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727 Título XI Dos crimes contra a Administração Pública CAPíTulo I Dos CrImes PrATICADos Por funCIonárIo PúblICo ConTrA A ADmInIsTrAção em gerAl 1. InTroDução O Capítulo I do Título XI do Código Penal trata dos crimes funcionais, praticados por determinado grupo de pessoas – funcionários públicos –no exercício de sua função, associado ou não com pessoa alheia aos quadros ad- ministrativos, impregnando o correto funcionamento dos órgãos do Estado. A propósito, a Administração Pública em geral – direta, indireta e empresas privadas prestadoras de serviços públicos, contratadas ou conveniadas– será vítima primária e constante, podendo, secundariamente, figurar no polo pas- sivo eventual administrado prejudicado. Crimes dessa natureza afetam, sempre, a probidade administrativa, pro- movendo o desvirtuamento da Administração Pública nas suas várias camadas, ferindo, dentre outros, os princípios norteadores da legalidade, impessoali- dade, moralidade e eficiência. O agente, representando o Estado, contraria uma norma, buscando com sua conduta, muitas vezes, fim obscuro e imoral, demonstrando nefasta ineficiência do seu serviço. Cuida-se de forma qualifi- cada de desvio de poder, realizando o servidor desejo pessoal ou de terceiro interesse particular –, gerando dano ou perigo de dano para a ordem admi- nistrativa. Doutrina Manzini que o objeto genérico da tutela penal dos crimes contra a administração em geral “é o interesse público concernente ao normal fun- cionamento e ao prestígio da Administração Pública em sentido lato, naquilo que diz respeito à probidade, ao desinteresse, à capacidade, à competência, à disciplina, à fidelidade, à segurança, à liberdade, ao decoro funcional e ao respeito devido à vontade do Estado em relação a determinados atos ou relações da própria administração” (apud Pagliaro, Antonio; Costa Jr., Paulo José da. Dos crimes contra a administração pública, p. 21).

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Título XI

Dos crimes contra a Administração Pública

CAPíTulo I Dos CrImes PrATICADos Por funCIonárIo PúblICo

ConTrA A ADmInIsTrAção em gerAl

1. InTroDução

O Capítulo I do Título XI do Código Penal trata dos crimes funcionais, praticados por determinado grupo de pessoas – funcionários públicos –no exercício de sua função, associado ou não com pessoa alheia aos quadros ad-ministrativos, impregnando o correto funcionamento dos órgãos do Estado. A propósito, a Administração Pública em geral – direta, indireta e empresas privadas prestadoras de serviços públicos, contratadas ou conveniadas– será vítima primária e constante, podendo, secundariamente, figurar no polo pas-sivo eventual administrado prejudicado.

Crimes dessa natureza afetam, sempre, a probidade administrativa, pro-movendo o desvirtuamento da Administração Pública nas suas várias camadas, ferindo, dentre outros, os princípios norteadores da legalidade, impessoali-dade, moralidade e eficiência. O agente, representando o Estado, contraria uma norma, buscando com sua conduta, muitas vezes, fim obscuro e imoral, demonstrando nefasta ineficiência do seu serviço. Cuida-se de forma qualifi-cada de desvio de poder, realizando o servidor desejo pessoal ou de terceiro – interesse particular –, gerando dano ou perigo de dano para a ordem admi-nistrativa.

Doutrina Manzini que o objeto genérico da tutela penal dos crimes contra a administração em geral “é o interesse público concernente ao normal fun-cionamento e ao prestígio da Administração Pública em sentido lato, naquilo que diz respeito à probidade, ao desinteresse, à capacidade, à competência, à disciplina, à fidelidade, à segurança, à liberdade, ao decoro funcional e ao respeito devido à vontade do Estado em relação a determinados atos ou relações da própria administração” (apud Pagliaro, Antonio; Costa Jr., Paulo José da. Dos crimes contra a administração pública, p. 21).

