001a - PARENTE - A Imagem Virtual Auto Referente_14-45

17
COPYRlGHT © by Andre Parente Catalogasao na fonte do Departamento Nacional do Livro P228v Parente, Andre. 0 virtual e o hipertextual I Andre Parente. Rio de Janeiro : Pazulin, 1999. 112p.: 14 x 21 em ISBN 85-86816-02-7 1. Computadores e civiliza<;ao. 2. Realidade virtual 3. Sistemas de hipertexto. Titulo Capa: Marcelo Lino Projeto gr.ifico e editoroc;iio eletronica: Claudia Duarte Edic;ao de texto e revisao: Cecilia Moreira Direitos para esta edic;ao contratados com PAZULIN EDITORA LTDA. Rua Senador Dantas, 117 saia 342 20031-201 Rio de Janei ro tel/fax: (021) 9184-9722 e-mail: pazulin@ .pontocom.com.br Todos os direitos reservados. A nao autorizada desta no todo ou em parte, constitui do copyright (Lei 5.988). CDD-303.483 Nucleo de Tecnologia da lmagem Av. Pasteur, 250/ fundos 22290-240 Praia \'ermelha tel: (021) 295-9399 fax: (021) 295· 9499 e-mail: [email protected] "Dans le monde des structures multiples et des bifurcations, la situation est differente de ce qu'elle etait dans le monde de !a science anterieurement. Le reel devient presque un accident, un ilot parmi Jes possibles, parn1i cl'autres choix qui pouvaient se realiser. Ce n'est pas que ces autres ch oix soient moins rationnels; le reel et le rationnel ne s 'identifient plus, et l'imaginaire, le possible se trouvent rehabilites au coeur meme de la science." Ilya Prigogine "Toda multiplicidade implica elementos atuais e elemen- tos virtuais. Niio ha objeto puramente atual. Todo atual rodeia-se de uma nevoa de imagens virtuais." Gilles Deleuze

Transcript of 001a - PARENTE - A Imagem Virtual Auto Referente_14-45

Page 1: 001a - PARENTE - A Imagem Virtual Auto Referente_14-45

COPYRlGHT © by Andre Parente

Catalogasao na fonte do Departamento Nacional do Livro

P228v Parente , Andre .

0 virtual e o hipertextual

I Andre Parente. Rio de Janeiro: Pazulin, 1999. 112p.: 14 x 21 em

ISBN 85-86816-02-7

1. Computadores e civiliza<;ao. 2. Realidade virtual

3. Sistemas de hipertexto.

I· Titulo

Capa: Marcelo Lino

Projeto gr.ifico e editoroc;iio eletronica: Claudia Duarte

Edic;ao de texto e revisao: Cecilia Moreira

Direitos para esta edic;ao contratados com PAZULIN EDITORA LTDA. Rua Senador Dantas, 117 saia 342 20031-201 Rio de Janeiro tel/ fax: (021) 9184-9722 e-mail: pazulin@ .pontocom.com.br

Todos os direitos reservados. A nao autorizada desta no todo ou em parte, constitui do copyright (Lei 5.988).

CDD-303.483

Nucleo de Tecnologia da lmagem Av. Pasteur, 250/ fundos 22290-240 Praia \'ermelha tel: (021) 295-9399 fax: (021) 295· 9499 e-mail: [email protected]

"Dans le monde des structures multiples et des bifurcations, la situation est differente de ce qu'elle etait dans le monde de !a science anterieurement. Le reel devient presque un accident, un ilot parmi Jes possibles, parn1i cl'autres choix qui pouvaient se realiser. Ce n'est pas que ces autres choix soient moins rationnels; le reel et le rationnel ne s 'identifient plus, et l'imaginaire, le possible se trouvent rehabilites au coeur meme de la science."

Ilya Prigogine

"Toda multiplicidade implica elementos atuais e elemen-tos virtuais. Niio ha objeto puramente atual. Todo atual rodeia-se de uma nevoa de imagens virtuais ."

Gilles Deleuze

Page 2: 001a - PARENTE - A Imagem Virtual Auto Referente_14-45

14

A IMAGEM VIRTUAL, AUTO-REFERENTE ...

A realidade virtual e uma questao prolixa, mas nao e apenas uma palavra de ordem da ideologia comunicacional. Tanto no dominio·da tecnologia quanto no da arte, o virtual e urn conceito que admire defi-nic;6es contradit6rias e antagonistas. Ao contrario do que se pensa, ele nao remete a urn para alem do real, mas a uma vontade (ou nao) de constitui<;ao do real enquanto novo.

Hoje em dia, existem pelo menos tres diferentes concep<;6es do que seja o virtual. Uma primeira tendencia (expressa nos trabalhos de Edmond Couchot, Jean-Paul Fargier e Arlindo Machado, entre outros) quer nos fazer crer que o surgimento de uma tecnologia do virtual e capaz de explicar o fato de a imagem, na cultura contemporanea, t<;:r se tornado auto-referente e, por isso, ter rompido com os modelos 'd·e

·\:epresenta<;ao.

Uma segunda figuras proa sao_Baudrillard e 'lio) toma o virtual tecnologtco como urn smtoma e nao como uma

causa das culturais . Para alem deste ou daquele meio (cinema, televisao, video ... ) as imagens contempocineas sao virtuais, auto-referen-tes, ou seja, a imagem p6s-moderna e urn significante sem referente social.

Uma terceira tendencia (presente nos texi:os de Gilles Deleuze, Felix Guattari, Pierre Levy, Jean-Louis Weissberg, entre outros) 1 afirma o virtual como urna fun<;ao da imagina<;ao criadora, fruto de agenciamentos os mais variados entre a arte, a tecnologia e a ciencia, capazes de criar novas de modelagem do sujeito e do mundo.

0 VIRTUAL

0 VIRTUAL TECNO(ONTO)LOGICO

Images: de l'optique au numerique, de Edmond Couchot, e um livro exemplar no que diz respeito a primeira tendcncia, urna vez qu e nele estao presentes os principais argumentos e mal-entendidos nela contidos . Nesta tendencia, que parte de uma determina<;;ao puramente tecnica do virtual para dela tentar criar os principios de uma ontologia da imagem de sintese, o virtual, resultado de uma evolw;ao das tecni-cas de figurac;ao, leva a uma ruptura corn os modelos de representac;ao - tai seria a sua principal prernissa.

De urn !ado, terlamos os modelos 6ticos de que rive-ram origem com a perspectiva centro-linear renascentista, com seus perspectivadores, e em particular a camara obscura, prot6tipo dos modelos fotomecanicos. Estes modelos produzem imagens (pintura , fotografia, cinema e video) como duplo do real, as quais dependem de uma fe perceptiva em uma aderencia ao mundo real como Iugar das coisas e dos fenomenos. Segundo Couchot, a conquista do instant;lnco

do movimento cinematogrifico, da simultaneidade da trans-. missao televisiva, operou uma aproxima<;ao cad a vez maior do real e da imagem como scu duplo.

Do DUtrO lado, teriamos OS modelos numericos e digitais respons;l-veis pelas imagens de sintese, imagens e realidades virtuais, auco-referen-tes. Se coisa preexiste a imagem de sfntese, e 0 programa, isto e, OS

numeros (algoritmos) : "a imagem nao mais representa 0 real, ela 0 simula".J

A partir desta idCia de ruptura con1 os modelos de Couchot extrai uma serie de consequencias. A mais importante delas afirma que, com a imagem virtual, "nao se trata mais de figurar o visf-vel: trata-se de flgurar aquila que e modelizavel". 4 Ou melhor, a ima-gem niio e mais a representa<;ao do visive!, porque mio ha mais real

A I MAG EM VIRTUAL, AUTO-REFERENTE...

15

Page 3: 001a - PARENTE - A Imagem Virtual Auto Referente_14-45

16

preexistente a ser representado. Couchot nao estaria confundindo re· presentac;ao e reproduc;ao? Se, porum !ado, a imagem de sintese nao reproduz o real fenomenico, por outro lado, nao se pode com isso querer deduzir que ela nao seria mais da ordem da representac;ao. Mesmo porque a maior parte da produc;ao de imagens de sfntese sa tis· faz um desejo de representac;ao do visivel e, mais profundamente, das significa<;:6es pressupostas do real.

