Yara Pina Performatus · performatus.net 1 Inhumas, ano 2, n. 10, mai. 2014 ISSN 2316-8102 Esboçar...

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performatus.net 1 Inhumas, ano 2, n. 10, mai. 2014 ISSN 2316-8102 Esboçar um Dialogo, Desenhar a Troca: Uma Entrevista com Yara Pina Renan Marcondes Yara Pina, Sem Título 4 . Ação realizada em Goiânia, Brasil. Setembro de 2012. Frame de Glayson Arcanjo Yara Pina nasceu em 1979, em Goiânia, cidade onde atualmente vive e trabalha. É bacharela em Artes Visuais e Especialista em Arte Contemporânea pela Universidade Federal de Goiás. Desde 2010, tem participado de exposições individuais, coletivas e também de salões de arte. Recentemente, foi premiada pelo 63 º Salão de Abril em Fortaleza. Em seus trabalhos, a artista explora diferentes materiais em processos que buscam potencializar seu uso, propriedades e formas de inserir e inscrever as ações do corpo. Em sua grande parte, os trabalhos resultam em intervenções no espaço físico e em instalações que permeiam as fronteiras do desenho, performance, objeto, escultura e pintura.

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Inhumas, ano 2, n. 10, mai. 2014

ISSN 2316-8102

Esboçar um Dialogo, Desenhar a Troca:

Uma Entrevista com Yara Pina

Renan Marcondes

Yara Pina, Sem Título 4. Ação realizada em Goiânia, Brasil.

Setembro de 2012. Frame de Glayson Arcanjo

Yara Pina nasceu em 1979, em Goiânia, cidade onde atualmente vive e

trabalha. É bacharela em Artes Visuais e Especialista em Arte Contemporânea

pela Universidade Federal de Goiás. Desde 2010, tem participado de exposições

individuais, coletivas e também de salões de arte. Recentemente, foi premiada

pelo 63º Salão de Abril em Fortaleza. Em seus trabalhos, a artista explora

diferentes materiais em processos que buscam potencializar seu uso,

propriedades e formas de inserir e inscrever as ações do corpo. Em sua grande

parte, os trabalhos resultam em intervenções no espaço físico e em instalações

que permeiam as fronteiras do desenho, performance, objeto, escultura e

pintura.

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A partir de um estreito diálogo com a performance, tem pesquisado as

possibilidades e potências poéticas do desenho na contemporaneidade.

Pensando sobre o desenho como linguagem que é operante em sua poética e

cuja potência de discussão se mantém cada dia mais ativa, tentaremos aqui, na

forma de um diálogo que foi se construindo gradativamente pelas formas e

mídias possíveis, delinear alguns traços de seu pensamento, em um possível

esboço do seu fazer artístico.

RENAN MARCONDES: Comecemos com uma pergunta mais direta:

uma ação de ordem mais racional ou mental pode ser pensada como desenho

também?

YARA PINA: Em meu processo, ações são meticulosamente planejadas,

contudo, a realização delas está sujeita a imprevistos, digo do confronto entre

corpo, matéria e suporte.

RENAN MARCONDES: Acho que minha pergunta vem um pouco desse

lugar. Como você disse, a ação é meticulosamente planejada, ou seja, você

primeiro pensa/projeta para depois agir. Essa ação geralmente é algo muito

físico e corporal (por exemplo, jogar a cadeira contra a parede). A minha

pergunta é se seria possível também pensar esse primeiro momento no qual

você pensa/projeta a ação, como desenho. Ou seja: uma fala, escrever um texto,

pensar sobre algo, discutir, etc. Essas ações também têm “potencial de

desenho” para você?

YARA PINA: Sim, por exemplo, a cadeira é um objeto, utilizado como

arma (como os vândalos as utilizam), como matéria do desenho, e marcas que

imprimem o processo de destruição do objeto. Inclusive o desenho também está

nos esboços dos meus trabalhos. Antes de executar boa parte dos trabalhos, eu

realizo esboços, e até projetos, então o desenho também está presente no

processo da obra e também no fazer da obra.