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Art. 311-A. Rogério Sanches Cunha

O agente, representante de um poder estatal, tem por função principal cum-prir regularmente seus deveres, confiados pelo povo. A traição funcional faz com que todos tenhamos interesse na sua punição, até porque, de certa forma, somos afetados por elas. Dentro desse espírito, mesmo quando praticado no estrangeiro, logo, fora do alcance da soberania nacional, o delito funcional será alcançado, obrigatoriamente, pela lei penal pátria (art. 7º, I, c, do CP).

Não bastasse, a Lei 10.763, de 12 de novembro de 2003, acrescentando mais um parágrafo ao art. 33 do Código Penal (§ 4º), condicionou a progressão de regime prisional nos crimes contra a Administração Pública à prévia repa-ração do dano causado, ou à devolução do produto do ilícito praticado, com os acréscimos legais.

Em que pese a recente edição desta regra, já sentimos no cenário jurídico nacional “o sopro forte da sua inconstitucionalidade”. Perceberam alguns es-tudiosos que, ao contrário de outros dispositivos legais também relacionados com o ressarcimento do prejuízo (cf. arts. 78, § 2º; 81, II; 83, IV; 94, III, todos do Código Penal, e 89, § 1º, I, da Lei 9.099/95 etc.), aqui não foi ressalvada a hipótese da impossibilidade do retorno ao status quo ante. Ora, do exposto, entendem haver o legislador, no afã de responder com rapidez aos reclamos da sociedade, criado, indiretamente, uma proibição de progressão (vedação esta incabível até mesmo para os crimes hediondos e equiparados). Ousamos dis-cordar. Na verdade a lei em comento não impede a progressão aos crimes fun-cionais, mas apenas acrescenta uma nova condição objetiva, de cumprimento obrigatório para que o reeducando conquiste o referido benefício. A ventilada ressalva, aqui omitida, pode perfeitamente ser integrada pela analogia, que, in casu, será in bonam partem.

2. CrImes funCIonAIs. esPéCIes

Os delitos funcionais são divididos em duas espécies: próprios e impróprios.

Nos crimes funcionais próprios (puros ou propriamente ditos), faltando a qualidade de funcionário público ao autor, o fato passa a ser tratado como um indiferente penal, não se subsumindo a nenhum outro tipo incriminador – atipicidade absoluta – v.g., a prevaricação (art. 319 do CP).

Já nos impróprios (impuros ou impropriamente ditos) desaparecendo a qualidade de servidor do agente, desaparece também o crime funcional, ope-rando-se, porém, a desclassificação da conduta para outro delito, de natureza diversa – atipicidade relativa – v.g., peculato furto (art. 312, § 1º).

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3. ConCeITo De funCIonárIo PúblICo PArA efeITos Pe-nAIs

Art. 327. Considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública.

§ 1º Equipara-se a funcionário público quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal, e quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da Administração Pública.

§ 2º A pena será aumentada da terça parte quando os autores dos crimes previstos neste Capítulo forem ocupantes de cargos em comissão ou de função de direção ou assessoramento de órgão da administração direta, sociedade de economia mista, empresa pública ou fundação instituída pelo poder público.

Ensina-nos o Direito Administrativo que a Administração Pública, para exercer suas funções, lança mão dos agentes públicos, gênero de que são es-pécies:

a) os funcionários públicos, titulares de cargo público296 efetivo, regidos por normas do Direito Administrativo;

b) os empregados públicos, jungidos ao regime da CLT;

c) os servidores ocupantes de cargo em comissão, providos sem concurso e regidos também pelo Direito Administrativo; e, por fim,

d) os servidores temporários, contratados sem concurso, por tempo de-terminado, para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público, nos exatos termos do disposto no art. 37, IX, da CF.

Contudo, ao considerar o que seja funcionário público para fins penais, nosso Código Penal nos dá um conceito unitário, sem atender aos ensina-mentos do Direito Administrativo, tomando a expressão no sentido amplo.

Dessa forma, para os efeitos penais, considera-se funcionário público não apenas o servidor legalmente investido em cargo público, mas também o que

296. Tratando-se de Prefeito Municipal, veremos que os delitos trazidos pelo art. 1º do Decreto-lei 201/67 (delitos praticados por prefeitos e seus substitutos), embora funcionais, se desvinculam dos delitos contra a Administração Pública definidos no Código Penal (arts. 312 a 326), constituindo figuras penais autônomas e específicas, derrogando as normas gerais (só aplicamos os tipos do CP quando inexistente, no referido Decreto-lei, tipos específicos).