Se aceitarmos essa confusao entre e representac;ao, somas levados a sustentar que nenhuma imagem e da ordem da repre-sentac;iio, ou, o que da no mesmo, que todas as imagens sao da ordem da simula<;iio. E para isto, bastadamos evocar a ideia da imagem-janela albertiniana da pintura renascentista, em que os quadros simulam, no plano bidimensional, a profundidade, tridimensional, da cena representa· da. Trata-se de uma representac;ao e de uma simular;ao ao mesmo tempo.

Ao definirmos o virtual nos termos de uma imagem tecnicamente auto-referente que nao reproduz oreal preexistente, entao deveriamos dizer que tanto a pintura como o cinema produzem imagens virtuais. A utilizac;iio da cor entre os impressionistas, par exemplo, e feita de modo a, partindo de duas cores complementares, produzir na percep<;ao do espectador uma terceira cor, virtual, ou seja, inexistente fisicamente. Goethe, em seu tratado da cor, 5 usava o termo cor inexistente para opor a perceptiva da cor a uma fisica (Newton). .

tarnbem dispoe de inumeraveis dispositivos que fa-zem cinematoe:rifica uma imae:em virtual. Urn deles e o

muito usado, principalmente nos dia· logos e nas montagens alternadas dos filmes narratives, e que produz no espectador a impressiio de que o espac;o do campo e do contracampo sao contiguos. Ora, muitas vezes esse sentimento de contigi.iidade s6 existe no filme. No Otello de Welles, dois personagens dialogam fora

OVIRTUAL

do castelo . Para o espectador, eles estao em urn mesmo espac;o, as de-pendencias externas do castelo, quando na verdade urn foi filmado na Espanha eo outro no Marrocos . Com isto poderiamos dizer que a ima-gem da pintura e do cinema tambem e virtual porque nao reproduz uma realidade preexistente: uma cor que nao esta sequer no quadro, um espac;o (contiguo) que nao e real, etc.

Ernst Gombrich mostrou muito bern que entre a representac;ao e a realidade extern a s6 ha ilusao, 6 que nenhuma arte reproduz fiel-mente 0 real. Cada meio de expressao ·artistica representa a realidade em fun<;ao dos processos (esteticos e sociotecnicos) de modelagem que lhes sao pr6prios em cada epoca, genero ou autor. Com isto devemos ser capazes de mostrar que, se a arte busca uma ilusao referendal a realidade a qual remete, esta ilusao muda sem parar. Hoje, alguns dos problemas enfrentados pela modelagem da imagem de sintese visam reproduzir certos aspectos da imagem (espac;os desfocados, todos os tipos de borr6es causados pelos movimentos de camera, etc.) que sao pr6prios dos processos de modelagem fotomedinicos (fotografia, cine-mae video), tendo em vista que a nossa visao do mundo ainda e, em grande parte, condicionada por eles.

Ao falarmos de modelagem, nao podemos deixar de lembrar de Leonardo Da Vinci (e seu Tratado de pintura), para quem a modelagem e a alma de uma pintura que nao se quer apenas enquanto teem§, mas sobretudo como logos, como escrita e forma de conhecimento. Ao con-templarmos a Mona Lisa podemos ter uma ideia concreta do que Da

queria dizer com modelagem, quase cinco seculo antes da imagem de sintese. Diante da iviona .Lisa, o espectador e arrebatado pela delicade-za .das eleva<;6es e dos rebaixamentos da superficie, que proporcionam ·uma experiencia parecida com a que teriamos se os tocissemos com maos invisfveis. Uma profundidade alga indizivel se apodera de n6s, como

A IMAGEM VIRTUAL, AUTO-REFERENTE ...

17

I

Page 4: 001a - PARENTE - A Imagem Virtual Auto Referente_14-45

18

se fossemos tragados pela imagem, o que de certa forma antecipa os efeitos da imagem virtual (cinema em terceira dirnensao, holografia, rea-lidade virtual, etc.). Toda imagem e "linguagem", ou seja, se faz em fun-c;ao de processos de modelagem que constituem mundos posslv<7is ..

Para outros te6ricos, a questao da auto-referencia das novas tecnologias da imagem e fruto da disposic;ao do espectador. Segundo Fargier, a imagem do video e auto-referente, uma imagem da imagem: "no video, a realidade nao e mais problema. No cinema se coloca scm-pre a questao de saber se o filme a atingiu ou nao. No video, a realidade nunca comparece ao encontro porque nao e por ela que n6s espera-mos".7 .E verctade que a auto-referenda da imagem do video, que nao e apenas tecnica, depende da disposh;ao do espectador. Toda arte pro-duz, em algum nivel, uma ilusao referencial que depende da fe perceptiva do espectador, ou, 0 que da no mesmo, de uma vol_un.taria suspensiio da incredulidade, a que Coleridge chamava de "fe poetica''. A realidade pode ou nao comparecer ao encontro de uma imagem, independente do meio utilizado para produzi-la; tudo depende da fe perceptiva do espectador. Li Ssu-hsun (652·720 d.C) pintou os paraventos do palacio do imperador com cenas representando monta-nhas e cascatas. Urn dia, o imperador se queixa ao pintor: "as cascaras que voce pintou fazem muito barulho e nao me deixam dormir, par favor, fac;a alguma coisa". A imagem criada por Li Ssu-hsun e tao realista que se torna auto-referente, ou seja, ela nao apenas reproduz uma rea-lidade exterior, acaba se tornando a propria realidade.

Com isso poderemos tirar pelo menos duas li<;oes provis6rias: 1) a auto-referencia nunca e apenas uma determinac;ao tecnica relati· va a esse ou aquele meio de expressao; 2) pode-se chegar a auto-referenda por caminhos contrarios, ambos dependendo sempre da fe perceptiva e da disposic,;ao do espectador: de urn lado, temos uma

0 VIRTUAL

imagem que s6 remete a si propria ou a outra imagem, e portanto rom-pe com a ilusao referendal externa, por outro lado temos uma imagem que se da como urn duplo tao perfeito do real que a ele se substitui.

No entanto, alguns especiaiistas da vldeo-arte acrescentarn ver-. dadeiros julgamentos de valor que contrapoem o video ao cinema, para

concluir que 0 cinema "s6 e isso" e que 0 video "nao e nada disso", etc. Fargier e Arlinda Machado tern o habito de contrapor video e cinema

. . _ nos termos de uma estetica da transparencia (cinema) e de uma esteti-, -

._,;, ,_ ca da opacidade (vide<2}·_ Ora, tanto o cinema quanta o v1dco sao tudo \, "...... . _-----_- ---·· . . . ---- -

0 que se queira, e muitas outras coisas. Tudo depcnde da disposi<;io do analista. Por exemplo, Fargicr, que conhece perfeitamente a hist6-ria do cinema, e em particular a do do ra, utiliza um velho argumento dos te6ricos do cinema experimental Gean-Franc;ois Lyotard, Claudine Eizynkman e Guy Fihman), com os

19

. quais de trabalhava na Universidade de Paris VIII, para diferenciar ci-e video: "as imagens em video remetem mais ao ruido do que ao

sinal. A escrita do video, ao contnirio da escrita cinematografica, cujos processos nao possuem outro tl.m que ode levar o real a se assinalar, b coloca diferentes maneiras de tornar a imagem barulhenta" 8 ..--···7' ( ., ;J .>/ · · I

/

/ /

Arlinda Machado faz afirma<;6es apressadas sobre o cinema, como se o cinema fosse o depositario miximo de uma estetica da transea-..

Ele sustenta que o video esta mais proximo de uma estetica da . ...:....•""""

opacidade- supondo que as idCias de opacidade e transparencia sirvam para separar o joio do trigo em materia de estetica- do que o cinema, e isso por conta de certos aspectos tecnicos da imagem do video: a defini<;ao e os defeitos do tipo lag suficientes para chamar a do mas tambem para agu <;ar a sua imaginac;ao e aumentar a sua participac;ao. 10 Se isto fosse verdacle, a televisao ja teria conseguido, como queria McLuhan, em func,;ao apenas

. c } .

A IMAGEM VIRTUAL, AUTO-REFEREHTE ...