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RENAN MARCONDES: Você considera o desenho um fenômeno da

visibilidade ou da invisibilidade? A partir desta pergunta, queria saber de você o

que significa visualizar um desenho, olhar para algo e reconhecer naquilo algo

que possa ser nomeado como tal.

YARA PINA: Depende muito do processo e do fazer do artista. Nos

meus trabalhos, não utilizaria as palavras visibilidade/invisibilidade, mas a

maneira como o corpo age sobre um suporte, material ou objeto. Ao invés da

palavra visualizar, eu prefiro utilizar a palavra “fazer” desenho; é na maneira de

fazer que reconhecemos as várias formas de processá-lo.

RENAN MARCONDES: Entendo quando você fala da diferença entre

visualização e feitio, mas ainda mantenho a minha pergunta: o que, nisso que

você “faz”, caracteriza o resultado enquanto desenho e não como qualquer

outra coisa (performance, instalação, etc.)? Resumindo e sendo bem objetivo, o

que significa a palavra “desenho” para você?

YARA PINA: Em relação à performance, o que talvez diferencie, ou

melhor, tensione a relação entre essas duas linguagens, no sentido de

apresentação da obra, esteja na forma de explorar a presença do corpo, uma vez

que priorizo a presença das inscrições do corpo ao invés do “ver” o corpo agindo,

como faz a performance na presença do público. Sobre o significado de desenho,

nunca pensei em dar significados. Prefiro pensar nos meios de como o desenho

pode ser explorado e se fazer presente em meu processo. Sendo assim, procuro

trabalhar o desenho de várias formas, explorando sua matéria, história,

processo, conceito, suporte, atmosfera, etc. Se por um lado trabalho com um

extenso reportório do desenho, por outro busco tensionar seu fazer com outras

referências e linguagens. Dessa forma, eu não posso definir o que faço apenas

como desenho, uma vez que busco criar um embate com outras linguagens,

como a instalação, performance, pintura, escultura, fotografia, cinema e por aí

vai. Por fim, eu não gostaria de enquadrar a palavra desenho. Isso cabe aos

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dicionários. Parafraseando Valéry, eu não quero “dizer” o que é desenho, eu

quero “fazer” desenho.

RENAN MARCONDES: É possível um desenho desaparecer?

YARA PINA: Em meu processo, o fazer do desenho está vinculado ao

espaço de sua criação, da intervenção, etc. Contudo, ele também poderá ser

realizado novamente em outras espacialidades e temporalidades. Dito de uma

outra forma, presença, espaço e tempo estão interligados.

RENAN MARCONDES: Concordo que presença, espaço e tempo

estejam interligados no seu processo, mas a minha pergunta tem mais a ver

com as possibilidades do desenho enquanto linguagem, e não ainda

diretamente ligadas ao desenho sendo operado no seu processo. Refaço a

pergunta, mas reformulando-a a partir das suas outras respostas: É possível

“desfazer” desenho?

YARA PINA: Sim, é possível, desfazer. Assim como o “fazer”, o

“desfazer” também é um ato criativo... Portanto, o ato de desfazer também é

fazer desenho. Na minha opinião, vários artistas desfizeram o desenho: Georges

Seurat, Paul McCarthy, Trisha Brown, Carolee Scheneemann. São várias as

formas de desfazer o desenho. Então o desfazer está muito relacionado ao

enquadramento do que se toma como “fazer” desenho. Engraçado que me

lembrei agora do trabalho de Robert Rauschenberg, de 1953, Erased de Kooning

Drawing, no qual ele apaga o desenho de Willem de Kooning.

RENAN MARCONDES: Sim, mas esse apagamento opera num nível

conceitual, pois o desenho apagado é de outro. Eu entendo mais esse

apagamento como uma metáfora a uma progressão natural da história da arte

(uma vez que o de Kooning o antecedia como uma grande figura da arte) do que

como uma questão sobre o próprio fazer do desenho. Acho que essa questão do

desfazimento como problema processual aparece mais em Giacometti, por

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exemplo. Giacometti, inclusive, é um cara que me vem à cabeça olhando seus

primeiros trabalhos, os desenhos de 2010, porque existe uma pulsão de um

gesto que se repete e se impõe sobre a matéria que é a questão em si. Queria

ouvir mais de você sobre essa pulsão que vejo recorrente em seus trabalhos. É

um processo consciente essa repetição quase obsessiva do gesto?