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Art. 311-A. Rogério Sanches Cunha

exerce emprego público, ou, de qualquer modo, uma função pública, ainda que de forma transitória, v.g., o jurado, os mesários eleitorais etc.297

Como bem explica Heleno Cláudio Fragoso: “O Código Penal, afas-tando as controvérsias, determinou com segurança o que se deve entender, para os fins do direito penal, intra poenia juris poenalis, por funcionário público: quem, embora transitoriamente e sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública. Estão aí incluídos, portanto, não só os funcio-nários que desempenham cargos criados por lei, regularmente investidos e nomeados, remunerados pelos cofres públicos, como também os que exercem emprego público (contratados, mensalistas, diaristas, tarefeiros, nomeados a título precário), e, ainda, todos os que de qualquer forma exercem ‘função pública’. É realmente o exercício de função pública o que caracteriza o funcionário público perante o direito penal” (Lições de direito penal: parte especial, v. 4, p. 877).

Porém, não se pode confundir função pública com encargo público (munus publicum), hipótese esta não abrangida pela expressão “funcionário público”.

Aliás, nesta esteira de raciocínio, temos a sempre atual lição de Hungria: “É preciso, porém, não confundir função pública com múnus público. Assim não são exercentes de função pública os tutores ou curadores dativos, os in-ventariantes judiciais, os síndicos falimentares (estes últimos estão sujeitos a lei penal especial) etc.” (Comentários ao Código Penal, v. 9, p. 402-403).298

Nos termos do disposto no § 1º do art. 327, são equiparados ao funcio-nário público, para efeitos penais, quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal (autarquia, sociedades de economia mista, empresas pú-blicas e fundações instituídas pelo Poder Público), bem como quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada (concessionárias ou permissio-nárias de serviço público) ou conveniada para a execução de atividade típica da Administração Pública, v.g., Santa Casa de Misericórdia.

Já que o Estado vem terceirizando seus serviços (desestatização), entendeu o legislador ser necessário ampliar o conceito de funcionário público por equi-paração, incluindo, por meio da Lei 9.983/2000, aqueles que trabalham nas empresas prestadoras de serviços contratadas ou conveniadas. Desse modo,

297. Nos termos do que disposto no art. 135 da Lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), “O exercício efetivo da função de conselheiro constituirá serviço público relevante, estabelecerá presunção de idoneidade e assegurará prisão especial, em caso de crime comum, até o julgamento definitivo” (grifamos).

298. Para nós, o advogado contratado por meio de convênio entre a Procuradoria-Geral do Estado e a Ordem dos Advogados do Brasil, para atuar na justiça gratuita, exerce encargo público (e não função pública), não se ajustando ao conceito de funcionário público para fins penais. Há, no entanto, pre-cedentes no STJ em sentido contrário, enquadrando referido profissional, atuando nessa qualidade (justiça gratuita), na definição do art. 327 (STJ, 5.ª T., RHC 17.321/SP, Rel. Min. Felix Fischer, j. 28.06.2005; STJ, 5.ª T., REsp 902.037/SP, Rel. Min. Felix Fischer, j. 17.04.2007).

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o fato de o Poder Público optar pela transferência para a iniciativa privada de bens e serviços não significa que ele esteja se eximindo de responsabilidades. Muito pelo contrário.

Tal equiparação não abrange, contudo, os funcionários atuantes em em-presa contratada para prestar serviço atípico para a Administração Pública como, v.g., uma empresa contratada para funcionar num cerimonial de re-cepção a um chefe de governo estrangeiro.