Page 5: 001a - PARENTE - A Imagem Virtual Auto Referente_14-45

20

de suas caracteristicas tecnicas, transformar o mundo. Tal era, alias, o programa dos cineastas das vanguardas hist6ricas do infcio do seculo, que desejavam, com seus filmes, acordar os pensadores potenciais que habitam os espectadores- coisa que nos faz rir hoje. Mesmo os progra-mas ao vivo e as novelas sao positivadas por Arlinda, por transgredirem os c6digos da representac,;ao narrativa, tendo em vista que elas incorpo-ram o acaso e o aleat6rio, no que eles se identificam com a obra de arte aberta. 11 De fato, Arlin do, como Couchot, acredita que a imagem (de televisao para o primeiro, de sintese para o segundo), para alem de seus usos, pode por em crise os modelos de representac,;ao dominantes desde o Quattrocento. E como se pudessemos extrair uma ontologia da ima-gem a partir de suas caracterfsticas tecn.icas. Mas Arlindo vai mais Ionge ainda. Segundo ele o ao contrario do video e mesmo da fq.,togca-

12 po nao afeta as imagens do cinema, uma vez que o movimento que ele nos d<i e apenas uma ilusao. Se a imagem em movimento e uma ilusao de movimento, como distinguir a percep<;ao do movimento aparente da percep<;ao do movimento real? Como esquecer as elementares dos gestaltistas, entre eles Max Wertheimer, que demonstrou definitivamente, no estudo da estromboscopia, que o movimento real niio e seniio urn caso patticu-lar do movimento aparente? Nao podemos acreditar que Arlinda desco-nhec,;a as series de anamorfoses do cinema de animac,;ao e de classicos tais como Filmstudie (Hans Richter, 1923), Entr'acte (Rene Clair, 1924), Le chien andalou (Bunuel e Dalf, 1929), para citar apenas alguns exem-plos. Em Filmstudie, por exemp!o, ha urn cortejc de anamorfoses: cabe-<;as em suspensiio se transformam em olhos, os olhos em luas, as luas em · caroc,;os de ervilhas, os caroc,;os de ervilha se tornam pingos de chuva na agua, que par sua vez fazem ondular a agua em ondas que carregam as

\ cabec;:as do inicio da sequencia. Em todo caso, o essencial e que qualquer \ imagem em movimento ja i', por prindpio, uma anamorfose cronot6pica.

0 VIRTUAL

A MIRAGEM DO REFERENTE

Uma segunda tendencia se imp6e. Para au tares como Baudrillard e Virilio, a questao do virtual esta estreitamente ligada uma estetica do simulacra enquanto desaparic,;ao do real. Ou seja, a imagem virtual , auto-referente, e como urn significante sem referenda social.

Baudrillard tern insistido que a simulac;:ao e uma das principais caracterlsticas da utilizac;ao das imagens na cultura contemporanea. A ideia de Baudrillard e que a imagem tern se tornado cada vez mais vir-tual - pouco importa o meio de produc,;ao - na medida em que ela e uma encenac;:ao da ficc,;ao como ficc;:ao , em que a imagem so remete a si propria. Segundo ele, a Revoluc;:ao da Romenia e a Guerra do Golfo acentuaram a ideia de uma televisao que nao produz mais propriamen-te imagens, mas sim urn buraco negro onde o referente e aniquilado pela informac;ao, uma caixa preta onde se opera a auto-referencia mor-tifera que nos impede de propor a questiio da verdade e da realidade do acontecimento hist6rico.

As novas tecnologias da imagem suscitam o seguinte problema: se por urn lado elas nos empolgam ao por em crise o sistema de repre-senta<;ao, uma vez que, como simulacra, nao se pode mais distinguir o falso do verdadeiro, a c6pia do original, a realidade da ilusao, por ou-tro lado, ela implica a redu<;ao do simulacra ao cliche (puro jogo de imagem em que o simulacra se fecha sabre si mesmo).

Se para do simulacra e negativa, e porque para ele 0 simulacra dei.xa de scr determinado par uma vontade de afirma-<;:iio do real enquanto novo (diferen<;:a livre) e se torna pura repeti<;:ao do mesmo (simulacra despotencializado). Com o fechamento do si-mulacra sabre si mesmo, a cria<;ao, trabalhada par uma diferen<;:a sem-pre ja programada e calculada, torna-se puro jogo comunicacional,

A IMAGEM VIRTUAL, AUTO-REFERENTE...

21

I

Page 6: 001a - PARENTE - A Imagem Virtual Auto Referente_14-45

22

interativo e hidico; e o criador, unicamente usuario, refem de uma razao cinicomunicacional.

E curiosa notar que essa ideia de urn simulacra despo-tencializado ja estava preseme na obra de Baudrillard muito antes de ele se tornar o profeta da era do simulacra, em que a imagem virtual tern urn papel predominante. Numa passagem intitulada "Miragem do referente", 13 Baudrillard discute o tema da arbitrariedade do sig-no, para mostrar que 0 signo niio e tao arbitrario assim: 0 signa niio e apenas o reflexo do real, uma vez que nao subsiste nenhuma realida-de exterior a ele, o referente sendo uma pura miragem. Radicalizando a posi<;ao de Benveniste, que tentara relativizar a tese saussuriana da arbitrariedade (segundo Benveniste ha arbitrariedade entre o signa e o referente, mas niio entre o significante e o significado, na medida em que eles sao da mesma natureza), Baudrillard defende que nao se pode pensar nenhuma realidade que nao seja, desde sempre, lingi.iis-ticamente reproduz a realidade ela o faz life-

ou seja, umasegunda vez iig-no ( ou a imagem) absorve e o referente, tornando-se mais real do que o proprio real: hi per-real. .Q o simyJas:ro

.. ;1.penas a sua auto-referencia, mas seu poder de fazer do real

0 que sugerimos eo seguLnte: nesse caso, por que niio afirmar que a dita era do simulacra teria inicio nao com as novas tecnologias da imagem, mas sim com a entre natureza e cultura, sepa-rac;ao esta vivida pela homem com a introduc;iio da linguagem? Niio seria Di6genes o primeiro pensador da era do simulacra? De que outra forma compreender sua reac;iio contra qualquer realidade segunda,

/artificial (objeto) e virtual (linguagem), que intermediasse sua rela<;ao / como real?

0 VIRTUAL

Na obra de Virilio, e a interface que vai exercer o papel do ope-radar que faz aparecer/desaparecer o referente - correspondendo ao simulacra em Baudrillard. As interfaces sao, em primeiro lugar, maqui-nas de visao. A maquina<;ao do tempo propiciada pelas maquinas de visao, com seus sistemas de tele-realidade e telepresenc;a, tende a so-plantar o espac;o da materia e das aparencias sensiveis.

As maquinas de visao - interfaces - podem gerar nao apenas uma inercia polar, mas sobretudo uma desaparic;iio e desmaterializac;ao do real. A velocidade da eletro6ptica, sua instantaneidade e ubiquida-de, suprime a distancia que separava o observador da imagem na re-presentac;ao dos sistemas 6pticos, fotomecinicos, e introduz urn des-dobramento do real em real e virtual, assim como o signo introduz urn desdobramento da realidade em signa (real) e referente (virtual) .14

A imagem nao se toma apenas auto-referente sem implodir o re-ferente; ela nao se torna sujeito sem criar uma "ortopedizac;ao" do olhar do sujeito, uma sujeic;ao/industrializac;:ao da visao; ela nao se hibridiza

.contaminar os sentidos e implodir o poder de imaginac;:ao.

0 desdobramento produzido pela tecnologia do tempo real equi-vale a urn estado de paramnesia, em que ao real atual se acrescenta urn real virtual, urn real em espelho que vern a ele se substituir.

AUTO-REFERENCIA FABULADORA

I-Ii ainda uma terceira tendencia, em da qual C preciso distinguir os processos de temporalizac;iio da imagem entre simula-cros despotencializados ( o virtual como ilusao do desaparecimento do real) e potencializados ( o virtual como ilusao que afirma o real enquanto novo).

A IMAGEM VIRTUAL, AUTO-REFERENTE ...

I

23

Page 7: 001a - PARENTE - A Imagem Virtual Auto Referente_14-45

24

Antonio Negri, por exemplo, observa que as amilises qu e se fa-zero hoje da midia sao fruto de urn pessimismo e de uma impotencia, esvaziando a midia de toda e qualquer dimensao ontol6gica e subjeti-va, de forma analoga aquelas das analises da lingi.ifstica estruturalista face aos fenomenos da linguagem e do discurso . Ele desmistifica a midia enquanto mecanismo monstruoso de escravidao politica inelutavel, que faria do mundo uma solitaria para zumbis prisioneiros. A atividade comunicacional, que e urn de luta como outros para a transfor-

social, nao tern outro limite ser1ao a finitude de r1ossos desejos-o que nos parece uma resposta irnportante ao desencantamento de autores como Baudrillard e Virilio. A imagem virtual como urn proces-so de 0 virtual niio se opoe ao real, mas sim ao aos ideais de verdade que sao a mais pura fiq;ao.

