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Semana de História 2011 – UFMS
Tema: Os Guarani na historiografia regional
A titulo de introdução lembro que os documentos nos quais o historiador apóia seu
trabalho são pistas ou testemunhos mudos, que só falam, segundo Marc Blocc (1989, p.
46), se “soubermos fazer-lhes as perguntas adequadas”. E as perguntas adequadas não vêm
das fontes, mas do pesquisador e de sua base teórica. Os mesmos documentos podem
responder a diversas e sempre novas perguntas. Por isso, segundo E. Carr (1989:22), “a
história consiste essencialmente em ver o passado através dos olhos do presente”, uma
relação de reciprocidade entre presente e passado – a mesma reciprocidade se estabelece,
segundo Carr (1989, p. 28), entre os pesquisadores e seus fatos. Os documentos – que
também já são interpretações de fatos - talvez sejam exatamente os mesmos de ontem, mas
as perguntas não. Estas emergem do contexto histórico e do referencial teórico do
historiador.
Por isso, é relevante, ao tomarmos conhecimento de uma produção historiográfica,
buscar saber quem é o seu autor – não tanto seu nome, mas o lugar em que está
posicionado, de onde que ele fala, a partir de que interesses pessoais e sociais? Segundo
Skliar (2003, p. 70) que o que interessa é o “lugar desde o qual parte o olhar – e não pelo
que é efetivamente olhado...”.
Analisando a produção historiográfica sobre os Guarani até muito recentemente,
percebemos que os seus autores, em sua grande maioria, eram integrantes ou estavam ou
estão preocupados em explicar e de certa forma justificar o processo de colonização aqui
verificado. E sob a ótica dos interesses do modelo de colonização implantado nessa região -
que se caracteriza pela concentração fundiária, acento na monocultura e na utilização
intensiva de tecnologias e de insumos químicos - não oferece qualquer espaço e
possibilidades não só para o mundo indígena, mas, também, para os milhares de migrantes
que foram historicamente, atraídos para essa região, e que hoje estão á margem do
desenvolvimento regional, mas que acabaram assumindo as mesmas representações sobre
os índios construídas pela elite regional durante o processo de conquista da região1, como
veremos.
Utilizo aqui o conceito de representação como uma “atribuição de sentido”, um
“dizer” sobre a identidade do outro, cuja força não está na “aferição” com um suposto real
(SILVA,1995, p. 199), mas nas relações de poder que lhes dão “credibilidade, seu caráter
de verdade e sua sustentação. Para Silva (1995, p. 199), a “eficácia” das representações,
está exatamente “em sua capacidade para ocultar sua cumplicidade na constituição e
fabricação do real”, em ocultar o processo de sua produção (1995, p. 200). Para Chartier
(1988, p. 17), as representações do mundo social “embora aspirem à universalidade de um
1 Foram realizadas uma serie de entrevistas com ex-trabalhadores da CiaMatte Larangeira, no bojo Projeto de
pesquisa “Território, Territorialidade e Processos Históricos dos Kaiowá e Guarani no Mato Grosso do Sul”,
que contou com financiamento do CNPq e Fundect, integrado pelos pesquisadores: Antônio Brand, Neimar
Machado de Sousa, Eva Maria Luiz Ferreira e Fernando Augusto A. de Almeida, do Programa
Kaiowá/Guarani/NEPPI/UCDB. Ao serem perguntados sobre a presença de índios no contingente de
trabalhadores engajados na colheita da erva-mate, esses ex-trabalhadores foram categóricos em afirmar que
não havia índios, como trabalhadores, mas apenas “paraguaios”. Havia alguns “bugres”, sim, porém sempre
distantes, nas reservas ou então bem no interior da mata. Descreviam a vida “desses bugres” como próxima a
dos animais selvagens
diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses de grupos que as
forjam” e não são neutras e “produzem estratégias e práticas (sociais, escolares e políticas)
que tendem a impor uma autoridade às custas de outros, por elas menosprezados...”
(CHARTIER, 1988, p. 17).2.
No caso dos Guarani e Kaiowá, suas demandas territoriais e sua cultura sempre
foram e serão um impecilho, não tanto pela extensão territorial que reivindicam, mas por
representarem uma alternativa, embora aparentemente frágil, a esse modelo único de
relacionamento com a terra e a natureza. .
A titulo, ainda, de introdução, quero formular algumas questões que tem motivado
minhas pesquisas junto aos Guarani no MS: - Como foi possível que a presença de um
povo tão numeroso – no caso os Guarani Ñandeva e os Guarani Kaiowá3 - pudesse ser
ignorada, pela historiografia tradicional, apesar de sua constante emergência e irrupção no
decorrer do processo de colonização da região?4. Esse é um aspecto relevante considerando
que nos confrontamos com um processo de colonização relativamente recente5 – final do
século XIX e sec XX. Como foi possível que essa presença, embora invisibilizada, dos
povos indígenas não tenha em nenhum momento estimulado perguntas sobre seus
direitos?6.
Finalmente, considerando que diversos discursos foram produzidos e registrados na
documentação deixada por sertanistas, viajantes e memorialistas sobre os Guarani e sub
grupos localizados nessa região, por que somente alguns deles se firmaram e seguem até o
presente produzindo identidades sobre esses povos e são trazidos à tona para definir e
marcar o seu lugar social ainda hoje?.