No § 2º está prevista uma causa de aumento de pena quando os autores dos crimes previstos neste capítulo forem ocupantes de cargos em comissão ou de função de direção299 ou assessoramento de órgão da administração di-reta, sociedade de economia mista, empresa pública ou fundação instituída pelo poder público (não incluindo a autarquia).

realmente aqui a conduta do servidor se mostra ainda mais censu-rável, demonstrando um atrevimento incomum. Da simples leitura do pa-rágrafo em estudo, nasce a pergunta: será que prefeitos, governadores e presidente da república, quando autores de crimes funcionais, estão inevitavelmente compreendidos na majorante?

O Supremo Tribunal Federal, por maioria, entendeu que sim (Inq. 1769-PA), seguindo a posição exarada pela Procuradoria-Geral da República em crime funcional envolvendo ex-governador de Estado.

A linha de raciocínio da decisão foi assim explicada pelo Min. Carlos Velloso (relator): “Neste caso, procurei realizar uma interpretação com-preensiva do texto e não posso compreender que um mero exercente de função de comissão DAS [Direção e Assessoramento Superior] esteja su-jeito à regra do § 2º do art. 327 do Código Penal e não o prefeito, o gover-nador, o presidente da República: o agente político, enfim”.

Para a minoria, no entanto, não se aplica o aumento aos ocupantes de cargos eletivos (prefeitos, governadores ou presidente da República), vez que exercem a chefia do Poder Executivo, eleitos para mandato temporário, não se confundindo com servidores ocupantes de cargos em comissão ou de função de direção ou assessoramento de órgão da administração direta.

299. Entendeu o STF que o art. 327, caput, do CP, ao conceituar funcionário público, abrangeria todos os que exercessem cargo, emprego ou função pública, no âmbito de qualquer dos poderes. Nesse ponto, ficou vencido o Min. Menezes Direito, que afastava a incidência do § 2º do art. 327 do CP, por não equiparar parlamentar a funcionário público, reconhecendo prescrito o delito na modalidade comis-siva. No mérito, considerou-se que não estariam presentes os indícios de autoria e materialidade. Vencidos os Ministros Cezar Peluso e Marco Aurélio, que recebiam a denúncia (Inq. 2191/DF, rel. Min. Carlos Britto, 08.05.2008).

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Art. 312. Rogério Sanches Cunha

4. TIPos PenAIs. PeCulAToO crime de peculato é tipificado no nosso Estatuto Penal de diversas

formas, subdividindo-se em:a) Peculato apropriação (art. 312, caput, 1ª parte);b) Peculato desvio (art. 312, caput, 2ª parte);c) Peculato furto (art. 312, § 1º);d) Peculato culposo (art. 312, § 2º);e) Peculato mediante erro de outrem (peculato-estelionato – art. 313);f) Peculato eletrônico (arts. 313-A e 313-B).

Vejamos no que consiste cada uma dessas figuras.

5. PeCulATo AProPrIAção e DesvIo (PeCulATo PróPrIo)

X Peculato apropriação e desvio (peculato próprio)

Art. 312. Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá--lo, em proveito próprio ou alheio:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa.

5.1 Considerações iniciais

Lembram Antonio Pagliaro e Paulo José da Costa Junior: “Anteriormente à invenção da moeda, carneiros e bois (pecus) eram objeto de comércio, por constituírem a expressão da riqueza. Daí o nome pecu-latus, derivado de pecus, consistente na subtração de coisas pertencentes ao Estado. O direito romano promoveu o peculato a crime autônomo não em razão da qualidade do sujeito agente, que podia ser funcionário pú-blico ou particular, mas pela condição da coisa desviada ou subtraída, que era uma coisa pública (res publicae) ou sagrada (res sacrae), uma vez que bois e carneiros eram destinados aos sacrifícios em homenagem aos deuses pagãos” (op. cit., p. 36).

A pena cominada ao delito não admite nenhum dos benefícios da Lei 9.099/95.

5.2 sujeitos do crime

Distanciando-se da sua origem, o peculato somente pode ser cometido por funcionário público, entendido este no sentido mais amplo trazido pelo

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art. 327 do CP. Mesmo o servidor aposentado, se conserva consigo a posse de bem ilegalmente apropriado durante o exercício e em razão do cargo antes ocupado, responderá pelo crime de peculato.

