Utopia: Gênese de um Conceito

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Utopia: gênese de uma palavra-chave* Cosimo Quarta Tradução de Helvio Gomes Moraes Jr. Cosimo Quarta ensina "Filosofia da história" e "Ética ambiental" junto à Faculdade de ciências da Formação da Universidade de Lecce; co- fundador e diretor do Centro Interdepartamental de Pesquisa sobre Utopia do mesmo Ateneo. Durante suas pesquisas, desde o início dedicadas ao pensamento utópico, tratou dos problemas de história da utopia (Platão, Morus, Campanella, Andreae, Péguy) e das relações entre utopia e ideal, ideologia, mito, escatologia, milenarismo, futurologia, ciência, ficção científica, ecologia, revoluções, igualdade, paz, não-violência. É autor de inúmeros ensaios e volumes, dentre os quais: L'utopia platonica (1985); Tom maso Moro. Una reinterpretazione dell'"Utopia" (1991); Il destino della fami glia nell'utopia (1991); Tbomas More. Testimone de/ia pace e de/ia coscienza (1993). Derme os trabalhos mais recentes: Homo utopicus (1996); Principio responsabilità versus principio speranza? (2001); L'utopia: una storia di fraintendirnenti (2002); Globalizzazione, giustizia, solidarietà (2004). *Traduzido a partir do original em italiano "Utopia : genesi di una parola-chiave".

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Artigo de Cosimo Quarta sobre Utopia

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  • Utopia: gnese de uma palavra-chave*

    Cosimo Quarta Traduo de Helvio Gomes Moraes Jr.

    Cosimo Quarta ensina "Filosofia da histria" e "tica ambiental" junto Faculdade de cincias da Formao da Universidade de Lecce; co-fundador e diretor do Centro Interdepartamental de Pesquisa sobre Utopia do mesmo Ateneo. Durante suas pesquisas, desde o incio dedicadas ao pensamento utpico, tratou dos problemas de histria da utopia (Plato, Morus, Campanella, Andreae, Pguy) e das relaes entre utopia e ideal, ideologia, mito, escatologia, milenarismo, futurologia, cincia, fico cientfica, ecologia, revolues, igualdade, paz, no-violncia. autor de inmeros ensaios e volumes, dentre os quais: L'utopia platonica (1985); Tom maso Moro. Una reinterpretazione dell'"Utopia" (1991); Il destino della fami glia nell'utopia (1991); Tbomas More. Testimone de/ia pace e de/ia coscienza (1993). Derme os trabalhos mais recentes: Homo utopicus (1996); Principio responsabilit versus principio speranza? (2001); L'utopia: una storia di fraintendirnenti (2002); Globalizzazione, giustizia, solidariet (2004).

    *Traduzido a partir do original em italiano "Utopia : genesi di una parola-chiave".

  • COSIMO QUARTA

    'Ver, a este propsito, entre os numerosos volumes, ensaios e artigos que surgiram nestes ltimos anos, o que Wolf Lepenies escreve em seu artigo de ttulo bastante significativo, "Hopes derailed on Way from Utopia" publicado em "The Times Higher Education Supplement", 27/12/1991, p. 8. Tambm J. FEST, // Sogno distrutto. La fine dell'et dele utopie, trad. it., Milano, 1992; M. WINTER, Ende tines Traums-Bluk zurick atgr das utopische Zeitalter Europas, Stuttgart Weimar, 1991 claro, porm, que o ataque utopia no remonta somente a estes ltimos anos, mas parte de mais longe. Basta pensar em autores como Marx, Engels, Croce, Popper, Jonas, Dahrendorf, para citar apenas alguns dentre os mais conhecidos.

    2 Mesmo porque me ocupei disto em outro ensaio, com o ttulo de "Homo utopicus. On the Need for Utopia", in utopia,' &adies, 1996, vol. 7, n. 2, pp. 153-166,

    ' necessrio observar que estes ataques virulentos utopia, que no passado apareciam, na maior parte, em livros ou revistas especializadas, agora, ao contrrio, encontram amplo espao tambm nos jornais de grande difuso. Na Itlia, por exemplo, "II Sole-24 ore", de 28/05/1995 dedicava toda a pgina 26 a artigos no apenas crticos, mas declaradamente mutiladores da utopia.

    4 Cf. A. PREVOST, L"Utopie" de Thomas More, Paris, 1978, pp. 61-73. Tambm E. McCUTCHEON, My Dear Peter, Angers, 1983, p. 34.

    'Cf. a carta de Erasmo a Ulrich von Hutten de 23 de julho de 1519, in P.S. ALLEN et Al Opus epistolarum Desiderii Erasmi Roterodami,

    H alguns anos, e particularmente depois do colapso dos regimes comunistas da Europa oriental, tem sido feita uma retomada, ou melhor, um recrudescimento da crtica utopia. Trata-se propriamente de um ataque frontal, por trs do qual se nota uma vontade radicalmente demolidora. A ponto de a prpria palavra, segundo um observador, tornar-se quase impronuncivel, no sentido de que correria o risco de ser banida do vocabulrio corrente, enquanto sinnimo ou, at mesmo, smbolo da tirania comunista finalmente destrudal.

    No pretendo, aqui, deter-me nas diversas causas que tm determinado este fenmeno singular 2 . Uma, contudo, me urge assinalar, pela sua importncia: a confuso entre utopia e distopia. Julgo, de fato, que de tal confuso derivam-se os mais constantes "lugares comuns" sobre a utopia, que foi entendida ora corno capricho, quimera, castelo no ar, ora como um projeto de sociedade fechada e, por isso, fundamentalmente intolerante, totalitria, violenta 3. Dentre as vrias causas que tm, portanto, determinado tal confuso h, sem dvida, o fato de que a palavra utopia foi carregada historicamente de significados no seus, isto , de significados que originariamente no lhe pertenciam. Da a necessidade de voltar s origens da palavra, para entender-lhe o sentido originrio, autntico, liberando-a, assim, das incrustaes que, sedimentadas ao longo dos sculos, deturparam-na de forma a torn-la quase irreconhecvel.

    Para tal objetivo, julgo ser oportuno examinar um aspecto da obra moreana, que, no geral, no apenas os detratores, mas tambm os crticos benvolos freqentemente passam por alto: a gnese da palavra utopia. Trata-se de reconstruir as circunstncias e os eventos que levaram cunhagem de um termo que, embora tendo tido muita fortuna, tem sido, contudo por causa de sua originria ambigidade, ou melhor, polissemia fonte de muitos e graves equvocos no plano conceitual.

    1. A longa gestao: a hiptese de um "Elogio da Sabedoria"

    Foi oportunamente enfatizado' que a obra de Morus, ainda que composta em pouco mais de um ano (ou seja, aproximadamente de junho de 1515 a agosto de 1516), como o prprio Erasmo nos atestas, teve, no entanto, uma gestao mais longa. A idia da obra parece ser possvel fazer remontar a 1509, o ano em que Erasmo concebeu (durante a viagem que da Itlia o levava Inglaterra) e levou a termo em pouco tempo (precisamente enquanto era hspede de Morus) o Elogio da Loucura (Moriae Encomium sive Stulti tiae Laus). Sabe-se que este livro, que entre os escritos de Erasmo o mais universalmente

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    conhecido, dedicado a Monis. Mas Erasmo nos explica tambm os motivos de tal dedicatria, dizendo que foi o prprio Morus, com aquele seu nome estranho (em grego morim significa louco), quem inspirou-lhe a obra: um nome que era to prximo da loucura (em grego monja) quanto sua pessoa eca dela distante. Nem sempre, pois, `nomina sunt consequentia rerum", nem o nome exprime o destino de quem o porta (nomen

    omen); antes, no caso de Morus, o nome

    contradizia as reais qualidades da pessoa, j que, por reconhecimento unnime, era considerado um "sapiente" (em grego sophs); a Morus conviria melhor o nome de morsophos, ou seja, de algum que louco apenas por nome, mas sbio de fato'.

