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CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL CELSO RIBEIRO BASTOS Advogado. Professor de Pós-GraduaçãO de Direito Constitucional e de Direito das Relações Econômicas InternacionaiS da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Diretor-Geral do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional - IBDC. Ex-Procurador do Estado de São Paulo. EDITORA Saraiva Curso de direito constitucional / Celso Ribeiro Bastos. - 20. ed. atual. - São Paulo Saraiva, 1999. Bibliografia. 1. Brasil - Constituição (1988) 2. Brasil - Direito constitucional 3. Direito constitucional 1. Título. 1. Direito constitucional NOTA À 2.a EDIÇÃO Após a Constituição de 1988, evidentemente, tivemos de atualizar a obra de acordo com a nova Carta. Isto, contudo, foi feito sem que a Constituição tivesse sido comprovada na realidade e, em conseqüência, sofrido as interpreta- ções doutrinárias e jurisprudenciais que vêm merecendo dos tribunais e dos julgadores. Hoje, sentimo-nos em condições de levar a efeito sua reestruturação com dois objetivos. Primeiro, trazer para o Texto Constitucional não apenas a nossa opinião, mas também a da jurisprudência, assim como a de outros juristas que tratam proficientemente do tema. Segundo, dar um tratamento a certos capítulos da Constituição de 1988, que mais têm que ver com a lei ordinária do que propri- amente com a Magna Carta. No entanto, a prática tem demonstrado que essas matérias, só pelo fato de estarem reguladas na Constituição, repercutem intensa- mente na vida do nosso direito. Não há quase demanda judicial que possa ser travada sem que esteja presente alguma faceta da própria Constituição. Conhecê- la, pois, não é exclusivo de alguns especialistas, mas é obra que se impõe a todos que lidam com o direito. Daí a razão de ser do alargamento dispensado a

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CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL CELSO RIBEIRO BASTOS Advogado. Professor de Pós-GraduaçãO de Direito Constitucional e de Direito das Relações Econômicas InternacionaiS da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Diretor-Geral do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional - IBDC. Ex-Procurador do Estado de São Paulo. EDITORA Saraiva Curso de direito constitucional / Celso Ribeiro Bastos. - 20. ed. atual. - São Paulo Saraiva, 1999.

Bibliografia.

1. Brasil - Constituição (1988) 2. Brasil - Direito constitucional 3. Direito constitucional 1. Título.

1. Direito constitucional

NOTA À 2.a EDIÇÃO

Após a Constituição de 1988, evidentemente, tivemos de atualizar a obra de acordo com a nova Carta. Isto, contudo, foi feito sem que a Constituição tivesse sido comprovada na realidade e, em conseqüência, sofrido as interpreta- ções doutrinárias e jurisprudenciais que vêm merecendo dos tribunais e dos julgadores.

Hoje, sentimo-nos em condições de levar a efeito sua reestruturação com dois objetivos. Primeiro, trazer para o Texto Constitucional não apenas a nossa opinião, mas também a da jurisprudência, assim como a de outros juristas que tratam proficientemente do tema. Segundo, dar um tratamento a certos capítulos da Constituição de 1988, que mais têm que ver com a lei ordinária do que propri- amente com a Magna Carta. No entanto, a prática tem demonstrado que essas matérias, só pelo fato de estarem reguladas na Constituição, repercutem intensa- mente na vida do nosso direito. Não há quase demanda judicial que possa ser travada sem que esteja presente alguma faceta da própria Constituição. Conhecê- la, pois, não é exclusivo de alguns especialistas, mas é obra que se impõe a todos que lidam com o direito. Daí a razão de ser do alargamento dispensado a diver- sos capítulos, o que acabou por encorpar de forma sensível o texto original.

Esperamos, assim, ter melhorado nosso modesto curso. De qualquer for- ma, quem o dirá é o leitor, com cuja opinião gostaríamos enormemente de contar para continuarmos aperfeiçoando o trabalho no futuro.

Agradecemos a Dra. Patrícia de Castro e Colher Coeli pelas pesquisas que levou a efeito com grande afinco.

ÍNDICE GERAL PARTE I TEORIA DO ESTADO E DA CONSTITUIÇÃO TÍTULO I NOÇÕES DE TEORIA DO ESTADO CAPÍTULO I CONCEITO E NATUREZA DO ESTADO

1. Sociabilidade do homem

1.1. Fatores que levam o homem a socializar-se

2. O poder e a sociedade

3. Estado-governo e Estado-sociedade

4. Pressupostos ou elementos integradores do Estado CAPÍTULO II O PODER

1. Poder social

2. Poder político

3. Direito e política

4. O Estado se subordina inteiramente ao direito?

5. Estado e soberania CAPÍTULO III O PODER CONSTITUINTE 1. Legitimidade e legalidade 2. O pensamento político-jurídico de Sieyès 3. Natureza e titularidade do poder constituinte 4. Espécies de poder constituinte: originário e derivado 5. Exercício do poder constituinte 6. Limitações ao poder de reforma constitucional 6.1. Cláusulas pétreas 7. Modernas tendências TÍTULO II TEORIA DA CONSTITUIÇÃO CAPÍTULO I CONSTITUIÇÃO 1. Conceito 2. Constituição em sentido muito amplo 3. Constituição em sentido material 4. Constituição em sentido substancial 5. Constituição em sentido formal 5.1. Posição hierárquica superior das normas constitucionais em rela- ção às infraconstitucionais 6. Existência, ou não, de Constituição em todos os Estados, conforme a acepção, substancial ou formal, que se atribua ao vocábulo 7. Critério mais relevante para o direito na conceituação de Constituição: o formal 8. Constituições escritas e costumeiras 9. Constituições rígidas e flexíveis 10. Direito Constitucional CAPÍTULO II CONSTITUIÇÃO COMO UM SISTEMA DE PRINCÍPIOS E NORMAS 1. O papel dos princípios 2. Espécies de princípios 3. Espécies de normas CAPÍTULO III INTERPRETAÇÃO. INTEGRAÇÃO. APLICAÇÃO 1. Interpretação

1.1. Interpretação conforme a Constituição

1.2. Singularidade das normas constitucionais do ângulo da sua interpre-

tação 2. Integração

2.1. Lacunas no direito constitucional 3. Interpretação e integração: realidades lógicas distintas 4. Aplicação

4.1. Aplicação das normas constitucionais no tempo

4.1.1. A nova Constituição e o direito constitucional anterior

4.1.2. Direito constitucional novo e direito ordinário anterior

4.2. Aplicação das normas constitucionais no espaço CAPÍTULO IV CONSTITUIÇÕES ORGANICAS E IDEOLÓGICAS 1. Normas programáticas

1.1. A crise das normas programaticas 2. Graus de determinabilidade das normas constitucionais 3. O cotejo entre as normas-fins e os princípios 4. Relação da norma programática com os seus destinatários 5. Até que ponto é lícito a uma Constituição ser mais diretiva e menos

organizacional? TÍTULO III HISTÓRICO DAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS CAPÍTULO I CONSTITUIÇÃO DE 1824 1. Antecedentes históricos 2. Ideologia da Constituição Imperial 3. Aspectos principais da Constituição de 1824

3.1. Divisão dos poderes políticos

3.2. Semi-rigidez da Constituição Imperial CAPÍTULO II CONSTITUIÇÃO DE 1891

1. Fatores determinantes

2. O Decreto n. 1 e suas principais mudanças CAPÍTULO III CONSTITUIÇÃO DE 1934

1. Pontos principais

2. Constituição democrática e social CAPÍTULO IV CONSTITUIÇÃO DE 1937

1. O golpe de 37

2. Inaplicabilidade da Constituição de 1937 CAPÍTULO V CONSTITUIÇÃO DE 1946

1. Principais influências

2. Aspectos fundamentais CAPÍTULO VI CONSTITUIÇÃO DE 1967

1. A Revolução de 1964

2. Os governos na vigência da Constituição de 1967

2.1. O governo Médici

2.2. O governo Geisel

2.3. O governo Figueiredo

2.4. O governo Sarney CAPÍTULO VII CONSTITUIÇÃO DE 1988

1. Instalação e funcionamento da Assembléia Nacional Constituinte

2. Histórico da Constituinte PARTE II DIREITO CONSTITUCIONAL POSITIVO TÍTULO I DOS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS CAPÍTULO ÚNICO PRINCÍPIOS E OBJETIVOS DO BRASIL, NA ORDEM INTERNA E NA INTERNACIONAL 1. Princípios constitucionais

1.1. República

1.2. Federação

1.2.1. Histórico

1.2.2. Princípio federativo

1.2.3. Características da federação

1.3. Estado Democrático de Direito 2. Fundamentos da República Federativa do Brasil 3. Tripartição dos poderes 4. Objetivos fundamentais 5. O Brasil na ordem internacional

5.1. O Mercosul e a nova ordem mundial TÍTULO II DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS CAPÍTULO I DOS DIREITOS INDIVIDUAIS CLÁSSICOS AOS MODERNOS DIREITOS SOCIAIS 1. Liberdades públicas 2. A Declaração Francesa 3. A Declaração Americana 4. Novas perspectivas dos direitos individuais 5. Evolução dos direitos individuais 6. Os direitos individuais sob a égide da Constituição de 1967 7. Situação atual dos direitos individuais 8. A Declaração Universal dos Direitos do Homem