Caso o funcionário público ocupe cargo em comissão ou de função de direção ou assessoramento de órgão da administração direta, sociedade de economia mista, empresa pública ou fundação instituída pelo poder público, a pena sofrerá aumento de um terço.

Apesar de próprio, o crime em tela admite o concurso de pessoas estra-nhas aos quadros da administração, ex vi do disposto no art. 30 do CP, salien-tando-se apenas que deve a condição pessoal do autor ingressar na esfera de conhecimento do extraneus, caso contrário responderá este por crime outro, como, v.g., apropriação indébita.

Segundo enuncia o art. 552 da CLT, “os atos que importem em malver-sação ou dilapidação do patrimônio das associações ou entidades sindi-cais ficam equiparados ao crime de peculato, julgado e punido na confor-midade da legislação penal”. Assim, apesar de seus diretores não serem considerados funcionários públicos (sequer por equiparação), o fato por eles praticado fica igualado ao peculato.

Apesar de haver corrente (inclusive no STJ)300 reconhecendo a plena efi-cácia do referido dispositivo, é cada vez mais crescente o entendimento de que não foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988, pois esta vedou, expressamente, a ingerência estatal no sindicalismo.301

Cuidando-se de agente controlador ou administrador de instituições fi-nanceiras, públicas ou privadas, interventor, liquidante e síndico [atual admi-nistrador judicial], a indevida apropriação de dinheiro, título, valor ou qual-quer outro bem móvel de que tem a posse, ou o seu desvio em proveito próprio ou alheio, configura o delito do art. 5º da Lei 7.492/86. O art. 13, parágrafo único, da mesma Lei reprime as mesmas pessoas no caso de desviarem bens alcançados pela indisponibilidade legal resultante de intervenção, liquidação extrajudicial ou falência de instituição financeira ou deles se apropriarem, em proveito próprio ou alheio.

300. Não abrange serviços públicos (mão de obra, p. ex.), podendo a sua indevida apropriação (ou desvio) configurar ato de improbidade administrativa.

301. Nesse sentido: TRF-4.ª R., 7.ª T., ACr 2000.04.01.127506-SC, Rel. Des. Fed. Vladimir Freitas, DJU 20.11.2002.

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Sujeito passivo é o Estado, lesado no seu patrimônio, material e moral-mente. Se o bem apropriado for de propriedade de particular, também este será vítima do crime.

5.3 Conduta

O caput do art. 312 pune o que a doutrina chama de peculato próprio, cuja ação material do agente consiste na apropriação ou desvio de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo.

Analisaremos as duas condutas criminosas separadamente.

5.4 Peculato apropriação

Na primeira – apropriação –, o agente apodera-se de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel302 que tem sob sua posse legítima, passando, arbi-trariamente, a comportar-se como se dono fosse (uti dominus). Na verdade, corresponde a um tipo especial de apropriação indébita, qualificada pelo fato de ser o agente funcionário público, no exercício da sua função, prejudicando não só a moral, mas o patrimônio da administração.

A lecionada comparação, apesar de corrente na doutrina, é alvo de críticas, como a de Waldo Fazzio Júnior: “Não é uma verdade irretorquível que o peculato é, apenas, uma apropriação indébita praticada por funcionário público, em razão de seu ofício. Essa concepção aparentemente técnica, além de minimizar a dimensão danosa do delito em tela, revela a reco-nhecida preferência por sua feição patrimonial, que predomina no direito positivo brasileiro, inclusive em parte da doutrina e da jurisprudência, mercê de sua origem nos antigos diplomas legais, capitulado como crime contra o tesouro público. De fato, não se trata, simplesmente, de um crime contra o patrimônio público. É, ainda, uma agressão à própria