    Todavia, as circunstncias casuais da inspirao e a jovialidade do tom no devem induzir em engano. Uma vez, de fato, que a Mora foi concluda e publicada, Erasmo e Morus perceberam que ela, longe de ser uma brincadeira, se revelava, ao contrrio, um durssimo libelo contra os costumes e os vcios da poca. Tal libelo, na verdade, no poupava nenhum dos poderosos (papas, cardeais, bispos, telogos, de um lado; reis, prncipes, nobres, condottieri, cortesos, intelectuais, do outro), dos quais Erasmo previa que viessem speras crticas 7, como de fato aconteceu posteriormente'.

    Alguns eminentes estudiosos de Morus lanaram a hiptese de que que, precisamente pela conscincia de que tal obra colocava a nu os males do tempo cobrindo de ridculo a loucura dos homens, como raramente havia ocorrido no passado tenha nascido, no esprito dos dois amigos humanistas, a idia de acoplar pars destruens, constituda pelo Elogio da Loucura, uma pars construens, ou seja, uma outra obra que, servindo de contra-altar primeira, como em um dptico, indicasse aos homens o caminho para subtrair-se ao domnio da loucura. Teria nascido, assim, a idia de escrever um Elogio da Sabedoria, do qual Morus teria se incumbido. Uma hiptese, esta, que, mesmo apoiando-se apenas em indcios e no em provas certas, , contudo, verossmil e, em todo caso, muito intrigante, porque permite lanar um pouco de luz sobre um aspecto da obra moreana ainda hoje pouco claro: a gnese do termo utopia'.

    A Utopia de Morus, ento, segundo esta hiptese, teria sido concebida, originariamente, como uru Elogio da Sabedoria, para ser cotejada com o Elogio da Loucura de Erasmo. Poder-se-ia observar que este suposto Elogio da Sabedoria no tivesse razo de ser, a partir do momento que o amor pela sabedoria impregna, ainda que nas entrelinhas, todo o escrito de Erasmo, em que, por vezes, explicitamente declarado'". Mas tal objeo no leva em conta uma diferena substancial: que o que na Mona se coloca apenas nas entrelinhas, no escrito de Monis aparece, ao contrrio, como

    Oxford-London, 1906-1958 (cito apenas com Allen), IV, n. 999, pp. 12-23. Ver, sobre este ponto, J.H. HEXTER, L'utopia di Moro. Biografia di un'idea, trad. it., Napoli, 1975, pp. 13, 23.

    Cf. ERASMO DA ROTTERDAM, Moriae Encomium id est Stultitiae Laus, a cura di C.H. Miller in Opera omnia, IV-3, Amsterdam-Oxford, 1979, pp. 67-68. Sobre a data, as circunstncias da composio e as edies da Maria, cf. C.H. MILLER, Introduction a Moriae Encomium ecc., cit., pp. 13-14,29 ss. o caso de recordar que o termo morsophos j havia sido utilizado, em um contexto e com um significado bem pouco lisonjeiro, por LUCIANO, "Alessandro o il falso profeta", 40, in Dialoghi, trad. it. a cura di V. Longo, Torino, 1976-93, II, p. 316. De resto, Erasmo (Moriae Encomium ecc., cit., p. 74) e Morus (Utopia, in The Complete Works of St. Thomas More, ed. E. Surtz e J.H. Hexter, New Haven-London, 1965, p. 64, a partir de agora indico apenas com CW) utilizam o termo morOsophos para designar, o primeiro, aqueles que se do ares de sabiches, mas na realidade so ignorantes, e o segundo, aqueles que aconselham os soberanos a alistar exrcitos permanentes. Mas sobre este tema, ver em particular G. MARC'HADOUR, Thomas More ou la sage folie, Paris, 1971. Sobre o nome de Morus, ver o ensaio do mesmo Marc'hadour, "Thomas More: les arcanes d'un num", in "Moreana" 1964, n. 2, pp. 55- 70 e 1965, n. 5, pp. 73-88.

    7 Como diz declaradamente no Prefcio ao Moriae Encomium ecc., cit., p. 68.

    A tal ponto que o prprio Morus teve que intervir mais vezes para defender Erasmo e

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  • COSIMO QUARTA

    sua obra da hostil malevolncia dos crticos. Remetemos, entre outras, s duas cartas-ensaio que Morus escreveu ao telogo de Lovanio, Martin Dorp (21/10/1515) c aquela "a um monge" (1519-1520), agora em E.F. ROGERS, The Correspondence of Sir Thomas More, Princeton, 1947, respectivamente, n. 15 (pp. 27-74) e n. 83 (pp. 165-206). Agora tambm em CW 15, Sem dizer que a obra de Erasmo foi posteriormente colocada no Index por Paolo IV em 1559. Mas j em 1539 (apenas trs anos aps a morte de Erasmo) um autor italiano assim se exprimia: "Che dubbio fai di non dover trafficare l'opera del grande Erasmo? Forse perche in Roma ha vietato ii Collegio che si vendano? Credi che intervenga questo perche elle non siano buone, o perche ci sia scrupolo di eresia? Sai perche l'hanno dato bando, vuoi che tel dica? Poich ii tedesco miracoloso t'ha concia ir, cordovana tutta quella brigata. E perci hanno pigliato in urto quel valentuomo, e non vogliono che in Roma compaia Erasmo, talch, dove trionfano non si contino le lor magagne" (N. FRANCO, Dialoghi piacevoli, VIII, cit. in B. CROCE, "Sulle traduzioni e imitazioni italiane dell' "Elogio" di Erasmo", ir, Aneddoti di varia letteratura, 1, Bari, 1953, p. 412.

    Tal hiptese foi avanada por: A. RENAUDET, Erasme et Geneve, 1954, pp. 179-181; E. SURTZ, Tfie Praire of Wisdom, Chicago, 1957, pp. 19-20, 308 as; IDEM, Introduction a Utopia, CW4, cit., p. CLXXX; A. PREVOST, Op. cit., pp. 66 ss. Gostaria, aqui, de advertir o leitor que neste trabalho os termos "sapienza" e "saggezza" so utilizados maneira de sinnimos.

    'e Cf. Morim etc., pp. 423-431, 482 ss., 486 ss.

    j realizado. A ilha feliz descrita por Rafael Hitlodeu , de fato, um estado no qual a sabedoria reina soberana. Traduzo aqui com "sabedoria" o que Morus chama "sapientia" ou "prudentia" e que, no fundo, se identifica com a "ratio" e, portanto, com "natura", visto que na Utopia (162/18-22) dito claramente que a virtude consiste no viver "conforme a natureza"; e vive conforme a natureza somente quem, "desejando ou fugindo das coisas, obedece razo" 11. De modo que se pode dizer que o "ottimo stato" descrito por Morus constitui uma representao de como as coisas deste nosso mundo poderiam andar se os homens seguissem sua natureza racional, ou seja, se se deixassem guiar pela sabedoria e pela virtude ao invs da loucura ou, o que o mesmo, pelas paixes, pelos vcios, pela irracionalidade. significativo, a tal propsito, que Morus no faa falar em primeira pessoa a sabedoria, como Erasmo havia feito com a loucura. E isto porque a sabedoria, diferentemente da loucura, ama a humildade, o silncio, a reserva, evitando a auto-exaltao e a ostentao rumorosa e frvola 12 .

    Morus louva a sabedoria que mais lhe condiz, ou seja, mostra os resultados do sbio agir. , em outros termos, um elogio indireto. E, ainda no ponto em que as circunstncias o levam a elogiar diretamente a sabedoria, como quando, por exemplo, refere-se virtude e sabedoria de seu amigo Tunstal, o faz com muita circunspeco, afirmando que tecer o elogio do homem sbio como procurar "iluminar o sol com uma lanterna"". Morus, portanto, mais que louvar a sabedoria em abstrato, prefere falar de "medidas sbias, instituies sbias", de coisas providas "com grande sabedoria" 14. Se os utopianos so um povo "feliz" porque tm instituies "excelentes""; e elas so assim porque guiadas pela sabedoria. No por acaso coincidem tanto com o que havia pensado aquele homem de "suprema sabedoria" (pnidentissimus) que foi Plato, como com a "grande sapincia" (tanta sapientia)

    de Cristo. Ambos, na verdade, haviam visto que, sem a comunidade de bens, ou, o que a mesma coisa, sem a eliminao (ou pelo menos a atenuao) do egosmo e da cupidez, os males da sociedade jamais seriam superados".