1. Os povos indígenas nos documentos pós-coloniais do século XIX e XX .
Segundo Meliá, F. Grünber, J. Grünberg, 1976:169), os Caaguá, denominação
recorrente dos Guarani na documentação do período, encontravam-se, no sex. XVIII,
identificados pelos colonizadores como “infieles” e culturalmente “bárbaros” (ou como
homens do mato (Waldmenschen) por Koenigswald (1908:377). Para esses autores (1976,
p. 168), os Pãi/Kaiowá “... son los Itatin, pero conceptuados nuevamente por el processo
colonial: los Caagua son aquellos Itatin no colonizados ni misionados, pero en contacto
con la colonia y la misión; ahí, estribaría su identidad y su diferencia”.
As primeiras informações mais detalhadas vem dos diários de campo da “Comissão
de Demarcação da América Meridional”, em especial do trecho entre o salto do rio Paraná e
o rio Paraguai, em 1754 e 1777 e dos viajantes, que percorrem essa região. Nos diários da
Comissão de Limites encontramos aí a seguinte referência: “A outra nação que se conhece
habitante por aqui, são os Montezes, he gente a pé, vivem em os bosques, não duvidamos,
2 Por isso, investigar os processos de produção e reprodução das representações sobre os povos indígenas no
presente constitui-se, em minha opinião, um dos campos mais relevantes de pesquisa porque permite trazer a
público as relações de poder que seguem impregnando as relações interétnicas na região. Permitem
compreender, também, porque a violência que marca as demandas territoriais apresentadas pelos povos
indígenas sempre acabam, de alguma forma, justificadas. 3 Documentos do SPI, de 1927, indicam uma população indígena de 5 mil pessoas só no vale do Rio Iguatemi.
4 Como veremos, em diversas publicações e registros da época, a presença dos índios aparece, registrada,
sempre de passagem e no início da implantação dos projetos de colonização. 5 As regiões de mata no sul do atual Estado de Mato Grosso do Sul foram as últimas a serem ocupadas pelos
novos chegantes. 6 Inclusive, porque a Constituição de 1934 já explicitou claramente o direito indígena às terras que ocupavam.
que seria sua habitação esta montanha e assim não tínhamos suspeita delles senão quando
se entrava entre os arvoredos” (Academia Real de Ciências, 1841:528, apud Monteiro,
2003, p. 21).
Bernardo Ibañez de Echávarri, capelão da Comissão de Limites de 1754, destaca a
“índole afable, dócil, mansa y de una bondad y rectitud extraordinaria...” (apud Meliá, F.
Grünberg, G. Grünberg, 1976:172). Este aspecto é importante por contrastar com as
descrições relativas ao caráter guerreiro dos tupi-guarani do período anterior.7 Constata,
ainda, que “cada uno tiene un solo cacique que manda, y es puntualmente obedecido; vela
en que todos trabajen para si y para el comun de los que no pueden trabalhar....”8.
Em 1767, o governo português criou o Forte Iguatemi (Povoação e Praça de Armas
Nossa Senhora dos Prazeres e São Francisco de Paula do Iguatemi), elevado à categoria de
vila em 1771, transformando-se no mais antigo povoado do Mato Grosso meridional e o
primeiro passo para a ocupação do atual Mato Grosso do Sul. Esse Forte, segundo
pesquisas efetuadas pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (“Relatório de
registro de sítio arqueológico-etnográfico e histórico”, 1987), localizava-se em território da
atual aldeia kaiowá Yvykuarusu/Paraguassu, às margens do rio Iguatemi, município de
Paranhos. Esses pesquisadores reportam-se a vários documentos históricos, indicando a
presença de índios Kaiowá naquela região já desde a fundação do Forte Iguatemi. É esta campanha abundante de gentio Cauan e cavaleiro, tem suas caças, mas
também tem muitos mosquitos e insetos, não tem os homens liberdade de saírem ao
campo sem que vão com camaradas, porque do contrário correm risco suas vidas”
(Diário de Navegação do Rio Tietê, Rio Grande Paraná e Rio Iguatemi, que
principia em 13.03.1769, do Sargento-Mor Theotônio José Juzarte, apud Taunay,
1951:280).
Há várias referências à presença dos índios Cauan na documentação envolvendo o
Forte Iguatemi. Em 1768, foram expulsos os jesuítas da Região Platina, ficando os “restos”
das reduções para a administração dos governos provinciais9.
A partir do sec. XIX, o viajante alemão Johan Rudolph Rengger10
, que visitava o
Paraguai durante o governo do Dr. Francia, entre 1818-1826, traz informações mais
detalhadas sobre “los Caaguá-Pãi”. Segundo ele, “el pequeño número de Guarani que
7 . Ver Schmidl (1945:33) e outros. 8 .Nesses relatos, emerge serem os Caaguá monoteístas, portarem tonsura e, especialmente, usarem, em seus
rituais a cruz. A referência à cruz já vem registrada por Montoya (1639a/1985:86), relacionando-a à eventual
passagem de Santo Tomé, “Pai Zumé”. Aguirre, participante da nova demarcação de limites, em 1777,
confirma o uso ritual da cruz entre os Pãi/Kaiowá, mas que, para ele, é fruto dos “contatos coloniales y
misioneros”. Ambrosetti (1895:740) vai na mesma linha. Nimuendaju (1914/1987:47), referindo-se aos
Guarani, vai encontrar esta cruz em vários mitos e conclui que ela partilha, com os cristãos, apenas a forma e
o material. Com referência à origem da cruz e seu uso entre os Kaiowá, ver ainda Chamorro (1995:183 e ss). 9. Foi no governo de Carlos Antônio López, sucessor do Dr. Francia, que foram dissolvidos os 21 povos
(antigos pueblos de índios), que ainda restavam do período colonial. Transferiu para o Estado a propriedade
de todos os bens: chácaras, estâncias e gado. Aos índios deixou algumas reses e emprestou ferramentas e
pequenas extensões de terras em aluguel. Exceto a isenção do dízimo por três anos, os sobreviventes desses
povos passaram a ter as mesmas obrigações que os demais paraguaios (Linhares, 1969:47). Foi a ruína do que
ainda restava das antigas reduções e significou, segundo Vazquez (1981:100), incorporar uma grande massa
de população na categoria de gente sem terra, “precisamente al sector de la población que mas dificuldades
tuvo para llegar a ser propietaria: el nativo”. Porém, essa situação afetou pouco aos Caaguá-Monteses, pois
estes seguem “en los montes inpenetrables”, praticamente até o seculo XX. 10
Ver Reise nach Paraguay in den Jahren 1818 bis 1826, in Los Pai-Tavyterã, 2008
pudieron conservar todavía su libertad, se retiraron, sin inquietar, desde entonces a los
españoles, a los montes inpenetrales de la parte oriental y septentrional de la nueva
província” (Meliá, F. Grünberg e G. Grünberg, 1976:177). Destaca ainda, entre outros
aspectos, o fato das “diversas tribus” receberem nomes diferentes, segundo os lugares onde
residiam, o que leva esses autores a relacionar esta indicação com os três subgrupos guarani
atualmente existentes.
