Post on 14-Apr-2018
7/30/2019 CABRAL, Beatriz A.V. Ao cultural e teatro como pedagogia.pdf
1/14
vol. 12, n. 1, jun 2012, p. 4-17Em pauta
Ao cultural e teatro como pedagogia
Beatriz A. V. Cabral UDESC Pq2/CNPq
Resumo
A ao cultural no Teatro como Pedagogia vista como aquela que busca quebrar a reproduo decomportamentos (habitus) atravs de sua configurao como experincia esttica. Como tal, vai almdo teatro como informao e entretenimento, e implica formas de conhecimento que dialogam comformas de identificao e subjetividade. Sob este ponto de vista, a relao entre ao cultural e texto considerada pelo ngulo da ressonncia e do reconhecimento esttico, focalizando a materialidadedo suporte (texto) associada imaterialidade de sua carga informacional e emocional. A possibilidadede aproximar a ao cultural da ao social est, neste sentido, na aproximao entre as noes dediferena, desentendimento e partilha do sensvel, assim como na distino entre conflito e tenso,uma vez que o poltico estaria na esttica e no no tema.
Abstract
The cultural action in theatre as pedagogy is seen here as one that seeks to break thereproductive behavior (habitus) through its configuration as aesthetic experience. As such, goesbeyond the theatre as entertainment and information, and implies forms of knowledge that dialoguewith forms of identification and subjectivity. The relationship between cultural action and text, from
this point of view, is considered from the perspective of resonance and aesthetic recognition byfocusing on the materiality of the support (text) associated with the immateriality of its informational andemotional burden. The possibility of associate cultural action and social action lies on the one hand,in the interaction between the notions of difference, disagreement and distribution of the sensible, andon the other hand in the distinction between conflict and tension, once the politics would be on theaesthetics and not on the theme.
A Ao Cultural, pelo mbito do ensino, pode ser vista como a ao do professor que
busca quebrar a reproduo de comportamentos (habitus) que impedem a ampliao
do olhar e da percepo do aluno. Este entendimento refuta o ensino-instruo, o qual
supe que todos alcanam o conhecimento da mesma forma e podem ser avaliados
da mesma maneira; exige o questionamento do que se ensina e da maneira pela qual
se ensina. A questo central passa a ser: que aspectos e que dimenses teatrais
podem ampliar a significao da ao do professor? neste sentido que o Teatro
como Pedagogia est centrado em sua dimenso artstica e a partir dela que se
vincula esttica, tica e poltica, tornando-se uma forma de combater padres
de comportamento que reproduzem o senso comum. O pressuposto aqui que se o
fazer artstico for significativo, e tiver ressonncia com os interesses e preocupaes
7/30/2019 CABRAL, Beatriz A.V. Ao cultural e teatro como pedagogia.pdf
2/14
5
dos participantes, causar impacto e provavelmente mudanas de percepo; caso
contrrio, ser um desservio causa a que se prope.
HabitusVersus Mudana
Escola, famlia e mdia so agentes interdependentes na socializao das
crianas em algumas ocasies elas esto associadas, em outras se confrontam.
Quando associadas, mantm a tradio; quando em confronto, promovem rupturas.
Como pensar a ao cultural a partir desta perspectiva de uma interao dinmica
entre famlia, escola e mdia?
De acordo com Pierre Bourdieu, a noo de habitus permite entender o relacio-
namento entre estas instituies de condicionamento social e as subjetividades indivi-
duais isto, se partirmos do entendimento que habitus no significa destino, e sim um
condicionamento cultural que leva o indivduo a agir ou optar por algo.
O conceito de habitus, tal como investigado por Bourdieu, aponta para algumas
questes que permitem repensar a ao cultural do professor:
Habitus um sistema de formas adquiridas de percepo, pensamento e
atitudes, que delimitam ou governam nossas interaes no campo social.
O habitus insinuado (introduzido ou criado) no indivduo atravs da violncia
simblica (no explicitamente), isto , atravs de discursos e aes de repro-
duo social e cultural.
Portanto, o habitus um sistema de disposies pessoais, estruturadas social-
mente, as quais tm uma funo estruturante em nossa mente, e dirigem nossas
aes e atitudes cotidianas. Como tal, limita ou influencia as oportunidades que nos
aparecem. Entretanto, a mudana possvel Bourdieu considera a mobilidade do
habitus como decorrente de experincias individuais ou coletivas.
Aqui sero focalizados aspectos tericos sobre como a ao cultural, atravs
da experincia do fazer teatral, torna-se um campo privilegiado para mudanas das
formas de percepo e aes cotidianas.