YARA PINA: Sim, é conceitual. O próprio título do trabalho é uma

referência, mas também é processual, uma vez que Rauschenberg apaga

literalmente o desenho de Kooning, um processo físico de remover ao invés de

acumular a matéria no suporte, e isso é muito interessante. Ao apagar o

desenho, Rauschenberg sobrepõe seu gesto ao de Kooning, o fazer “apagar”

também deixa marcas sobre o suporte, entende? A borracha deixa sua marca. E

isso é um processo do desenho. Além do mais, a borracha é um instrumento

tradicional da prática do desenho assim como o “apagar”. Os esboços da pintura

são uma prova disso; se desenha para depois apagar. Por outro lado, existe um

gancho com o trabalho de Giacometti, que opera com o ato de acumular,

acumular, acumular matéria – sobrepondo linhas –, ao invés de removê-la, como

fez Rauschenberg. Na minha opinião, Rauschenberg é um grande “desfazedor”

do desenho.

Em relação às pulsões, acho que elas estão relacionadas com a forma de

o corpo agir sobre um determinado material, objeto, suporte, etc. Contudo,

durante o embate com o suporte, seja ele parede, papel ou, até mesmo, o

próprio objeto, não sei como se dará esse enfrentamento, não sei de que forma

esses materiais irão reagir à ação do meu corpo e vice-versa; existe o imprevisto

ali. Por isso, um gesto nunca será inscrito uma vez só, ele sempre será repetido.

Se pretendo destruir uma cadeira, tenho que repetir o gesto de lançá-la várias

vezes contra a parede; para quebrar uma moldura, tenho que arremessá-la

várias vezes no chão. E a prova da repetição – do corpo agindo – está na

materialidade do gesto, digo, nos resquícios da matéria impregnada na marca.

Na faculdade, quando eu desenhava sobre o papel, isso ainda não era muito

claro para mim. Achava que quando o lápis quebrava ou o papel rasgava o

desenho havia “falhado”. Vendo agora, percebo que desde o início havia uma

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pulsão pelo ato destrutivo assim como pelas marcas de seu processo.

RENAN MARCONDES: As marcas do processo começam a operar

quase num nível simbólico, não? Eu sempre tenho a sensação, vendo as obras

de caráter mais material e menos processual (como as instalações, objetos,

etc.), de que sou colocado em frente a uma certa violência. A destruição que

estamos comentando não necessariamente gera um resultado final “destruído”

(como podemos inclusive ver nos exemplos acima), mas eu sinto que no seu

trabalho a violência surge como um espectro, mais como um tema. É como se a

forma da obra deixasse muito claro que ela foi violentada, mas ao mesmo

tempo velasse essa informação por um caráter hermético que vejo no seu

trabalho. Até quando você deixa de articular questões inerentes ao processo do

desenho, aparecem os objetos cortantes embrulhados, ou um indício de gesto

violento nas fotografias refletidas sobre a televisão desligada. Você poderia

comentar um pouco sobre esse deixar-à-mostra/esconder a violência?

YARA PINA: O que proponho em alguns casos – quando apresento as

armas – é a mostra, ou seja, a potencialidade de ferir desses objetos cortantes e

pontiagudos. Sendo assim, a violência presente nesses objetos não surge da

maneira de o corpo agir, mas de sua própria aparência, na forma de sua

apresentação. Os objetos, sejam eles armas em si ou armas improvisadas, são

recorrentes nas ações dos criminosos, vândalos e assassinos. Portanto, deixá-las

à mostra é uma forma de incorporar o contexto e o universo simbólico aos quais

estão inseridas. Já em outras ações, a violência está mais presente na forma de

o corpo agir e utilizar o material, deixando marcas ou agredindo uma superfície

ou objeto. Então a violência parte principalmente do corpo, da sua ação violenta

impressa na marca deixada.