Em 1822, com a independência do Brasil, constituiu-se a Província de Mato Grosso,
incluindo o atual Mato Grosso do Sul. Mas, segundo Campestrini e Guimarães (1991), foi
na década de 1830 que se iniciou de fato o povoamento por não-índios das terras que hoje
constituem o Estado do Mato Grosso do Sul. Essa ocupação se deu pelos campos de
Miranda, Serra de Maracaju e, entrando pelo rio Paranaíba, rios Sucuriju e Taquarussu
(1835), chegando aos campos dos rios Brilhante (1839) e Vacaria. Porém, segundo Gressler
e Swensson (1988:20), “apesar do surto colonizador do ciclo do gado, o Estado de Mato
Grosso do Sul permanecia quase despovoado” até a Guerra do Paraguai.
Em 1845, temos expedições organizadas pelo Barão de Antonina, com o objetivo
principal de “descobrir uma via que ligasse o porto de Antonina a Cuiabá, ou seja, uma via
de acesso direto entre o Paraná e Mato Grosso”. Somente em 1847, essa expedição teria
penetrado em rios do Mato Grosso, e já em 23 de setembro desse mesmo ano o sertanista
João Henrique Elliot, integrante da mesma expedição, escreveu: a oito léguas abaixo da barra do Vaccaria com o Ivinheima, encontrámos muitos
vestígios de índios na margem direita: n´este mesmo dia, dobrando uma volta, os
avistámos de repente lavando-se no Rio: Seriam cincoenta, e correram para o mato
da barranca, ficando alguns mais corajosos por verem sómente uma canôa com
quatro pessôas dentro. Confiados na fortuna que nos têm seguido passo a passo em
todas estas explorações, nos approximámos à praia, e saltando em terra os
abraçámos, e os brindámos com mantimentos, muitos anzóes, facas, e alguma roupa
que traziamos de resto. Eram Caiuás da mesma família d´aquelles que encontrámos
nas margens do Rio Ivahy em 1845, tinham o labio inferior furado, e traziam dentro
do orificio um batoque de rezina, que à primeira vista alambre, cobriam as partes
que o pudor manda esconder com panno de algodão grosso; os cabellos eram
compridos e amarrados para traz. (...) fallei algumas palavras de língua guarany, e
entenderam-me perfeitamente (...). Estes índios pareciam de boa índole, fáceis de
reduzir, e podem ser muito úteis aos navegantes: resta que o governo dê boas
providencias a respeito, para que os não hostilisem, matando uns, captivando
outros, e affugentando o resto (Elliot, apud Monteiro, 2003, p. 23) (destaque meu)
A partir de 1848, segundo Monteiro (2003), novamente pessoas enviadas pelo Barão
de Antonina percorreram a região do atual Mato Grosso do Sul, com o mesmo objetivo “de
verificar a possibilidade de abertura de uma via de comunicação entre S. Paulo e Mato
Grosso” ou, segundo Campestrini e Guimarães (1991:41), para, tendo em vista já a Lei de
Terras de 1850, garantir-lhe as melhores áreas da região11
. Nessa mesma viagem, outro
sertanista integrante da comitiva, Joaquim Francisco Lopes, descreve bem as aldeias
kaiowá e confirma a abundância e a variedade de sua agricultura: Chegamos enfim ao aldêamento, impropriamente assim chamado, porque as casas
acham-se disseminadas e como por bairros. Entramos em um rancho coberto de folhas
de caetê, sendo outros cobertos de folhas de jerivá. A aldêa é collocada entre as suas
roças ou lavouras, que abundam especialmente em milho, mandioca, abobora,
batatas, amendoins, jucutupé, carás, tingas, fumo, algodão, o que é tudo plantado
11 . Ver ainda Melo e Silva (1947/1989:58).
em ordem; e toda época é própria, fora a sementeira, (...) (Lopes, 1850:320-21,
apud Monteiro, 2003, p.24).
Os Guarani e Kaiowá, sob a ótica dos viajantes e sertanistas, que não eram
portadores de projetos de ocupação imediata dos espaços por eles ocupados, tem suas
aldeias bem descritas, com ênfase na abundância de alimentos e acima de tudo são
percebidos como povos de “boa índole” e pacíficos. É uma identidade indígena
produzida e formatada por esses personagens interessados em informações
geográficas e ambientais e que não tinham projetos imediatos para desalojar os índios,
como os que vem a seguir.