Teatro como Pedagogia, como Cultura, como Ruptura
A perspectiva das pedagogias crtica e ps-crtica subsidia a perspectiva da
mudana de hbitos no campo do fazer teatral, pois questiona a forma de perceber
questes ticas e epistemolgicas de seu ensino.
7/30/2019 CABRAL, Beatriz A.V. Ao cultural e teatro como pedagogia.pdf
3/14
6
De acordo com Henri Giroux (1957), a pedagogia crtica passa a se associar
reflexo sobre os princpios que regem a ao pedaggica e no implementao de
uma determinada metodologia (o como fazer). Neste sentido, ao cultural (a propo-
sio de um fazer) e ao pedaggica (sua conduo) no se medem pela expectativa
de resultados especficos, mas se constituem como processos de investigao, cujo
produto o professor no prev e nem controla (apesar da possibilidade de confront-lo
atravs de problematizaes e desafios).
Seguindo este ponto de vista, a expresso teatro como pedagogia introduzida
aqui para indicar uma possvel ruptura com delimitaes e limitaes impostas a priorino
campo da pedagogia do teatro. Entre estas, a identificao de estilos e formas de fazeres
como excludentes entre si, a dissociao do teatro na educao da arte teatral, a exacer-
bao do social e do educativo em detrimento do cultural (o que implica a excluso de
complexidades), a indistino entre acesso cultura1 e acesso aos bens culturais.
A ao cultural do teatro poder, potencialmente, incidir sobre ou gerar uma ao
social, com variaes de intensidade ao nvel da criao e da recepo, desde que no
haja expectativas de resultado. Em teatro, e na arte em geral, a mobilidade da interpre-
tao, ao nvel da produo e da recepo, e quando abre espao para a expresso
individual e particular de cada participante, introduz a diferena e a distino como
critrio de avaliao.
Jacques Rancire considera que a conexo entre poltica e esttica est na
singularidade do indivduo artista. Para o filsofo, o teatro, a escrita, as artes plsticas,
so formas artsticas que constituem prticas da palavra e do corpo so, portanto,
formas de partilha do sensvel que operam um deslocamento necessrio reflexo
e transformao social. Segundo o autor, trata-se da incerta realidade da arte, na
qual o argumento em si legitima o desentendimento e os atos estticos configuram a
experincia, pois estes levam a novos modos do sentir e novas formas de subjetivi-
dade poltica. Assim, a liberdade expressiva se associa ampliao de configuraes
sensveis. A ambiguidade e a recusa de formalizao de uma mensagem objetiva na
expresso artstica imprime mobilidade de sentidos, o que impulsiona novas interpre-
taes e permite a criao de mundos.
Se a ao cultural parte do princpio de que a cultura (e o teatro) como peda-
gogia atinge o emocional e o racional, possvel afirmar que o engajamento contnuo
1 Acesso cultura uma expresso inadequada, em qualquer circunstncia em que seja mencionada, pois todo
ser humana tem sua cultura, seja ela ou no condizente com os costumes e moral da sociedade em que vive.
7/30/2019 CABRAL, Beatriz A.V. Ao cultural e teatro como pedagogia.pdf
4/14
7
do indivduo com atividades culturais e artsticas contribui para a quebra e mudana
de habitus. Assim, a qualidade e a continuidade de um trabalho artstico significativo
para o indivduo podem mudar sua viso de mundo e perspectivas, pois quanto maior
sua significao cultural, mais significativo seu potencial social.
Tomaz Tadeu da Silva (2005) ao defender apedagogia como cultura e a cultura
como pedagogia, afirma que os processos pedaggicos so comparveis aos
processos de sistemas culturais, na medida em que ambos transmitem uma varie-
dade de formas de conhecimento vitais formao da identidade e da subjetividade.
Do ponto de vista pedaggico e cultural, afirma o autor, no se trata simplesmente
de informao ou entretenimento: trata-se em ambos os casos, de formas de conhe-
cimento que influenciaro e comportamento das pessoas de maneiras cruciais e at
vitais (2005, p.140).
Historicamente, lembra Tomaz Tadeu, os processos pedaggicos e culturais
diferem principalmente pelos recursos econmicos e tecnolgicos que mobilizam, os
quais facilitam aos processos culturais formas sedutoras e irresistveis de apresen-
tao. Os processos culturais apelam para a emoo e a fantasia, para o sonho e a
imaginao, mobilizando uma economia afetiva, que hoje no pode mais ser ignorada
pelo campo da pedagogia.
