Uma Discução Sobre Periodização Na História

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Tiempo y Sociedad, 17 (2014), pp. 7-32. 7 Uma discussão sobre a periodização na História Wellington de Oliveira 1 Mônica Liz Miranda 2 Foi o medo da grande historia que matou a grande história”. (FARAL, 1942) I- Introdução Quando nos empenhamos pela busca do conhecimento histórico, partimos da ideia de que toda história é uma história dos “homens em sociedade”, aprendemos que para resgatar o modo de vida desses seres humanos é necessário estar atento as noções de memória, tempo e lugar. Em seguida, devemos refletir acerca das relações entre o vivido dos seres humanos em sociedade e as questões presentes no nosso cotidiano. Marc Bloch, um dos maiores historiadores do século XX, recorria à seguinte anedota para analisar as relações entre o presente e o passado: acompanhava eu Henri Pirenne a Estocolmo; mal chegamos, diz-me ele: “Que vamos nós ver primeiro? Parece que há uma Câmara nova. Comecemos por lá”. Depois como se me quisesse evitar um movimento de surpresa, acrescentou: “Se eu fosse um antiquário, só teria olhos para as coisas velhas. Mas sou um historiador. É por isso que amo a vida”. Nesta faculdade de apreensão de que é vivo é que reside, efetivamente, a qualidade fundamental do historiador.(...) Em 1 Professor Adjunto I da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri. Mestre e Doutor em Educação pela FAE/UFMG. 2 Professora Assistente da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri. Mestre em História pela FAFICH/UFMG

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artigo famoso pela sua linguagem clara

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  • Tiempo y Sociedad, 17 (2014), pp. 7-32.

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    Uma discusso sobre a periodizao na Histria

    Wellington de Oliveira1

    Mnica Liz Miranda2

    Foi o medo da grande historia

    que matou a grande histria.

    (FARAL, 1942)

    I- Introduo

    Quando nos empenhamos pela busca do conhecimento histrico, partimos da

    ideia de que toda histria uma histria dos homens em sociedade, aprendemos que

    para resgatar o modo de vida desses seres humanos necessrio estar atento as noes

    de memria, tempo e lugar.

    Em seguida, devemos refletir acerca das relaes entre o vivido dos seres

    humanos em sociedade e as questes presentes no nosso cotidiano. Marc Bloch, um dos

    maiores historiadores do sculo XX, recorria seguinte anedota para analisar as

    relaes entre o presente e o passado:

    acompanhava eu Henri Pirenne a Estocolmo; mal chegamos, diz-me

    ele: Que vamos ns ver primeiro? Parece que h uma Cmara nova.

    Comecemos por l. Depois como se me quisesse evitar um

    movimento de surpresa, acrescentou: Se eu fosse um antiqurio, s

    teria olhos para as coisas velhas. Mas sou um historiador. por isso

    que amo a vida. Nesta faculdade de apreenso de que vivo que

    reside, efetivamente, a qualidade fundamental do historiador.(...) Em

    1 Professor Adjunto I da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri. Mestre e Doutor em

    Educao pela FAE/UFMG. 2 Professora Assistente da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri. Mestre em

    Histria pela FAFICH/UFMG

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    boa verdade, conscientemente ou no, sempre s nossas experincias

    cotidianas que, em ltima anlise, vamos buscar, dando-lhes, onde for

    necessrio, o matiz de novas tintas, os elementos que nos servem para

    a reconstituio do passado: as prprias palavras de que nos servimos

    para caracterizar os estados de alma desaparecidos, as formas sociais

    estioladas, que sentido teriam para ns se no tivssemos visto

    primeiro viver os homens? (BLOCH, Marc. Introduo Histria.

    Lisboa: Publicaes Europa Amrica, 1965. p. 42-44).

    Nessa perspectiva, devemos nos ater a uma reflexo acerca do processo de

    construo da noo de tempo histrico, tomando com referncia o fato de que a

    periodizao desse mantm relaes estreitas com o relato dos vencedores e, de algum

    modo, ainda permanece presente. O historiador Jos Honrio Rodrigues costumava

    dizer que todas as periodizaes e delimitaes do curso de histria universal,

    aparentemente so apenas condicionais e voluntrias.

    Quando refletimos sobre o tempo histrico e sua delimitao temporal, nos

    remetemos antes s origens da prpria narrativa histrica. Os pais da histria foram os

    gregos, que a conceberam por volta do sculo V a.C. Antes dos gregos, os chineses

    haviam elaborado suas listas de documentos, que tinham um carter mgico, ou seja,

    cumpriam uma funo ritual sagrada. Tambm no Isl havia um tipo de histria ligada

    religio e tinha como funo exaltar as origens sagradas daquela sociedade.

    Entre os gregos, a narrativa histrica surgiu a partir das obras de Herdoto e

    Tucdides. O primeiro, conhecido como Pai da Histria, buscava basicamente distinguir

    sua cultura dos hbitos e costumes de outros povos. Desse modo, ele buscava marcar a

    cultura de seu povo como modelo de sociedade, enquanto os demais foram

    hierarquizados de acordo com a sua maior ou menor proximidade quele ideal.

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    Tucdides, por sua vez, foi motivado pela intensa participao poltica vivenciada pelos

    os cidados atenienses. Em sua obra A guerra do Peloponeso, que trata desde os

    primrdios da sociedade ateniense at o desenrolar do conflito que d nome ao livro.

    Ao observar as obras desses autores, possvel perceber que as estruturas das

    mesmas apresentam a marca do etnocentrismo que, de certo modo, amalgama a prpria

    noo de tempo e memria. Para o historiador Francisco Iglesias

    a histria universal, de fato, maneira antiga, no passa de

    abstraes. o estudo do mundo dominante, da Europa Ocidental,

    com vagas referncias ao norte da frica e ao Oriente Prximo, em

    simples citaes de outras reas. (Francisco Iglesias Histria e

    Ideologia, p. 19).