8.1. Conteúdo da Declaração

8.2. Eficácia da Declaração CAPÍTULO II ALGUNS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS E COLETIVOS

1. Destinatário dos direitos individuais

2. Princípio da isonomia

2.1. Igualdade substancial

2.2. Igualdade formal

2.3.Conteúdo jurídico da isonomia

2.4. A nova redação do princípio da isonomia

2.5. O princípio da igualdade entre os particulares

3. Princípio da legalidade

4. Liberdade de pensamento

5. Liberdade religiosa

5.1. Liberdade de consciência e de crença

5.2. Liberdade de culto

5.3. Liberdade de organização religiosa

6. Direito à intimidade, à vida privada e à honra

6.1. Dano moral

7. Inviolabilidade do domicílio

8. Inviolabilidade da correspondencia

9. Liberdade de profissão

10. Direito de locomoção

11. Direito de reunião e associação

11.1. Liberdade de associação

12. Direito à propriedade

12.1. Função social

12.2. Desapropriação

13. Acesso amplo ao Judiciário

14. Direito adquirido. Ato jurídico perfeito. Coisa julgada

14.1. Limites da retroação da lei na Constituição

14.2. Direito adquirido

14.2.1. Verificação da ocorrência de direito adquirido

14.2.2. Síntese conclusiva

14.3. Ato jurídico perfeito

14.4. Coisa julgada

15. Direito ao júri

16. Direito à não-extradição

16.1. Brasileiro

16.2. Estrangeiro

17. Direito ao devido processo legal

18. Direito ao contraditório e à ampla defesa

18.1. A prova obtida por meio ilícito

19. Prisão em flagrante

20. Garantias constitucionais

20.1. Habeas corpus

20.1.1. Histórico

20.1.2. Habeas corpus no nosso país

20.1.3. Habeas corpus preventivo e suspensivo

20.1.4. Teoria brasileira do habeas corpus

20.1.5. Legitimidade ativa

20.1.6. Sujeição passiva

20.1.7. Objeto

20.2. Mandado de segurança

20.2.1. Introdução

20.2.2. Surgimento da medida

20.2.3. Direito líquido e certo

20.2.4. Medida liminar

20.2.5. Mandado de segurança coletivo

20.3. Mandado de injunção

20.3.1. Legitimidade ativa

20.3.2. Objeto do mandado de injunção

20.3.3. Competência para julgar o mandado de injunção

20.3.4. Distinção entre mandado de injunção e a inconstituciona-

lidade por omissão

20.4. Ação popular

20.4.1. Conceito

20.4.2. Requisitos

20.4.3. Lesividade, ilegalidade e imoralidade

20.4.4. Isenção de ônus

20.5. Habeas data

20.6. Ação civil pública

20.6.1. Interesses coletivos e difusos

20.6.2. Aspectos fundamentais da ação civil pública

20.6.2.1. Legitimação ministerial CAPITULO III DOS DIREITOS SOCIAIS 1. Noções gerais 2. Trabalhador

2.1. Trabalhador temporário

2.2. Trabalhador rural

2.3. Trabalhador doméstico 3. Direitos dos trabalhadores

3.1. Despedida arbitrária ou sem justa causa

3.2. Salário mínimo

3.3. Participação nos lucros

3.4. Liberdade sindical

3.5. Greve

3.6. Outros direitos CAPÍTULO IV DA NACIONALIDADE

1. Nacionais e estrangeiros

1.1. Exceções

2. Critérios para atribuição da nacionalidade: jus sanguinis e jus soli

2.1. Exceções

3. Perda da nacionalidade

4. Reaquisição da nacionalidade CAPÍTULO V DOS DIREITOS POLÍTICOS

1. Características gerais

2. Distinção entre nacional e cidadão

3. Democracia semidireta

4. Direitos políticos ativos e passivos

5. Suspensão e perda dos direitos políticos CAPÍTULO VI DOS PARTIDOS POLÍTICOS

1. Conceito

2. Partidos políticos no Brasil

3. Fidelidade partidária TÍTULO III DA ORGANIZAÇÃO DO ESTADO CAPÍTULO I A FEDERAÇÃO

1. A importância do princípio federativo

2. Funcionamento da federação

3. Autonomia e soberania

4. Federação e democracia

5. Vederação como processo

6. A estrutura do Estado federal

7. Traços comuns a toda federação

8. Federação americana

9. A teoria dos poderes implícitos

10. A federação no direito positivo brasileiro

11. A federação na Constituição de 1988

12. Repartição de competências constitucionais CAPÍTULO II DA UNIÃO

1. Natureza jurídica da União

2. Competências da União

2.1. Uma visão crítica de suas competências

3. Bens da União CAPÍTULO III DOS ESTADOS FEDERADOS

1. Natureza jurídica dos Estados-Membros

2. Competências estaduais

3. Os Estados federados perante a ordem externa

4. Autonomia dos Estados

4.1. Poder constituinte estadual

5. Intervenção do Estado nos Municípios

6. Os tributos nos Estados

7. Uma visão crítica dos Estados federados CAPÍTULO IV DOS MUNICÍPIOS

1. O Município na estrutura federativa brasileira

2. Conceito

3. Competência municipal: o critério de interesse local

3.1. Outras competências municipais

4. Criação e organização municipal

5. Organização política

6. Fiscalização financeira e orçamentária dos Municípios CAPÍTULO V DO DISTRITO FEDERAL E DOS TERRITÓRIOS FEDERAIS

1. Natureza jurídica do Distrito Federal

2. Governo do Distrito Federal

3. Atribuições legislativas do Distrito Federal

4. Poder Judiciário do Distrito Federal

5. Histórico dos Territórios

6. Situação atual dos Territórios CAPÍTULO VI DA INTERVENÇÃO FEDERAL

1. Noções gerais

2. Efetivação da intervenção

3. Requisitos da intervenção

4. Efeitos da intervenção CAPÍTULO VII DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

1. Administração Pública

1.1. Administração direta e indireta

1.1.1. Autarquias

1.1.2. Sociedades de economia mista e empresas públicas

1.1.3. Fundações

1.2. Princípios constitucionais da administração pública

1.2.1. Princípio da legalidade

1.2.2. Princípio da impessoalidade

1.2.3. Princípio da moralidade

1.2.4. Princípio da publicidade

1.2.5. Princípio da eficiência

2. Agentes públicos

3. Regiões CAPÍTULO VIII RESPONSABILIDADE PATRIMONIAL DO ESTADO

1. Conceito

2. Surgimento da responsabilidade do Estado

3. Teoria do risco

4. Fundamentos da responsabilidade do Estado TÍTULO IV DA ORGANIZAÇÃO DOS PODERES CAPÍTULO I TRIPARTIÇÃO DAS FUNÇÕES ESTATAIS: LEGISLATIVA, EXECUTIVA E JUDICIÁRIA

1. Tripartição de funções e não-tripartição de poderes

2. Funções e fins do Estado

3. As três funções estatais: legislativa, executiva e judiciária

4. A importância da teoria de Montesquieu

4.1. Aspectos ideológicos da teoria da separação de poderes

4.2. Sua aplicação atual

5. Classificação das atividades do Estado

6. A tripartição das funções estatais na Constituição brasileira CAPÍTULO II DO PODER LEGISLATIVO

1. Estrutura do Poder Legislativo

1.1. Sua estrutura e funcionamento no Brasil

2. Funções legislativas

2.1. Função fiscalizadora

2.1.1. O Tribunal de Contas

3. Atribuições do Congresso Nacional

3.1. Atribuições da Câmara dos Deputados e do Senado Federal

4. Imunidades e vedações parlamentares

5. Reuniões

6. Comissões

6.1. Comissão Parlamentar Permanente

6.2. Comissão Parlamentar Temporária ou Especial

6.3. Comissão Parlamentar de Inquérito

6.4. Comissão Parlamentar Representativa SEÇÃO I ESPÉCIES NORMATIVAS

1. Emendas à Constituição

2. Leis complementares à Constituição

3. Lei ordinária

4. Medidas provisórias

4.1. Urgência e relevancia

4.2. Abrangência material

4.3. Aprovação e eficácia

4.4. Possibilidade de reedição

4.5. Controle jurisdicional das medidas provisórias

5. Leis delegadas

6. Decretos legislativos

7. Resoluções SEÇÃO II PROCESSO LEGISLATIVO

1. Fases do processo legislativo

2. Discussão e votação

3. Sanção e veto

4. Promulgação

5. Publicação CAPÍTULO III DO PODER EXECUTIVO

1. Função do Executivo

1.1. A faculdade regulamentar

1.1.1. Tipos de regulamentos

2. Estrutura do Poder Executivo

2.1. Chefe de Governo e chefe de Estado

2.1.1. Formas de governo: monarquia e república

3. O presidencialismo brasileiro: os Ministros de Estado

4. O crime de responsabilidade: o impedimento do Presidente da Repú-

blica

5. Eleição do Presidente da República

6. Conselho da República e Conselho de Defesa Nacional CAPÍTULO IV DO PODER JUDICIÁRIO

1. Função jurisdicional

1.1. Funções atípicas

2. Estrutura do Poder Judiciário

3. Garantias constitucionais da magistratura

4. Vedações aos magistrados

5. Garantias do Poder Judiciário

6. Supremo Tribunal Federal

6.1. Composição

6.2. Competência

7. Superior Tribunal de Justiça

7.1. Composição

7.2. Competência SEÇÃO I DO CONTROLE DA CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS

1. Introdução

1.1. Fundamento e hierarquia das normas jurídicas

1.2. Inexistência da lei inconstitucional

1.3. Competência para aferir a validade constitucional da norma de

direito

1.4. A especial validade assumida pelas leis inconstitucionais e o pro-

cesso especial para a sua revogação

1.5. Conclusões

2. Pressupostos do controle da constitucionalidade das leis

2.1. Adequação das leis à Constituição e distinção entre leis constitucio-

nais e leis ordinárias

2.2. Processo especial de elaboração das leis constitucionais: rigidez cons-

titucional

2.3. Órgão encarregado do controle da constitucionalidade

2.4. Impossibilidade do exercício do controle da constitucionalidade

pelo Poder Legislativo

3. Sistemas de controle da constitucionalidade das leis

3.1. Limites básicos inerentes a qualquer sistema eficaz de controle

da elaboração legislativa

3.2. Sistema de controle político

3.3. Sistema de controle judicial

3.4. Vias de defesa e de ação

4. Evolução do controle da constitucionalidade das leis no Brasil

4.1. Constituição de 1824: inexistência do controle

4.2. Constituição de 1891: introdução do controle

4.3. Constituição de 1934: aperfeiçoamento do sistema

4.4. Constituição de 1937: retrocesso

4.5. Constituição de 1946

4.6. Emenda Constitucional n. 16, de 1965: plenitude do sistema

4.7. Constituição de 1967 e Emenda Constitucional n. 1, de 1969

5. O controle da constitucionalidade na nova ordem jurídica

6. Diferentes tipos de inconstitucionalidade

7. O controle no direito positivo

7.1. Inconstitucionalidade por ação

7.2. Inconstitucionalidade por omissão

7.3. Legitimidade para propor ação direta de inconstitucionalidade

7.4. Papel do Procurador-Geral da República e do Advogado-Geral da

União

7.5. Via de exceção ou defesa

8. Ação declaratória de constitucionalidade

8.1. Efeito vinculante

9. Controle da constitucionalidade em nível estadual

9.1. Legitimação para agir CAPÍTULO V DAS FUNÇÕES ESSENCIAIS À JUSTIÇA

1. Ministério Público

2. Advocacia Pública

3. Advocacia

3.1. Histórico

3.2. O papel do advogado na atual Constituição

4. Defensoria Pública TÍTULO V DA DEFESA DO ESTADO E DAS INSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS CAPÍTULO ÚNICO DO ESTADO DE DEFESA E DO ESTADO DE SÍTIO 1. Estado de defesa 2. Estado de sítio 3. Forças Armadas 4. Segurança pública TÍTULO VI DA TRIBUTAÇÃO E DO ORÇAMENTO CAPÍTULO I DO SISTEMA TRIBUTÁRIO NACIONAL