Até 1850, poucos contatos foram mantidos com os Kaiowá, o que, aliás, está
expresso no Relatório do Diretor Geral de Indios, da Província de Mato Grosso (1848):
“Pouco conhecimento temos desta Nação que habita as immediações do Rio Iguatemy;
consta com tudo que he bastante numerosa de indole pacífica, dada a vida sedentaria
e agricola, dotada de constância, qualidade raríssima entre os Indígenas” (apud
Monteiro, 2003, p. 24-25).
Elliot (1900:447), no relato da transferência dos índios para as fazendas do Barão de
Antonina, nas margens do rio Tibagi, escreve que “deparou nos Cayuaz, nessa
numerosíssima nação refugiada nas vastas matas da margem direita do grande
Paraná, índole benigna, costumes pacíficos e tendências bem pronunciadas para a
civilização”. Borba (1908) informa que uma epidemia de varíola teria dizimado o
aldeamento.
A partir dessa data, no entanto, iniciaram-se tentativas, que não foram bem
sucedidas, de aldeamento dos Kaiowá e Guarani dessa região, porque, embora haja
unanimidade, nos escritos da época, sobre o caráter pacífico desses índios, concluiu-se
que seria necessário aldeá-los, pois “no estado, porém, em que vivem, são
completamente inuteis e prejudiciaes à sociedade pelas suas freqüentes correrias...” (Relatório do Presidente da Província de Mato Grosso, 1880:33, apud Monteiro, 2003, p.
26-27).
No mesmo relatório, o Presidente da Província afirma que “o único meio de chama-
los à civilização será o da persuação, procurando se modificar os seos habitos por
intermedio de Missionários que possuidos da verdadeira fé christã, se internem nos sertões
com o fim de aldear e catechisar esses infelizes”. Sob o olhar da autoridade provincial,
preocupada com a ocupação do território indígena, os índios demandam civilização e
catequese para se tornarem úteis à sociedade, que vinha chegando12
.
Em maio de 1861, instalou-se às margens do rio Dourados, em local próximo à atual
cidade de Ponta Porã, a Colônia Militar de Dourados, criada pelo Decreto-lei nº 1754, de
1856. Embora oficialmente destinada a auxiliar a navegação interior e a defesa dos
moradores contra os índios até a fronteira do rio Iguatemi e do rio Apa, e a “chamar estes
(índios) por meio da catequese à civilização” (Gressler, Swensson, 1988:39), essa colônia
estava, no entanto, muito mais voltada para a já difícil situação com o Paraguai.
12
Koenisgswald (1908:377) e Watson (1944:32) informam que, em 1855, o governo do Paraná teria
organizado um aldeamento para os Kaiowá sobre as ruínas da redução de Loreto de Pirapó, na afluência do
rio Pirapó, no Paranapanema, mas que já em 1862 seria abandonado pelos índios, que teriam se transferido
para Santo Inácio.
O Relatório do Presidente da Província de Mato Grosso (1863) informa sobre o
aldeamento “dos cayuás e guaranis” na confluência do rio Santa Maria com o Brilhante, no
ano de 1883, sob a responsabilidade do Frei Ângelo de Caramônico (MONTEIRO, 2003, p.
27 e 28). Com a guerra do Paraguai, os índios se dispersaram e o aldeamento foi extinto.
A guerra do Paraguai, em 1864, alterou o isolamento de parte importante do atual
Estado de Mato Grosso do Sul. Mas, segundo os autores acima citados (1991:92), em 1870
– final da Guerra - permaneciam como território dos índios “as matas ao longo do
Ivinhema, do Brilhante, do Dourados, do Pardo (...) vistas apenas como território de índios
e as terras ao Sul do Ivinhema, matas de ervais nativos, em mãos de Thomás Larangeira”.
A partir da década de 1880 inicia suas atividades a Cia Mate Larangeira e o
território indígena passa a ser, progressivamente, ocupado pelas diversas frentes de
expansão da sociedade nacional, que se juntam à Cai Matte e/ou a sucedem, configurando
um dos processos mais radicais de confinamento indígena. Cerca de cem aldeias
tradicionais foram, historicamente, destruídas sendo os Kaiowá e Guarani forçados a
abandoná-las. Nem todas as aldeias foram abandonadas em decorrência de alguma ação de
força. Muitas tiveram que ser abandonadas pelos índios por causa do excessivo número de
doenças – muitas delas trazidas pelos trabalhadores que passam a circular pelo território
indígena - e mortes decorrentes das mesmas (BRAND, 1997)13
.
O que quero destacar aqui é que paralelo à desterritorialização dos Guarani e
Kaiowá, verificado no bojo do processo de colonização, a partir, especialmente, do pós-
guerra – verificamos, também, sua invisibilização, seja por parte da historiografia –
não são mais “percebidos” pelos que escrevem sobre esse período, - como por parte
dos novos chegantes e que se apossam dos territórios indígenas e, certamente,
também, como estratégia indígena no esforço de fugir aos estereótipos e à repressão.
Praticamente toda a produção acadêmica sobre a Cia Mate Larangeira não faz
referência à presença e participação indígena, como, também, os projetos governamentais
de colonização, implantados na região, como a Colônia Agricola Nacional de Dourados,
CAND, que buscam ignorar a presença indígena, embora a documentação da Colônia esteja
repleta de registros de conflitos com os índios.