    Eis de que modo Morus buscou elaborar o antdoto a todos os vcios humanos que Erasmo havia iconicamente descrito em sua obra. Para que a loucura no tenha a ltima palavra nos acontecimentos humanos, necessrio que a humanidade reencontre a sabedoria perdida, recorrendo, em particular, aos ensinamentos de Plato e, sobretudo, aos de Cristo. Alm disso, com seu escrito, Morus, tornando explcito o que na obra de Erasmo era implcito (ou seja, o amor pela sabedoria), tirava tambm uma das mais abusivas e polmicas armas das mos dos detratores de seu amigo, os quais, feridos no mago pela

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  • UTOPIA: GNESE DE UMA PALAVRA-CHAVE

    Morsa pediam, um tanto hipocritamente, ao seu autor que escrevesse, em forma de pafindia, um 'elogio da sabedoria"".

    2. O problema do nome: de Abraxa a Nusquama

    Mas, uma vez que tal Elogio, ainda que em forma indireta, havia sido feito, tratava-se de compreender onde residia a sabedoria. E a Loucura, por sua vez, j havia dito que o verdadeiro sbio jamais existiu e jamais existir "em lugar nenhum" (nunquam). E a quem desejasse conhec-lo e imit-lo, ela aconselhava ir morar com ele na "repblica de Plato" (in civitate Platonis), ou na "regio das idias" (in idearum regione) ou, ainda, "nos jardins de Tntalo" (in Tantaliis [...] hortis)", ou seja, em lugares inexistentes. Segundo a Loucura, que nada mais seno a expresso, ou melhor, a personificao dos vcios e das aberraes humanas, a sabedoria no habita esta terra. Por outro lado, em sua obra, Morus nos informa que a ilha de Utopia, antes que chegasse o conquistador Utopus, se chamava Abraxa". Ora, este nome que, como sabido, remonta s doutrinas do gnstico Basilide usado por Erasmo na Mora para criticar aqueles monges que competiam no em praticar a caridade, mas em inteis e ridculas prticas pseudoascticas, caindo, assim, na tentao-presuno de parecerem mais santos, por fim, que o prprio Cristo'''.

    Surtz lanou a hiptese de que Morus teria usado o termo Abraxa "no tanto para designar a ilha como um cu sobre a terra, quanto para indicar a sua natureza mtica, a partir do momento que ela no tem mais existncia que a Abraxas de Basifide" 21 . E opinio anloga exprime Firpo, quando diz que "emprestando estes nomes" (ou seja, Abraxa e Mythra) "das delirantes fantasias gnsticas, Morus parece enfatizar o carter irreal de Utopia" 22 . Tais' hipteses, porm, so bem pouco plausveis, sobretudo porque no levam em conta o fato, por muitos aspectos decisivo, de que Abraxa no Utopia, como, de resto, o prprio Morus enfatiza. Entre Abraxa e Utopia h, de fato, diferenas substanciais. Basta pensar, por exemplo, nas profundas mudanas presentes tanto no plano da conformao fsica (a pennsula foi transformada em ilha) como no plano antropolgico e institucional: graas s timas leis introduzidas por Utopus, os Abraxianos, que eram uma massa "tosca e selvagem" (rudem atque agrestem turbam), transformaram-se em Utopianos, ou seja, em um povo que "em cultura e civilizao supera agora quase todos os outros" (nunc caeteros prope mortales antecellit cultus humanitatisque) 23 . Estes dois elementos induzem a pensar que a mudana do nome foi a conseqncia lgica de uma alterao de contedo, ou, pelo menos, de perspectiva.

    " "nel desiderare o nel fuggire le cose, obedisce alta ragione".

    12 Cf. Ivi, pp. 486-488.

    13 "di far lume ai sole cosa

    una lucerna". Utopia, p. 46/19-20. E um pouco mais adiante (p. 58/21), falando do cardeal Morton, o indicar como homem dotado de "prudentia ac virtute". Mas veja-se tambm a referncia "sabedoria simples" (nu/li simplicitas ines prutlentior) do amigo Gilles (p. 48/9-10).

    Ivi, pp. 52-54.

    15 Iyi, p. 178 .

    1 ' Jyj, pp. 104/7, 242/21. 17

    Veja-se a dura carta que Dorp escreveu a Erasmo em setembro de 1514, na qual, entre outras coisas, se l: "Si contra Moriam composueris Sapientiae laudem eamque aedideris" (Allen, II, n. 304, p. 19). Veja-se tambm a referncia a este problema, contida na carta de Morus a Dorp, de 21 de outubro de 1515, em E.F. ROGERS, Op. cit., n. 15, p. 29. Sobre as relaes entre Morus, Erasmo e Dorp, veja-se o interessante ensaio de G. MARC'HADOUR, "Thomas More convertit Martin Dorp l'humanisme rasmien", in AA.VV., Thomas More 1477- 1977, Bruxelles, 1980, pp. 13-25.

    J" Moriae Encomium ecc., cit., p. 106. E mais alm (11/i, p. 180 ss.) a Loucura, interpretando, a seu modo, as Escrituras, diz que os homens so quase todos estultos, excetuam-se pouqussimos sbios, mas que talvez jamais tenha se visto algum.

    " Cf. Utopia, p. 112/3. Cf. a carta de Guies a Busleyden, /vi, p. 24/6.

    'c Cf. Moriae Encomium ecc., cit., p. 162. Aqui e algures,

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  • C OSIMO QUARTA

    quando me refiro a Monis, escrevo "Abraxa"; nos outros casos, conservo o "s" final. Deve-se notar, a este propsito, que nas primeiras edies das Maria, esta passagem, na qual se alude aos "Abraxiasiorum coelos", no existe, mas aparece somente a partir de 1514. Mas isto no prejudica a hiptese aqui avanada, tanto mais se verdade que "as passagens acrescentadas nesta edio [de 15141 j faziam parte da obra escrita por Erasmo em 1509" (C.H. MILLER, "Introduction", cit., p. 43). E Morus em cuja casa a obra foi escrita certamente teve meios de ler o manuscrito originrio.

    " E. SURTZ, "Commentary", in Utopia, CVV4, cit., p. 386.

    " No commento ad locum, in T. MORE, Utopia, trad. it., a cura di L. Firpo, Napoli, 1979, p. 169, nota 8.

    2 ' Utopia, p. 112/4-5.

    " A. PRVOST, L'Utopi e erc., cit., pp. CIV ss. Cf. tambm E. SURTZ, Addenda, in Utopia, CW4, p. 585. Ainda que Morus, como, de resto, seus amigos Erasmo, Colet e Fisher, no fosse particularmente atrado pelas doutrinas cabalsticas (cf. H. TREVOR-ROPER, II Rinascimento, trad. it., Bari, 1987, p. 92), ele teve, contudo, uma certa curiosidade, se no propriamente um interesse por tais doutrinas. Como demonstra o fato de que quando Johannes Reuchlin (o insigne cabalista discpulo de Pico) enviou duas cpias de seu De arte cabalstica (texto publicado em maro de 1517) a Erasmo e ao bispo Fisher, Morus reteve para si, para poder l-la, a cpia destinada a Fisher. Disto o bispo se lamentava, embora em tom de brincadeira, na carta a Erasmo, de junho de 1517 (Allen, n. 592, p. 598), na qual se diz que tambm outra vez Morus

    Um tanto diversa a posio de Prvost, que reconhece que entre Abraxa e Utopia h uma notvel diferena, no sentido que Abraxa um tipo de Utopia partida ao meio. E sobre isto pode-se estar de acordo. O que, ao contrrio, no me convence o procedimento proposto por Prvost, segundo o qual Nusquama teria precidido Abraxa. Para ser mais claro, ele julga que o termo Abraxa tenha sido introduzido no escrito depois que Morus (provavelmente junto com Erasmo) decidira atribuir ilha o nome Nusquama, ou seja, depois da primeira redao, realizada durante o vero de 1515, enquanto estava em misso nos Flandres. E teria feito isso com o objetivo de fazer compreender ao leitor que o mundo por ele descrito, antes do encontro com o cristianismo, era ainda um mundo incompleto, imaturo, no sentido que os Abraxianos, enquanto desprovidos da revelao de Cristo, eram sbios apenas em parte, ou melhor, possuam uma sabedoria apenas humana. Isto explica por que Morus escreveu Abraxa (sem o "s" final) ao invs de Abraxas.