1. Noção de tributo

1.1. Definição de tributo no Código Tributário Nacional 2. Modalidades de tributos 2.1. Impostos 2.2. Taxas 2.2.1. Espécies de taxas 2.3. Contribuições de melhoria 2.3.1. Distinção entre contribuição de melhoria e taxa 2.4. Outras contribuições 2.5. Empréstimos compulsórios 3. Princípios Constitucionais Tributários 3.1. Princípio da igualdade 3.2. Princípio da estrita legalidade 3.3. Princípio da anterioridade 3.4. Princípio da irretroatividade 3.5. Princípio da uniformidade geográfica 3.6. Princípio da não-cumulatividade 4. Limitações constitucionais ao poder de tributar 5. Impostos da União 6. Impostos dos Estados e do Distrito Federal 7. Impostos dos Municípios 8. Repartição das receitas tributárias CAPÍTULO II DAS FINANÇAS PÚBLICAS E DOS ORÇAMENTOS 1. Atividade financeira do Estado 2. Orçamento 3. Despesas públicas 4. Receitas públicas 5. Crédito público 6. Dívida pública 6.1. Regime constitucional da dívida pública brasileira 7. Processo legislativo 8. Restrições à Administração TÍTULO VII DA ORDEM ECONÔMICA E FINANCEIRA CAPÍTULO I DOS PRINCÍPIOS GERAIS DA ATIVIDADE ECONÔMICA

1. O Estado enquanto agente normativo

2. O Estado planejador

3. Intervenção do Estado no domínio econômico

3.1. Evolução constitucional

3.2. Limites à atuação do Estado na Magna Carta

4. Livre iniciativa

4.1. Exceções

4.1.1. O monopólio do petróleo

5. Livre concorrência

5.1. O abuso do poder econômico

5.1.1. A legislação antitruste nos EUA

5.1.2. A legislação antitruste no Brasil CAPÍTULO II DA POLÍTICA URBANA

1. Política urbana

1.1. Plano diretor

1.2. Usucapião urbano constitucional CAPÍTULO III DA POLÍTICA AGRÍCOLA E FUNDIÁRIA E DA REFORMA AGRÁRIA

1. Política agrícola e fundiária e reforma agrária

1.1. Desapropriação para fins de reforma agrária

1.1.1. Indenização prévia e justa

1.1.2. Títulos da dívida agrária

1.2. Usucapião rural constitucional CAPÍTULO IV DO SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL

1. O Sistema Financeiro Nacional TÍTULO VIII DA ORDEM SOCIAL CAPÍTULO I DA SEGURIDADE SOCIAL

1. Noções gerais

2. Saúde

3. Previdência Social

4. Assistência social CAPÍTULO II DA EDUCAÇÃO, DA CULTURA E DO DESPORTO

1. Educação

2. Cultura

3. Desporto CAPÍTULO III DA CIÊNCIA E TECNOLOGIA

1. Ciência e tecnologia CAPÍTULO IV DA COMUNICAÇÃO SOCIAL

1. Comunicação social CAPÍTULO V DO MEIO AMBIENTE

1. Noção de meio ambiente

2. Tratamento constitucional dado ao meio ambiente

3. Obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degrada-

ção ambiental CAPÍTULO VI DA FAMÍLIA, DA CRIANÇA, DO ADOLESCENTE E DO IDOSO

1. Família

2. Criança e adolescente

3. Idoso CAPÍTULO VII DOS INDIOS

1. Índios

2. Terras indígenas

2.1. Aspectos históricos e jurídicos das terras indígenas no Brasil

2.2. As terras indígenas à luz da Constituição Federal de 1988

3. Síntese conclusiva

PARTE I TEORIA DO ESTADO E DA CONSTITUIÇÃO

TÍTULO I

NOÇÕES DE TEORIA

DO ESTADO

CAPÍTULO I

CONCEITO E NATUREZA DO ESTADO

SUMÁRIO: 1 Sociabilidade do homem. 1.1. Fatores que levam o homem a socia- lizar-se. 2. O poder e a sociedade. 3. Estado-governo e Estado-sociedade. 4. Pres- supostos ou elementos integradores do Estado?

1. SOCIABILIDADE DO HOMEM

É um truísmo afirmar-se que o homem é um animal social. Com efeito, tem sido esta sua situação em todos os tempos, a de viver em sociedade. Nada obstante isto, os autores se esforçam em procurar explicações para a forma- ção desta, para o que teria levado o homem a abandonar uma situação de vida individual a fim de entrar numa forma qualquer de organização social. Quer-nos parecer que nunca será possível identificar uma razão específica para a formação da sociedade. Ela se confunde com o próprio evoluir do homem, perdendo-se, portanto, nas origens da própria espécie humana.

No entanto, há um outro aspecto a salientar: na medida em que foram surgindo essas comunidades, por menores que fossem, elas davam lugar - necessariamente - ao surgimento de desafios consistentes em resolver os problemas da própria comunidade. É possível, reconhecemos, que num pri- meiro momento esses problemas da sobrevivência coletiva tenham primado sobre os da própria individualidade. Mas é inegável que, tornando-se os ho- mens responsáveis não só pela sobrevivência pessoal mas também pela reso- lução dos problemas que permitissem a manutenção e a sobrevivência do gru- po social, deu-se lugar aí a uma função voltada aos interesses da coletividade, à resolução dos problemas que ultrapassam os indivíduos, os problemas transpessoais, os problemas coletivos enfim. Trata-se do aparecimento do político.

Com o surgimento do problema do poder emerge também o daqueles que vão desempenhar a função política. Por mais simples que fossem ainda as comunidades primitivas, e por mais que se conferisse primazia a formas cole- tivas de resolução desses problemas, o certo é que a história e a antropologia não dão conta da existência de sociedade em que não houvesse a diferença entre os homens no que diz respeito ao desempenho dessa função política. O que parece mais certo é que desde cedo se fizeram valer as diferenças pes- soais, de aptidão, de vocação, de disposição para o exercício do mando, de tal sorte que alguns sempre se sobressaíram, ou, optativamente, exerceram algu- ma forma de liderança na condução dos fenômenos sociais. É certo que nessa época se poderia estar muito longe da institucionalização do poder tal como conhecido no mundo moderno; o processo do exercício do poder afigurava-se entremeado com outros aspectos da vida social, por exemplo, o aspecto guer- reiro e o aspecto religioso. Não se havia ainda ganho a autonomia do político. Mas o fato de ele não ter nessa época se destacado plenamente de outras fun- ções não quer dizer que já não existisse uma função política.

1.1. Fatores que Levam o Homem a Socializar-se

A discussão que ainda tem lugar em boa parte da doutrina, acerca de quais fatores teriam levado o homem a viver em sociedade, tem de ser di- ferençável daquela que se preocupa com os fatores que teriam determinado a aparição do Estado. Em outras palavras, um Estado não é senão uma modali- dade muito recente na forma de a humanidade organizar-se politicamente. Antes do Estado o homem passou por estruturas bastante diferentes de organiza- ção do poder político. Mas, já aqui, não há que se falar em formação da socie- dade, uma vez que esta já estava formada e já trazia dentro de si o próprio fenômeno político. É interessante notar, contudo, que a idéia do político se mantém relativamente imutável através dos tempos. O político como próprio do coletivo, do geral, do comum a todos, presente até os nossos dias.

1. Paolo Biscaretti di Ruffia, Direito constitucional, p. 33 e 34: "Todos nós temos uma noção empírica do ente social Estado, no sentido de que o vocábulo suscita, sem mais, na memória, este ou aquele agregado estatal do passado ou do presente. Por outro lado, é mister aprofundar um pouco tal conceito, tão genericamente possuído, e, antes de tudo, parece ser necessario precisar - ainda que seja necessário precisar - ainda que seja apenas em suas linhas gerais - qual seria a noção satisfatória que dele oferece a ciência juspublicista contemporânea.

Resulta, na prática, como axioma de grande aceitação a constatação de que o Estado: "é um ente social que se forma quando, em um território determinado, um povo se organiza juridicamen- te, submetendo-se à autoridade de um governo".

Disto se deduz que o Estado, ao apresentar-se como "um ente social com uma ordenação estável e permanente , pode, concomitantemente, ser considerado - segundo a teoria institucional do direi- to, mais acima resumida sinteticamente em seus enunciados principais - uma instituição ou uma ordenação jurídica (ainda mais: a mais aperfeiçoada e eficiente dentre todas do mundo contemporâ- neo), que abraça e absorve, em sua organização e estrutura, todos os elementos que o integram, adquirindo, em relação a eles, vida própria e formando um corpo independente, que não perde sua identidade, pelas sucessivas e eventuais variações de seus mesmos elementos".

Desta existência de uma atividade política surge a distinção que se pode fazer entre governantes e governados, também persistente ao longo da vida humana. Na medida em que alguns assumem o controle de um poder suficien- te para resolver as questões que afetam a todos, assumem uma posição diferen- ciada dentro da sociedade, uma posição de mando que implica, por parte de seus destinatários, uma posição de obediência. Mister notar-se, por seu turno, que durante longos períodos históricos o poder não esteve necessariamente concentrado nas mãos de uma única pessoa. Perfeitamente aceitável - para o grau de complexidade daquela sociedade - que determinadas questões fossem resolvidas definitivamente por pessoas diversas das que resolviam problemas de outra natureza. A própria sociedade medieval seria um exemplo avançado desse tipo de pulverização do poder por toda uma sorte de pessoas, institui- ções, ordens, cidades, profissões etc. Fácil notar-se, porém, que essa disper- são do poder é incompatível com um exercício mais amplo do Poder Público.

Na medida em que começam a se alargar as esferas de atuação do poder co- letivo, ou, em outras palavras, na medida em que a própria complexidade da vida social começa a demandar uma maior quantidade de decisões por parte dos poderes existentes, torna-se necessária a sua concentração, para que, em determinado ponto, uma única autoridade exerça o poder. De fato, a confor- mação efetiva da sociedade em questões importantes só se pode dar uma vez admitida a origem ou a sede do poder num único órgão; do contrário, haveria inevitavelmente o conflito de comandos, o que tornaria, mais cedo ou mais tarde, impossíveis as medidas de maior profundidade.

O Estado - entendido portanto como uma forma específica da socieda- de política - é o resultado de uma longa evolução na maneira de organização do poder. Ele surge com as transformações por que passa a sociedade política por volta do século XVI. Nessa altura, uma série de fatores, que vinham amadure- cendo ao longo dos últimos séculos do período medieval, torna possível - e mesmo necessária - a concentração do poder numa única pessoa. É esta ca- racterística a principal nota formadora do Estado moderno. O poder torna-se mais abrangente. Atividades que outrora comportavam um exercício difuso pela sociedade são concentradas nas mãos do poder monárquico, que assim passa a ser aquele que resolve em última instância os problemas atinentes aos rumos e aos fins a serem impressos no próprio Estado.