    Alm de etnocntrica, a periodizao apresenta a viso das classes dominantes,

    as rupturas apresentadas refletem como as mesmas percebem e discursam sobre o vivido

    histrico. Em um processo de escolhas entre o que deve ser lembrado/rememorado e o

    que ser esquecido/apagado, geralmente resultou do empenho dos vencedores. Karl

    Marx e Friedrich Engels nos lembram que a ideologia consiste em transformar as

    ideias da classe dominante em ideias dominantes. Periodizar estabelecer marcos,

    sendo assim, este ato ideolgico, tem seus condicionantes na sociedade que o concebe.

    Esse ato estabelece o papel das classes sociais no processo histrico permite a

    imposio de um silncio dos vencidos, como afirma Marilena Chau:

    elucidar o sentido da periodizao oficial, de sorte a evidenciar que

    esta ltima no uma ao terica e desinteressada, mas um Ato de

    Poder (grifo nosso). A periodizao produz o lugar da histria e,

    como ele, o d origem legitimada do poder vigente.

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    Este ensaio pretende apresentar uma reflexo acerca do processo de construo

    da noo de periodizao, demonstrando como as diferentes concepes de tempo

    histrico refletem os debates presentes nos respectivos contextos em que se surgiram e

    se desenvolveram. Nossa inteno observar o conceito de tempo histrico como parte

    de uma concepo do vivido histrico, pensado em uma ampla perspectiva.

    II - Do mito narrativa histrica

    Vimos anteriormente que a narrativa histrica se constituiu por volta do sculo

    V a.C., durante o chamado perodo da Grcia Clssica.

    A Grcia Antiga palco de uma desmistificao da explicao do passado,

    expressado nos fragmentos de textos de Hecateu de Mileto. Sobre a busca da verdade,

    ele questiona Vou escrever o que acho ser verdade, porque as lendas dos gregos

    parecem ser muitas e visveis. Essa preocupao de Hecateu com a verdade demonstra

    que a explicao no mais se apresenta apenas pelo sobrenatural, mas tambm sim pela

    ao dos homens. Isto uma caracterstica da cultura grega, verificada at na sua

    religio.

    Em se tratando de obras completas, temos os autores Herdoto e Tucdides,

    cujas narrativas marcam o nascimento da escrita da Histria. Ambos elaboram suas

    narrativas em um contexto onde os contos picos e mticos costumavam ser tratados

    como verdadeiros.

    Essas narrativas se distinguiam do texto histrico na medida em que no

    procuravam datar os eventos narrados ou mesmo se preocupavam com a comprovao

    de seu relato. Alm disso, tradicionalmente grande parte das narrativas pica e mtica

    era passada de gerao para gerao por meio do relato oral.

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    Em geral, a cronologia utilizada pelas sociedades da Antiguidade era concebida

    em conformidade com o imaginrio mitolgico de cada cultura, sendo que o destino dos

    seres humanos estava inevitavelmente subordinado vontade dos deuses. Essas

    sociedades tambm tinham em comum uma base econmica agrcola, dependendo da

    natureza para a sobrevivncia. Exemplo tpico a sociedade do Egito Antigo. A

    historiadora Vany Pacheco afirma que o tempo histrico e o passado sempre

    apresentado como remoto e distante.

    um tempo alm da possibilidade de clculos: referem-se ele como

    o princpio de todas as coisas. os primrdios. Os fatos mitolgicos

    so apresentados um aps os outros, o que j mostra, portanto, uma

    seqncia temporal; mas o mito se refere a um pseudotempo e no a

    um tempo real, pois no datado de acordo com nenhuma realidade

    concreta .

    Apesar do tempo no se apresentar inserido em uma realidade concreta, ele

    reflete a viso do mundo possvel dentro dessa mesma realidade concreta. Como j

    explicamos anteriormente, estas sociedades tinham, uma base material estreitamente

    vinculada natureza, que lhes possibilita a percepo do vivido numa perspectiva

    circular e no linear. Exemplo disso so as enchentes do Nilo (Egito Antigo) se

    repetem, assim como se repetem a poca da semeadura e das colheitas. O fara Deus,

    porque a ele cabe a distribuio da produo.

    Por outro lado, Herdoto e Tucdides visaram estabelecer uma cronologia mais

    definida para os seus respectivos relatos. Naquela poca no havia um calendrio

    unificado, como ns temos atualmente. Na Grcia, por exemplo, cada cidade tinha o seu

    prprio calendrio, baseado nas festividades religiosas locais.

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    Nesse contexto, Herdoto escreveu sua narrativa enfrentando elementos

    desafiadores, dos quais se destacam a impreciso dos relatos sobre o passado dos gregos

    e a predominncia de uma noo de tempo cclica, mas prxima ao tempo da natureza.

    Visando a superao desses elementos, ele elaborou uma sequncia cronolgica dos

    eventos que construram o passado dos helenos, abrangendo aproximadamente desde a

    metade do sculo do VII a.C at o sculo V a.C., poca em que viveu.

    Tucdides, por sua vez, se preocupou em registrar os eventos que marcaram a

    guerra do Peloponeso. Destaca-se o fato de que o prprio autor participou intensamente

    do conflito. Tendo em vista demonstrar a importncia do evento a ser tratado, Tucdides

    resgata o passado dos helenos desde os primrdios da ocupao da Hlade at tratar

    propriamente dos eventos que marcaram a guerra do Peloponeso. Alm disso, o autor

    afirma que os registros dos fatos teriam uma funo pedaggica, ou seja, resgatar o

    passado para que se aprendesse com os erros cometidos, de maneira a no repeti-los.