O teatro como pedagogia e como cultura implica o conhecimento de si e do
outro, mobilizando esta economia afetiva, e eventualmente fazendo a diferena. A
carncia de recursos econmicos e tecnolgicos no significa apenas o desconhe-
cimento de formas sedutoras e irresistveis de apresentao, poisrefere principal-
mente s condies de trabalho e formao continuada do professor. Enquanto um
programa cultural mobiliza recursos financeiros, equipe e tempo de trabalho, um
professor em geral atua de forma isolada, em mltiplas turmas com mais de 30
alunos cada. Qual contribuio o teatro, entendido como pedagogia e como cultura,
poder trazer a este professor?
Momentos quando a ausncia ou a presena da ao cultural indica a dierena
Um breve testemunho da observao de duas situaes, a primeira com adoles-
centes e role-play games pela internet, a segunda com drama e crianas em sala de
aula, explicitam como o significado da ao cultural pode fazer a diferena no coti-
diano das atividades de lazer e de ensino.
7/30/2019 CABRAL, Beatriz A.V. Ao cultural e teatro como pedagogia.pdf
5/14
8
Testemunho 1
Anos atrs observei um grupo de adolescentes jogando Ultima VII, um role playing
game de computador (CD). Me espantou o nmero de horas que passavam, por dia,
concentrados e engajados no jogo. A partir da me questionei como ns, professoresde teatro, com espao, som, interaes no momento, muitas vezes temos dificuldade
em conseguir 50 minutos de engajamento, ao vivo. poca foi lanado Ultima Online,
um dos primeiros jogos online com mltiplos jogadores. Os adolescentes se inscre-
veram imediatamente (era necessrio pagar uma taxa mensal), e passaram a jogar
em horrios incomuns a fim de interagir com maior nmero de pessoas de hemisfrios
distintos. Aps dois ou trs meses de entusiasmo com a mudana, os encontrei de
volta ao Ultima VII Eu: No pagaram a mensalidade?
Eles: Pagamos.
Eu: A internet est fora do ar?
Eles: No. T OK.
Eu: Por que vocs no esto online?
Eles: Se no h um grande jogador online, s aparece contribuio estpida,nenhuma histria interessante, nem boas falas.
Testemunho 2
Entre 1990 e 1993 tive a oportunidade de acompanhar o trabalho de drama
education2 conduzido por Dorothy Heathcote em escolas, com turmas de crianas ou
adolescentes, e na universidade com grupos de mestrandos. Aqui relato um episdio
do processo Mary Morgan.3
Heathcote conduzia processo de drama atravs de episdios nos quais desem-penhava papeis que provocassem a ao dos participantes (individualmente ou em
2 As expresses drama in education, process drama e drama so usadas por autores distintos e muitas vezes
pelo mesmo autor. Drama in Education predomina no campo do teatro na escola; Process Drama,em trabalhos
centrados em um texto como pr-texto, comum em contextos variados; Drama, usado mais recentemente,
comum em contextos nos quais a atividade j est instaurada ou quando o professor fala ou escreve para seus
pares (conferncias e congressos neste campo de conhecimento).
3
Dorothy Heathcote Archive 1990-1993 at Manchester Metropolitan Univesity. Organizado e mantido por SandraHesten. Os arquivos de trabalhos anteriores e posteriores de Dorothy Heathcote podem ser acessados em www.
did.stu.mmu.ac.uk/dha
7/30/2019 CABRAL, Beatriz A.V. Ao cultural e teatro como pedagogia.pdf
6/14
9
grupo), mudando de postura ou papel para expandir ou modificar o entendimento das
aes e o sentido de teatralidade.
Durante o processo Mary Morgan, Heathcote criou um episdio centrado em
um cemitrio, onde cada criana (8 anos de idade) colocou um tmulo (criado na aula
de artes visuais) para uma pessoa imaginria que morrera em meados do sculo
XIX, poca em que a causa da morte estava geralmente includa na epgrafe de sua
lpide. O cemitrio de Presteigne (Pas de Gales), onde a histria real aconteceu,
inclui duas lpides para Mary Morgan, uma singularidade que indica uma situao
rica de eventos dramticos4.
