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DIREITO COMERCIAL II
DIREITO DAS SOCIEDADES
COMERCIAIS
PROF. MENEZES CORDEIRO
Faculdade de Direito de Lisboa
DISCLAIMER
Estes apontamentos não dispensam o estudo dos manuais recomendados pelo Professor Regente e Assistente.
Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
INTRODUÇÃO
Introdução ao Direito das Sociedades Comerciais
§1: ESQUEMA LEGAL DO CSC. O CSC é composto por oito partes, das
quais constam uma Parte Geral e uma Parte Especial:
1. Parte Geral
Parte Especial:
o 2. Sociedades em nome colectivo [SNC]
o 3. Sociedades por quotas [SPQ]
o 4. Sociedades anónimas [SA]
o 5. Sociedades em comandita [SEC]:
Simples
Por acções
o 6. Sociedades coligadas
7. Disposições penais e contra-ordenacionais
8. Disposições finais e transitórias
§2: SOCIEDADES COMERCIAIS. As sociedades comerciais praticam
maioritariamente actos comerciais [art. 1º-3] e são comerciantes, ao invés das
sociedades civis sob forma comercial [art. 1º-4], que têm exclusivamente por
objecto a prática de actos não comerciais, ainda que adoptem um dos tipos
referidos no art. 1º-2.
§3: RESPONSABILIDADE DOS SÓCIOS. O regime da responsabilidade
constitui um importante elemento de distinção entre os tipos de sociedades:
Sociedades civis: arts. 980º ss CC
o Pelas dívidas da sociedade respondem [art. 997º CC]:
1. O património social
2. O património dos sócios, solidariamente
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Fala-se, a este propósito, de um benefício da excussão prévia: os sócios
nada pagam enquanto sobejar património social que responda pelas dívidas da
sociedade.
Sociedades comerciais: poderá haver responsabilidade limitada ou
não, consoante o tipo social em causa.
o Nas SNC o sócio responde nos termos do art. 175º-1 – não há
responsabilidade limitada:
Individualmente pela sua entrada.
Subsidiariamente pelas obrigações sociais em relação à
sociedade.
Solidariamente com todos os outros sócios.
o Nas SPQ o sócio responde nos termos do art. 197º-1:
Pelas entradas:
1. O sócio responde somente pela sua entrada,
já que a responsabilidade é limitada – nunca
responde com o seu património pessoal.
2. Os outros sócios respondem solidariamente
por todas as entradas convencionadas no
contrato social, nos termos do art. 207º.
Perante os credores sociais:
1. Regra geral: só o património social responde
para com os credores pelas dívidas da
sociedade [art. 197º-3] – se, no património
social, nada sobrar, os credores sociais nada
recebem [vs art. 997º CC].
2. Pode haver responsabilidade directa dos
sócios para com os credores sociais [art. 198º].
o Nas SA o sócio responde nos termos do art. 271º:
Pelo valor das acções que subscreveu.
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Nunca responde perante os credores, face a dívidas da
sociedade, ao contrário das excepções que se verificam
nas SPQ [art. 198º], mas tão-só internamente, pela sua
entrada [vs art. 997º CC].
o Nas SEC os dois tipos de sócios respondem nos termos do art.
465º:
Sócios comanditários:
Respondem apenas pelas suas entradas nos
mesmos termos que os sócios das SA. Nunca
respondem pelas dívidas sociais [vs art. 997º
CC].
Sócios comanditados:
Respondem pelas dívidas da sociedade nos
mesmos termos que os sócios da SNC [cfr.
supra]. Não há qualquer responsabilidade
limitada.
§4: PARTICIPAÇÕES SOCIAIS, CAPITAL E TRANSMISSÃO DE
PARTICIPAÇÕES. Ante o conceito de participação social, cumpre tecer
determinadas considerações preliminares.
Quanto à designação do capital social entre os sócios de cada sociedade:
SNC: “partes do capital” [art. 176º-1c]
SPQ: “quotas” [art. 197º]
SA: “acções” [art. 271º]
O capital social não é um elemento essencial do contrato de sociedade [art.
9º-1f] uma vez que não consta dos contratos das SNC em que todos os sócios
apenas contribuam com a sua indústria. Os sócios de indústria estão adstritos a
prestações de facere e, como tal, não vêem o valor das suas entradas computado
no capital social [art. 178º].
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Em termos materiais, o capital social equivale ao conjunto das entradas a
que diversos sócios se obrigam. Cumpre reter os seguintes termos:
“Subscrição” de capital: vinculação às entradas
“Realização” do capital: concretização/cumprimento das entregas
Em termos contabilísticos, o capital social exprime uma cifra ideal que
representa as entradas estatutárias. Poderá estar já dissociado com o património
real da sociedade ou com o valor de mercado da mesma.
O capital estatutário ou nominal consiste no valor que consta dos estatutos e
que traduz o conjunto das entradas dos sócios. O capital real ou financeiro, por seu
lado, é expressão dos capitais próprios ou dos valores de que a sociedade disponha,
como seus.
No caso das SA, o valor nominal mínimo do capital é € 50.000 [art. 276º-3],
dividido em acções por vários sócios. Diferentemente, nas SPQ o valor nominal
mínimo do capital é de € 5.000 [art. 201º e 202º-2], dividido em quotas.
Constituem sociedades de capitais:
SPQ
SA
SEC por acções
Constituem sociedades de pessoas:
SNC
SEC simples
Quanto à transmissão das acções nas SA, cumpre reter a seguinte distinção:
Acções ao portador [anónimas]: livremente transmissíveis, sem
qualquer consentimento da sociedade e de forma ilimitada [art. 328º-
1].
Acções nominativas [das quais consta o nome do sócio que as
subscreve]: a sua transmissão pode ser subordinada ao
consentimento da sociedade [art. 328º-2a].
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Nas SPQ a cada sócio corresponde apenas uma quota, ainda que essa possa
ser maior ou menor. Essa quota não é livremente transmissível, já que depende de
consentimento da sociedade [art. 228º-2 e 229º].
Face à distinção supra, facilmente se compreende que nas SNC, tipicamente
sociedades de pessoas, as acções sejam transmissíveis apenas mediante
consentimento unânime de todos os sócios [art. 182º-1].
§5: ÓRGÃOS COMUNS ÀS SOCIEDADES COMERCIAIS. Constituem órgãos
comuns aos quatro tipos de sociedades comerciais:
Administração:
o Gestão interna
o Representação
Assembleia-geral
Eventualmente, constará dos estatutos um órgão de fiscalização, ainda que
prescindível, face à função do Revisor Oficial de Contas [doravante, ROC].
CAPACIDADE E OBJECTO
Capacidade e Objecto
§1: CAPACIDADE. Por capacidade jurídica entende-se a concreta medida
dos direitos e deveres de que as pessoas são susceptíveis. No âmbito comercial,
essa capacidade reconduz-se à concreta medida dos direitos e das obrigações
necessárias ou convenientes à prossecução dos fins da sociedade [art. 6º-1, 1ª
parte], segundo o tradicional princípio da especialidade [com as reservas infra].
Os fins da sociedade, conforme indiciados supra, podem ser:
Mediatos: vg lucro
Imediatos: objecto da sociedade [cfr. infra §2]
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A capacidade encontra-se limitada pelos direitos e pelas obrigações
necessários ou convenientes à prossecução do seu fim mediato, o lucro, com a
seguinte ressalva:
Tradicionalmente, o objecto [a actividade desenvolvida pela sociedade, cfr.
infra §2] delimitava a capacidade da sociedade, em virtude do princípio da
especialidade: para as pessoas singulares, a capacidade jurídica seria plena; quanto
às pessoas colectivas, a sua capacidade apenas abrangeria os direitos e obrigações
necessários ou convenientes à prossecução dos seus fins [art. 160º CC e 6º-1].
Hoje, esse princípio encontra-se superado, não tendo alcance dogmático: a sua
consagração legal no CC fora, todavia, tardia. A capacidade de gozo das pessoas
colectivas não é, ainda assim, idêntica à das pessoas singulares [capacidade plena],
já que pode sofrer limitações:
Ditadas pela natureza das coisas [direitos e obrigações “inseparáveis
da personalidade singular”, art. 6º-1, 2ª parte] – vg casamento e
perfilhação.
Legais [direitos e obrigações “vedados por lei à sociedade”, art. 6º-1]
– vg uso e habitação.
Estatutárias
Deliberativas
As associações e fundações foram inicialmente concebidas com fins
desinteressados, versus o escopo lucrativo das sociedades: hoje, a contraposição
não é clara, já que as pessoas colectivas tendem para a “neutralidade”. Exige-se,
tão-só, a transparência dos seus actos e a prestação de contas devidamente
publicitada.
Quanto aos actos gratuitos [exclusive donativos conformes com os usos
sociais, que não são havidos como doações - art. 940º-2 CC e, no mesmo sentido,
art. 6º-2], a prática de doações ou actuações non profit é, hoje, uma verdadeira
“indústria”, por parte de instituições lucrativas. Nenhuma razão se visualiza, por
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isso, para considerar as doações fora da capacidade de qualquer pessoa colectiva,
visto que o fim mediato pode ser o mesmo: o lucro.
Quanto à prestação de garantias a terceiros, essa prestação poderia surgir
como um “favor” e, portanto, como um acto gratuito. Pode, ainda assim, ser uma
actividade lucrativa, como àquela desenvolvida pelos bancos que prestam garantias
a troco de comissões. O art. 6º-3 proíbe, pura e simplesmente, a sociedade de
prestar garantias, salvo “justificado interesse próprio” da sociedade garante e da
sociedade em relação de domínio ou de grupo. Estas “excepções” são tão
abrangentes que acabam por consumir a regra, uma vez que o “justificado
interesse próprio” é definido pela própria sociedade, nos termos gerais do Direito
privado. MENEZES CORDEIRO conclui que esta proibição apenas funciona perante
situações escandalosas e havendo má fé dos terceiros beneficiários.
§2: OBJECTO. O objecto [art. 11º], por seu lado, designa as actividades
exercidas pela sociedade: sejam elas actividades principais, secundárias ou
acessórias. Trata-se de um dos elementos essenciais que devem constar do
contrato de sociedade [art. 9º-1d].
Numa ilustração de dois círculos concêntricos, o objecto seria o círculo mais
pequeno, dentro de um círculo maior e mais abrangente: a capacidade. Por outras
palavras, o objecto não limita a capacidade [art. 6º-4], pelo que um acto praticado
fora do âmbito das actividades a desenvolver pela sociedade [fora do objecto,
enfim] não viola a capacidade da mesma. Retomando a conclusão supra §1, a
capacidade encontra-se limitada pelo lucro, mas não pelo objecto.
Uma violação do objecto da sociedade é, por exemplo, a sociedade de
restauração que arrenda um imóvel para aí instalar uma loja de desporto: o escopo
é, ainda, lucrativo [está dentro da capacidade, enfim, ou do seu fim mediato que é
o lucro], embora viole manifestamente o objecto da mesma – a actividade de
restauração prosseguida.
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§3: ACTOS E DELIBERAÇÕES FORA DA CAPACIDADE. Os actos
[praticados por elementos do órgão de administração, vg] não se confundem com
as deliberações [necessariamente dos sócios]. A distinção é pertinente, já que
releva para os diferentes regimes aplicáveis às duas realidades:
Os actos praticados pelo órgão de administração fora da capacidade
da sociedade são nulos, nos termos do art. 280º CC, por
impossibilidade, segundo MENEZES CORDEIRO. Outros autores
solucionam a questão com recurso ao art. 294º CC, por contrariedade
à lei.
As deliberações tomadas pelos sócios fora da capacidade da
sociedade são anuláveis, segundo MENEZES CORDEIRO, nos termos
do art. 56º-1c) [veja-se a querela doutrinária quanto à ratio legis do
preceito, que estudaremos com mais detalhe infra]. Outros autores
também sustentam a anulabilidade das deliberações sociais, embora
o façam com recurso ao disposto no art. 56º-1d).
§4: ACTOS E DELIBERAÇÕES DENTRO DA CAPACIDADE, MAS FORA DO
OBJECTO. Questão diversa é aquela que se coloca quando o acto do órgão de
administração ou a deliberação dos sócios se encontra dentro da capacidade da
sociedade, embora viole o objecto [actividades prosseguidas] da mesma.
Os actos praticados pelo órgão de administração dentro da
capacidade, mas fora do objecto, são válidos, já que o objecto não
limita a capacidade [art. 6º-4]. Pergunta-se se são, todavia, eficazes:
o SNC: ineficazes, salvo confirmação unânime dos sócios [arts.
268º CC e 192º-2 e 3].
o SPQ: eficazes, salvo terceiro de má fé [desconhecimento com
culpa da violação do objecto da sociedade, pelo acto: art.
260º-2 e 3, com exigências de publicidade face à necessidade
de tutela do tráfego jurídico].
o SA: eficazes, salvo terceiro de má fé [art. 409º-2].
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As deliberações tomadas pelos sócios dentro da capacidade, mas
fora do objecto, são anuláveis nos termos da cláusula geral do art.
58º-1a), já que se trata de violação de disposições do contrato de
sociedade – art. 9ºd).
Para além destas consequências, a violação do dever de não exceder o
objecto social ou de não praticar actos que excedam esse objecto, pelos órgãos da
sociedade [art. 6º-4], acarreta responsabilidade civil dos mesmos nos termos dos
arts. 72º ss e justa causa de destituição dos administradores.
exemplo:
A Sociedade X, Lda, tem como objecto social a produção e comercialização
de pães. Achando o negócio pouco lucrativo, a sociedade iniciou um negócio de
tecnologias da informação, adquirindo um site na Internet dedicado à compra e
venda de roupa.
A capacidade das sociedades comerciais corresponde ao seu
fim mediato: o lucro [art. 6º1].
A aquisição de um site na Internet, pelos administradores, é
um acto e não uma deliberação dos sócios, e encontra-se
dentro da capacidade da sociedade, já que prossegue,
também ele, o lucro. O acto não respeita, contudo, o objecto
da sociedade, mas é, ainda assim válido: art. 6º-4, o objecto
não limita a capacidade.
Pergunta-se se o mesmo será, todavia, eficaz: face à firma “X,
Lda”, trata-se de uma SPQ, cujo regime determina que o acto
é ainda eficaz, salvo má fé de terceiro [art. 260º-2 e 3]:
desconhecimento sem culpa da violação do objecto da
sociedade, pelo acto.
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Tendo sido violado o dever de não exceder o objecto social
[art. 6º-4], os administradores são responsabilizados nos
termos dos arts. 72º ss, por responsabilidade civil, podendo
eventualmente ser destituídos desse órgão social.
exemplo:
A Sociedade X, SA, é titular de uma plataforma petrolífera há muito
desactivada, que pretende destruir e afundar. Associações ambientalistas
manifestaram-se contra a catástrofe ambiental, e iniciaram um movimento de
boicote à Sociedade X, SA. A sociedade decidiu cancelar o afundamento da
plataforma e fazer uma grande doação à associação ambientalista, que foi
largamente publicitada nos jornais.
A gratuidade de uma doação da Sociedade X a uma
associação ambientalista, poderia levar-nos a considerá-la um
acto fora da capacidade da sociedade, já que não prossegue,
aparentemente, o “fim” por excelência das sociedades
comerciais: o lucro [art. 6º-1].
Todavia, a avultada doação em causa fora celebrada, na
verdade, com o fim de repor a boa imagem da Sociedade X,
trazendo-lhe benefícios a posteriori com a divulgação do acto
gratuito nos media. Trata-se de uma doação interessada,
necessária ou conveniente, direccionada para o lucro: há
identidade valorativa entre essa doação e qualquer outro
acto lucrativo, ainda que oneroso.
Bastar-nos-ia o disposto no art. 6º-1 para concluirmos que o
acto visa o lucro, e se encontra dentro da capacidade da
Sociedade X, embora o nº 2 concretizasse esse entendimento.
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O acto é válido e não houve qualquer violação de deveres por
parte dos administradores.
O CONTRATO DE SOCIEDADE
Celebração e Conteúdo
§1: CELEBRAÇÃO. O contrato de sociedade é um contrato nominado e
típico, face à previsão legal constante dos arts. 980º ss CC e das disposições do
CSC.
Segundo o art. 7º-2, o número mínimo de partes para a celebração do
contrato de sociedade é duas partes: sublinhe-se que a contitularidade de acções
ou quotas é considerada uma única parte, e que podem ser parte quer as pessoas
singulares, quer as pessoas colectivas [maxime no caso das SGPS – Sociedades
Gestoras de Participações Sociais].
Constituem excepções a esta regra geral as SA [numero mínimo de cinco
accionistas, art. 273º] e as Sociedades Unipessoais [SU]. Pergunta-se, a este
respeito, se uma SA poderá ser uma SU: em teoria poderá sê-lo temporariamente,
se todos os sócios falecerem e apenas sobreviver um, vg.
O contrato de sociedade é um verdadeiro negócio jurídico, já que implica
liberdade de celebração e de estipulação [MENEZES CORDEIRO].
Os elementos voluntários necessários que devem constar do contrato de
sociedade são os seguintes:
Denominação ou firma
Sócios
Capital social
Partes sociais
Sede
Tipo [art. 1º-2]
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O pacto social [estatutos ou disciplina da sociedade] é parte integrante do
contrato de sociedade proprio sensu.
A celebração de um contrato de sociedade pode também decorrer de uma
oferta ao público, vg se for constituída uma SA com apelo à subscrição pública [arts.
279º ss].
§2: CONSTITUIÇÃO DE SOCIEDADE ENTRE CÔNJUGES. Segundo o
pensamento tradicional, a constituição de uma sociedade entre cônjuges poderia
pôr em causa o regime de bens estipulado para o casamento e o regime geral de
responsabilidade dos bens dos cônjuges pelas dívidas de cada um ou de ambos, já
que as regras desses regimes seriam substituídas pelas regras constantes dos
estatutos da sociedade. Para mais, e face à contextualização histórica da discussão,
o “poder marital”, conforme consagrado na versão originária do Código Civil de
1966, poderia dar lugar a esquemas de formação da vontade social, mais
igualitários e, na época, inadmissíveis.
Nesse sentido, o art. 1714º CC prevê:
#1: Princípio da imutabilidade das convenções antenupciais, não
sendo permitido alterar os regimes de bens convencionados.
#2: Essa proibição abrange todos os contratos de compra e venda e
de sociedade celebrados entre os cônjuges, excepto quando
separados judicialmente
o Esta proibição seria absoluta e acarretaria a nulidade dos
contratos de sociedade eventualmente celebrados entre os
cônjuges.
#3: É lícita a participação dos dois cônjuges na mesma sociedade de
capitais, bem como a dação em cumprimento.
o Face a esta norma, colocou-se o problema se as SPQ seriam
sociedades de capitais. ANTUNES VARELA considerou que as
SPQ não se encontravam abrangidas nem pela letra do nº 3,
nem pelo espírito de todo o art. 1714º CC.
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Inversamente, o art. 8º do CSC [em vigor desde 1986] consagrou:
#1: É permitida a constituição de sociedades entre cônjuges, bem
como a participação destes em sociedades, desde que apenas um
deles assuma a responsabilidade ilimitada [resíduo histórico do CSC].
o Esta norma aplica-se também às sociedades civis puras.
Nestes termos, MENEZES CORDEIRO e PEREIRA COELHO consideram que
a entrada em vigor do art. 8º-1 fez com que o art. 1714º-2 e 3 CC fosse revogado.
Mantém-se, contudo, o princípio da imutabilidade das convenções antenupciais [art.
1714º-1 CC], cuja compatibilidade com o art. 8º-1 deve ser verificada caso a caso, e
contrato a contrato: será inadmissível a entrada de ambos os cônjuges para uma
sociedade com todos os seus bens, vg. Já a subscrição de pequenas quotas e de
algumas acções por ambos os cônjuges não parece desrespeitar esse princípio.
Se uma participação social for comum a ambos os cônjuges, será
considerado sócio aquele que tenha celebrado o contrato de sociedade, nos termos
do art. 8º-2.
§3: CAPACIDADE PARA CONSTITUIÇÃO DE UMA SOCIEDADE. Os
menores podem ser partes em contratos de sociedade, desde que o celebrem
através dos pais, enquanto seus representantes legais, e com autorização bastante
do tribunal [no caso de constituição de uma SNC ou SEC, simples ou por acções –
art. 1889º-1d) CC]. Poderão fazê-lo, pessoal e livremente, sempre que o objecto da
sociedade esteja ao seu alcance [recorde-se o teor do art. 127º CC]: a denominada
“incapacidade” dos menores é aparente, segundo MENEZES CORDEIRO, face às
excepções legalmente previstas que consomem a regra.