    Ambos deixaram um legado inestimvel ao conhecimento histrico, na medida

    em que se distanciam do carter religioso que at ento marcavam os relatos mticos

    sobre a vida dos seres humanos em sociedade. Eles compreendiam que a vida em

    sociedade resultado das decises tomadas pelas prprias pessoas, e no pelos

    caprichos dos deuses. E que essas aes ocorrem, portanto, em um determinado tempo e

    lugar. Do mesmo modo, a narrativa mtica no desapareceu. Ao contrrio, permaneceu

    em destaque como busca de respostas aos fenmenos naturais e sociais. Esta no ser

    mais a nica, mas paralela a outras, como a Histria.

    Posteriormente, entre os romanos, tambm foram produzidas obras de carter

    histrico. Os historiadores romanos se dedicaram, em sua maioria, a exaltao dos

    grandes feitos de Roma ou testemunhar as glrias pessoais dos Imperadores. Entre as

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    obras mais importantes do perodo podemos citar A Histria Romana, de Tito Lvio

    (59 17 a.C.) e As Guerras da Glia de Jlio Csar (101 44 a.C.).

    Assim como os gregos, eles faziam uma comparao entre o seu modelo de

    sociedade e o modo de vida dos povos que eles consideravam brbaros. Desse modo,

    eles tambm partiam da ideia de que o seu modo de vida era o melhor. Contudo, a

    narrativa histrica romana marcada pela ideia de que as sociedades nascem, crescem

    e morrem, assim como ocorre com os seres humanos. Essa crena se estendia at

    mesmo prpria sociedade.

    desse perodo outro historiador grego, Polbio, do sc. II a. C. que propunha

    uma viso de histria cclica e tambm afirmava que o historiador, para ser fiel ao relato

    dos fatos, no poderia se envolver emocionalmente, ou seja, o objeto no teria

    influncia sobre o sujeito/narrador e vice-versa. Tal postura nos remete discusso

    sobre a relao entre neutralidade e busca da verdade, que marca a Histria dita

    cientfica, constituda no decorrer sculo XIX, conforme veremos adiante.

    Uma caracterstica que se destaca nos textos referentes ao perodo greco-romano

    a ideia de que a Histria seria a mestra da vida. Neste sentido, os historiadores se

    dedicariam narrativa histrica motivados pelo intuito de demonstrar que o passado

    deveria ser um exemplo a ser seguido e, sobretudo, os erros no deveriam ser

    novamente cometidos.

    A crena de Polbio, por exemplo, de que a vida em sociedade se organizaria

    em ciclos histricos, sendo denominados mirabilis circuitus. Ccero, o tribuno

    romano, compactuava com essa concepo de uma histria cclica e a chamava de

    anacylosis. Tais concepes consistem na apresentao de uma explicao rtmica do

    processo histrico, que se sucede em momentos repetidos. Assim, procedendo ao

    processo histrico, a Histria deveria tambm prever os acontecimentos futuros,

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    assumindo um carter teleolgico. Esta concepo se manteria de alguma maneira at

    Vico, o pensador italiano da Renascena, que abordaremos mais adiante.

    III A periodizao condicionada pelo Cristianismo

    Outro aspecto a ser considerado a importncia que o Cristianismo assumiu no

    processo de construo de tempo e da prpria narrativa histrica. Antes de abordado

    propriamente dito, nos remete ao perodo em que nasceu Jesus de Nazar, considerado o

    Messias (salvador) do povo judeu, em uma das provncias do Imprio Romano. Embora

    Roma tenha perseguido Jesus de Nazar e seus seguidores, submetendo-os aos mais

    diversos suplcios, essa medida no era habitual, haja vista a tolerncia diversidade

    religiosa anteriormente descrita. O martrio dos cristos foi motivado por questes de

    ordem poltica, pois, sendo monotestas, eles no reconheciam o carter divino do

    Imperador ou mesmo aceitavam o culto a sua personalidade e ao Estado Romano.

    Tais posicionamentos foram interpretados como ameaadores segurana do

    Imprio e, portanto, alvo da represso do Estado. As perseguies aos cristos foram

    constantes durante os sculos I e II. J os conflitos entre cristos e no-cristos

    prosseguiu at mesmo depois que o Imperador Constantino que, em 313, editou o

    decreto oficial de tolerncia religiosa. Este ato possibilitou a divulgao do cristianismo

    como uma doutrina que pretendia ser universal. Os adeptos da doutrina crist

    pretendiam que esta fosse a nica religio de toda a humanidade.

    O Cristianismo, compreendido em um processo de longa durao, passou de

    uma ideologia considerada subversiva condio de religio oficial do Imprio

    Romano. O Imperador Teodsio I, o ltimo monarca a exercer sua autoridade sobre

    todo o imprio, adotou a ortodoxia catlica como religio oficial, estendendo a

    obrigatoriedade de seu culto a todos os sditos, pelo edito de 380 d.C.

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    A doutrina crist se tornou cada vez mais forte a poderosa, institucionalizando-

    se e instalando sua sede em Roma, de onde foi difundido por todo antigo territrio do

    Imprio. A ideia de universalizao por meio do Cristianismo passou a ser dominante, e

    a periodizao na histria no escapou dessa influncia. No devemos esquecer que

    ainda hoje nosso passado dividido nos tempos antes de Cristo (a.C.) e depois de

    Cristo (d. C.).

    Esta periodizao se destacou ao longo do perodo medieval, em especial, entre

    os sculos V e VI. Exemplo dessa influncia se encontra no pensamento de Santo

    Agostinho. Em sua obra A cidade de Deus, ele apresenta uma percepo teolgica da

    Histria, na qual o plano superior da realidade a cidade de Deus, enquanto o plano

    inferior a cidade dos Homens. Encontramos assim a subordinao da ao humana a

    uma entidade superior, ou seja, Deus. Contudo, isto no significou o retorno ao mito,

    uma vez o cristianismo se estrutura a partir de uma linearidade, que se ordena em

    funo de uma interveno divina real na vida dos seres humanos e de suas sociedades.