2. Maquiavel e Ernst Cassirer, Teoria geral do Estado, p. 23 e 24: "A despeito de existirem todos os antecedentes arrolados, que se empenham em descrever certas características conducentes a arqui- tetar, para cada época histórica, através dos séculos, uma idéia de Estado, o fato é que, somente no século XVI, especificamente no chamado período do Renascimento, é que surge, em sua verdadeira acepção, o que conhecemos atualmente por Estado. E foi precisamente Maquiavel, consoante paten- teamos na Introdução acima, que, de modo pioneiro, conferiu à palavra Estado seu significado autên- tico, ao cunhá-la e imprimir-lhe essência e conteúdo, embora sem apresentar propriamente uma defi- nição. Diz Maquiavel, nas primeiras linhas de O príncipe: "Todos os Estados, todos os governos que tiveram e têm autoridade sobre os homens, foram e são Repúblicas ou Principados"".

2. O PODER E A SOCIEDADE

O surgimento do poder, não só com a sua característica de unidade mas também de institucionalização, não faz obviamente desaparecer a sociedade.

Esta continua a desempenhar e cumprir uma série de funções que o Esta- do, mesmo o mais autoritário, jamais assumiu. Tem variado, de fato, na histó- ria, a quantidade de poderes que o Estado acha por bem assumir. A sociedade, de outro lado, recobrou a sua importância, sobretudo debaixo do liberalismo, conseguindo reduzir o Estado a suas expressões mínimas, tornando-o competente para o desempenho das atividades absolutamente indispensáveis à manutenção da ordem e para propiciar as condições para que a própria sociedade pudesse então atingir os demais fins. Cuida-se aqui de uma luta que dura até os nossos dias. Existem aqueles que vêem no Estado tão-somente um ente que deve assegurar condições mínimas para que a sociedade possa - por si mesma - atingir os seus fins culturais, econômicos, sociais etc. Há aquelas outras cor- rentes que preferem fazer absorver, pelo próprio Estado, o desempenho des- sas atividades. De qualquer sorte, a diferença perdura entre o que se chama de Estado-sociedade e o Estado-poder.

3. ESTADO-GOVERNO E ESTADO-SOCIEDADE

Há, portanto, um Estado cuja demarcação coincide com o aparato buro- crático formado pelos políticos e pelos profissionais que compõem o seu qua- dro organizacional. Mas sabemos que o Estado não se pode resumir ao que na verdade seria mais adequado chamar-se governo. Daí porque ser corrente na doutrina a expressão Estado-sociedade, para então abarcar o Estado na sua totalidade, compreendendo, portanto, não apenas a organização governamen- tal, mas também a própria comunidade, que não são entes estanques. É óbvio que há uma constante interação entre o governo, que exerce a sua influência conformadora sobre a sociedade, e, de outra parte, a sociedade que torna pos- sível a existência desse governo, e, em grande medida, determina-lhe o sen- tido, o alcance e as diretrizes.

3. Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, t. 3, p. 20, 21 e 24: "Falar em Estado equivale, portanto, a falar em comunidade e em poder organizado ou, doutro prisma, em organiza- ção da comunidade e do poder, equivale a falar em comunidade ao serviço da qual está o poder, em poder conformador da comunidade e em organização que imprime caráter e garantias de perdurabilidade a uma e outro.

As duas perspectivas sobre o Estado que a experiência (ou a intuição) revela - o Estado-sociedade (ou Estado-coletividade) e o Estado-poder (ou Estado-governo ou Estado-aparelho) - não são senão dois aspectos de uma mesma realidade; assim como a institucionalização, sinal mais marcante do Estado no cotejo das sociedades políticas anteriores de poder difuso ou de poder personalizado, corresponde fundamentalmente a organização. O Estado é institucionalização do poder, mas esta não significa apenas existência de órgãos, ou seja, de instituições com faculdades de formação da vontade; significa também organização da comunidade, predisposição para os seus membros serem destinatários dos comandos vindos dos órgãos do poder. (...)

O Estado é comunidade e poder juridicamente organizados, pois só o Direito permite pas- sar, na comunidade, da simples coexistência à coesão convivencional e, no poder, do facto à insti- tuição. E nenhum Estado pode deixar de existir sob o Direito, fonte de segurança e de justiça, e não sob a força ou a violência. Mas o Estado não se esgota no Direito. É, sim, objecto do Direito, e apenas enquanto estruturalmente diverso do Direito pode ser a ele submetido, por ele avaliado e por ele tornado legítimo.

I - Quando se contrapõem Estado-comunidade e Estado-poder (ou Estado-aparelho), está-se a raciocinar no interior do fenômeno estadual, com o seu enlace necessário e dinâmico entre comu- nidade e poder. Quando - contudo - noutra distinção não menos célebre e importante - se contrapõem Estado e sociedade, já o âmbito se exibe diferente e mais largo.

Convém evocar esta problemática quer no plano histórico quer no plano conceitual.

II - Durante a Idade Média e na transição estamental, o político difunde-se e está presente na sociedade e na sua riquíssima teia de instituições - as ordens religiosas, as universidades, as obras assistenciais, as corporações de mesteres, as comunas ou os conselhos etc. Ou antes: é na sociedade como expressão integrante de todas as instituições (incluindo a instituição real) que reside o político.

Pelo contrário, com o absolutismo, o Estado identifica-se com o poder, com a soberania, com o Rei, e a sociedade - seja naquilo que vem de longe, seja naquilo que traz de novo - aparece a margem do político e sem projecção sobre o poder. Vem a ser apenas na época liberal que a sociedade volta a afirmar-se, se bem que em termos negativos, abrangendo tudo quanto se preten- de que fique subtraído à ação do poder. Assim como vem a ser com as concepções contratualistas então dominantes, primeiro, e, depois, com a passagem à democracia, que se toma ou se readquire consciência da face comunitária do Estado. E, mais tarde, certos regimes políticos afastam-se tanto da vontade e dos interesses dos cidadãos que o Estado-poder, no limite, se lhes entremostra completamente alheio e exterior.

O Estado liberal tem em vista uma sociedade livre da gestão ou direção do poder. O Estado social intervém nela para a transformar. Num caso ou noutro, a sociedade carrega-se de intenções políticas. Num caso ou noutro, a sociedade corresponde ao Estado-comunidade, mas não tem de se lhe assimilar ou de com ele coincidir completamente.

III - Se a sociedade civil suporta o Estado-comunidade enquanto conjunto humano, não se con- funde com este de um prisma jurídico e institucional, pois guarda sempre um grau maior ou menor de autonomia diante do poder - ela é a comunidade desprendida, para efeito de análise, do poder.

Não significa isto que não haja pontes ou veículos de passagem, que a sociedade seja indife- rente politicamente, sobretudo hoje, ou que ela possa captar-se sem o influxo do poder. Apenas enunciamos a possibilidade de uma consideração da sociedade à margem da redução ao fenômeno estadual (ou político).

Por outro lado, o Estado-comunidade apresenta-se como uma unidade em razão do poder e da organização, como uma só sociedade política. Já a sociedade, a sociedade civil, se apresenta na pluralidade de instituições, estruturas, grupos de natureza vária (cultural, religiosa, socioprofissional, econômica etc.). E esses grupos possuem vocações ou interesses igualmente diversos, sejam com- plementares ou antagônicos, a inserir num contexto geral de interdependência, senão de solidarie- dade - o que, desta ou daquela forma, prevaleçam estes ou aqueles interesses, vem a ser propor- cionado pela existência do Estado".

Paolo Barile preleciona: "O primeiro e fundamental problema que se põe ao lado do nascimento de um Estado Moderno (esse não se põe de fato no Estado absoluto se não em modo aproximativo) é aquele da correspondência mais exata possível entre país e governo, isto é, entre sociedade e organiza- ção, sem a qual a primeira não pode ser uma ordem estável.

Estado democrático contemporâneo tende sempre mais para uma solução de desdobramento entre Estado-aparato e Estado-comunidade: entendendo-se por Estado-aparato o complexo organizado que realiza o poder supremo, e por Estado-comunidade o complexo organizativo de sujeitos de quem o Esta- do reconhece um poder autônomo, enquanto expressão direta do organismo social interno da comunidade. Evita-se de confiar ao primeiro (isto é, apesar de superestrutura que grava o ato) todo o encargo típico do Estado, preferindo distribuir entre órgãos e instituições do Estado-comunidade (entre instituição menos burocrática, mas imediatamente vizinha aos homens que vivem no Estado) um grande número de interesses a tutelar. Tal instituição do Estado-comuni- dade baseia-se num conceito essencial, aquele de autonomia, no âmbito do Estado e com respeito aos princípios fundamentais do mesmo" (Istituzioni di diritto pubblico, 4. ed., Padova, CEDAM, p. 9-10) (trad. do Autor).

É curioso que, embora o homem viva num Estado a todo momento sofren- do sua influência, no instante de defini-lo encontre grandes dificuldades. Não é de fato fácil encontrar-se uma definição que agrade a todos. No nosso Curso de teoria do Estado e ciência política tivemos o ensejo de definir o Estado como a "organização política sob a qual vive o homem moderno... resultante de um povo vivendo sobre um território delimitado e governado por leis que se fun- dam num poder não sobrepujado por nenhum outro externamente e supremo internamente" (p. 10). Não seria o caso aqui de pretendermos elencar todas as concepções que autores de nomeada avançaram sobre o Estado. Parece interes- sante e oportuna a discussão travada sobre o papel representado pelos chama- dos elementos do Estado, dado que, na verdade e sobretudo depois da obra de Jellinek, boa parte dos teóricos se contentaram em considerá-lo como resultan- te de três elementos fundamentais: poder, população e território.

4. Santi Romano, Princípios de direito constitucional geral, p. 59, 60 e 61: "O conceito de Estado é um dos mais controvertidos da hodierna ciência publicística, não porque se compreende entre outros não menos incertos, mas também, e principalmente, pela sua complexidade, o que dificulta o conhecimento de todas as suas notas essenciais. Esta dificuldade resulta claramente do desenvolvimento da doutrina que a ele se refere, pois esta teve necessidade de uma lenta e árdua integração para conseguir construí-lo; deriva ainda da própria terminologia com que aquele con- ceito às vezes vem expresso, traduzindo-lhe incompleta ou aproximadamente os vários aspectos.