O mesmo regime é aplicável, mutatis mutandis, ao interdito [arts. 139º ss
CC]. Quanto ao inabilitado, a capacidade para constituição de uma sociedade
depende de sentença [art. 153º-1 CC].
§4: FORMA. O contrato de sociedade é um contrato formal, nos termos do
art. 7º-1: tem que ser reduzido a escrito e as assinaturas dos subscritores carecem
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de reconhecimento presencial, salvo se forma mais solene for exigida para a
transmissão dos bens com que os sócios entram para a sociedade. Assim, no caso
de transmissão de bem imóvel, o contrato deve ser celebrado mediante escritura
pública.
O regime comercial é distinto do regime civil, já que a celebração do
contrato de sociedade civil obedece ao princípio de liberdade de forma, tratando-se
de um contrato consensual [arts. 981º-1 e 219º CC].
§5: NATUREZA. Para uns, o “contrato” de sociedade não seria um contrato
proprio sensu e teria uma natureza específica, não-contratual:
As declarações de vontade são idênticas e confluentes, e não
contrapostas.
Os efeitos repercutem-se numa nova e terceira entidade, a
sociedade, e não nas esferas jurídicas dos intervenientes.
Admite-se a constituição de sociedade por acto unilateral, com um
único declarante.
Todavia, o CSC refere, continuamente, a expressão “contrato”. Como já
indiciámos supra §1, a natureza negocial da constituição de uma sociedade
comercial é demonstrada pela existência das duas liberdades [celebração e
estipulação]. Mas o contrato de sociedade não pode ser considerado um contrato
comum, já que tem especificidades de regime:
É dispensável nas sociedades inicialmente unipessoais [art. 270ºA-4]
– SU.
O seu regime prevê invalidades sanáveis por [meras] deliberações
maioritárias [arts. 42º-2 e 43º-3] e invalidades que não são oponíveis
erga omnes, mas apenas aos demais sócios [art. 41º-2, 2ª parte].
Face ao que foi exposto conclui-se: trata-se de um contrato, embora não
implique quaisquer prestações recíprocas. Como tal, a doutrina sugere
frequentemente os designativos de “contrato de colaboração” ou de “contrato de
organização”.
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
§6: CONTEÚDO. O conteúdo do contrato de sociedade é constituído pela
regulação jurídica conforme delimitada pelas partes e pelos elementos essenciais
que depreendem o regime fixado. São elementos do contrato [art. 9º]:
Nomes ou firmas [tratando-se de pessoa colectiva] dos sócios
fundadores
Tipo
Firma [*]
Objecto
Sede [*]
Capital social
Quota de capital e a natureza da entrada de cada sócio [*]
Descrição dos bens e especificação dos valores
(…)
Quanto às sociedades em especial:
SNC: art. 176º
SPQ: art. 199º
SA: art. 272º
SEC: art. 446º
Os elementos do contrato podem constar implicita ou explicitamente,
embora MENEZES CORDEIRO sublinhe a necessidade de figurarem com suficiente
clareza.
A ausência de algum dos elementos necessários supra implica a invalidade
do contrato [art. 42º-1], ainda que a mesma seja sanável por deliberação dos
sócios, nos mesmos termos prescritos para a alteração do contrato, nos casos de
falta de menção de firma, sede e valor das entradas e das prestações [art. 42º-2]. A
contrario sensu, a falta de menção do objecto, capital social e tipo de sociedade
implica nulidade insusceptível de sanação. As nulidades sanáveis encontram-se
assinaladas supra - [*].
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§7: EFEITOS. O contrato de sociedade origina, pelo registo, um ente
colectivo personalizado, pelo que produz efeitos erga omnes:
Perante os novos sócios
Perante terceiros estranhos
Perante os credores da sociedade
§8: FIRMA. Face ao disposto no art. 10º, cumpre recordar os princípios
gerais constantes do RNPC:
Autonomia privada [com os limites do art. 10º-5b]
Obrigatoriedade e normalização [art. 9º-1c]
Verdade e exclusividade [art. 10º-2 e 5a]
Estabilidade
Novidade [art. 10º-3]
A firma deve exprimir o tipo de sociedade em causa, nos termos seguintes:
SNC: “e Cª” [art. 177º]
SPQ: “Lda.” [art. 200º]
SA: “SA” [art. 275º]
SEC: “em/& comandita” [art. 467º]
§9: SEDE. A sede deve ser estabelecida em local concretamente definido
[art. 12º], por razões elementares de polícia, fiscais e comerciais.
Segundo o disposto no art. 13º constituem formas locais de representação:
Sucursais
Agências
Delegações
§10: DURAÇÃO DA SOCIEDADE. A regra que o CSC fixa supletivamente
para a duração da sociedade, é a da sua duração por tempo indeterminado [art.
15º]. As partes podem convencioná-lo por remissão para:
Termo certo: 10 anos ou até 2018, vg.
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
Termo incerto: até à conclusão de uma obra, ou até ao falecimento
de um dos sócios fundadores, vg.
SOCIEDADES EM FORMAÇÃO E SOCIEDADES IRREGULARES
Sociedades em Formação
§1: PROCESSO DE FORMAÇÃO DAS SOCIEDADES. O contrato de
sociedade é sempre precedido de um processo de formação tendencialmente
moroso. Nestes termos, a expressão “sociedade em formação” designa as situações
prévias à conclusão do contrato.
§2: “EMPRESA NA HORA”. O DL 111/2005 consagrou o regime especial de
constituição imediata de sociedades. Essa constituição permite, através de
atendimento presencial único, um prazo de tramitação de cerca de 24h [art. 5º DL
111/2005], facto que justifica a designação de processo de constituição de
“empresa na hora”, como apelidado pelo próprio preâmbulo do diploma.
Este regime especial só se aplica a SPQ ou a SA cujo capital seja realizado
com recurso a entradas em dinheiro [arts. 1º e 2º b DL111/2005].
A tramitação em 24h é possível graças à existência de uma bolsa de firmas
[arts. 3ºa) e 15º DL 111/2005] e de estatutos de modelo pré-aprovados [art. 3º b)
DL 111/2005].
São aplicáveis a este regime as disposições gerais sobre o contrato de
sociedade, registo comercial e publicação, conforme estudaremos infra.
§3: FASES DO PROCESSO DE FORMAÇÃO. São geralmente apontadas
três fases do processo de formação das sociedades comerciais, eventualmente
antecedidas por uma outra, a que designaremos “fase zero”:
[ Fase zero: registo prévio, se apresentado o devido requerimento,
art. 18º ]
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
1ª Fase: celebração do contrato de sociedade com observância da
forma legalmente prescrita [art. 7º-1]
2ª Fase: registo, definitivo se verificada a “fase zero” [art. 5º]
3ª Fase: publicações obrigatórias [art. 167º]
§4: NEGÓCIOS EVENTUAIS. Acessoriamente às fases do processo de
formação, conforme indicadas supra §3, podem as partes celebrar negócios
eventuais:
Acordos de princípios [remete para a figura da contratação mitigada]
Promessa de sociedade [as partes obrigam-se a celebrar o contrato
de sociedade]
Negócios instrumentais preparatórios [vg promessas de subscrição,
apoio logístico, etc]
Acordos de subscrição pública [art. 279º]
Acordos de funcionamento da sociedade antes da celebração do
registo definitivo [figura que remete para o estudo das sociedades
irregulares, infra].
§5: CULPA IN CONTRAHENDO. É pacífico que durante todo o processo de
formação de uma sociedade as partes devam observar as regras da boa fé, maxime
quanto ao instituto da culpa in contrahendo [art. 227º CC], por violação dos
seguintes deveres:
Deveres de segurança
Deveres de lealdade
Deveres de informação
A violação destes deveres acarreta responsabilidade obrigacional [arts. 798º
ss CC], por se tratarem de obrigações específicas e não de deveres genéricos.
Sociedades Irregulares por Incompleitude
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
§1: SITUAÇÕES PRÉ-SOCIETÁRIAS. Frequentes são as situações em que
os sócios, antes de completado o processo de constituição de uma sociedade,
iniciam a actividade visada por esta. Nestes casos, observa-se o funcionamento da
realidade societária, antes de plenamente constituída pelo registo [arts. 36º a 41º].
§2: SOCIEDADES IRREGULARES. Tradicionalmente, a terminologia
“sociedades irregulares” designava as sociedades “não-existentes” ou totalmente
nulas. Mais tarde, o termo passou a designar as sociedades sem personalidade
jurídica [plena]. Essa realidade abrangeria:
Sociedades com vício de forma
Sociedades de facto
Sociedades com vícios constitutivos
Sociedades irregulares por incompleitude
Constituem circunstâncias comuns às sociedades irregulares:
Não-conclusão do processo formativo [pressupõe acordo solene e
registo definitivo].
Efectiva presença de uma organização societária em funcionamento,
com relações actuantes entre os sócios interessados ou com
terceiros.
Conclui-se: trata-se de realidades efectivamente existentes e operantes que
não devem ser tratadas com indiferença pelo Direito.
Em sede de Direito das Sociedades, estudaremos mais aprofundadamente
as sociedades irregulares por incompleitude, infra §3 ss.
§3: SOCIEDADES IRREGULARES POR INCOMPLEITUDE. As sociedades
irregulares por incompleitude consistem em sociedades cujo processo constitutivo
não está ainda concluído, designadamente por falta de matrícula ou de inscrição no
registo. A noção “sociedade irregular” só encontra eco no CSC através da
conjugação de disposições legais como os arts. 172º, 173º-1 e 174º-1e) [“sociedade
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
irregular por falta de forma ou de registo”]. A falta de registo impede a
personalização plena, enfim.
Neste seio, podemos distinguir:
Relações anteriores à celebração do contrato de sociedade, art. 36º.
Pré-sociedade depois do contrato e antes do registo, arts. 37º a 40º:
o Relações internas [entre sócios] – art. 37º
o Relações externas [com terceiros] – arts. 38º a 40º
§4: RELAÇÕES ANTERIORES AO CONTRATO. No âmbito das sociedades
irregulares por incompleitude que celebrem relações anteriores à celebração do
contrato de sociedade [com observância da forma legalmente prescrita, art. 7º],
aplica-se o disposto no art. 36º.
Uma primeira leitura do art. 36º poderia levar-nos a concluir pela seguinte
delimitação radical:
#1: aplicar-se-ia às situações de sociedades materiais [aparência
total de sociedade], nas quais não existe qualquer acordo entre os
participantes, nem intenção de celebrar o contrato de sociedade [vg
inexistência de património comum].
o Sociedades materiais: situações que, no campo da
materialidade, correspondem a contribuições de bens ou de
serviços, feitas por duas ou mais pessoas, para o exercício em
comum de certa actividade económica. Essas contribuições
transcendem a mera fruição e estão orientadas à repartição
dos lucros daí resultantes [art. 980º CC]. Falta, para tais
situações, qualquer contrato ou outro título legitimador.
o A solução das restituições em espécie ou in natura, pela
pseudo-sociedade a todos os terceiros contraentes, seria, por
vezes, impossível e manifestamente injusta.
o Solução legal: responsabilidade solidária e ilimitada.
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
#2: aplicar-se-ia às situações que prefigurassem já um acordo
tendente à constituição de uma sociedade comercial, embora o
contrato não tenha sido ainda celebrado com observância da forma
legalmente prescrita [existiria já uma intenção de celebrar o contrato
– vg contrato-promessa de constituição da sociedade].
o O tipo de acordo exigido pode ser simples e incipiente, já que
a lei não requer qualquer promessa de celebração do contrato
de sociedade definitivo. O essencial é que a actividade
societária tenha já iniciado.
o Solução legal: aplicação das regras das sociedades civis
art. 997º CC - pelas dívidas sociais respondem:
1º: o património da sociedade;
2º: os sócios, pessoal e solidariamente, com
benefício de excussão [nº 2].
MENEZES CORDEIRO considera que a distinção legal supra é, do ponto de
vista dos terceiros contraentes, irrelevante: em qualquer caso, os terceiros apenas
estão convictos da existência da sociedade, sendo-lhes inacessível a intenção dos
“sócios” em celebrar o contrato em falta. Para mais, a remissão para o regime das
sociedades civis, prevista para a segunda situação [nº 2], é mais adequada a
assegurar níveis superiores de tutela. Acrescem a esta remissão, todavia, os
elementos próprios da tutela da aparência ou da confiança, maxime quanto à
confiança objectivamente justificada e quanto à verificação da boa fé subjectiva
ética dos confiantes a tutelar [desconhecimento, sem culpa, da natureza
meramente aparente da sociedade, recorde-se].
Nota: os pressupostos investimento de confiança e de imputação dessa
confiança podem ser dispensados, já que nos encontramos perante uma previsão
legal expressa de tutela.
Face à solução legal prevista para o art. 36º-2, 2ª parte, a doutrina divide-se
quanto à qualificação da sociedade em causa: trata-se de uma sociedade civil
[FERRER CORREIA] ou de uma sociedade comercial [COUTINHO DE ABREU]?
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
MENEZES CORDEIRO entende que essa “sociedade” não pode ser comercial, face
à tipicidade fechada constante do art. 1º-2. A haver elementos suficientes para se
falar em sociedade proprio sensu, ela será, quanto muito, civil. Tal não impede que
sejam comerciais os actos praticados pelos intervenientes, em nome e por conta da
“sociedade”.
exemplo:
I, J e L reúnem-se e combinam constituir uma SPQ que teria por objecto a
compra e venda de antiguidades. Acordaram que a sociedade se designaria
“Antiguidades, Lda” e que a escritura pública seria celebrada em Março, quando
todos os pormenores tivessem sido acordados.
Em Fevereiro, os sócios celebraram um contrato de arrendamento com M,
em nome da sociedade, para que no imóvel funcionasse a sede da mesma.
Compraram diversos equipamentos a N, também em nome da sociedade.
Deparamo-nos com uma sociedade irregular por
incompleitude, antes da celebração do contrato de sociedade
[por escritura pública, no caso, nos termos do art. 7º-1, 2ª
parte – indiciando ter havido contribuição de bens imóveis por
um dos sócios].
Aplica-se, pois, o disposto no art. 36º, quanto às relações
anteriores à celebração do contrato de sociedade, observada
a forma legal [art. 7º].
Verificam-se os pressupostos de aplicação desse regime: dois
ou mais indivíduos, através do uso de uma firma comum [no
caso], assumiram relações contratuais antes da celebração do
contrato de sociedade. MENEZES CORDEIRO acrescenta a
estes pressupostos de aplicação os elementos próprios da
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
tutela da aparência ou da confiança. Considera irrelevante a
distinção entre a falsa aparência total de sociedade [nº 1] e o
acordo tendente à constituição da sociedade [nº 2], já que os
terceiros apenas estão convictos da existência da sociedade,
sendo-lhes inacessível a intenção dos “sócios” em celebrar o
contrato em falta. Por outro lado, a remissão para o regime
das sociedades civis, prevista para a segunda situação [nº 2],
é mais adequada a assegurar níveis superiores de tutela do
que a responsabilidade solidária e ilimitada prevista no nº 1.
No caso, cremos estar subjacente um verdadeiro acordo de
constituição de uma SA, já que os sócios apenas iniciaram a
sua actividade um mês antes da celebração do contrato,
altura em que a sociedade já tinha firma e sede. De todo o
modo, o regime deve ser o mesmo para os casos de “falsa
aparência” [nº 1] e de acordo de constituição de sociedade
[nº 2], segundo propugna MENEZES CORDEIRO, pelo que a
distinção é, neste âmbito, irrelevante. O autor propõe a
harmonização das duas normas, alargando a tutela do nº 1 a
fim de responsabilizar:
o 1. O património da sociedade, em primeiro lugar [se já
existir]
o 2. Os sócios, solidariamente
Essa é, aliás, a solução consagrada no nº 2, ao remeter para
as disposições sobre sociedades civis [art. 997º CC: com
benefício de excussão prévia].
Se não existisse qualquer património comum, aplicar-se-ia o
disposto no nº 1: responsabilidade dos “sócios”, solidária e
ilimitada. Existindo um património comum, sejam as relações
resultantes de falsa aparência ou de acordo de constituição
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
de sociedade, aplica-se o disposto no nº 2, nos termos
explicitados supra.
§5: PRÉ-SOCIEDADE DEPOIS DO CONTRATO E ANTES DO REGISTO.
Havendo contrato [celebrado com observância da forma legalmente prescrita, art.
7º-1], as relações entre os sócios estão já precisadas. À sociedade falta apenas
personalidade jurídica [plena] que, nos termos do art. 5º, apenas surge com o
registo definitivo [efeito constitutivo do registo, com ressalvas infra, a que
oportunamente aludiremos]. Antes do registo, não há qualquer responsabilidade
limitada. Cumpre reter a seguinte distinção, plasmada no texto legal:
Relações internas [entre sócios] – art. 37º:
o #1: aplicam-se as regras previstas no contrato e as regras
legais correspondentes ao respectivo tipo de sociedade,
mutatis mutandis, salvo aquelas que pressuponham o contrato
definitivamente registado.
o #2: a transmissão das participações sociais por acto inter
vivos e as modificações do contrato requerem sempre o
consentimento unânime de todos os sócios.
Razões: a personalidade [plena] surge apenas com o
registo e, até lá, há um mero contrato que só por
mútuo consentimento pode ser modificado [art. 406º-1
CC] – admitir alterações por maioria poderia:
Prejudicar os sócios minoritários
Tornar de difícil precisão o momento da eficácia
das modificações
Este é, para mais, um esquema compulsório destinado
a efectivar a realização do registo.
Relações externas [com terceiros] – arts. 38º a 40º: o CSC procede a
um tratamento diferenciado, consoante o tipo de sociedade em
causa.
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
o Sociedades de pessoas:
art. 38º: SNC – pelos negócios respondem solidária e
ilimitadamente todos os sócios, presumindo-se o
consentimento. MENEZES CORDEIRO considera que o
regime deve ser o do art. 997º CC, aliado ao benefício
da prévia excussão do património social.
art. 39º: SEC simples – pelos negócios que tenham sido
autorizados pelos sócios comanditados, respondem
pessoal e solidariamente todos os sócios, presumindo-
se o consentimento dos sócios comanditados. Não
havendo autorização, respondem pessoal e
solidariamente todos aqueles que realizaram ou
autorizaram esses negócios [nº3]. Uma vez mais, por
razões de coerência valorativa, MENEZES CORDEIRO
considera que o regime deve ser o do art. 997º CC,
aliado ao benefício da prévia excussão do património
social.
o Sociedades de capitais:
art. 40º: SA, SPQ e SEC por acções – pelos negócios
celebrados respondem ilimitada e solidariamente todos
aqueles que intervenham no negócio em representação
da pré-sociedade, bem como os sócios que o
autorizem. Os restantes sócios respondem apenas até
às importâncias das entradas a que se obrigaram. A
responsabilidade não opera se os negócios forem
expressamente condicionados ao registo da sociedade
e à assunção por esta dos respectivos efeitos [nº2].
MENEZES CORDEIRO, JOÃO LABAREDA e
COUTINHO DE ABREU consideram sistematicamente
adequado fazer intervir, em primeiro lugar, o fundo
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
comum da sociedade, nos mesmos termos do art. 36º-
2, e com direito ao benefício da excussão prévia. Em
conclusão, deve ser a própria pré-sociedade a
responder pelas dívidas contraídas em seu nome,
seguindo o regime das sociedades civis puras. Por
outro lado, seria disfuncional interpretar literalmente o
art. 19º no sentido de:
A pré-sociedade, já formalizada em escritura
mas ainda não registada, não ficaria obrigada
pelos negócios celebrados em seu nome,
durante esse período.
O registo definitivo não só atribuiria
personalidade jurídica [plena] à sociedade,
como também permitiria que os negócios
celebrados em nome da pré-sociedade fossem
por si assumidos.
Esses negócios apenas respeitariam a quem
tivesse agido em representação da sociedade, e
não à pré-sociedade em si.
Conclui-se: a responsabilidade dos representantes e dos sócios que tenham
autorizado os negócios [art. 40º-1] não isenta o património social da
responsabilidade principal. Por outro lado, os representantes e sócios demandados
têm direito ao benefício da excussão prévia [art. 997º CC].
Nota: esta é a solução legal supletiva, a afastar se os negócios forem
expressamente condicionados ao registo da sociedade e à assunção por esta dos
efeitos [art. 40º-2], ou por convenção das partes [art. 602º CC]. Esse
condicionamento do contrato ao registo opera como uma condição, enquanto
cláusula constante no próprio contrato celebrado com terceiro [e não no contrato de
sociedade]. Verificada essa condição, os sócios não respondem.