    As ideias de Santo Agostinho permearam o imaginrio medieval, na medida em

    que a doutrina crist se tornou hegemnica e, portanto, passou a inferir em todos os

    mbitos das sociedades ocidentais. Afinal, os principais ou mesmo nicos produtores de

    trabalhos intelectuais se encontravam em seus monastrios.

    No final do feudalismo, por volta do sculo XII, a narrativa histrica tambm

    passou a refletir duas grandes mudanas nas estruturas polticas e sociais daquele

    perodo: a ascenso do feudalismo e o reflorescimento das cidades. Surgiram os

    documentos leigos, ocasionados pelo renascimento urbano e comercial, nos inventrios

    de comerciantes particulares, dirios de escudeiros, cavaleiros famosos e menestris.

    Tanto os senhores feudais quanto as autoridades dos burgos buscavam legitimar

    seu poder, atravs de uma rvore genealgica, que preferencialmente devia ser

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    marcada por grandes nomes. Uma rvore genealgica repleta de heris guerreiros,

    figuras poderosas e at mesmo de santos, garantia, por exemplo, alianas matrimoniais

    mais vantajosas. Nos burgos, as autoridades locais encomendavam relatos histricos

    que exaltavam as origens hericas ou santas da cidade e a de seus fundadores, assim

    como glorificavam o santo padroeiro, a Virgem Maria e Deus. A invocao ao sagrado

    se fazia essencial para garantir proteo material e s almas crists que viviam nesses

    novos espaos.

    Deve-se ressaltar que a narrativa histrica, naquele perodo, no apresentava o

    vigor encontrado entre os relatos dos autores gregos quando se refere ao compromisso

    com a verdade. Percebe-se que os relatos ditos histricos visavam preferencialmente

    agradar a nobreza, os ricos mercadores e o alto clero. Enfim, era uma narrativa

    empenhada em justificar o poder das classes dominantes da poca.

    Nesse ponto, percebe-se at que permanece o interesse em registrar o relato dos

    vencedores ou mesmo daqueles que representam as classes dominantes. O vivido dos

    annimos aparece como plano de fundo chamada ao principal, onde os

    dominantes e/ou vencedores se apresentavam. Do mesmo modo, a periodizao segue

    essa tendncia, estabelecendo marcos que correspondem s coroaes, s guerras entre

    feudos/reinos, s Cruzadas contra os infiis do Isl, entre outros.

    IV - Humanismo, Racionalismo: novos pressupostos

    Entre os sculos XV e XVIII ocorreram numerosas transformaes, das quais se

    destaca o movimento renascentista que, de certa maneira, resgatou ou recuperou o

    Humanismo e o Racionalismo.

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    De acordo com Marilena Chau o Renascimento foi um perodo de crise - no

    sentido que o velho no era mais hegemnico e o novo no tinha condies de s-

    lo. Havia uma crise de conscincia generalizada,

    pois a descoberta do universo infinito por homens como Giordano

    Bruno deixara os seres humanos sem referncia e sem centro; em

    segundo lugar, crise religiosa, pois tanto a devoo moderna quanto a

    Reforma Protestante criaram infinidade de tendncias, seitas, igrejas e

    (interpretaes da Sagrada Escritura (...) e crise poltica (...) com a

    perda do centro poltico (Sacro Imprio Romano Germnico).

    (CHAU, Marilena et all. Primeira filosofia. So Paulo: Brasiliense,

    1985, p. 63)

    neste contexto, que se encontra uma nova fonte criadora de um novo saber,

    ou seja, a proposta de periodizao de Vico para a Filosofia da Histria. Ele propunha

    basicamente o retorno ideia de uma histrica cclica, anteriormente defendida por

    Polbio, o historiador clssico. Mas inovou ao considerar que certos perodos histricos

    tm um carter geral, que de tal modo reaparece em outros dois diferentes podendo ter

    um mesmo carter geral. O historiador Jos Honrio Rodrigues assim sintetiza a

    proposta de Vico

    H, dizia ele, uma semelhana geral entre o perodo homrico da

    histria grega e a Idade Mdia europeia, o que nos permite cham-los

    de perodo heroico. a lei do corso e ricorso, que mostra que esses

    perodos tendem a se repetir na mesma ordem. (RODRIGUES: 1978,

    p. 121)

    Foram os humanistas do sculo XV que transformaram decisivamente a

    concepo teolgica da Histria, na medida em que tentaram resgatar a compreenso

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    dos fatos de maneira racional e objetiva. Para isso tornaram indispensvel coletar

    documentos antigos e fazer anlises criteriosas de sua autenticidade ou falseabilidade.

    Eles buscaram dialogar com outras disciplinas para se chegar verdade dos eventos, tais

    como a Filologia, a Diplomtica, a Cronologia, a Genealogia, a Herldica, a

    Numismtica, a Epigrafia, a Sigilografia, a Arqueologia.

    Nesse perodo, ocorreu tambm a aliana entre a Histria e o Direito, que teve

    como finalidade unir o real ao ideal, o costume moralidade. O Direito ordena a vida

    em sociedade e busca na Histria os exemplos necessrios para dar respaldo

    jurisprudncia.

    Nessa poca ocorreu tambm o alargamento do horizonte geogrfico europeu

    ocidental. Foi o perodo da expanso europia, das monarquias nacionais e da

    acumulao primitiva de capital. Isto explica a percepo de Jean Bodin (1572), em seu

    mtodo para facilitar o conhecimento da histria, criticava os historiadores que no

    tinham a Amrica como objeto de histria15.

    A Histria Nacional, por sua vez, ser a preocupao dos historiadores, que a

    refutao da legitimidade da dominao da Igreja Romana e do Imprio Romano

    Germnico sobre os Estados Nacionais. A erudio ser cultivada e o rigor grego nas

    pesquisas retorna. A pesquisa histrica se laiciza tentando se afastar da camisa de fora

    imposta pela Igreja Romana.