RENAN MARCONDES: Por fim, queria saber da sua trajetória como

artista (e todos os trâmites de validação e nomeação que estão inevitavelmente

inseridos nela): ainda há espaço para o desenho? Existem formas prévias desses

espaços? E culturalmente, como você pensa o Brasil nesse contexto de pesquisa

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em artes e especificamente da pesquisa e experimentação sobre o desenho,

ainda mais depois da experiência no Drawing Center (da qual eu também

gostaria de saber mais)?

YARA PINA: Formei-me em 2009, pela Faculdade de Artes Visuais da

UFG. Desde 2010 tenho participado de Salões e mostras coletivas em diferentes

estados. Em 2012, fui premiada pelo Salão de Abril de Fortaleza. Aos poucos,

convites para integrar mostras coletivas em torno do desenho também

começaram a surgir. Este ano integrei uma mostra de desenho no Drawing

Center.

Minha relação com o desenho existe desde a graduação e até hoje minha

produção permeia o repertório dessa linguagem. Por outro lado, meu processo

está muito contaminado e em confronto permanente com a linguagem da

performance.

Se ainda existe espaço para o desenho? Sim. Primeiramente, vemos que

alguns artistas desenvolvem sua poética muito arraigada à história, ao conceito

e ao processo do desenho. William Kentridge é um grande artista do desenho.

Por outro lado, percebemos que outros artistas mantêm uma ligação muito

forte com o desenho e com a performance em seus processos e vice-versa. Ainda

mais, várias outras linguagens, como a dança, têm explorado algumas práticas

do desenho. Já em relação aos espaços dedicados especificamente à promoção,

experimentação, mostra e pesquisa sobre o desenho, ainda não tenho

conhecimento aqui no Brasil. Mas temos presenciado várias exposições coletivas

e também encontros e eventos que buscam reunir artistas que trabalham com

essa linguagem. Aqui em Goiânia, desde 2011 o artista Glayson Arcanjo organiza

o Desenha!, evento que desenvolve várias atividades, mostras e palestras com

artistas e profissionais de diferentes estados, áreas e linguagens. Em 2012,

participei da mostra coletiva Diálogo Desenho, curadoria de Glayson Arcanjo, que

reuniu artistas residentes em Goiânia que trabalhavam com o desenho,

performance, videoarte, fotografia e instalação.

Já fora do Brasil temos o Drawing Center, que desde os anos de 1970 se

dedica especialmente à história e à produção contemporânea do desenho. Na

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França, temos o Drawing Now Paris!, que promove anualmente um grande salão

do desenho contemporâneo. Isso sem falar nas grandes mostras de desenho

como, por exemplo, a exposição que o MoMA realizou, em 2010, On Line:

Drawing Through Twentieth Century. Por fim, o projeto Tracey se constitui num

espaço de pesquisa sobre a prática contemporânea do desenho.

Em relação à experiência com o Drawing Center, ela ainda está

andamento. O Open Sessions é um programa que reúne artistas do mundo

inteiro. Entre os meses de fevereiro e março foi realizada uma exposição

coletiva, e a outra etapa será uma atividade com o público, ainda em

desenvolvimento. Além de visibilidade e projeção, a troca de experiências com

os outros artistas tem sido enriquecedora. Os curadores nos deixaram à vontade

para a escolha das obras. Decidimos por apresentar dois vídeos que

documentaram duas ações: Sem Título 2 (2011) e Sem Título 4 (2012). Integrar a

mostra no Drawing Center tem sido uma realização. Acredito que além de ser

um espaço de grande atuação e credibilidade, é uma referência para todo artista

que explora a história, o processo, o conceito e a prática contemporânea do

desenho.

PARA CITAR ESTE TEXTO

MARCONDES, Renan. “Esboçar um Dialogo, Desenhar a Troca: Uma

Entrevista com Yara Pina”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 2, n. 10,

mai. 2014. ISSN: 2316-8102.

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

Edição de Da Mata

© 2014 eRevista Performatus e o autor