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O48 Oliveira, Silvana. / Realismo na Literatura Brasileira. / Silvana Oliveira. — Curitiba : IESDE Brasil S.A. , 2008.

204 p.

ISBN: 978-85-387-0139-2

1. Literatura brasileira. 2. Realismo. 3. Machado de Assis. 4. Romance. 5. Crítica e interpretação. I. Título.

CDD 869.07

Capa:

Crédito: IESDE Brasil S. A.

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Doutora em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Cam-pinas – Unicamp. Mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. Licenciada em Letras pela Universidade Estadual de Ponta Grossa – UEPG.

Silvana Oliveira

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Sumário

O Realismo e os períodos literários precedentes .......... 11

O Romantismo e os precedentes do Realismo ............................................................... 11

Romantismo e Realismo: conceitos paralelos ................................................................. 13

Autores do Romantismo e precedentes realistas .......................................................... 14

Continuidade e ruptura entre o Romantismo e o Realismo ...................................... 17

O século XIX e o ideário realista .......................................... 27

O século XIX: filosofia e sociedade ...................................................................................... 27

O Realismo na Europa: principais autores e influências .............................................. 28

O Realismo em Portugal: principais autores e influências ......................................... 33

A proposta estética do Realismo europeu ....................................................................... 35

O ideário realista no Brasil ..................................................... 41

A transição do Romantismo para o Realismo no Brasil ............................................... 41

Memórias de um Sargento de Milícias .................................................................................. 42

O Realismo e o Naturalismo no Brasil ............................... 57

O Realismo e o Naturalismo: relações possíveis ............................................................. 57

A obra de Aluísio Azevedo ..................................................................................................... 59

O Cortiço ....................................................................................................................................... 61

Análise dos elementos da narrativa ................................................................................... 62

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Machado de Assis e o Realismo brasileiro ....................... 73

Machado de Assis e os seus romances românticos ...................................................... 73

Machado de Assis: um crítico do Realismo ...................................................................... 75

Machado de Assis e Eça de Queirós: aproximação e oposição ................................. 76

Machado de Assis e o conto brasileiro ............................. 85

A tradição do conto na literatura brasileira ..................................................................... 85

Os principais contos de Machado de Assis ...................................................................... 86

Missa do Galo .............................................................................................................................. 87

Teoria do medalhão .................................................................................................................. 91

Conclusão ..................................................................................................................................... 93

Memórias Póstumas e o realismo psicológico machadiano ...................................103

A crítica ao Realismo presente em Memórias Póstumas de Brás Cubas ................103

A proposta de leitura presente em Memórias Póstumas de Brás Cubas ...............106

Estratégias narrativas em Memórias Póstumas de Brás Cubas ..................................108

A crítica social em Memórias Póstumas de Brás Cubas ................................................111

Dom Casmurro e a temática do adultério feminino ...119

A temática do adultério feminino no Realismo ............................................................119

O narrador em Dom Casmurro ............................................................................................121

A representação da mulher em Dom Casmurro ...........................................................125

Quincas Borba e o jogo social .............................................131

A denúncia social no Realismo ...........................................................................................131

A denúncia social em Quincas Borba ................................................................................132

O tema da loucura em Quincas Borba ..............................................................................134

Análise dos elementos da narrativa .................................................................................136

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A crítica literária e a obra de Machado de Assis ..........145

A crítica sociológica ................................................................................................................145

Outras abordagens .................................................................................................................147

O valor atribuído à obra de Machado de Assis pela crítica literária ......................150

O legado de Machado de Assis para a literatura brasileira ......................................152

O Realismo em autores posteriores .................................157

A relação entre realidade e literatura após o Realismo .............................................157

Euclides da Cunha ...................................................................................................................158

Lima Barreto ..............................................................................................................................161

O Realismo e o cinema .........................................................173

Adaptações cinematográficas ............................................................................................174

As releituras literárias de Dom Casmurro ........................................................................176

Machado de Assis como personagem de ficção ..........................................................179

Gabarito .....................................................................................187

Referências ................................................................................193

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Apresentação

Este material que apresentamos a você é uma série de reflexões sobre o período literário que costumamos chamar de Realismo. As considerações que você encontrará aqui articulam a noção de Realismo na literatura universal à produção literária no Brasil, de modo a compreender como se manifestaram na literatura brasileira as influências das produções europeias e também como os autores brasileiros do período romperam com alguns modelos preestabelecidos pela literatura na Europa e pelos projetos nacionalistas do Romantismo.

Falar sobre o Realismo é falar sobre um período histórico mais ou menos curto, compreendido entre 1860 (aproximadamente) e o início do século XX. Trata-se de um período de transição, localizado historicamente logo em segui-da à grande revolução cultural que foi o Romantismo (de fins do século XVIII até meados do século XIX) e antes das mudanças de perspectiva na arte e na literatu-ra propostas pelo Modernismo, iniciado nas primeiras décadas do século XX.

No Brasil, o período realista, compreendido como momento histórico e cultural, revelou-nos autores de grande importância para a sedimentação e a integração de uma literatura nacional. É o caso de Manuel Antônio de Almei-da e Aluísio Azevedo. Além deles, convém destacar a relevância alcançada por Joaquim Maria Machado de Assis, considerado hoje um dos maiores escritores da língua portuguesa, citado em grandes antologias da literatura universal por críticos renomados como Harold Bloom, por exemplo.

