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Educação Popular na América Latina: diálogos e perspectivas E D U C A Ç Ã O P A R A T O D O S C O L E Ç Ã O

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  • Educao Popular na

    Amrica Latina: dilogos e

    perspectivas

    EDUCAO PARA

    TODO

    S

    C

    O

    L E O

  • A Coleo Educao para Todos, lanada pelo Ministrio da Educao e pela Unesco em 2004, um espao para divulgao de textos, documentos, relatrios de pesquisas e eventos, estudos de pesquisadores, acadmicos e educadores nacionais e internacionais, que tem por finalidade aprofundar o debate em torno da busca da educao para todos.

    A partir desse debate, espera-se promover a interlocuo, a informao e a formao de gestores, educadores e demais pessoas interessadas no campo da educao continuada, assim como reafirmar o ideal de incluir socialmente o grande nmero de jovens e adultos excludos dos processos de aprendizagem formal, no Brasil e no mundo.

    Para a Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade (Secad), rgo, no mbito do Ministrio da Educao, responsvel pela Coleo, a educao no pode separar-se, nos debates, de questes como desenvolvimento socialmente justo e ecologicamente sustentvel; direitos humanos; gnero e diversidade de orientao sexual; escola e proteo crianas e adolescentes; sade e preveno; diversidade tnico-racial; polticas afirmativas para afro-descendentes e populaes indgenas; educao para as populaes do campo; educao de jovens e adultos; qualificao profissional e mundo do trabalho; democracia, tolerncia e paz mundial.

    Este volume, o n 4 da Coleo, traz uma coletnea de artigos originalmente publicados em La Piragua, a revista do

  • Organizao:Pedro PontualTimothy Ireland

    Educao Popular na

    Amrica Latina:

    dilogos e perspectivas

    EDUCAO PARA

    TODO

    S

    C

    O

    L E O

    Braslia, 2006

    Edio Eletrnica

  • Edies MEC/Unesco

    SECAD Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e DiversidadeEsplanada dos Ministrios, Bl. L, sala 700Braslia, DF, CEP: 70097-900Tel: (55 61) 2104-8432Fax: (55 61) 2104-8476

    Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a CulturaRepresentao no BrasilSAS, Quadra 5, Bloco H, Lote 6, Ed. CNPq/IBICT/Unesco, 9 andar Braslia, DF, CEP: 70070-914Tel.: (55 61) 2106-3500Fax: (55 61) 3322-4261Site: www.unesco.org.brE-mail: [email protected]

  • Organizao:Pedro PontualTimothy Ireland

    Educao Popular na

    Amrica Latina:

    dilogos e perspectivas

    EDUCAO PARA

    TODO

    S

    C

    O

    L E O

    Braslia, 2006

    Edio Eletrnica

  • Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Educao Popular na Amrica Latina: dilogos e perspectivas / Pedro Pontual, Timothy Ireland (organizadores). Braslia : Ministrio da Educao : UNESCO, 2006.

    ISBN 85-98171-54-9

    264 p. (Coleo Educao para Todos ; v. 4)

    1. Educao Popular. 2. Educao Universal. 3. Democratizao da Educao. I. Pontual, Pedro.

    CDD 379.2

    2006. Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade do Ministrio da Educao (Secad/MEC) e Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura (Unesco)

    Conselho Editorial da Coleo Educao para TodosAdama OuaneAlberto MeloClio da CunhaDalila ShepardOsmar FveroRicardo Henriques

    Coordenao EditorialCoordenadora: Maria Adelaide Santana ChamuscaAssistente: Carolina Iootty

    Produo e edio final: Editorial AbarReviso: Tereza Vitale e equipeDiagramao: Heonir S. Valentim

    Edio Eletrnica

    Os autores so responsveis pela escolha e apresentao dos fatos contidos neste livro, bem como pelas opinies nele expressas, que no so necessariamente as da Unesco e do Ministrio da Educao, nem comprometem a Organizao e o Ministrio. As indicaes de nomes e a apresentao do material ao longo deste livro no implicam a manifestao de qualquer opinio por parte da Unesco e do Ministrio a respeito da condio jurdica de qualquer pas, territrio, cidade, regio ou de suas autoridades, nem tampouco a delimitao de suas fronteiras ou limites.

  • Agradecimentos

    Este volume da Coleo Educao para Todos representa um dos resultados da profcua parceria firmada entre a SECAD/MEC e o Conselho de Educao de Adultos da Amrica Latina (CEAAL), uma das mais importantes entidades da so-ciedade que atua no campo da Educao Popular e Educao de Jovens e Adultos na Amrica Latina. Os artigos que compem a presente coletnea foram original-mente publicados em sua Revista Latino-Americana de Educacin y Poltica, La Piragua, nmeros 19, 20 e 21.

    Ao presidente do CEAAL, Pedro Pontual (Brasil), ao secretrio-geral, Ral Leis R. (Panam) e ao diretor de La Piragua, Carlos Zarco Mera (Mxico), nos-sos sinceros agradecimentos pela valiosa colaborao dispensada na realizao deste projeto de levar, aos educadores de jovens e adultos brasileiros, as mais variadas vises e experincias que, sem dvida, fornecero elementos para enriquecer as re-flexes sobre a Educao Popular e seu relevante papel na construo de uma cida-dania ativa em nosso continente.

  • Apresentao

    Vigncia e Perspectivas da Educao Popular na Amrica Latina no Sculo XXI

    Esta publicao do MEC tem por objetivo compartilhar com educadores(as) de jovens e adultos parte dos resultados da reflexo latino-americana sobre vigncia e perspectivas atuais da Educao Popular que vem sendo produzida no mbito do Conselho de Educao de Adultos da Amrica Latina (CEAAL).

    O CEAAL uma rede latino-americana de cerca de 200 organizaes no-governamentais, situadas em 21 pases do nosso continente e que, desde princpios dos anos 1980, vem cumprindo a misso de ser um espao de ar-ticulao e sistematizao do movimento da Educao Popular na Amrica Latina. Inspirada nas formulaes de Paulo Freire, que foi seu primeiro pre-sidente, essa rede vem, ao longo de sua existncia, procurando reunir grande parte das instituies e educadores(as) que desenvolvem prticas de Educao Popular comprometidas com os processos de construo de uma cidadania ativa e de uma democracia integral em nosso continente.

    Acompanhando o movimento mais geral das cincias humanas e soci-ais neste incio de novo milnio, tambm a Educao Popular busca novos paradigmas e instrumentos de ao poltico-pedaggica capazes de responder a uma realidade de crescente excluso que vem provocando vrios questiona-mentos acerca da qualidade das nossas democracias. Neste contexto que se afirma a necessidade de democratizar a democracia e repensar o papel da Edu-cao Popular diante de tais desafios.

    Os textos reunidos nesta publicao provm de uma rica variedade de vi-ses e experincias, tanto porque seus autores e autoras so de diversos pases como porque, em suas trajetrias profissionais e polticas, tm-se dedicado a v-rias temticas Assim, apesar de todos(as) se reconhecerem como parte de uma mesma corrente da Educao Popular, suas contribuies esto marcadas por suas

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    prprias experincias educativas, pelo desenvolvimento de suas preocupaes te-mticas e, de modo mais geral, pela leitura de sua prpria trajetria de militncia poltica e social. Aos educadores e educadoras que apresentam suas vises em parte dos textos aqui reunidos, foram propostas as seguintes perguntas:

    1 Tomando como referncia as primeiras experincias de Paulo Freire, em princpios dos anos 1960, a Educao Popular conta j com mais de quarenta anos de desenvolvimento. Do seu ponto de vista e de sua prpria experincia, quais so as principais contribuies da Educao Popular durante todos estes anos?

    2. Nesta trajetria, especialmente luz das grandes mudanas que comeamos a viver no f inal dos anos 1980, muitas das formulaes sobre transformao social e ao poltica foram sendo repensadas e reformuladas. Neste contexto que ao mesmo tempo de af irmao do acumulado e de busca de novas referncias conceituais e polticas, o que segue vigente dentre os pressupostos da Educao Popular e o que vem sendo reformulado e precisa ser repensado?

    3. A Educao Popular segue sendo um conjunto de prticas e enfoques realmente existentes e o CEAAL tem continuado seu esforo de difundila e aprofundla. Neste sentido e olhando para o futuro, quais seriam os principais aspectos que devem ser trabalhados para fortalecer um movimento de Educao Popular na Amrica Latina que contribua para a transformao social?

    Outra srie de textos que fazem parte deste debate giram em torno de cinco eixos temticos definidos a partir do curso das prticas das entidades filiadas ao CEAAL. Esta identificao nos levou a um esforo de anlise e priorizao de temas que deveriam organizar nosso debate em meio a uma grande diversidade de prticas. Os eixos temticos definidos so:

    Educao Popular e novos paradigmas; Educao Popular e movimentos sociais; Educao Popular e democratizao das estruturas polticas e espaos pblicos; Educao Popular, cultivo da diversidade e superao de todas as formas

    de excluso e discriminao social; Educao Popular e sistemas e polticas educativas.

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    Esta publicao pelo MEC, parte do produto da reflexo do CEAAL sobre novos horizontes e desafios da Educao Popular, dirigida a todos(as) aqueles(as) educadores(as) de jovens e adultos que buscam articu-lar suas prticas de sala de aula com os demais espaos pblicos e educativos em que se constroem a cidadania e a democracia. Assim como estes textos so produto de uma reflexo coletiva, gostaramos de convidar a todos(as) educadores(as) a se associarem a este esforo atravs da sistematizao e da recriao de suas prticas.

    Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade do Ministrio da Educao (Secad/MEC)

    Conselho de Educao de Adultos da Amrica

    Latina (CEAAL)

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    Sumrio

    Captulo I A Sociedade Civil

    O Papel da Sociedade Civil na Construo da DemocraciaLetcia Salomn .................................................................................. 1

    ONGs, Desafios e Perspectivas: uma reflexo inconclusaJess Balbin ........................................................................................ 33

    Captulo II O Debate Latino-Americano sobre a Educao Popular

    Educao Popular Dialogando com Redes Latino-Americanas (2002-2003)Conceio Paludo ................................................................................ 41

    As Palavras So Noivas que Esperam: dez reflexes a compartilharRal Leis R. ......................................................................................... 63

    Educao Popular e Movimentos SociaisMrio Garcs D. .....................................................................................