É evidente que os gregos referiam-se ao Estado com a palavra (Pólis), que, embora utilizada para indicar regiões e países (vide Leopardi, Zibaldone, 4158), comumente significa cidade e, portanto, como o correspondente nome civitas, empregado pelos latinos para designar o Estado, pode-se referir propriamente a um só tipo de Estado, ou seja, àquele do Estado-cidade, que era então o mais comum; entretanto, não lhe colocou em relevo, senão o territorial. Os termos latinos respublica, imperi um, populus, indicavam-lhe o governo e particularmente o elemento da popula- ção. O próprio vocábulo "Estado", antes de assumir o sentido pleno que tem atualmente, teve por muito tempo significado restrito. Em latim, status é sinônimo de "condição", "posição", "ordem" e é, portanto, nome genérico que se fazia acompanhar de qualquer outro termo que lhe especificasse a referência: status reipublicae, status rei romanae e, mais tarde, status romanus. Em italiano, a palavra "Estado" provavelmente foi empregada outrora no sentido de "terra" ou "território", sendo acompanhada apenas de algum complemento de especificação (Estado de Florença, de Gênova etc.); somente aos poucos foi sendo utilizada sem este acréscimo.

Tal uso se afirmou inicialmente na Itália, no século XVI, pelo menos na linguagem comum, e

logo em seguida na França, Inglaterra e Alemanha. Na literatura científica, a palavra Estado foi

pela primeira vez empregada no sentido coincidente ao do moderno por Maquiavel, embora alguns tenham julgado que ela indicasse o domínio, o governo, o poder do Estado, o que não é exato, como se pode inferir daquelas passagens em que se evidencia o elemento território de acordo com o costume que Maquiavel não fez mais que seguir, estendendo-o e integrando-o aos demais elemen- tos ou aspectos que tomou em consideração.

Também presentemente, no lugar da palavra "Estado" têm sido utilizados os seus sinônimos tanto na linguagem comum como na legislativa. Por exemplo, na terminologia francesa recorre-se, freqüentemente, ao termo "nação"; nas relações internacionais fala-se mesmo em "potência"; muitas vezes retorna-se à antiga tendência de indicar o Estado com a qualidade de seu soberano ou de seu governo "império", "reino", "monarquia", "principado", "ducado", "república" etc., e é sintomático que algumas destas palavras continuem a ser empregadas mesmo quando, substituída a forma de governo, aquela seja mais oportuna: assim, a Alemanha continua a ser qualificada como "Império".

De qualquer modo a evocação à variedade de terminologia e às obscuras variações desta, que são também alternações do conceito, serve para alertar contra o perigo de formular um mesmo con- ceito, referindo-se às significações parciais que às vezes são atribuídas ao vocábulo correspondente.

O problema da definição do Estado não é apenas um problema de definição verbal, mas sobre- tudo jurídico. Isto significa que ele, primeiramente, deve ser colocado e examinado em relação às várias ordenações positivas, cada uma das quais, em abstrato, poderia assumir um conceito diverso de Estado. Deve-se considerar, porém, que atualmente estas várias ordenações estatais ou não, por exemplo, o direito internacional e o direito canônico, acolheram a noção de Estado comum ou geral, ao menos sob um ponto de vista prático e concreto: as divergências são, sobretudo, de ordem doutrinária ou teórica e, por sorte, raramente repercutem na linguagem legislativa ou oficial, dando lugar a incertezas de interpretação. Elas, mais que ao conceito, se referem ao desenvolvimento de tal conceito ou aos atributos e qualidades do Estado que são necessários para individualizá-lo, embora sirvam para esclarecer-lhe a natureza".

Gonzalez Casanova fornece excelente explicação sobre o papel repre- sentado por esses elementos: "É corrente comprovar que, para muitos teóri- cos do Estado e, em especial, para muitos estudiosos do mesmo, Estado e comunidade política organizada seriam idéias sinônimas. Certas formas pri- mitivas de organização social, dotadas de um rudimental sistema de governo (as polis gregas, o Império Romano, a pluralidade de centros de poder da Idade Média européia), seriam tipos ou formas históricas de Estado, tal qual o Estado Moderno. Tem-se falado, portanto, do Estado despótico do antigo Egito, do Estado grego ou romano, do Estado feudal etc.

Já sabemos, depois de tudo o que vem sido dito em parágrafos anteriores que, em todo caso, a significação da palavra "Estado" tem variado substancial- mente, em que pese a sua antigüidade semântica. Mas, sobretudo, sabemos que as formas de organização política das sociedades históricas - como exemplo as européias ocidentais - se distinguem, relativamente diferentes - dentro de um processo que as vincula historicamente umas com as outras -, constituin- do-se "modelos" de organização política com traços próprios e diferençados.

É verdade que em todas elas encontramos alguns elementos comuns: uma população, um território, uma organização social, um sistema de poderes no que sobressai o de uns indivíduos ou grupos dominantes que se apresentam supremos e um sistema de normas deduzido daqueles com capacidade de obrigar mediante a correspondente sanção. Mas estes elementos comuns formam em cada caso uma estrutura peculiar. Poderíamos dizer que a diferença funda- mental entre as diversas formas de organização política não reside nos seus elementos, mas sim na forma de estes acharem-se estruturados.

Ainda que sempre encontremos população social, sistema de poderes, ideologias, normas jurídicas etc., nem sempre a combinação de todos eles dá como resultado a mesma estrutura política. A população pode crer em coisas muito distintas com respeito à relação que deve existir entre os poderes so- ciais: o território e a população podem achar-se unidos por laços muito dife- rentes; as normas jurídicas podem obrigar com maior ou menor eficacia a mais ou a menos a população e por distintas razões justificadoras.

O Estado, portanto, é uma formação social histórica, organizada como unidade política, que tem uns traços estruturais característicos e que vai cons- tituindo a partir da sociedade européia ocidental dos séculos XIII e XIV. Fa- lar, pois, de Estado moderno é uma redundância, já que, por definição, o Es- tado é a forma de organização política da modernidade, se por ela entender- mos a época histórica que se inicia no pré-Renascimento" (Teoria dei Estado e derecho constitucional, p. 74) (trad. do Autor).

4. PRESSUPOSTOS OU ELEMENTOS INTEGRADORES DO ESTADO?

Embora o Estado moderno continúe a manter essas características - de fato se desconhece qualquer Estado que não tenha esses três elementos - é preciso reconhecer que uma dilucidação maior cabe, no que tange ao saber se estamos diante de pressupostos ou requisitos para existência do Estado ou de elementos integradores da sua existência, e aqui a polêmica medra. A diferen- ça fundamental reside no seguinte: há aqueles que no fundo consideram que toda vez que se unir um território a um governo e a um povo resulta neces- sariamente num Estado. Para eles esses seriam não só elementos indispensá- veis como bastantes à existência do Estado. Há no entanto outra corrente, que, sem negar serem esses elementos necessários, procura enfatizar que de um lado o Estado suplanta esses três - ao necessitar, por exemplo, de outros não aí incluídos, podendo ser citados, a título exemplificativo, os fins do pró- prio Estado - e, de outra parte, não ser também absolutamente inconcebível a existência de Estado com a ausência de um ou alguns desses elementos.

5. Jorge Miranda, Manual, cit., t. 3, p. 8: "Por outro lado, é questão extremamente complexa e controversa saber qual a natureza ou essência do Estado, saber qual a realidade a que correspondem todos os aspectos mencionados (e, aí, evidentemente, Estado e político não se distinguem). Cabe também referi-la; e - porque se afigura ser questão prévia, pelo menos do modo como levar a cabo aquele exame descritivo - justifica-se, mesmo, começar por ela.

Mais para efeitos didáticos do que científicos, grande número de autores reconduz o trata- mento do Estado ao dos seus três "elementos": povo, território e poder político. É tese a que não aderimos; quando muito, aceitamos falar em "condições de existência". Sem embargo e sem seguir- mos esse caminho, iremos pelo peso da tradição e por maior facilidade de exposição - dedicar os próximos capítulos ao Estado como comunidade política (ou povo), à cidadania como qualidade de membro de Estado, ao Estado como poder e ao território do Estado.

Tanto quanto releva das ciências juspublicísticas releva da filosofia o problema da natureza, da essência, do ser do Estado; e o debate sobre este ponto anda, desde há muito, bem próximo do debate acerca da formação ou da justificação do poder (ou acerca da legitimidade do poder e dos governantes)".

Sobre a questão relativa a pressupostos e requisitos para a existência do Estado, conferir Paolo Barile, Istituzioni, cit., p. 10: "All'interno, la sovranità si rende effettiva attraverso tre elementi che, secondo una dottrina tradizionale, compongono lo Stato. Alludiamo al popolo, al territorio e al governo (in senso lato). Si tratta, in realtà, di elementi assai eterogenei, per cui giustamente si è osservato (Gueli) che essi sono del tutto inadatti a comporre, insieme, il concetto di Stato e che, in fondo, popolo e territorio sono anzitutto presupposti essenziali dello Stato (R. Quadri)".

Vejamos melhor: o elemento que tem mais caracterizada sua condição de integrante da essência do Estado é o território. Por outra face, não é fácil con- ceber-se como um ingrediente de natureza tão diferente dos demais possa inte- grar o mesmo composto que seria o Estado. O território fica muito mais facil- mente compreensível quando admitido como uma mera condição de existência do Estado. É dizer, na situação atual das coisas, o homem é um ser preso a Terra, e, para que uma determinada ordem jurídica possa ser exclusiva num determinado espaço, ela tem necessariamente de dispor de uma parcela do glo- bo terrestre. Nessas condições, portanto, o território é importantíssimo para que o Estado assuma sua condição atual, a de ser um ordenamento exclusivo numa determinada área do globo. Mas basta que suponhamos mudanças radicais na realidade tecnológica - imaginando no futuro ser possível a manutenção de populações no espaço que circunda a Terra por tempo indefinido - para inda- garmos se algo nos impediria de admitir que uma dada população se erigisse, como uma unidade política autônoma, com sede no Espaço. Seria perfeitamen- te possível, portanto, imaginar-se comunidades soberanas desprendidas do ele- mento território. E a só possibilidade de pensar-se isso, de ser tal hipótese Logicamente admissível, demonstra que o território não é um elemento compo- nente, integrante do próprio Estado, no sentido de exprimir-lhe a essência.

Com relação ao povo, já talvez não seja tão fácil essa elimináção. De fato, todo Estado é a organização juridicamente soberana de um povo. Contudo, ain- da assim ficam problemas delicados a serem resolvidos. Supondo-se que num determinado Estado haja uma mudança substancial de uma parcela quase que integral do seu povo, perguntar-se-ia se houve a manutenção da identidade do Estado ou se seria um outro Estado que estaria aí surgindo. De qualquer sorte, fica claro que o elemento povo parece mais consubstancial ao Estado do que o território, na medida em que o Estado é uma expressão desse próprio povo.