    preciso recordar, a este propsito, que as letras individuais de tal palavra, consideradas em seu valor numrico, segundo o sistema de clculo usado pelos gregos (a=1, b=2, r=100, a=1, x=60, a=1, s=200), do como soma 365; tal cifra corresponde ao conjunto dos cus (ou ao cu supremo) que, segundo Basilide, teriam sido gerados por Dynamis (Potncia) e Sophia

    (Sapincia). Se de Abraxas se tira o "s", ela perde mais da metade de seu valor numrico. Se, portanto, se considera que para os cabalistas cristos (e in primus para Pico) bastava acrescentar ao tetragrama hebraico YFIVVH um S para obter o nome de Jesus (YHSWH), por meio do qual este tetragrama tornava-se finalmente inteligvel, se compreende facilmente que altssimo valor simblico adquiria a letra "s" entre os humanistas apreciadores da cabala, entre os quais, de alguma forma, se pode incluir tambm Morus, para o qual Abraxa (sem o "s" final) era, portanto, o lugar da "demi-sagesse", ou seja, de uma sabedoria parcial, reduzida'''. Esta sutil e intrigante interpretao, porm, convence somente at um certo ponto. Ela nos explica o significado da supresso do "s" final de Abraxas, mas nada nos diz quanto ao por qu de Monis ter querido fazer saber ao leitor que, antes da chegada de Utopus, Utopia se chamava Abraxa e no Nusquama. No obstante, como se sabe, era com este ltimo nome que Monis e seus amigos haviam designado a obra at alguns meses antes da publicao. Em suma, trata-se de compreender porque no escrito que hoje lemos no h mais vestgio da palavra Nusquama e aparece, ao invs, Abraxa.

    Para tal fim poder-se-ia hipotetizar que, inicialmente, Morus, por estar "brincado" com Erasmo, tivesse pensado em responder Maria com uma obra de tom igualmente jocoso, isto , com Abraxa.

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  • UTOPIA: GNESE DE UMA PALAVRA-CHAVE

    Um nome, este, que se prestava bem brincadeira de um "elogio da sabedoria", quando se pensa que os cus de Abraxas, de que fala Basilide, foram gerados pela Sapincia. Mas j Erasmo, na Mora, nos diz com clareza que Abraxas, longe de constituir o mundo da sabedoria, era o lugar da loucura 25 . Abraxas configurava-se, portanto, na mente de Morus (alm da de Erasmo) como o mundo da "louca sabedoria" (ou seja, de quem sbio apenas na aparncia, mas louco na realidade) em resposta ao morasophos (sbio-louco) erasmiano (isto , de quem louco de nome e sbio de fato). provvel, portanto,

    mantivera para si uma obra do mesmo Reuchlin (se trata do texto Oco/are speculum ou Augenspiegel, publicado em agosto de 1511) antes de

    envi-lo a ele. A alta estima de Morus por Reuchlin atestada tambm pela carta a Martin Dorp em outubro de 115 (E.F. ROGERS, Op. cit., n. 15, p. 72). . , Isto se evidencia claramente

    que, pelo menos at um certo ponto, Monis tenha podido ocultar-se no apenas pelo contexto por trs da "brincadeira" de Erasmo, buscando tambm secundar a da Maria, mas tambm pela

    carta que Erasmo escreveu a opinio da Loucura, que havia colocado a sabedoria em lugares irreais, fantsticos.

    Nicholas van Hertogenbosch (Busciducensis) em 31/08/1531

    Penso que no nos afastamos muito da verdade, se supomos (Allen, IV, n. 1232, p. 574). que Morus tenha deixado de se ocultar pelo brincadeira de Erasmo, no momento em que as crticas Mona comearam a fazer-se sempre

    2b Sobre esta carta, veja-se o ensaio de G. MARC'HADOUR, More

    mais duras. Tal obra, de fato, no obstante a forma jocosa e irnica, suscitou, sobretudo em alguns ambientes religiosos, reaes to speras que pasmaram e consternaram no apenas Erasmo que, contudo, de qualquer forma, as havia previsto , mas tambm Morus; como demonstra, entre outras coisas, a longa carta que Morus escreveu para defender Erasmo das crticas que um telogo lovaniense, Martin

    convertit ecc., pp. 13-15.

    Dorp, havia lhe dirigido. Aqui, gostaria de enfatizar uma coincidncia que me parece

    muito significativa para o meu assunto. A saber, que a carta a Dorp elaborada por Morus no mesmo perodo (vero-outono de 1515) em que ele, em misso nos Flandres, redigia a primeira redao do que depois se tornaria a Utopia-26 . Ora, toda uma srie de elementos induz a supor que Morus tenha aportado modificaes estrutura de sua obra justamente durante sua estada diplomtica nos Pases Baixos, decidindo, entre outras coisas, substituir o "eu narrador" do atual segundo livro. Falando em primeira pessoa no estaria mais a Sapincia (uma entidade abstrata), assim como provavelmente havia projetado na esteira da Mora (onde precisamente a Loucura em pessoa quem fala), mas um personagem concreto e verossmil, um viajante-filsofo, ou seja, Rafael Hitlodeu 27. Deste modo, a prpria obra assumia no s uma nova forma (de "declamatio" se transformava em "romance"), mas tambm um novo significado: no s um abstrato 2, coroo o prprio moros , "elogio da sabedoria", mas uma descrio analtica de ordenaes justas embora entre linhas, nos criadas por homens sbios. informa, tanto na carta prefcio

    a Gilles, quanto nas primeiras Certamente, tais mudanas deveram-se tambm aos contatos

    diplomticos; as discusses sobre os tratados comerciais, nas quais Morus se empenhava diretamente, no podiam deixar de evocar, como

    pginas da obra (cf. Utopia, pp. 38-44, 48 ss.) Sobre este ponto, veja-se A. PRVOST, ,utopie, cit., pp. XL-XLIII.

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  • C OSIMO QUARTA

    Prvost justamente enfatizou, as recentes viagens dos descobridores do Novo Mundo. Era muito difundido, naquele perodo, o dirio de bordo de Amrico Vespcio, "cuja leitura inflamava os nimos e despertava a cupidez" 28. Mas, em minha opinio, um outro elemento levou Morus a modificar sua obra e a dar-lhe, assim, um novo nome: a clara conscincia de que aquele no era mais o tempo de brincar. O "elogio da sabedoria" no podia, por isso, ser apresentado sob a forma de troa, visto, ainda, as polmicas virulentas., que a Mora tinha levantado.

    Consciente disso, Monis acorreu aos reparos. Compreendeu, em outros termos, que a representao jocosa da sabedoria como habitante de Abraxas, ou seja, um lugar que Erasmo havia claramente condenado como morada dos loucos, poderia dar lugar a polmicas ulteriores. Era preciso, por isso, evitar colocar a sabedoria em Abraxas e estabelec-la em um lugar mais digno. Da a necessidade de encontrar um outro "lugar" e, assim, um novo nome que no fosse imediatamente evocativo de loucuras herticas, como era de fato Abraxas, mas que, de algum modo, conservasse seu valor semntico de "lugar inexistente"; e isto a fim de que no faltasse totalmente a idia originria da brincadeira suger:da pela Mora, que, como se viu, colocava a sabedoria "em nenhum lugar". E no encontrando, no momento, nada de melhor, Monis substantivou o familiarssimo advrbio latino "nusquam". E assim, eliminada Abraxa, o "elogio da sabedoria" ou, o que o mesmo, o lugar do "timo estado" assumiu provisoriamente o nome de Nus quama.

