Post on 03-Jan-2016
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Mário de Andrade e a estética do inacabado
Roniere Menezes – CEFET-MG
9. Aquilo que já foi é aquilo que será e aquilo que foi feito aquilo se fará E não há nada novo sob o sol
10. Vê-se algo se diz eis o novo Já foi era outrora fora antes de nós noutras-eras
Eclesiastes. Salomão. Trad: Haroldo de Campos1
O inacabamento da criação artística foi algo amplamente discutido na estética
marioandradina. Ao propor a idéia da “traição da memória”, Mário de Andrade acredita
que a produção artística é, antes que a manifestação de uma inspiração divina ou o
desabrochar de um sentimento ou de um pensamento extremamente original, a falha de
uma memória arquivista. Esta funciona, durante a criação artística, como agenciadora
das leituras, das vivências e convivências, daquilo que recebemos, armazenamos, mas
que também esquecemos. É na falha da memória, que esquece em parte, mistura,
seleciona, redefine, que está uma das peças-chave para a compreensão do processo
criativo.
Mário de Andrade, em O Banquete, assim se refere ao instante criativo e à
idéia de arte livre:
(...) a “criação livre” é uma quimera, porque ninguém não é feito de nada, nem de si mesmo apenas; criação não é uma invenção do nada, mas um tecido de elementos memorizados, que o criador agencia de maneira diferente, e quando muito leva mais adiante. (...) A criação, com toda a sua liberdade de invenção que eu nego, não passa de uma reformulação de pedaços de memória. 2
Ao dizer que a criação “não passa de uma reformulação de pedaços de
memória”, o escritor endossa sua posição de que a arte deve perder seu status de
nobreza, sua aura divina e original e ser vista de maneira mais próxima ao artesanato.
Um outro ponto a ser pensado sobre a passagem citada é a busca de Mário de Andrade
1 CAMPOS, Haroldo de. Qohélet/ O-que-sabe / Eclesiastes, 1990. 2 ANDRADE, (M). O banquete, p. 150.
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pelo rompimento com a aura do artista que se vê superior à própria obra. O problema da
vaidade na arte é que “em vez de uma atitude artística, é uma atitude sentimental. De
forma que (...) a obra de arte quase desaparece ante essa desmedida inflação e
imposição do eu”.3 A arte só se tornaria humana ao destruir a apologia do
individualismo.
Em relação à elaboração de Macunaíma, é o próprio Mário de Andrade quem irá
desconstruir sua própria aura de criador original, ao se “auto-denunciar” em artigo do
Diário Nacional, datado de 20 de setembro de 1931 (Macunaíma é publicado em 1928),
endereçado a Raimundo Moraes. Em artigo anterior, Moraes, estudioso do folclore
nacional, procura utilizar-se da estratégia retórica de afastar-se do enunciado, ao
escrever que alguns intelectuais estavam acusando o autor paulista de plágio na
confecção de Macunaíma e procurava em seu texto defendê-lo contra as difamações.
Andrade percebe o jogo tramado e satiriza o seu “querido defensor”. Nesse artigo,
expõe sua estética da “traição da memória”:
Copiei sim, meu querido defensor. O que me espanta e acho sublime de bondade, é os maldizentes se esquecerem de tudo quanto sabem, restringindo a minha cópia a Koch-Grüenberg, quando copiei todos. E até o sr. na cena da Boiúna. Confesso que copiei, copiei às vezes textualmente.(...) 4
Para o autor é muito tênue o limite que separa a criação do plágio. Ao quebrar as
barreiras da autoria literária, Mário de Andrade questiona o próprio termo propriedade,
que aqui pode ser entendido também no sentido social e econômico. Ao trazer a
discussão para a questão da descoberta do país — ou invasão — o autor questiona e
satiriza o valor do termo posse e levanta a discussão sobre a influência da razão
européia na tradição literária brasileira, que era preciso — num gesto de esquecimento
macunaímico — trair e perverter:
Enfim, sou obrigado a confessar duma vez por todas: eu copiei o Brasil, ao menos naquela parte em que me interessava satirizar o Brasil por meio dele mesmo(...).Meu nome está na capa do Macunaíma e ninguém o poderá tirar. Mas só por isso apenas o Macunaíma é meu. 5
3 ANDRADE, (M). O baile das quatro artes, p. 32. 4 ANDRADE, (M). A Raimundo Moraes. Diário Nacional, domingo, 20 de setembro de 1931. In: Taxi e
outras Crônicas no Diário Nacional. Org. ANCONA LOPES, Telê Porto, 1976. p. 433-435. 5 Idem. p. 433-435.