    Educao Popular e Democratizao das Estruturas Polticas e Espaos PblicosPedro Pontual ......................................................................................... 1

    Educao Popular e Democratizao das Estruturas Polticas e Espaos PblicosRoco Lombera ................................................................................... 103

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    Os Desafios da Educao Popular Frente Diversidade e ExclusoMarcela Tchimino Mahmas ................................................................ 123

    Polticas Pblicas Educativas com Participao Social: um meio para reconstruir concepes e prticas desde a Educao PopularNoel Aguirre LedezmaLuis Antonio Rodrguez Bazn ........................................................... 135

    Captulo III Vigncia e Contribuies da Educao Popular

    Contribuies para o Debate Latino-Americano sobre a Vigncia e a Projeo da Educao PopularCarlos Nunez Hurtado ........................................................................ 14

    Dilogo a Partir das Perguntas Sugeridas para Consulta do CEAALCeclia Amaluisa Fiallos ..................................................................... 15

    A Educao Popular Caminhando para o FuturoCsar Picon ........................................................................................ 163

    Desafios para a Educao Popular na ColmbiaColetivo Colombiano .......................................................................... 13

    Processo de Reflexo Coletiva sobre a Vigncia e Desafios da Educao PopularCuauhtmoc A. Lpez Casillas ........................................................... 181

    Educao Popular: a atualizao do desafio de construir o bem comum na sociedadeJorge Osrio Vargas ........................................................................... 18

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    A Educao Popular Discutida H Muito Tempo Liam Kane .......................................................................................... 15

    Aprofundar na Educao Popular para Construir uma Globalizao desde o SulMarco Ral Meja J. ........................................................................... 205

    A Educao Popular no Sculo XXINicols Guevara ................................................................................ 213

    Educao Popular Integral: um qu de utopiaNdia Rodrigues ................................................................................ 21

    Algumas Reflexes com Relao Vigncia e Desafios da Educao Popular no Contexto da VI Assemblia Geral do CEAALRoberto Senz Argello ..................................................................... 225

    Ressignifiquemos as Propostas e Prticas de Educao Popular Perante os Desafios Histricos ContemporneosOscar Jar Holliday ............................................................................ 233

    A Vigncia da Educao PopularJoo Francisco de Souza ................................................................... 241

    Trinta Anos Depois: alguns elementos de crtica atual aos projetos de cultura popular nos movimentos de cultura popular dos anos 160Carlos Rodrigues Brando ................................................................. 251

    Sobre autores e autoras ....................................................................... 25

  • Captulo I A Sociedade Civil

  • O Papel da Sociedade Civil

    na Construo da Democracia*

    Leticia Salomn**

    O conceito de sociedade civil comeou a fazer parte do discurso oficial e social nos primeiros anos da dcada de 1990, mas ainda se mantm excludo do discurso dos partidos polticos. um conceito que passou da academia aos organismos internacionais, e destes aos governos e s diferentes organizaes sociais, particularmente as no-governamentais. Da, a crena generalizada de que se trata de um conceito recm-inventado e, em muitos casos, de procedncia duvidosa e finalidade suspeita.

    Portanto, torna-se necessrio assegurar que esse um conceito de longa data dentro da teoria poltica, na qual se encontra h mais de dois sculos, expandindo-se posteriormente para outras cincias sociais, particularmente a sociologia. A preocu-pao dos tericos centra-se em identificar esse conjunto de pessoas, grupos e classes sociais que no fazem parte do governo. No processo, foram-se incorporando novas formas de interpretar o civil at a formao de um conceito bastante definido, apesar das diferentes interpretaes j experimentadas em seu desenvolvimento.

    Atualmente, combinam-se o desconhecimento conceitual, as diferentes po-sies em torno dele e certo vedetismo tcnico para produzir mudanas que sa-

    * Fundacin Democraca y Desarrollo, Tegucigalpa, Honduras.** Sociloga e economista. Investigadora do Centro de Documentacin de Honduras (CEDOH).

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    tisfaam exigncias de um ou outro setor da sociedade ou do Estado. Assim, h os que excluem do conceito os empresrios, para incluir os operrios; os que tiram os latifundirios, mas colocam os camponeses; e os que excluem a todos, exceto as orga-nizaes no-governamentais. por isso que muitos preferem falar do setor popular da sociedade civil para se referir s organizaes sociais tradicionais, ou velhos atores sociais, como os operrios, camponeses e habitantes de pequenas localidades, para pos-tular a existncia de um setor que no popular e que representa interesses alheios e substancialmente diferentes dos interesses do setor popular. Outros preferem falar da assim denominada sociedade civil para deixar claro seu ceticismo e sua rejeio a um conceito cujo uso se generaliza a cada dia mais, apesar da resistncia e das hesitaes de alguns indivduos ou grupos sociais. Muitas pessoas chegaram a imaginar que, por trs do conceito de sociedade civil, existe a inteno de atribuir protagonismo a de-terminados setores sociais e, por isso, preferem marcar a diferena entre organizao de base, ou de massas, como se denominavam antes, e organizaes de incidncia1 que representam, de acordo com esse seu critrio, setores minsculos da sociedade que tm algum tipo de influncia na tomada de decises polticas.

    O propsito desse trabalho introduzir alguns elementos que facilitem a com-preenso de um conceito de muita vitalidade e grande importncia para se entender a crescente diversificao da sociedade nos ltimos anos, assinalando alguns aspectos que explicam as imprecises e, sobretudo, outros que justificam a prpria vigncia do conceito. A inteno de ir alm de assinalar os pontos fortes e as debilidades da sociedade civil na atualidade, e a natureza da relao entre esta e o Estado ou en-tre esta e os partidos polticos no processo de construo democrtica, destacando a desconfiana e a rejeio dos setores polticos mais atrasados participao ampla da sociedade civil na tomada de decises e no controle do seu desempenho.

    1. O que no a sociedade civilUma forma didtica de comear a conhecer esse conceito precisando o que

    ele no , e nesse intento se reproduzem algumas das deformaes mais notrias e alguns dos significados mais comuns. Vejamos:

    a) O no-militarO protagonismo que a guerra fria e a crise centro-americana deram aos mi-

    litares, fez com que se reafirmasse a idia de que nossos pases se dividiam uni-1 Incidncia: ativismo poltico por parte de pequenas associaes. Mantido no original. (Nota do Tradutor)

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    camente entre civis e militares. A diviso se justificava pelo posicionamento dos militares no somente acima da sociedade como tambm do Estado, o que levava impreciso de falar-se do governo, dos militares e da sociedade.

    Dentro desta concepo, considerava-se civil, ou no-militar, o segmento que inclusse funcionrios no-militares, integrantes dos partidos polticos, dirigentes de organizaes sociais e cidados comuns, com o que se realizava um corte transversal capaz de reunir em uma s categoria todos aqueles classificados como civis, mar-gem de sua colocao em mbitos to distintos como o Estado, os partidos polticos e a sociedade. Isso explica um pouco a confuso introduzida na especificao do conceito de sociedade civil, o que induziu muitas pessoas, sobretudo funcionrios e polticos, a crerem que ele se referia unicamente ao no-militar.

    A finalizao da guerra fria, a superao da crise centro-americana e os pro-cessos de construo democrtica que se desenvolveram ao longo da dcada de 1990 diminuram progressivamente o protagonismo dos militares e propiciaram a ascen-so de novos atores sociais no cenrio pblico (cidados, vizinhos, mulheres, grupos tnicos, jovens, ONGs, igrejas, jornalistas etc.), o que trouxe um elemento de com-plexidade para o cenrio social e poltico.

    b) O no-empresarial A diversidade dos grupos sociais que irromperam no cenrio poltico-social

    na dcada de 1990 fez com que se desfigurassem as contradies que explicaram e justificaram as lutas dos atores sociais tradicionais na histria de nossos pases. O tradicional confronto entre operrios e empresrios, ou mais especificamente, entre proletariado e burguesia, e entre camponeses e latifundirios, ficou deslocado pela apario de outras oposies e, eventualmente, outras contradies que se mini-mizavam conjunturalmente diante da existncia de fenmenos ou problemas que requeriam a cooperao de todos para solucion-los (a abolio do servio militar obrigatrio, por exemplo).

    Isso pode explicar a tendncia a rejeitar um conceito que engloba todos os grupos sociais, incluindo os empresrios, pelos que sempre se encontravam do outro lado. A maior concesso obtida at agora a de aceitar o termo sociedade civil des-de que os empresrios fossem excludos. Para justificar essa excluso, menciona-se a existncia do mercado como elemento condicionante da relao Estado/partidos polticos/sociedade civil, o que no ajuda a esclarecer as coisas, pois todos ns esta-mos dentro do mercado, seja como produtores ou como consumidores. Isso significa

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    que a excluso de um tambm a excluso de todos e, mais especificamente, se excluirmos os empresrios, exclumos tambm os operrios e, ainda, se excluirmos os empresrios grandes, terminaremos excluindo tambm os medianos e at os pe-quenos, que tambm esto no circuito do mercado.

    c) O no-popularA apario de novos grupos guerrilheiros no cenrio construdo pela demo-

    cracia tem provocado uma espcie de receio do protagonismo por parte dos velhos atores sociais, e isso conduziu associao de sociedade civil com no-popular, dei-xando-se de fora do conceito segmentos populares como os operrios, os campo-neses e os habitantes urbanos. Essa distino artificial reduz a um conceito a crise experimentada pelos velhos atores sociais, crise que se traduz na reduo da partici-pao no cenrio poltico e social definido pela democracia. O fato de que esse vazio passe a ser ocupado por outros grupos e setores sociais que entram com fora no cenrio pblico, tem servido para responsabiliz-los pela reduo de sua visibilidade, criando-se, assim, um confrontamento artificial e distanciando setores sociais que sempre tiveram grande proximidade.

    d) S as ONGsA deformao mais recente do conceito de sociedade aquele que o re-

    duz s organizaes no-governamentais, mais conhecidas por suas siglas: ONG. Esta associao reducionista se deve ao seu protagonismo em matria de direitos humanos, direitos das mulheres, jovens, infncia, terceira idade, etnias, cultura poltica, reforma institucional etc., que teve forte presena no cenrio pblico nos ltimos anos. Outra explicao poderia encontrar-se em sua definio explcita como setores separados do governo, o que automaticamente as localiza no m-bito da sociedade civil.

    A identificao das ONGs com a sociedade civil tende a supervalorizar o papel destas organizaes diante do Estado e a subvalorizar o papel da multipli-cidade de grupos, classes e setores sociais que ficam automaticamente excludos desse conceito. Influi muito o dinamismo de algumas organizaes ou a prtica de metodologias que destacam seu catlogo de protagonistas, que as colocam em uma posio atrativa para os meios de comunicao. A isso acrescenta-se a con-centrao de especialistas em eixos temticos que despertam o interesse cotidiano da opinio pblica.