Se a modernidade nasce da crise da representa<_;ao e precisa-mente porque surge com ela, em primeiro plano, a questiio da produ-

do novo. 0 novo eo que escapa a do mundo, como dado, como c6pia. 0 novo significa a emergencia da imaginac;ao no mundo da razao, e conseqi.ientemente num mundo que se libertou dos modelos disciplinares da verdade. Tanto na filosofia como na cien-cia e na arte, o tempo e o operador que poe em crise a verdade e o mundo, a e a A razao e multo simples: ao tempo da verdade (verdades eternas) se substitui a verdade do tempo como produc;ao de simulacros, ou seja, do novo como processo . "Ou o tempo e inven<;ao, ou eie nao e nada", diz Bergson, para quem o passa-do e 0 elemento onto16gico do tempo, e , como tal, e virtual, ou seja, ele nao se confunde com nenhum atual (presente) . Trata-se de um passa-do que nunca foi presente, como no caso da paramnesia. A paramnesia e positiva, pois ela indica que 0 tempo nao para, ou melhor, que ele nao para de se desdobrar, passando por passados nao necessaiiamente

0 VIRTUAL

verdadeiros ( eu te encontrei a no passado em Marienbad) e por pres en· tes incompossiveis (encontrou-me e nao me encontrou ao mesmo tem-po- tudo depende do meu desejo de me deixar seduzir) .

Com a paramnesia, tem-se uma imagem-tempo, na qual o virtual e uma imagem em espelho que forma urn curto circuito co m a imagem atual, sem que se possa dizer qual das duas e a verdadeira : eu ja vivi este momento antes? Sim, mas em urn tempo sempre por vir. Trata-se de um curto-circuito que rompe com a imagem enquanto sistema de representa<;ao de verdades preestabelecidas. A5 imagcns se tornam auto-referentes, de forma que a verdade sera fruto de uma criado· ra . A ideia de uma imagem-tempo nao e a ideta de uma imagem virtu al potencializada, que rompe com os pressupostos da representac;ao e do real reificado, afirmando oreal como novo .

0 grande desafio para quem produz imagens e justamente sa-ber em que sentido e possivel extrair imagens dos cliches, imagens que nos permitam realmente acreditar no mundo em que vivemos (Gilles Deleuze). Se tudo nos parece uma ficc;ao , uma ficc;ao d e ficc;a o, se tudo parece conspirar para uma desmaterializac;ao d o mundo, se temos dificuldades em viver a hist6ria , e porque tudo parece ja ter sido programado, preestabelecido, construido, calculado de a

nos tirar o poder de fabulac;ao.

Para Baudrillard, vivemos a era do fim da ilusao- a ilusao su-poe urn referente social, uma utopia . Mas a ideia do fim da i!usao tambem nao e uma ilusao? 0 fim da iiusao s6 e concebivel como regra em func;ao de urn simulacra despotencializado. Ora, ou be m o simu-lacro se cia em func;ao de· urn a potencia de fabulac;ao mitica, ou bem ele se da como regra em de modelos socialmente dominantes.

. A ilusao esti em todo lugar: seja como ideal de verdade ( das velhas o u

A I MAG EM VIRTUAL, AUTO-REFERENTE ...

'1 ,.

25

Page 8: 001a - PARENTE - A Imagem Virtual Auto Referente_14-45

26

das novas tecnologias, quando elas se afirmam como teleol6gicas), seja como fim da ilusao (simulacros despotencializados), seja como potencia de fabulac;ao (vontade de potencia). S6 nos resta escolher como nos colocarmos.

Para os artistas, fil6sofos e cientistas o que conta, em qualquer epoca, e a emergencia da imaginac;ao num mundo dominado pela ra-zao, qualquer que seja ela, cientifica, tecnol6gica, social, economica, etc. 0 campo cientifico, tecnol6gico, social e economico nao e apenas dominio da razao, mas tambem espac;os de e de agen-ciamentos multiplos, capazes de liberar as forc;as da imaginac;ao e' da vida. As novas tecnologias da imagem nao sao representantes de uma racionalidade tecnocientifica que levaria necessariamente ao esqueci-mento do ser, pura mitologia heideggeriana, mas sima formas de subje-tividade que engendram processos de modelagem os mais diversos que pod em vir a liberar ( ou nao) as forc;as criadoras.

Uma coisa e certa: a auto-referenda positiva, desterritorializante, pode ser de dois tipos: uma auto-referencia imanente, relacionada a revelac;ao de verdades locais, e a auto-referencia transcendental, rela-cionada a fabulac;ao livre. Tanto uma como a outra liberam fl imagein dos modelos e sistemas de verdade.

Todo o problema do pensamento da imagem remete, em ulti-ma instancia, ao pensamento que faz do mundo uma imagem ana-logizavel (representa<_;ao), ou faz do mundo uma imagem que e pura alteridade (presentificac;ao), para alem da tecnologia empregada. Sea imagem e tida como verdadeira peia visiio, e porque ela e analogizavel pelo espirito (analogia mental). Sea imagem se iibera da anaiogia e porque o que pensa nela, e par ela, e urn puro interstlcio, como sua possibilidade de se metamorfosear (passar entre).

0 VIRTUAL

Se bern que o principal problema e o de saber o que e uma imagem: 0 que e uma imagem finalmente? Existem pelo menos dois tipos de imagem: a imagem enquanto picture e urn outro tipo de ima-l!em aue vern da Blblia e de certas tradicoes exotericas aue n6s nao v .... .,) "

conhecemos muito bern, como a Cabala. Sao Joao, na Biblia, diz que a imagem vira no tempo da ressurreic;ao. Quer dizer, Jesus na cruz nao e urna imagem, mas picture ...

'NOT AS

1 As tres tendencias citadas podem ser encontradas nos artigos destes autores pu-blicados no livro lmagem-maquina. A era das tecnologias do Firtual. Andre Parente (org.), Sao Paulo: Editora 34, 1993. 2 Couchot, Edmond. Images: de l'optique au numerique. Paris: Hermes, 1988 0 grande merito do livro de Couchot eo deter sido o primeiro a fazer uma verda· deira hist6ria da imagem tecnica e seus dispositivos. ·1 Ibid. 4 Ibid. ' Cf. Goethe, J. W. Doutrina das cores. Sao Paulo: Nova Alexandria, s/cl. " Gombrich, E. H. Arte e ilusao. Sao Paulo: Martins Fontes, 1986. 7 • Fargier,] .-P. Poe ira nos o1hos, In: Parente, Andre (org.). lmagcm-m<iquina. Op. cic.

·p. 231-236 H Ibid. 9 Machado, Arlinda. A arte do Fideo. Sao Paulo: Brasiliense, 1988. 10 Ibid. 11 Ibid. 12 Cf. cronot6picas ou a quarta dimensao da imagem. In: imagcm-maquina·. op. cit. p. 1oo-n6. B Baudrillard, jean. Pour une critique de J'economie politique du signe. Paris: Gallimard, 1972. H Para aprofundar esta questao consultar o proximo capitulo.

A I MAG EM VIRTUAL, AUTO-REFERENTE ...

17

Page 9: 001a - PARENTE - A Imagem Virtual Auto Referente_14-45

28

0 VIRTUAL ENQUANTO JAMAIS VU

No fim do seculo XX, a realidade virtual e o sintoma de certas transforma<;6es pelas quais passa a nossa sociedade, e que antecipam os fantasmas, medos e aspirac;oes do proximo milenio. Como a camera es-cura para a sociedade do espetaculo, o pan6ptico para a sociedade disci-plinar e a tclevisao para a sociedade pas-industrial, a realidade virtual e o dispositive que melhor representa o papel das novas tecnologias da ima-gem na sociedade contemporinea.1 A realidade virtual e uma especie de princfpio de realidade dos novos tempos, 2 buraco negro da nova cultura cibernetica para onde estaria migrando toda a realidade social.