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O conceito de plágio é discutido amplamente na estética marioandradina,
inclusive no sentido de questionar sua existência, já que é difícil desvencilhar-se de sua
voz opressora. Esta parece querer continuar inscrevendo sua marca em outros tempos e
em vários lugares de enunciação. Se é onipresente, o plágio não existe, simplesmente
porque sempre existiu. A melhor maneira de fugirmos à contravenção do plágio é
assumi-lo e tratá-lo com naturalidade. O desrecalque da idéia do plágio é uma maneira
de a arte se tornar mais livre, desvencilhar-se do virtuosismo, da assinatura individual e
recuperar seu valor de expressão coletiva.
Mário confessa a Manuel Bandeira ter “pastichado” o ritmo melódico da
composição “Cabôca de Caxangá”, de Catullo da Paixão Cearense, em sua única
composição musical, denominada “Viola Quebrada”. Relata também, entre outras
histórias, o episódio de que uma vez, em companhia do pintor Lasar Segall, cantarolava
um aboio cearense que haviam lhe mandado e o pintor continuou cantarolando em russo
a mesma cantiga, “pois as linhas melódicas coincidiam inteiramente entre o aboio e uma
canção russa”.6 A cultura popular não pode ser vista como “pura”, essencialista e
germinada nos confins do sertão. É fruto de produção coletiva, que há séculos vem
fazendo “apropriações, seleções e sínteses criativas”.7
Laurenty Jenny irá definir intertexto como um “texto absorvendo a
multiplicidade de textos, embora centrado num só sentido”.8 Uma reflexão que pode ser
suscitada é a respeito da originalidade dos textos. Se todo texto é um intertexto, fica
difícil definirmos a originalidade que pode estar sempre em outro lugar. Mas, ao
reacomodar os elementos disponíveis, embaralhá-lhos e dispô-los sob nova
configuração, estaria presente a partir da idéia que Mário de Andrade usa do “fazer
melhor” a originalidade. No caso, a palavra não encerra a idéia de uma fonte
primeira, mas sim de um diferencial.
Otávio Paz nos chama a atenção para o caráter paradoxal do jogo intertextual,
que se apresenta ao mesmo tempo como ausência e marca de originalidade:
6 ANDRADE, (M). Música, doce música, p. 274. 7 WISNIK. Música: o nacional e o popular na cultura brasileira, p. 147. 8 JENNY, Laurent. A estratégia da forma, p. 23.
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Cada texto é único e, simultaneamente, é a tradução de outro texto. Nenhum texto é inteiramente original, porque a própria linguagem, na sua essência, já é uma tradução: primeiro, do mundo não-verbal e, depois, porque cada signo e cada frase traduzem outro signo e outra frase. Mas esse raciocínio pode ser invertido sem perder validade; todos os textos são originais porque cada tradução é diferente. Cada tradução é, até certo ponto, uma invenção, e assim constitui um texto único. 9
É comum o trabalho artístico se fazer a partir da repetição, de maneira pessoal,
daquilo que, inicialmente, o artista achou que era “autêntico” e que na verdade era uma
espécie de citação. É através do ato de repetir com variações que vai surgindo a
“diferença”, a nova formulação.
A personagem Pirrre Menard assinala, por meio da escrita de Jorge Luís
Borges,10 que “pensar, analisar, inventar” passam pelo critério de “entesourar antigos e
alheios pensamentos”. Não há aí nada de anormal ou condenável, pois a inteligência
respira normalmente dessa forma. Todo homem, para Menard, “deve ser capaz de todas
as idéias (...)”.11 Essa sede de saber deve contar, necessariamente, com a experiência,
visão de mundo e criação de outros escritores, por exemplo, que se deseja “trair”, que se
deseja trazer para junto da nova voz que quer se impor como “autêntica”. A transgressão se
aliaria aí à vontade de saber presente na confecção artística. Nesse sentido, o processo
criativo é também, ou talvez antes de tudo, um processo de aprendizagem, de
conhecimento.
Ao trabalharmos com a idéia da “traição da memória”, da estética do inacabado na
obra marioandradina, não podemos nos esquecer do valor das viagens feitas pelo musicólogo.
O turista Mário conhece “Oropa, França, Bahia” sem ter nunca saído do país.12 Mas conhece
muito concretamente a vida e os afazeres de povos de diversas regiões brasileiras. Como
exemplo, podemos citar as viagens do escritor a Minas Gerais (Mário esteve no estado
em 1919, 1924, 1939 e 1944) e ao Norte e Nordeste do país, entre 1927 e 1929.