Ainda assim, quer-nos parecer que a polêmica suscitada é extremamen- te útil, na medida em que ela serve para demonstrar que o Estado - embora muito impregnado desses três aspectos que mais nitidamente saltam à nossa vista e que sem os quais até os presentes dias não poderíamos mesmo admitir a sua existência - é algo que os transcende, não se confunde, não se resume a eles. Há sempre algo no Estado - por vezes de difícil apreensão - que permite se aceitem de melhor grado essas teorias que buscam relativizar, ain- da que em pequena medida, essa identificação muitas vezes mecânica que se faz entre Estado e esses três elementos componentes. Nítida a possibilidade de ser essa idéia de componentes excessivamente forte, por reduzir o Estado a esses três ingredientes, quando é muito mais compreensível que na realida- de estatal entrem elementos de outra ordem, no mais das vezes - como dis- semos - de trabalhosa apreensão, razão pela qual os autores valem-se da simplificação, evitando incluí-los na definição do Estado.

O próprio direito tem a sua importância decisiva na constituição do Estado. Mais do que o próprio direito, o apelo para uma das suas técnicas, a da perso- nificação, hoje adotada talvez pela unanimidade dos Estados modernos. Com exceção da Inglaterra, todos os Estados subjetivam, personalizam a sua figu- ra, visando com isto objetivos de ordem racional, facilitando destarte o fun- cionamento do mecanismo jurídico, como também submetendo o Estado mais rigidamente às regras do próprio direito.

CAPÍTULO II O PODER

SUMÁRIO: 1. Poder social. 2. Poder político. 3. Direito e política. 4. O Estado se subordina inteiramente ao direito? 5. Estado e soberania.

1. PODER SOCIAL

Se perguntarmo-nos qual o objeto fundamental com que se defronta uma Constituição vamos encontrar uma só resposta: a regulação jurídica do poder. Na verdade, é a configuração que vier a ser imprimida a ele, a sua afetação a estes ou àqueles detentores, sua maior ou menor concentração, os controles de que é passível, assim como as garantias dos destinatários do poder que acabam por conformar o Estado e a sociedade.

O poder é tido como um dos três incentivos fundamentais que dominam a vida do homem em sociedade e rege a totalidade das relações humanas, ao lado da fé e do amor, unidos e entrelaçados, segundo Lowenstein.

O poder social é, pois, um fenômeno presente nas mais diversas modali- dades do relacionamento humano. Ele consiste na faculdade de alguém impor a sua vontade a outrem. O poder não se confunde com a mera força física porque esta suprime no seu destinatário a própria vontade, o que não significa dizer que no exercício do poder não exista coercitividade. Pelo contrário, ela está sempre presente, embora possam ser muito diferentes as sanções em que pode incidir aquele que enfrenta o poder. Se não houver, contudo, ao menos a virtualidade do exercício da coerção, o que se tem é, na verdade, a mera persuasão, na qual predomina a técnica argumentativa. De outra parte, aquele que se persuade se convence das razões do persuasor, enquanto no poder o que há é uma sujeição da vontade do dominado por temor das conseqüências da não-sujeição. Amplamente considerado, tanto é poder o exercido pelo pai ao dar ordens aos seus filhos, quanto o do governo ao ordenar aos cidadãos.

2. PODER POLÍTICO

Assim, com esta extensão, o poder extravasa o campo de interesse de uma Constituição. Para esta, interessa mais diretamente o poder político. Para a inteligência deste, urge lembrar que em toda organização ou sociedade há de comparecer uma certa dose de autoridade para impor aqueles comportamentos que os fins sociais estejam a exigir. Neste sentido o poder político não é outro senão aquele exercido no Estado e pelo Estado. Há inegavelmente algumas notas individualizadoras do poder estatal. A que chama mais atenção é a su- premacia do poder do Estado sobre todos os demais que se encontram no seu âmbito de jurisdição. A criação do Estado não implica a eliminação desses outros poderes sociais: o poder econômico, o poder religioso, o poder sindical etc. Todos eles continuam vivos na organização política. Acontece, entretan- to, que esses poderes não podem exercer a coerção máxima, vale dizer, a invocação da força física por autoridade própria. Eles terão, sempre, de cha- mar em seu socorro o Estado. Nessa medida são poderes subordinados.

1. Mário Stoppino, O poder, Jornal da Tarde, 14 jan. 1975: "Em seu significado mais geral, a palavra poder designa a capacidade ou a possibilidade de agir, de produzir efeitos. Tanto pode ser referida a indivíduos e a grupos humanos como a objetos e a fenômenos naturais (exemplo: poder do calor, poder de absorção). Se a entendermos em sentido especificamente social, ou seja, na sua relação com a vida do homem em sociedade, o poder torna-se mais preciso, e seu espaço conceitual pode ir desde a capacidade geral de agir até a capacidade do homem em determinar o comporta- mento do homem: poder do homem sobre o homem. O homem é não só o sujeito mas também o objeto do poder social. É poder social a capacidade que um pai tem para dar ordens aos seus filhos ou a capacidade de um governo de dar ordens aos cidadãos".

2. Miguel Reale, Teoria do direito e do Estado, p. 320: "Dentro dos limites de seu território, ou seja, nos limites reconhecidos pelo Direito Internacional, o Direito do Estado estende-se a todos os setores da vida social e, prima facie, cabe-lhe sempre razão nos entrechoques das competências. O Estado não precisa legitimar as suas decisões, a não ser em um segundo momento, conforme a maior ou menor soma de garantias reconhecidas aos indivíduos e aos grupos: "Prima facie em princípio, elas (as regras de direito emanadas do Estado) são direito porque editadas pelo Estado segundo a sua autoridade legislativa. A autoridade do Estado, em virtude de sua essência mesma, faz presumir a for- mulação da verdadeira norma jurídica, presunção esta que nenhuma outra autoridade pode invocar".

Assim sendo, a soberania é o direito do Estado Moderno porquanto só no Estado Moderno se verifica o pleno primado do ordenamento jurídico estatal sobre as regras dos demais círculos so- ciais que nele se integram e representa a condição essencial da validade prima facie incondicionada das regras de direito estatal".

Roque Carrazza, Princípio federativo e tributação, RDP, 71:174: "Atualmente, o Estado é a única instituição soberana, porquanto "superiorem non recognoces". De fato, dentre as várias pes- soas que convivem no território estatal, apenas ele detém a faculdade de reconhecer Outros ordenamentos e de disciplinar as relações com eles, seja em posição de igualdade (na comunidade internacional), seja em posição de ascendência (por exemplo em relação às entidades financeiras), seja até em posição de franco antagonismo (v.g. com as associações subversivas).

A soberania como qualidade jurídica do "imperium" é apanágio exclusivo do Estado. Se ele não tivesse um efetivo predomínio sobre as pessoas que o compõem, deixaria de ser Estado. Daí concluirmos que a soberania é inerente à própria natureza do Estado (Giorgio Del Vecchio). Ou, como queira Bluntschili "o Estado é a encarnação e personificação do poder nacional. Esse poder, considerando a sua força e majestade supremas, se chama soberania". E continua este incompará- vel mestre: "... a soberania supõe o Estado, não podendo estar nem fora, nem acima dele". (...)".

Isto fica bem claro quando se estuda o surgimento desta supremacia do poder estatal. Vai-se ver, de resto, que o advento do próprio Estado Moderno coincide, precisamente, com o momento em que foi possível, num mesmo território, haver um único poder com autoridade originária, vale dizer: sem ser necessário chamar o poder de outrem em seu socorro.

Na Idade Média não existia esta supremacia inconteste de uma pessoa, de uma classe ou de uma organização. Adversamente, eram múltiplos os entes que reclamavam poderes originários: o Papa, o Sacro Império Romano-Ger- mânico, os reis, a nobreza feudal, as cidades e as corporações de artes e ofí- cios, todos pretendiam exercer competências não derivadas de outrem, o que era o mesmo que dizer que não se reconhecia reciprocamente nenhuma soberania.

A partir do século XVI um fenômeno muito curioso deu-se na Europa. Os reis, através de diversas batalhas e tramas políticas, ganharam uma ascendên- cia inconteste dentro do território de cada reino, excluindo, inclusive, no campo externo, as pretensões temporais do papado e do Sacro Império Ro- mano-Germânico. Destarte, formou-se uma sorte de poder que alguns que- riam até mesmo diferente daquele vigorante na Grécia e em Roma. De qual- quer forma era, sem dúvida, completamente diverso do que existiu no milê- nio compreendido pela Idade Média.

3. Reinhold Zippelius, Teoria geral do Estado, p. 55: "A afirmação considerada hoje em dia, as mais das vezes, evidente, segundo a qual todas as autoridades num Estado derivam de um poder estadual unitário, não foi tida por verdadeira desde sempre. Aquela afirmação é o ponto de chegada de uma evolução histórica acidentada. Houve longas épocas da história alemã durante as quais a nobreza, a igreja e as cidades exerciam autoridades originárias. Havia uma justiça autônoma que não derivava do poder real e era mais antiga, historicamente, que a jurisdição real. Aquela era defendida e activada mediante privilégios de imunidade. Também escapavam distribuídas novas hierarquias nobiliárquicas que, como plantas silvestres, não acatavam, pura e simplesmente, a suserania suprema do rei.

Nos diversos territórios as competências estavam divididas já na baixa Idade Média, entre, por um lado, os príncipes e por outro a igreja, cavaleiros e cidades. Deparavam-se freqüentemente em cada Estado dois verdadeiros Estados: o príncipe e os grupos sociais tinham organização de grupos sociais. O príncipe e os grupos sociais tinham, tanto um como os outros, tropas, funcionários, finanças e representações diplomáticas próprias. Governar era então negociar continuamente de compromisso em compromisso (Mitteis-Lieberich, Cap. 35 III 5; Jellinek, 696 e segs.).

O pensamento da concentração do poder público pelos príncipes já progrediu, certamente, na Idade Média, como mostra a máxima: "Les rois sont souverains par dessus tous" proclamada ini- cialmente em França por Beaumanoir. O poder principal ou dos príncipes deveria ser independen- te; o poder papal e o imperial não deveriam ter precedência. No entanto o poder principal, por sua vez, deveria ter precedência em relação às competências próprias dos diversos corpos sociais (Gierke, 381 e segs., 633 e segs., 192 e segs.; Jacoby, 26 e segs.)".

3. DIREITO E POLÍTICA

De outra parte há que se constatar a pretensão do direito em traçar as regras sobre as quais se deve dar o jogo político. Isto não significa, entretanto, que o direito acabe com a política. Esta, é óbvio, continua a existir mesmo debaixo do Estado constitucional. O direito é, na verdade, uma moldura den- tro da qual se considera aceitável o jogo político. Entre ambos, na verdade, surge uma tensão dinâmica. Freqüentemente a política tenta abandonar os parâmetros jurídicos. Por outro lado, é a Constituição que, desgarrada da razoabili- dade, procura ir longe demais querendo enjeitar em si toda a vida política futura do Estado.

4. Miguel Reale, Teoria do direito, cit., p. 115: "O poder, por conseguinte, nunca deixa de ser substancialmente político, para ser pura e simplesmente jurídico.