Heathcote iniciou este episdio pedindo que cada criana ficasse em p ao lado
do tmulo que havia criado (de papelo), como se fosse uma rvore. Ela ento cami-
nhou por entre os tmulos, identificando cada imagem corporal como uma espcie
diferente de rvore, descrevendo a forma de sua raiz, galhos e folhas. Sua descrio,
na grande maioria dos casos, alterou e realou a expresso fsica do aluno. Na sequ-
ncia, ela comeou a questionar cada rvore, a fim de criar a atmosfera do cemitrio
e ao mesmo tempo ouvir algo sobre a opinio da comunidade local sobre os mortos
ou a morte5.
A primeira pergunta foi dirigida a uma criana com reputao de ser difcil (a
professora havia antecipado esta informao).
Heathcote:Aqui est, h mais de 300 anos, um poderoso e forte carvalho. Porfavor, diga-me carvalho, o que voc observou durante estes anos?
Carvalho: No muito! (respondendo de cara amarrada)
Heathcote: Que triste! (Ela seguiu para a prxima rvore). Que salgueiroprotetor debruado sobre este pequeno tmulo! (Ela l a inscrio na lpide).Voc certamente observou muitas pessoas cuidando deste tmulo durantemuitos anos.
Salgueiro: No muito!
Heathcote seguiu questionando as rvores e incluindo referncias s suas
epgrafes, e abrindo oportunidades para respostas. Ainda assim,
todos responderam no estilo de no muito. Ao terminar o roteiro, disse:
4 Jennifer Green, The Morning of Her Day. Green, jornalista de passagem pela vila de Presteigne, no Pas de
Gales, ao visitar o cemitrio e encontrar as duas lpides, pesquisou o arquivo pblico da localidade. A histria de
Mary Morgan (17 anos de idade), auxiliar domstica no castelo local, narrada a partir dos autos do processo
que a condenou morte por enforcamento, aps esconder sua gravidez enfaixando o abdmen, e matar a
criana ao nascer. Foi a ltima morte por enforcamento em Gales, em 1805.
5 O tema da morte indicado no currculo ingls, e, portanto, focalizado de alguma forma, em cada escola.
7/30/2019 CABRAL, Beatriz A.V. Ao cultural e teatro como pedagogia.pdf
7/14
10
Que triste encontrar um cemitrio, ao redor de uma bela igreja, no centrode uma pequena cidade, onde os mortos foram esquecidos. Suas histriasmorreram com eles. Poderamos dizer que este um lugar sem memria?Poderiam vocs, crianas dos tempos modernos, trabalhar como detetivespara solucionar este mistrio?
Os dois testemunhos mostram como a mobilizao de recursos econmicos etecnolgicos, em si, pode no fazer a diferena.
No primeiro caso, a verso online e os recursos tecnolgicos recm-introduzidos
no mercado, com a possibilidade de interagir com participantes de outras partes do
mundo, foi excitante e motivadora. Entretanto, retornaram ao CD. Ao conversar com o
grupo para entender melhor o retorno, eles me explicaram que quando algum professor
de literatura ou histria est online e coordena o encontro, sugerindo e organizando
aes coletivas ou confrontos, o jogo vale a pena. Caso contrrio, os participantesficam caminhando aleatoriamente, acumulando pontos e matando quem encontram
pelo caminho. No CD, disseram, so oferecidas as opes de ao e alternativas de
fala para cada ao. Estas alternativas saram de obras de Shakespeare, Alan Poe,
Swift, Oscar Wilde etc. As alternativas de texto tornam qualquer opo interessante.
O segundo caso aponta para o teatro como pedagogia no cotidiano de uma sala
de aula comum, com cadeiras afastadas e sem qualquer outro recurso alm da relao
professor-alunos. A professora associa histria, real e ficcional, expresso fsica epresena de atores-espectadores. Ela introduz os nomes de 30 espcies de rvores,
dramtica e teatralmente em contexto, alimentando e redefinindo possibilidades de
expresso e construo da narrativa. E, mais importante, exemplifica o potencial de levar
em considerao as reaes mais negativas dos alunos e transform-las em material
para criar uma atmosfera que acentue as fronteiras entre os contextos real e ficcional.
Nas ronteiras entre o real e o ccional
A ao cultural, quer atravs da montagem de um texto clssico, de sua apro-
priao e atualizao, ou de uma criao coletiva a partir de investigao histrica ou
temtica, requer refazer o mapeamento de parmetros de lugar, identidade, histria e
poder. As fronteiras entre o real e o ficcional so ativadas e provocam mudanas de
percepo e expectativas. Estas em geral resultam da variedade (alternativas) e quali-
dade de referncias lingusticas e contextuais cruzadas nos encontros teatrais, e esto
associadas transgresso ou ressonncia com o contexto real dos participantes.