Mas, encontramos um novo tipo de registro da presença indígena pós-processo de
ocupação do seu espaço. Refiro-me aos memorialistas, preocupados em registrar seus
feitos, em especial, seus confrontos com os mesmos índios, visibilizados enquanto
resistiam à entrega de seus territórios e suas casas. Considerando os discursos
produzidos sobre esses povos, talvez estes personagens buscassem, através de suas
memórias, de alguma forma justificar os atropelos e violências cometidas. Há um livro que chama sobremaneira a nossa atenção no que se refere aos índios -
Os Barbosas em Mato Grosso, de 1961. O autor destaca que seu avô, Inácio Gonçalves
Barbosa, havia deixado um arquivo com documentos importantes, sendo que entres estes
estavam “duas cartas de dois governadores da província de Mato Grosso [...]”, uma das
quais, de 1874, “autorizava-o a arredar os índios de qualquer modo e tomar conta de suas
posses e garantir a família”.
13
Sobre a relação dos Kaiowá e Guarani com a Mate Larangeira há diversas publicações que podem ser
acessadas: A tese de Brand (1997), a dissertação FERREIRA, Eva (2007) e outros trabalhos que tratam sobre
território, educação. História. (Brand, 1997, Landa, 2005, Vietta, 2007, Marques, 2004, Colman, 2007, Mura,
2005, Silva, 2007, Benitez, 2010)
Após descrever a corrida atrás do ouro no então Estado de Mato Grosso, afirma que
muitos “foram sacrificados pelos silvícolas ciumentos e ferozes, deixando esteios e taperas,
plantas e mais vestígios da sua presença”. O autor não estabelece qualquer relação entre a
primeira afirmação - o ato de arredar os índios de suas terras e a segunda afirmação – de
que são ciumentos e ferozes, que devem ser domesticados.
Mas, reconhece que os “Caiuas” eram muitos: “Do lado das matas cheias de Caiuás,
ergueram com pedra canga uma trincheira de caçada grande, como para defesa. [...] (1961,
p.14). Portanto, os índios estavam aí e em número significativo. Essa informação, no
entanto, não ficou registrada nos livros de história regional e nas representações regionais
sobre esses povos.
Mais adiante e sempre continuando a registrar o processo de ocupação do território
indígena, o autor confirma que “foi possível a expansão, a tomada de posse definitiva de
toda a região e tornaram-se senhores, arredando o índio, ou com ele se cruzando e
domesticando-o” (1961, p. 15).
Em outra passagem constata que “os bugres dominavam livremente, comendo o
resto de gado escapo dos paraguaios. Os Terenos e Xavantes faziam excursões amistosas,
mas os Caiuás foram maus e traiçoeiros, o ciúme os levou a assaltos contínuos e só
contidos de medo da arma de fogo, não deram tréguas, usando mão baixa nas ferramentas e
roupa. [...]” (1961, p. 29).
Fazendo referência às incursões do Barão de Antonina, através do “hábil sertanejo,
Joaquim Francisco Lopez”, que acompanhado do cartógrafo inglês, John Henri Elliot,
registra que “traçaram mapas, agradaram os silvícolas, compraram e demarcaram posses
para o Barão” e, o que é mais importante, transladaram “os indesejáveis Caiuás para a
Colônia de S. Jerônimo, na Província de S. Paulo e hoje do Paraná”.
Lendo os escritos desse autor (1961), percebe-se que os índios, especialmente, os
Kaiowá e Guarani, opuseram-se, fortemente, à entrega de seus territórios, suas casas e
plantações à gente estranha, vinda de regiões distantes. Foram, por isso, caracterizados
como ciumentos, ferozes, maus e traiçoeiros, que “sacrificaram” os coitados, invasores de
suas terras, obrigando-os ao uso das armas, para impor a paz à gente tão violenta e
traiçoeira.
Essa mesma visão vem registrada no livro “Maracaju e sua gente”, de Ferreira e
Rosa (1988, p.111), que após reconhecerem que “havia muitas aldeias indígenas espalhadas
desde as cabeceiras dos rios Sta Maria e Brilhante até as margens do Rio Paraná”,
informam que “os índios constituíam ameaça permanente para os fazendeiros que, por
diversas vezes, tiveram que empregar muita astúcia, e até mesmo o uso de armas de fogo,
para rechaçar os seus ataques traiçoeiros e perigosos”. E concluem os mesmos autores que
“depois de muita luta e até combates sanguinolentos, teve lugar uma aproximação pacífica
dos grupos em litígio”.
A mesma solução violenta vem indicada em Barbosa (1961, p. 18), ao reconhecer
que a belicosidade indígena só foi contida com o reforço de gente e pólvora, sendo fácil
domá-los, trazendo ao redil. E conclui que “domesticados e fortes como eram foram de
proveito nas roçadas. [...]”. E, novamente, os índios são invisibilizados ou se invisibilizam,
como veremos abaixo.
É, certamente, importante perceber que em nenhum momento os colonizadores e os
seus historiadores admitem aos índios o direito de defenderem suas terras, suas casas e suas
famílias, direito absolutamente inquestionável em se tratando deles mesmos, os colonos.
Serejo (1986:107-108) é, talvez, um dos poucos que reconhece que “estes silvícolas -
verdadeiros donos da terra”, achavam-se no direito de “defender as matas, os campos, as
aguadas e os ervais nativos”.
O que chama atenção como a legislação que garantia o direito às terras ocupadas
pelos índios já desde a regulamentação da Lei de Terras de 1854, artigo 72, 73 e 74, e mais
especificamente as Constituições de 1934, de 1937 e de 1946, nas quais constam artigos
garantindo a posse indígena das terras nas quais se “achem permanentemente localizados,
sendo-lhes, no entanto, vedado aliená-las” (art 129/1934) foi sistematicamente ignorada por
todos, inclusive pelos órgãos responsáveis pela proteção dos índios.