Quando dizemos que o poder é jurídico, fazemo-lo relativamente a uma graduação de juridicidade, que vai de um mínimo, que é representado pela força ordenadamente exercida como meio de certos fins, até a um máximo, que é a força empregada exclusivamente como meio de realização do Direito e segundo normas de Direito.

Isto quer dizer que o poder não existe sem o Direito, mas pode existir com maior ou menor grau de juridicidade.

Por outro lado, assim como o poder não existe sem o Direito, o Direito não se positiva sem o poder, um implicando o outro, segundo o princípio da complementariedade, de tanto alcance nas ciências naturais e humanas.

De maneira geral não há poder que se exerça sem a presença do Direito, mas daí não se deve concluir que o poder deva ser puramente jurídico, tal como é entendido no "Estado de Direito".

A expressão poder de direito é o resultado de uma comparação entre os diversos graus de juridicidade do exercício do poder. Não significa - como pensam alguns - que o poder se torna todo substancialmente jurídico (o que equivaleria a identificar Estado e Direito), mas que o poder, em regra, se subordina às normas jurídicas cuja positividade foi por ele mesmo declarada".

O Poder Político exerce uma função transcendente desde logo na pró- pria Constituição do Estado. Este nada mais é que uma comunidade transfor- mada pelo exercício sobre ela do Poder Político.

O poder constitui o Estado. Não pode haver Estado sem Constituição. Esse próprio ato constitutivo, por seu lado, não se desprende nem se desgarra por completo do direito. Embora seja um ato emanado sobretudo da força, esta não pode, todavia, vir desacompanhada de uma idéia de direito, nem deixar de se traduzir logo em seguida em atos de natureza jurídica. O poder não consegue exercer-se dentro do Estado enquanto pura e exclusiva força bruta; ele há de sempre dizer por que veio e para que veio, tornando-se nesse discur- so, necessariamente, jurídico.

A vinculação do poder ao direito - frise-se - não ocorre exclusiva- mente no momento da Constituição do Estado, mas também, e com muito maiores razões, por ocasião do seu funcionamento. Implantados os órgãos constituídos - assim entendidos todos os que encontram o seu fundamento na Constituição - esses nada mais são que um feixe, um conjunto de compe- tências; são, destarte, simples definições legais de faculdades que incumbem aos seus agentes. A atuação do Estado no seu processo de promoção do bem-estar coletivo, da segurança, do progresso, se cumpre através de atos jurídicos ou de atos materiais que necessariamente aos primeiros se remontam.

A complexidade das funções estatais, por sua vez, dá lugar a uma comple- xidade crescente da organização do próprio Estado. Essa complexidade se traduz na existência de múltiplos órgãos, cada um dotado das suas competên- cias próprias. A multiplicação de agentes e de órgãos é também criadora de uma limitação do poder pelo direito. O poder dividido e disseminado é sem- pre um poder mais controlado.

4. O ESTADO SE SUBORDINA INTEIRAMENTE AO DIREITO?

Fica sempre no ar, entretanto, uma questão: o Estado se subordina intei- ramente ao direito? Podemos falar com procedência num Estado de Direito? De início pode parecer muito difícil a aceitação dessa tese, uma vez que, se é o próprio Estado que cria o direito, através da sua atividade Legislativa; se são, em última análise, órgãos dos próprios Estados os incumbidos de aplicar o di- reito, de sancionar aquele que o descumpre, poder-se-ia de fato sempre acredi- tar que a submissão do Estado ao direito é impossível. O direito se prestaria à dominação dos súditos, mas não se prestaria à submissão do próprio Estado.

Contudo, não é isto que tem prevalecido. Na verdade o Estado moderno, democrático, tem guardado uma obediência sensível ao ordenamento jurídico. A despeito das dificuldades reconhecidamente procedentes de se sancionar o Estado quando ele é o descumpridor das suas próprias leis, nem assim tem dei- xado o Estado de pautar-se pelas regras jurídicas que cria. Tem sido como que uma necessidade lógica de coerência; ao Estado Moderno não se conferiria legitimidade enquanto estivesse ele voltado exclusivamente a impor normas. O estágio já atingido no processo do avanço democrático presta-se a impedir que, nada obstante, seja o povo o titular da soberania, possa ele sofrer o exercício de um podêr feito de maneira arbitrária ou desgarrada da legalidade.

Portanto, o próprio fundamento que em última análise confere ao Esta- do a prerrogativa de exercer o poder - que é a sua capacidade de impor a ordem - impede que ele deixe de sujeitar-se às leis destinadas a ordenar a própria sociedade. É como se essa sua sujeição à lei fosse condição para que pudesse ser chamado a legislar, na idéia muito precisa e feliz de Radbruch. Há algo que parece transcender o próprio Estado, tratando-se, para alguns, de um direito suprapositivo e natural, que obriga o Estado a manter-se sujeito às suas próprias leis, ainda seguindo a lição do mesmo mestre.

Além disso é imprescindível a percepção de dar-se a contenção do poder não só por limitações de ordem formal - como até agora vínhamos expondo - mas também pela existência de limitações de ordem material, vale dizer, por regras que impedem o Estado de invadir as esferas próprias dos indivíduos e dos grupos sociais menores. São, portanto, os instrumentos jurídicos de garantia.

É certo que o Estado apresenta-se cada vez mais ameaçador na medida em que assume um número crescente de atividades. É curial também que essa proliferação de fins do Estado põe em risco a liberdade do indivíduo. Daí por que se faz hoje importante não só a limitação das atividades do Estado pelo direito, mas também a contenção das próprias atividades do Estado. As diversas experiências históricas têm demonstrado a impossibilidade de um Estado ser totalitário quanto aos seus fins e libertário quanto aos seus meios. Para que se possa maximizar os seus fins, ou, em outras palavras, levar a cabo um excessivo número de atividades com fins sociais, ele tem necessidade de dotar-se de uma força coercitiva maior, na medida em que muitas vezes o exercício desses fins não é natural ao próprio Estado e ele só pode absorvê-los através de um proces- so traumático e violento sobre a sociedade. De qualquer forma, não se pode conferir um caráter absoluto a essa correlação entre poucos fins e liberdade e muitos fins e ausência de liberdade. É inconteste a existência de Estados que, embora perseguindo poucos fins, não souberam preservar a liberdade.

5. ESTADO E SOBERANIA

Na mesma medida em que se consolidou o poder dentro do Estado, surgiu também a idéia de que se tratava de um poder soberano. De fato, pode-se dizer que são duas construções simultâneas. Uma, a do Estado, tal como saído dos séculos XV a XVIII, e outra, a da comunidade internacional, composta de Es- tados tidos por iguais. Esta regra da igualdade foi o princípio sobre o qual se erigiu o direito internacional. Encontrava-se, assim, inteiramente preservada a noção de soberania. Esta se constituiria na supremacia de poder dentro da ordem interna e no fato de, perante a ordem externa, só encontrar Estados de igual poder.

Essa situação nada mais era, portanto, que a consagração, na ordem in- terna, do princípio da subordinação, com o Estado no ápice da pirâmide, e, na ordem internacional, do princípio da coordenação. Este princípio da coorde- nação mantém-se válido, em termos, até hoje, não tendo sido a igualdade dos Estados infirmada do ponto de vista jurídico. Contudo, esta postulação jurídi- ca encontra absoluta ausência de correspondência nos campos político, econô- mico, militar, cultural etc. É que os Estados tornaram-se de dimensões e de proporções muito diferençadas, fenômeno que se tornou ainda mais acentua- do com o advento à cena jurídica de um grande número de Estados tornados independentes pelo fenômeno da descolonização ocorrido após a Segunda Guerra Mundial. Perde-se, destarte, a noção do que sejam os requisitos de um Estado. Confere-se essa qualidade a pequenos territórios - às vezes pequenas ilhas; outras vezes nesgas de terras espremidas entre um Estado e o mar; ou mesmo porções pequenas de territórios sem qualquer meio de acesso ao mar, tudo isso dando lugar a um intenso fenômeno de desigualdade entre os Estados, que tem sido objeto já de não poucas preocupações na Organização das Nações Unidas (ONU). Encontramos lá o surgimento dos fundamentos de um direito internaci- onal compensador dessas fraquezas - da mesma maneira que, no direito inter- no, houve um direito social voltado aos mais carentes e necessitados.

De qualquer sorte, a convivência na mesma cena internacional de Esta- dos com tão grandes diferenças de potencial gera muitas vezes dificuldades na organização dessa própria comunidade, sobretudo na medida em que se tem ainda que aceitar a postulação da igualdade formal de todos os Estados.

Há, portanto, uma forte falta de correspondência entre os postulados de um direito constitucional clássico e as realidades do mundo moderno. E de outra parte é sabido que os Estados, ainda que de fraca expressão, lutam pela sua autonomia e pela sua soberania, porque esta é a forma de assegurarem a sua liberdade no contexto internacional. O desafio consiste precisamente em saber como, sem se deixar de respeitar os interesses desses pequenos Estados, poderiam eles continuar a gozar dos benefícios que a soberania lhes confere sem deixar de outra parte de atentar às necessidades de uma atuação mais intensa das organizações internacionais, do que muito depende a sobrevivên- cia da própria humanidade.

CAPÍTULO III O PODER CONSTITUINTE

SUMÁRIO: 1. Legitimidade e legalidade. 2. O pensamento político-jurídico de Sieyès. 3. Natureza e titularidade do poder constituinte. 4. Espécies de poder cons- tituinte: originário e derivado. 5. Exercício do poder constituinte. 6. Limitações ao poder de reforma constitucional. 6.1. Cláusulas pétreas. 7. Modernas tendências.

O Poder Constituinte é aquele que põe em vigor, cria, ou mesmo cons- titui normas jurídicas de valor constitucional. Com efeito, por ocuparem estas o topo da ordenação jurídica, a sua criação suscita caminhos próprios, uma vez que os normais da formação do direito, quais sejam, aqueles ditados pela própria ordem jurídica, não são utilizáveis quando se trata de elaborar a pró- pria Constituição.

É certo que, na maior parte do tempo, as regras constitucionais mantêm- se em vigor e, nessas condições, esse poder não é exercitado, remanescendo, em conseqüência, no seu assento normal, que é o povo.

O Poder Constituinte só é exercitado em ocasiões excepcionais. Muta- ções constitucionais muito profundas marcadas por convulsões sociais, crises econômicas ou políticas muito graves, ou mesmo por ocasião da formação originária de um Estado, não são absorvíveis pela ordem jurídica vigente. Nesses momentos, a inexistência de uma Constituição (no caso de um Estado novo) ou a imprestabilidade das normas constitucionais vigentes para manter a situação sob a sua regulação fazem eclodir ou emergir este Poder Consti- tuinte, que, do estado de virtualidade ou latência, passa a um momento de operacionalização do qual surgirão as novas normas constitucionais.