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
exemplo:
A, B e C celebraram um contrato de constituição de uma SPQ. A e B foram
designados gerentes. No dia seguinte, requereram a inscrição no registo comercial
que, dois meses mais tarde, veio a ser recusada. Durante esse período, A e B
celebraram diversos contratos, na qualidade de gerentes, com várias entidades.
O caso ilustra a celebração de negócios em nome de uma SPQ
no período compreendido entre a celebração do contrato de
sociedade e o seu registo definitivo, no âmbito das relações
externas dos sócios gerentes com terceiros [art. 40º]. Nas
relações externas, agem os representantes da sociedade, ou
os sócios que tenham poderes de representação [os
representantes das SPQ denominam-se gerentes].
A solução legal pauta-se pela responsabilidade ilimitada e
solidária de todos aqueles que, no negócio, agiram em
representação da sociedade [no caso, os dois gerentes, A e
B], bem como os sócios que tais negócios autorizaram. Os
restantes sócios respondem até às importâncias das entradas
a que se obrigaram [art. 40º-1] – seria o caso de C.
Dir-se-ia que o património social não responderia a nenhum
título. Todavia, MENEZES CORDEIRO, COUTINHO DE ABREU e
JOÃO LABAREDA, servindo-se do argumento de maioria de
razão, propõem a aplicação, uma vez mais, do disposto no
art. 36º-2, com remissão para o art. 997º CC: o património
social responde em primeiro lugar e, beneficiando de
excussão prévia, os sócios solidariamente [A, B e C].
Compreende-se esta solução: se nas relações anteriores à
celebração do contrato de sociedade deve ser essa a solução
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
[art. 36º], as relações posteriores à celebração do contrato,
mas anteriores ao registo devem, por identidade e maioria de
razão, beneficiar do mesmo regime. Não faria qualquer
sentido se, quanto mais avançássemos no processo de
formação da sociedade, menor fosse a responsabilidade da
sociedade irregular.
Assim, antes de responderem os sócios elencados no art. 40º-
1, por essa ordem, deve responder o património social.
exemplo:
A, B e C celebram um contrato de constituição de uma SPQ. B entra com um
estabelecimento comercial [trespasse], permanentemente em funcionamento, já
que o encerramento temporário do mesmo poderia resultar em perda de clientela.
Antes de inscrição no registo, os sócios celebram vários negócios com
terceiros, e inicia-se a actividade da sociedade no estabelecimento em causa.
D, credor, exige, após inscrição no registo, o pagamento de uma dívida
contraída no período compreendido entre a celebração do contrato e o registo do
mesmo.
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
Com o registo definitivo do contrato, a sociedade assume os
negócios celebrados no período compreendido entre o
contrato e o registo, de forma automática e por mero efeito
da lei [ope legis, art. 19º-1]. No caso, a sociedade assume de
pleno direito os direitos e obrigações resultantes da
exploração normal de um estabelecimento que constitua
objecto de uma entrada em espécie [art. 19º-1b].
Dir-se-ia aplicar-se o disposto no art. 40º, já que a dívida fora
contraída antes do registo. Todavia, como o credor só exige o
pagamento da mesma depois do registo definitivo, aplica-se o
disposto no art. 19º-1b) nos termos automáticos descritos,
com eficácia retroactiva [nº 3]. Os sócios são liberados e
apenas responde o património social, com a nuance do art.
19º-3, 2ª parte, a respeito das SPQ.
§6: CAPACIDADE DAS SOCIEDADES IRREGULARES. As pré-sociedades
dispõem de uma capacidade geral similar àquela que compete à própria sociedade
definitiva, segundo MENEZES CORDEIRO:
A actividade social pode ser iniciada antes da celebração do contrato
com observância da forma prescrita [regime das sociedades civis, art.
997º CC e 36º-2].
Podem ser realizados “negócios” por conta das SNC e das SEC
simples [arts. 38º-1 e 39º-1 e 4, respectivamente]
Podem ser realizados “negócios” em nome das sociedades de
capitais [art. 40º-1] que, antes do registo, podem distribuir lucros e
reservas.
O mesmo sucede com as sociedades civis puras, que não dependem de
forma especial nem de registo.
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
§7: REPRESENTAÇÃO ORGÂNICA DA SOCIEDADE IRREGULAR. A
sociedade irregular é susceptível de representação orgânica nos seguintes termos:
Pré-sociedade anterior à celebração do contrato com observância de
forma: por qualquer um dos seus promotores [art. 36º-2].
Pré-sociedade posterior à celebração do contrato com observância de
forma, mas anterior ao registo: pelos órgãos competentes já previstos
nos seus estatutos [arts. 38º a 40º].
Face à ampla capacidade de que dispõem as sociedades irregulares,
recomenda-se a rápida conclusão do processo de registo, por razões fiscais,
bancárias e de política notarial.
§8: NATUREZA JURÍDICA. Conceberam-se diversas teorias quanto à
natureza jurídica das sociedades irregulares:
Teoria da sociedade de facto: a sociedade poderia ter, na sua origem,
a simples evidência do surgimento e do funcionamento do contrato,
no campo dos factos.
o Não procede: não explica a sua positividade jurídica, nem
determina quaisquer regras. Para mais, as próprias soluções
legais afastam qualquer pretensa “relação contratual de
facto” [veja-se os arts. 36º ss], segundo MENEZES
CORDEIRO.
Teoria dos limites da nulidade: as regras que determinam a
invalidade de um contrato de sociedade não seriam radicais [como se
a sociedade não existisse], mas antes permitiriam à sociedade
irregular exercer determinada actividade.
o Não procede: trata-se de um desvio às regras da nulidade e
aos seus efeitos, segundo MENEZES CORDEIRO.
Teoria da organização: parte da apregoada dupla natureza do
contrato de sociedade
o Relação interna: puramente obrigacional
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
o Relação externa: organizatória, que tende a transcender a
relação obrigacional e dá azo a um elemento de confiança que
o Direito tutela.
A solução proposta por MENEZES CORDEIRO parte da vontade das partes.
A sociedade irregular por incompleitude é uma sociedade assente na vontade das
partes:
O acordo informal do art. 36º-2 equipara-a à sociedade civil
Com a celebração do contrato, o seu teor regula os direitos das
partes [art. 37º]
Nas relações externas, tudo se passa consoante a figura adoptada
pelas partes [arts. 38º a 40º]
A falta de registo, por seu lado, apenas impede o privilégio da limitação da
responsabilidade. Nestes termos, conclui-se: a pré-sociedade é uma pessoa
colectiva erigida pela vontade das partes e assente na autonomia privada.
Repudia-se a remissão para a figura das pessoas rudimentares, já que, aqui,
o acordo de constituição possibilita uma personalidade mais ampla, aplicando-se
mesmo o regime das sociedades civis puras [art. 36º-2 e 997º CC].
Com a escritura, as sociedades assumem, de facto, personalidade colectiva.
As limitações que impendem sobre as pré-sociedades estão relacionadas com a
responsabilidade dos sócios perante terceiros, que não é efectivamente limitada.
Quanto ao resto, as pré-sociedades têm órgãos, representantes e constituem um
centro autónomo de imputação de normas jurídicas. Assentam, por seu lado, em
verdadeiros contratos de sociedade [art. 980º CC], num esquema de tutela da
aparência e de protecção da confiança que segue, por analogia, o regime negocial.
São verdadeiras e próprias sociedades, enfim, ainda que diferentes dos tipos
elencados no art. 1º-2, escapando à tipicidade comercial.
Sociedades Irregulares por Invalidade
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
§1: DIRECTRIZ COMUNITÁRIA. A 1ª Directriz das Sociedades Comerciais,
de 1968, impulsionou o legislador nacional a legislar sobre os fundamentos da
invalidade das sociedades. O legislador transcendeu, contudo, as exigências
comunitárias neste âmbito, regulando minuciosamente o tema nos arts. 41º a 52º.
A 1ª Directriz não distinguia as invalidades antes ou depois do registo: o
legislador transpôs deficientemente a directriz, pelo que o Estado Português pode,
por isso, ser responsabilizado.
§2: PRINCÍPIOS GERAIS DA INEFICÁCIA DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS.
Nos termos gerais, o negócio jurídico que não produza [todos] os seus efeitos é
ineficaz, lato sensu:
Seja por razões extrínsecas:
o Impossibilidade
o Indeterminabilidade
o Ilicitude
o Contrariedade à lei ou aos bons costumes
Seja por razões intrínsecas:
o Vício na formação
o Vício na exteriorização
Servindo-nos de um esquema de MENEZES CORDEIRO, ilustraríamos a
matéria do seguinte modo:
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
Nulidade
Invalidade Invalidades mistas
Anulabilidade
Ineficácia lato sensu
Ineficácia stricto sensu
No Direito Civil, dentro da invalidade e quando a lei não disponha de outro
modo, o vício residual é o da nulidade [arts. 280º e 294º CC].
Diferentemente, no domínio do Direito das Sociedades Comerciais, a
nulidade comprometeria pura e simplesmente todos os actos já praticados pela
sociedade em jogo, desamparando os terceiros e pondo em risco a confiança da
comunidade no fenómeno societário. Todo o regime legal das sociedades
irregulares por invalidade está marcado, por isso, por regras que minimizam a
invalidade dessas sociedades e as consequências dessa invalidade [regras favor
societatis, diz-se].
Constituem vectores do favor societatis:
Limitação dos fundamentos de nulidade [enunciando-os de forma
taxativa].
Introdução de prazos para invocação dessa nulidade [vs regime geral:
a todo o tempo, art. 286º CC].
Esquemas destinados a sanar as invalidades [vs regime geral].
Delimitação da legitimidade para invocar a nulidade [e não “qualquer
interessado”, art. 286º CC].
Limitação dos efeitos da anulabilidade, perante as partes.
Inoponibilidade das invalidades a terceiros.
Regime especial quanto à execução das consequências da nulidade.
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
O regime da acção de declaração de nulidade encontra-se regulado no art.
44º, afastando-se a aplicação dos arts. 286º ss CC. Eis os traços gerais:
A acção de declaração de nulidade pode ser interposta 90 dias após o
ónus processual de interpelação da sociedade para sanar o vício,
quando sanável [art. 44º-1, 2ª parte].
A acção deve ser interposta no prazo de três anos a contar do registo,
sob pena de caducidade, salvo intervenção do Ministério Público [art.
44º-1 e 2].
A iniciativa cabe a qualquer membro da administração, do conselho
fiscal ou do conselho geral da sociedade, ou a qualquer terceiro que
tenha um “interesse relevante e sério na procedência da acção” [art.
44º-1]. Contrapõe-se à legitimidade prevista no CC: “qualquer
interessado”, em geral [art. 286º CC]. A ratio legis desta norma é a
de prevenir a interposição gratuita e selvagem de acções contra
grandes sociedades, a fim de obter compensações destinadas a
evitar o escândalo.
A propositura da acção de declaração da nulidade deve ser
comunicada pelos membros da administração aos sócios de
responsabilidade ilimitada e aos sócios das SPQ [art. 44º-3],
independentemente de quem tenha proposto a acção [acrescenta
MENEZES CORDEIRO]. A omissão deste dever presume-se culposa
[art. 799º-1 CC] e dá azo a responsabilidade obrigacional [arts. 798º
ss CC].
Finalmente, o art. 44º aplica-se a todos os tipos de sociedades, sejam
elas sociedades de capitais ou sociedades de pessoas.
§3: INVALIDADE DO CONTRATO DE SOCIEDADE ANTES DO REGISTO.
Enquanto o contrato de sociedade não estiver definitivamente registado, a
invalidade do contrato ou de uma das declarações negociais rege-se pelas
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
disposições aplicáveis aos negócios nulos ou anuláveis, nos termos gerais do CC
[art. 41º-1].
Esta remissão abrange:
Causas de invalidade: vg erro ou simulação, com a ressalva do art.
41º-2, 2ª parte [a invalidade resultante de vício da vontade ou de
usura só é oponível aos demais sócios].
Legitimidade [art. 286º CC]
Tempo:
o Nulidade: art. 287º CC – invocável a todo o tempo
o Anulabilidade: art. 286º CC – invocável no ano subsequente ao
conhecimento da cessação do vício. Equivale, para MENEZES
CORDEIRO, a uma “impugnabilidade”, conferindo ao
interessado um direito potestativo temporário de anular o
negócio jurídico.
A remissão para as normas do CC não abrange, contudo, a matéria das
consequências legais da invalidade do contrato de sociedade antes do registo: o
art. 52º é a base jurídica aplicável nesse caso, e não o art. 289º CC [comum à
nulidade e a anulabilidade: efeito retroactivo e restituição do que foi prestado ou do
valor correspondente], em face da ideia de favor societatis presente no regime
legal da invalidade no CSC. Eis os traços gerais do regime do art. 52º:
A liquidação da sociedade [art. 165º] permite o acertamento das
posições patrimoniais da sociedade, já que a restituição não é, na
maior parte dos casos, possível [arts. 41º-1, 2ª parte e 52º-1].
Nota: liquidação é o conjunto de operações que, dissolvida a sociedade,
permitem o pagamento aos credores sociais e a repartição do remanescente pelos
sócios. Compreende-se que a invalidação de uma sociedade não se salde pela
restituição, nos termos gerais [art. 289º-1 CC], já que pode haver relações com
terceiros: vg credores sociais ou devedores à sociedade. Assiste-se a um
paralelismo entre o regime da liquidação e da dissolução, facto que justifica a
remissão legal [art. 141º ss]. A jurisprudência maioritária considera que perante a
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
invalidade do contrato de sociedade por vício de forma, ocorrida antes do registo
definitivo, não podem ser restituídas aos sócios o valor das prestações que fizeram
a título de entrada [art. 289º-1 CC], mas apenas têm direito a ver partilhado o
activo resultante da liquidação por todos.
A invalidade afigura-se mista, já que a eficácia dos negócios jurídicos
concluídos anteriormente não é afectada pela declaração de nulidade
ou anulação do contrato social [art. 52º-2]. MENEZES CORDEIRO
propõe uma interpretação restritiva deste preceito, com duas
ressalvas:
o O negócio anteriormente concluído não pode incorrer em
nenhum fundamento de invalidade.
o O terceiro protegido tem que estar de boa fé subjectiva ética
[desconhecimento, sem culpa, do vício que afecta a
sociedade]. Uma interpretação literal do art. 52º-3 levar-nos-ia
a concluir, erroneamente, que se a nulidade proviesse de
outros vícios que não a simulação, ilicitude do objecto, ou
violação da ordem pública ou dos bons costumes, a tutela
referida no art. 52º-2 aproveitaria mesmo a terceiros de má fé
[vg em caso de dolo de terceiro, art. 254º-2 CC]. Este
entendimento é de afastar.
As invalidades decorrentes de incapacidade são oponíveis também a
terceiros [art. 41º-2].
exemplo:
A, B e C celebraram, com observância da forma legalmente prescrita [art.
7º-1], um contrato pelo o qual constituíam a Sociedade T, Lda. Antes de efectuado
o registo, verifica-se que o notário se esqueceu de incluir no contrato a sede da
sociedade.
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
A referência ao notário indicia a celebração de uma escritura
pública: facto que nos leva a concluir tratar-se de um
contrato de sociedade celebrado com a contribuição de um
bem imóvel [art. 7º-1, 2ª parte].
A sede é um elemento que deve constar do contrato [art. 9º-1
e) e 12º]. Na omissão da mesma, o contrato é inválido.
Tratando-se de invalidade do contrato antes do registo,
aplicam-se as disposições dos negócios jurídicos nulos ou
anuláveis, nos termos gerais [art. 41º-1]. Encontramo-nos
perante uma violação de uma norma injuntiva [o art. 9º-1e],
pelo que a nulidade daí resultante [art. 294º CC] segue as
regras gerais da legitimidade e prazos de arguição: a todo o
tempo, por qualquer interessado [art. 287º CC].
Quanto às consequências, tem aplicação o art. 52º, a respeito
da liquidação da sociedade, e não o art. 289º CC.
§4: INVALIDADE DO CONTRATO DE SOCIEDADE DEPOIS DO REGISTO.
Depois de efectuado o registo definitivo do contrato de SPQ, SA ou SEC por acções
[sociedades de capitais], o contrato só pode ser declarado nulo por algum dos vícios
taxativamente enunciados na lei [art. 42º-1]:
Nota: patente está a regra geral da redução das invalidades – a invalidade
de algumas cláusulas societárias não conduz à invalidade de todo o contrato. A
invalidade de todo o contrato só sucederá se recair sobre alguma cláusula crucial,
enunciadas infra.
a) Falta, no mínimo, de dois sócios fundadores [com as ressalvas
supra mencionadas quanto às SU: art. 7º-2].
b) Falta de menção:
o Firma [*]
o Sede [*]
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
o Objecto
o Capital social
o Valor da entrada de algum sócio [*]
o Prestações realizadas por conta da sociedade [*]
c) Menção de um objecto ilícito ou contrário à ordem pública.
d) Falta de cumprimento dos preceitos legais que exigem a liberação
mínima do capital social [uma quota pode ser liberada quando o
montante já pago seja suficiente para perfazer o capital social
mínimo].
e) Não observância da forma legalmente exigida para o contrato de
sociedade.
As nulidades assinaladas [*] são, todavia, sanáveis por deliberação dos
sócios, tomada nos termos estabelecidos para as deliberações sobre alteração do
contrato [arts. 42º-2 e 44º-1, 2ª parte]. Uma vez mais, a ideia que está subjacente a
esta solução legal é o favor societatis e a protecção do tráfego jurídico.
O regime da acção de declaração de nulidade é aquele que se encontra
consagrado no art. 44º, conforme já expusemos supra §2.
Quanto às consequências, uma vez mais não colhe a aplicação do art. 289º
CC, mas sim do art. 52º:
A liquidação da sociedade permite o acertamento das posições
patrimoniais da sociedade, já que a restituição não é, na maior parte
dos casos, possível [art. 52º-1].
A invalidade afigura-se mista, já que a eficácia dos negócios jurídicos
concluídos anteriormente não é afectada pela declaração de nulidade
ou anulação do contrato social [art. 52º-2].
Em conclusão, seja ela detectada antes ou depois do registo [já que as
consequências são as mesmas: art. 52º], a sociedade irregular por invalidade não
“desaparece”: sujeita-se, “apenas”, à liquidação.
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exemplo:
A, B e C celebraram, com observância da forma legalmente prescrita [art.
7º-1], um contrato pelo o qual constituíam a Sociedade T, Lda. Depois de efectuado
o registo, verifica-se que o notário se esqueceu de incluir no contrato a sede da
sociedade.
A referência ao notário indicia a celebração de uma escritura
pública: facto que nos leva a concluir tratar-se de um
contrato de sociedade com a contribuição de um bem imóvel
[art. 7º-1, 2ª parte].
Tratando-se de invalidade do contrato depois do registo,
aplica-se o disposto no art. 42º: sociedades de capitais [no
caso, uma SPQ].
A sede é um elemento que deve constar do contrato [art. 42º-
1b]. Na omissão da mesma, o contrato é nulo, embora essa
nulidade possa ser sanada nos termos do nº 2 e com as
consequências do art. 44º-1, 2ª parte. Se a nulidade não for
sanada, a acção de declaração de nulidade deve ser intentada
nos termos do art. 44º e, se procedente, atenta-se ao
disposto no art. 52º, quanto à liquidação da sociedade.
§5: VÍCIOS DA VONTADE. Padecendo de um vício da vontade [erro, dolo,
coacção e usura], o contrato de sociedade das sociedades de capitais [SPQ, SA e
SEC por acções] é, ainda assim, válido, embora o vício possa ser invocado como
justa causa de exoneração pelo sócio atingido ou prejudicado [art. 45º-1 e 49º-1] –
ideia de favor societatis. Para tal, exige-se que se verifiquem as circunstâncias
enunciadas no art. 287º CC: prazo de um ano desde o conhecimento da cessação
do vício. O contrato de sociedade é válido, já que os vícios da vontade não constam
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do elenco taxativo do art. 42º-1, que comina a nulidade. Não colhe, aqui, a
aplicação das consequências do art. 52º.
Nota: a aplicação analógica deste regime a outros vícios da vontade não
elencados [simulação parcial, simulação relativa, falta da consciência da
declaração, coacção física e incapacidade acidental] deve ser apreciada caso a
caso, para que possam também constituir justa causa de exoneração, segundo
MENEZES CORDEIRO.
Cumpre reter aqui a seguinte nota terminológica:
Sócios: exoneração [por iniciativa própria – art. 185º] ou exclusão
[por iniciativa dos outros sócios – art. 186º].