As representações e a produção discursiva da identidade dos Guarani e Kaiowá
Os povos indígenas, ao se oporem à entrega de suas terras, suas casas sofrem uma
dupla violência que segue até o presente:
- primeiro, são compulsoriamente impulsionados a assumir uma outra relação com a
terra e a natureza – pois sob sua visão de mundo e seus valores, a avidez dos que chegavam
por mais terra para a criação de gado não fazia sentido. Mas, também, o modo de vida
indígena e sua forma de uso da terra não fazia qualquer sentido para os colonizadores,
como não faz sentido até hoje, justificando, portanto, a expulsão dos índios de terras tão
ricas14
;
- e, segundo, são, discursivamente, produzidos como ferozes e traiçoeiros ou então
como inúteis e um estorvo ao desenvolvimento regional, apesar que os poucos documentos
e registros do SPI sobre essa “guerra” indicarem exatamente o contrário, isso é, os índios
sendo constantemente violentados. Há uma relação significativa de documentos registrando
o atropelo dos índios, mas esses documentos tem sido ignorados15
.
14
Cabe destacar que essa “guerra” pela posse da terra, como no período colonial, vem perpassada por visões
de mundo, valores e perspectivas de vida completamente distintas, mas que tem em comum, embora, também,
por razões muito distintas, a importância e valorização da terra. Os povos indígenas já ocupavam essa terra
não com o objetivo de gerar riquezas, mas como espaço de vida e certamente não encontravam qualquer
sentido na insaciável avidez por terras para criar gado e assim gerar riquezas dos novos chegantes. Estes, por
sua vez, estavam, exclusivamente, em busca de terras para exploração, tendo em vista a geração de riquezas,
num primeiro momento, pela criação de gado. 15
No Ofício, de nº 2, datado de 28 de janeiro de l947, o agente Acácio Arruda, do P.I. Horta Barbosa, de
Dourados, informa que a “perseguição em Dourados contra os índios é quaze geral”, indicando o clima de
violência e pressão contra os Kaiowá na área da colônia federal. É dramático o depoimento de um dos índios
sobreviventes do período de implantação da CAND: “Meu pai morreu quando chegou os colono. Morreu de
tristeza de perder as terra. Os índios foram tocado que nem bicho, com espingarda. Por que fazer isso com
índio?” (apud, SILVA, 1982:20). O Ofício nº 2, de 12 de outubro de 1949, de Dayen Pereira dos Santos,
funcionário do Posto Indígena Benjamin Constante, dirigido ao chefe da I.R. 5º, relata a expulsão de uma
comunidade indígena de 80 pessoas: Agora estes índios foram de lá expulsos com toda a violência, por um
grupo de civilizados, todos armados a armas cumpridas (fuzis e mosquetões), alegando eles que ditas terras
estão reservadas para uma colônia agrícola (não sei se isto é exato). (...), o grupo que os expulsou da terra era
composto dos seguintes indivíduos (No ofício seguem os nomes)15
. O funcionário informa que já havia
tentado várias soluções por meio da autoridade policial local, mas que “encontra pouca vontade da mesma
agir com energia em defesa dos interesses dos índios”. E mais recentemente, na década de 1980, o jornal O
Progresso, de 5 de março de 1985, sob o título Brancos invadem terras de índios em Jaguapiré, registrou o
seguinte fato: (...) tiros, fogo e pancadaria foram a tônica de uma invasão na comunidade indígena de
Jaguapiré, em Tacuru no final da semana. Um batalhão de 27 homens, incluindo jagunços e até soldados da
polícia militar, entrou na Reserva onde vivem 30 índios kaiowá e provocaram o maior tumulto15
.
É essa visão que acaba sedimentada nas representações e no imaginário de amplos
setores da população regional. Recorrendo à Pesavento (2005, p. 41) e de outros já citados,
sabemos que a “força das representações não está no seu valor de verdade”, mas em sua
capacidade de mobilização e de produzir reconhecimento e legitimidade social”. E
analisando a história de ocupação dos territórios indígenas, creio que fica claro que “quem
tem o controle da vida social”, decorrente da supremacia conquistada em uma relação
histórica de forças, “tem o poder simbólico” de “dizer e fazer crer sobre o mundo” (2005, p.
41). Ou, como afirmou, certa vez, um produtor rural: “cabe aos índios reconhecer que
foram derrotados”.
É o estatuto do conquistador que confere verossimilhança e credibilidade às
representações sobre os povos indígenas, ocupantes primeiros dos territórios. E, como
veremos, é a persistência dessas relações de colonialidade, afiançadas pela grande
propriedade, que permite que essas representações sigam incorporadas por coletivos
maiores, integrando o imaginário regional sobre os povos indígenas. E certamente, grande
parte da produção historiográfica contribuiu significativamente para essas representações
por ter se alinhado e assumido, acriticamente, essas mesmas representações ou ter
contribuído para a sua persistência através da omissão e do silenciamento16
.
A visão dos Guarani e Kaiowá, como pacíficos, amáveis e agricultores, produzida
pelos viajantes e sertanistas, não conseguiu se transformar em representação e muito menos
transitar para o imaginário regional, onde se confirma a versão, produzida e “afiançada”,
pelos que venceram a intensa e violenta disputa em torno da posse da terra, que se instalou
em toda a região.
A luta que se desencadeia em torno da posse do território antes indígena foi
completamente desigual porque, além das armas e das poderosas doenças “brancas”,
somente um lado tinha o poder do registro escrito e, portanto, o poder da versão. E, é
preciso reconhecer que a historiografia regional foi, durante longos anos refém dos
registros (documentos) e das versões dos colonizadores, contribuindo para a sedimentação
dessas representações em amplos setores da sociedade regional.
Numa publicação de 2009 encontramos o registro da suposta “venda” de sua
filha por parte de um morador da aldeia de Amambaí. Esse fato leva o autor da
publicação a seguinte conclusão: ler p. 43. - lembrar fato dos sertanistas..17
.
