (1995) mostra
como Carlos Chagas reescreveu a história de sua descoberta do Trypanossoma cruzi e da
doença de Chagas para não expor os erros e acasos que levaram ao seu sucesso. Em um
período delicado da história da atividade científica como aquele, o risco dessa exposição
era muito alto para o empreendimento como um todo. Era demasiado importante trazer à
luz a consistência e o rigor dos experimentos, assim como a solidez das teorias e
argumentos propostos, para garantir o apoio às atividades de pesquisa. Britto (1995)
mostra, por sua vez, como, após a morte de Oswaldo Cruz, os médicos sanitaristas
proferiam discursos laudatórios e até exageros mitificadores sobre a personalidade do
falecido pesquisador para sustentar o apoio à pesquisa científica no país.
Já ao fim do século XIX, “a ciência dos micróbios converteu-se no pólo (sic) mais
dinâmico da medicina brasileira” (Benchimol, 1995, p. 68). E, como coloca Oliveira
(1997), existiu nas cidades do período imperial e da Primeira República um engajamento
de uma elite dos médicos brasileiros nas políticas higienistas implementadas por diversos
governos. Uma das mais significativas foi aquela implementada por Rodrigues Alves,
eleito presidente da República em 1902. Este nomeou Osvaldo Cruz Diretor-Geral da
Saúde Pública, já à frente do Instituto Soroterápico do Rio de Janeiro, para implementar
suas reformas sanitárias.
O incentivo às pesquisas em microbiologia para implementar as políticas
sanitárias com o governo de Rodrigues Alves se insere no contexto de modernização
controlada já mencionado. Tratava-se de um período de ascensão da agricultura cafeeira e
a sociedade, especialmente seus setores dominantes, sentia a necessidade de modernizar o
país, que sofria com epidemias as mais variadas e péssimas condições sanitárias nos
centros urbanos em expansão. A necessidade de reformar esses grandes centros urbanos,
especialmente as áreas portuárias de importação e exportação de bens e pessoas, era
considerada urgente para que a imagem do país melhorasse entre os países estrangeiros,
de quem dependiam fundamentalmente os cafeicultores de São Paulo para o sucesso de
seus negócios (BENCHIMOL, 1992; OLIVEIRA, 1997; SEVCENKO, 2010;
CARRETA, 2011).
Rodrigues Alves, com maioria na câmara de deputados, conseguiu aprovar uma
lei que tornava a vacinação obrigatória e Osvaldo Cruz foi responsável pela
regulamentação da lei, que reforçou seu caráter autoritário. Osvaldo Cruz identificou-se
plenamente com os métodos autoritários de modernização de sua época, demandando,
por exemplo, a criação de um dispositivo jurídico para lidar com médicos que, em nome
do segredo profissional, se recusavam a informar as autoridades sobre doenças
contagiosas diagnosticadas. Na regulamentação da lei de vacinação, ele exigiu plena
liberdade e autonomia para executar as medidas que julgasse necessárias à erradicação da
varíola no Distrito Federal (OLIVEIRA, 1997; SEVCENKO, 2010; CUKIERMAN,
2007).
A política higienista previa a entrada de agentes sanitários nas residências e a
aplicação da vacina em todos os residentes indistintamente. Os deputados da oposição ao
governo federal fizeram discursos inflamados nos meios políticos e através dos jornais,
apelando aos direitos civis de privacidade e pela liberdade individual, contra as medidas
autoritárias do governo. A população, já insatisfeita e atingida pelo direcionamento
autoritário das políticas da República Oligárquica, se rebelou contra a obrigatoriedade da
vacinação, formando barricadas e resistindo aos agentes sanitários, à polícia, ao exército
e à marinha, no que foi denominado a Revolta da Vacina de 1904 (OLIVEIRA, 1997;
SEVCENKO, 2010; CARRETA, 2011; CUKIERMAN, 2007).