Membros dos órgãos sociais: renúncia [por iniciativa própria] ou
destituição [por iniciativa dos sócios]. Mantêm o seu status de sócios.
exemplo:
D, E, F, G e H constituem, por escritura pública, uma SA. Três meses depois,
a sociedade é registada. Hoje, D revela que só se tornou sócio porque a tal fora
coagido por A e B, apenas agora tendo cessado a coacção. Pretende, por isso,
invalidar o negócio.
Estamos perante um contrato de sociedade com a
contribuição de um bem imóvel [art. 7º-1, 2ª parte], já que o
mesmo foi celebrado mediante escritura pública.
A SA é uma sociedade de capitais, pelo que se aplica o
disposto no art. 45º, a respeito dos vícios da vontade de que
padeça o contrato de sociedade.
Tendo sido realizado registo, o contrato é, ainda assim,
válido: não consta do elenco taxativo de nulidades do art.
42º-1. As normas do CC relativas à coacção moral [anulável] e
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
física [nula] não têm, aqui, aplicação: salvo o disposto no art.
287º CC, quanto ao prazo de um ano para o exercício do
direito de exoneração do sócio, por iniciativa própria [art.
45º-1].
Em suma, o contrato de sociedade é válido, embora haja justa
causa de exoneração daquele que foi coagido a celebrá-lo: D.
§6: INCAPACIDADE. Nas sociedades de capitais [SPQ, SA e SEC por
acções], a incapacidade de um dos contraentes torna o negócio jurídico anulável
relativamente ao incapaz [art. 45º-2, 47º e 49º-1] – ideia de favor societatis. Não
colhe, aqui, a aplicação das consequências do art. 52º. O sócio tem o direito de
reaver o que prestou e não pode ser obrigado a completar a sua entrada [art. 47º].
Recordemos as regras de capacidade para a constituição de uma sociedade
comercial, já supra mencionadas:
Os menores podem ser partes em contratos de sociedade, desde que o
celebrem através dos pais, enquanto seus representantes legais, e com autorização
bastante do tribunal [no caso de constituição de uma SNC ou SEC, simples ou por
acções – art. 1889º-1d) CC]. Poderão fazê-lo, pessoal e livremente, sempre que o
objecto da sociedade esteja ao seu alcance [recorde-se o teor do art. 127º CC]: a
denominada “incapacidade” dos menores é aparente, segundo MENEZES
CORDEIRO, face às excepções legalmente previstas, que acabam por consumir a
regra.
O mesmo regime é aplicável, mutatis mutandis, ao interdito [arts. 139º ss
CC]. Quanto ao inabilitado, a capacidade para constituição de uma sociedade
depende de sentença [art. 153º-1 CC].
O REGISTO E AS PUBLICAÇÕES
Registo das Sociedades Comerciais
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
§1: REGISTO COMERCIAL. O registo comercial assume uma função de
publicidade dos actos: dar a conhecer os actos comerciais ao público interessado.
Recordemos os princípios do registo comercial:
Princípio da instância [art. 28º CRC]
Princípio da obrigatoriedade [arts. 14º e 15º CRC]
Princípio da competência [arts. 24º ss CRC]
Princípio da legalidade [art. 47º CRC]
§2: EFEITOS DO REGISTO. Os efeitos do registo podem ser:
Efeito presuntivo [art. 11º CRC]
Efeito de prevalência do registo mais antigo [art. 12º CRC]
Efeito constitutivo [vs art. 406º-1 CC]
Efeito indutor de eficácia:
o Publicidade negativa
o Publicidade positiva
No Direito das Sociedades Comerciais o registo tem, à partida, um efeito
constitutivo [com as ressalvas infra, §3]: art. 5º. Esta norma não abrange as
constituições de sociedades comerciais que não operem por contrato [vg fusão,
cisão ou transformação], mas que ainda assim carecem de registo [arts. 112º e
120º]. Admitimos, porém, a seguinte ressalva: a pré-sociedade já é uma sociedade,
ainda que não registada.
Segundo o art. 3º CRC, os actos societários sujeitos a registo são os
seguintes:
Contrato de sociedade e respectivas modificações
Transformação, cisão, fusão, dissolução e liquidação das sociedades
Transmissões de partes sociais ou de quotas
Designação e cessação de funções dos fiscalizadores e
administradores
Acções de declaração de nulidade ou de anulação dos contratos de
sociedade e de deliberações sociais [art. 9º c) e e) e art. 15º-4 CRC]
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
[…]
Esta disposição deve ser articulada com o disposto no art. 15º-1 CRC, acerca
dos actos sujeitos a registo obrigatório.
§3: EFEITO CONSTITUTIVO?
Para MENEZES CORDEIRO o sistema de registo de sociedades comerciais
não pode ser constitutivo, porque:
Os actos supra §2 mencionados produzem importantes efeitos antes
do registo.
Actos equivalentes àqueles [vg modificação ou transformação das
sociedades] não dependem formalmente de registo [arts. 88º e
135º].
O contrato de sociedade produz a generalidade dos seus efeitos
uma vez celebrado, seja inter partes, seja perante terceiros [arts.
37º a 40º].
A grande consequência da falta do registo está relacionada com a
não limitação da responsabilidade dos sócios, tão-só.
O registo constitutivo contraria o princípio basilar da eficácia
imediata dos contratos, no domínio real [art. 408º-1 CC].
Com base nestes argumentos, MENEZES CORDEIRO conclui pelo efeito
indutor de eficácia do registo das sociedades comerciais, já que o registo:
Não reconhece todos os efeitos a actos sujeitos a registo e não
registados [inoponibilidade a terceiros de boa fé].
Atribui efeitos a actos não efectivos, mas indevidamente registados
[inoponibilidade da nulidade do registo a terceiros de boa fé].
Os registos “constitutivos” previstos no CSC não são verdadeiras
hipóteses de registo constitutivo, já que os actos sujeitos a esse
registo produzem alguns efeitos antes e independentemente dele.
Em conclusão, o registo surge, assim, como uma condicionante da eficácia
plena dos actos praticados pelas sociedades comerciais, ligando-se ao efeito indutor
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
de eficácia que resulta da publicidade registal: seja essa eficácia negativa ou
positiva.
§4: REGISTO DEFINITIVO. O art. 5º associa personalidade jurídica à
sociedade comercial registada. Para MENEZES CORDEIRO este preceito perde
importância, uma vez que a sociedade devidamente constituída com observância
da forma legal [art. 7º-1] mas ainda não definitivamente registada opera já como
um centro próprio de imputação de regras, dispondo de capacidade jurídica
bastante.
Segundo o art. 19º-1, com o registo definitivo do contrato de sociedade, esta
assume de pleno direito:
a) Direitos e obrigações decorrentes dos negócios jurídicos referidos
no art. 16º-1 [a inserir no contrato de sociedade, sob pena de se
tornarem ineficazes].
b) Direitos e obrigações resultantes da exploração normal de um
estabelecimento que constitua objecto de uma entrada em espécie
ou que tenha sido adquirido por conta da sociedade.
c) Direitos e obrigações emergentes de negócios concluídos antes do
acto de constituição.
d) Direitos e obrigações decorrentes de negócios celebrados pelos
gerentes, administradores ou directores, com autorização de todos os
sócios.
Esta assunção, pela sociedade, de negócios anteriores ao registo, com o
registo definitivo, tem eficácia retroactiva e liberatória [art. 19º-3] dos
“responsáveis” segundo o art. 40º.
Quanto aos direitos e obrigações decorrentes de outros negócios celebrados
antes do registo definitivo do contrato, esses podem ser assumidos pela sociedade
mediante decisão da administração, comunicada nos 90 dias subsequentes ao
registo [art. 19º-2]. Essa assunção já não é, neste caso, “de pleno direito”
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
[automaticamente], embora também tenha eficácia retroactiva, segundo MENEZES
CORDEIRO.
O registo definitivo permite ainda operar os sistemas de responsabilidade
limitada [arts. 38º a 40º].
Publicações e outras Formalidades
§1: PUBLICAÇÕES OBRIGATÓRIAS. Segundo os arts. 166º e 167º, as
publicações, quando obrigatórias, devem ser feitas em site da Internet de acesso
público [art. 70º CRC].
§2: OUTRAS FORMALIDADES. Para além da publicação dos actos
praticados pelas sociedades comerciais, outras formalidades poderão também ser
requeridas [vg declarações fiscais e autorizações prévias].
A SITUAÇÃO JURÍDICA DOS SÓCIOS
O Status de Sócio
§1: A SITUAÇÃO DOS SÓCIOS. A evolução progressiva da situação dos
sócios, no sentido da abstracção, partiu de uma qualidade assumida, para a
titularidade de uma posição e, finalmente, para a própria posição ou participação
social.
Neste âmbito compreende-se a delimitação entre sociedades de pessoas e
sociedades de capitais: nas primeiras o status de sócio é indissociável da qualidade
do mesmo; nas segundas, o status é independente do seu titular.
Recorre-se à técnica do “estado” do sócio, já que a posição jurídica do
mesmo é complexa: contém direitos e deveres, mutáveis pelo contrato de
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
sociedade, acordos parassociais e deliberações societárias. O estado de sócio, além
de complexo, prolonga-se no tempo e implica obrigações duradouras.
§2: DIREITOS E DEVERES DOS SÓCIOS. O conteúdo complexo do status
de sócio pode ser clarificado com recurso a algumas classificações:
Direitos abstractos: posição favorável que permitirá ao sócio ver
surgir um direito concreto correspondente – vg direito aos lucros
[art. 21º-1a]. Surge como uma expectativa, em relação a um bem
final futuro.
Direitos concretos: produto da concretização de uma prévia posição
favorável, que assistia ao sócio.
Direitos patrimoniais: valores patrimoniais – vg direito a “quinhorar
nos lucros” [art. 21º-1a]
Direitos participativos: valores que se prendem com o
funcionamento da sociedade. Conferem a possibilidade, aos sócios,
de ingressar no modo colectivo de gestão dos interesses – vg direito
a participar nas deliberações, a obter informações e à designação
para os órgãos sociais [art. 21º-1 b), c) e d].
Direitos pessoais: valores pessoais do sócio.
As situações passivas dos sócios serão, à partida, apenas duas [art. 20º]:
Obrigação de entrada [arts. 25º ss]
Sujeição às perdas – duplo alcance:
o Representa a frustração de contrapartidas esperadas pelas
entradas
o Traduz o funcionamento das regras de responsabilidade dos
sócios:
SEC: responsabilidade ilimitada, solidária e subsidiária
[art. 175º-1]
SPQ: responsabilidade limitada aos valores das
entradas, solidária e subsidiária [art. 192º-1]
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
SA: responsabilidade limitada apenas pelas entradas
próprias [art. 271º]
As SPQ e SA impõem aos sócios a obrigação de efectuar prestações
acessórias, além das entradas [arts. 209º e 287º], desde que o contrato fixe os
elementos essenciais da obrigação e especifique se as prestações devem ser
efectuadas onerosa ou gratuitamente.
As prestações suplementares [art. 210º], no âmbito das SPQ, devem ser
permitidas pelo contrato de sociedade, dependendo de deliberação dos sócios [nº
1] e têm sempre por objecto dinheiro [nº 2].
§3: DIREITOS ESPECIAIS. Os direitos especiais constam do art. 24º: são
direitos de “qualquer sócio”, inseridos no contrato de sociedade e que, salvo
disposição legal ou estipulação contratual expressa em contrário, não podem ser
suprimidos ou coarctados/limitados sem o consentimento do respectivo titular [nº 1
e nº 5].
O CSC não concretiza, todavia, que precisos tipos de direitos poderiam estar
em causa. Eis alguns exemplos jurisprudenciais:
Direito de exercer actividade concorrente com a da sociedade
Direito de dividir ou alienar a sua quota sem as autorizações exigidas
aos demais sócios
Direito de alienar quotas sem exercício da preferência pelos demais
sócios
Direito à gerência
Direito de veto em todos ou alguns assuntos
Direito de perceber quinhões mais favoráveis de lucros
Os direitos especiais são intuitu personae, estabelecidos em função de um
concreto titular. Não são transmissíveis a terceiros, em conjunto com a respectiva
quota. Quando os estatutos atribuam certa posição a uma pessoa, nem sempre se
tratará de um direito especial, podendo verificar-se uma mera designação em pacto
social. Não basta, por isso, a atribuição de um direito, mas sim a atribuição especial
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
de um direito: recomenda-se menção expressa de que o mesmo só poderá ser
suprimido com o consentimento do seu titular.
Segundo o art. 24º-2 a 4:
SNC: os direitos especiais são intransmissíveis, salvo cláusula em
contrário [personalização máxima]
SPQ: os direitos especiais patrimoniais são transmissíveis; os
restantes são intransmissíveis, salvo cláusula em contrário
SA: os direitos especiais são atribuídos a categorias de acções,
transmitindo-se com estas [abstracção máxima]
Pergunta-se se os direitos especiais podem assistir a todos os sócios [com
excepção das SA, onde os direitos especiais são atribuídos a acções]. Os direitos
especiais são-no não por pertencerem apenas a um sócio, mas sim por
pressuporem um regime especial, diferente do comum. Nestes termos, todos os
sócios podem ser titulares de direitos de que só possam ser despojados com o seu
próprio assentimento.
A Obrigação de Entrada
§1: ENTRADA. A obrigação de entrada é um dever essencial dos sócios, sem
a qual a sociedade não terá meios para poder desempenhar a sua actividade.
A entrada pode consistir em diversas realidades patrimoniais:
Entradas em dinheiro: assunção de uma obrigação pecuniária
Entradas em espécie: entregas de bens diferentes de dinheiro [art.
28º-1], susceptíveis de penhora [art. 20º a]
Entradas em indústria: serviços humanos não subordinados
O tipo de entrada é definido no contrato de sociedade, quantitativa e
qualitativamente [art. 9º g) e h].
Cumpre reter a seguinte nota terminológica:
Subscrição das entradas: assunção da obrigação de entrada,
comprometendo-se a tal.
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
Realização das entradas: cumprimento efectivo da obrigação de
entrada
Estes dois momentos coincidem, quando a entrada seja em espécie.
O valor nominal da entrada é o da participação social a que corresponda:
SNC: Parte social
SPQ: quota
SA: acção
O valor nominal não pode exceder o valor real da entrada [art. 25º-1]: a
cifra, em dinheiro, em que se traduza essa entrada, quando pecuniária, ou ao valor
dos bens que implique, quando em espécie.
Ao conjunto das entradas designa-se património social, e não participação
social, já que o aumento de capital social [cifra do conjunto das participações
sociais, enfim] é uma modalidade de alteração do próprio contrato [sujeita a
deliberação dos sócios], não variando por si nem sofrendo oscilações, enquanto que
o património social é variável. O património social tem consistência real e é, assim,
o conjunto das situações jurídicas activas e passivas patrimoniais da sociedade:
Bruto: activo + passivo
Líquido: activo – passivo [capital próprio]
Na obrigação de entrada o sócio surge como devedor e a sociedade como
credora. Esta obrigação pode ser cumprida de imediato, ou diferida para momento
póstumo, consoante o tipo de sociedade.
§2: REGIME GERAL. As entradas não podem ter um valor inferior ao da
participação nominal [parte social, quota ou acção] atribuída ao sócio. Poderá,
eventualmente, ser superior [acima do par, diz-se], caso em que nos deparamos
com um “prémio de subscrição” ou “prémio de emissão” [ágio].
A emissão acima do par justifica-se porque:
Acrescenta uma mais-valia às participações dos sócios
A sociedade gera expectativas de negócio que conduzem a uma
sobrevalorização de mercado
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
A obrigação de entrada deve ser realizada até ao momento da celebração do
contrato, com observância da forma legalmente prescrita [art. 7º-1], salvo quando o
próprio contrato preveja o diferimento das entradas em dinheiro e a lei o permita.
São nulos os actos da administração e as deliberações dos sócios que
liberem total ou parcialmente os sócios da obrigação de entrada, salvo redução do
capital [art. 27º-1]. No caso de incumprimento desta obrigação, podem ser
estabelecidas, no contrato, cláusulas penais, juros e outras penalidades [nº 3].
§3: ENTRADAS EM DINHEIRO. As entradas em dinheiro podem ser
diferidas, nas seguintes situações:
SPQ: só pode ser diferida a efectivação de metade das entradas em
dinheiro; o quantitativo global dos pagamentos feitos por conta das
entradas em dinheiro e a soma dos valores nominais das quotas
correspondentes às entradas em espécie deve perfazer o capital
mínimo fixado por lei – € 5.000 [arts. 201º e 202º-2].
o A expressão “metade das entradas em dinheiro” admite duas
interpretações:
1. Metade das entradas em dinheiro de cada sócio,
individualmente considerado? – COUTINHO DE
ABREU: o que é fundamental é a contribuição do sócio,
já que se o mesmo se obriga, deve, pelo menos,
cumprir metade da sua obrigação de entrada.
2. Metade das entradas do total de entradas em
dinheiro? – MENEZES CORDEIRO: o sócio pode não
realizar imediatamente qualquer entrada. O âmbito é o
da autonomia privada, devendo a lei ser interpretada
no sentido mais amplo possível.
o O termo é possível [diferimento para datas certas ou factos
certos e determinados], mas não a condição [art. 203º]. Se
não for apontado termo para o diferimento, ou se o mesmo for
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
submetido a condição [ilícita e, consequentemente, nula – art.
294º CC], admitem-se duas soluções:
A obrigação de entrada torna-se pura, exigível a
qualquer momento [art. 777º CC] – RAUL VENTURA e
COUTINHO DE ABREU.
O prazo máximo de cinco anos do art. 203º-1, 2ª parte
funciona como prazo supletivo, volvido o qual a
obrigação de entrada pode ser exigida – MENEZES
CORDEIRO.
SA: pode ser diferida a realização de até 70% do valor nominal das
acções, mas não o pagamento do prémio de emissão, quando
previsto [art. 277º-2].
Não há diferimento para as entradas em espécie, nem para as SNC.
Quanto à forma do cumprimento das obrigações de entrada em dinheiro, nas
SPQ e SA, a soma das entradas em dinheiro já realizadas deve ser depositada em
instituição de crédito, antes de celebrado o contrato, numa conta aberta em nome
da futura sociedade [arts. 202º-3 e 277º-3].
exemplo:
A, B e C constituíram uma SPQ com o capital social de € 30.000. A e B
realizaram imediatamente as respectivas entradas, mas C diferiu a sua para quando
a sociedade necessitasse de fundos.
C diferiu a sua obrigação de entrada numa SPQ.
A obrigação de entrada encontra-se prevista em geral no art.
20 a). No caso, presumimos terem sido realizadas em
dinheiro, já que nada nos é dito a esse respeito.
51
Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
A e B subscreveram e realizaram as respectivas entradas
aquando da celebração do contrato de sociedade. C apenas
subscreveu, tendo diferido a realização da mesma para
momento póstumo [art. 26º].
Tratando-se de SPQ, o diferimento das entradas é possível,
quando as mesmas sejam realizadas em dinheiro [art. 202º-
2]. Requisitos legais: só pode ser diferida a efectivação de
metade das entradas em dinheiro; o quantitativo deve
perfazer o capital mínimo de € 5.000 [art. 201º]; o termo é
possível [diferimento para datas certas ou factos certos e
determinados], mas não a condição [art. 203º].
No caso, o diferimento da obrigação de entrada está sujeito à
condição de quando a sociedade necessitasse de fundos.
Como tal, esse diferimento é ilícito e, consequentemente,
nulo [art. 294º CC]. Admitem-se duas soluções:
o A obrigação de entrada torna-se pura, exigível a
qualquer momento [art. 777º CC] – COUTINHO DE
ABREU.
o O prazo máximo de cinco anos do art. 203º-1, 2ª parte
funciona como prazo supletivo, volvido o qual a
obrigação de entrada pode ser exigida – MENEZES
CORDEIRO.
§4: ENTRADAS EM ESPÉCIE. As entradas serão em espécie quando
transfiram, para a sociedade, direitos patrimoniais susceptíveis de penhora e que
não se traduzam em dinheiro [art. 28º-1].
Exemplos:
Direito de propriedade
Direito ao uso e fruição, sem propriedade
Direitos sobre bens imateriais [patentes e know-how]
52
Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
O dinheiro é de fácil avaliação, face ao princípio do nominalismo. Já as
entradas em espécie têm, necessariamente, valores subjectivos. Os bens ou
direitos em causa devem, todavia, ser objectivamente avaliados, para que o valor
exacto dos mesmos seja do conhecimento dos interessados. Por estes motivos, um
Revisor Oficial de Contas [ROC] devidamente distanciado e imparcial deve avaliar,
objectivamente, os bens em causa, explicitando os critérios utilizados nessa
avaliação e declarando formalmente se o valor dos mesmos atinge o valor nominal
indicado pelos sócios [art. 28º-3]. O relatório do ROC está sujeito a exigências de
publicidade [nº 5 e 6], já que se pretende, tão-só, a defesa de terceiros [os credores
da sociedade, futuros adquirentes e público em geral]. Tratam-se de normas
imperativas, inderrogáveis, nem mesmo por comum acordo.