Essa submissão às versões da elite regional, ou, aos interesses da grande
propriedade por parte da produção historiográfica, começa a ser quebrada, a meu ver, a
16
Na discussão do problema da desnutrição infantil entre os Kaiowá e Guarani, em 2005, no esforço de
explicar e justificar as mortes de tantas crianças, novamente, emergem com força as mesmas representações,
historicamente construídas, sobre esses povos, no bojo da conquista territorial, buscando caracterizar essas
mortes como conseqüência lógicas de “limitações” próprias da cultura indígena. Em matéria do jornal Correio
do Estado, de 27 de fevereiro de 2005, (p.8 A), referindo-se a manifestações de responsáveis pelo
atendimento da saúde indígena, encontramos, novamente, que “a cultura indígena vem se mostrando um
importante obstáculo às ações do Governo em Dourados” e mais adiante segue afirmando que entre esses
índios “é comum que os pais se alimentem antes dos filhos, deixando para as crianças o que restou da
comida”. 17
Por isso faz, certamente, sentido a afirmação do general Couto Magalhães, em seu livro O Selvagem, escrito
em 1876, referindo-se as acusações de que “o índio é perigoso, estúpido, bêbado, traiçoeiro e mau”. Afirma
ele: “coitados! Eles não têm historiadores; os que lhes escrevem a história ou são aqueles que, a pretexto de
religião e civilização, querem viver à custa de seu suor, reduzir suas mulheres e filhas a concubinas, ou são os
que os encontram degradados por um sistema de catequese, que com muito raras e honrosas exceções é
inspirada pelos móveis da ganância ou da libertinagem hipócrita...” (1876/1975:138).
partir do que poderíamos chamar de “emergência indígena”, que no Brasil começa a se
configurar na década de 1970, mas que adquire visibilidade na década de 1980, em
especial, com a Constituição de 1988, que quebra e supera, pela primeira na história do
país, a perspectiva integracionista.
É importante dizer que os povos indígenas contaram nessa luta pelo
reconhecimento de seus direitos com o apoio de importantes setores da sociedade civil,
incluindo aí, a destacada atuação de grupos de antropólogos, historiadores e de outros
cientistas sociais. Desde lá, a par do envolvimento crescente de setores da academia com a
luta pelos direitos indígenas e da afirmação, em especial, do direito à autonomia dos povos
indígenas, e considerando, ainda, as discussões envolvendo os 500 anos de colonização da
América – 1992, inicia, também uma importante virada nas abordagens teóricas
envolvendo não só os povos indígenas18
No que se refere aos Guarani e Kaiowá, em MS, importantes estudos, em especial
dissertações e teses foram produzidas, que contribuíram e contribuem significativamente
não só na luta por seus direitos, mas, o que considero sobremaneira relevante, para o
questionamento dessas representações, historicamente, sedimentadas. No entanto, o grande
desafio posto é fazer com que essas pesquisas e produções saiam dos espaços restritos das
Universidades e transitem, em especial, para os livros didáticos e para os meios de
comunicação.
Nesses dois setores persiste de forma mais clara a reprodução das representações
acima destacadas. É o que confirma pesquisa realizada por Calderone e Brand (2010), em
dois livros didáticos distribuídos pelo PNLD - Programa Nacional do Livro Didático, em
2008, buscando discutir as representações da identidade indígena presentes nesses livros
selecionados19
. Concluem que os livros analisados se caracterizam mais pelo
“silenciamento e pela invisibilidade da presença indígena na história e no presente” e
quando percebidos “o são de forma secundária, foclorizada ou são “colocados” em um
tempo e com práticas sociais e culturais do passado”. Aliás, a forma como está “lembrada”
a semana dos povos indígenas em nossas escolas contribui, certamente, para aprofundar
essas representações.....
Em um trabalho sobre as notícias envolvendo os Guarani e Kaiowá nos principais
jornais regionais - Correio do Estado, Folha do Povo e O Estado de Mato Grosso do Sul,
Maldonado (2010) concluiu que esses meios de comunicação apresentam os fatos de forma
isolada, “não permitindo ao leitor uma compreensão e uma leitura mais complexa e crítica”,
contribuindo, dessa forma e em muitos casos, para “uma imagem negativa do índio,
impregnada de estereótipos”. E segue afirmando que, quando se trata de matérias especiais
observam-se “falhas e superficialidade na apuração que comprometem as informações”,
persistindo, também, “o claro alinhamento com um lado do conflito, contribuindo, mais
18
Há um expressivo número de publicações relevantes sobre a temática indígena que vem a público nessa
década: História dos Índios no Brasil, de Manuela Carneiro da Cunha (1992); Índios no Brasil, organizado por
Luís Donisete Benzi Grupioni (1994; a Temática Indígena na Escola: novos subsidios para professores de 1 e
2 graus, coordenado por Aracy Lopes da Silva & Luís Donisete Benzi Grupioni (1995) 7; Negros da Terra:
indios e bandeirantes nas origens de São Paulo, de John Manuel Monteiro (1995)8, e Ensaios em antropologia
histórica, de João Pacheco de Oliveira (1999). Para maiores informações ver Eremites, in Revista História em
Reflexão: Vol. 3, n. 6 – UFGD - Dourados jul/dez 2009, 19
Projeto Pitanguá, organizado pelo Editora Moderna, 2005, distribuído pelo Plano Nacional do Livro
Didático, PNLD, do Ministério da Educação (FNDE), em 2007; e História de Mato Grosso do Sul, de Lori
Alice Gressler, Luiza Mello Vasconcelos e Zélia Peres de Souza, 2005.
uma vez, para uma imagem destorcida do indígena”. A ausência, em muitos casos, de
fontes indígenas envolvidas no assunto abordado nas matérias é uma das constatações mais
desanimadoras nesta pesquisa, considerando, em especial, que as fontes são o principal
elemento do texto jornalístico.