    3. De Nusquama a Utopia

    Sobre a escolha de Nusquama, Kristeller avanou a hiptese de que Monis tenha se inspirado naquela passagem da Repblica platnica, em que se diz que o estado delineado anteriormente por Scrates no existe "em nenhum lugar da terra" (ghes ghe oudamon) 29 . Esta explicao, embora plausvel, me parece, no entanto, um tanto problemtica, porque se apia em circunstncias extrnsecas, ou seja, sobre um mero fato casual: a descoberta daquela passagem platnica teria sido muito importante para persuadir Morus a chamar seu escrito, primeiramente, Nusquama, e depois, Utopia. O que me parece um tanto improvvel, visto que bem outras eram as pginas platnicas que haviam fascinado Morus, como, por exemplo, o governo dos sbios, a comunidade dos bens, a justia, etc. No mximo, se tanto, aquela passagem pde confirmar uma escolha feita em precedncia.

    Quais possam ter sido as razes de tal escolha se disse anteriormente. certo, contudo, que, com o nome de Nusquarna,

    2" A. PREVOST, L'Utopie, cit., p. XLI.

    " Cf. P.O. KRISTELLER, "Thomas More ais Humanist", in P.O. KRISTELLER H. MATER, Thomas More ais Humanist. Zwei Essays, Bamberg, 1982, p. 18. A referncia Rep., IX, 492ab.

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  • UTOPIA: GNESE DE UMA PALAVRA-CHAVE

    em 3 de setembro de 1516, Monis enviava a Erasmo o manuscrito j pronto para a publicao. No somente, mas ainda em duas cartas a Erasmo, posteriores a tal data (uma de 20 de setembro e outra de 31 de outubro de 1516), Morus continua a referir-se ao seu escrito com o termo Nus quama, ainda que na carta prefcio a Gales ("Pudet me"), que no porta data, mas que Rogers pensa ter sido escrita por volta de outubro de 1516, j aparea o termo "Utopia" 30. Se tal datao correta, resta explicar por que Morus, embora j tendo cunhado o novo termo "Utopia", ainda usa, em sua carta de 31 de outubro a Erasmo, o velho termo "Nusquama".

    Como se sabe, Morus, na carta a Erasmo de 3 de setembro de 1516, diz ter anteposto a Nusquama, guisa de introduo, uma carta ao amigo Peter Gilles, na qual, porm, como observei pouco antes, j aparece apalavra "Utopia". Ora, posto que, como justamente observa McCutcheon, esta passagem de Morus constitui o nico ponto de referncia certo para datar a sua carta a Gillesn, faz-se necessrio explicar por que Monis, se tivesse realmente cunhado a palavra Utopia antes de 3 de setembro de 1516, teria depois continuado a usar, at 31 de outubro do mesmo ano, o termo Nusquama. Mas nada prova que a cunhagem deste singular neologismo tenha ocorrido antes de 3 de setembro de 1516. claro que tal questo poderia ser, talvez, definitivamente resolvida somente pelo manuscrito da obra, que, no entanto, infelizmente, no foi encontrado ainda. Na ausncia de provas documentais, pode-se, todavia, conjeturar que Morus, no manuscrito inteiro enviado a Erasmo (e, assim, tambm na carta-prefcio a Gilles que constitua sua introduo), utilizasse ainda o termo Nusquama, como demonstra o fato de que com tal termo a designa a Erasmo, no s na carta de 3 de setembro, mas tambm na de 20 de setembro e de 31 de outubro de 1516. provvel, portanto, que somente depois desta data Morus tenha cunhado o termo Utopia e que, em conseqncia disto, tenha procedido substituio de Nusquama por Utopia em todos os lugares do manuscrito (includas as cartas), enquanto a obra estava em processo de impresso. Mas, para alm deste problema, o que importa relevar que, a partir de primeiro de novembro de 1516, isto , cerca de um ms antes da efetiva publicao, a obra vem designada, seja por Morus, seja por seus correspondentes, unicamente com o nome, que ser depois o definitivo, de "Utopia".

    Deve-se, agora, compreender o que levou Monis, em novembro de 1516, a alterar o nome do "timo estado" por ele descrito. Por que, em suma, Nus quama se torna Utopia? Uma primeira, plausvel razo pode ter sido de natureza, por assim dizer, esttica; no sentido que a palavra "Utopia" parecia bem mais apropriada, antes de tudo, scb o aspecto fontico. Ela , de fato, mais doce e potica que a spera e algo

    Cf. E.F. ROGERS, Op. cit., n. 25, pp. 77-78; G. MARC'HADOUR, L'univers de Thomas More, Paris, 1963, p. 235; A. PRVOST, L'Utopi e, cit., p. 66, nota 1: "Esta carta, escrita, sem dvida, em outubro de 1516".

    E. McCUTCHEON, Op. cit., p. 14.

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  • COSIMO QUARTA

    cacofnica "Nusquama". Em segundo lugar, Utopia, com o sufixo "ia", que imitava bem mais de perto os nomes de lugares reais, tanto em grego (Sikelia, Makedonia, Alexandria, etc.) quanto em latim (Itlia, Galha, Britnia, Germnia, Aplia, etc.), dava mais verossimilhana ao discurso de Hitlodeu. Utopia, na verdade, tem, indubitavelmente, um valor evocativo, a fora de trazer memria terras longnquas, lugares maravilhosos, de que Nusquama se priva.

    Uma vez substituda a palavra Nusquama por Utopia, deveria se intervir, ainda que por motivos de coerncia estilstica ou, mais propriamente, lexical, para substituir todos os outros termos com os quais, provavelmente, havia designado, at aquele momento, homens, povos, instituies e lugares. Lembremo-nos, precisamente, dos diversos neologismos que so, na maior parte, antfrases , como "Amaurota" (a capital da ilha), "Anidra" (o rio) e "Ademo" (o prncipe); ou o nome dos magistrados: "filarcas" e "protofilarcas", "sifograntes", "traniboras"; ou, ainda, o nome dos povos vizinhos, designados pelo nome de "Acorianos", "Alaoplitas", "Anemolianos", "Macarianos", "Nefelgitas", "Zapoletas". Sem falar, em seguida, do personagem principal, ou seja, Hitlodeu, alm do primeiro rei, Utopus, de quem a ilha recebe o novo nome 32 . Um claro indcio de que tal interveno tenha sido feita s pressas provavelmente enquanto a obra estava em avanado processo de impresso nos dado por uma passagem em que Hitlodeu fala do Senado de Amaurota. Pois bem, na edio de 1516, nesta passagem se l "In senati Mentirano", ao invs de "In senatu Amaurotico", como referido nas edies sucessivas. O fato de que na primeira edio o termo Mentirano aparea apenas em uma passagem, enquanto nas outras regularmente utilizado o neologismo grego "Amaurotum" (ou o adjetivo correspondente "Amauroticum") demonstra claramente que, na pressa, este substantivo latino passara despercebido pelos corretores. Tanto verdade que, nas edies sucessivas, foi corrigido. desnecessrio acrescentar aqui que tal "descuido" foi providencial, a partir do momento que, graas a ele, hoje estamos em grau de compreender tambm a importncia que teve a cunhagem da palavra "Utopia", inclusive para o resto da obra. De fato, uma vez introduzida, ela provocou no texto uma srie de intervenes capazes de substituir alguns termos latinos por nomes gregos, de modo que no houvesse desarmonia entre o nome da ilha e o das outras realidades ali representadas. E esta uma das razes pelas quais "Utopia" pode ser considerada uma palavra-chave.

    Mas a escolha do termo no se deveu apenas a razes de ordem ' 2 Para a passagem em questo, et Utopia, CW4, p. 146/25. formal, literria. Monis foi estimulado tambm e, sobretudo, por Para as outras passagens, Ivi, pp. 40/20, 112/25, 116/21, 118/2, 152/29, 251/18.

    razes de substncia, de contedo. Uma vez terminado o manuscrito, Monis deve ter-se dado conta de que o resultado de seu trabalho

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  • UTOPIA: GNESE DE UMA PALAVRA-CHAVE

    correspondia apenas em parte, uma mnima parte, inteno primeira que, como aqui se hipotetiza, era de elaborar uma "declamatio" sobre a sabedoria, para colocar ao lado da de Erasmo sobre a loucura. Com o passar do tempo, medida que as pesquisas prosseguiam, o projeto inicial foi lentamente se transformando, at mudar completamente de aspecto, sob a pena criadora de Morus. A obra, de fato, que podia ser lida e interpretada como um tipo de "contracanto" da Mora, tornara-se uma outra coisa, ou antes, uma coisa nova. Disto tiveram clara conscincia, alm de Morus, seus amigos humanistas, como demonstram os escritos (cartas, versos, etc.,) que acompanharam a obra at a sua primeira edio. E, na verdade, com seu escrito, Morus dava incio no somente ao renascimento do pensamento utpico, mas tambm a um novo gnero literrio: o romance utpico, que tanta fortuna teve ao longo de toda a idade moderna, at os nossos dias".