302. Penal. Conflito de competência. Peculato por equiparação. Art. 552 da CLT. Entidade sindical. Ine-xistência de ofensa a bens, serviços ou interesse da união. Competência da justiça estadual.1. Os atos que importem em malversação ou dilapidação do patrimônio das associações ou entidades sindicais ficam equiparados ao crime de peculato julgado e punido na conformidade da legislação penal. 2. Não é pelo fato de encontrar-se a tipificação do crime de peculato inserida no Título dos Crimes Contra a Administração da Justiça [rectius, Crimes Contra a Administração Pública], no Código Penal, que haverá a incidência da regra constitucional que define a competência da Justiça Federal. 3. O sim-ples fato da necessidade de registro dos sindicatos no Ministério do Trabalho não aponta o mínimo interesse da União na ação penal para o processo e o julgamento dos crimes contra eles praticados. 4. Inexiste ofensa a bens, serviços ou interesse da União, de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, restando afastada a competência da Justiça Federal. 5. Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo de Direito da 1.ª Vara Criminal da Comarca de Ituverava/SP, suscitado (STJ, 3.ª Seção, CC 31.354/SP, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 13.12.2004).

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função desempenhada pelo Estado. A exemplo dos demais delitos listados no Título XI, Capítulo I, do Código Penal, seu alvo constante é a função pública. O peculato, como aqueles outros delitos, representa disfunção pública absoluta” (Corrupção no poder público, p. 94).

Tema bastante controvertido nasce quando se busca o real significado da elementar posse.

Abrangeria ela também a mera detenção?

Apesar de haver corrente sustentando que sim, preferimos não misturar os institutos. Aliás, o próprio Código Penal os separa claramente, bastando observar a redação do art. 168, oportunidade em que o legislador foi expresso em alcançar as duas situações (posse e detenção). Assim, a indevida inversão da detenção exercida por um funcionário público configura peculato furto (art. 312, § 1º).

Requer a norma que o agente inverta posse alcançada “em razão do cargo”, ou seja, posse inerente às suas atribuições normais, não havendo pe-culato quando a entrega do bem tenha acontecido meramente “por ocasião do cargo”, sem qualquer vínculo com a competência funcional por ele exer-cida. Inexistindo relação entre a posse invertida e o ofício desempenhado pelo agente, estará configurado o delito de apropriação indébita; alcançada a posse da coisa mediante engodo, ardil ou outro meio fraudulento, haverá o crime de estelionato; se, entretanto, decorre de violência ou grave ameaça, estaremos diante de um delito de roubo.

5.5 Peculato desvio

Na hipótese do desvio (ou malversação), o funcionário dá destinação di-versa à coisa, em benefício próprio ou de outrem, podendo o proveito ser material ou moral, auferindo vantagem outra que não necessariamente a de natureza econômica. É também pressuposto desta modalidade criminosa que o funcionário tenha a posse lícita do bem e que, depois, o desvie.303

Não se pode desconsiderar que o funcionário público, ao desviar a coisa, estará igualmente praticando uma apropriação, mas de modo especial, o que, a nosso ver, torna dispensável a divisão de condutas estampada no tipo em apreço.

303. Quando o desvio de verba se dá em proveito da própria administração, com utilização diversa da prevista em sua destinação, temos configurado o crime do art. 315 do CP.

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5.6 voluntariedade

Pune-se a conduta dolosa, expressada pela vontade consciente do agente em transformar a posse da coisa em domínio (peculato apropriação) ou desviá--la em proveito próprio ou de terceiro (peculato desvio).

Discute-se se haverá o crime em caso de ânimo de uso. A resposta está umbilicalmente ligada à natureza da coisa apoderada (ou desviada) momen-taneamente. Sendo consumível com o uso, existe o crime; se não consumível, teremos mero ilícito civil. Desse modo, inexistiria o delito se o agente utili-zasse equipamentos pertencentes à administração, com nítida intenção de de-volvê-los, ficando a punição restrita à esfera cível, administrativa ou política.

Devemos, porém, observar que, em se tratando de Prefeito ou seu subs-tituto (Vice-Prefeito, Presidente da Câmara de Vereadores, ou qualquer outro membro da respectiva mesa do legislativo que houver assumido o cargo, subs-tituindo ou sucedendo o Prefeito), o Decreto-lei 201/67, além de outros crimes funcionais, equiparou a utilização irregular dos bens, rendas ou serviços pú-blicos à apropriação e o desvio de bens e rendas públicas, cominando-lhe pena de 2 (dois) a 12 (doze) anos de reclusão, o que acaba por demonstrar a gravi-dade da conduta (art. 1º, II e § 1º).