Penso que todos os presentes tem acompanhado o total alinhamento de alguns meios
regionais de comunicação no conflito envolvendo a posse de terras de ocupação tradicional
indígena, em 2009 e 2010. Sem questionar informações, mas preocupados em explicitar
eventuais interesses “obviamente sempre escusos”, de um lado do conflito, no caso dos
índios. No entanto, os interesses dos outros envolvidos são apresentados, logicamente,
legítimos e, acima de tudo, transformados em interesses do Estado e do país, exatamente,
como no início da colonização em que os índios sempre foram “apresentados” e produzidos
discursivamente, como o problema e como negação dos interesses maiores do país.
Algumas considerações finais
Como primeiro ponto quero destacar a relevância das representações nos processos
de afirmação étnica em curso no presente, lembrando de um texto de Hall (2000), no qual o
autor afirma que nossas identidades estão atreladas “com a questão da utilização dos
recursos da história, da linguagem e da cultura” (HALL, 2000, p.109), ou seja, alerta para a
eficácia discursiva na marcação da identidade do outro. Afirma ele que:
(...) Tem a ver não tanto com as questões „quem nós somos‟ ou „de onde nós
viemos‟, mas muito mais com as questões „quem podemos nos tornar‟, „como
nós temos sido representados‟ e como essa representação afeta a forma como
nós podemos representar a nós próprios.
O historiador é um homem do presente, que formula perguntas ao passado, a outros
“presentes”, preocupado, porém, sempre, em compreender o seu próprio momento
histórico. E penso que como historiadores e demais pesquisadores temos pela frente um
importante desafio: como contribuir na desconstrução dessas representações sobre os povos
indígenas, historicamente não considerados como sujeitos inteligentes? Segundo John
Monteiro (2000, p. 227), cabe ao historiador, hoje, “recuperar o papel histórico de atores
nativos na formação das sociedades e culturas do continente, revertendo o quadro hoje
prevalente”.
A documentação disponível foi produzida por uma das partes, ou um dos lados,
refletindo apenas o seu ponto de vista. Além disso, encontramos lacunas documentais, ou
seja, fatos ou momentos decisivos para a história do outro que não foram considerados
relevantes ou não interessantes sob a ótica do colonizador. Lidamos com povos que não
conseguiram “ser ouvidos” pelas fontes tradicionais da historiografia. Como superar essas
lacunas documentais? Certamente o recurso à história oral pode contribuir
significativamente para isso!
Em segundo lugar quero retomar a questão da invisibilização dos Guarani e Kaiowá
em diversos momentos desse processo histórico. Parece-me não ser explicação suficiente
creditar esse ocultamento à estratégia dos colonizadores, interessados na negação da
presença indígena. Estou cada vez mais convencido de que se tratou, também, de clara
estratégia indígena, uma forma encontrada pelos Guarani e Kaiowá para, de um lado,
fugirem do esteriótipo de “bugre” e, ao mesmo tempo, seguirem vivendo na região e, mais
ainda, terem acesso a bens que lhes interessavam muito (roupas, feramentas, remédios...)
Aliás, ao analisar as estratégias guarani e kaiowá frente ao avanço das frentes de
colonização de seu território e à ocupação de suas aldeias (ver Brand, 1997), percebe-se que
foram se retirando e procurando áreas de refúgio nos fundos das fazendas, nos lugares mais
inacessíveis e de menor interesse para a economia regional. Apelam a formas mais
ostensivas de enfrentamento do entorno, apenas quando não encontram mais áreas de
refúgio, o que se verifica, especialmente, a partir da década de 1970 e 1980.
Em terceiro lugar, conhecemos, ainda, pouco, sobre os processos de negociação,
troca, resistência ou confrontação desenvolvidos por esses povos e por cada povo em
particular nesse período histórico e em um contexto de relações de poder profundamente
assimétricas e que lhes permitiram manterem sua distintividade e a persistência das
fronteiras étnicas, ou a explicitação de critérios de pertencimento e de exclusão,
entendendo-se esses como um “conjunto sistemático de regras que governam os encontros
sociais interétnicos”? (Barth, 2000, p. 35)20
. Por isso, é certamente, muito significativa a
chegada às Universidades de pesquisadores indígenas – já temos um doutor em história
terena – e vários outros vem chegando. Caberá, certamente, a eles um importante papel na
revisão de muitas leituras “nossas” sobre esse passado recente.
E, finalmente, a persistência das representações acima, em amplos setores do
entorno regional, é um indicativo importante para a análise das relações de poder que
seguem perpassando a realidade social, na qual estes povos estão inseridos. Indica,
claramente, a persistência de relações de colonialidade, a partir das quais segue sendo
definido o lugar desse outro, no caso, os povos indígenas. A luta pela terra adquire, dessa
forma, dimensões de fundamental relevância dentro do projeto de quebra dessa relação
colonial21
.
20
Para Barth (2000, p. 27), o importante na definição dos limites de um grupo étnico, são “os valores êmicos
e sua interação com os outros grupos como meio de afirmar as diferenças, em vez de insistir nos elementos
culturais visíveis e materiais, quer dizer objetiváveis”. Os grupos étnicos são “categorias atributivas e
identificadoras empregadas pelos próprios atores” e têm como meta “organizar as interações entre as
pessoas”.
21 Inclusive, os esforços de uma melhor informação sobre o modo de vida desse outro parece caírem no vazio
porque não logram questionar as relações de poder.