7/30/2019 CABRAL, Beatriz A.V. Ao cultural e teatro como pedagogia.pdf
8/14
11
De acordo com Henri Giroux (1997, p. 30), a possibilidade de quebrar barreiras em
termos de conhecimento e acesso a informaes tem a ver com o papel do professor
como intelectual, como aquele que desafia os limites do estabelecido.
Estes limites so observados e desafiados em situaes nas quais as fronteiras
entre o real e ficcional so transitadas atravs da imerso dos participantes; atravs do
prazer de entrar no espao da fico, que segundo Janet Murray, refere-se ao prazer
de navegar, de encontrar o novo, o diferente:
Uma narrativa excitante, em qualquer meio, pode ser experimentada comouma realidade virtual porque nossos crebros esto programados parasintonizar nas histrias com uma intensidade que pode obliterar o mundo nossa volta (...) A narrativa tambm uma experincia liminar () As histriasevocam nossos desejos e medos mais profundos porque fazem parte damgica regio de fronteira () ns precisamos manter o mundo virtual realfazendo com que ele permanea fora dali. (Murray, 2003, pp.101-103).
O professor de drama/teatro usa procedimentos que cruzam tempo, espao e
presena para mediar a interao dos alunos e favorecer o desenvolvimento do processo
de significao. Trata-se de um processo contnuo de estruturao da narrativa cnica.
Entretanto, o procedimento para promover imerso na criao coletiva ainda
requer uma dimenso esttica de significao e reconhecimento. Para tanto, neces-
srio planejar momentos significativos ao longo do processo.
Retornando a Janet Murray e sua anlise do conceito de imerso, trabalhar nafronteira entre os mundos real e ficcional a essncia do processo do drama, e da
prpria performance (ibidem, p.105). Para David Davis, a fronteira aponta para a
impreciso da forma artstica; para o movimento e deslocamento do contedo cada
vez que o observador o leia novamente aqui reside a evidncia de um bom trabalho
de arte (Davis, 1992p. 3).
O ponto importante a ser enfatizado que o mundo virtual traz liberdade para
experimentao e expresso; seu potencial analgico traz ressonncia com o mundoreal e, portanto, reconhecimento esttico.
Ressonncia e Reconhecimento Esttico
O drama e o teatro contemporneos, sejam quais forem suas origens e inser-
es, buscam formas de comunicao com contextos e espaos distintos como uma
maneira de expandir sua ressonncia com questes familiares aos participantes e
promover reconhecimento esttico. O desafio torna-se equilibrar momentos de ruptura
e de continuidade.
7/30/2019 CABRAL, Beatriz A.V. Ao cultural e teatro como pedagogia.pdf
9/14
12
Neste sentido, o texto quer em sua forma original, quer como fragmentos que
se aproximam tematicamente, como sequncia de imagens ou como associao de
objetos, apresenta um papel central. O texto aponta, sugere ou questiona aspectos da
identificao cultural, provoca estranhamento ao identificar ou diferenciar julgamentos
de prticas sociais, reflete uma sensibilidade pr-existente e como tal cria ou desperta
tal sensibilidade, amplia e expande repertrio artstico e percepo esttica.
A ao cultural de selecionar um texto, programar sua introduo e formas de
interao com os participantes inclui considerar sua materialidade como suporte,
associada imaterialidade de sua carga informacional e emocional. Selecionar o
material a ser introduzido a partir de seu potencial informacional, emocional, tico
e expressivo corresponde ao que Barthes acentuou em distintos momentos como
aquele capaz de produzir pregnant moments (momentos prenhes de significao).
So estes momentos que afastam o risco de considerar a ao cultural apenas como
ao social, como um servio a ser avaliado de acordo com a expectativa de um
resultado pr-estabelecido.
A ao cultural como congurao da experincia esttica
Segundo Rancire, os atos estticos como configuraes da experincia criam
novos modos de percepo sensorial e induzem novas formas de subjetividade (2004,
p. 9). Nesta perspectiva, so considerados, ao se falar em educao e arte, o sensorial
e o subjetivo da ao criativa, seu suporte material e imaterial, o real e as fronteiras
da realidade.
Assim, se a ao cultural em si pode ser vista como ao social, o contrrio
dificilmente ocorre. A ao social parte de objetivos e recursos especficos que
precisam ser avaliados de acordo com a aferio de resultados tambm especficos:
as mudanas ocorridas em formas de vida e aes sociais. A ao cultural, avaliada a
partir de anlise da recepo, inclui motivaes e manifestaes crticas como contra-
dies, diferenas e desentendimentos. Sua observao e anlise permitem detectar
mudanas de percepo, usualmente atravs das aes expressivas do aluno/ator;
aes estas em constante movimento e modificaes.