Na viagem imaginária e na real, o escritor turista é um devorador contumaz tanto de
técnicas quanto de rituais, tanto da estética artística das vanguardas quanto da estética do
cotidiano, aprendida nas ruas com as pessoas humildes. A conhecida “fúria de saber”
marioandradina era devoradora de textos-paisagens, exposições artísticas, concertos,
teorias estéticas, estruturas lingüísticas e estilos literários. Fazendo anotações para que as
9 PAZ, Otávio. A nova analogia: poesia e tecnologia. In: Convergências; ensaios sobre arte e literatura, 1991. p. 150. 10 BORGES. Ficções, p. 38. 11 BORGES. Ficções, p. 38. 12 Na verdade, Mário de Andrade faz uma curta passagem por Iquitos, no Peru, durante sua viagem etnográfica à Amazônia, em 1927.
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notas da melodia popular não se perdessem e pudessem dialogar com aquelas outras de sua
formação pianística, o maestro passeia por escalas modais e tonais. Transcreve rituais
africanos, encanta-se com os cocos nordestinos, redescobre Aleijadinho, valoriza
esteticamente o congado, o bumba-meu-boi, e descreve o “Mundo Musical” erudito de
São Paulo e Rio de Janeiro.
Como um nômade, em cada trecho do trajeto em que encontra solo firme, terra
produtiva, lança suas sementes, dissemina idéias, colhe “sabença” e parte em busca de
outras terras, desgeografizando assim os limites territoriais, cruzando saberes. Ao
caminhar, tece a lenta teia da intertextualidade, estabelecendo elos entre as mais
diversas narrativas. Os trajetos, indefinidos, buscam terras próximas, distantes, ou
voltam-se a um ponto já conhecido. É o entrecruzamento das diferentes “narrativas”
ouvidas, esquecidas em parte, associadas a outras apreendidas em um passado remoto
que vai dando direção ao trajeto do viajante, constituindo seu “repertório”. No processo
de reacomodar e conseguir estabelecer um novo sentido para as “influências” recebidas
está presente a autoria do artista.
Em seu projeto de arte nacional, Mário propõe que os compositores devam
pesquisar e se apropriar de materiais sonoros tipicamente brasileiros e, posteriormente,
transformá-los, reelaborá-los de forma erudita. Essas composições devem servir para
fixar a identidade do país, ao serem reconhecidas internacionalmente como brasileiras.
A imagem de nação, de arte e de artista são desenhadas, pontuando-se o momento
histórico pelo qual passava o país, que, acreditava-se, precisava fortalecer seu caráter para
poder ingressar no “concerto das nações” dando sua contribuição. Por outro lado, o
fortalecimento do caráter nacional justifica-se buscando forças no “sal da terra”. Para
expressar o Brasil, revelar e valorizar a produção do país, é necessário, contudo, um
método de pesquisa. Empreender a busca da cultura local não visa apenas o documento,
mas, no caso da música, as “normas de compor”, as “formas fixas”, os “esquemas
obrigatórios”, presentes na música da tradição popular. O conceito de “sabença” –
entendido como a via analítica, o método de pesquisa que permite o acesso e o
entendimento da maneira de pensar da tradição – ao mesmo tempo em que amplia o
conceito de arte e de conhecimento, valorizando a consciência criativa nacional, faz a
proposição de uma lógica que perverta as influências estrangeiras de forma
“espertalhona”. O musicólogo não se interessa pelo passadismo, pelo “folclorismo”,
mas pela invenção, pelo “fazer milhor”, pelos “melhores achados” da tradição popular.
Ao serem incorporados em músicas nacionais eruditas, esses elementos populares
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devem ser antes entendidos em sua organização interna, em seus processos rítmico-
melódicos. Valorizam-se, dessa maneira, métodos de composição anti-acadêmicos e um
pensamento mais natural, menos pautado pelos critérios da civilização. Evitam-se,
assim, a citação aleatória, o exotismo, o “negrismo” que não contribuiriam em nada
para a configuração de uma arte brasileira.
O escritor não se fecha ao trabalho com a tradição popular, está sempre aberto
à cultura erudita, moderna e às tecnologias importadas, que dariam força, equilibrando o
ócio criativo brasileiro com a lenta descoberta do conhecimento. O progresso urbano e
as influências estrangeiras deveriam passar pelo critério da “traição da memória”, da
transformação crítica. Deveriam ser devorados e reapresentados de forma que pudessem
enriquecer esteticamente a produção cultural local. O virado da cultura brasileira
deveria ser mexido com a colher torta da estética canibal inacabada.