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    2. O que a sociedade civil Depois de assinalar o que no a sociedade civil, se torna necessrio assinalar

    o que ela e comearemos definindo-a como o conjunto de organizaes diversas que se mantm independentes do Estado, com o qual se resgata o conceito residual de que sociedade civil tudo que no Estado. Da definio anterior se extraem trs caractersticas essenciais e uma premissa. Vejamos com mais detalhes:

    a) Sua diversidade Dentro da sociedade civil entram todas as organizaes sociais que podem

    surgir ao redor de temas diversos como a economia, a cultura, as reivindicaes sociais, a religio, o esporte, a produo, o conhecimento etc. A solidez da sociedade civil est na sua diversidade; toda inteno de homogeneiz-la, classific-la ou limi-t-la atenta contra sua natureza.

    b) Sua independncia do Estado Uma caracterstica essencial da sociedade civil sua independncia do Es-

    tado, o que no significa seu confrontamento permanente ou sua identificao como inimigo. Simplesmente implica que ela se move e deve mover-se no mbito civil, concebido este como o no-estatal, no qual atua obedecendo a uma lgica que substancialmente diferente daquela do Estado, ainda que exista coincidncia em torno de temas, aspiraes ou preocupaes. A diferena similar diferena entre governantes e governados, mas vai alm, ao mencionar que as pessoas que pertencem s diferentes organizaes sociais tm unicamente o poder de influir na tomada dessas decises, poder que at agora tinha sido pouco exercido.

    c) Sua independncia dos partidos polticos Os partidos polticos ocupam uma posio intermediria entre o Estado e a

    sociedade civil; tm um p naquele e outro nesta; no so parte do Estado, porm aspiram ser parte dele, razo pela qual possuem uma lgica diferente da sociedade civil e diferente das pessoas que ocupam o Estado. Por isso, ainda que se identifi-quem com a sociedade civil em algumas questes pontuais, se distanciam dela em assuntos mais fundamentais. Com os partidos polticos, assim como com o Estado, existem possibilidades de coincidncias, associaes especficas e trabalho conjunto; porm no existe nem pode existir uma total identificao.

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    d) A cidadania como premissa bsica A beligerncia da sociedade civil vai de mos dadas com o processo de cons-

    truo de cidadania, conceito absorvido do mbito jurdico e colocado no mbito sociocultural como conscincia de direitos e obrigaes, e da responsabilidade para assumi-los e exigir que sejam respeitados pelo Estado, pelos partidos polticos e pelas mesmas organizaes da sociedade civil.

    a conscincia cidad que motiva a sociedade a mover-se, a assumir o pblico como seu prprio, a exigir respeito do Estado e dos partidos polticos, a fiscalizar e controlar o desempenho pblico e a exigir prestao de contas dos funcionrios. Tambm se relaciona com a necessidade de realizar trocas culturais substanciais em todos os mbitos, particularmente no poltico, ou seja, a neces-sidade de mudar valores, crenas e atitudes diante do estatal, diante do pblico, diante da relao Estado-sociedade civil e diante da relao Estado-partidos po-lticos, o que supe a erradicao de percepes ideolgicas que os identificavam no passado autoritrio como inimigos irreconciliveis, diante das quais no havia sequer a possibilidade de dilogo.

    Vista desde suas caractersticas essenciais e desde sua premissa fundamental, a sociedade civil deve definir-se em sua dimenso real e ftica, o que nos leva a perguntar: Quem so os que formam a sociedade civil? Onde est a sociedade civil? Para responder a essas perguntas diremos que ela formada essencialmente por trs grandes grupos:

    Os grupos, classes ou setores sociais Aqui entram os chamados velhos e novos atores sociais; essa distino

    cronolgica se refere ao momento histrico em que aparecem como atores no cenrio pblico, mais que ao momento em que surgem como grupos, classes e setores. Os velhos atores, por exemplo, incluem os operrios, empresrios, cam-poneses, professores, estudantes, cooperativistas e habitantes urbanos; em troca, os novos atores incluem as mulheres, jovens, ecologistas, etnias, jornalistas, vi-zinhos, terceira idade, donas de casa, familiares de desaparecidos, acadmicos, desportistas etc. Neste segmento da sociedade civil entram todos os grupos so-ciais que se unem de maneira conjuntural ou permanente para lutar por seus direitos ou pelos interesses nacionais, sempre e quando mantenham as caracte-rsticas assinaladas anteriormente.

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    As ONGsAqui se agrupam todas as organizaes no-governamentais que trabalham

    temas diversos como os direitos humanos, direitos de grupos vulnerveis, cultura poltica, cidadania, crdito agrcola, medicina alternativa, assistncia tcnica, capa-citao, educao, alfabetizao etc. Estas organizaes trabalham com assistncia externa e impulsionam aes alternativas, complementares ou substitutivas da ao estatal, o que lhes permite manter sua independncia do Estado.

    As igrejasTambm formam parte da sociedade civil em todas suas denominaes. A classificao acima proposta apenas uma aproximao ao que a soci-

    edade civil, porque sua diversidade faz com que fiquem de fora de qualquer rela-o muitas outras organizaes cuja atividade se reduz a uma comunidade, uma colnia ou uma vizinhana. O fato de agrup-las no conceito de sociedade civil no significa que todas sejam iguais e que no existam diferenas que as separem; tampouco quer dizer que constituem o lado bom da relao Estado/sociedade civil, pois muitos dos vcios que os polticos trazem ao Estado se encontram tam-bm nas diversas organizaes sociais que a formam. Trata-se, simplesmente, de organizaes sociais que reivindicam o social, exigem a ateno do Estado, plane-jam polticas mais justas e demandam comportamento democrtico dos funcion-rios pblicos e dos partidos polticos.

    3. Deformaes a respeito do papel da sociedade civil

    a) A sociedade civil quer substituir os partidos polticos A existncia de uma tradio de delegar o poder cidado ao Estado, quer

    dizer, da manuteno da indiferena cidad, fez com que os polticos assumissem que os resultados eleitorais que os fazem vitoriosos a cada perodo, quatro anos no caso de Honduras, so uma espcie de cheque em branco para que faam na polti-ca o que desejarem, sem necessidade de consulta aos cidados ou, muito menos, de prestarem contas de sua atuao. Tudo isso se encaixa na cultura poltica autoritria consolidada por longos anos de exerccio de governos militares ou de governos civis fortemente militarizados, que estimulou um estilo fechado, vertical, excludente, in-tolerante, pouco pluralista e nada respeitoso dos direitos das pessoas.

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    Na sociedade civil, essa indiferena se nutre do papel assistencial e resolve tudo assumido pelo Estado durante um largo perodo, situao que alimentou uma cultura paternalista, ou seja, uma cultura que assume que o Estado tudo resolve e o cidado no deve envolver-se na complexidade do mundo burocrtico, compreen-dido unicamente pelos burocratas. Isso explica a diferenciao estabelecida entre o pblico e o privado, e faz com que cada um deles defina o ambiente dos polticos e dos cidados, grupos, classes e setores sociais, respectivamente.

    Por causa desse monoplio tradicional, os polticos assumiram que os temas e o espao pblicos so de sua exclusiva competncia; em troca, os temas particulares so de competncia da sociedade civil. Contudo, a perda gradual da funo mediadora dos partidos fez que se estabelecesse uma espcie de relao direta entre o Estado e grupos especficos da sociedade civil, a qual se converte no motor que facilita a so-luo de conflitos ou a eliminao das discrepncias. Da a crescente proliferao de comisses especiais ou de mediadores oficiais que representam diretamente a vontade do presidente da Repblica diante de grupos sociais combatentes, chegando-se in-clusive a ultrapassar as instncias mediadoras e a estabelecer um vnculo direto entre estas organizaes e os presidentes dos diferentes poderes do Estado ou os secretrios, diretores ou subdiretores de uma instituio estatal, em particular.

    A este fato se adiciona o crescente interesse de diversas organizaes sociais em temas especficos atuao pblica, como a violao dos direitos humanos, a tradicional excluso das mulheres, a aprovao de leis que afetam a grupos particu-lares ou a sociedade em seu conjunto e a tomada de decises em assuntos que geram muita sensibilidade social. Isto tem despertado o dinamismo de diversos grupos sociais que, muitas vezes, de maneira emprica, convertem-se em grupos de nego-ciao, cabildeo2 ou incidncia poltica, passando da intuio analise rigorosa e da improvisao ao planejamento.

    importante dedicar umas linhas a explicar este ltimo ponto e comearemos definindo os negociadores civis como pessoas encarregadas de defender um ponto de vista ou uma deciso de grupo, classe ou setor social em reunies difceis, com-plicadas e, muitas vezes, interminveis, com representantes do governo; as pessoas que fazem cabildeo so aquelas que sondam as posies governamentais em torno de temas especficos e tratam de convencer os funcionrios com argumentos e con-tra-argumentos que se traduzam em compromissos especficos pelos participantes

    2 Cabildeo: o processo pelo qual se fortalece a sociedade civil por meio da sua participao ativa, organi-zada e planificada, para incidir no mbito pblico, em pleno uso dos direitos humanos e constitucionais. Disponvel na internet, em 20/07/2005, no endereo: http://www.laneta.apc.org/mcd/publicaciones/cabil-deo/quees.htm.

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    do encontro; a incidncia poltica, por sua vez, se refere capacidade de influncia na tomada de decises polticas, desenvolvida por diversas organizaes sociais que analisam o problema, o contexto, os atores (divididos em aliados, oponentes e indi-ferentes), o mapa do poder, a estratgia de abordagem, a argumentao, a utilizao ou no da imprensa etc.

    Isso explica a presena crescente de diversas organizaes sociais no ambien-te pblico, exigindo ser ouvidas e consideradas no momento de tomar decises, alm dos mecanismos tradicionais de protesto (marchas, greve, ocupao de espaos pblicos ou privados etc.) os quais, sem perder sua legitimidade, comeam a ser substitudos por mecanismos de soluo pacfica dos conflitos, o que obriga as or-ganizaes sociais a passarem do protesto proposta atravs de um caminho difcil e cheio de complicaes.

    Esta apropriao da causa pblica, no melhor sentido, aquela que supe que o pblico de nossa competncia e de nossa responsabilidade, porque existe e se mantm com os impostos que pagamos e com os sacrifcios que fazemos, tem feito com que a sociedade civil transcenda o limite do privado e comece a apropriar-se do pblico, tanto na tomada de decises quanto no seu monitoramento e controle.