Além disso, as políticas higienistas de Osvaldo Cruz enfrentavam oposição dentro
da própria corporação médica por razões científicas tanto quanto extracientíficas. Do
ponto de vista da ciência médica, até então, os métodos profiláticos se baseavam na
observação de sintomas, e a ideia de que havia agentes patogênicos microbiológicos era
objeto de discussões nos meios especializados internacionais tanto quanto nacionais
(STEPAN, 1976; BEN-DAVID, 1960; CARRETA, 2011; BENCHIMOL, 1995; SILVA,
2014). No que dizia respeito aos argumentos extracientíficos, tratava-se de um período
em que a ciência tinha pouca legitimidade e o país pouca tradição no desenvolvimento de
pesquisas. Logo, os adeptos da microbiologia e, em especial, a equipe do IOC dispendia
um grande esforço na tentativa de convencer a corporação médica, mas também os
governos e a sociedade, de que a microbiologia e os métodos profiláticos da soroterapia
eram eficazes (BRITTO, 1995; CARRETA, 2011; BENCHIMOL, 1995; DELAPORTE,
1995).
O meio médico tradicional, que corroborava a visão de mundo senhorial,
mantinha uma clientela privada oriunda das famílias oligárquicas, do alto comércio e de
funcionários do Estado. O próprio ‘mundo médico oficial’ era parte das classes médias,
que cultuavam os valores tradicionais da sociedade. Esse meio médico, portanto, não
concordava com os métodos da administração da saúde pública impostos por Osvaldo
Cruz após 1902, malgrado o “prestígio francês” de sua base científica. Tais médicos
encontravam-se distantes desse novo paradigma científico. As preocupações higienistas
desta corporação estavam calcadas em uma visão de mundo senhorial, preocupada com a
higiene das famílias, de suas crianças e das casas pouco adaptadas ao clima tropical.
Contrapunham às políticas higienistas do Distrito Federal os ideais da liberdade
individual e dos direitos civis, com o que intencionavam preservar o status quo ante as
tentativas de modernizar o país. O ideal da liberdade individual apelava a um direito de
escolha no interior de uma sociedade profundamente desigual e marcada pela divisão
estamental (OLIVEIRA, 1997; SILVA, 2014).
Osvaldo Cruz, seus colaboradores e bacteriologistas de outros Estados como São
Paulo mantinham, pelo contrário, uma perspectiva nacional e percebiam que a medicina
clínica, baseada no atendimento particular das famílias brasileiras, não seria capaz de
resolver os problemas sanitários que enfrentavam (STEPAN, 1976; OLIVEIRA, 1997;
BRITTO, 1995; SÁ, 2009; SILVA, 2014). Com o paradigma microbiano encampado por
esses pesquisadores, configurava-se o caráter modernizador da conduta do cientista
brasileiro. Os pesquisadores adeptos da teoria microbiana davam-se conta, no processo,
das raízes sociais desses problemas. Eles realizavam observações por todo o país, que
alteravam a visão do homem brasileiro que se tinha à época. Sua adesão às políticas
higienistas autoritárias calcava-se, cada vez mais, na ideia de que não era 'o brasileiro'
que era incapaz de tornar-se civilizado ou moderno, mas que eram as péssimas condições
de vida que impediam o Brasil de modernizar-se (SÁ, 2009; OLIVEIRA, 1997).
O Relatório Neiva-Penna, resultado da viagem de Arthur Neiva e Belisário Penna
ao Norte e Nordeste do Brasil em 1912, promovida pelo IOC, como demanda da
Inspetoria de Obras contra as Secas, órgão do Ministério dos Negócios da Indústria,
Viação e Obras Públicas, foi sintomática na mudança dessa interpretação do Brasil (SÁ,
2009; NEIVA e PENNA, 1916). O uso de expressões como “sertanejo inconsciente”
(NEIVA e PENNA, 1916, p. 83) e a referência às desigualdades entre o Sul do Brasil –
onde “se cuida de algum modo da instrução do povo” (NEIVA e PENNA, 1916, p.221) –
e as regiões norte e central, consideradas “vastos territorios (sic) abandonados,
esquecidos pelos dirijentes (sic), com populações vejetando (sic) na miséria, no
obscurantismo, entregues a si mesmas, flageladas pelas sêcas (sic) [...] e por moléstias
aniquiladoras” (NEIVA e PENNA, 1916, p. 222), denotam a visão de que as populações
miseráveis eram atingidas, vítimas de condições ambientais, especialmente políticas e
sociais, degradantes.