    Como nos lembra Michel Foucault que h um conceito que regula o

    Renascimento - o conceito de semelhana, que remetido a todos os ramos do

    conhecimento.

    Essa mesma ideia permite distinguir uma histria humana e uma

    histria natural no sentido da diferena entre aes humanas, que tm

    poder de transformao sobre a realidade, e as aes que nada podem

    sobre a natureza enquanto obra divina, ideia que se exprime na

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    filosofia da histria de Vico. (Foucault, les mots e ler choses apud

    Chau 1985, p. 63)

    Visando sintetizar a noo de narrativa histrica para o perodo da Renascena,

    recorremos a E. H Carr, quando afirma que houve a adoo de uma viso clssica de um

    mundo antropocntrico e do primado da razo, somado a uma viso otimista derivada da

    tradio judaico- crist.

    V A ilustrao: a ideia de progresso na Histria

    A ideia de progresso est bem clara no perodo da Renascena, perodo j

    analisado. a poca do avano burgus. O sculo XVII, perodo do Iluminismo, a

    poca que a burguesia est se afirmando como classe, e na sua luta contra o poder

    feudal, ela engendra novas verdades, verdades estas que devem se tornar hegemnicas

    e apoiadas por outros setores da sociedade.

    A ideia do progresso uma delas e para o conhecimento histrico

    fundamental, principalmente no que diz respeito periodizao. A diviso clssica da

    histria universal (Idade Antiga, Idade Mdia e Moderna, posteriormente, aps a

    Revoluo Francesa Contempornea) foi concebida no decorrer do perodo iluminista e

    associada s idias de progresso, etapas e eurocentrismo. Estas noes

    representavam a ideologia Burguesa.

    O historiador Guilherme Bauer, em sua obra Introducin al estudo de la

    Histria nos esclarece que

    se nos aparecer esta sumamente claro si condenamos de cerco la

    division em todas partes, sin embargo, siempre utilizada, espiritu del

    Humanismo, que eu relacion com los estudios clssicos y la

    resurreccion de lo antiguo, se senti chamado a lgir una mera edad .

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    (BAUER, Guilhermo. Introducin al estdio de la Histria, 4 ed.

    Barcelona: Esp: BOCH, Casa Editorial, 1970, p. 145).

    As crticas a esta periodizao se fundamenta principalmente naquilo que

    chamamos de uma viso etnocntrica, europeizante, no seu carter etapista, que

    plenamente explicvel, pelo que j foi anteriormente discutido.

    O que devemos discutir, neste momento, a sua permanncia, apesar das crticas

    j formuladas a esta periodizao. Alguns autores afirmaram que por objetivo

    didtico, como lembra Francisco Iglesias. No entanto este Didtico se fundamenta em

    uma ideia de progresso justificada ideologicamente e, que por sua vez, j se amalgamou

    em nosso imaginrio a ponto desta ser praticamente exigida tanto por leigos quanto por

    especialistas em conhecimento histrico. Os autores de livros didticos de histria

    continuam a utiliz-las, mesmo que criticamente, uma vez que esta ainda se apresenta

    familiar ao pblico (somado ao fato de que no encontramos uma nova conveno que

    seja to eficiente quanto a que recorremos por hora). De fato, os livros de \histria ainda

    se dividem a partir dessa noo de uma Histria Geral/Universal. O historiador

    Francisco Iglesias afirma que no existe histria geral e explica

    o que no h so as histrias parciais, particulares. Para que fosse

    possvel uma histria universal era necessrio que existisse

    continuidade rigorosa das vrias civilizaes no tempo (...).

    (IGLSIAS, Francisco. Op. cit., p. 19).

    Outra problemtica a questo da totalidade, ou seja, o estudo do geral para se

    explicar o especfico. Contudo, esse processo apresenta uma totalidade enganosa, como

    lembra a historiadora Vany Borges porque apresenta uma nica histria

  • Tiempo y Sociedad, 17 (2014), pp. 7-32.

    21

    que se disfara na dita histria geral que procura dar conta de tudo

    o que passou com a humanidade (...). Isto implica numa viso da

    histria eurocntrica, linear, evolutiva, progressista, etapista e finalista.

    (Borges: 1986, p. 24)

    De acordo com o historiador Fernand Braudel, a Histria filha de seu tempo,

    e, portanto, a partir disso, percebemos que a histria do sculo XVII retrata a idia de

    que o progresso a meta de perfeio da situao humana na terra. Ainda recorremos a

    E. H. Carr que cita um historiador daquele perodo para exemplificar a situao exposta:

    a compreenso agradvel de que cada novo perodo aumentou e ainda aumenta no

    mundo a riqueza real, a felicidade, o saber e, talvez, a virtude da raa humana.

    (GIBBON apud CARR, op. cit., p. 95).

    A ideia de progresso e seu postulado a histria progressiva, no desaparece no

    sculo XVIII. Ao contrrio, ela permeia o pensamento do sculo XIX, sobretudo no

    momento em que a burguesia, como classe, avana em suas conquistas revolucionrias e

    se instala como a nova ordem dominante.

    Podemos observar que essa diviso tradicional procura mostrar um padro de

    desenvolvimento do qual a sociedade europeia ocidental seria seu apogeu, e as

    conquistas da burguesia como universais. E H. Carr nos esclarece como os pensadores

    da Ilustrao abordaram a questo

    Os pensadores da Ilustrao adotaram duas posies aparentemente

    incompatveis. Procuraram justificar o lugar do homem no mundo da

    natureza: as leis da Histria foram igualadas s leis da natureza.

    (CARR, op.cit. p. 96).

  • Tiempo y Sociedad, 17 (2014), pp. 7-32.