    Tudo isto tem provocado desconfiana dos polticos, que vem diminuir seu papel de intermedirios e inclusive, de interlocutores, ante a experincia acumula-da, as habilidades desenvolvidas ou as capacidades estimuladas e preparadas para enfrentar temas e problemas com propriedade e, muitas vezes, com maior conhe-cimento que os prprios interlocutores polticos. Cabe lembrar, ainda, o desenvol-vimento do esprito vigilante e controlador do desempenho pblico, que obriga os eleitos a serem realmente representantes, a prestar contas aos eleitores, a consult-los quando as coisas esto complicadas (plebiscitos, referendos, encontros etc.) e a considerar todas as sugestes antes de tomar uma deciso.

    b) A sociedade civil no tem porque envolver-se em poltica O tradicional monoplio do pblico, por parte dos polticos, tem provocado

    uma resistncia explcita ou implcita diante das pretenses civis de transpor o mbito do privado. O pblico, ao ser monoplio exclusivo dos polticos durante tanto tempo, tem se contaminado com os vcios do sistema poltico associados viso patrimonial do Estado (vcio que estimula a corrupo), o clientelismo (que nutre a ineficincia das instituies estatais) e a viso de curto prazo e imediatista que apenas chega a polticas de governo, porm no de Estado.

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    A vigilncia e a fiscalizao crescentes do desempenho pblico por parte de diversas organizaes sociais dificultam o tradicional exerccio de poder e, por isso, in-comodam os polticos, que se sentem ameaados pela vigilncia que os obriga a atuar de maneira correta ou, pelo menos, a desenvolver mecanismos menos evidentes de mau desempenho pblico. Da sua insistncia em rejeitar a presena controladora da sociedade civil que comea a questionar, criticar e desqualificar. Muito tem a ver com isso a persistncia de uma cultura poltica autoritria que se contrape cultura polti-ca democrtica, inclusiva, tolerante, horizontal, pluralista, respeitosa e aberta ao debate dos grandes temas nacionais. Por isso que se percebem diferentes atitudes dos pol-ticos diante da sociedade civil, de receio, desconfiana e desprezo por parte daqueles que tm uma cultura poltica autoritria; e de aproximao, identificao, dilogo e cooperao, por parte daqueles que possuem uma cultura poltica democrtica.

    O fato de que a sociedade civil se envolve no poltico no significa que ela deve substituir os polticos. Este um ponto muito importante, tanto para os po-lticos como para os lderes ou representantes de organizaes da sociedade civil. Os polticos foram eleitos pelo voto popular para representar os direitos dos cida-dos antes dos interesses pessoais ou partidrios, fato muitas vezes esquecido pelos prprios polticos, motivando a sociedade civil a record-los constantemente disso. Pode-se deduzir, portanto, que existe um limite separando os polticos da sociedade civil, e isso porque os polticos so eleitos ou nomeados para que desempenhem um trabalho pelo qual recebem um pagamento que provm da contribuio dos im-postos dos cidados. Os cidados esperam que os polticos faam seu trabalho com eficcia e transparncia. Quando isso no ocorre, muitas vezes a sociedade civil se torna exigente e procura realizar o trabalho que o poltico no realizou.

    c) A sociedade civil no representa ningum O receio e a desconfiana da sociedade civil tem levado os polticos a declara-

    rem que, enquanto eles foram eleitos pelos cidados por meio do voto, as sociedades civis no receberam nenhuma votao, portanto, no podem representar a ningum. At mesmo chegam a reduzir todo o planejamento a uma medida quantitativa, e com isso esquecem que, na democracia, conta tanto um cidado quanto mil ou cem mil, porque o cidado a essncia do Estado de Direito, com todos os direitos contempla-dos pela Constituio da Repblica, incluindo o direito prestao de contas.

    No podemos deixar de considerar que a sociedade civil intervm porque os polticos, convertidos em funcionrios, no cumprem com o mandato cidado de representar os interesses nacionais e acabam representando os interesses do seu

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    partido, movimento ou famlia, o que faz muitas organizaes da sociedade civil representarem melhor a cidadania que os prprios funcionrios, naturalmente, com excees que existem em ambos os lados.

    d) Deve haver algum que represente a sociedade civil O esforo realizado para mostrar coerncia com as exigncias do processo de-

    mocrtico ou da comunidade internacional, tem levado polticos e funcionrios se-guinte questo: quem o representante da sociedade civil para que com ele se possa falar, dialogar ou negociar. A constatao que no h um nico representante porque prevalece uma diversidade de eixos temticos aglutinando segmentos da sociedade ci-vil. possvel existir algum que represente os que reivindicam o direito a uma escola ou uma universidade em uma comunidade; no entanto; h outros que representam os que lutam por uma autntica reforma judicial, ou por uma polcia que respeite os direitos humanos ou uma administrao local eficiente e responsvel.

    O importante, em todo caso, a oportunidade de demonstrar que existe aber-tura para trabalhar com a sociedade civil e no contra ela, que possvel aproveitar sua experincia acumulada ao longo de muitos anos em temas especficos, e que se legisla ou se governa com uma ampla poltica de incluso e construo de consen-sos. Uma vez que se perceba a sociedade civil como scia ou como uma aliada, ser possvel um trabalho conjunto livre de receio, desconfiana e desprezo.

    4. O papel da sociedade civil perante o Estado A sociedade civil pode desempenhar papel importante nos seguintes mbitos:

    Tomada de decises; Eficincia da gesto/controle do desempenho (monitoramento); Auditoria social/transparncia; Avaliao/prestao de contas.

    Para conseguir isso devem ficar de fora as atitudes receosas, excludentes e des-confiadas por parte dos setores envolvidos (Estado sociedade civil partidos polti-cos) e admitir-se que somente um envolvimento responsvel da sociedade civil e uma mudana substancial no desempenho pblico podero fortalecer as bases do processo democrtico e propiciar as mudanas necessrias melhora da qualidade de vida nos setores sociais que percebem deteriorao acelerada de suas condies de sobrevivncia.

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    A sociedade civil, assim como os funcionrios, deve assumir o sentido de co-responsabilidade na soluo dos grandes problemas nacionais e locais, e procurar um envolvimento maior na questo pblica. No se trata de dispensar o Estado de suas funes (nem que este se desinteresse), de garantir a educao, sade, segurana etc., mas de assumir-se a causa pblica como causa prpria e, portanto, preocupar-se com que as coisas funcionem melhor.

    5. Resultados, desafios e propostas Em matria de resultados, podemos dizer que temos avanado bastante, apesar

    da tradicional indiferena cidad, a rejeio dos funcionrios invaso civil do pblico e o receio dos polticos diante da idia de serem controlados. importante assegurar que sejam abertos muitos espaos antes fechados, tanto no Poder Executivo como no Poder Legislativo, situao que muda conjunturalmente, mas com evidncia de maior disposio em romper com o estilo poltico autoritrio, vertical e excludente.

    Em relao aos desafios, podemos assinalar a importncia de a sociedade civil aprofundar o processo de apropriao do pblico por meio da constituio da ci-dadania, e da transcendncia do estritamente reivindicativo, para uma viso do pas sob uma tica mais integral e de longo prazo. Por conseguinte, a sociedade civil deve interessar-se em realizar os seguintes esforos:

    despojar-se da viso ideologizada de identificar inimigos no Estado; superar a sndrome da coincidncia, que estimula o temor de ser identifi-

    cada com pessoas, organizaes e instituies que antes eram mal vistas pela sociedade em seu conjunto;

    aprofundar os conhecimentos em tcnicas de incidncia e cabildeo; realizar ao concreta e garantir-lhe prosseguimento; aproximar-se de outras organizaes que estejam trabalhando em temas

    similares e agrupar-se por interesse temtico; dar viso integral e de longo prazo sua compreenso da coisa pblica; realizar aes de incidncia e cabildeo com funcionrios do governo e

    com partidos polticos que se convertero em governo, direta ou in-diretamente;

    superar a viso simplista que classifica as pessoas em boas e ms, de acor-do com suas preferncias polticas, religiosas ou sociais;

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    superar a resistncia em aproximar-se do poder, recordando-se de que para influir nas decises preciso estar perto, sem perder-se a independncia.

    Em relao as propostas formuladas e planejadas, tambm se tem observado um substancial avano desde a eliminao do servio militar obrigatrio, a reforma militar e policial, a lei contra a violncia domstica, o cdigo para infncia e adolescncia, a reconstruo e transformao nacional, a reforma judicial e a superao da crise poltico-institucional, at a diversidade de iniciativas impulsionadas em mbito local.

    6. maneira de conclusoA construo da democracia reconhece o crescente protagonismo da socie-

    dade civil no processo poltico. Somente os setores mais atrasados em matria de cultura poltica se recusam a aceit-lo e a converter isso em algo positivo para o desenvolvimento do pas.

    A participao da sociedade civil nos diferentes mbitos que foram men-cionados uma situao nova que ainda espera importantes mudanas na legislao. No entanto, a inteno percebida de aprovao de leis controladoras que limitem a atuao da sociedade civil em vez de impulsionar seu dinamismo. Cr-se que a convivncia cidad assunto policial e que a participao cidad deve canalizar-se exclusivamente nas instituies oficiais cheias de representantes autnticos ou en-ganosos ou por federaes de ONGs que se encarreguem de manejar institucional-mente a relao Estado/sociedade civil.

    indubitvel que o pas tem avanado muito nos ltimos anos em matria de incorporao ativa da sociedade civil nos processos de desenvolvimento. Porm, tambm importante destacar que ainda falta percorrer muito caminho para trans-formar a conscincia de cidadania dos funcionrios e dos polticos em favor de uma relao mais aberta, menos desconfiada e mais cooperativa. Esse deve ser um jeito de conjugar o interesse pblico e o interesse privado nos prximos anos.

  • ONGs, Desafios e Perspectivas:

    uma reflexo inconclusa

    Jesus Balbin

    1. Importncia e papel das ONGs

    Maurcio Pardo, em seu artigo Movimentos Sociais e Atores No-Governamentais1, assinala que, em 1995, havia na Amrica Lati-na pouco mais de 20.000 ONGs, e que mais de um quarto delas (5.300) estavam na Colmbia (incluindo-se grupos comunitrios e organizaes de base esse nmero aumenta para quase 70.000. Outros autores assinalam que o terceiro setor na Colmbia est constitudo de aproximadamente 140.000 organizaes).

    Enquanto em 1960 as ONGs internacionais direcionavam para a regio sul 2,7 milhes de dlares em ajuda, em 1988 essa cifra aumentou para 6,0 milhes. Em 1993, os Estados apoiavam 43% das ONGs do norte, enquanto que em pases como a Colmbia, 28% dos recursos das ONGs proviam do Estado. Aqui, impor-tante destacar os CIRCUITOS INTERNACIONAIS DE SOLIDARIEDADE SOCIAL E DEMOCRTICA de que provm a maioria dos recursos para o fun-cionamento das organizaes sociais de base, e para que as ONGs e outras entida-

    1 Uribe, M. V. Y.; RESTREPO, E. (Eds.). Antropologa en la Modernidad. Santafe de Bogot: Instituto de Antropologa-Colcultura, 1997, p. 207-251.