Observa-se que, com base nos ideais da medicina experimental e de laboratório e
na convicção acerca de seu papel na modernização do país, esses pesquisadores
mantiveram uma constância interna entre seus valores e sua ação no mundo. Desde a
adesão às políticas higienistas oficiais até a crítica às desigualdades e às relações políticas
e sociais que impunham miséria e degradação à população, esses pesquisadores
mantiveram-se fieis à sua visão de mundo científica. De maneira ideal-típica, a ação
desses pesquisadores orientava-se, como colocam Britto (1995) e Oliveira (1997), ao
desenvolvimento do país a partir de seus valores e práticas científicas. A ideia era de que
a ciência experimental conferia uma visão privilegiada do mundo aos pesquisadores nela
imersos, já que expunha as verdadeiras causas das doenças, contrariando as concepções
correntes da época. A identificação de tais causas extrapolava os limites do conhecimento
bacteriológico, pois punha em evidência as relações sociais que criavam condições
propícias à propagação das doenças. A política era colocada, nos discursos dos próprios
pesquisadores, no âmbito dos interesses mesquinhos, da corrupção e da ignorância.
Expunha-se também os laços que uniam a medicina tradicional àquelas relações arcaicas.
Tornava-se óbvia a ineficácia da medicina tradicional no controle das epidemias tropicais
e a medicina experimental passava então a ser imprescindível ao projeto de modernização
do país (OLIVEIRA, 1997; SILVA, 2014; BRITTO, 1995; SÁ, 2009).
Isso elucida como a união entre interesses político-econômicos dominantes e o
horizonte de atuação dos pesquisadores da medicina experimental, através do nexo da
ciência aplicada, não os tornou meros cúmplices em um projeto global de subjugação das
classes populares. Da parte dos pesquisadores, os projetos de modernização foram
articulados aos valores científicos, orientando de maneira clara e constante sua ação.
Assim, esse habitus transpassa os interesses oligárquicos e dos estratos dominantes
daquela sociedade. A ideia de que o desenvolvimento nacional deveria se basear nos
valores e práticas científicas forneceu um sentido específico às ações que implementaram
as políticas sanitárias em um país subdesenvolvido, de política oligárquica e autoritária e
que não reconhecia a atividade científica como legítima.
Os projetos de modernização controlada dos Governos da Primeira República,
ainda que enfrentassem oposição de setores da sociedade brasileira, não visavam a uma
mudança nas relações com as classes populares, as quais eram agora objeto de
investigação científica por parte de pesquisadores como Domingos José Freire, Francisco
Fajardo, Osvaldo Cruz, Carlos Chagas, Vital Brazil, Adolfo Lutz, Arthur Neiva e
Belisário Penna. Essa a importância de distinguir sociedade e cultura na análise
sociológica. Pois, se havia uma modernização das estruturas sociais sendo implementada
pelas políticas republicanas, seu horizonte cultural mantinha-se estreito. Os médicos
pesquisadores passaram, em determinado momento, a criticar justamente a estreiteza
desse horizonte. Neiva e Penna (1916, p. 222) relatam essa incongruência de visão de
mundo quando, descrevendo a paisagem “trágica” das regiões observadas, preveem que
seu compromisso com a verdade e a franqueza de suas impressões não agradarão.
Percebiam seu relato como um dever de consciência e patriotismo contrário às
circunstâncias.
Quando as perspectivas de desenvolvimento interiorizadas por esses
pesquisadores se chocaram contra os limites das políticas higienistas da República
Oligárquica, eles começaram então a apoiar uma revolução do sistema político como um
todo, pois identificavam nas irracionalidades deste as causas das doenças que afetavam as
populações pobres e trabalhadoras. Essa crítica se concretizou, mais tarde, na criação da
Liga Pró-Saneamento do Brasil e através da adesão de alguns desses agentes à Revolução
de 1930, por verem nesta uma possibilidade de modernização social efetiva. A sociedade
deixou de ser vista, por esses pesquisadores, como contraexemplo de comportamentos e
hábitos, como faziam as prescrições médicas da época. Adquiria-se a consciência de que
a sociedade era, em realidade, vítima das relações arcaicas da política e das elites
brasileiras (BRITTO, 1995; OLIVEIRA, 1997; SÁ, 2009).