Acreditamos que a tentativa de associar o pensamento “pré-lógico”, o ócio
criativo com a consciência intelectual – a “sabença” tropical e o saber europeu – está
ligada tanto à descoberta e valorização da “bagagem cultural” do povo brasileiro quanto
ao canibalismo da tradição estrangeira. Parece-nos que, para Mário de Andrade, o sabor
e o saber deveriam sempre andar juntos. Aprender e produzir com alegria e seriedade,
com leveza e firmeza são eixos do projeto marioandradino que define como charitas a
paixão, a entrega visceral que o artista deve ter em relação ao seu material de trabalho e
como estesia a sede de um fazer constante, o espírito crítico e criativo capaz de
reformular e questionar não só conteúdos apreendidos, mas também as próprias
criações, que nunca devem mostrar-se acomodadas. Aqui, notamos a ligação entre a
poética (proposição artística ligada a um momento determinado) e a estética (questões
ligadas à imanência do material artístico).
Mário enfatiza a técnica como síntese do artefazer. A expressão técnica deve
colocar-se como mediadora da relação entre a subjetividade do criador e a objetividade
do material de trabalho. Ela deve controlar o derramamento sentimental, o excesso de
formalismo e a exagerada preocupação social. Mário pretendia que a arte moderna
combinasse aquilo que Chico Antônio, cantador do Rio Grande do Norte, fazia de forma
inconsciente. Cantarolando seus cocos, emboladas e desafios no ritmo de seu ganzá,
Chico Antônio exemplificava que a descoberta da cultura popular brasileira trazia a
marca da novidade, assim como era novidade a descoberta da vanguarda artística
importada. Ali havia poder de comunicação, “traição da memória” e técnica do
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inacabado, características surrealistas, “moderníssimas” e também um ethos, um
vínculo com a coletividade.
Em Mário de Andrade não existe liberdade de pensamento se o artista não tiver
desenvolvido uma técnica de pensar. A técnica liga-se à sua consciência profissional, e
a beleza é conseqüência de sua aplicação, não finalidade maior.
Mário de Andrade, ao propor que a produção artística parta de uma
“inspiração” e passe pelo trabalho intelectual, chama a atenção para um terceiro
elemento: o trabalho técnico. Sobre o valor da técnica e do artesanato, na conferência
“O artista e o artesão”,13 afirma que o “artesanato” consiste no conhecimento pelo
artista do seu material de trabalho, o que legitima o ensino das artes. “Virtuosidade”
seria o “conhecimento e prática” de várias técnicas históricas do trabalho de criação,
seria o estudo da “técnica tradicional”. Segundo o escritor, embora seja bastante útil e
ensinável, não é imprescindível. Já a “solução pessoal do artista” compreenderia a
técnica encontrada por ele para o desenvolvimento de seu trabalho. Estaria relacionada
ao talento, “embora não seja todo ele”. Para Mário, é “de todas as regiões da técnica a
mais sutil, a mais trágica, porque ao mesmo tempo imprescindível e inensinável.” A
conjugação desses elementos visavam à melhoria não só da arte como da coletividade.
A criação artística, do ponto de vista de Mário de Andrade, é a soma de inspiração,
consciência e trabalho técnico que vise à clara expressão.
Toda obra de arte é inacabada não apenas porque ela pode sempre ser
retrabalhada, reburilada; pode atrair, seduzir e se completar com o leitor. Mas, antes,
porque cada texto se configura, em sua imanência, como ausência, como metáfora da
falta humana que busca se completar com o traço das letras, com o desenho das notas,
com a dicção da voz. O espaço vazio de uma folha de papel nos mostra sempre a
grandeza do branco infinitamente à procura de um traço, um rabisco, uma marca, um
preenchimento. Mas, como no desejo, nunca se esgota a procura. A ilha a que se quer
chegar parece estar sempre além do espaço que a separa do barco. Nesse sentido, a
escrita, a melodia, em suma, os textos que circulam socialmente, funcionam como uma
miragem a que nunca se chega de forma inteira. Eles nunca serão finalizados. Estão
sempre à espera de serem recriados. Assim como nos palimpsestos, é necessário haver o
esquecimento para que aconteça a lembrança. Conhecendo os ventos do mar, os
mecanismos de funcionamento do barco, relendo mapas de outras “viagens” é que se
13 ANDRADE, (M). O baile das quatro artes, p. 12-15.
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chega ao nosso texto/ilha/miragem. A ilha é tanto mais real quanto mais nos desviarmos
da rota dos mapas tradicionais. Quanto mais inventarmos o nosso “fazer milhor”,
trairmos a memória apreendida, mais “original” torna-se a ilha. A criação artística, a
autoria, é, portanto, mais a maneira, a possibilidade de cada viajante, chegado ao porto,
ordenar, pintar e decorar as casas, igrejas, praças e prédios públicos – que já existiam na
ilha, ordenados pelo olhar de outro viajante. É de dentro dos muros que cercam a
paisagem que o artista, tomado pelo espírito de um fazer constante, devora, transforma,
cria sua obra original. A ilha, vista aqui como texto, é menos inacabada na forma em
que se apresenta que pelo olhar do viajante. Este, ao olhar para ela, sempre pode
enxergar outra disposição para os elementos que a compõem. Depende, para isso, da
posição “geográfica” em que se encontra.