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    des possam assessorar as organizaes de base em diferentes campos, possibilitando o surgimento de novas organizaes e a continuidade de processos organizativos.

    Nos estudos sociais se reconhece que as ONGs desempenham certo papel tcnico no desenvolvimento, o que no permite valoriz-las suficientemente, e o mesmo acontece com os diversos atores situados nessa zona intermediria entre os considerados atores por excelncia (os trabalhadores do campo, os moradores dos subrbios, as organizaes de base, as minorias tnicas) e os plos poltico e econ-mico (Estado e as empresas capitalistas).

    As ONGs cumprem importante papel no fortalecimento do tecido social, no apoio e construo de organizaes de base, na construo de redes de in-tercmbio e ao social, no desenvolvimento de metodologias de trabalho, na melhoria das atividades das organizaes sociais, no desenvolvimento de movi-mentos sociais, na expresso autnoma e no protagonismo poltico de organi-zaes de base.

    2. O que somos Entender que somos: organizaes com normas de funcionamento (no um

    grupo espontneo), de carter civil (no-estatal), construtoras de espao e poltica pblica, prestadoras de servios a terceiros (no aos associados), que nossos exce-dentes (se houver) so revertidos na atividade social (no no patrimnio de donos), com uma motivao solidria e altrusta.

    Se observarmos quanto aos atores e espaos com que interagem, as ONGs podem ser definidas como quase-empresas, quase-partidos, quase-universidades e quase-organizaes sociais.

    Somos quase-empresas na medida em que obtemos recursos que devem ser manejados racionalmente, responder por produtos acordados em convnios ou con-tratos, em um tempo determinado e satisfazendo uma necessidade especfica do p-blico. Cada vez mais se questiona sobre qualidade do servio e satisfao do cliente. Neste sentido, nos definimos como empresas sociais que empregam seus excedentes no prprio servio e no em acmulo no patrimnio individual de alguns propriet-rios. Trabalhamos sem pretenso de lucro, porm no com pretenso de perda.

    Somos quase-partido na medida em que a presente crise poltica e os pol-ticos e, sobretudo, a crise de representao, permite o surgimento de novos atores e movimentos sociais que, como as ONGs, se expressam no meio do pblico e processam temas e interesses comuns da sociedade como direitos humanos, paz,

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    democracia, desenvolvimento social, reformas polticas, justia. As ONGs vm for-mando opinio desse temas, sem que os partidos consigam barrar essa opinio, nem as guerrilhas ocupar esse espao pelas dificuldades de legitimao que tm.

    Somos quase universidades na medida em que trabalhamos na produo de conhecimentos e saberes, na produo de metodologias de trabalho, na construo de tecnologia social. Atuamos no campo de produo de saberes muito ligados experincia, na produo de conhecimento comprometido com a ao social. Cada vez mais, nossos pontos de referncia situam-se na qualidade produzida pelo saber acadmico, nos processos de busca do saber desenvolvido pelas entidades dedicadas investigao, como colgios de cincia, ou nas alianas com as universidades para impulsionar conjuntamente ps-graduaes ou formao contnua.

    Somos quase-organizaes sociais no sentido de estarem nossos programas e recursos voltados a promover a organizao e o fortalecimento dos diversos setores sociais excludos, na reflexo sobre sua situao, e para construir propostas para esse mundo e a partir dele. De mobilizar recursos para fortalecer a organizao social, suas lutas e seu esforo para encher de povo a democracia. Assim, deixamos de nos considerar parte dele, sem voz prpria, para sermos acompanhantes com meia voz, ou mesmo atores sociais e polticos com voz prpria, relacionando-nos, desde ento, com os outros movimentos e organizaes sociais.

    Tudo isso nos coloca diante de perguntas sobre o papel, o perfil e o fazer prprios das ONGs por parte desses atores que vem surgir competidores em suas propostas, iniciativas e recursos.

    3. Exigncias s ONGs Assim, so feitas vrias exigncias s ONGs: Desde o mercado: como empresas sociais que somos, estamos em um merca-

    do tambm disputado por outras empresas ou por profissionais empresa que nos perguntam a misso ou o para que do que fazemos, sobre a qualidade e o custo do que fazemos, da energia do servio. J no existem mercados internos ou cativos.

    Hoje, -nos exigido: definir claramente o produto ou servios a oferecer, pro-duzir servios eficientes, de qualidade e baixos custos e cobrir os setores mais pobres dentre os pobres, os que esto nas margens menos rentveis.

    Desde os partidos polticos: est o desafio de construir uma cultura poltica democrtica, como ambiente propcio para o desenvolvimento dos partidos, a cons-

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    truo de propostas e agenda poltica para o pas, o desenvolvimento e consolidao de sujeitos polticos, alm da ao poltica dos movimentos sociais. o desafio de ser sujeito poltico sem ocupar o espao prprio dos partidos.

    Desde as comunidades: pressiona-se, cada vez mais, pela soluo das deman-das sociais agravadas pelo modelo dominante de desenvolvimento que aprofunda o paternalismo. Desse patamar, reclama-se a margem de sustentabilidade de que as ONGs se apropriam ou a existncia de uma intermediao remunerada. Outros exigem negociar cada passo com sujeitos constitudos, ou uma negociao entre sujeitos com interesses distintos e contribuies diferenciadas.

    Desde as universidades: o desafio a produo de novos conhecimentos com o rigor do saber acadmico, mantendo-se o horizonte da transformao social. o di-logo de duas experincias com perspectivas prprias, em que a universidade se aproxi-ma da comunidade mais pela via de ingresso pelos programas de extenso, do que pela produo de um saber interessado em resolver os problemas das comunidades.

    Desde a globalizao: temos o desafio de olhar alm do nosso entorno local ou nacional, de conhecer o que acontece com nossas fronteiras e com os similares de outras latitudes, de pensar e atuar global e localmente.

    Hoje, a exigncia, do ponto de vista internacional, de assumir a agenda global (luta contra o terrorismo, paz, direitos humanos, meio ambiente, gnero, for-talecimento da democracia, justia, desenvolvimento humano), reconstruindo os so-nhos, e buscar a auto-sustentabilidade (poltica, financeira e acadmica) no interior de cada pas, apoiando-se em recursos prprios.

    O desafio, alm do mais, como fazer-se visvel, ser reconhecido, incidir, trabalhar no mundo (e no s na sua localidade) e ter autonomia.

    Desde o Estado: frente a um Estado benfeitor paternalista, ergue-se outro que no s transfere aos particulares a prestao de servios pblicos essenciais, mas que dilui sua responsabilidade como responsvel para que todo cidado desfrute desses direitos. Alm disso, um Estado que quer reduzir custos.

    Ento a exigncia : prestar servio barato e com ampla cobertura, levando-nos lgica do contratante.

    Desde os meios de comunicao: requer-se informao oportuna cidadania e, sobretudo, construo de legitimidades e controle social. Como membros da socie-dade, demandam por informao oportuna e objetiva; e a partir deles at as ONGs, a mesma exigncia de transparncia, simplicidade na mensagem, agilidade, permanncia e visibilidade, na perspectiva de que o que no est na mdia no existe.

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    4. Projees futuras

    Frente crise de cooperao e do papel das ONGs, e com poucos recursos internos, os cenrios assim se apresentam:

    Oficinas especializadas prestadoras de servios, acabando com o servi-o a terceiros, com a construo de espaos pblicos e fortalecimento dos atores sociais e polticos. Para isso, adquiriu-se experincia e so-bretudo profissionalizaram-se as equipes de trabalho. o passar de companheiros para acompanhantes do processo; mais adiante, a interlocutores e, hoje, consultores.

    Centros de investigao ou de programas de ps-graduao de uni-versidades, mantendo sua contribuio s teorias crticas e susten-tando-se financeiramente no setor pblico.

    Canalizadoras de interesses comuns especficos, com a ampliao das necessidades coletivas e o surgimento de mltiplos campos de ateno para o bem-estar coletivo, j no s nos tradicionais, como sade e educao, mas tambm em outros, como o espao pblico, a recreao e, inclusive, a defesa de um direito humano violentado.

    Promotoras de uma cidadania plena, grupos humanos que canalizam o melhor de suas energias sociais em torno do exerccio da cidadania plena e responsvel, em canalizadores de solidariedade para com ou-tros necessitados e em ativos promotores da vida cvica e defensores do interesse comum.2

    O fechamento das ONGs por causa do aprofundamento do conflito armado, especialmente as que trabalham pela paz e os direitos hu-manos, ou mesmo a retirada da cooperao.

    2 Fernandez, R. Qu terminaremos siendo?, Desde la REGIN, n. 29, agosto de 1999, p. 14.

  • Captulo IIO Debate Latino-Americano sobre a Educao Popular

  • Educao Popular: dialogando com

    redes latino-americanas

    (2000-2003) Conceio Paludo

    Natural interpretar a realidade. Extraordinrio formular mtodos para transform-la. Natural ter conscincia social. Extraordinrio desenvolver a conscincia poltica. Natural co-operar em todos os sentidos. Extraordinrio forjar e desenvolver novos seres humanos. Natural fazer presso. Extraordinrio criar referncias permanentes no tempo e no espao. Natural a convivncia social. Extraordinrio desenvolver valores. Natural alfabetizar. Extraordinrio educar transformando. Natural tomar decises. Extraordinrio implementar princpios que do sustentao s decises. Natural criar instncias e fazer parte delas. Extraordinrio exercer direo coletiva. Natural formu-lar normas para manter a ordem. Extraordinrio a disciplina consciente. Natural apegar-se a dolos. Extraordinrio consti-tuir smbolos e desenvolver a mstica (Bogo, 1999).

    Neste texto, partindo das indagaes do CEAAL e da leitura dos do-cumentos e textos lidos e analisados1, estabeleo um dilogo sobre a Educao Popular, buscando responder a quatro questes centrais: Cules son os principales planteamientos en torno a lo que la educacin popular debe revisar o replantear de sus presupuestos originales de cara a los nuevos contextos da realidad?

    1 Os referidos documentos e textos encontram-se citados ao final desta reflexo. Para fins de esclarecimen-to, informo que considero documentos os textos assumidos pelas instituies e, como aportes, textos de diversos autores. Nestes ltimos, os autores, mesmo engajados em suas instituies, falam desde si e no em nome da instituio.

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    Cules son los principales planteamientos en torno a las nuevas bsquedas conceptuales y polticas que la educacin popular debe impulsar para responder mejor a los desafos que la realidad le presenta?En un esfuerzo de sntesis de las reflexiones de los diversos autores, qu es la educacin popular, qu elementos la definen?Hay planteamientos que abonen especialmente en algunos de los cinco ejes mencionados?