Conclusões
Como afirma Oliveira (1997), o fenômeno original nesse contexto social é que
existe uma crescente oposição do novo paradigma científico (microbiológico) em relação
ao sistema político representado pela República Oligárquica. A modernização posta em
marcha pelo governo de Rodrigues Alves pretendia deixar intacta a estrutura social
senhorial. Mas o meio médico oficial, com seu modelo de atendimento privado familiar,
não tinha a competência e os meios necessários para pôr em prática os projetos de
modernização. Assim, os médicos sanitaristas, munidos dos ideais da pesquisa
experimental, encabeçaram uma política higienista científica e fizeram descobertas que
terminaram por conquistar adeptos entre a comunidade médica. Os médicos sanitaristas,
como 'soldados de uma revolução científica', passaram, cada vez mais, a se opor a um
sistema político em crise crescente (OLIVEIRA, 1997).
As análises realizadas apontam para um processo de racionalização cultural e
autonomização das esferas de ação cultural. O que em outros países pode ter significado
uma tensão maior entre as visões científicas e as religiosas do mundo, no Brasil essa
autonomização significou mais uma tensão entre o horizonte cultural da atividade
científica e o próprio sistema político e social da virada de século XX.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AZEVEDO, Nara, e FERREIRA, Luiz Otávio. Os Dilemas de Uma Tradição Científica:
Ensino Superior, Ciência E Saúde Pública No Instituto Oswaldo Cruz, 1908-1953.
História, Ciências, Saúde-Manguinhos 19, no 2, junho de 2012: 581–610.
doi:10.1590/S0104-59702012000200013.
BEN-DAVID, J. Roles and Innovations in Medicine. American Journal of Sociology, v.
65, n. 6, pp. 557-568, maio de 1960.
BENCHIMOL, Jaime L. Domingos José Freire E Os Primordios Da Bacteriologia No
Brasil. História, Ciências, Saúde-Manguinhos 2, no 1, junho de 1995: 67–98.
doi:10.1590/S0104-59701995000200005.
______. Pereira Passos: um Haussman tropical: A renovação urbana da cidade do Rio de
Janeiro no início do século XX. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo
e Esportes, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de
editoração, 1992.
BOURDIEU, Pierre e PASSERON, Jean-Claude. Os herdeiros: os estudantes e a cultura.
Florianópolis: Editora UFSC, 2013.
BRITTO, N. Oswaldo Cruz: a construção de um mito na ciência brasileira [online]. Rio
de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 1995. 144 p. ISBN 85-85676-09-4. Available from
SciELO Books
CARRETA, Jorge Augusto. Oswaldo Cruz E a Controvérsia Da Sorologia. História,
Ciências, Saúde-Manguinhos 18, no 3, setembro de 2011: 677–700. doi:10.1590/S0104-
59702011000300005.
CARVALHO, José M. de. A Escola de Minas de Ouro Preto: o peso da glória. Rio de
Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2010. Available at:
<http://www.bvce.org/DownloadArquivo.asp?Arquivo=CARVALHO_Jose_Murilo_de_
%20A_Escola_de_Minas_de_Ouro_Preto.pdf>. Accessed in 2 of June of 2011.
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não
foi. São Paulo, Companhia das Letras, 1987.
CORRÊA, Maíra B. O Brasil na Era do Conhecimento: Políticas de ciência e
tecnologia e
desenvolvimento sustentado. Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós
Graduação
em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre: 2003.
CUKIERMAN, Henrique. Yes, Nós Temos Pasteur: Manguinhos, Oswaldo Cruz E a
História Da Ciência No Brasil. Rio de Janeiro, Brazil: Relume Dumará : FAPESP, 2007.
CUNHA, Luiz Antônio C. R. da. A Universidade Temporã: o ensino superior, da
colônia à era Vargas. 3ª edição. São Paulo: UNESP, 2007.