    O nome Nusquama, portanto, se revelava inadequado para designar este fato novo. Tanto mais que, como se diz, exprimia apenas o ponto de vista da Loucura sobre a sabedoria: de fato, fora a Loucura quem dissera que a sabedoria no existe "em nenhum lugar". Continuar a chamar Nusquama o "timo estado" fundado sobre a sabedoria significava decretar-lhe, ou, pelo menos, ratificar-lhe a inconsistncia, a irrealidade. O que era, alis, o verdadeiro objetivo da Loucura, a qual, para continuar a exercer autoridade sobre a terra, tem todo o interesse em que os homens creiam que a sabedoria seja algo de inatingvel e de ilusrio; ou seja, algo que, precisamente, no existe "em nenhum lugar". Morus, com seu escrito, contradizia o propsito da Loucura, mostrando, ao contrrio, que a sabedoria podia ter um lugar. Era bvio que para designar este "lugar positivo" ele devesse buscar um termo diferente daquele puramente negativo de Nusquama, proposto pela Loucura.

    Ora, se o nome Abraxa descartado como lugar da sabedoria porque evocava muito de perto as "loucuras" cosmolgicas do hertico Basilide, no menos dirimentes foram as razes que levaram Morus a expungir, ainda que no ltimo momento, Nusquama do texto. Alm daquelas expostas anteriormente, houve outra, ao meu ver, determinante: a conscincia de que Nusquama tinha uma carga negativa muito forte no plano semntico. Colocar a sabedoria em Nusquama, isto , "em nenhum lugar", significava no somente dar razo Loucura que zombava dos sbios colocando-os, precisamente, em nenhum lugar" , mas tambm distorcer totalmente a mensagem

    do escrito que, ao lado de uma pars destruens, crtica, negativa, distpica, apresentava tambm uma pars construens, propositiva, projetual, utpica, que era muito mais importante e significativa. Transferindo a Sabedoria de Nusquama (ou seja, do lugar do puro no

    " Cl. E. SURTZ, Introduction (Pari II) a Utopia CW4, cit., p. CLV.

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  • C OSIMO QUARTA

    ser) para Utopia, Morus mostrava que a sabedoria pode habitar entre os homens, com a condio de que eles se empenhem em busc-la com todas as prprias foras. Deste modo, ele, indicando humanidade os meios de realizar o "timo estado", lhe oferecia, ao mesmo tempo, a esperana de livrar-se das correntes do mal, s quais a Loucura teria querido sujeit-la para sempre, com suas pseudo-razes.

    Mas por que escolher justamente Utopia e no, ao contrrio, por exemplo, "Eutopia", como sugeria o "poeta laureado Anemlio", ou "Udepotia" (de oudpothi, "em nenhum lugar"), ou "Agnopolis" (de agns, santo, e, da, "cidade santa"), como propunha Guillaume Bud 34? Dentre estas possveis alternativas, as ltimas duas foram propostas por Bud pouco antes da segunda edio da obra (Paris, 1517), e, assim, Morus, se tivesse julgado oportuna, poderia ter aceito a sugesto do insigne humanista francs. Mas no o fez. E isto porque Udepotia apresentava, por assim dizer, o mesmo defeito de Nusquama, a partir do momento que oudpothi nada mais que o correspondente grego do latim nus quam. Por outro lado, Agnopolis era um termo pouco adequado para exprimir a complexa realidade da ilha feliz, a qual, se podia, com razo, ser definida como um "estado timo", permanecia uma realidade terrestre, finita, sujeita ao erro e ao pecado, e, por isso, era dificil, ou, de qualquer maneira, inoportuno atribuir-lhe o nome bastante comprometedor de "cidade santa".

    4 O nexo Ou - topia / Eu - topia

    Muito diverso o discurso sobre o outro possvel nome: "Eutopia". Este termo, como se sabe, aparece no Hexastichon (um epigrama constitudo por seis senrios imbicos) que acompanhou a obra de Morus desde sua primeira edio'''. O autor destes versos indicado com o nome de Anemolio, que o prprio ttulo esclarece ser "sobrinho de Hitlodeu por parte de irm". Na verdade, h boas razes para considerar que o autor do epigrama, para alm do nome de fantasia com que representado, "seja o prprio Morus" 36 . Nestes versos se diz, portanto, que Utopia foi assim chamada pelos "antigos" (triscis) por causa do seu "isolamento" ou, o que o mesmo, porque "raramente freqentada" (oh infrenquentiam); ora, muito pelo contrrio, no apenas pode estar em p de igualdade com a cidade platnica, mas talvez at mesmo a supere, posto que o que esta somente "em palavras" (literis) havia delineado, aquela tornou existente (praestitit); de tal modo que, com razo, pode ser chamada Eutopia. Morus, assim, j antes da publicao, tinha disposio um termo (Eutopia, ou seja, o "bom lugar") que, como sugere o epigrama, parecia exprimir com maior eficcia que ou-topia ("no lugar") o contedo e o esprito de

    Para os versos de "Anernolius e a carta de Bucle (31/07/1517), veja-se Utopia, respectivamente, pp. 20, 10, 12.

    35 Cf. J, p. 20.

    36 Cf. A. PRVOST, L'Utopie, cit., pp. 217, 330 nota 1.

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  • UTOPIA: GNESE DE UMA PALAVRA-CHAVE

    sua obra. No obstante, optou por cham-la Utopia. Por que? As razes de tal escolha no devem ser buscadas muito longe,

    j que Morus as apresenta, ainda que de forma velada, no prprio Hexastichon, que constitui, juntamente com os outros escritos preliminares, uma chave para penetrar nos recessos de sua construo, um fio para desenredar-se e orientar-se naquele atraente, mas bastante complicado, labirinto. Entretanto, o fato de ter recorrido a uma figura retrica clssica como a prosopopia significativo: Morus faz falar diretamente Utopia, como se a declarar que sua obra pode ser comparada a algo de vivo, a uma pessoa, que se caracteriza no s pelo fato de ter um corpo, mas tambm, e sobretudo, por ter uma alma, uma conscincia. Utopia, de fato, reconhece, antes de tudo, que seu nome extrai a origem de seu isolamento, ou seja, do fato de que os homens sempre acreditaram que um "timo estado", governado pela sabedoria, poder-se-ia encontrar apenas "em nenhum lugar". E justamente porque julgavam que estivesse em nenhum lugar, tampouco era procurada; donde seu isolamento, seu "no ser freqentada".

    Que tal crena fosse muito antiga Morus bem o sabia. J Plato, de fato, naquela passagem da Repblica citada anteriormente, havia denunciado claramente este lugar comum. No por acaso, a objeo de que o estado descrito por Scrates no existisse "em nenhum lugar da terra" provm de Glauco, o personagem do dilogo que, juntamente com o irmo Adimanto, representa, de certo modo, a opinio corrente, quase sempre incapaz de ir alm do imediato, do sensvel, do concreto. Uma posio, esta, que por muitos aspectos anloga quela expressa pela Loucura na obra de Erasmo. Na verdade, tanto Glauco quanto a Loucura colocam "em nenhum lugar" um, o governo dos sbios, ou seja, o "estado justo", o outro, o sbio ou a sabedoria como tal. S que objeo de Glauco responde imediatamente Scrates (que personificava a sabedoria), afirmando que o problema no se o estado justo existe em algum lugar; o que importa, ao contrrio, se ele pode funcionar como modelo para aqueles que pretendem fundar a si mesmos e polis sobre a justia'''. A resposta s opinies da Loucura, ao contrrio, no imediata, mas Morus a dar, alguns anos depois, com Utopia.