1. LEGITIMIDADE E LEGALIDADE

Dos atos jurídicos infraconstitucionais cobra-se a legalidade. Devem eles estar de acordo com o preceituado formalmente e, se for o caso, materialmen- te em nível hierárquico superior.

Das Constituições, por seu turno, é cobrada legitimidade, que vem a ser a maior ou menor correspondência entre os valores e as aspirações de um povo e o constante da existente Constituição.

Constata-se assim que a Constituição não se contenta com a legalidade formal, requerendo uma dimensão mais profunda, a única que a torna intrin- secamente válida!. Assim sendo, uma Constituição não representa uma sim- ples positivação do poder. É também uma positivação de valores jurídicos.

1. Hermann Heller, Teoria do Estado, p. 327: "A questão da legitimidade de uma Constituição não pode, naturalmente, ser contestada, referindo-se ao seu nascimento segundo quaisquer precei- tos jurídicos positivos, válidos com anterioridade. Em compensação, porém, uma Constituição precisa, para ser Constituição, isto é, algo mais que uma relação factícia e instável de dominação, para valer como ordenação conforme o direito, uma justificação segundo princípios éticos de direi- to. Contradizendo os seus próprios pressupostos, disse Carl Schmitt que a toda Constituição exis- tente deve atribuir-se legitimidade, mas que uma Constituição, entretanto, só é legítima, "isto é, reconhecida não só como situação de fato mas também como ordenação jurídica, quando se reco- nhece o poder e (!) a autoridade do poder constituinte em cuja decisão ela se apóia". A existencialidade e a normatividade do poder constituinte não se acham, certamente, em oposição, mas condicionam-se reciprocamente. Um poder constituinte que não esteja vinculado aos setores de decisiva influência para a estrutura de poder, por meio de princípios jurídicos comuns, não tem poder nem autoridade e, por conseguinte, também não tem existência".

2. O PENSAMENTO POLÍTICO-JURÍDICO DE SIEYÈS

Poucos meses antes do deflagar da Revolução Francesa, o abade Emmanuel Sieyès publicou um pequeno panfleto intitulado Que é o Terceiro Estado?, que foi um dos mais famosos estopins revolucionários, representando um ver- dadeiro manifesto de reivindicações da burguesia na sua luta contra o privilé- gio e o absolutismo. Para ele, a nação (ou o povo) se identificava com o Ter- ceiro Estado (ou burguesia). Demonstrava isto, afirmando que o Terceiro Estado suportava todos os trabalhos particulares (a atividade econômica, desde a exercida na indústria, no comércio, na agricultura, e nas profissões científicas e libe- rais, até os serviços domésticos) e ainda exercia a quase-totalidade das fun- ções públicas, excluídos apenas os lugares lucrativos e honoríficos, corres- pondentes a cerca de um vigésimo do total, os quais eram ocupados pelos outros dois Estados, o clero e a nobreza, privilegiados sem mérito. A classe privilegiada constituía um corpo estranho à nação, que nada fazia e poderia ser suprimida sem afetar a subsistência da nação; ao contrário, as coisas só poderiam andar melhor sem o estorvo desse corpo indolente. Embora o Ter- ceiro Estado possuísse todo o necessário para constituir uma nação, ele nada era na França daquela época, pois a nobreza havia usurpado os direitos do povo, oprimindo-O, instituindo privilégios e exercendo as funções essenciais da coisa pública. Contra essa situação, o Terceiro Estado reivindicava apenas uma parte do que por justiça lhe caberia; não queria ser tudo, mas algo, o mínimo possível, a saber: os seus representantes deveriam ser escolhidos so- mente entre os cidadãos pertencentes verdadeiramente ao Terceiro Estado; seus deputados seriam em número igual ao das ditas ordens privilegiadas; e os Estados gerais deveriam votar por cabeça, não por ordem.

2. Sieyès, Que es ei Tercer Estado?, 1. ed., Madrid, Aguilar, 1973. Todo o Capítulo I, p. 5-15.

3. Sieyès, Que es el Tercer Estado?, cit. No Capítulo II, demonstra que o Terceiro Estado nada tinha sido até aquele momento. No Capítulo III, p. 25-46, descreve as reivindicações do Terceiro Estado, mediante os três pedidos mencionados.

Procurando fundamentar essas reivindicações no direito, Sieyès desenvolveu o seu pensamento jurídico nos dois capítulos finais do famoso panfleto, partin- do da forma representativa de governo para chegar, pela primeira vez, a uma distinção entre o poder constituinte e os poderes constituídos. Distinguiu três épocas na formação das sociedades políticas. Na primeira, há uma quantidade de indivíduos isolados que, pelo só fato de quererem reunir-se, têm todos os direitos de uma nação; trata-se apenas de exercê-los. Na segunda época, reunem-se para deliberar sobre as necessidades públicas e os meios de provê-las. A socie- dade política atua, então, por meio de uma vontade real comum. Todavia, por causa do grande número de associados e da sua dispersão por uma superfície demasiadamente extensa, ficam eles impossibilitados de exercer por si mesmos a vontade comum. Assim, numa terceira época, surge o governo exercido por procuração: os associados "separam tudo o que é necessário para velar e prover as atenções públicas, e confiam o exercício desta porção de vontade nacional, e por conseguinte de poder, a alguns dentre eles". Aqui já não atua uma vontade comum real, mas sim uma vontade comum representativa. Os representantes não a exercem por direito próprio nem sequer têm a plenitude do seu exercício.

4. Sieyès, Que es ei Tercer Estado?, cit., Capítulo V, p. 71-3.

A criação de um corpo de representantes necessita de uma Constituição, na qual sejam definidos os seus órgãos, as suas formas, as funções que lhe são destinadas e os meios para exercê-las. As leis constitucionais regulam a organi- zação e as funções dos poderes constituídos (corpos), entre os quais se encon- tra o Legislativo. Elas são leis fundamentais porque não podem ser tocadas pelos poderes constituídos: somente a nação tem o direito de fazer a Constituição. O poder constituinte é, assim, um poder de direito, que não encontra limites em direito positivo anterior, mas apenas e tão-somente no direito natural, existente antes da nação e acima dela. Além disso, o poder constituinte é inalienável, permanente e incondicionado. A nação não pode perder o direito de querer e de mudar à sua vontade; não está submetida à Constituição por ela criada nem a formas constitucionais; seu poder constituinte permanece depois de realiza- da a sua obra, podendo modificá-la, querer de maneira diferente, criar outra obra, independentemente de quaisquer formalidades. Os poderes constituí- dos, ao contrário, são limitados e condicionados; recebem a sua existência e a sua competência do poder constituinte; são organizados na forma estabelecida na Constituição e atuam segundo esta.

5. Sieyès, Que es ei Tercer Estado?, cit., p. 73-80: "A nação existe antes de tudo, é a origem de tudo. Sua vontade é sempre legal, é a lei mesma. Antes dela e por cima dela só existe o direito natural". "Estas leis são chamadas fundamentais não no sentido de que possam ser feitas independen- tes da vontade nacional, mas sim porque os corpos que existem e atuam por elas não podem tocá-las. Em cada parte a constituição não é obra do poder constituído, mas sim do poder constituinte." "De qualquer maneira que uma nação queira, basta que queira; todas as formas são boas, e sua vontade é sempre a lei suprema." P. 87: "A nação é sempre senhora de reformar a sua constituição". "Um corpo submetido a formas constitutivas não pode decidir nada se não é segundo a constituição."

Em última análise, ao procurar fundamentar juridicamente as reivindicações da classe burguesa, Sieyès foi buscar fora do ordenamento jurídico positivo (que era injusto) um direito superior, o direito natural do povo de autoconstituir- se, a fim de justificar a renovação da mesma ordem jurídica. O seu pensamento desenvolveu-se aprioristicamente nos moldes do racionalismo iluminista, do contratualismo e da ideologia liberal da época. Construiu um conceito racio- nal de poder constituinte, levantando o problema da sua natureza e da sua titularidade, bem como apresentando a sua solução. Durante muito tempo a doutrina tradicional desenvolveu os ensinamentos de Sieyès. Com o surgimento do positivismo jurídico, nos meados do século passado, começou a ser ques- tionada a natureza jurídica do poder constituinte, uma vez que, admitindo-se a positividade como o único modo de ser do direito e sendo certo que o poder constituinte é anterior ao direito posto, não poderia ele ser um poder jurídico. De qualquer maneira, o problema penetra os estudos jusfilosóficos.

Assim, vemos que não é outro o entendimento do mestre argentino Vanossi: "na noção do Poder Constituinte há elementos perduráveis que mantêm a sua total vigência e outros que requerem um enfoque mais atualizado. Por exem- plo, na noção que a partir do Abade Sieyès tem-se difundido, é evidente que o mais importante é o descobrimento da função do Poder Constituinte. Este conceito aparece nos momentos em que o Racionalismo e os começos do Constitucionalismo impõem a idéia da Separação dos Poderes. Era óbvio que não podia haver uma distribuição do Poder sem a pressuposição da existência de um poder superior, que praticasse essa distribuição, isto é: para poder falar de diversos poderes, das diversas funções do poder que estavam repartidas e distribuídas, havia-se que supor a existência prévia, lógica e cronologicamen- te falando, de um poder supremo que realizasse essa repartição, que levasse a cabo essa distribuição; portanto, a noção de Poder Constituinte aparece como algo absolutamente necessário para poder compreender-se o tema da distribuição do Poder. E se considerarmos que no Estado Constitucional, democrático, so- cial, contemporâneo, é necessário manter a distribuição do Poder, embora com outros alcances, com outras características, mas mantê-la, é evidente que também temos que conservar o conceito de Poder Constituinte, de tal forma que, a partir do funcionamento deste, poder-se-á entender a divisão do Poder.

Outro ponto importante que se mantém vigente é a distinção entre o Poder Constituinte - como função do ato constituinte, como uma manifestação con- creta desse Poder - e a Constituição como produto ou resultado daquele Poder, daquele ato. O Poder Constituinte é fundamentalmente uma função, o que dá razão aos que afirmam que, também na etapa da reforma da Constituição, existe uma manifestação do Poder Constituinte. Sabemos que há certo setor doutriná- rio que reclama a exclusividade da presença do Poder Constituinte que atua em outras oportunidades como instância de reforma ou emenda.

Se ubicarmos o tema no nível da função, dizemos que Poder Constituinte é aquele que participa da criação e distribuição das competências supremas do Estado e veremos que cada vez que existe uma redistribuição ou uma reformulação dessas competências é evidentemente mais uma manifestação do Poder Constituinte".

6. Jorge Reinaldo Vanossi, Revista de Direito Constitucional, 1:12-3: "A doutrina tradicional, Prof. Bastos, distinguia unicamente entre o Poder Constituinte Originário e o Poder Constituinte Derivado. Poder Constituinte Originário era aquele que atuava, segundo os a