Assim como a camera escura e inseparavel de uma metafisica da irnagem como pura interioridade, l a realidade virtual e inseparavel de uma metafisica da exterioridade. Para uns, a realidade virtual e o sinto-ma, negativo, de uma imagem sem referente, de uma imagem virtual que se substitui ao real, fazendo do referente uma pura miragem.4 Para outros, as tecnologias do virtual exprimem o regime de visibilidade em que vivemos, no qual niio se trata mais de pensar como a imagem re-presenta a realidade, mas sim de pensar urn real que s6 existe em fun-

do que a imagem permite visualizar.

SISTEMAS DE REALIDADE VIRTUAL

A expressao "realidade virtual" surgiu no final dos anos 60 para designar um con junto de tecnologias de visualiza<;ao com ajuda do com-putador. 0 desenvolvimento dessas tecnologias levou a cria<;ao do si-

0 VIRTUAL

mulador de voo que e, para a grande maioria das pessoas, sinonimo de realidade virtual. De fato, os simuladores de voo chegaram a uma tal

que muitos pilotos descrevem os voos simulados como se eles fossem tao verdadeiros quanto os voos reais.

Passados 30 anos desde as primeiras interfaces visuais interativas criadas por Ivan Sutherland (primeiro dispositivo de imersao com vi-sao estereosc6pica) e Myron Krueger (primeiro sistema de imersao do coroo inteiro sem utilizacao de capacete e luvas de dados) , o termo .. -·

realidade virtual remete a uma grande diversidacle de conceitos e tecnologias de modelagem, e transmissao de dados: fractais, imagens de sintese, simuladores de voo, realidades artificiais, sistemas

de telepresen<_;a, ciberespa<_;o.

Jean-Louis Weissberg estabeleceu uma prime ira dos dispositivos virtuaiss em seis diferentes modos de do real como virtual. 0 primeiro (apresentar;:;lo do real pelo virtual) pode ser exemplificado pelo capacete de visualiza<;ao criado pela equipe de Michael McGreevy, da NASA, o qual possibilita a pilotos voando, em ve-locidades acima de Mach 2, visualizar imagens simuladas dos terrenos sobrevoados. Esta tecnica faz da realidade virtual uma especie de pro-t6tipo dos sistemas de visao artificial do futuro.

0 segundo tipo (interpretar;:ao do real pelo virtual) remete as diversas experiencias de visualiza<;ao no campo cientlfico hoje nos laborat6rios com 0 auxilio de simulac;6es produzidas por imagens de sintese, cujo exempio ciassico e o conjunto de algoritmo s de

Mandeibrot ( os fractais).

A terceira modalidade (prolongamento do real no virtual par contigiiidade) encontra numerosas aplica<;6es: um sistema de consulta

possibiiita ao usuario folhear um livro virtual atraves de ···· /1-':J

0 VIRTUAL ENQUANTO JAMAIS VU

:1 ' !

29

Page 10: 001a - PARENTE - A Imagem Virtual Auto Referente_14-45

30

movimentos executados numa tela tatil; uma obra de arte produzida por Michel Bret e Edmond Couchot permite soprar urn pena virtual.

0 quarto tipo (injet;fio do real no virtual) encontra muitas apli-ca<_;6es no campo da anima<;ao, sob o nome de captura de movimento: atraves dos sistemas de teledetec<;ao- capacete, luvas e roupas de da-dos -, o teleator pode animar corpos e universos virtuais. 0 quinto (ver o virtual por uma janela real) e exemplificado por uma escultura dissi-mulada: urn monitor apresenta um espa<;o representado virtualmente. Cada movimento do monitor real provoc;t um dcslocame!tto <.:orres-pondente no espac;o representado. 0 ultimo tipo (telepresent;a real no virtual) apresentado por Weissberg remete as experiencias que a NASA segue fazendo em urn projeto intitulado realidades artificiais. Nele, gra-<;as aos sistemas de telepresenc;a, os engenheiros da NASA podem reali-zar o velho sonho da ac;ao a distancia. As modalidades quatro, cinco e seis sao varia<;6es do terceiro tipo, que por sua vez remete ao primeiro.

Na verdade, podemos operar uma sintese na tipologia de Weissberg, reduzindo-a a dais tipos de base: interpreta<_;ao do real pelo virtual e apresentac;ao do real pelo virtual. Curiosamente, essa sintese nos levaria a distinguir pelo menos dais campos de as teo-rias do caos (modelos de compreensao do real) e os sistemas de reali-dade virtual (sistemas de visualiza<;ao de dados).

A analise de urn conjunto de fen6menos fisicos ditos ca6'ticos.da. Iugar a novos modelos de do real pelo virtual: laridade, auto-organiza<;ao, sistemas dim1micos dissipativos. 0 que une as diversas disciplinas que estudam os sistemas dinamicos ca6ticos, quer na matematica, quer na fisica, quer na biologia, e que nelas o mun-do nao se divide mais em grupos de diferentes objetos estanques, mas em grupos de diferentes que se tornam mais e mais

0 VIRTUAL

complexas quando se passa ao esmdo dos sistemas abertos, os orga-nismos vivos. Para quebrar de uma vez par todas como dete rminismo classico, e romper com a mecanologia ocidental, para desatar o n6 que retem o novo, a ciencia contemporanea pensa o virtual como condi<;ao de possibilidade das intera<;6es reais.

Os dais principais sistemas de realidade virtual sao os sistemas de imagens (realidade virtual, ambiente virtual e rcali-dadc artificial) e os sistemas de comunica<;ao em rede ( ciberespac;o ). E'Sias duas tinhas de pesquisa se desenvolveran-. pol' ffu::io de projetus militares, em particular nos laborat6rios da NASA e do MIT. Por causa de suas conota<;6es metafisicas, a realidade virtual e mais comumente designada, nesses laborat6rios como ambientes virtuais, mundos virtu-ais ou realidadcs artifkiais. 6

VIAGEM ATRAVES DO ESPELHO

A realidade virtual e, para muitos especialistas, como Howard Hheingold, ]aron Lanier e John Walker/ uma verdadeira janela que se abre para outros mundos: com a ajuda do computador, entramos em mundos simulados que podemos tocar e sentir diretamcnte como se fossem verdadeiros.

Num depoimento, Jaron Larnier, inventor do RB2 (Reality Built f.or. 2) , afirma que o mundo de amanha pode ser vislumbrado atraves d'e multiplas janelas virtuais:

Voce chega em casa e, ao colocar uns 6culos, aparece uma estante virtual com diversas especies de aquarios. Em cada urn desses aquarios voce encontra mundos e realidades virtuais. Num deies pode haver uma agencia imobiliaria,

0 VIRTUAL ENQUANTO JAMAIS VU

31

Page 11: 001a - PARENTE - A Imagem Virtual Auto Referente_14-45

32

grac;as a qual seria possivel visitarmos apartamentos. Em outro, haveria urn esporte em tres dimens6es. Urn outro seria reservado a educac;ao e aos sistemas de ensino a dis-tancia. Poderiamos estudar os dinossauros nos tornando urn deles. Em outro aquirio poderiamos encontrar pes-soas, nossos amigos, e conversariamos com eles.8

Entretanto, na opiniao de outros especialistas, como David Zelter, Michaei Heim e Brenda Laurel, a verdadeira realidade virtual pode nunca ser alcanc;ada pelas tecnologias criadas pelos engenheiros: "0 Holodeck pode permanecer para sempre uma ficc;ao. Enquanto isso, a realidade virtual funciona como o Graal da pesquisa".9 Cada epoca nos fornece seus Holodecks . Na seriejornada das Estrelas (Star Trek), o Holodeck e esse quarto onde as pessoas entram para se transportar virtualmente para outros mundos reais e paralelos. 0 Holodeck nos di acesso a mundos paralelos ao nosso, eles sao tao reais quanta o nosso.

A realidade virtual e uma tecnologia que, em certas situac;6es, se substitui tao perfeitamente ao real que, para muitos, ela e 0 canto das sereias de hoje. Segundo Philippe Queau, essa realidade ao lado da realidade apresenta muitos riscos. 0 perigo mais imediato seria o de acreditarmos de tal forma nos simulacros que nos arriscariamos de toma-los por real , produzindo diferentes formas de solipsismos e esquizofrenias: "A fuga do verdadeiro real e o refugio numa realidade virtual vao sem duvida permitir as nossas sociedades invadidas por urn desemprego estrutural tornecer a milh6es de ociosos for<;ados alucina-r;6es virtuais capazes de ocupar espiritos e corpos como urn novo 6pio". w

Virilio e Baudrillard s6 em aparencia sao mais sutis em suas crf-ticas. Como ja dissemos, para eles a questao do virtual esta estreita-mente ligada a uma estetica do simulacra enquanto desaparic;ao do real.