    Alm disto, preciso enfatizar que, a partir de diversas passagens da Republica, compreendida aquela j citada, evidencia-se claramente que, para Plato, a "constituio melhor" (ariste politeia), embora no existindo "em nenhum lugar da terra", ou seja, embora no sendo concretamente realizada, era, todavia, realizvel, ainda que com dificuldades. O passo adiante que Morus julga ter cumprido, em relao a Plato, o de apresentar o "estado timo" como j realizado 37 PLATO, Repblica, IX,

    592ab. e operante. E justamente por isso que ele mereceria ser chamado

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  • COSMO QUARTA

    no mais Utopia (o "lugar inexistente"), mas Eutopia, o "bom lugar", ou melhor, o "lugar do bem". Gostaria de observar aqui, de passagem, que no epigrama j anunciada, com extrema clareza, uma das caractersticas peculiares da utopia moderna: a tenso realizadora. Com Morus, a instncia da passagem do "no lugar" ao "bom lugar", ou, o que o mesmo, do "negativo" ao "positivo" desde sempre presente, implcita ou explicitamente, no pensamento utpico se faz urgente, imperiosa. Morus nos diz que a ou-topia, o pensamento crtico, o negativo, no tem fim em si mesmo, mas deve, necessariamente, se no quiser ser estril, reconciliar-se com o "positivo" e desembocar em um projeto de "sociedade boa". Em suma, se o ponto de partida a "ou-topia", o ponto de chegada deve ser a "eu-topia".

    E isto pode ajudar tambm a entender porque Morus tenha preferido o termo Utopia ao de Eutopia. Este ltimo, de fato, mesmo que literariamente mais adequado (seja sob o aspecto fontico como semntico) tem em comum com Nusquama o mesmo grave defeito: a univocidade. Como Nusquama teria significado apenas "em nenhum lugar", ou seja, o negativo, assim, Eutopia teria significado apenas o "bom lugar", isto , o positivo. Ambos os termos, portanto, por causa de sua univocidade (ainda que em sentido diverso), eram inadequados para exprimir a riqueza e a complexidade da obra moreana e, da, tambm o que hoje chamamos, mais geralmente, fenmeno ou pensamento utpico. De fato, Nusquama, com sua carga de negatividade, teria sancionado a inexeqibilidade e, da, a inconsistncia e o aspecto ilusrio do projeto; enquanto Eutopia, com seu claro e indiscutvel contedo semntico positivo, teria ignorado o negativo, o mal, que, infelizmente, constitui uma presena assdua neste nosso mundo. Em suma, o uso de Nusquama poderia ter feito pensar que Morus desse razo Loucura, ou seja, quele sentir comum, tpico dos realistas impenitentes, os quais, arraigados a seus privilgios, concebem o futuro como cpia do passado e, relegando "a nenhum lugar" os projetos de transformao da sociedade, se esforam para que nela nada mude. Por outro lado, se Morus tivesse optado por Eutopia, seu projeto poderia ter aparecido como a obra de um "sonhador" que, perdido todo vnculo com a realidade, deleita-se em construir, por puro passatempo, castelos no ar ou cidades nas nuvens.

    Da a exigncia de encontrar um termo que conseguisse colher e exprimir, de maneira eficaz, os dois aspectos fundamentais do pensamento utpico, a saber, o momento crtico (negativo) e o projetual (positivo). E visto que nem a lngua grega nem a latina tinham um tc:rmo apropriado a tal fim, Morus cunhou um novo: Utopia, precisamente. Ora, a singularidade e originalidade deste neologismo que, como todos os outros termos de origem grega

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  • UTOPIA: GNESE DE UMA PALAVRA-CHAVE

    usados na obra, transliterado e declinado na latina reside no fato de que o "u" inicial pode assumir um duplo significado: pode ser de fato interpretado no s como transliterao da negao "ou" (no), mas tambm como afrese do prefixo (de significado invariavelmente positivo) "eu" (bem, bom)38. Esta ambigidade estrutural e originria do termo, como observei anteriormente, foi causa no secundria dos mal-entendidos dos quais a Utopia de Morus, mas tambm, por efeito de atrao, o pensamento utpico em geral, tornaram-se objeto ao longo dos sculos. O preconceito de que o escrito de Morus fosse um "passatempo literrio", um "sereno jogo do esprito", no podia deixar de reverberar-se sobre a palavra-chave da obra. E, assim, a riqueza semntica que Morus acumulara no termo Utopia desconhecida e banalizada por geraes inteiras de crticos to levianos como precavidos.

    A gnese da palavra Utopia, que aqui tentei reconstruir, coordenando seus elementos textuais, paratextuais e contextuais, aparentemente espalhados ao acaso, espero possa dar uma idia dos esforos desempenhados por Morus para dar um nome que fosse o mais possivelmente adequado sua obra e, da, a um fenmeno e a um conceito to rico e complexo como o utpico.

    5 A utopia como conscincia critico-projetual e tenso realizadora

    preciso, de fato, ressaltar que a obra de Morus, alm de ter fornecido finalmente aos psteros um nome "prprio" para designar um fenmeno do qual eram desprovidos e um modelo para um novo gnero literrio, oferece tambm os elementos para elucidar melhor o prprio conceito de utopia, j a partir da anlise deste afortunado neologismo. Como se viu, a duplicidade semntica do "u" inicial induz a configurar a utopia como o "lugar do bem", a "sociedade virtuosa e feliz" (eu-topia) que "no tem lugar" (ou-topia). S que aquele "no lugar" no se identifica com o puro "no ser", com o nada, mas antes um "no haver", algo que "no ", apenas em linha de fato. Trata-se, em outros termos, de um no ser aqui e agora, que, contudo, no impede que possa ser algures e no futuro. A eu-topia,

    como se viu no Hexastichon, est propensa a se realizar, de tal modo que o seu "no ser" (ou-topia), justamente por sua realidade de fato e temporaneidade, se apresenta, ab origine, ct,mo um "no ser ainda"39 . Utopia, assim, a "sociedade boa", isto , virtuosa e feliz, que "no existe ainda", mas que se propende a ser, que preme por realizar-se. Foi dito que Morus, cunhando um termo to ambguo como o de utopia, provocou "no pouco desvio a este gnero, confinando-o na

    3" Tenha-se em mente,por exemplo, a mutao do termo latino "evangelium" no italiano "vangelo" e seus derivados (j em Dante, Purgatorio, XXII, 154; tambm Inferno, XIX, 106). apenas o caso de observar que os latinos, para exprimir sua alegria, empregaram vocbulos de clara origem grega, como "eu", "euge", "eugepae" (bem! bravo! maravilhoso!). significativo, ademais, que a primeira traduo italiana da obra moreana, editada por Ortensio Lando e publicada em Veneza, em 1548, por Anton Francesco Doni, traz no ttulo Eutopia, ao invs do original Utopia.

    " Sobre a categoria do "no ainda" (noch nicht),

    ver E. BLOCH, Das Prinzip Hoffnung, Frankfurt a.M., 1973, I, pp. 129 ss.

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  • COSIMO QUARTA

    irrealidade do "sem lugar" (ou topos)". preciso dizer, porm, que a responsabilidade por tal "desvio" no deve ser atribuda a Morus, mas a quem tem lido com superficialidade a sua obra. Na realidade, o humanista ingls fornecera toda uma srie de elementos capazes de ajudar os leitores a penetrar em seu escrito carregado de uma trplice valncia semntica. A linguagem de Utopia, de fato, alm do sentido literal, possui outros dois: um alegrico e outro dinmico'''. S que a obra de Morus teve o singular destino de ser universalmente to conhecida e citada quanto pouco lida e estudada. vtima de leitores, muito freqentemente apressados, que, no tendo tido a pacincia de meditar o suficiente sobre ela, geralmente detiveram-se no sentido literal, na superfcie, na aparncia, sem talvez nem ao menos intuir as riquezas contidas em um texto declaradamente polissrnico. Donde os "desvios", os numerosos equvocos, j a partir da palavra-chave.

    claro que se definirmos a utopia limitando-nos a considerar, um tanto apressadamente, seu sentido literal, etimolgico, isto , ou-topos, devemos, em seguida, inevitavelmente chegar concluso de que ela sinnimo de irrealidade, iluso, quimera e coisas afins. Se, ao contrrio, temos a pacincia de nos deter e refletir sobre o texto, ento este surgir em uma nova luz, justamente pelo alargar-se de seus horizontes semnticos. Veremos, assim, que, aps uma anlise atenta da obra, a prpria negao "ou" se carrega de outros significados. Ela, de fato, alm do "no ainda", que exprime a dimenso do futuro, da possibilidade e da liberdade, sem a qual no seria projetualidade, assume tambm uma valncia crtica. Na verdade, no pode haver conscincia utpica, ou seja, projetual, sem conscincia crtica. A dimenso crtica constitutiva da conscincia utpica. Se no h tal dimenso, a conscincia no adquire o carter utpico, mas permanece, por assim dizer, no estado sonhador.