Estamos sempre imersos na “rede” da linguagem e da cultura. Mesmo quando
estamos expressando os mais íntimos pensamentos e acreditamos estar produzindo algo
novo, estamos, de certa forma, ecoando o antigo, nossa vivência e influências recebidas,
traindo a memória dos ancestrais. Isso explica o fato de o pensamento marioandradino
passar da dualidade inspiração/intelecto para uma compreensão mais ampla do processo
criativo: tanto no momento da inspiração já estão presentes aspectos intelectuais, certas
estruturas lógicas construídas ao longo da vida, quanto no momento do trabalho
intelectual o artista terá novos insights, novas inspirações. Estas, por sua vez, trazem
também certa “determinação”.
O artista, porém, não pode ficar passivo e reproduzir as estruturas sociais,
endossando a ditadura da linguagem. É de dentro da “gramática” cultural que ele deve
dar seu grito e propor novos olhares para a realidade, procurando criar um novo mundo
dentro de outro já gasto por séculos de história. É a tentativa, a busca da liberdade da
arte que faz o artista. É aí que está presente a estesia. A arte livre pode nunca chegar a
existir, mas é no impulso em sua direção que está presente o valor da criatividade.
Ao procurarmos estabelecer alguns diálogos entre a teoria crítica marioandradina
e a cultura contemporânea, notamos que o autor não se prende ao contexto histórico e
cultural do modernismo. As idéias do escritor nos ajudam a apreciar a expressão
cultural do nosso tempo. Mário é um pensador brasileiro, um intelectual que fez seu
trajeto às margens do pensamento acadêmico que pode, muitas vezes, subjugar o
espírito criador. Foi um autodidata. Daí algumas falhas de métodos lógicos que, por
outro lado, propiciaram um olhar diferencial para o país. Mário de Andrade foi, antes de
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tudo, alguém que procurou compreender melhor o Brasil, mesmo que essa
“compreensão” apresente, muitas vezes, mais o olhar de um artista que o de um teórico.
Conhecer melhor o tortuoso pensamento de Mário de Andrade é também uma
forma de canibalismo. Mário é sinônimo de consciência ética e sensibilidade apurada
que nos fortalecem no contato com um mundo em que a chamada “indústria cultural”
nos apresenta - dentro da diversidade de riquezas artísticas existentes - uma produção
cada vez mais epidérmica.
Fontes Bibliográficas:
ANDRADE, Mário de. O baile das quatro artes. 3.ed. São Paulo: Martins/MEC, 1975.
ANDRADE, Mário de. O banquete. 2.ed. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1989.
ANDRADE, Mário de. Ensaio sobre a música brasileira. São Paulo: Martins, 1962.
ANDRADE, Mário de. Música, doce música. 2.ed. São Paulo – Brasília: Martins/INL,
1976.
ANDRADE, Mário. A Raimundo Moraes. Diário Nacional, domingo, 20 de setembro
de 1931. In: Taxi e outras Crônicas no Diário Nacional. Org. ANCONA LOPES, Telê
Porto. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1976.
BORGES, Jorge Luís. Ficções. 4. ed. Porto Alegre/Rio de Janeiro: Ed. Globo, 1986.
CAMPOS, Haroldo de. Qohélet/ O-que-sabe / Eclesiastes. São Paulo: Perspectiva,
1990.
JENNY, Laurent. A estratégia da forma, p. 23. Apud: BRANDÃO SANTOS, Luis
Alberto. Texto: Intertexto. In: Littera – Língüística e Literatura. Faculdade de Ciências
Humanas de Pedro Leopoldo, vol. 1, nº 1.
PAZ, Otávio. A nova analogia: poesia e tecnologia. In: Convergências; ensaios sobre
arte e literatura. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.
MENEZES, Roniere. Notas de um turista canibal: Mário de Andrade e a estética do
Inacabado. Dissertação de mestrado em Estudos Literários – FALE/UFMG, 2000.
WISNIK. Música: o nacional e o popular na cultura brasileira. São Paulo: Brasiliense,
1982.