Neste sentido, uma forma de aproximar ao cultural e social poderia ser a
aproximao entre as noes de desentendimento e partilha do sensvel, segundo
Rancire, e a de filosofia da diferena, de Deleuze.
7/30/2019 CABRAL, Beatriz A.V. Ao cultural e teatro como pedagogia.pdf
10/14
13
Para Rancire, a esttica e a poltica so maneiras de organizar o sensvel: de
dar a entender, de dar a ver, de construir a visibilidade e a inteligibilidade dos aconteci-
mentos . Quando caminham juntas abrem possibilidades com base no encontro discor-
dante de percepes individuais. Poltica e esttica, segundo o filsofo, tm assim em
comum a delimitao do visvel e do invisvel, do audvel e inaudvel, do pensado e do
impensvel, do possvel e do impossvel. A distribuio do sensvel o sistema de fatos
(autoevidentes) da percepo dos sentidos que simultaneamente revela/expe a exis-
tncia de algo em comum e a delimitao que define as partes e posies respectivas
dentro dele. A distribuio do sensvel, portanto, estabelece algo que compartilhado e
exclusivo s partes envolvidas e a maneira dos indivduos terem uma parte nesta distri-
buio. Aquilo que exclusivo de cada indivduo gera possveis desentendimentos, cuja
negociao e discusso abrem novas perspectivas e possibilidades.
Para Deleuze, e observando a questo por outro ngulo, o teatro, devido sua
constituio crtica, opera modificando elementos do texto original. Assim, a fonte
modificada deixa de ser representada, e o fazer teatral se torna o da no-represen-
tao o ponto de vista do apropriador. Este agenciamento da enunciao, decorrente
principalmente da articulao do individual com o poltico, est centrado usualmente
nos componentes lingusticos e sonoros a lngua, a fala e o gesto como variaes
contnuas. Assim, se uma mesma situao ou texto apropriado por diferentes grupos,
as variaes lingusticas e gestuais conduzem a significaes distintas, e configuram
um teatro da no-representao.
Outro aspecto assinalado por Deleuze, que repercute no campo da pedagogia,
que o teatro permanece representativo cada vez que toma os conflitos como objeto,
uma vez que estes j esto normatizados, codificados e institucionalizados. Buscar
solues possveis, segundo Deleuze, no significa escapar da representao, um
movimento da repetio; a repetio, em outro contexto e circunstncia, substitui a
representao pela apresentao (2009, p.31). Na rea especfica do drama o conflito
como objeto o ponto de partida; a mobilidade da significao requer a distino entre
conflito e tenso.
A ao cultural em teatro e a distino entre confito e tenso
Ao escolher um texto, tema ou imagem para um processo de criao em teatro,
o professor usualmente no busca sua repetio ou identidade, mas sim um ponto
7/30/2019 CABRAL, Beatriz A.V. Ao cultural e teatro como pedagogia.pdf
11/14
14
de vista ou perspectiva, e formas de question-lo6. Ao enquadrar situaes e lanar
frases do texto para estabelecer dilogos ou confrontos, ele est oferecendo formas de
ampliar a percepo do tema e integr-lo s prprias preocupaes e interesses dos
alunos. Neste sentido, a conduo do processo se caracteriza como uma ao cultural
que equilibra momentos de identificao e estranhamento, nos quais a diferena
ganha contornos que sero produtivos, caso seja trabalhada atravs de momentos de
tenso que explicitem e ao mesmo tempo evitem possveis conflitos.
Segundo Gavin Bolton (1984), enquanto a estrutura denota a relao entre os
componentes da cena, a tenso indica a nossa experincia dessa estrutura. Nos
jogos teatrais e no drama o relacionamento estrutural que implica tenso est geral-
mente explcito: a indefinio entre recompensa e punio, a necessidade de tomar
uma deciso que envolva risco, a espera, as barreiras, os enigmas, os dilemas. A
experincia dramtica bem sucedida, afirma Bolton, quando o grupo intuitivamente
reconhece que a intensidade de uma situao reside na dificuldade de tomar uma
deciso que poder lhe ser favorvel ou no. A tenso antecede o conflito e, em drama,
sobrepe-se a ele, dado o seu carter de experincia existencial, que prioriza a din-
mica interna da uma situao em detrimento de uma possvel sequncia de aes
(esta centrada na representao).