§4: DIREITOS DOS CREDORES. O cumprimento da obrigação de entrada
interessa à sociedade, pelos motivos apontados, e aos credores, relevando para a
cobertura patrimonial dos seus direitos.
Por esta razão, aos credores assistem dois direitos [art. 30º-1],
concretizadores da acção sub-rogatória, nos termos do art. 606º CC. Na acção sub-
rogatória, o credor substitui-se ao devedor e tem a faculdade de exercer, contra
terceiro, os direitos de conteúdo patrimonial que competem àquele.
A sociedade pode satisfazer os créditos em causa com juros de mora [art.
30º-2] e o pagamento pode ser feito por terceiro, nos termos gerais [art. 767º-1
CC].
exemplo:
D, E, F, G, H e I decidem constituir uma SA. Ficou acordado que:
D contribuía com € 10.000, em dinheiro, realizados integralmente no
momento do contrato. E contribuía com € 10.000, através de um cheque, cuja
entrada seria diferida em 60%, devendo ser realizada dois anos depois. F contribuía
com o direito de arrendamento de uma fracção autónoma em Lisboa, de que era
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
titular por um período de dez anos – avaliada por um ROC em € 20.000. G
contribuía com cinco anos de trabalho gratuito para a sociedade – avaliada por um
ROC em € 20.000. H contribuía com um direito de crédito sobre J. I contribuía com
uma patente. Um ROC avaliou ambas as contribuições de H e I em € 10.000.
Logo após a constituição da sociedade, esta adquiriu a D um quadro no valor
de € 10.000 que, no entanto, só valia € 7.000.
Nos termos do art. 273º-1 uma SA deve ser constituída por,
no mínimo, cinco sócios.
A obrigação de entrada [art. 20º a] deve ser realizada até ao
momento da celebração do contrato, salvo diferimento [art.
26º].
A respeito do diferimento das entradas numa SA, cumpre
atender ao disposto nos arts. 277º-2 e 285º-1. Não são
admitidas contribuições de indústria [277º-1] e, nas entradas
em dinheiro, só pode ser diferida a realização de até 70% do
valor nominal das acções [nº 2]. Uma vez mais, questiona-se
se a “realização de até 70% do valor nominal das acções” é
relativamente a cada sócio, individualmente considerado, ou
ao total das entradas. Tal como nas SPQ, também se proíbe o
diferimento sujeito a condição.
O valor nominal mínimo de uma SA é € 50.000 [art. 276º-3].
D: a sua obrigação de entrada foi realizada aquando da
celebração do contrato, de imediato.
E: o cheque é um título de crédito, que deve ser tratado como
dinheiro. Trata-se de uma dação em cumprimento que
extingue a obrigação de entrada em dinheiro, pelo
cumprimento da mesma. Tendo sido diferida em 60% [art.
26º], respeitou o disposto no art. 277º-2 [até 70%], embora
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
deva observar o prazo máximo de cinco anos para o
cumprimento do restante [art. 285º-1].
F: entrou com um direito temporário de arrendamento,
entendido enquanto contribuição em espécie. É, ainda assim,
um bem susceptível de avaliação económica, pelo que a
avaliação do ROC deve obedecer ao disposto nos arts. 25º-2 e
28º, sob pena de responsabilidade nos termos do art. 82º.
G: contribuiu com trabalho gratuito, entendido enquanto
indústria [já que a onerosidade/gratuidade dessa contribuição
é irrelevante]. As entradas em indústria não são admitidas
pelo art. 277º-1, nas SA.
H: o direito de crédito sobre J consiste numa contribuição em
espécie, pelo que o seu valor deve ser avaliado, pelo ROC,
face ao valor do crédito em si mesmo [art. 28º].
I: a entrada com uma patente consiste numa contribuição em
espécie, já que a patente é susceptível de avaliação
pecuniária.
A aquisição do quadro pela sociedade a D consiste numa
aquisição de bens a accionistas, prevista enquanto tal no art.
29º: deveria ter sido previamente aprovada por deliberação
da assembleia-geral, sob pena de ineficácia [nº 1 e nº 5],
desde que verificados os requisitos legais. O contrato deveria
ter sido reduzido a escrito, sob pena de nulidade [nº 4 e 220º
CC]. Observa-se um risco de descapitalização da sociedade, já
que D entrou com € 10.000 e a sociedade “devolveu-lhe” essa
quantia, quando lhe adquiriu o quadro. Considerando que o
quadro apenas valia € 7.000 [avaliação feita pelo ROC, nos
termos do nº 3], esta aquisição do bem corresponde a uma
fraude à lei, já que tudo se passa como se D tivesse entrado
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
com € 7.000 apenas. O valor nominal excede o valor real do
bem [€ 10.000 > € 7.000].
Participação nos Lucros e nas Perdas
§1: PARTICIPAÇÃO NOS LUCROS E NAS PERDAS. A sociedade visa o
lucro económico, repartindo-o pelos associados [art. 980º CC]. Nesse sentido,
encontramos no topo dos direitos dos sócios o direito a quinhorar nos lucros [art.
21º-1 a]. À sociedade é imposta a distribuição de uma parcela dos seus lucros pelos
sócios, com excepções quanto às SPQ e SA [arts. 217º e 294º].
Como contrapartida do lucro, temos o risco: os empreendimentos mais
lucrativos costumam ser, também, os mais arriscados.
Como regra supletiva, temos que os sócios participam nos lucros e nas
perdas da sociedade segundo a proporção dos valores nominais das suas
participações no capital. Se o contrato determinar somente a parte de cada sócio
nos lucros, presumir-se-á ser a mesma a sua parte nas perdas – vg 10% capital,
10% lucros [art. 22º-1 e 2].
exemplo:
A, B e C constituíram uma SPQ com o capital social de € 25.000.
A e B ficaram com uma quota de € 5.000 cada.
C ficou com uma quota de € 15.000, apesar de B também ter pago € 15.000
pela sua quota.
Os sócios deliberaram distribuir os lucros entre si, na proporção das suas
quotas.
B exige que lhe seja atribuído um valor proporcional idêntico ao de C.
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
Nas SPQ o valor mínimo do capital social é de € 5.000 [art.
201º].
Quota de A: valor nominal de € 5.000.
Quota de B: valor nominal de € 5.000 [valor da participação],
apesar do valor real ser € 15.000 [valor de quanto pagou,
efectivamente]. O valor nominal não pode ser mais elevado
do que o valor real [art. 25º-1]. No caso, o valor real é
superior ao valor nominal, pelo que a diferença corresponde
ao ágio [€ 10.000].
Quota de C: valor nominal de € 15.000.
A participação nos lucros e nas perdas é feita segundo a
proporção dos valores nominais das respectivas participações
no capital [art. 22º]. Nada nos é dito quanto a direitos
especiais aos lucros. Conclusão:
o A: 20% de participações no capital, 20% dos lucros e
das perdas
o B: 20% de participações no capital, 20% dos lucros e
das perdas
o C: 60% de participações no capital, 60% dos lucros e
das perdas
exemplo:
E. F e G constituíram uma sociedade e acordaram, por exigência de G, que,
independentemente da sociedade ter lucros, este receberá mensalmente € 2.000.
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
Proíbe-se toda a estipulação pela qual deva algum sócio
receber juros ou outra importância certa [no caso] em
retribuição do seu capital ou indústria, segundo o art. 21º-2.
E, F e G violaram o princípio da conservação ou
intangibilidade do capital social das sociedades comerciais. O
património social só pode ser inferior ao capital social por
força de distribuições a terceiros [vg credores], e nunca por
distribuições aos próprios sócios.
Este princípio encontra eco noutras disposições do CSC: arts.
32º e 33º.
§2: PACTOS LEONINOS. Os pactos leoninos são proibidos pelo art. 22º-3: é
nula a cláusula que exclui o sócio da comunhão nos lucros ou que o isente de
participar nas perdas da sociedade, salvo o disposto quanto a sócios de indústria
[arts. 992º-2 e 994º CC], esteja ela incluída no contrato de sociedade ou em acordo
parassocial.
A designação “pacto leonino” advém de uma fábula de ESOPO:
Um leão, um burro e uma raposa andaram à caça e capturaram uma
quantidade abundante de peças. O leão encarregou o burro de as dividir pelos três.
O burro repartiu-as em três partes iguais mas o leão, enfurecido com a divisão,
devorou-o e impôs à raposa que repartisse as peças. A raposa reuniu as três partes
numa só e entregou tudo ao leão, sem deixar nada de parte para si. O leão
perguntou-lhe: “Quem te ensinou a fazer as divisões?”, ao que a raposa respondeu:
“Ensinou-me a experiência do burro!”.
MENEZES CORDEIRO justifica esta proibição com base nos seguintes
argumentos:
O sócio que abdique de lucros vai sujeitar-se a eventuais prejuízos. O
sócio que aceite todos os prejuízos vai submeter-se, eventualmente,
aos que ocorram. Em qualquer dos casos, o sócio está a dispor, para
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
o futuro, das vantagens que poderia obter e está a conceder
vantagens a outros sócios.
Esta proibição combate a tentação de se dar o que [ainda] não se
tem e de assumir, para um futuro indeterminado, obrigações.
Coerentemente:
o É nula a renúncia antecipada aos direitos facultados ao credor
nos casos de incumprimento ou mora do devedor
o A cláusula penal pode ser reduzida equitativamente pelo
tribunal
o A doação não pode respeitar a bens futuros
o A doação de móveis deve ser celebrada por escrito ou
mediante tradição
Em conclusão, a proibição dos pactos leoninos justifica-se já que envolve
uma renúncia antecipada aos direitos, aliada à doação do que [ainda] não se tem.
Verificada a nulidade do pacto, parte da doutrina reclama a aplicação do
instituto da redução: a sociedade vigoraria sem a parte viciada, salvo se se
demonstrasse que, na sua falta, as partes não teriam contratado [art. 292º CC].
Assim não entende MENEZES CORDEIRO: uma sociedade leonina não é uma
sociedade comum com uma cláusula leonina, mas sim todo um negócio distorcido e
cuja lógica de participação nos lucros e nas perdas fora destruída. Apenas a
conversão [ante a nulidade total do contrato] lhe pode valer, convertendo-se o
negócio nulo noutro de tipo ou conteúdo diferente, desde que verificados os
requisitos do art. 293º CC: vontade hipotética e ónus da prova.
exemplo:
Os sócios da Sociedade Z, Lda, combinaram que o sócio D, devido às suas
fracas possibilidades económicas, não participaria nas perdas da sociedade.
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
A proibição dos pactos leoninos [art. 22º-3 e 994º CC] implica
que seja nula a cláusula que isente o sócio de participar nas
perdas [e da comunhão dos lucros]. A nulidade encontra-se
prevista no art. 294º CC.
MENEZES CORDEIRO propõe a aplicação das regras da
conversão [art. 293º CC, nulidade total], sendo que a cláusula
acordada pode-se converter numa cláusula de tipo ou
conteúdo diferente, uma vez que todo o contrato de
sociedade é enformado pelo princípio da participação nos
lucros e nas perdas.
Constituição Financeira e Defesa do Capital
§1: CONSTITUIÇÃO FINANCEIRA. No domínio da constituição financeira
das sociedades, cumpre distinguir:
Capitais próprios:
o Capital social [soma do valor nominal das acções subscritas]
o Reservas de ágio ou prémios de emissão [soma do sobrevalor
por que, com referência ao valor nominal, as acções tenham
sido colocadas]
o Montante de outras prestações
o Reservas livres [lucros não distribuídos]
o Reserva legal [imposta por lei]
Capitais alheios:
o Obrigações
o Opções [convertible bonds]
o Títulos de participação nos lucros e outros empréstimos
§2: DISTRIBUIÇÃO DE BENS AOS SÓCIOS. Face à separação patrimonial,
os bens da sociedade não se confundem com os dos sócios. Mas são os sócios
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
quem tem, afinal, o controlo da sociedade, e poderão entender que a sociedade não
necessita de determinados bens ou que melhor ficariam na esfera dos sócios.
Contrapõem-se o interesse dos credores da sociedade e a própria confiança do
público na estabilidade dos entes colectivos.
Nas sociedades de capitais, cuja responsabilidade é limitada, não é
efectivamente indiferente aos credores a consistência do património da sociedade e
os bens de que disponha. Por outro lado, cumpre acautelar a confiança
generalizada da comunidade na estabilidade das pessoas colectivas: não se
compreenderia que os bens circulassem, sem mais, entre a sociedade e os sócios.
O art. 32º tutela os credores, vedando a distribuição de bens aos sócios
quando a situação líquida desta for inferior à soma do capital e das reservas que a
lei ou o contrato não permitem distribuir aos sócios, ou quando a situação líquida se
torna inferior a esta soma em consequência da distribuição.
Conclui-se: apenas podem ser distribuídos aos sócios valores que,
tecnicamente, se consideram “lucros”.
Eis os traços fundamentais do regime da distribuição de bens:
A distribuição de bens depende de deliberação dos sócios [art. 31º-1]
Quando tomada, tal deliberação não deve ser executada pelos
administradores, requerendo inquérito judicial, quando suspeitem
que [nº 2]:
o Alterações ocorridas no património social tornariam a
distribuição ilícita perante o art. 32º
o Viola o art. 33º
o Assenta em contas inadequadas
§3: LUCROS E RESERVAS NÃO DISTRIBUÍVEIS. Quanto aos lucros e
reservas não distribuíveis, dispõe o art. 33º:
Não podem ser distribuídos aos sócios os lucros do exercício que
sejam necessários para cobrir prejuízos transitados [dívidas
anteriores] ou para formar/reconstituir reservas impostas por lei ou
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
pelo contrato de sociedade [nº 1]. A contrario, cabe distribuição de
lucros quando os prejuízos transitados possam, legalmente, ser
cobertos de outra forma [vg a sociedade constitui uma reserva
facultativa destinada a enfrentar prejuízos imprevisíveis].
Proíbem-se as reservas ocultas [nº 3]: escapam ao conhecimento e
controlo dos sócios e credores e não constam da contabilidade, pelo
que põem em causa o balanço e as prestações de contas. A contrario,
podem ser distribuídas as reservas cuja existência e cujo montante
figurem, expressamente, no balanço.
A reserva imposta por lei é também denominada reserva legal: art. 295º-1.
Segundo este preceito, uma percentagem igual ou superior à 20ª parte [5%] dos
lucros da sociedade é destinada à constituição da reserva legal e à sua
reintegração, até que aquela represente a 5ª parte [20%] do capital social. Esta
percentagem é supletiva. Taxativamente, impõe o art. 296º que a reserva legal
apenas pode ser utilizada:
Para cobrir a parte do prejuízo que não possa ser coberto por outras
reservas
Para incorporação no capital
Por outras palavras:
A reserva legal advém de, pelo menos, 5% dos lucros
Até atingir 20% do capital social
Para os fins elencados no art. 296º
Determinadas reservas livres [ágios, vg] estão sujeitas ao regime da reserva
legal supra, na sua totalidade [art. 295º-2]: apenas nos limites de 20% do capital
social e apenas se essa parcela não estiver já coberta pela reserva legal.
exemplo:
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
1. A Sociedade H, Lda., foi constituída com o capital social de € 30.000. Um
ano mais tarde, perante os lucros do exercício obtidos, os sócios deliberam
distribuir integralmente essa quantia entre eles.
2. E se os sócios deliberarem não distribuir quaisquer lucros?
3. Poderão ser distribuídos lucros durante o exercício?
1.
A distribuição dos lucros tem que ter sido objecto de
deliberação dos sócios [art. 31º-1] na assembleia-geral anual,
proposta pela administração [art. 65º-1], quanto a reservas
livres ou facultativas.
Esta regra deve observar limites: quanto à distribuição de
bens [art. 32º] e quanto a lucros e reservas não distribuíveis
[no caso, art. 33º].
As reservas não distribuíveis podem ser legais [art. 218º,
quanto às SPQ, no caso] ou convencionais/estatutárias.
No caso, houve uma distribuição integral dos lucros, inválida
face aos arts. 33º-1 e 218º, que remete para o regime das SA
[arts. 295º e 296º]. A deliberação é, por isso, nula, nos
termos do art. 56º-1d [conteúdo ofensivo de preceito legal
imperativo], na medida em que os sócios não respeitaram o
limite máximo [art. 295º-1]. Está em causa o princípio de
conservação do capital social.
2.
Quanto ao limite mínimo de distribuição dos lucros [arts.
217º-1 e 294º-1], podem os sócios deliberar ou acordar, no
contrato, a distribuição de mais de metade do lucro do
exercício que seja distribuível, mas nunca valor inferior a
metade desse lucro.
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
No caso, os sócios deliberaram não distribuir quaisquer
lucros, pelo que essa deliberação é anulável nos termos do
art. 58º-1 a), por violar disposições legais para as quais não
seja cominada a nulidade.
3.
Há lugar a distribuição antecipada dos lucros nos termos do
art. 297º, quanto às SA, normalmente no final do exercício.
Requisitos [nº 1]: adiantamento previsto no contrato de
sociedade, sob decisão do conselho de administração [e não
em assembleia-geral, art. 31º], precedida de um balanço
intercalar e desde que as importâncias a atribuir não
excedam metade das que sejam distribuíveis.
Não existe base legal correspondente para as SPQ, nem por
remissão. RAUL VENTURA considera tratar-se de uma lacuna
que pode ser integrada através da aplicação analógica do
disposto no art. 297º às SPQ, respeitados os requisitos supra.
§4: PERDA DE METADE DO CAPITAL SOCIAL. O art. 35º dispõe sobre a
hipóteses de perda de metade do capital social das sociedades comerciais:
#1: quando resultar das contas que metade do capital social se
encontra perdido, ou havendo fundada razão para admiti-lo, devem
os gestores convocar de imediato a assembleia-geral ou devem os
administradores requerer prontamente a convocação da mesma, a
fim de informar os sócios da situação, para que estes tomem as
medidas julgadas convenientes.
o Incumprimento deste dever gera responsabilidade civil, nos
termos do art. 523º.
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
#2: considera-se estar perdida metade do capital social quando o
capital próprio da sociedade for igual ou inferior a metade do capital
social.
#3: do aviso convocatório da assembleia-geral constarão os
seguintes assuntos para deliberação:
o a) Dissolução da sociedade
Pôr termo à sociedade antes que se agravem os
perigos para terceiros.
o b) Redução do capital social para montante não inferior ao
capital próprio da sociedade, com respeito do art. 96º-1
Corresponder a realidade nominal à verdadeira
situação patrimonial.
o c) A realização pelos sócios das entradas para reforço da
cobertura do capital
Reforçar os capitais da sociedade.
A entrada em vigor da versão originária do artigo ficou, durante muitos anos,
suspensa. O esquema previsto era mais severo, impondo prazos apertados para a
realização das entradas, pelo que não seria imediatamente exequível e a sua
entrada em vigor dependeria de diploma ulterior. Para mais, o seu teor transcende
a própria 2ª Directriz Comunitária.
exemplo:
A Sociedade A, SA, perante a difícil conjuntura do mercado, tem vindo a
diminuir consideravelmente as suas vendas. Perante as contas do exercício, os
administradores verificaram que o capital próprio da sociedade era inferior a
metade do capital social.
Que atitude devem tomar?
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
Entende-se estar perdido metade do capital social quando o
capital próprio da sociedade é igual [ou inferior – no caso] a
metade do capital social, segundo concretiza o art. 35º-2.
No caso de perda de metade do capital social [art. 35º-1]
devem os gerentes convocar de imediato a assembleia-geral
ou devem os administradores requerer prontamente a
convocação da mesma. Nessa assembleia-geral os sócios
serão informados da situação e convidados a tomar as
medidas julgadas convenientes.
Havendo incumprimento deste dever, pode haver
responsabilidade civil nos termos do art. 523º.
Se nenhuma proposta for aprovada em sede de assembleia-
geral, o art. 35º não prevê qualquer sanção, e
sistematicamente apenas nos deparamos com uma
consequência formal, segundo o disposto nos arts. 171º-2 e
528º-2: pagamento de uma coima pela omissão de menção
em actos externos. O montante da coima deveria, de iure
condendo, ser mais elevado.
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
A COMPARTICIPAÇÃO DOS SÓCIOS NA VIDA SOCIETÁRIA
Acordos Parassociais
§1: ACORDOS PARASSOCIAIS. A comparticipação dos sócios na vida
societária obedece à autonomia privada e à sua livre iniciativa, pelo que se
processa no quadro da lei, dos estatutos da sociedade e de acordos celebrados
pelos sócios, nos quais se insere a categoria de acordos parassociais.