    Um primeiro elemento a considerar, aps a leitura dos diversos materiais, a diversidade de prticas, anlises, enfoques prioritrios, propostas e pressupostos apresentados. Por outro lado, h muitas identidades, e a maior delas parece ser a urgncia do resgate, no do sentido ou da importncia da Educao Popular, uma vez que nenhum dos documentos e dos aportes a pem em dvida, mas dos line-amentos do projeto e da pedagogia que orienta as prticas, aclarando, desta forma, quais devam ser suas maiores incidncias.

    Um segundo aspecto importante de ser explicitado a qualidade da reflexo contida nos diversos documentos e textos. Percebe-se que os educadores populares latino-americanos esto imbudos, com ganas mesmo, de compreender este novo momento da realidade do projeto da Modernidade e de ressignificar (refundamen-tar) a Educao Popular.

    Considerando, ento, a tarefa a ser desenvolvida, organizei o que mais um dilogo com o conjunto dos documentos e textos do que uma sistematizao pro-priamente dita. Neste dilogo, tendo como eixo condutor o movimento da Educa-o Popular na sua relao com a realidade, o projeto hegemnico e o projeto hist-rico, num primeiro momento trago tona o que me parecem ser os dois elementos centrais desencadeadores da crise e necessidade de ressignificao/refundamentao da Educao Popular.

    Num segundo momento, busco precisar alguns elementos do projeto que es-to em processo de ressignificao/refundamentao para, num terceiro momento, trabalhar aspectos relacionados ao movimento da Educao Popular na direo da sua refundamentao/ressignificao.

    Apesar desta organizao textual, busco contemplar, a partir do meu olhar sobre os documentos e textos, as quatro questes anunciadas acima, consideradas 2 Os eixos referem-se aos cinco aspectos identificados num seminrio latino-americano, realizado pelo

    CEAAL, em julho de 2003. So eles: a) Educao Popular e novos paradigmas; b) Educao Popular e movimentos sociais; c) Educao Popular e democratizao das estruturas polticas e dos espaos pblicos; d) Educao Popular, cultivo de toda a diversidade e superao de toda a forma de excluso e discriminao social; e) Educao Popular e sistemas e polticas educativas.

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    como importantes pelo CEAAL. Chamo a ateno para o fato de toda a riqueza da reflexo desenvolvida nos documentos e textos poder, aqui, aparecer simplificada, tendo em vista a necessidade que este dilogo me impe de escrever de modo sint-tico e objetivo.

    No mais, desejo que as instituies e os autores dos diversos trabalhos que tive a oportunidade de ler se reconheam, conseguindo entrar, tambm, em e no di-logo. Isso me deixaria muito feliz, porque seria um indicativo de que, de alguma for-ma, o caminho escolhido para o dilogo foi fecundo. Estou consciente da influncia do movimento da realidade e das teorias produzidas/discutidas desde o Brasil na leitura que fao dos documentos e textos. Vou fazer um esforo de distanciamento e espero, pelo menos em parte, conseguir meu intento.

    Finalmente, agradeo imensamente ao CEAAL o convite para participar deste processo.

    1. Elementos impulsionadores da necessidade de refundamentao da Educao Popular

    a) A materialidade da crise vivida A reflexo, a partir dos documentos e textos, de imediato tornou evidente que

    a problemtica atual vivenciada pela Educao Popular no pode ser dissociada da construo da chamada nova ordem internacional, isto , da fase atual do processo de acumulao capitalista, que iniciou na dcada de 1970, capitaneada pela Inglaterra e Estados Unidos e se fez sentir, com profundidade, na Amrica Latina, nas dcadas de 1980/1990. Alm disso, a queda do socialismo real e o resultado concreto de algu-mas experincias como a chilena e a nicaragense e a no materializao dos triunfos populares em El Salvador e Guatemala3 geraram a conseqente perda de referenciais e de certezas da esquerda latino-americana (e mundial). Tambm a forte hegemonia do pensamento nico de direita, expresso na mxima de Fukuyama de que a histria havia chegado ao seu final; o empobrecimento objetivo crescente da populao e a crise tica, poltica e de valores vivenciados na atualidade so aspectos do contexto que permitem compreender o processo atual vivido pela Educao Popular.

    3 O relatrio do Encontro Internacional: Educar para construir el sueo: tica y conocimiento en la transforma-cin social, publicao coordenada por Hurtado (2000), vale a pena ser lido, pelo panorama que fornece da realidade de muitos pases latino-americanos, principalmente os centro-americanos. Sugere-se, tambm, a leitura dos captulos I (Martinez & Garcz) e III (Rabellato), do caderno da coleo Educao Popular: Educacin Popular y alternativas polticas en Amrica Latina (1999), e a leitura do item I do documento final La educacin hoy y su concrecin en nuestras prcticas educativas formales e y no formales, que trata da leitura da realidade da Amrica Latina, constante na Revista Internacional Fe y Alegra, n. 3, 2002.

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    Ficou igualmente evidente, na leitura, que o chamado Projeto da Moder-nidade, da mesma forma que no incio de sua constituio e afirmao, no pode ser reduzido dimenso ou esfera econmica. Sua atuao e influncia sobre as sociedades total e incide, ainda que para se viabilizar economicamente, na esfera da poltica, recompondo, principalmente, o papel do Estado e, na esfera da cultura, atuando fortemente para a formao de um novo senso comum, conformando com-portamentos e subjetividades aderentes aos valores e necessidades requeridos pelo novo padro de acumulao do capital.

    No incio do novo milnio, entretanto, comeam a aflorar com fora as con-tradies4 das duas ltimas dcadas: 1980/1990. Estamos assistindo tentativa de formao de um novo imprio, num novo momento da histria da formao social, num momento em que h sinais da perda de legitimidade e credibilidade da poltica hegemnica norte-americana.

    Nesse contexto, a esquerda desafiada a revisar suas concepes e mtodos, parecendo, entretanto, ainda estar impactada; iniciam-se movimentos fora das insti-tuies anteriores (partidos, sindicatos), em que Chiapas, Seattle, Gnova, entre ou-tros, constituem bons exemplos, e se ampliam as articulaes internacionais de todo tipo de movimento social. Nesse sentido o Frum Social Mundial emblemtico.

    No mbito terico, ainda que de forma nem sempre to explcita ou to ca-tegrica como a que escrevo, h duas proposies principais e diferenciadas sob esta nova ordem mundial. Uma delas afirma que ainda vivemos numa sociedade industrial, que a explorao do sobretrabalho (manual e tambm intelectual) cen-tral no empobrecimento, que a luta de classes ainda existe, que o protagonismo das classes populares fundamental para garantir e ampliar direitos, que a identificao de interesses na esfera da produo continua, embora no exclusivamente, sendo importante para a formao das identidades, para a compreenso da dinmica dos conflitos e para viabilizar estratgias de superao.

    A outra afirma que vivemos numa sociedade ps-industrial ou do conhe-cimento, que a esfera da produo perdeu seu poder explicativo, que a dinmica do movimento social no mais reside na lgica do conflito capital x trabalho, que a esfera da produo e do trabalho perdem a centralidade e outras dimenses passam a ser 4 As crises provocadas pela especulao financeira atingem pases da periferia, como a Coria, a Rssia e

    pases latino-americanos; o poder de acumulao da riqueza est concentrado em 500 grandes empresas transnacionais (80% delas norte-americanas) levando concentrao em diversos ramos: aumenta a pobre-za e as diferenas sociais em todo o mundo (estima-se que 800 milhes passam fome); a social-democracia fracassa e, com ela, a mediao realizada pelo Estado nas relaes entre o capital e o trabalho; surge um bloco de pases fora da hegemonia norte-americana: China, ndia, Ir e pases do Oriente Mdio, o que, segundo analistas, ajuda a explicar a interveno militar dos Estados Unidos no Oriente a vontade de impor a Alca (rea de Livre Comrcio das Amricas) na Amrica. (Consulta Popular/Brasil, de maro de 2002).

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    mais importantes para a constituio de identidades dos sujeitos sociais, como gnero, idade, religio, ecologia etc.; que a solidariedade de interesses se organizaria indepen-dente das condies materiais e que a ao coletiva resultaria no de aes de classe, mas da manifestao de movimentos sociais voltados para questes ps-materiais.

    Na leitura dos documentos e textos, entretanto, observa-se um esforo de res-significao da leitura do contexto na qual, a dialtica, na tentativa de apreender as contradies, junta-se com uma viso mais holstica, no sentido da leitura inter-rela-cionada de aspectos econmicos, culturais, antropolgicos e polticos que se mesclam, complexificando a leitura da realidade e, principalmente, a viso mais partilhada das formas de intervir. o movimento da realidade e a transformao dos contextos, portanto, um dos fatores indicados pelos documentos e textos, que impulsionam a necessidade de ressignificao/refundamentao da Educao Popular, mostrando a indissociabilidade entre Educao Popular e processos histricos e sociais.

    b) Para alm da Educao Popular: a ressignificao/ refundamentao/reorientao do Campo Popular

    Outro elemento, que ficou explcito na anlise dos documentos e textos o de que a problemtica vivida pela Educao Popular, ou melhor, pelos sujeitos indi-viduais e coletivos/instituies que a assumem, a partir das dcadas de 1980/1990, no pode ser dissociada dos problemas vivenciados pelo Campo Popular latino-americano (muitas vezes designado, nos textos, como esquerda).

    Em todos os pases latino-americanos, em diferentes dcadas, a partir de meados de 1960, num processo que se inicia com o movimento de resistncia s invases espanhola e portuguesa5, conforma-se o que, em alguns textos, chamado de Campo Popular6. O Campo Popular, embora nem sempre de forma explcita nos textos, decorre de um pressuposto de anlise da realidade que compreende a sua di-nmica como sendo posta em movimento pela inter-relao entre uma quantidade significativa de foras que so polticas e culturais e se articulam conformando cam-pos sociais, que sempre guardam relao com a esfera da economia. Estes campos possuem vises sociais de mundo que orientam tanto as teorizaes da realidade, quanto as aes.

    5 Sugere-se a leitura dos captulos II, La educacin popular en perspectiva histrica, do caderno da coleo Educao Popular Educacin Popular y alternativas polticas en Amrica Latina (1999). Neste captulo, na reconstituio dos processos de Educao Popular nos pases como Brasil, Bolvia, Cuba e Mxico, fica evidente a conformao de campos populares nos mesmos.

    6 Numa leitura da realidade brasileira da dcada de 1980/1990, usei tambm esta denominao, acrescida da palavra democrtico Campo Democrtico e Popular (CDP) Paludo (2001).