0 VIRTUAL

. Qu seja, a imagem virtual produzida hoje pelo cinema, pela televisao e pelos sistemas de realidade virtual e uma encenac;ao da ficc;ao como

em que a imagem so remete a si propria. Cada epoca produz seu pao e seu circa, suas leis e seu opio, suas republicas e sua poesia. Nao vemos porque a ficc;ao produzida pelas tecnologias do virtual seriarn mais alienantes do que qualquer outra forma de fabulac;io .

Mas, se a experiencia do ciberespac;o esta destinada a nos trans-formar nao e porque ela vai substituir a realidade por uma realidade cibernetica, uma realidade simulada, mas porque o ciberespac;o e uma inegivel lembran<;a do fato de que somas condicionados para, desde muito cedo, ignorar e negar que nossa subjetividade e, por si s6, uma

simulac;ao hiper-realista.

Nos nao cessamos de construir e reconstruir modelos do mun-do em nossa mente, usando os dados fornecidos pelos nossos 6rgaos dos sentidos e pela capacidade de processamento de informac;oes do nosso cerebra e das nossas linguagens. Habitualmente, pensamos n o mundo como "alga fora de nos", mas o que percebemos e fruto de modelos cognitivos que existem apenas em nosso cerebra.

:E nesta capacidade de simula<;ao, sustenta Rheingold, que a mente humana c a realidade artificial do computador compartilham urn potencial para sinergia: "dar ao simulador hiper-realista de nossas cabec;as 0 controle de urn simulador hiper-realista computadorizado faz com que alga de extrema importancia estej a prestes a acontecer.

11

Nesse ponto e preciso evocar Guattari, para quem a informatica e a tecnociencia nao sao nada mais do que formas hiperdesenvo.lvidas da propria subjetividade. Guattari observa que nao sao apenas as atuais maquinas informacionais e comunicativas que nos permitem falar de uma produ<_;ao maqu1nica da subjetividade, uma vez que as subje-

0 VIRTUAL ENQUANTO JAMAIS .VU

33

Page 12: 001a - PARENTE - A Imagem Virtual Auto Referente_14-45

34

tividades pre-capitalistas e arcaicas eram engendradas por diversos dis-positivos maquinicos coletivos ( equipamentos coletivos de subjetivaqao) de das formas de existencia.12 Sea maquina resulta de urn complexo processo de subjetivac;ao, e se a subjetividade e fruto de urn agenciamento social multiplo, nao ha porque separar a maquina e 0 ho-mem sob a base da oposic;ao natural/artificial. Todo corpo tern suas artificialidades, toda maquina tern suas virtualidades: sao OS agen-ciamentos sociais nos corpos e nas maquinas. Nao ha teoria da pr6tese que resista ao pensamento da hybris que desorganiciza o corpo ao coloca-lo em como de fora (virtual como corpo sem 6r-gf.os).

0 ULTIMO VEiCULO

Com a sociedade de controle pas-industrial as tecnologias midiatica e informatica provocam novos processos de que desterritorializam o tempo da hist6ria das culturas orais e escritas. A foto, o cinema, a televisao e a infografia transformaram radicalmente nossas relac;oes como espac;o e o tempo e a do aqui e agora.

Todas as culturas definem as formas de urn real para alem do real imediato, da atualidade, mas e a primeira vez na hist6ria da huma-nidade em que a realidade do aqui e agora se encontra imersa nas tra-mas de uma temporalidade maquinica.

\ Se 0 final do seculo XIX e 0 inkio do seculo XX ;!SSisti.rain ao

advento do veiculo ferroviario, rodoviario e aereo, 0 nosso fim ae' s'ecu-

1

lo tern assistido a grandes mudanc;as como advento do visual. 13 0 espac;o, os acontecimentos, as informac;6es e as pessoas sao

cada vez mais, pela telecomunicac;ao, assim como a trans-parencia do espa<;o de nossos percursos tende a ser substitufda pelas

articulac;oes 9o veiculo. audiovisual, ultimo horizonte de nossos traje-toS, cujo modele mais perfeito eo ciberespac;o.

Segundo Paul Virilio, chegaremos ao tempo em que nao havera . ' • · 0 "·rt,.al · n;;n h,;,vp r " m <> i-. rnrriih ""...,.....,......'"' ..-,p t-P!"ttC Uffi CaffiD .1 ..__ .... - .._.. .. .. - ' ...... .... _... . ... . ...... --·-

J.«.! "-"'&J.p \J ....... ..... ....... ._.

de bicicleta, mas urn home-trainer; nao havera mais guerra, mas videogame; nao haveri mais astronautas , mas tele-robos: 0 espac;o nao se estendera mais. 0 momento de inercia sucedera ao deslocamento continuo, no dia em que rodos os deslocamentos se concentrarao em urn s6 ponto fixo, em uma irnobilidade que nao e rnais a do nao-movi-rnento, mas ada ubiqi.iidade potencial, ada mobilidade absoluta que anula seu proprio espac;o a forc;a de 0 tornar tao transparente .

Se cada sociedade tern seus tipos de maquinas e porque elas sao 0 correlato de express6es sociais capazes de lhes fazer nascer e delas se servir como verdadeiros 6rgaos da realidade nascente ('W'alter

0 interessante do pensamento de Virilio e que ele faz conver-gir uma serie de mal-entendidos em torno da ideia de anulac;ao do espac;o e do tempo da percep<;ao natural. A ideia de que no horizonte de nossos trajetos esta urn veiculo audiovisual - o ultimo veiculo -ligado em rede e podendo ver e agir a distancia, ponto de concen· trac;ao de todo o espac;o anulado pela ubiqi.iidade absoluta, e, no mi-nima, uma utopia tecnol6gica e urn contra-sensa hist6rico-cultural. Utopia tecnol6gica que sup6e que as diferentes tecnicas e midias pas-sam se fundir em uma interface tmica cada vez mais rransparente oue re- oresentaria urna convergencia de todas as interfaces. Alem

·. e a hist6ria da tecnica, uma vez que toda a hist6ria da tecnica, da invenc;iio do fogo a invenc;ao da roda, passando pela cadeira, autom6vel, elevador e escada rolante, leva a uma seden-

do corpo.

0 VIRTUAl ENQUANTO JAMAIS VU

35

Page 13: 001a - PARENTE - A Imagem Virtual Auto Referente_14-45
Page 14: 001a - PARENTE - A Imagem Virtual Auto Referente_14-45

38

da visao artificial em tempo real, caverna de Placao eletrificada. 16 E nesse sentido que para Virilio e Baudrillard as tecnologias do virtual se impoem como o lugar da desapari<;ao do real : e como se a experi-encia do real fosse capaz de amea<;ar a experiencia do possivel, e como se o mundo pudesse ser anestesiado pelo efeito de sua reproduti· bilidade tecnica.

Os sistemas de realidade virtual sao, no mais das vezes, univer-sos fechados em que o homem se relaciona com imagens de sintese por meio de urn processo de visualiza<;ao sens6rio-motor em que tudo o que ele faz, sente e pensa se traduz em motricidade. A realidade virtu-al produz ambiences constritivos de a<;ao- como no caso dos simula· dores de voo - baseados em sistemas especialistas utilizados como tec-nologia que visa o aprimoramento do desempenho instrumental.

Berlin cyber citye um programa de realidade virtual criado por Monika Fleishmann, arquiteta alema. Com ele, Fleishmann proc_urou romper com o sistema de condicionamento sens6rio-motor no proces-so de representa<;iio do espa<;o urbano de Berlim. Ela parte da seguinte constata<;ao: o Muro de Bedim acabou na realidade, mas ainda existe

. como imagem virtual (petrificada) na cabe<;a das pessoas. Para quebrar o muro na cabe<;a dos usuarios, o sistema de realidade virtual faz coe-xistirem essas duas imagens de Berlim simultaneamente: a Berlim atu-al (presente, sem muro) e apresentada pela Berlim virtual (passada, que as pessoas ainda tern em mente) . Com isso o muro que as pesso· as tern na se torna virtual ele tambem, e se esvai junto com a realidade que muda. Berlin cyber city e urn trabalho que v_isa a (,!isso- .

da neurose. A neurose e constituida por imagens mentais·pdri· ficadas (espac;o de interioridade) ou condicionamentos sens6rio-mo-tores que nos impedem de ver as imagens que vern de fora, quando a situa<_;ao ja mudou.