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    VI Da filosofia da Histria para a cincia histrica

    O sculo XIX, por sua vez, foi marcado por transformaes que, de certo modo,

    moldaram a nossa contemporaneidade: a consolidao do capitalismo industrial na

    Europa; o nacionalismo, o imperialismo, as revoltas operrias, o processo de

    independncia das antigas colnias das Amricas Hispnicas e Portuguesa, a Comuna

    de Paris, a unificao dos Estados Nacionais italiano e alemo, respectivamente; entre

    outros. A busca pela identidade nacional que se verificou no Velho e no Novo Mundo

    interferiu decididamente na escrita da Histria.

    Nesse contexto, destacou-se a Escola Alem que tem como preocupao

    transformar a Histria em uma rea do conhecimento cientfico. Preocupados com seu

    passado, os alemes procuram estudar o perodo medieval, fazem compilaes de

    documentos conhecidos como Monumenta Germaniae Histrica.

    Concomitantemente, ocorreram grandes transformaes no campo das Cincias

    Naturais. Atentados a isso, os historiadores da Escola Cientfica Alem, procuraram

    assimilar os mtodos daquelas Cincias Histria dita cientfica.

    Nessa perspectiva, o historiador deveria se apresentar neutro em relao aos

    fatos registrados por meio de seu relato. Leopold von Ranke, expoente da Escola

    Cientfica Alem, afirmava que o historiador deveria se restringir apenas [a] mostrar

    como realmente se passou. Isso significa que os fatos deveriam se tornar a razo ltima

    do historiador, e esta posio, aproxima-se muito do positivismo, corrente

    historiogrfica que muito influenciou (e ainda influencia) os historiadores brasileiros.

    O Positivismo ou a filosofia de Auguste Comte teve seu incio ligado s

    transformaes da sociedade europeia ocidental, no decorrer do processo de

    implantao de sua industrializao. Na perspectiva da teoria do conhecimento, o

  • Tiempo y Sociedad, 17 (2014), pp. 7-32.

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    Positivismo propunha uma separao completa entre o sujeito e o objeto do

    conhecimento. O filsofo Franklin L. Silva afirma que

    Com efeito, ao lado da ordem, a ideia de progresso apresenta-se

    como noo fundamental para a compreenso do positivismo.

    Entretanto, a ideia de progresso em COMTE no obrigatoriamente

    solidria da criao e da inventividade ilimitadas (...). o que COMTE

    procura sempre so leis invariveis, de acordo com o modelo da fsica

    e da matemtica, paradigmas da ordem. SILVA, Franklin Leopoldo.

    Aspectos da histria da filosofia. 4 ed. In: Primeiro filosofia. So

    Paulo: Brasiliense, 1985, p. 113).

    Assim sendo, Augusto Comte apresentou uma ideia de evoluo da humanidade,

    conhecida como a Lei dos Trs Estados. Para ele, a humanidade caminharia

    inexoravelmente nestes trs estados:

    1 Estado: Teolgico - fases em que as explicaes acerca dos fenmenos eram

    solidrias de crenas e pressupostos que viam em entidades transcendentes, de cunho

    divino e mitolgico.

    2 Estado: Metafsico - (...) tais entidades foram substitudas por construes

    pretensamente racionais que levavam a explicao dos fenmenos para a esfera do supra

    visvel e, finalmente,

    3 Estado: Positivo caracterizado pela renncia ao conhecimento absoluto,

    das causas ltimas, passando ento a dirigir as foras intelectuais para a compreenso

    das leis e das relaes que se podem constatar entre os fenmenos por meio da

    observao e dos instrumentos tericos. (Silva: op. cit, p.113),

    Esta viso comteana tenta nos conduzir ideia de que a Histria seria como uma

    sucesso ordenada de fatos, e a concepo de passado, como algo morto e esttico.

  • Tiempo y Sociedad, 17 (2014), pp. 7-32.

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    Nesta sucesso ordenada de fatos, a relao entre eles seria mecnica, inserida em um

    esquema de causas e consequncias. Lembra-nos E. H. Carr que

    Os positivistas, ansiosos por sustentar sua afirmao da histria como

    uma cincia, contriburam com o peso de sua influncia este culto dos

    fatos. Primeiro verifique os fatos, diziam os positivistas, depois tire

    suas concluses. (CARR, op cit, p. 13).

    Como vemos, a prpria fetichizao dos fatos e da postura neutra do

    historiador, aproximando a histria, como mtodo s cincias naturais. E, em relao

    periodizao possvel, na perspectiva do esquema positivista, se baseou nos grandes

    eventos, sobretudo polticos, engendrando pelos grandes homens da histria.

    O positivismo, como ideologia especfica da Europa Ocidental, quando enuncia

    as leis do Estado Positivo (superior no dizer de Comte) fora alcanado pela Europa, o

    que justificaria at mesmo a dominao desta parte do mundo sobre os demais

    continentes, para que o progresso fosse possvel.

    Outra corrente do pensamento nascida no ambiente intelectual oitocentista o

    Idealismo, do qual Hegel se tornou um de seus maiores representantes. A perspectiva

    idealista no estabelece propriamente uma periodizao, no entanto, contribui

    decisivamente para uma concepo de Histria. Hegel, por exemplo, transforma o

    conceito de progresso retilneo e indefinido prprio do pensamento iluminista, Em seu

    lugar, Hegel introduz a noo da evoluo dialtica. Ao fazer esta inovao, HEGEL

    avana no sentido de que a Histria no seria algo esttico, mas estaria em movimento

    a filosofia de HEGEL o exemplo mximo da tentativa da

    especulao para fazer do pensamento no apenas a apreenso daquilo

    que ou existe, mas tambm e principalmente da apreenso do

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    processo pelo qual as coisas vm a ser, tornam-se isto ou aquilo3.

    SILVA, op. cit. pg. 109.