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    Os Campos Populares, constituram-se como movimentos contra-hegemni-cos e orientaram-se por utopias de transformao social, s quais foram atribudas as mais diversas denominaes, dentre as quais se podem citar, a partir das leituras, como exemplos: projeto histrico; projeto libertador; novo contrato social; nova so-ciedade; sociedade justa, democrtica, participativa e solidria; projeto alternativo de sociedade; sociedade sem oprimidos e sem opressores; sociedade socialista.

    A formao destes campos, assim como a formao do movimento de Edu-cao Popular, a partir de meados de 1960, sofreu diversas influncias, como a do Conclio Vaticano II; dos documentos de Medellin e da proposta da Teologia da Libertao; do iderio de Paulo Freire; das experincias da Revoluo Cubana e da Nicaraguense; dos processos do Chile, do Mxico e de outros em curso no Conti-nente; da teoria do desenvolvimento e da teoria da dependncia. Alm destes, havia a Revoluo Sovitica e, posteriormente, a Chinesa e o pensamento marxista que animavam o fortalecimento da sociedade civil latino-americana e, no seu interior, um forte movimento, no sentido da construo da organizao popular autnoma, com conscincia de classe e imbuda do desejo de construo do poder popular.

    Esses campos, como fica evidente nas leituras, no eram homogneos, dividiam-se em diferentes correntes que, no raro, conflitavam entre si e agregavam parcelas significativas das classes populares, intelectuais comprometidos, militantes, ativistas, personalidades e estruturas de mediaes, como as diversas organizaes das Igrejas, as organizaes dos trabalhadores, os diversos movimentos populares, os partidos po-lticos e, tambm, o que se caracterizou como Centros de Educao Popular, que mais tarde, em meados da dcada de 1990, passaram a se chamar de ONGs (organizaes no-governamentais). Estas desempenharam e ainda desempenham, um papel signi-ficativo no que se denominou de Movimento de Educao Popular.

    Os novos contextos e realidades que se impem no continente latino-america-no, a partir das dcadas de 1980/1990, geraram uma profunda crise nos referenciais do Campo Popular. Portanto, embora o eixo da reflexo seja a Educao Popular, chego concluso de que a anlise dos textos e documentos remete para a dinmica do Campo Popular como um todo e que as grandes questes que preocupam as organizaes e pessoas que se dedicam Educao Popular acabam atravessando o conjunto das organizaes e pessoas que formam o Campo Popular nos pases latino-americanos (ou o que dele ainda existe). H, portanto, uma indissociabilidade entre Educao Popular e processos sociais e histricos e o Movimento da Educao Popular, no interior dos processos sociais, orientados por utopias transformadoras. Desta forma, as novas questes colocadas a partir dos novos contextos da realidade esto sendo ressignificadas/refundamentadas etc., para alm da Educao Popular

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    e dizem respeito a um processo vivido pelo conjunto das pessoas e estruturas de mediao que ainda se mantm firmes na perspectiva de construo de um projeto emancipatrio. O Movimento de Educao Popular ganhou significado no interior do campo que o construiu e que, dialeticamente, ajudou a construir, ambos possuem as mesmas razes e por isso que a ressignificao/refundamentao da Educao Popular e a sua maior ou menor incidncia concreta est, tambm, diretamente re-lacionada com a refundamentao e ressignificao do Campo Popular.

    2. Elementos gerais dos projetos que esto sendo ressignificados/refundamentados pelos educadores populares e pelo Campo Popular cujas buscas e aprofundamentos precisam ser impulsionados

    So diversos os aspectos do projeto, possveis de visualizar, pela leitura dos textos e documentos, que esto em processo de ressignificao/refundamentao pelos educadores populares e, certamente, pelos Campos Populares de cada pas la-tino-americano. Pela minha leitura, os principais seriam a leitura da realidade; o que o popular, as classes populares e o prprio Campo Popular; o horizonte utpico ou a utopia; as estratgias e a centralidade das aes para o atual momento histrico; os novos espaos e sujeitos que constroem, os sujeitos e as estruturas de mediao e o papel da organizao poltica e autnoma do povo; as formas de construo dos processos, as relaes internas s organizaes do Campo Popular e as relaes com outros campos polticos da sociedade.

    Sobre cada um destes aspectos, fao, a seguir, um breve comentrio.

    a) A leitura da realidade Como j observei, no bojo das conseqncias atuais decorrentes das trans-

    formaes mundiais em curso, da queda do muro, do desfecho das experincias latino-americanas, da perda de referenciais do Campo Popular latino-americano e mundial, entre outros, h uma complexificao da leitura da realidade. Os docu-mentos e textos demonstram o trnsito de uma leitura cuja primazia era da classe social, da esfera da economia e da poltica no sentido restrito, para uma leitura na qual, alm da dimenso do econmico, na qual incidem as necessidades e direitos bsicos como teto, terra, trabalho, sade e educao, ganham primazia a leitura po-ltica em seu sentido ampliado, a cultural, a ambiental, a religiosa, a geracional, a sexual, a tica e a esttica.

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    Ao que parece, o referencial, o parmetro para a anlise da realidade se des-locou do homem econmico, para o homem integral e para o conjunto integral das necessidades e direitos que possui. Estas necessidades, alm de materiais, so de ordem tambm espiritual, afetivas, de reconhecimento, valorizao, participao e no-discriminaes de qualquer ordem. Parece ser esta renovada viso antropolgica aquela que tem tido centralidade na orientao nas leituras do projeto hegemnico e das suas conseqncias, da esfera da poltica, da economia e da cultura, incluindo-se a as inovaes tecnolgicas, assim como a leitura das cincias, das relaes com a natureza, da sociabilidade em formao a partir da primazia do mercado. Pelo apresentado nos textos, esta nova viso tem sido parmetro para a reflexo dos edu-cadores populares sobre as suas prticas e dos prprios Campos Populares.

    Ainda possvel observar, pela leitura dos documentos e textos, que existe uma anlise bastante semelhante do significado do redirecionamento do projeto da Modernidade e das suas conseqncias para as classes populares e sociedades do continente. Entretanto, a leitura dos documentos e textos remete para a necessidade de aprofundar o conhecimento do Campo Popular de cada pas. J no so suficien-tes referncias rpidas. preciso aprofundamento na anlise. Alm disso, embora alguns documentos e textos faam referncia crise de referenciais e de identidade dos antigos Centros de Educao Popular, atuais ONGs, nenhum deles traz uma anlise mais detalhada de suas origens, do papel desempenhado historicamente e do papel que muitas delas passaram a assumir a partir das transformaes mundiais que ainda esto em curso. anunciado que, por exemplo, muitas delas sucumbiram a muitas das proposies hegemnicas.

    b) O popular, as classes populares e o campo popular Na leitura dos documentos e textos, quando das questes levantadas pelos

    participantes dos encontros, reiteradamente manifestada a dvida: mas que mesmo o popular?

    Pelo conjunto dos aportes, possvel fazer uma distino entre o popular, as classes populares e o Campo Popular.

    Historicamente, o popular, a partir do projeto da Modernidade, foi e conti-nua sendo o povo, os no-povo, sempre foram os com dinheiro e os com poder e cultura. O povo tido, ainda hoje, pelo projeto hegemnico, como o particular do universal poltico, considerado o conjunto dos cidados. Tanto assim que a pro-posta do projeto que hoje hegemoniza a de elevar o popular (tambm chamado de excludo ou em zona de risco) categoria de cidado.

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    Temidos quando organizados, em movimento e em luta, elogiados nos discursos em pocas de eleio, o popular plural, complexo, multifacetado, apresentando marcas de conformismo, mas tambm de resistncia e rebeldia7. Uma multido de pessoas exploradas, dominadas, no valorizadas, sem teto, sem terra, sem alimentao adequada, sem trabalho ou com trabalho precarizado, sem acesso aos bens culturais, desvalidos (idosos e crianas abandonadas), mas, tambm, lutadores e lutadoras individuais para poder sobreviver que, quando se articulam, se organizam e se pem em movimento contra a violncia segregado-ra, porque sabem ser segregados, tornam-se, como diz um dos textos8, o povo poltico, conformam o que se chama de classe popular de potencial para real, porque em movimento e em luta e possuem, como diz Freire (1987), potencial de (re)fundao social.

    a articulao das diversas organizaes do povo poltico, com seus alia-dos, como parte das ONGs, parte das Igrejas, partidos, personalidades, intelectuais comprometidos que conformam o Campo Popular que, apesar das contradies e matizes, plural e tem como referencial a transformao das sociedades.

    Um elemento que aparece nas leituras e que complexifica a definio do po-pular decorrente da ressignificao/refundamentao do que deve ser transfor-mado, o qual, alm da esfera da economia, cuja primazia remete diviso de classe social, abarca as relaes de gnero, ticas, tnicas/raciais, geracionais, entre outras, que so transversais s classes, visto que, por exemplo, as discriminaes de gnero dizem respeito s relaes entre todos os homens e mulheres.

    Sendo assim, nestes novos tempos, os diversos documentos e textos remetem necessidade do reconhecimento de que elementos importantes para a emancipa-o humana podem ser gestados de outros lugares sociais, que no o de classe. Um exemplo citado o dos movimentos ecolgicos que, em alguns lugares, so postos em movimento centralmente por pessoas no empobrecidas que um dos ele-mentos fortes das identidades populares e com os quais os movimentos populares se articulam, muitas vezes apenas no que diz respeito s lutas ecolgicas.

    Tudo indica que o grande desafio a capacidade de leitura da radicalidade das proposies e prticas transformadoras destes movimentos, suas potencialidades reais, suas relaes com o popular, seus limites. Talvez seja preciso retomar a velha prtica de, sistematicamente, realizar as anlises de conjuntura.

    7 Ver Salazar (1990) e Chau (1986).8 Gallardo, em publicao coordenada por Hurtado (2000). Vale a pena ser lido porque muito esclarece-

    dor. Tambm sugere-se a leitura de Meja, em Revista Internacional de Fe y Alegra, n. 3, 2000.

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    c) Horizonte utpico ou utopia Os textos afirmam o compromisso com a transformao social. H uma ex-

    planao bastante grande e crtica da crise da esquerda (Campo Popular). Afirma-se a utopia, apesar das diferentes nomeaes, e o socialismo se mantm no horizonte. Entretanto, aps o encerramento do ciclo revolucionrio na Amrica Latina (1959-1989) e com a nova hegemonia do projeto neoliberal, h dificuldades de visualiza-o mais prxima do horizonte utpico9.