0 VIRTUAL

Monika Fleishmann produz uma verdadeira paramnesia com a tecnologia Virtual e faz COffi que 0 Virtual se de COmO abertura nas Iilla· geris mentais petrificadas, que impedem as pessoas de ver o novo. Lem·

, . . d d , ·a vu nao se fund a sobre bremos que na paramnesia o senumento e e; . urn passado real, mas faz do passado urn puro (jamaJs uma imagem-tempo biface, urn curto-circuito indiscerntvel entre o atual_da percep<_;ao (abstrato do ponto de vista do processo de temporaltza<;ao) eo virtual como elemento ontol6gico do tempo. I'

Em Berlin cyber city, a tecnologia e deslocada de suas nadas de controle, a partir de urn a disfun<;iio cerebral (a e vai interagir com novos circuitos noeticos e esteticos. e ai que a tecnologia e a arte modernas encontram uma certa filosofla que afirma o real como pura exterioridade (e nesse sentido que

h Samento do fora) · como extrair dos modelos cogmtiVO!i cun ou open · e das imagens-cliche que a cultura nos impoe- e que nos de ver as imagens que vern de fora - imagens que nos deem razao de

. . , . emos' 0 que o espectador sente ao se crerno mundo em que nos VIV . . liberar de uma imagem petrificada o faz viver um even to em tmagem

(pur a exterioridade) :

Um evento em imagem (diz Blanchot) nao e ter desse a l·magem nem tampouco atribuir-lhe a evento urn ,

gratuidade do imaginario. 0 cvenro, neste caso, rem verdadeiramente lugar, e, no entanto, ted. lugar verda-deiramente? 0 que acontece apodera-se de n6s, como nos empolgaria a imagem, ou seja, nos despoja, dele e de n6s, mantem-nos de fora, faz desse exterior uma pre· sen<_;a em que o "Eu" nao "se" reconhece.IH

0 VIRTUAL ENQUANTO JAMAIS VU

39

Page 15: 001a - PARENTE - A Imagem Virtual Auto Referente_14-45

40

DUAS VERSOES DO VIRTUAL: IMAGENS E CLICHES

A realidade virtual e um conjunto de tecnologias que faz interagirem os modelos cognitivos e os modelos computacionais. Ha-bitualmente, essas interac;:oes se reduzem ao nivel do sensoria-motor

' como nos simuladores de voo, em que toda a interatividade se da em func;:ao da motricidade. No caso especifico de Berlin cyber city, os mun-dos virtuais criados no computador se abrem came jau.das reais oos modelos cognitivos petrificados de tal forma que estes entram em sinergia e transformam o curto-circuito sensoria-motor que impede as pessoas de verem as imagens que vern de fora .

A metafora do muro em Berlin cyber citye muito interessante e nos faz vislumbrar duas concepc;:oes diferentes da realidade virtual. Habitualmente cada urn de n6s passeia diante da realidade carregando nossos muros, nossas ideologias e imaginarios, nossos simbolos e cren-c;:as, nossos modelos e valores modelados culturalmente. Cada cultura remete a urn processo multiplo de produc;:ao de subjetividade, com seus universos cognitivos, discursivos, afetivos, sensiveis, tecnologicos. Cada cultura nos fornece uma verdadeira visao artificial, que nos faz pensar e sentir o mundo em func_;ao de urn complexo sistema de repre-sentac;:ao. Por intermedio dessa modelizac;:ao, cada imagem se converte num cliche (espac;:o de interioridade), cumprindo um papel em nossas ac_;oes e reconhecimentos.

Toda sociedade tern suas miserias e intoleraveis, seus misterios e belezas, quando ela aparece em seus aspectos radicalmente injus-tificaveis (seus muros). Mas para que as pessoas suportem a si mesmas e ao mundo, e preciso que 0 injustificavel desaparec;:a, seja ideologica-mente, seja psicologicamente: e preciso que 0 interior das pessoas seja

0 VIRTUAL

como o exterior. Todos nos sofremos, no dia-a-dia, urn grande proces-so de sujeic_;ao que nos torna insensiveis ao que sentimos como intole-dveL Como nao acreditar que uma poderosa organizac;ao do poder, com seus suportes de propaganda, suas midias e suas tecnologias, atue de modo a produzir cliches que circulem do exterior ao interior das pessoas, de tal maneira que cada urn possua cliches psfquicos dentro de si, par meio dos quais acredita pensar e sentir, quando apenas re-produz as verdades preestabelecidas? Devemos, diz Deleuze, 19 nos per-gun tar se reaimente vivemos a da imagem au a do cliche. Os cliches sao imagens que supoem urn espa<;o de interioriclade. Ou seja, territories capturados e im6veis, conjuntos e fronteiras esta-veis. Reina da neurose f6bica, como na televisao , em que as imagens, ao mesmo tempo ern que se tornam indiferenciadas, anulam o extra-campo: como o neur6tico f6bico , a imagem televisiva tenta se confun-dir com todo o horizonte possivel. E nesse sentido que a televisao pode ser considerada urn sistema em que a imersao e total sem que haja necessidade de imersao sensorial, como nos casas dos modernos siste-mas de realidade virtual.

A grande questao e: o que acontece quando os nossos esquemas sens6rio-motores se relaxam e se rompem? Quem urn dia nao se sentiu invadir por uma de estranheza diante das coisas mais banais? Obviamente, certas pessoas tern os esquemas perceptivos tao enrijecidos que nem as drogas conseguem relaxa-los. Num conto belissimo, A bel;1 e a fera ou uma ferida grande demais, Clarice Lispector nos mostra, por meio de urn encontro entre urn a mulher declasse alta e urn mendigo nas calc_;adas de Copacabana, o que ocorre quando esses esquemas sensoria· motores se rompem. 0 mendigo pede uma esmola a mulher, e, ao tilZe-lo, mostra uma ferida enorme na pema. Repentinamente, e como se coda a miseria do mundo renascesse do interior daquela ferida, dcmais.

0 VIRTUAL ENQUANTO JAMAIS VU

41

Page 16: 001a - PARENTE - A Imagem Virtual Auto Referente_14-45

42

A partir dai, se cria urn estranhamento absoluto entre as duas persona-gens. E como se elas ja nao soubessem mais quem sao, como falar, como agir, etc. Elas ficam paralisadas e dessa paralisia o pensamento brota como se elas nunca tivessem pensado, mas apenas agido maqui-naimente. A partir desse en contra elas nunca mais seriam as mes- mas, nem a realidade tambem.

0 desafio daquele que produz imagens e justamente saber ern que sentido e possfvel extrair imagens (jamais vu, pura exterioridade) dos cliches (deja vu, pura interioridade), imagens que nos deem razao para acreditar nesse mundo em que viven1os. Vivernos no mundo como numa realidade virtual, como se os acontecimentos nao nos concer-nissem. Se tudo nos parece uma realidade virtual, se temos dificulda-des em viver a hist6ria, e porque tudo parece ja ter sido criado atraves de uma recreac;ao interativa comunicacional.

Deleuze formula a questio, polftica, do virtual da seguinte for-ma: "se todos os complos politicos, juridicos e midiaticos sao suficien-tes para mostrar que o mundo se pos a fazer uma cinema terrivel (= uma realidade virtual que nos aprisiona, independentemente da tecnolo-gia), nao caberia ao cinema nos recompensar, nos oferecendo urn pou-co de real?". 0 que ele quer dizer com isso? 0 virtual nao se opoe ao real, pais e urn intersticio na camera escura da ideologia (Marx) 'que nos leva aver o real enquanto novo; urn a brecha nos esquemas percep-tivos enrijecidos que nos faz ver as imagens que vern de fora (Nietszche); uma disfunc;ao do cerebra, madeleine que nos transporta a urn passa-do que nunca foi presente (Bergson).