    Tal movimento apresentaria um desenvolvimento lgico e, ao mesmo tempo,

    histrico e dialtico, assim sintetizado: tese (posio), anttese (negao) e sntese

    (negao da negao). Esta corrente chamada idealista, pois nela se coloca a primazia

    fundamental das ideias do homem em relao realidade e ao desenvolvimento

    histrico.

    A proposta hegeliana criticada, por exemplo, por Iglesias que assinala os

    (1969:30) seguintes aspectos: esta apresenta uma ideia europeizante da Histria,

    desprezando o resto do mundo; e, assim, submete a Histria a um esquema ideal, muito

    harmonioso em suas linhas, mas desconsiderando o prprio devir histrico.

    O que Hegel de fato contribuiu para se refletir sobre o conhecimento histrico

    foi a incorporao da dialtica, ou seja, a ideia de movimento na Histria. Esta

    incorporao foi empreendida por Marx e Engels, cujas obras deram origem corrente

    historiogrfica conhecida como Materialismo Histrico.

    O ponto de partida do Materialismo seria a crtica ao sistema capitalista,

    retomando a filosofia hegeliana do movimento dos contrrios. Porm, a primazia no

    mais se restringiu s ideias, mas ao mundo material. Para exemplificar sua viso de

    Histria, recorremos ao prprio Marx que afirma que a Histria nada faz, no possui

    riquezas imensas, no entra em batalhas. antes, o homem, o homem realmente vivo,

    que faz tudo, que possui e que luta.33, ou ainda, sua mxima, nossa conhecida do

    Manifesto Comunista: a histria do mundo a histria das lutas de classe.

    A preocupao dos fundadores do materialismo histrico se concentrou na

    transformao revolucionria da sociedade capitalista. Para tal, realizaram um estudo

    aprofundado do sistema, demonstrando que o mesmo histrico, isto , anterior a ele,

  • Tiempo y Sociedad, 17 (2014), pp. 7-32.

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    existiram outros modos de produo que o precederam. Isto significa que a maneira

    como a sociedade se organiza para produzir a vida, a relao do homem com a natureza,

    para transform-la, que determina o modo de produo e no o contrrio.

    Marx e Engels mudaram o foco das ideias para as relaes sociais, pois no so

    as ideias que vo provocar as transformaes, mas condies materiais e as relaes

    entre os homens, que estas condicionam (BORGES, op. cit., p. 35). Eles afirmam que os

    homens se relacionam para organizar a produo, e, nesta relao, aparecem as classes

    sociais, que so antagnicas. Ento a destruio do sistema no ocorreria por causas

    externas, mas provocada pela prpria contradio interna que, no caso do capitalismo,

    seria entre a burguesia e o proletariado (classes fundamentais do capitalismo). Marx e

    Engels deixam como grande legado Histria, entre outros, a contribuio para a

    anlise do capitalismo, alm da introduo do novo mtodo de anlise da realidade.

    Na concepo de Marx e Engels pode-se identificar a existncia dos seguintes

    modos de produo: Comunista Primitivo, o Escravista, o Asitico, o Feudal e o

    Capitalista. E o estudo da Histria pela via do Materialismo Dialtico tambm interfere

    na periodizao, pois esta passa a se relacionar com esses diferentes modos de

    produo, historicamente construdos. Esta periodizao amplia o horizonte de anlise,

    na medida em que permite estabelecer marcos que apontam uma ruptura, no s no

    aspecto superestrutural (poltico, ideolgico), mas, sobretudo, no aspecto estrutural

    (econmico).

    No sculo XX, o conhecimento histrico, como reflexo e produo acadmica,

    estava impregnada pelas correntes historiogrficas oitocentistas, a saber: Positivismo

    (em grande sua parte) e Materialismo Histrico (em menor escala). No final dos anos e

    1920, veio da academia francesa uma proposta inovadora para os estudos histricos,

    divulgada pela publicao da que foi a publicao da revista ANNALES dhistoire

  • Tiempo y Sociedad, 17 (2014), pp. 7-32.

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    conomiques et sociales criada, em 1929, por Lucien Febvre e Marc Bloch. Os

    historiadores ligados esta corrente propunham uma histria total, na qual a vida dos

    todos os grupos humanos, em seu social, poltico, econmico, deveria ser captada e

    escrita. Ao invs do registro dos fatos singulares, o historiador deveria analisar as

    estruturas sociais, econmicas, polticas, culturais, religiosas, buscando compreender o

    seu funcionamento e evoluo.

    Bloch e Febvre encontraram inspirao na obra do historiador francs Henri

    Berr, que j no final do sculo XIX, por meio da Revista de Sntese, buscava criar um

    frum de debates no qual fosse questionada a noo de verdade absoluta estabelecida

    pela histria-relato. Contudo, os esforos de Berr foram interrompidos durante a I

    Guerra, pois naquele momento o pensamento crtico deu lugar a uma onda nacionalista

    e qualquer questionamento soava como uma atitude antipatritica. A devastao sem

    precedentes ocasionada pela I Guerra abalou irremediavelmente a certeza de que a

    humanidade estaria destinada a se tornar cada vez melhor.

    A Escola dos Annales entende que a histria tem que estar aberta s outras reas

    do conhecimento humano, numa viso global. um trabalho interdisciplinar. Para

    exemplificar, colocaremos a periodizao proposta por um dos seguidores mais

    fecundos desta corrente, o historiador francs Fernand Braudel, autor do livro O

    Mediterrneo e o Novo Mundo Mediterrneo poca de Felipe II. Logo em sua

    introduo, o autor apresenta a periodizao que utilizaria: Este livro divide-se em trs

    partes, sendo cada uma, por si mesma, uma tentativa de explicao. Estas trs partes

    so as seguintes:

    Tempo geogrfico (das estruturas) - procura relacionar o homem e o seu

    meio ambiente, uma histria lenta no seu transcorrer e a transformar-se,

  • Tiempo y Sociedad, 17 (2014), pp. 7-32.