A crena que conflito deva ser a principal fonte de tenso em drama/teatro, ou
qualquer gnero, segundo Bolton, um equvoco. Isto porque desperta prontamente
emoes que tendem a sobrepujar o pensamento e no permitem acessar recursos
de distanciamento mais sutis. Tal fenmeno particularmente observado na esfera do
trabalho em grupo, na qual a raiva se une com o sentimento de grupo para criar o que
conhecido como efeitoyahoo: um crescendo de indisciplina e barulho sob a direo
e proteo do conflito dramtico, que invariavelmente destri o drama. O conflito, uma
vez despertado, difcil de controlar, e pode facilmente espalhar limites no claros entre
o comportamento apropriado a um personagem e aquele apropriado a um participante.
J a tenso, ao ativar a energia atravs do confronto entre expectativas e limitaes,
6 Isto no significa que, dependendo da experincia e interesse do professor e dos alunos, no se possa jogar com
as possveis significaes de um texto decorado previamente. O professor dinamarqus Dan Olsen apresentou,
em uma conferncia na Inglaterra, uma experincia realizada com o texto infantil O Patinho Feio montado por
um grupo de seus estudantes e gravado em vdeo. Esta gravao foi apresentada para grupos de diversos
pases, solicitados a repetir as aes observadas e o texto traduzido, podendo retornar ao vdeo quantas vezesachassem necessrio. A observao de vrias montagens, representando as mesmas situaes e aes, revela
claras diferenas e identificaes culturais.
7/30/2019 CABRAL, Beatriz A.V. Ao cultural e teatro como pedagogia.pdf
12/14
15
implica afastar trs riscos que impedem a interao tica esttica poltica: o de
considerar a comunidade ou o grupo como uma entidade consensual com fronteiras
fixas; o de afastar a ambiguidade e considerar suas necessidades como prontamente
identificveis; o de acreditar que seus objetivos possam ser alcanados de forma isolada
e independente dos interesses da cultura dominante.
Embora questes em torno de consenso, certeza, verdade, objetividade e reali-
dade estejam bastante exploradas e questionadas na rea de cincias humanas, inclu-
sive em teatro, elas ainda pontuam, aqui e ali no processo coletivo do drama. Uma das
razes poderia estar na criao de uma identidade grupalcomo objetivo e concepo
de trabalho, pois a identidade de grupo tende a anular as diferenas e a atenuar as
desigualdades, e acaba por nivelar as especificidades individuais. Consenso torna-se
a condio sine qua non de sua eficcia. Consenso torna-se tambm uma ferramenta
eficaz no estabelecimento de habitus.
Ao Cultural e Teatro como Pedagogia: texto, tradues e ronteiras
Repetir um texto, argumenta Roberto Machado (2009), no buscar sua iden-
tidade, mas afirmar sua diferena; pensar em seu prprio nome usando o nome de
um outro, organizar seu texto a partir de um ponto de vista, de uma perspectiva que
faz o objeto estudado sofrer pequenas ou grandes tores, a fim de ser integrado s
suas prprias questes. Para Deleuze, o teatro crtico quando opera amputando,
subtraindo alguma coisa, alguns dos elementos do texto original, para fazer aparecer
algo diferente. No apenas a matria do texto, a histria original que modificada;
tambm a forma de apresenta-la, que cessa de ser representao, constituindo-se
como um teatro da no-representao. A interao sensorial com o espao, o texto e
o outro vai definir a energia em cena. Por esta perspectiva possvel perceber a iden-
tidade como diferena.
Em que medida a associao entre texto e ao cultural permite mediar esta
interao sensorial com o espao e o outro? Se no processo de criao a tensodo
contexto da fico gera a energia para a investigao cnica, as tores e amputaes
(ojogarcom a linguagem)permitem o distanciamento para perceber a relevncia do
material investigado e as formas pessoais de responder aos problemas e tenso
gerada. Est aberto o espao para a ambiguidade, a indefinio, a incerteza. Isto
porque, segundo Rancire, as palavras tm um poder de ruptura: elas embaralham aevidncia segundo a qual as coisas seriam simplesmente o que elas so. Segundo o
7/30/2019 CABRAL, Beatriz A.V. Ao cultural e teatro como pedagogia.pdf
13/14
16
autor, o mesmo acontece com a arte, pois o regime esttico da arte realiza suas possi-
bilidades essenciais ultrapassando a si mesmo, criando formas de vida.