Acordos parassociais são convénios celebrados por sócios de uma sociedade
[podem intervir terceiros], nessa qualidade, visando regular relações societárias.
Distinguem-se do próprio pacto social, uma vez que apenas respeitam a alguns
sócios, aqueles que os celebrem, à margem do contrato de sociedade e sem
interferir no ente colectivo. Por outro lado, distinguem-se de quaisquer outros
acordos celebrados entre os sócios uma vez que, no seu objecto, respeitam a
verdadeiras relações societárias. Quanto à forma, a regra é o consensualismo [art.
219º CC]. Podem ser celebrados secretamente, salvo tratando-se de sociedades
abertas, nos termos do Código de Valores Mobiliários, com exigências de
transparência.
O estudo dos mesmos é pertinente, uma vez que através deste tipo de
acordos podem os sócios defraudar todas as regras societárias e os próprios
estatutos. Estes acordos traduzem, nos países latinos, esquemas de controlo de
poder ou de take over.
São genericamente admitidos pelo art. 17º:
#1: Os acordos parassociais celebrados entre todos ou alguns sócios
pelos quais estes, nessa qualidade, se obriguem a uma conduta não
proibida por lei têm efeitos entre os intervenientes, mas não
justificam a impugnação de actos da sociedade ou dos sócios para
com a sociedade.
o Devem obedecer às limitações gerais constantes do art. 280º
CC: quanto à violação da lei, ordem pública e bons costumes.
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
o A sua eficácia é meramente obrigacional, inter partes [entre
os sócios intervenientes]: relativização dos acordos. Têm
aplicação as regras do Direito das Obrigações.
o As partes, quando pretendam atribuir uma eficácia “absoluta”
aos acordos parassociais, estabelecem pesadas cláusulas
penais, que podem ser reduzidas equitativamente pelo
tribunal, nos termos do art. 812º CC. Outras garantias são:
depósito das acções em contas de garantia [escrow accounts]
e cláusulas de rescisão, com ou sem pré-aviso.
o A execução específica de acordos parassociais não é possível
[vg o tribunal substituir-se-ia aos sócios emitindo a declaração
de vontade/voto em falta], face à esfera de liberdade que se
requer no exercício do direito de voto. A favor da execução
específica dos acordos parassociais, pronunciou-se MARIA DA
GRAÇA TRIGO.
#2: Podem respeitar ao exercício do direito de voto, mas não à
conduta de intervenientes ou de outras pessoas no exercício de
funções de administração ou de fiscalização.
o Tal equivaleria a alterações ao pacto social que, nos termos
gerais, obedecem a exigências de escritura e de registo, com
diversas instâncias de fiscalização. Admitir acordos neste
âmbito equivaleria a admitir, a latere, uma organização
diferente daquela convencionada no pacto social, pondo-se
em causa a tipicidade societária.
o Um sócio gerente pode vincular-se a votar num ou noutro
sentido, na assembleia-geral, mas não no Conselho Fiscal, vg.
Se for administrador único, o acordo é inválido.
o MENEZES CORDEIRO propõe, assim, uma interpretação
restritiva do preceito, caso a caso.
#3: São nulos os acordos pelos quais um sócio se obriga a votar:
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
o a) Seguindo sempre as instruções da sociedade ou de um dos
seus órgãos.
“Instruções da sociedade”: enquanto um todo.
“Um dos seus órgãos”: ou algum dos membros desse
órgão.
Quanto à ratio legis deste preceito, cfr. infra al b).
o b) Aprovando sempre as propostas feitas por estes.
Equivaleria a uma “delegação material” de votos nos
órgãos sociais, que seria equiparável à dissociação
entre o capital e o risco: tudo se passaria como se a
sociedade detivesse acções próprias e como se a
sociedade fosse sócio.
Poria em causa, uma vez mais, o princípio de tipicidade
societária, e a “divisão de poderes” dentro da
sociedade.
MENEZES CORDEIRO propõe a interpretação
restritiva das locuções “sempre” das alíneas a) e b),
sob pena de tirar alcance prático ao preceito. Essas
locuções poderiam levar-nos a crer que a proibição
apenas se cingiria a situações com carácter de
estabilidade [RAUL VENTURA]. Mas há situações que
não têm carácter de estabilidade mas que são de
imensa importância para a sociedade [vg situações que
acontecem pontualmente], e para as quais o âmbito da
proibição deve ser estendido, com base num
argumento de identidade valorativa e teleológica
[MENEZES CORDEIRO]. A interpretação restritiva das
locuções “sempre” equivale a alargar o âmbito da
proibição.
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
o c) Exercendo o direito de voto ou abstendo-se de o exercer em
contrapartida de vantagens especiais.
Proibição da chamada “compra” de votos: o sócio
poderia ser impelido a votar pela motivação da
contrapartida, e não pela deliberação em si.
Ratio legis do preceito: fazer corresponder o risco à
detenção do capital.
“Vantagens especiais” são, para RAUL VENTURA,
vantagens extra-sociais, sem qualquer conexão com a
vida social [e não vantagens de voto ou de nomeação].
Doutrinariamente, as classificações distinguem:
Acordos relativos ao regime das participações sociais:
o Proibições de alienação
o Direitos de preferência
o Direitos de opção, na compra e venda
o Subscrição de aumentos de capital
Acordos relativos ao exercício do direito de voto:
o Determinação do sentido do voto
o Concertação futura
o Reunião em separado, antes de qualquer assembleia-geral
Acordos relativos à organização da sociedade:
o Plano para a empresa
o Repartição dos órgãos societários [indicações e nomeações]
o Obrigação de investimento do capital
o Confrontação com concorrente
o Auditorias internas e externas
As classificações não são rígidas uma vez que, ao abrigo da autonomia
privada, podem as partes celebrar acordos parassociais mistos.
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
Surgem por vezes acordos parassociais que protagonizam verdadeiros
desvios ao art. 17º:
Incluem cláusulas que nada têm a ver com a sociedade em causa
Subscritos pela própria sociedade
Quanto à intervenção de não-sócios neste tipo de acordos, essa intervenção
não põe em causa a validade do acordo, uma vez que é possível a aplicação
analógica do disposto no art. 17º a estas situações, caso a caso. Tratando-se de um
potencial sócio da sociedade, vg, há identidade valorativa entre os dois casos e
justifica-se a aplicação analógica.
exemplo:
1. A, B e C constituíram uma SPQ com um capital social de € 60.000, em
que:
A e B detinham € 10.000 cada.
C detinha € 40.000.
Na data do contrato de sociedade celebraram verbalmente um acordo nos
termos do qual A e B votariam, nas assembleias-gerais, sempre de acordo com as
instruções de C.
2. B zanga-se com C e vota diferentemente. Que pode fazer C?
3. E se as três tivessem combinado que, para aprovar assuntos estratégicos
da sociedade [orçamento, plano de negócios, nomeação dos membros da gerência],
as deliberações só pudessem ser tomadas por unanimidade?
4. No acordo fica estabelecido que B indica os gerentes, mas que estes
devem votar de acordo com a vontade de A, no seio da administração.
71
Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
1.
Estamos perante um acordo parassocial, celebrado
verbalmente [liberdade de forma - art. 219º CC], e conforme
com o disposto no art. 280º CC.
Nada nos é dito quanto a C ser um membro de um órgão da
SPQ ou administrador único da mesma sociedade. O acordo
não é, literalmente, nulo, na medida em que [art. 17º-3]:
o a) Não se trata de A e B seguirem sempre as instruções
da sociedade [enquanto um todo] ou de um dos seus
órgãos [ou membro dos seus órgãos].
o b) Não se aplica.
o c) Não está em causa.
Nada obsta à validade do acordo.
2.
Os acordos parassociais têm eficácia meramente obrigacional,
inter partes, pelo que a deliberação pelo exercício do voto
diferentemente do acordado é inatacável: o incumprimento
do acordo não justifica a impugnação de actos dos sócios para
com a sociedade [art. 17º-1].
C não tem direito à execução específica, uma vez que o
tribunal não se pode substituir aos sócios na emissão do voto
e da declaração de vontade em causa. O incumprimento do
acordo parassocial é inoponível à sociedade.
Se C não estabeleceu cláusulas penais [art. 812º CC] nem
outras garantias, em caso de incumprimento, há apenas
responsabilidade obrigacional de B, nos termos dos arts. 798º
ss CC, desde que verificados os pressupostos da
responsabilidade civil [cuja prova é, na prática, de difícil
demonstração].
3.
72
Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
Trata-se de um acordo parassocial relativo à organização da
sociedade com concertação futura por unanimidade,
protegendo-se os sócios minoritários. É válido, nos termos do
art. 17º, e face à liberdade contratual de que dispõem os
sócios [art. 405º CC].
4.
Quanto ao acordo parassocial de indicação e nomeação dos
gerentes + exercício do voto de acordo com a vontade de um
dos sócios, no seio da administração, cumpre estabelecer a
seguinte divisão:
o Indicação e nomeação dos gerentes: os gerentes
podem ser eleitos posteriormente ao contrato de
sociedade por deliberação dos sócios, nas SPQ, nos
termos do art. 252º-2. Trata-se de um acordo
parassocial relativo à organização da sociedade e à
repartição dos órgãos societários. Esta parte do acordo
é válida, uma vez que nada tem a ver com a conduta de
sócios no exercício de funções de administração ou de
fiscalização [art. 17º-2] – não se reporta à conduta do
gerente da SPQ.
o Exercício do voto de acordo com a vontade de um dos
sócios, no seio da administração: acordo parassocial
que respeita à conduta de pessoas no exercício de
funções de administração ou de fiscalização, proibido
pelo art. 17º-2, 2ª parte.
Direito à Informação
§1: DIREITO À INFORMAÇÃO. O direito à informação encontra-se
genericamente previsto no art. 21º-1 c): todo o sócio tem direito a obter
73
Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
informações sobre a vida da sociedade, nos termos da lei [do Direito, no seu todo] e
do contrato.
Quanto ao acesso, a informação pode ser:
Pública: disponibilizada a todos os interessados, sócios ou não-sócios
[vg registo comercial e publicações obrigatórias – art. 167º].
Reservada: assiste aos sócios [art. 21º-1c) e 288º-1].
Qualificada: assiste apenas aos sócios que detenham posições
consideráveis no capital da sociedade [art. 214º e 291º - sob pena de
anulabilidade da deliberação, art. 291º-3].
Secreta: não pode ser disponibilizada aos sócios, já que se trata de
informação sujeita a sigilo profissional [art. 291º-4a), b) e c].
São anuláveis as deliberações que não tenham sido precedidas do
fornecimento ao sócio de elementos mínimos de informação: as menções exigidas
pelo art. 377º-8 [aviso convocatório de assembleia-geral] e a colocação de
documentos para exame dos sócios no local e durante o tempo prescritos pela lei
ou pelo contrato – art. 58º-1c) e nº 4 a) e b).
Face ao teor dos arts. 288º [informação intercalar] e 289º [informação
preparatória da assembleia-geral], questionou-se se a enumeração legal seria
taxativa ou não. Hoje considera-se assente: os elementos indicados pela lei como
objecto de informação são taxativos.
Constituem limites à informação qualificada nas SPQ [art. 214º - “gestão
qualificada”] os que advenham do próprio contrato ou, propõe MENEZES
CORDEIRO, da aplicação analógica dos arts. 290º-2 e 291º-4 [o último a interpretar
restritivamente]. No caso das SA [“assuntos sociais”], exige-se uma participação de
10% do capital social, para a qual se admitem agrupamentos de sócios [art. 291º].
Nas sociedades de capitais, poder-se-ia considerar que a informação aos
sócios seria dispensável, uma vez que a gestão deveria ser entregue a
especialistas. Todavia, a informação aos sócios opera:
Como pressuposto do voto em assembleia-geral
Como meio de legitimação dos investimentos e do mercado
74
Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
Como forma de fiscalização da administração
Como tutela das minorias
Ainda assim, o âmbito do direito de informação é menor nas SA do que nas
SNC [mais amplo], sendo intermédio no caso das SPQ.
Conclui-se: o direito à informação é irrenunciável e inderrogável [art. 809º
CC], inserindo-se na realidade patrimonial das participações societárias.
exemplo:
A, B, C, D e E constituíram uma SA, cujo objecto social era a comercialização
de tecidos, com o capital social de € 5.000. No contrato de sociedade, B é
designado administrador único. D e E desconfiam da actuação de B como
administrador e pedem-lhe que preste informações sobre a mesma. B, passados 20
dias, ainda não respondeu.
O direito à informação encontra-se previsto em termos
genéricos no art. 21º-1c) e, quanto às SA, nos arts. 288º ss –
previsto em termos mais restritivos.
Permite um controlo dos sócios sobre os administradores,
face ao distanciamento entre comitente e comissário.
No caso, encontramo-nos perante o exercício do direito
mínimo à informação, nas SA: qualquer accionista que possua
acções correspondentes a, pelo menos, 1% do capital social
[agrupando-se a outros sócios, para o efeito] pode consultar,
desde que alegue motivo justificado, relatórios, convocatórias
e montantes globais [art. 288º-1, taxativamente].
Para mais, os sócios podem averiguar responsabilidades de
membros do conselho de administração [no caso], nos termos
do direito colectivo à informação [art. 291º-2], sem caber
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
recusa desses membros. No caso, não há uma recusa, mas
sim a inércia do administrador único, que nada faz: para
obstar a estas situações, o legislador ficciona uma recusa de
informação no nº 5, volvidos 15 dias e valendo como tal
[figura semelhante ao indeferimento tácito].
Pode ser requerido um inquérito judicial, nos termos do art.
292º e 1479º ss CPC, perante o qual o juiz [art. 292º-2 a), b) e
c]:
o Pode determinar que a informação seja prestada
o Pode destituir o administrador, nomeando outro em
seu lugar
o Pode ordenar a dissolução da sociedade [arts. 141º ss]
Deliberações Sociais
§1: DELIBERAÇÕES SOCIAIS. A deliberação é, para o Direito, a decisão de
um órgão colectivo, sobre uma proposta, na qual cada participante nesse órgão tem
um [ou mais] votos. O voto é, neste sentido, a recusa ou aceitação de uma proposta
de deliberação.
A vontade é um fenómeno psicológico puramente humano e individual:
ainda assim, a deliberação surge assimilada a uma vontade colectiva, mediante
esquemas abstractos que ficcionam essa mesma vontade.
As deliberações dos sócios encontram-se reguladas nos arts. 53º a 63º, para
alem dos preceitos específicos de cada tipo social:
SNC: arts. 189º ss
SPQ: arts. 246º ss
SA: arts. 373º ss
SEC: arts. 472º ss
76
Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
Segundo o disposto no art. 53º-1, os órgãos sociais estão sujeitos ao
princípio da tipicidade, uma vez que os sócios não podem “deliberar” foram dos
figurinos orgânicos previstos para cada tipo de sociedade.
Quanto à forma, no sentido técnico-jurídico a que nos habituámos, prevalece
a liberdade de forma [art. 219º CC]: os sócios podem deliberar como bem
entenderem [de braço levantado, de pé, por escrito, etc.].
Existem dois grandes tipos de procedimento de deliberação:
Deliberação em assembleia: actualmente, inclui mesmo
teleconferência, uma vez que não há, entre as diversas
manifestações de vontade, um lapso de tempo juridicamente
relevante [MENEZES CORDEIRO].
o Convocatória cabal: dirigida a todas as pessoas que tenham o
direito de participar na assembleia
Indicação do local, hora e ordem de trabalhos
Assinada pela pessoa com competência para a
convocação
SA: publicação obrigatória da convocatória [arts. 167º-
1 e 377º-2].
o Reunião em assembleia: presidência, secretariado, verificação
de presenças e acta [art. 63º]
o Debate
o Votação: escrutínio e proclamação do resultado
Normalmente, por maioria do capital representado
Eventualmente: maioria qualificada ou até
unanimidade
Voto: real e não pessoal – depende do capital detido ou
representado por cada votante.
o Elaboração da acta: proclamação do resultado [art. 63º]
Deliberação por escrito [art. 54º]:
o Desde de haja aprovação por unanimidade [nº1].
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
o Os sócios prescindem da troca de opiniões e de argumentos e
da obtenção de novas informações para emitirem as
respectivas declarações de vontade em separado, com a
ocorrência de lapsos de tempo relevantes entre elas.
o MENEZES CORDEIRO propõe um entendimento lato de “por
escrito”: inclui gravação ou vídeo, mas não “reunião”, ainda
que virtual [vg teleconferência, cfr. supra].
Deliberação em assembleias universais totalitárias: art. 54º
o Assembleias-gerais que reúnam sem observância de
formalidades prévias, desde que [nº1]:
Todos estejam presentes
Todos manifestem a vontade de que a assembleia se
constitua e delibere sobre determinado assunto
o Dispensa-se todo o esquema de convocatória supra: não tendo
qualquer ordem do dia, só pode deliberar sobre assuntos que
todos os sócios tenham concordado pôr à apreciação do
colectivo societário.
Estas formas de deliberação são comuns a todos os tipos societários.
exemplo:
Sem qualquer convocação, encontram-se todos os sócios na sede social.
Se manifestarem vontade de constituir uma assembleia,
apesar da falta do acto formal de convocação em causa,
poderão deliberar nos termos do art. 54º-1 [assembleia
universal ou totalitária, em que todos manifestam a vontade
de que a assembleia se constitua e delibere].
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
Se na assembleia, apesar de não convocada [art. 56º-2, por
incompetência, vg], estivessem estado presentes ou
representados todos os sócios: não há qualquer vício, nem
nulidade do art. 56º-1a) [será uma mera irregularidade].
Distingue-se da assembleia universal ou totalitária, uma vez
que, aqui, não há qualquer intenção de que a mesma se
constitua e delibere.
exemplo:
A, B e C constituíram uma SPQ com o capital social de € 60.000, na qual
detêm quotas, respectivamente, no valor de €30.000, €10.000 e €20.000,
realizadas integralmente no momento da escritura pública. Nos termos do contrato
de sociedade, B detinha um direito de voto superior ao de A e C: 2 votos por cada
cêntimo do valor nominal da sua quota.
A gerência seria atribuída a um dos sócios por períodos de três anos: C foi
designado gerente para 2005/2007.
O direito de voto encontra-se genericamente previsto no art.
21º-1 b): direito à participação nas deliberações. Distribui-se
da seguinte forma:
SPQ: um voto por cada cêntimo do valor nominal da quota
[art. 250º-1]: princípio capitalístico. B detém um direito
especial ao voto [2 votos por cada cêntimo do valor nominal
da quota] – possível nos casos em que os dois votos por cada
cêntimo não correspondam a mais de 20% do capital social
[art. 250º-2]. A quota de B é de € 10.000, 1/6 do capital social
79
Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
[€ 60.000]. Se 1/5 = 20%, 1/6 é inferior a 20%, pelo que o
direito especial foi atribuído em conformidade com a lei.
SA: a cada acção corresponde um voto [art. 384º-1].
A transmissibilidade dos direitos especiais nas SPQ encontra-
se prevista no art. 24º-3.
§2: ACTA. A acta é o documento de onde consta o relato pormenorizado do
decurso de uma reunião.
o O seu conteúdo mínimo encontra-se regulado no art. 63º-2.
o No interesse dos participantes da deliberação, deve-se fixar em
documento oficial o que se discutiu e, sobretudo, o que se decidiu: a
partir daí, só o que constar da acta é que vale para efeitos de prova.
o Tutela-se os terceiros, que podem ter um interesse legítimo em
conhecer o que foi deliberado.
o Não havendo acta, a deliberação está incompleta [falta-lhe
formalidade essencial, ad probationem], uma vez que carece de
formalização e de exteriorização. A deliberação será, assim, ineficaz
stricto sensu.
§3: DELIBERAÇÕES INEFICAZES LATO SENSU. Com recurso ao esquema
de MENEZES CORDEIRO já apresentado supra, estudaremos as deliberações
ineficazes lato sensu: inválidas e ineficazes stricto sensu.
Eis o quadro de consequências dos vícios das deliberações:
Deliberações aparentes: relevam para as regras registais da tutela da
aparência
Deliberações ineficazes lato sensu:
o Deliberações nulas [art. 56º]: têm um vício em si, que as
afecta
o Deliberações anuláveis [art. 58º]: conferem, a certos
interessados, o direito potestativo de as impugnar
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
o Deliberações ineficazes stricto sensu [art. 55º e 63º]: não
produzem efeitos até certa eventualidade
Nulidade [art. 56º - formais e
subst.]