DELAPORTE, François. Chagas, a Lógica E a Descoberta. História, Ciências, Saúde-
Manguinhos 1, no 2, fevereiro de 1995: 39–53. doi:10.1590/S0104-
59701995000100004.
FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil: ensaio de interpretação
sociológica. São Paulo: Globo, 5ª ed., 2006.
FERNANDES, Ana Maria. A construção da ciência no Brasil e a SBPC. Brasília:
Universidade de Brasília, ANPOCS, CNPq, 1990.
FREUND, Julien. Sociologia de Max Weber. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2003.
FIOCRUZ. Escola de Agricultura e Viticultura de Taquari. Dicionário Histórico-
Biográfico das Ciências da Saúde no Brasil (1832-1930). Acesso em 16 jul. 2015.
Online. Disponível em
<http://www.dichistoriasaude.coc.fiocruz.br/iah/pt/verbetes/escagtaq.htm>
HOLLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26a ed., São Paulo: Companhia das
Letras, 1995.
LADRIÈRE, Paul. Pour une sociologie de l’éthique. Paris: PUF, 2001.
LÖWITH, Karl. Racionalização e liberdade: o sentido da ação social. In: M. M. Foracchi
& J. M. Martins (orgs.). Sociologia e Sociedade: leituras de introdução à sociologia. Rio
de Janeiro: LTC Editora, 1980.
MOREL, Regina Lúcia Moraes. Ciência e Estado: a política científica no Brasil. São
Paulo:
T. A. Queiroz, 1979.
MORIZE, Henrique. Observatório Astronômico: um século de história (1827-1927).
Rio de Janeiro: Museu de Astronomia e Ciências Afins : Salamandra, 1987.
NEIVA, Arthur; PENNA, Belisário. Viagem científica pelo norte da Bahia, sudoeste de
Pernambuco, sul do Piauí e de norte a sul de Goiás. Memórias do Instituto Oswaldo
Cruz, Rio de Janeiro, v.8, n.30, p.74-224. 1916.
OLIVEIRA, Renato de. Éthique et médecine au Brésil. Étude sur les rapports entre le
débat sur l ́éthique médicale et la participation politique des médecins brésiliens dans la
période 1978-1988 – v. 1 e 2. (Tese de doutorado apresentada à E.H.E.S.S., Paris,
setembro de 1994). Lille: Presses Universitaires de Lille, 1997.
SÁ, Dominichi Miranda de. “Uma Interpretação Do Brasil Como Doença E Rotina: A
Repercussão Do Relatório Médico de Arthur Neiva E Belisário Penna (1917-1935).”
História, Ciências, Saúde-Manguinhos 16 (July 2009): 183–203. doi:10.1590/S0104-
59702009000500009.
SILVA, Márcia Regina Barros da. O Laboratório E a República: Saúde Pública,
Ensino Médico E Produção de Conhecimento Em São Paulo (1891-1933). Coleção
História E Saúde. Rio de Janeiro, RJ: Editora FIOCRUZ, 2014.
SCHNAPPER, Dominique. Compreensão Sociológica: como fazer análise tipológica.
Lisboa: Gradiva, 2000.
SCHWARTZMAN, Simon. Um espaço para a Ciência: a formação da comunidade
científica no Brasil. Brasília: Ministério da Ciência e Tecnologia & Centro de Estudos
Estratégicos, 2001.
______. Ciência, Universidade e Ideologia: a política do conhecimento. Rio de Janeiro:
Zahar Editores, 1981.
SEVCENKO, N. A Revolta da Vacina: mentes insanas em corpos rebeldes. São Paulo:
Cosac Naify, 2010.
SODRÉ, Nelson W. Morize e o Observatório Nacional. In: MORIZE, Henrique.
Observatório Astronômico: um século de história (1827-1927). Rio de Janeiro: Museu
de Astronomia e Ciências Afins : Salamandra, 1987.
STEPAN, Nancy. Beginnings of Brazilian science: Oswaldo Cruz, medical research and
policy, 1890-1920. New York: Science History Publications, 1976.
TEIXEIRA, Anísio. Ensino superior no Brasil: análise e interpretação de sua evolução
até 1969. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1989.