5.7 Consumação e tentativa

O crime de peculato próprio, na sua primeira modalidade (apropriação) se consuma no momento em que o funcionário se apropria do dinheiro, valor ou bem móvel de que tem posse em razão do cargo, dispondo do objeto material como se dono fosse, v.g., retendo-o, alienando-o etc.

No caso do desvio, ocorre a consumação quando o funcionário altera o destino normal da coisa, pública ou particular, empregando-a em fins outros que não o próprio.

Nas duas condutas a caracterização do crime não reclama lucro efetivo por parte do agente, pouco importando se a vantagem visada é conseguida ou não.

Podendo a execução ser fracionada em vários atos – crime plurissubsis-tente –, a tentativa mostra-se perfeitamente possível.

Apesar de farta jurisprudência no sentido de que o bem jurídico aqui protegido (moral administrativa) mostra-se incompatível com a aplicação do

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princípio da insignificância,304 entendemos que deve ser aquilatado o caso concreto. Assim, a coisa material apropriada ou desviada sem relevante valor para a Administração-vítima (selo comum, peças ferroviárias sem uso, sucatas e outras bagatelas) não constitui crime.305

6. PeCulATo furTo (PeCulATo ImPróPrIo)

X Peculato furto (peculato impróprio)

§ 1º Aplica-se a mesma pena, se o funcionário público, embora não tendo a posse do dinheiro, valor ou bem, o subtrai, ou concorre para que seja subtraído, em proveito próprio ou alheio, valendo-se de facilidade que lhe proporciona a qualidade de fun-cionário.

6.1 Considerações gerais

Também denominado pela doutrina de peculato impróprio, o peculato furto previsto no § 1º do artigo em comento caracteriza-se não pela apro-priação ou desvio, mas subtração de coisa sob guarda ou custódia da adminis-tração. Aqui, o agente, também servidor público típico ou atípico, não tem a posse, mas, valendo-se da facilidade que a condição de funcionário lhe con-cede, subtrai (ou concorre para que seja subtraída) coisa do ente público ou de particular sob custódia da administração.

Parece claro ser pressuposto do crime que o agente se valha, para galgar a subtração, de alguma facilidade proporcionada pelo seu cargo, emprego ou função. Sem esse requisito, haverá apenas furto (art. 155 do CP).

304. “É inaplicável o princípio da insignificância nos crimes contra a Administração Pública, ainda que o valor da lesão possa ser considerado ínfimo, porque a norma busca resguardar não somente o aspecto patrimonial, mas a moral administrativa, o que torna inviável a afirmação do desinteresse estatal à sua repressão” (STJ, 5.ª T., REsp 655946/DF, Rel. Min. Laurita Vaz, DJ 26.03.2007).

305. O STF tem aplicado o princípio da bagatela: “Habeas corpus. Peculato praticado por militar. Prin-cípio da insignificância. Aplicabilidade. Consequências da ação penal. Desproporcionalidade. 1. A circunstância de tratar-se de lesão patrimonial de pequena monta, que se convencionou chamar crime de bagatela, autoriza a aplicação do princípio da insignificância, ainda que se trate de crime militar. 2. Hipótese em que o paciente não devolveu à Unidade Militar um fogão avaliado em R$ 455,00 (qua-trocentos e cinquenta e cinco reais). Relevante, ademais, a particularidade de ter sido aconselhado, pelo seu Comandante, a ficar com o fogão como forma de ressarcimento de benfeitorias que fizera no imóvel funcional. Da mesma forma, é significativo o fato de o valor correspondente ao bem ter sido recolhido ao erário. 3. A manutenção da ação penal gerará graves consequências ao paciente, entre elas a impossibilidade de ser promovido, traduzindo, no particular, desproporcionalidade entre a pre-tensão acusatória e os gravames dela decorrentes. Ordem concedida” (1.ª T., HC 87478/PA, Rel. Min. Eros Grau, DJ 23.02.2007). No mesmo sentido: HC 107370/SP, rel. Min. Gilmar Mendes, 26.4.2011.