Invalidade Invalidades mistas [art. 56º-1a) e
b) 3]
Anulabilidade [art. 58º]
Ineficácia lato sensu
das deliberações
Ineficácia stricto sensu [art. 55º, 24º e 63º]
§4: DELIBERAÇÕES INEFICAZES STRICTO SENSU. As deliberações
ineficazes em sentido estrito são aquelas que, por razões extrínsecas, não
produzem efeitos ou, pelo menos, todos os efeitos que se destinariam a produzir.
A deliberação tomada sobre assunto para a qual a lei exige já o
consentimento de determinado sócio, é ineficaz para todos os sócios enquanto o
interessado não der o seu acordo, expressa ou tacitamente [art. 55º] – recorde-se o
disposto no art. 24º, a respeito dos direitos especiais dos sócios.
Outro exemplo de ineficácia em sentido estrito das deliberações, já referido
[supra §2], é o da deliberação não reduzida a acta [art. 63º]. O mesmo se diga das
deliberações sujeitas a registo comercial.
§5: DELIBERAÇÕES NULAS. Uma vez que a regra, no campo do Direito das
Sociedades Comerciais, é a da anulabilidade [art. 58º-1 a], esta é de aplicação
residual, para os casos em que a lei não determine a nulidade como vício da
deliberação. Nestes termos, os casos de nulidade são taxativos, ainda que
abranjam situações de grande amplitude e de importante aplicação prática.
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
O vício de uma deliberação nula pode resultar de:
Vícios formais, de processo ou de procedimento [art. 56º-1 a) e b]: a
deliberação é, em si, possível, embora não tenha sido respeitado o
processo/procedimento [cfr. supra §1] previsto para a sua emissão.
o Não convocação de assembleia-geral [salvo se tiverem estado
presentes todos os sócios] – alínea a).
E se, apesar de o sócio não ter sido convocado, estar
seguro e confirmado que a sua presença não alteraria o
sentido da deliberação? – Questão irrelevante. A
deliberação é, ainda assim, nula, uma vez que respeita
um ritual legitimador: a convocação.
Sanável nos termos do nº 3 – invalidade mista.
Pode ser renovada [art. 62º-1].
o Deliberações tomadas por voto escrito sem que todos os
sócios com direito de voto tenham sido convocados a exercê-
lo [salvo se todos eles tenham dado por escrito o seu voto] –
alínea b).
Sanável nos termos do nº3 – invalidade mista.
Pode ser renovada [art. 62º-1].
Vícios substanciais ou de conteúdo [art. 56º-c) e d]: o procedimento
prescrito foi seguido, mas a própria deliberação defronta a lei ou os
estatutos.
o Deliberações cujo conteúdo não esteja, por natureza, sujeito a
deliberações dos sócios – alínea c).
Insanável: a deliberação deve ser repetida, para que se
expurgue o vício de conteúdo.
Nota: várias foram as teorias que tentaram explicar a ratio legis deste
preceito:
82
Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
Teoria da incompetência: a alínea c) invalidaria actos estranhos à
competência da assembleia-geral [LOBO XAVIER, CARNEIRO DA
FRADA e RAUL VENTURA].
o Críticas: PINTO FURTADO entendeu que a mera
inobservância de regras internas de competência não poderia
ser tão grave que justificasse a nulidade. MENEZES
CORDEIRO reconduz os vícios de incompetência à cláusula
geral de anulabilidade [art. 58º-1a], uma vez que os terceiros
não conhecem nem têm que conhecer a divisão interna das
competências de uma sociedade. A incompetência é um
problema puramente interno. Não pode ser reconduzida à
alínea d) na medida em que não respeita ao conteúdo da
deliberação, mas sim a uma questão de facto, a divisão de
competências.
Teoria da impossibilidade: a alínea c) consideraria nulas as
deliberações fisicamente impossíveis; as deliberações legalmente
impossíveis cairiam na alínea d) [PINTO FURTADO].
o Críticas: teoria que reconstruiu o art. 280º CC – porque haveria
o legislador de 1986 [CSC] contrariar o legislador de 1966
[CC], abandonando conceitos consagrados e definindo novas
fórmulas? Cindiu as impossibilidades física e legal e rema
contra a actual corrente civil: a possibilidade deixou de ser
requisito de validade da obrigação, com a reforma do BGB de
2002.
MENEZES CORDEIRO: deliberações que, pelo seu teor, não caibam
na capacidade da pessoa colectiva [teoria da capacidade]. Escassa
importância deste vício, face à perda de alcance dogmático do
princípio da especialidade, e pouco alcance prático do mesmo. Para
outros autores, a incapacidade reconduz-se à alínea d) [LOBO
XAVIER].
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
o Deliberações cujo conteúdo seja ofensivo dos bons costumes
ou de preceitos legais inderrogáveis, nem sequer por vontade
unânime dos sócios – alínea d).
Insanável: a deliberação deve ser repetida, para que se
expurgue o vício de conteúdo.
Bons costumes: regras de conduta familiar e sexual e
códigos deontológicos próprios de certos sectores –
deliberações que assumam conteúdo sexual ou que
atentem contra deontologias profissionais.
Preceitos legais inderrogáveis: deliberações contrárias
a normas legais imperativas. Uma norma legal será
imperativa quando:
Integre a ordem pública [vectores constituintes
do sistema] – art. 260º-1, vg.
Concretize princípios injuntivos [civis ou
societários]
Institua ou defenda posições de terceiros
Consequências da nulidade:
Invocável a todo o tempo
Por qualquer interessado [art. 286º CC]
Deve ser dada a conhecer aos sócios pelo órgão de fiscalização, em
assembleia-geral [art. 57º-1]
§6: DELIBERAÇÕES ANULÁVEIS. A cláusula geral da invalidade das
deliberações sociais consta do art. 58º-1a): havendo violação da lei ou do contrato
de sociedade, quando não caiba nulidade, as deliberações em falta são anuláveis.
Violações da lei [do Direito, em termos amplos] e do contrato para as
quais não esteja prevista a nulidade [alínea a]: este preceito move-se
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
entre dois valores em permanente contradita – a justiça [fazer valer
as posições dos sócios vítimas de ilegalidades] e a segurança jurídica
[restrição das invalidades das deliberações].
o Tratando-se de vícios de forma ou de omissão de
formalidades, haverá que procurar preencher o disposto no
art. 56º [nulidade]: todas as hipóteses que não estejam
previstas nessa norma, geram anulabilidade.
Nota: em termos práticos devemos primeiro procurar preencher todas as
alíneas do art. 56º, e só depois recorrer ao art. 58º.
o Violações do contrato: normas supletivas. Ao contratar, as
partes assentaram na aplicabilidade dos estatutos, pelo que
se compreende que não possam ser surpreendidas com
deliberações maioritárias que equivalham a alterações do
contrato. Quando a norma possa ser afastada pela
unanimidade dos sócios [art. 56º-1d), 2ª parte], há
supletividade [art. 9º-3], pelo que a deliberação será
impugnável/anulável e não nula. Quando essa violação dos
estatutos seja decidida por unanimidade, nenhum dos sócios a
poderá impugnar, devendo entender-se que o órgão de
fiscalização também não o pode fazer [entendimento restritivo
de MENEZES CORDEIRO, ao contrário do disposto no art.
59º-1]. Deverá entender-se que os estatutos foram
modificados, de modo informal, pela unanimidade dos sócios.
Nota: simples violações de acordos parassociais não são causas de
anulabilidade, uma vez que a sua eficácia é meramente obrigacional [cfr. supra].
Vantagens especiais e votos abusivos [alínea b]: são anuláveis as
deliberações que satisfaçam o propósito de um dos sócios conseguir
vantagens especiais para si ou para terceiro, em prejuízo da
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
sociedade ou de outros sócios [a menos que se prove que as
deliberações seriam tomadas mesmo sem os votos abusivos].
o Historicamente, este preceito pretendia cobrir as hipóteses de
invalidade engendradas por elementos exteriores à própria
deliberação.
o Votos abusivos: aqueles que, objectiva e subjectivamente,
acarretem vantagens especiais para o próprio, em detrimento
da sociedade ou de terceiros ou que tenham natureza
emulativa, visando prejudicar a sociedade ou outros sócios.
o Vantagens especiais: vantagens que assistam particularmente
a um sócio ou a terceiros, e não a todos os sócios ou a uma
generalidade de terceiros.
o Acto emulativo: aquele que visa provocar danos gratuitos a
outrem.
o MENEZES CORDEIRO: poder-se-ia reconduzir esta alínea ao
abuso de direito [exercício inadmissível de posições jurídicas
contrárias à boa fé], uma vez que os votos abusivos, na
vertente “vantagens especiais” traduzem uma actuação fora
da permissão jurídica em jogo. Todavia, o autor entende não
se tratar de um verdadeiro abuso do direito mas sim de falta
de direito. Os votos emulativos serão abusivos, na versão
“desequilíbrio no exercício” [vg chaminé de Colmar]. Certos
votos não podem, enfim, prosseguir finalidades “extra-
societárias”. As deliberações verdadeiramente abusivas [que
incorram em abuso do direito, nos termos gerais], contrárias à
boa fé, devem ser reconduzidas à cláusula geral da alínea a).
Deliberações que não tenham sido precedidas do fornecimento de
elementos mínimos de informação ao sócio [alínea c]: os “elementos
mínimos de informação” são concretizados pelo nº 4 [menções que
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
devem constar do aviso convocatório de assembleias em SA, e
aplicável às SPQ – art. 377º-8 e 248º-1; e a colocação de documentos
para exame dos sócios no local e durante o tempo prescritos pela lei
ou pelo contrato].
o Face à necessidade de unificação sistemática da matéria,
MENEZES CORDEIRO propõe que outras situações de
inobservância do direito à informação [cfr. supra] que não se
enquadrem nesta alínea, devam, ainda assim, ser
reconduzidas à mesma, e não à cláusula geral da alínea a).
Disposições sobre a acção de anulação [art. 59º]:
A legitimidade para a acção de anulação é conferida ao órgão de
fiscalização ou a qualquer sócio que não tenha votado no sentido que
fez vencimento nem, posteriormente, tenha aprovado a deliberação,
expressa ou tacitamente [nº 1].
o MENEZES CORDEIRO propõe a interpretação restritiva do
preceito: se todos os sócios aprovarem uma deliberação
anulável ou se o sócio prejudicado vier confirmá-la, o órgão de
fiscalização não pode impugná-la. A actuação do órgão de
fiscalização só se justifica quando a deliberação não tenha
sido integralmente adoptada ou confirmada.
o A intervenção de qualquer sócio, desde que não tenha votado
no sentido que fez vencimento nem, posteriormente, tenha
aprovado a deliberação, expressa ou tacitamente, surge
prevenindo o venire contra factum proprium.
o Havendo voto secreto [nº 6], considera-se que não votaram no
sentido que fez vencimento apenas aqueles sócios que, na
própria assembleia ou perante notário, nos cinco dias
seguintes à assembleia, tenham feito consignar que votaram
contra a deliberação tomada. Neste caso, a deliberação
87
Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
tornar-se-á inimpugnável, uma vez que não foi, por algum
sócio, observado o procedimento supra.
Prazo: 30 dias, contados nos termos do nº 2
o Deliberação em assembleia: a data em que foi encerrada a
assembleia-geral.
o Deliberação por voto escrito: do 3º dia subsequente à data do
envio da acta.
o Deliberação que incida sobre assunto que não constava da
convocatória: da data em que o sócio tenha tido
conhecimento da deliberação.
o O facto de ser intentado um procedimento cautelar de
suspensão da deliberação social não impede este decurso do
prazo.
§7: DISPOSIÇÕES COMUNS À NULIDADE E À ANULABILIDADE.
Tanto a acção de nulidade como a acção de anulação devem ser propostas
contra a sociedade [art. 60º-1]: qualquer sociedade corre o risco de ser demandada
por deliberações dos seus próprios sócios. Por interpretação extensiva ou por
aplicação analógica do preceito, o mesmo se diga face às acções de ineficácia ou de
inexistência da deliberação [embora a última não deva ser considerada um vício
autónomo, segundo MENEZES CORDEIRO].
Em qualquer dos casos, impugnam-se deliberações, no seu todo, e não
simples votações, uma vez que o voto não representa, por si só, uma posição da
sociedade sobre determinado assunto. Não tem qualquer relevância societária
quando desinserido do todo que é a deliberação social.
Quanto à eficácia do caso julgado, o art. 61º-1 dispõe que a sentença que
declarar nula ou anular uma deliberação é eficaz contra e a favor de todos os sócios
e órgãos da sociedade, mesmo que não tenham sido parte ou que não tenham
intervindo na acção: o caso julgado não opera, por isso, quando a causa de
invalidação seja diversa, uma vez que o preceito é claro quanto a esse sentido. O nº
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2 visa tutelar a confiança e a boa fé ética de terceiro, uma vez que este tipo de
acções estão sujeitas a registo comercial [art. 9º e) CRC].
A renovação da deliberação inválida permite que, perante meras suspeitas
de vício de que a deliberação padeça, a mesma seja à partida retomada sem o
ponto questionado, como cautela [art. 62º]. Pode ser renovada quando nula por
vício de procedimento grave [nº 1º e art. 56º-1 a) e b] – não se trata de qualquer
convalidação, antes ocorrendo uma segunda e própria deliberação, que visa
produzir os mesmos efeitos jurídicos da anterior. A contrario sensu, não são
susceptíveis de renovação as deliberações que inquinem em vício substantivo [art.
56º-1 c) e d], uma vez que a “nova” deliberação, válida, seria necessariamente
diferente da anterior.
A anulabilidade cessará se os sócios renovarem a deliberação anulável
mediante outra deliberação, desde que a “nova” não enferme do vício da
precedente [nº 2]: não se distinguem vícios formais ou vícios substantivos e a lógica
é a de que uma verdadeira renovação pressupõe que a segunda deliberação tenha
um conteúdo idêntico ao da primeira, sem o vício em causa.
exemplo:
Os cinco sócios da Sociedade X, Lda., encontram-se incidentalmente na sede
da mesma, decidindo, por comum acordo, deliberar sobre determinados assuntos.
B, que votou contra numa das deliberações em causa, invoca agora a nulidade da
mesma, por falta de convocação.
Trata-se de uma assembleia-geral universal ou totalitária
[art. 54º-1], a qual só pode deliberar por unanimidade, uma
vez que todos os sócios manifestaram vontade em que a
mesma se constituísse e deliberasse [“decidindo, por comum
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acordo, deliberar”]. Aplicam-se as regras gerais
relativamente ao funcionamento da assembleia [nº 2].
Mesmo se considerássemos tratar-se de assembleia não
convocada, nos termos gerais [art. 56º-1a], a mesma seria
válida, uma vez que todos os sócios estavam presentes.
Não tendo havido unanimidade, B não pode, ainda assim,
invocar a nulidade por falta de convocação, uma vez em que
deu o seu assentimento em que a assembleia-geral universal
deliberasse.
exemplo:
O gerente da Sociedade Y, Lda., não conseguia reunir todos os sócios, pelo
que ficou decidido que a deliberação seria por escrito: foram enviadas cartas com a
proposta de deliberação a todos os sócios menos a D, que, por isso, não votou.
D concordava inteiramente com a deliberação tomada e, por isso, deu o seu
consentimento à mesma por escrito, em momento posterior.
Estamos perante um exemplo de deliberação por voto escrito
numa SPQ [deliberação essa que não se encontra prevista no
âmbito das SA], possível desde que verificados os requisitos
do art. 247º. Este tipo de deliberação não deve ser
confundida com a deliberação unânime por voto escrito,
prevista no art. 54º.
Não tendo um dos sócios sido convocado, ainda assim não
colhe nulidade nos termos do art. 56º-1b, uma vez que a
mesma foi sanada através do assentimento, por escrito, de D
[nº 3].
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A nulidade não poderia ser invocada e a deliberação
convalida-se.
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
exemplo:
Os administradores da Sociedade Z, SA, cujas acções são todas nominativas,
enviam cartas registadas com aviso de recepção a todos os accionistas. E não
compareceu e considera que as deliberações tomadas são inválidas.
Nas SA, as acções são geralmente ao portador [anónimas].
Quando todas sejam nominativas [das quais conste o nome do
sócio que as subscreve], a convocatória por publicação [art.
167º e 377º-2] pode ser substituída por cartas registadas [no
caso] ou por correio electrónico com recibo de leitura [art.
377º-3]. Esta forma de comunicação aos accionistas tem que
constar do contrato de sociedade, sob pena de se considerar
que a assembleia não fora convocada. Assim, se nada estiver
previsto e se um sócio receber uma carta registada com aviso
de convocatória, a mesma não produzirá qualquer efeito, pelo
que o sócio poderá destruí-la, guardá-la, não comparecendo a
nenhum título.
A convocação deve ser feita pelo presidente da mesa da
assembleia-geral da SA [nº 1], tendo-se por não convocada a
assembleia cujo aviso de convocatória tenha sido assinado
por quem não tenha essa competência [art. 56º-2, em
concretização do art. 56º-1a]. Temos, face a este problema,
três cenários possíveis:
o A assembleia não foi convocada, mas todos estiveram
presentes: não há nulidade, nem sequer sanação da
mesma [art. 56º-1 a].
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
o A assembleia não foi convocada, só alguns sócios
estiveram presentes mas os outros deram o seu
assentimento por escrito: há nulidade, mas sanável
[art. 56º-1 a ) e nº 3].
o NO CASO - a assembleia não foi convocada, só alguns
sócios estiveram presentes e os outros não deram o
seu assentimento por escrito: há nulidade, pelo que
pode haver renovação da deliberação [art. 56º-1 a), nº
2 e art. 62º]. Legitimidade: art. 286º CC e iniciativa:
art. 57º.
exemplo:
Os accionistas A e B pretendem, antes da realização da assembleia-geral da
Sociedade T, SA, já convocada, incluir outros assuntos na ordem do dia.
A ordem do dia deve constar do aviso de convocatória [art.
377º-5 e] e outros assuntos poderão ser incluídos nos termos
do art. 378º, com remissão para o art. 375º-2.
Pressupostos: poderão fazê-lo se possuírem acções
correspondentes a, pelo menos, 5% do capital social. O
requerimento a apresentar deve ser dirigido por escrito ao
presidente de mesa e comunicado aos accionistas [arts. 378º-
2 e 3]. Os sócios que preencham estes requisitos poderão,
tão-só, “requerer” o aditamento de outros assuntos na ordem
do dia, e não enviar avisos de convocatória aos restantes
sócios. Se o fizerem, esses avisos não produzem qualquer
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
efeito e os sócios podem destruí-los, guardá-los, não
comparecendo a nenhum título.
Podem os accionistas E e F da Sociedade R, SA, promover a convocação de
uma assembleia-geral?
Podem “requerer” que a assembleia seja convocada, se
possuírem acções correspondentes a, pelo menos, 5% do
capital social, mas não convocá-la proprio sensu, uma vez que
a convocatória cabe ao presidente de mesa [art. 375º-2].
Se convocarem a assembleia, proprio sensu, a mesma tem-se
por não convocada, nos termos do art. 56º-2, por
incompetência de quem assinara o aviso de convocatória.
exemplo:
A nomeia B para o representar na assembleia-geral da SA de que ambos são
accionistas.
A representação de accionistas é possível nos termos do art.
380º-2: basta um documento escrito, com assinatura, dirigido
ao presidente de mesa.
O contrato de sociedade não pode proibir a representação de
accionistas [nº 1].
Diferentemente, nas SPQ, não é permitida a representação
voluntária nas deliberações por voto escrito [art. 249º].
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exemplo:
Na assembleia-geral da Sociedade X, Lda., convocada pelo gerente por carta
registada com aviso de recepção dirigida a todos os sócios, delibera-se sobre
assuntos não constantes do aviso convocatório, tendo todos os sócios votado por
unanimidade aprovar tais propostas.
À assembleias-gerais das SPQ [art. 248º-1] aplica-se o
disposto nos arts. 373º ss, quanto às SA. A convocação pode
ser feita por qualquer dos gerentes, mediante carta registada
[art. 248º-3].
Aplica-se o disposto no art. 377º-5 e 8 quanto ao aviso de
convocatória: se deliberarem sobre assuntos não constantes
do aviso convocatório, a deliberação é anulável nos termos da
cláusula geral do art. 58º-1 a) e c) – art. 377º-8.
A legitimidade para arguir a anulabilidade encontra-se
prevista no art. 59º-1. Se todos os sócios votaram no sentido
que fez vencimento, nenhum pode arguir a anulabilidade,
nem mesmo o órgão de fiscalização, segundo o entendimento
restritivo de MENEZES CORDEIRO.
exemplo:
Os sócios deliberaram retirar a C o direito especial aos lucros de que era
titular.