    A conscincia crtica, porm, no iria muito longe se no fosse amparada pela conscincia tica, que conscincia e, sobretudo, vontade de bem. Mas a vontade de bem que desde sempre vontade de seres finitos, limitados, transitrios destinada a chocar-se com a realidade dada, em cujo interior agem tambm vontades e estruturas de mal. Deste choque nasce a conscincia crtica, ou seja, a conscincia de que a sociedade, assim como , carente de ser, posto que no realiza todo o bem que, no entanto, poderia realizar, se fosse constituda

    .1. MANCINI, Forme dell'utopia, in "Bollettino della

    de outro modo. Aqui se v como a dimenso crtica estreitamente Societ Filosfica italiana", ligada projetual, ou seja, como Ao pode se dar ou-topia sem eu-topia 1984, n. 122, p. 14. e vice-versa. Isto demonstra ,:ambm como o vnculo com a realidade 4 ' Sobre este ponto, ver as histrica seja, para o pensamento utpico, no uma opinio, mas uma pginas iluminantes de A. necessidade. PRVOST, L'Utopie, cit., pp. Ora, este processo formativo da conscincia crtica se evidencia 138 ss.

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  • UTOPIA: GNESE DE UMA PALAVRA-CHAVE

    claramente pela obra de Morus. A dimenso crtica, de fato, est claramente presente no primeiro livro da Utopia, que constitui, como se sabe, uma severa e cerrada crtica s instituies e aos costumes da poca. Mas tambm o livro segundo, no qual se concentra a parte propriamente projetual da obra, contm elementos de crtica dos quais no se pode descuidar. De modo que de fato surpreendente observar que, mesmo que em presena de uma crtica to pontual, rigorosa e, s vezes, radical, muitos estudiosos tenham podido identificar a Utopia de Morus e, por ela, o fenmeno utpico tout court, com a irrealidade, ao sonho, ao jogo, iluso, abstrao.

    O vnculo com a realidade histrica de tal maneira forte e evidente que somente alguns leitores ofuscados pelo preconceito podem no enxergar aquilo que, ao contrrio, os contemporneos de Morus e, inprirnis, Erasmo, davam por claro e solucionado. Deveria, contudo, dizer alguma coisa, ao imenso tropel de crticos apressados, o fato de que "o prncipe dos humanistas", em um de seus alis rarssimos juzos sobre a obra moreana, tenha aludido que Morus publicou a Utopia "com a finalidade de mostrar quais fossem as causas dos males dos estados; mas se deteve a descrever sobretudo a Inglaterra, da qual possua um conhecimento mais direto e aprofundado" 42 .

    Isto demonstra que tambm a utopia literria, longe de vagar no sonho e na fantasia, se encontra, ao contrrio, profundamente radicada na realidade histrica. Nasce, de fato, da aguda conscincia, que ao mesmo tempo crtica e tica, dos males sociais e da vontade de super-los. E precisamente desta vontade de bem que se origina o projeto de uma sociedade fundada sobre a liberdade, sobre a justia, sobre a igualdade, sobre a paz. Isto , nasce a conscincia projetual, a que se liga o empenho, ou melhor, a tenso realizadora. Em Monis, no somente a conscincia crtico-projetual, ma tambm a tenso realizadora de tal modo forte que nos apresenta o "timo estado" como j realizado. Sem dizer que no Hexastichon, como se viu, justamente tal tenso que marca a diferena, ou seja, que sanciona a superioridade da Utopia sobre a Repblica platnica.

    oportuno salientar que, se faltar apenas um destes momentos (crtico, projetual, realizativo), no se d a conscincia utpica, e antes, no se d conscincia automaticamente humana. Uma conscincia, de fato, desprovida do momento crtico corre o risco de ser fagocitada pela dimenso onrica da existncia; enquanto que, sem o projeto, o homem, ao invs de governar os acontecimentos, permanece em poder de seu catico fluir, ou seja, merc de uma histria que no possui direo, nem sentido, nem fim; uma conscincia, alis, desprovida da tenso realizadora corre o risco de desembocar em estril veleitarismo, " Carta de Erasmo a von

    Hutten, cit., in Allen, IV, p. vale dizer, em incapacidade de produzir efeitos positivos no plano 21.

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    da praxe histrica. O empenho tico, o dever de realizar o projeto, parte integrante da conscincia utpica. A qual, justamente porque conhece seus limites, sabe bem que haver sempre uma distncia entre o pensamento e a ao, entre a teoria e a praxe. E, assim, uma conscincia sempre vigilante, atenta a no trocar por absoluto aquilo que relativo e transitrio (compreendido, obviamente, o prprio projeto). A seguir, o fato de que o projeto utpico seja definido como "timo" no significa que o seja em sentido absoluto, mas apenas relativamente conscincia que o expressou. Aos poucos a conscincia utpica amadurece, mudam as aspiraes do homem e mudam, assim, tambm os seus projetos.

    A conscincia utpica , por definio, uma conscincia aberta, enquanto no apenas se estende sobre o futuro (sobre o "no ainda"), ou seja, sobre o que de bom os novos tempos trazem, mas se atenta tambm quilo que de bom o presente contm, buscando o melhor onde quer que ele se encontre. Esta projeo sobre o "agora" e sobre o "algures" escapa aos detratores da utopia quando acusam os utopistas de projetarem "sociedades fechadas" e de sacrificar o presente ao futuro. No obstante, Morus havia muitas vezes enfatizado a extrema disponibilidade dos Utopianos para colocar em discusso os prprios ordenamentos, caso vissem melhores em outros lugares. E esta disponibilidade mudana no concerne apenas problemas de natureza tcnica, cientfica, cultural, tica, ou instituies de carter poltico, econmico, social, mas penetra em um mbito que, pelo seu tendencioso dogmatismo, muito dificilmente suporta mudanas, a saber, a esfera religiosa'''.

    Como se v, a utopia, torna-se livre dos equvocos seculares, ao readquirir sua verdadeira luz, seu verdadeiro significado, seu verdadeiro sentido, que o de guiar e sustentar a humanidade no seu plurimilenrio esforo de construir uma sociedade, antes de tudo, segundo a justia e, mais alm, segundo o princpio sublime do amor fraterno. A tarefa rdua, por certo, mas o fim de tal modo grandioso que merece o empenho e a total dedicao de todos os homens de boa vontade. De resto, se a Utopia de Morus se configura como um "elogio da sabedoria", ento pode-se tambm concluir que a realizao histrica dos princpios nela contidos constitui a vitria da sabedoria

    41 Cf. Ivi, pp. 108, 120-122, 180, 184, 216, 236. Mas sobre a estultice humana. No somente isto, mas o desenvolvimento veja-se tambm o ltimo da conscincia utpica ao longo da histria pode ser interpretado como verso do tetrastichon em lngua um sinal inequvoco do crescimento sapiencial da humanidade. O que, utopiense, Ivi, p. 18: "Libenter impartio mea, non ravatim mesmo que acontea entre inumerveis contradies, nos faz bem accipio meliora". esperar, a partir do momento em que; corno nos revela a Escritura, "a . sapienza, 6, 24. salvao do mundo" est guardada na "abundncia dos sbios" -".

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