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    feita com frequncia de retornos insistentes, de ciclos incessantemente

    recomeados (...) Tempo social (das conjunturas) - estuda a histria social, a dos grupos e dos

    agrupamentos, estudando sucessivamente as economias e os Estados, as

    sociedades, as civilizaes (...)

    Tempo individual (dos eventos) - histria ainda ardente tal como os

    contemporneos a sentiram, descreveram, viveram no ritmo de sua vida,

    breve como a nossa. (BRAUDEL, op. cit., p. 13)

    Neste sentido, Braudel prope uma noo de se escrever uma Histria no

    esttica, uma Histria que no possui elementos determinantes antecipados.

    Os Annales tambm revolucionaram a noo de documento histrico.

    Tradicionalmente, apenas os documentos oficiais escritos eram tomados como a nica

    fonte legtima para o conhecimento histrico. Tal delimitao foi essencial para o

    reconhecimento da Histria enquanto cincia. Contudo, especialmente os adeptos dos

    Annales demonstraram que essas fontes escondem os mais diferentes interesses e

    terminam, muitas vezes, por dar voz apenas aos poderosos e vencedores.

    Alm de questionar o documento escrito, os Annales propuseram que todo

    vestgio produzido pelos seres humanos pode ser considerado um documento histrico.

    Portanto, eles decretaram o fim do documento escrito como o nico a ser estudado pela

    Histria, abrindo um enorme leque de possibilidades. O historiador pode e deve buscar

    novas fontes, como a pintura, documentrios, roupas, alimentos, entre outros. As fontes

    histricas, portanto, so to ricas quanto a prpria vida dos seres humanos em

    sociedade.

    O historiador francs Jacques Le Goff, herdeiro dos Annales, define que todo

    documento histrico um documento-monumento. Ele afirma que qualquer

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    documento histrico contm em si as mais diferentes intenes, explicitas ou no. Para

    ele

    O documento monumento. Resulta do esforo das sociedades

    histricas para impor ao futuro voluntria ou involuntariamente

    determinada imagem de si prprias. No limite, no existe um

    documento-verdade. (...) Cabe ao historiador no fazer o papel de

    ingnuo. (...) preciso comear por desmontar, demolir esta

    montagem, desestruturar esta construo e analisar as condies de

    produo dos documentos-monumentos. (LE GOFF, Jacques.

    Histria e memria. Campinas: SP: Unicamp, 1992. p. 548.)

    E, em relao periodizao, Le Goff afirma que esta indispensvel a qualquer

    forma de compreenso histrica, pois sem a noo de tempo, no h como resgatar as

    experincias humanas em sociedade. Percebemos que a prioridade do historiador ,

    mesmo recorrendo periodizao tradicional, esta deve ser tomada de maneira crtica,

    lembrando que tal recurso marcado pelo seu carter eurocntrico. Afinal, ela foi

    elaborada por europeus e diz respeito to-somente histria da Europa Ocidental. Essa

    periodizao no apresenta qualquer significado para outros povos. Importa, assim,

    analisarmos o momento em que a mesma foi elaborada.

    VII - Consideraes finais

    A periodizao no um ato meramente arbitrrio e neutro. Se ampliarmos a

    discusso para a prpria elaborao da histria, poderemos verificar que a neutralidade

    pretendida no existe. Como nos lembra CARR , estude o historiador antes de comear

    a estudar os fatos (...). Quando voc l um trabalho de histria, procure saber o que se

    passa na cabea do historiador (CARR: op. cit., p. 24). Assim tambm acontece com a

  • Tiempo y Sociedad, 17 (2014), pp. 7-32.

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    periodizao, pois ela representa um aspecto da concepo de histria que o

    historiador possui e a qual corrente historiogrfica ele se filia. A forma como o

    historiador divide a histria est condicionada aos problemas que lhe so apresentados

    pelo presente:

    O historiador pertence sua poca e a ela se liga pelas condies de

    existncia humana. As prprias palavras que usa tais como

    democracia, imprio, guerra, revoluo tm conotaes presentes dos

    quais ele no pode divorciar (CARR: op. cit, p. 25).

    Aparentemente fica a impresso que os trabalhos e as periodizaes de histria

    sero homogneas em determinada poca. Porm isto no acontece porque outras

    variveis influenciam no trabalho do historiador, como sua posio de classe, sua

    prpria nacionalidade. O que acorre a presena de problemas que so contemporneos

    a uma determinada sociedade, em uma poca especfica. Se as concepes de histria

    no so homogneas, existem aquelas so hegemnicas, entendendo como hegemonia

    no sentido gramsciano do termo (ver BOBBIO: 1947, p 47).

    Nesse sentido, importante ressaltar o Manifiesto Historia a Debate, firmado em

    11 de setembro de 2001, no qual so propostas algumas reflexes que visam atualizar o

    debate terico-metodolgico: a continuidade dos anos de 1960 e 1970; o ps

    modernismo; e o retorno velha histria. E dessa maneira, quer contribuir para a

    configurao de um paradigma comum e plural dos historiadores do sculo XXI, que

    assegure para a histria e para a sua escrita um novo tempo. (HaD, p. 01: 2014)

    Tendo em vista a proposta do Manifesto, cabe-nos como historiadores

    enfrentarmos as dificuldades do tempo presente. Embora, teoricamente sejamos adeptos

    da histria do presente, ainda tememos a subjetividade que impregna tal tempo/objeto.

    E em busca desse enfrentamento, nos amparamos na proposta da Historia a Debate, que

  • Tiempo y Sociedad, 17 (2014), pp. 7-32.

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    nos convida construir um novo paradigma, ou seja, o conjunto plural de crenas e

    valores que vo regular a nossa profisso de historiador no novo sculo. (HaD. p.

    09:2014)

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