C, que votou contra, entende que a deliberação é anulável.
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
O direito especial aos lucros [art. 24º] não pode ser suprimido
ou coarctado sem o consentimento do seu titular [C] – nº 5.
As deliberações tomadas sobre assuntos para o qual a lei
exija o consentimento de determinado sócio são ineficazes
stricto sensu para todos se o interessado [C] não der o seu
acordo, expressa ou tacitamente [art. 55º].
Outro exemplo de ineficácia em sentido estrito é a
deliberação não reduzida a acta [art. 63º].
exemplo:
Os sócios da Sociedade Z, Lda., que se dedica à actividade de restauração,
deliberam abrir uma loja de desporto.
Supra analisámos os actos que violassem esse objecto. Agora,
cumpre recordar os efeitos das deliberações que o façam:
As deliberações tomadas pelos sócios fora da capacidade da
sociedade são anuláveis, segundo MENEZES CORDEIRO, nos
termos do art. 56º-1c) [veja-se a teoria da incapacidade, do
mesmo autor – cfr. supra]. Outros autores também sustentam
a anulabilidade das deliberações sociais, embora o façam com
recurso ao disposto no art. 56º-1d).
As deliberações tomadas pelos sócios dentro da capacidade,
mas fora do objecto, são anuláveis nos termos da cláusula
geral do art. 58º-1a), já que se trata de violação de
disposições do contrato de sociedade – art. 9ºd).
No caso, estamos perante uma deliberação que se encontra
dentro da capacidade da sociedade [lucro] mas fora do
objecto [actividade desenvolvida] da mesma – art. 6º-1.
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
Como tal, a mesma é anulável nos termos do art. 58º-1a),
relativamente a violações do contrato, na medida em que o
objecto está definido no contrato de sociedade [art. 9ºd].
exemplo:
A Sociedade Y, SA, delibera conceder, gratuitamente, uma fiança a G. Um
dos sócios pretende anular a deliberação, por esta violar a capacidade da
sociedade.
A fiança é uma garantia pessoal, e foi no caso concedida a
título gratuito. Segundo o art. 6º-3, considera-se contrária ao
fim da sociedade a prestação de garantias reais ou pessoais a
dívidas de outras entidades, salvo se existir “justificado
interesse próprio” da sociedade garante ou se se trata de
sociedade em relação de domínio ou de grupo [arts. 486º e
488º].
A deliberação é, por isso, nula, com base na alínea c) do art.
56º-1, seguindo a teoria da incapacidade de MENEZES
CORDEIRO. O “justificado interesse próprio” é definido pela
própria sociedade, pelo que a norma perde alcance prático.
Não havendo justificado interesse, a deliberação é nula.
Outros autores reconduzem o problema à nulidade pela alínea
d).
A competência para decidir da prestação de garantias cabe ao
conselho de administração [art. 406º f) e 373º-3]. A
deliberação padece de incompetência pelo que, segundo
MENEZES CORDEIRO, a mesma é anulável [art. 58º-1 a], e não
nula [art. 56º-1c), teoria da incompetência].
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
exemplo:
Os accionistas da Sociedade X, SA, deliberam não distribuir quaisquer lucros.
O sócio A, titular de 0,5% do capital social, pretende impugnar a deliberação,
invocando o seu direito aos lucros.
O direito aos lucros encontra-se genericamente previsto no
art. 21º-1a) e, em termos especiais, nos arts. 294º-1, quanto
às SA, e art. 217º, quanto às SPQ.
Numa SA, não pode deixar de ser distribuída metade dos
lucros [art. 294º-1], apesar de esta disposição poder ser
derrogada pelos sócios [pelo que a deliberação em causa não
é nula nos termos da alínea d].
exemplo:
Os accionistas da Sociedade Z, SA, deliberam, por unanimidade, distribuir a
totalidade dos lucros do exercício, não obstante os prejuízos transitados.
A deliberação é nula [alínea d] por violar a reserva legal não
distribuível que consta do art. 33º. Pretende-se salvaguardar
terceiros credores.
exemplo:
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Os sócios de uma SA deliberaram atribuir ao administrador Z, irmão de A,
accionista detentor de 80% do capital social, uma remuneração superior à comum
nesse sector, com voto a favor de A e votos contra de todos os outros sócios.
A deliberação é anulável por votos abusivos e actos
emulativos [art. 58º-1b]: é o voto que é emulativo, e não a
deliberação em si, ou cairia na nulidade da alínea d) por
abuso de direito.
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SOCIEDADES POR QUOTAS EM ESPECIAL
PRESTAÇÕES ACESSÓRIAS E PRESTAÇÕES SUPLEMENTARES
Prestações Acessórias
§1: OBRIGAÇÕES DE PRESTAÇÕES ACESSÓRIAS. As obrigações de
prestações acessórias estão expressamente consagradas no art. 209º:
Obrigações constantes do contrato de sociedade, que adstringem
todos ou alguns sócios a efectuar, a favor da SPQ, determinadas
prestações, além das entradas.
O contrato que as insira deve definir os elementos essenciais da
obrigação de prestação acessória, bem como especificar se as
prestações devem ser fixadas onerosa ou gratuitamente.
O conteúdo depende da autonomia das partes:
o Prestações pecuniárias [nº 2] – vg “suprimento” obrigatório,
cfr. infra
o Prestações de dare
o Prestações de facere
Podem ser:
o Instantâneas
o Duradouras
o Únicas
o Fraccionadas
o Periódicas
o Regulares
100
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§2: REGIME LEGAL. As prestações acessórias são cláusulas acidentais
facultativas e típicas, que se pautam pelo seguinte regime supletivo:
As prestações acessórias não pecuniárias são intransmissíveis [art.
209º-2]: interdição legal de cessão de créditos, art. 577º-1 CC.
Quando se convencione a onerosidade das mesmas, a
contraprestação pode ser paga independentemente de haver lucro no
exercício [nº 3].
O incumprimento das prestações acessórias não afecta a posição do
sócio como tal [nº 4].
As obrigações acessórias extinguem-se com a dissolução da
sociedade [nº 5] – se subsistisse, seria uma obrigação de natureza
não-societária.
Todas as restantes regras são supletivas.
exemplo:
1. Os estatutos da Sociedade F, Lda, determinavam que o sócio A, jurista,
ficava obrigado a prestar serviços jurídicos gratuitos à sociedade, e que o sócio B
ficaria obrigado a encerrar a sociedade de produção de fruta de que detinha. C, por
seu lado, ficava obrigado a pagar € 5.000 à sociedade, para além da sua entrada.
2. C não cumpre a sua obrigação.
1.
O contrato de sociedade deve definir os elementos essenciais
das prestações acessórias.
A: prestação acessória gratuita de facere.
B: prestação acessória gratuita de non facere.
C: prestação acessória pecuniária [art. 209º-2].
2.
101
Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
O incumprimento das prestações acessórias não afecta a
posição do sócio enquanto tal, salvo estipulação em
contrário. C não pode ser excluído [art. 209º-4].
exemplo:
No momento da celebração do contrato da Sociedade C, Lda, todos os sócios
acordam verbalmente que a sociedade poderia, mais tarde, deliberar exigir o
pagamento de € 5.000 a cada um deles. O sócio X não cumpre.
Trata-se de uma prestação acessória com acordo parassocial
[art. 17º]. Se o acordo for considerado válido mas não for
cumprido, gera responsabilidade obrigacional nos termos
gerais [arts. 798º ss CC]. Se for inválido e incumprido por um
dos sócios, não produz quaisquer efeitos.
Prestações Suplementares
§1: PRESTAÇÕES SUPLEMENTARES. As prestações suplementares
consistem numa via de financiamento complementar das SPQ, à disposição dos
sócios. Distinguem-se das prestações acessórias pela dupla base jurídico-normativa
[art. 210º-1]:
Devem estar previstas no pacto inicial [1.], seja desde o início, seja
por alteração.
Devem ser deliberadas pelos sócios 2.].
Têm, necessariamente, natureza pecuniária [nº 2], devendo o próprio
contrato [1.] conter os seguintes elementos:
Montante global
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
Sócios que ficam obrigados – na sua falta, todos ficam adstritos a
fazê-lo.
Critério de repartição entre eles – na sua falta, deve a repartição ser
proporcional à quota de cada um [nº 4].
Para além de consagradas no pacto social [1.], devem as prestações
suplementares ser deliberadas [2.]:
A deliberação terá que fixar o montante tornado exigível e o prazo da
prestação, superior a 30 dias [art. 211º-1].
A deliberação só é possível depois de interpelados todos os sócios
para liberação integral das suas quotas de capital.
As prestações suplementares não podem ser exigidas depois de
dissolvida a sociedade.
§2: REGIME LEGAL. As prestações suplementares estão próximas do dever
de entrada, e é-lhes aplicável o disposto nos arts. 204º e 205º [art. 212º-1].
O sócio que não as acate pode ser excluído, já que se trata de obrigações
assumidas no pacto social: o incumprimento justifica, em relação ao faltoso, como
que uma resolução contratual.
O legislador reforça a sua natureza pessoal através das seguintes
disposições:
Ao crédito da sociedade por prestações suplementares não pode ser
oposta compensação [nº 2].
A sociedade não pode exonerar os sócios da obrigação de as
efectuar, estejam ou não já exigidas [nº 3].
O direito de as exigir é intransmissível e nele não podem sub-rogar-se
os credores da sociedade [nº 4].
§3: RESTITUIÇÃO DAS PRESTAÇÕES SUPLEMENTARES. Ainda que não
vencendo juros, podem as prestações suplementares ser restituídas [art. 210º-5],
verificados os requisitos do art. 213º:
103
Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
A restituição depende de deliberação dos sócios [nº 2].
A situação líquida não pode ficar inferior à soma do capital e da
reserva legal [nº 1, 1ª parte].
O respectivo sócio já deve ter liberado a sua quota [nº 1, 2ª parte].
A restituição não é, contudo, possível depois de declarada a insolvência da
sociedade [art. 213º-3]. A restituição deve respeitar a igualdade dos sócios que as
tenham efectuado, desde que hajam liberado as quotas respectivas [nº 4].
Para o cálculo do montante da obrigação vigente de efectuar prestações
suplementares não são computadas as prestações restituídas.
exemplo:
No contrato de constituição da Sociedade S, SA, prevê-se que esta sociedade
pode, mediante deliberação, exigir aos sócios o pagamento de um valor global de €
25.000.
As prestações suplementares são permitidas pelo contrato de
sociedade e resultam de deliberação dos sócios, recaindo
apenas sobre dinheiro [arts. 210º ss].
MENEZES CORDEIRO entende que nas SA não devem ser
admitidas prestações suplementares, uma vez que o sócio
apenas responde pelas acções que subscreve [art. 271º]. O
enquadramento de novas responsabilidades seria impossível,
uma vez que a exigência de um novo esforço financeiro a
alguns, pela maioria dos sócios, iria desequilibrar o
funcionamento da SA.
Conclui-se: a cláusula é nula, contrária aos arts. 271º e 294º.
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
exemplo:
Os sócios deliberam, pela maioria legal, alterar o contrato da Sociedade A,
Lda., de modo a prever que os sócios A, B e C fiquem obrigados a realizar
prestações suplementares.
Tendo a sociedade deliberado, mais tarde, exigir-lhes o pagamento da
prestação, os sócios em causa recusam-se, argumentando que nunca nela
consentiram.
As alterações ao contrato das SPQ dependem de deliberação
dos sócios [art. 246º-1h].
Se essa alteração envolver o aumento das prestações
impostas pelo contrato aos sócios, esse aumento é ineficaz
para os sócios que nele não tenham consentido [art. 86º-2]:
se A, B e C tivessem consentido na alteração, essas
prestações aplicavam-se em relação a eles.
exemplo:
Nos termos dos estatutos da Sociedade B, Lda., D estava obrigado a realizar
prestações suplementares à sociedade. No entanto, após a deliberação que lhe
exige o cumprimento da obrigação, D recusa-se a cumprir.
Ao regime das prestações suplementares nas SPQ é-lhes
aplicável o disposto nos arts. 204º e 205º, relativamente ao
dever de entrada. O sócio não efectuar a prestação em causa
fica sujeito a exclusão [art. 204º-1], uma vez que se trata de
obrigações assumidas no pacto social. O incumprimento
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
justifica, em relação ao faltoso, como que uma resolução
contratual.
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
CONTRATO DE SUPRIMENTO
Contrato de Suprimento
§1: CONTRATO DE SUPRIMENTO. O contrato de suprimento é o contrato
que admite as seguintes modalidades:
Contrato pelo qual o sócio empresta à SPQ dinheiro ou outra coisa
fungível, ficando esta obrigada a restituir outro tanto do mesmo
género e qualidade [art. 243º-1, 1ª parte] – equivale a um mútuo.
Contrato pelo qual o sócio convenciona com a SPQ o diferimento do
vencimento de créditos seus sobre ela desde que, em qualquer dos
casos, o crédito fique tendo carácter de permanência [nº 1, 2ª parte].
Quando uma SPQ tenha necessidade de financiamento, a solução mais fácil,
mais natural e mais flexível pauta-se pelo contrato de suprimento.
Constitui índice/presunção do carácter de permanência [nº 2 e 3]:
Articulação de um prazo de reembolso superior a um ano
Não exigência do reembolso devido pela sociedade durante um ano
Os credores sociais podem provar o carácter de permanência mesmo que o
reembolso tenha ocorrido antes de expirado um ano [nº 4, 1ª parte].
Os sócios podem ilidir a presunção de permanência demonstrando que o
diferimento corresponde a circunstâncias independentes da qualidade de sócio [nº
4, 2ª parte].
Fica ainda sujeito ao regime dos suprimentos o crédito de terceiro sobre a
sociedade, desde que o sócio o adquira por negócio entre vivos e no momento da
aquisição se verifique alguma das circunstâncias que constituem “índice de
permanência” [nº 5].
§2: DELIMITAÇÃO. Os suprimentos não se confundem com as prestações
acessórias ou com as prestações suplementares, designadamente porque:
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
As prestações acessórias resultam do pacto social e podem envolver
dinheiro, bens ou serviços.
As prestações suplementares são permitidas pelo pacto social e
resultam de deliberação dos sócios, recaindo apenas sobre dinheiro.
Os suprimentos advêm de um contrato celebrado entre o sócio e a
sociedade, relativo a dinheiro ou a outra coisa fungível, equivalendo a
um mútuo. Distingue-se de um mútuo comum porque representa um
contributo permanente ou, pelo menos, prolongado, do sócio para
com a sociedade em que detenha uma posição. Representaria,
quanto muito, um mútuo de escopo.
§3: REGIME LEGAL. O suprimento corresponde a um especial envolvimento
do sócio na capitalização da sociedade. Não equivale a uma comum ajuda
monetária, puramente transitória, na medida em que o CSC optou pelo critério da
permanência, de RAUL VENTURA. O art. 243º-2 e 3 fixa, nestes termos, índices de
permanência que auxiliam o intérprete e aplicador do direito, associando-o a
presunções. Na falta de estabilidade não há, por isso, qualquer suprimento.
O contrato de suprimento é um mútuo especial [art. 243º-1 e 1142º CC] –
contrato real quoad constitutionem que só produz efeitos com a efectiva entrega do
dinheiro:
Não está sujeito a qualquer forma especial [nº 6].
Caso o pacto social preveja a obrigação de efectuar um suprimento,
estamos perante prestações acessórias [cfr. supra e art. 209º] e não um contrato
de suprimento. Se o suprimento for adoptado por deliberação social, só ficam
vinculados os sócios que votem favoravelmente tal deliberação [art. 244º-2].
As partes podem estipular juros mas, se nada disserem, não se deve
presumir a onerosidade, uma vez que o suprimento é um negócio “interessado”. O
crédito de suprimentos é transmissível, nos termos gerais do art. 577º-1 CC.
Este regime, por não ser excepcional, pode ser analogicamente aplicado às
SA.
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
exemplo:
1. A Sociedade B, Lda., vendo a sua situação agravar-se constantemente,
celebrou verbalmente com o sócio A um contrato nos termos do qual este
emprestava à sociedade € 10.000, que esta reembolsaria no prazo de 18 meses.
B, por seu lado, acordou com a sociedade que não levantaria imediatamente
o seu quinhão nos lucros do exercício, apenas pretendendo o dinheiro dali a um
ano.
2. Decorridos 18 meses, pode A exigir a restituição com juros do capital
emprestado?
1.
O contrato de suprimento encontra-se previsto no art. 243º-1
através de duas modalidades legais:
1. Modalidade próxima do mútuo comum, com carácter de
permanência [nº 1, 1ª parte] – sócio A.
2. Modalidade de diferimento do crédito, com carácter de
permanência [nº 1, 2ª parte] – sócio B. O carácter de
permanência deve ser superior a um ano. No caso, 18 meses.
O crédito do sócio à sua parte dos lucros vence-se quando
decorridos 30 dias sobre a deliberação de atribuição de lucros
[art. 217º-2], salvo diferimento consentido pelo sócio. O
suprimento opera como um diferimento: nesse caso,
computa-se no prazo de um ano o tempo decorrido desde a
constituição do crédito até ao negócio de diferimento [desde
a deliberação, art. 243º-2, 2ª parte e nº 3, 2ªa parte].
Presume-se suprimento se, volvido um ano, o sócio não
reclamar os lucros a que tem direito [art. 243º-2, 1ª parte].
109
Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
Em qualquer dos casos, difere do mútuo comum quanto à
forma, ao carácter de permanência, aos sujeitos e aos juros.
Se for motivado pelos juros apenas, não será um contrato de
suprimento, mesmo que tenha carácter de permanência –
cumpre provar que não foi celebrado com base nessa
motivação.
O regime do contrato de suprimento é mais favorável para a
sociedade e menos favorável ao sócio, face ao disposto nos
arts. 245º-1 e 777º CC. A sociedade tem, por isso, interesse
que o contrato em causa seja qualificado como suprimento,
enquanto que o sócio procurará provar o carácter de mútuo
comum do mesmo: vg se tiver emprestado dinheiro à
sociedade não na qualidade de sócio.
No caso, os contratos foram celebrados de forma autónoma
entre os sócios e a sociedade, e não constavam do contrato
de sociedade nem foram sujeito a deliberação dos sócios.
Obedeceram à regra geral da liberdade de forma, art. 219º
CC.
2.
O suprimento presume-se oneroso, mesmo que nada tenha
sido convencionado. No caso, há um pedido de restituição
com juros não convencionados expressamente: os juros não
se presumem.
exemplo:
A Sociedade G, SA, celebrou com os accionistas C e D, detentores de
participações de 2% e de 12%, respectivamente, um contrato nos termos do qual
estes emprestavam à sociedade € 5.000, a restituir passado um ano.
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Direito Comercial II: Direito das Sociedades Comerciais - Lara Geraldes @ FDL
Convencionou-se um empréstimo a uma SA. Se se tratasse de
uma SPQ, seria um suprimento, uma vez que é um
empréstimo do sócio à sociedade que se caracteriza pelo
carácter de permanência.
Tratando-se de uma SA, questiona-se se o contrato de
suprimento é admissível nesse âmbito.
Para RAUL VENTURA, a resposta seria afirmativa se se
tratasse de um “accionista empresário” [o autor contrapõe,
com base na doutrina alemã, accionistas empresários a
accionistas investidores], efectivamente embricado/envolvido
na vida societária, de tal modo que os seus contributos
seriam tidos como uma justificação interessada. Apenas ao
accionista empresário haveria que aplicar o regime dos
suprimentos: aquele que detivesse 10% do capital social
[25%, na doutrina alemã], com base nos arts. 392º e 418º-1,
que mencionam essa cifra.
MENEZES CORDEIRO considera que esse critério, apesar de
apresentar vantagens no plano da segurança, é demasiado
rígido e fixo: e se o sócio detivesse “apenas” 9% do capital
social? Por isso, serve-se antes do argumento do accionista
médio: haverá suprimento quando a entrega do dinheiro
opere em situações nas quais o accionista ordenado, o bom
accionista, enfim, faria uma contribuição de capital
[contribuindo para a capitalização da sociedade], e não um
mero mútuo civil. Só a partir da verificação dessa analogia
iuris será legítimo aplicar os arts. 243º-2 e 3 às SA. No
mesmo sentido, COUTINHO DE ABREU.
Podemos, pois, encontrar suprimentos nas SA quando:
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o As partes o estipulem ou quando o pacto social os
preveja e regule.
o Se gere um empréstimo que, materialmente, exerça a
função de suprimento.
Certo é que o regime do suprimento não pode, por si só, ser
negado às SA. Não é um regime excepcional e a sua aplicação
analógica é possível, nas condições supra.
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