Helen Nicholson, em editorial sobre Atos de Traduo7 ressalta que a linguagem
tanto limita quanto amplia horizontes, e que novas formas de ver, ouvir e pensar
podero ser encontradas atravs da expresso performtica de questes sociais
(2010, p. 307). Neste editorial Nicholson remete a uma palestra de Jacques Derrida
(Oxford Amnesty Lecture, 1982), na qual o filsofo chama a ateno para o relaciona-
mento entre linguagem, subjetividade e direitos humanos, e considera que estes so
sempre construdos pela linguagem e carregam as marcas de sua cultura e histrias.
Para Derrida, necessrio respeitar a cultura do outro para afirmar a prpria isto no
apenas poltico, tambm potico. Nicholson parte desta reflexo de Derrida para
apresentar um nmero temtico de RiDE8 sobre performances e experincias intercul-
turais. Atos de traduo, enfatiza Nicholson, movem ideias tericas pratica atravs
de eventos performativos.
neste sentido que uma ao cultural, no teatro como pedagogia, que tenha
como ponto de partida e se alimente de um texto literrio (dramtico ou no), contribui
para a ampliao da linguagem e da percepo esttica, mantendo a atuao ou
experincia na fronteira entre o real e o ficcional. Seguindo o famoso dictum de Witt-
genstein, os limites de minha linguagem so os limites de meu mundo, associo-o
afirmao de Rancire, para quem o poltico est na esttica, no temtico. O texto,
contextualizado, confrontado (traduzido), e transformado se afasta da explanao e
entra no campo da explorao, permitindo que a ao cultural pretendida se configure
como um processo de aproximao descontnua e no-linear do tema, uma constante
mudana de perspectivas que a aproxima da experincia esttica.
BibliograaBARTHES, R. The Pleasure of the Text. New York: Hill and Wand, 2975.
BOLTON, G. Drama as Education. London: Longman, 1984.
BOURDIEU, P.A Distino. Crtica social do julgamento.So Paulo: EdUSP,2007.
_________. O poder simblico. Rio de Janeiro/Lisboa: Bertrand Brasil/Difel, 1989.
CABRAL, B. A Esttica do Dissenso em Processos Coletivos. Ensaios em Cena.Org. CssiaNavas, Marta Isaacsson, Silvia Fernandes. So Paulo: ABRACE/CNPq, 2010.
7 Helen Nicholson, Acts of Translation, Research in Drama Education. Vol. 15, No 3, pp. 305-307. Londres:
Routledge, 2010.
8 RiDE Research in Drama Education. London, Routlege. http://www.informaworld.com, Vol 15, No 3, 2010.
7/30/2019 CABRAL, Beatriz A.V. Ao cultural e teatro como pedagogia.pdf
14/14
17
_______. Manifestos poltica e arte em performance. URDIMENTO Revista de Estudosem Artes Cnicas. Vol. 1, N. 17, set.2011.
_______. Presena e Processos de Subjetivao. Revista Brasileira de Estudos da Presena.UFRGS: Vol.1, pp. 107-120, 2011.
DAVIS, D. O bvio e o Obtuso. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 1990.
DERRIDA, J.A Escritura e a Diferena.So Paulo: Perspectiva, 2009.
DELEUZE, G. Diferena e repetio. So Paulo: Edies Graal, 2009
GREEN, Jennifer. The Morning of Her Day.London: Darf Publishers, 1990.
GIROUX, H. Os Professores como Intelectuais rumo ma pedagogia crtica da aprendizagem.Porto Alegre: Artes Mdicas, 1997.
_______. Cruzando as Fronteiras do Discurso Educacional. Porto Alegre: ARTMED.1999.
MACHADO, R. Deleuze, a arte e a filosofia. Rio de Janeiro, Zahar, 2009.
MURRAY, J. Hamlet on the Holodek The Future of Narrative in Cyberspace. New York: The
Free Press, 1997.NICHOLSON, H. Atos de Traduo. RiDE: The Journal of Applied Theatre and Performance.London: Routledge: Vol. 15, No 3, August 2010, pp. 305-307.
RANCIRE, J. The Politics of Aesthetic. Londres: Continuum, 2004
_________. A Associao entre Arte e Poltica Entrevista a Gabriela Longman e Diego Viana.Revista Cult, 139, 2010.
SILVA, T. Documentos de Identidade uma introduo s teorias do currculo.Belo Horizonte:Autntica,2005.
WOLFE, K. From Aesthetics to Politics: Rancire, Kant and Deleuze, Contemporary
Aesthetics. Vol. 4, 2006. http://quod.lib.umich.edu/c/ca