    Afirma-se a necessidade da continuidade da construo do poder popular, do protagonismo popular, da democracia radical e substantiva, de uma forma tica de fazer poltica. Nega-se o vanguardismo, o doutrinarismo, exalta-se a diversi-dade, o respeito a subjetividade etc. De qualquer modo, ao lado desta convico afirmada e reafirmada da necessidade de transformao da sociedade atual e do alargamento dos referenciais da sociedade desejada democracia substantiva eco-nmica, cultural e poltica , no h o indicativo claro da traduo disso em um projeto poltico para este momento histrico, capaz de se apresentar como alter-nativa ao hegemnico. Isto, entretanto, no significa imobilismo, dado o relato das experincias trazidas pelos documentos e textos. Tudo indica que estas alternati-vas esto em processo de gestao.

    d) Estratgias e centralidade das aes no atual momento histrico possvel perceber, pelas leituras e, principalmente, pelo relato das ex-

    perincias, que, nos pases latino-americanos, o Campo Popular e, no seu interior, principalmente os grupos, classes e organizaes populares, esto vivendo um per-odo de resistncia. Apesar disso, possvel perceber alguns eixos de incidncia:

    na ressignificao/refundamentao da Educao Popular, do horizonte utpico e de um projeto que se coloque, neste momento histrico, como alternativa ao hegemnico. Conjuga-se a esse eixo o esforo de compre-enso da realidade em seus mais diferentes aspectos e dimenses e a reva-lorizao da teoria que se coloca como uma necessidade premente, dado o esforo e tambm a necessidade de formulao;

    9 H aportes interessantes em todos os textos sobre esse tema. H diversidade e o estgio de elaborao das alternativas, entretanto, pode ser verificado nas leituras de Martinez e Garcs, que trazem um aporte sobre as alternativas, desde referenciais mais clssicos; Rebellato, que traz um aporte sobre um paradig-ma emergente que estaria em construo ambos do caderno da coleo Educao Popular, Educacin popular y alternativas polticas en Amrica Latina (1999) e, tambm, Streck, que aborda a necessidade de construo de um outro contrato social Memria da Jornada latino-americana e caribenha de edu-cao e ecumenismo, Celedec (2003). Os documentos de Fe y Alegra remetem para a f, os valores cristos e para os ensinamentos e exemplo de Jesus como referncias (2001).

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    na revalorizao da educao do povo. A Educao Popular parece estar sendo retomada com grande intensidade;

    na refundao do papel do Estado, em que ganha nfase a participao popular, a democratizao da poltica e dos espaos pblicos. Agrega-se aqui a luta pela manuteno e ampliao dos direitos: alimentao, sade, educao, teto, trabalho e terra e polticas pblicas. Busca-se a democrati-zao do Estado, visando torn-lo efetivamente pblico, a servio da po-pulao e controlado por ela;

    na construo cotidiana das alternativas de desenvolvimento, articuladas busca da construo de um outro modelo de desenvolvimento sustentvel comunitrio, local e regional10. Esta incidncia representa as diversas ex-perincias produtivas familiares e associativas ou coletivas que buscam a vivncia de novas relaes com a natureza, novas relaes de produo cooperativas e novas relaes humanas. Tambm so novas experin-cias na rea da educao, sade, economia popular, entre outras. Algumas de suas caractersticas so as de serem provenientes do mundo popular, significarem resistncia e trazerem a novidade de fazer tentativas de vi-vncia de novas relaes de gnero, tnicas, valorizao cultural, busca do enraizamento, articulao da dimenso econmica a social e a ambiental. Estas experincias acabam incidindo na concepo de cincia e conheci-mento e remetem para a necessidade de socializao e produo de novas alternativas tecnolgicas;

    uma outra incidncia, expressa em alguns textos, embora no relatada como experincia, diz respeito s articulaes maiores e expressa a mo-bilizao mundial existente contra a globalizao da forma como est colocada. um movimento na direo da construo de um outro pro-jeto global para a humanidade. Sua expresso maior continua sendo os Fruns Sociais Mundiais e manifestaes mundiais massivas em deter-minadas situaes.

    10 Talvez a esteja um dos centros de contraposio, neste momento histrico, ao projeto hegemnico: a pro-posio de um outro projeto de desenvolvimento para a nao sustentvel, solidrio, cooperativo... No Brasil, no se chegou a isto, mas existem setores do campo popular, como, por exemplo, o que se articula em torno da chamada Via Campesina, que formada por Movimentos Sociais do Campo, que j avanou bastante na formulao de um outro projeto de desenvolvimento para o campo no Brasil. So elementos fundantes desta proposio: 1) o controle popular do espao rural; 2) a mudana do modelo tecnolgico; 3) novas formas de organizao do campesinato brasileiro e novas formas de organizao econmica; 4) redefinio do papel do Estado; 5) soberania alimentar; 6) novas fontes de energia tecnologia e controle produzidas e controladas pela comunidade; 7) qualidade de vida e novas relaes: acesso livre informao, sade, educao, relaes de gnero, geracionais, lazer, moradia... Nesta perspectiva, a experincia Desenvolvimento rural: um enfoque geracional, apresentada por Rigoberto Concepcin e Milton Martnez, muito elucidativa a este respeito. (Revista Internacional Fe y Alegra, 2002)

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    Percebe-se que h uma intencionalidade de vivncia dos valores no conjunto das experincias com um forte acento no respeito diversidade, na luta contra as discriminaes, na busca da igualdade de gnero, no respeito religiosidade e cultura popular, na busca do resgate da identidade popular, na afirmao da tica no jeito de fazer poltica, na descentralizao do poder, na valorizao das pessoas, etc.

    Chama a ateno que nenhuma das experincias relatadas apresenta a di-menso da mobilizao popular organizada incidindo nas questes estruturais.11 Isso remete para a discusso das relaes entre estruturas (o que est institudo ou em vias de instituio) e as aes dos sujeitos na vida cotidiana. A estrutura, ou seja, o que est institudo condiciona a vida cotidiana, e o processo de institucionalizao de novas estruturas pode apontar ou desembocar em maior condicionamento. Um exemplo disso a Alca (rea de Livre Comrcio das Amricas). A tentativa de sua institucionalizao um bom exemplo, porque permite verificar as estruturas e os seus processos de mudanas. Neste caso, concludo o processo, o que teremos so conseqncias srias sobre e para a vida cotidiana. A parece residir a importncia de, alm de construirmos processos cotidianos de melhoria da qualidade de vida (e de um outro modo de vida) no hoje, estarmos atentos (e em luta) s mudanas que vo se processando nas estruturas.

    e) Novos espaos e sujeitos que constroem, os sujeitos e as estruturas de mediao e o papel da organizao poltica e autnoma do povo

    Trata-se aqui da necessidade de aprofundamento de questes que se inter-relacionam, as quais, de algum modo, esto presentes no conjunto dos textos.

    A primeira diz respeito aos novos espaos e sujeitos que constroem processos transformadores. Quem so mesmo estes sujeitos? Ser que hoje, para o Campo Popular, ainda existem os sujeitos histricos e que estes sujeitos so mesmo as clas-ses populares? Ou ser que os sujeitos histricos so os agentes de desenvolvimento instalados nas mais diversas instituies e at mesmo nos governos democrticos e populares. Ento, temos aqui um problema do ponto de vista do papel atribudo s classes populares e s suas organizaes no processo de transformao. Dife-rentemente do que havia nas dcadas de 1980 e 1990, o protagonismo popular perdeu fora, de modo que hoje parece existir uma confuso muito grande no que diz respeito ao papel das organizaes e sujeitos que se propem a transformar a

    11 A incidncia no institudo fortemente centrada na dimenso cultural e tica e de valores.

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    sociedade. Afirmar a autonomia e o protagonismo popular, portanto, entre outros aspectos, significa repensar as esferas sociais (pastoral, popular, administraes po-pulares, sindical, partidos, ...), os sujeitos que delas participam e como devem ser as relaes entre elas e o papel dos sujeitos que as constituem.

    Isto fundamental porque, atualmente, e no somente no Brasil, pelo que foi possvel absorver de algumas crticas presentes nos textos lidos, na relao entre as esferas, h uma tendncia de as populares serem tuteladas e ou institucionalizadas pelas demais. Numa ou noutra situao, o discurso do povo como sujeito de (e da) transformao, tanto de sua vida como da sociedade, perde-se num discurso vazio e os agentes de mediao acabam se atribuindo o papel de realizar a transformao da qualidade de vida das classes populares e de toda a sociedade.

    A segunda decorre da primeira e demanda um esforo de explicitao do papel das estruturas de mediao, como as ONGs, partidos, administraes populares e pastorais e dos sujeitos que delas participam, incluindo-se a os educadores populares.

    A terceira articula-se s duas primeiras e sintetiza. Diz respeito reiterada afirmao manifesta nos textos de que as classes populares (por vezes designadas como oprimidas ou excludas) se transformem em sujeitos de poder (poder po-pular), capazes de se inserir em processos transformadores de suas vidas e da socie-dade. A questo como, desde as diversas estruturas de mediao, contribuir para materializar, praticamente, a autonomia e o protagonismo popular organizado, hoje, nos pases latino-americanos?

    f) Formas de construo dos processos, as relaes internas s organizaes do Campo Popular e as relaes com outros campos polticos da sociedade

    No que diz respeito aos mtodos e formas de construo dos processos, nos textos e documentos lidos, aparece forte a idia de articulao em forma de redes. possvel perguntar se isso o suficiente e qual o seu contedo?

    Atualmente, h duas tendncias na leitura das estruturas de ao e orga-nizao popular. A primeira salienta o aspecto da organizao de base, em grupos articulados em redes, com a ao orientada para a soluo de problemas pelo pr-prio esforo e voltada para a (re)construo das relaes sociais e com a natureza. Para essa tendncia, os movimentos sociais populares organizados verticalmente, representam a velha forma de estrutura de organizao e ao popular. Outra ten-

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    dncia, afirmando a tradio marxista, enfatiza a importncia da ao reivindicativa e da luta poltica perspectivadas pela organizao popular12.

    Na dinmica organizativa e de ao das organizaes sociais, pelo menos no Brasil, ambas as tendncias esto presentes. Tudo indica que o esforo na teoriza-o, demandado pelo novo momento do processo histrico, parece requerer a busca da transversalidade e inter-relaes na anlise, contribuindo para a elaborao de referenciais novos, capazes de conformar um novo patamar terico orientador da prtica, a partir do que j vem sendo vivenciado, apesar de todas as contradies, pelas classes populares.

    Outro elemento importante, que no aparece de forma explcita nos textos, a anlise de como vem se dando a articulao das diferentes redes, como as que articulam organizaes que se centram na Educao Popular, com as demais es-truturas de mediao e outras redes com os movimentos, as articulaes e redes populares. Quer dizer, em cada pas latino