0 virtual e uma categoria estetica que se apresenta sempre como recriac;ao de urn real recalcado, ou seja, de urn real que se confunde com sua representac;ao dominante. Trata-se de entender como positivar o novo regime da imagem-tecnica sem cair nas armadilhas das velhas

0 VIRTUAL

oposic;6es entre as velhas e as novas tecnologias. Imagem manual, ima-gem-tecnica, imagem digital, redes de imagem, pouco importa - as tecnologias da imagem sao acontecimentos multitemporais, equiparnen-tos coletivos de subjetivac;ao -, o que importa e saber como a imagem pode continuar a manter a sua func;ao noetica/estetica.

A ideia de uma.substituic;ao do real pelo virtual se reporta a uma dicotomia visivelmente exportada das categorias da representac;ao: ima-gem no lugar do objeto, maquinas no Iugar do homem, imaginario no lugar do real. A operac;ao que leva a simulac;ao e propria da imagem e da iinguagem, onde quer que se encomrem: no discurso do sofista, nos contadores de hist6ria, na perspectiva renascentista, no trompe-l'oeil, no cinema e no mundo que se descobre imagem-cerebro, que nao tern mais nem dentro, nem fora.

NOT AS

1 A periodiza<;ao das rela<;6es de poder realizada por Deleuze em "Post·scriptum, sobre as sociedades de controle" (Conversaqoes, 1992), acrescentamos o termo p6s-industrial apenas para marcar o perfodo em que a televisao dominou a socie-dade de controle. 2- Com os sistemas hibridos de realidade virtual, e como se o inconsciente tivesse deix.ado de ser apenas psicol6gico (Freud), econ6mico (Marx), corporal (Nietzsche), 6ptico (Benjamin), cognitivo (Bergson) e tivesse se tornado tambem cibernetico. Cf. a esse respeito o conceito de inumano em Lyotard, Jean-Fran<;ois. 0 inum;wo. Lisboa: Editorial Estampa, 1989. 3 Entre os seculos XVI e XIX, a camera escura era ao mesmo tempo urn disposiri-vo 6ptico amplamente utilizado por cientistas, artistas e curiosos e urn modelo de funcionamento da percep<;ao (Descartes), do entendimemo (Locke) e da ide· oiogia (Marx). Em urn beiissimo ensaio sobre a camera - Camera obscur;J de J'ideologie. Paris: Galilee, 1979- Sarah Kofman mostra as invers6es e promovidas no modelo cartesiano com a emergencia dos inconsciemes de Marx, Nietszche e Freud.

9 VIRTUAL ENQUANTO JAMAIS VU

43

Page 17: 001a - PARENTE - A Imagem Virtual Auto Referente_14-45

44

4 Em uma passagem intitulada "Miragem do referente" (Pour une critiqu·e de /'economie politique du signe. Paris: Gallimard, 1972.) Jean Baudrillard discute a questao da arbitrariedade do signo, para mostrar que o signo nao e tao arbiwirio assim, na medida em que tudo e signa, sendo o referente uma pura miragem. Apoiado nos trabalhos de Emile Benveniste, que tentara relativizar a tese da arbi-trariedade, Baudrillard afirma que tampouco existe arbitrariedade entre o signo e o referente na medida em que nao se pode pensar nenhuma realidade que nao seja lingiiisticamente formada. Ou seja, toda realidade e uma rea!idade segunda, reali-dade artificial, re-produzida, re-processada, re-criada pelos signos. "Se a lingua gem reproduz a realidade ela o faz literalmente, ou seja, ela a produz uma segunda vez" (Benveniste). 5 Cf. '.Vei:;:;berg, Jean-Louis. Reale VirtuaL in: Parente, Andre (org.) . Imagem-ma-quina. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993, p. 117-126. 6 A respeito da conotac;ao metafisica, cf. Helm, Michael. The metaphysics of virtu-al reality, Oxford: Oxford Press, 1993, p . 123. A evoiU<;ao das tecnologias de rea-lidade virtual seguem mais ou menos a dos computadores. Num primeiro mo-mento esta relacionado a invenc;ao de interfaces primitivas, pelos cientistas (Ivan Stherland e Alan Kay). Num segundo, essas interfaces sao desenvolvidas em fun-c;ao de utilizac;6es militares e resultam em dispositivos muito complexes e caros (eo caso dos trabalhos desenvolvidos por Nicholas Negroponte e Scott Fisher da NASA). Num terceiro momenta os bricoleursde fundo de quintal encontram uma soluc;ao para renovar as interfaces a partir de componentes mais baratos - e o caso do trabalho de Jaron Lanier na VPL Research - tornando-as acessiveis ao grande publico. 7 Cf. Walker, john. Through the looking glass. In: The art of human computer inter-face design . Massachusetts: Reading, 1990. Ver tambem Rheingold, Howard. Virtu-al Rea/icy. New York: Touchstone Book, 1993. 8 Trata-se de uma fala transcrita de uma entrevista reproduzida no video Rea/ices vinuel/es, produzido pelo Canal Plus, Fran<;a, 1990. 9 Texta de David Zeiter citado par Helm, Michael. The metaphysics of virtual rea/icy. Op cit., p. 123. Trata-se de uma te6rica que remete a ideia de que a realida-de virtual e uma visao de mundo, mais do que apenas uma tecnologia. 10 Queau, Philippe. Les iemps du vinuei. in: Imagem-maquina. Op. cic., p . 91·99. 11 Rheingold, Howard. What's the big deal about cyberespace? In: The art of human computer interface design. Massachusetts: Reading, 1990. 12 Guattari, Felix. Prodw;ao de subjetividade. In: Imagem-maquina . Op . cit., p. 177-191. 13 Cf. 0 ultimo vefculo. In: Virilio, Paul. lnercia Polar. Lisboa: Dom Quixote, 1993.

0 VIRTUAL

1l Sobre as diversas quest6es levantadas pela Tavo/etta , cf. mais adiante o capitulo . intitulado "Cibercidade".

1s VerA dupla he!ice. In : Jmagem-maquina. Op. cit. , p. 215-216. 16 Para Platao o mundo das aparencias e uma grande caverna subterranea, onde o ser humana se encontra acorrentado sem ncm sequer poder olhar para tris e con-templar 0 verdadeiro mundo (o mundo das ideias), de onde as sombras sao proje-tadas no fundo da cavern a. 0 platonismo nos fez viver de olhos fechados por mats de urn milenio, pois as imagens que vinham de fora eram puramente ilus6rias : fecha os olhos e procura ver primeiro com o olho do espiriw. De certa forma, ao contrario do que se pensa, a Renascen<;a nao rompe com esse preceito, ela o ·internaliza. A imagem oersoectivada diz a verdade do mundo porque ela e construida segundo as leis d; da mesma forma que a natureza ela representa. 0 isomorfismo entre a imagem e o mundo que ela representa e o que perm1te sus-pender a acusac;ao plat6nica de que os artistas nao criavam segundo os modelas, c nao podiam, portanto, garantir suas c6pias . 11 Tanto na filosofia, como na ciencia e na arte, o tempo eo operador que p6e em crise a verdade e 0 mundo , a significac;ao e a comunicac;ao. A razao e muito sim-ples: ao tempo da verdade (verdades eternas) se substitui a verdade do como produc;ao de simulacros, ou seja, do novo como processo. o tempo c invenc;ao, a u ele nao e nada, dizia Bergson, para quem o passado e o elemento ontologico do tempo e, como tal, ele e virtu al. Trata-se de urn que nunca foi presente, como no caso da paramnesia . Ou seja, a e post twa, ela significa que 0 tempo nao para, ou seja, que ele nao para de se desdobrar, passando por passados nao necessariamente verdadeiros ( eu te Ano Pas-sado em Marienbad) e por presentes incompossiveis (me enconuou e nao me en· concrou ao mesmo cempo- cudo depende do meu desejo de me deixar scduzir). '" Cf. Blanchet, Maurice. As duas vers6es do imaginario. In : 0 espa<;o liccr;irio. Rio de Janeiro : Rocco, 1987. 19 Deleuze Gilles . Cinema 2: imagem-tempo. Sao Paulo: Brasiliense , 1990. Ver tam· bern Cart; a Se rge Daney: otimismo, pessimismo e viagem. In: Conversa<;oes. Rio

de Janeiro: Editora 34, 1992.

0 VIRTUAL ENQUANTO JAMAIS VU

45