Estudaremos aqui a produção de cada um dos autores que escreveram no período do Realismo brasileiro, buscando a relação entre a obra desses escritores e os princípios de realização artística propostos pelo Realismo europeu.

Com este material, você terá uma ótima oportunidade para conhecer e aprofundar seus conhecimentos sobre obras e autores da maior importância no cenário da literatura brasileira. Além de conhecer a produção desses autores, você poderá, ainda, perceber como o que eles escreveram no século XIX continua in-fluenciando e inspirando autores contemporâneos nas mais variadas manifesta-ções artísticas, como adaptações literárias – na forma de paródia e estilização –, teatro, cinema e televisão.

Esperamos que o estudo deste material seja de grande valia para o seu crescimento pessoal e profissional!

Bons estudos.

Prof. Dra. Silvana Oliveira

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O Realismo e os períodos literários precedentes

Quando pensamos em períodos literários, estamos tomando como princípio uma categoria didática que nos serve para organizar a produção literária no tempo, ou seja, dentro de uma perspectiva histórica que atribui sentido de continuidade à literatura e também esclarece os momentos de ruptura nos projetos literários vigentes no momento.

É importante ter clareza de que a organização da produção literária em períodos ou estilos de época é uma estratégia didática que facilita o estudo e organiza o pensamento, mas não deve jamais servir como uma camisa-de-força para a abordagem da produção de cada momento, pois os auto-res de literatura não dispõem dessa categorização antes de escreverem e, portanto, em muitos casos é preciso levar em conta as diferenças entre o que um autor de fato produz e as características do período em que ele es-creve. É comum encontrarmos discrepâncias nessa equação. Por exemplo, o escritor Joaquim Maria Machado de Assis escreve no período que conhe-cemos como Realismo e, entretanto, ele foi sempre um grande crítico dos preceitos e proposições do Realismo, ultrapassando em muito o projeto es-tético e artístico desse período. O mesmo vai acontecer com outros autores que, mesmo escrevendo no momento em que a literatura de modo geral atende às características e orientações de uma certa estética ou estilo, vão além dela e propõem outros modos de expressão artística. Por isso mesmo é que os Estudos Literários devem se pautar, antes de tudo, pela leitura e a análise dos textos produzidos pelos autores que deram consistência a determinado período da historiografia literária.

O Romantismo e os precedentes do RealismoUma das consciências mais consensuais dentro dos Estudos Literários

é a de que o Romantismo foi a grande revolução dos últimos séculos na literatura e de que a sua repercussão é bastante estendida no tempo, a ponto de sentirmos seus efeitos ainda hoje, em pleno século XXI.

É difícil precisar no tempo e no espaço o início do Romantismo. De modo geral, afirma-se que o primeiro romance romântico é o livro Os So-

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frimentos do Jovem Werther, ou simplesmente Werther, de Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), publicado na Alemanha em 1774. A Alemanha e a Ingla- terra levam o crédito por apresentarem os primeiros textos românticos, e a França tem o crédito de ter popularizado o Romantismo e levado suas influências para toda a Europa e também para as Américas.

A revolução romântica deve ser compreendida no contexto das grandes transformações sociais e culturais dos séculos XVIII e XIX na Europa e no resto do mundo.

A Revolução Francesa (1789) e a Revolução Industrial (séculos XVIII e XIX) determinaram as mudanças que deram lugar a novas sensibilidades e novas formas de expressão – como o romance, por exemplo.

A invenção do romance como modalidade narrativa é a grande herança que o Romantismo legou ao Realismo, que também se configurou em um momento de produção literária bastante profuso em narrativas

Trazendo temáticas bastante ligadas às características do momento – como a experiência amorosa e suas contrariedades ou o amor à pátria –, o romance român-tico estabeleceu os recursos de formalização do gênero romanesco. Esses recursos foram largamente utilizados pelo Realismo e também serviram de base para a explo-ração de novas estratégias de representação da realidade propostas pelo Realismo.

Os recursos de que aqui estamos falando são justamente os que darão singu-laridade e originalidade ao gênero romance. Nas palavras de Alfredo Bosi, temos o seguinte sobre esse aspecto:

Na França, a partir de 1820, e na Alemanha e na Inglaterra, desde os fins do século XVIII, uma nova escritura substituíra os códigos clássicos em nome da liberdade criadora do sujeito. As liberações fizeram-se em várias frentes. Caiu primeiro a mitologia grega [...]. Com as ficções clássicas foi-se também o paisagismo árcade que cedeu lugar ao pitoresco e à cor local. [...] A epopeia, expressão heroica já em crise no século XVIII, é substituída pelo poema político e pelo romance histórico, livre das peias de organização interna que marcavam a narrativa em verso. [...] O romance foi, a partir do Romantismo, um excelente índice dos interesses da sociedade culta e semiculta do Ocidente. A sua relevância no século XIX se compararia, hoje, à do cinema e da televisão. (BOSI, 1994, p. 96)

É nesse sentido que podemos entender que a grande conquista do Roman-tismo se deu na liberdade de expressão, nunca antes experimentada. Essa liber-dade se manifestou de modo muito significativo na modalidade narrativa que passamos a conhecer como romance.

O Realismo muito se beneficiou dessa conquista, pois a liberdade de expressão proposta pelos românticos abriu espaço para que os artistas que vieram em segui-

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da, a partir da segunda metade do século XIX, radicalizassem suas propostas de expressão da realidade e propusessem o romance realista como uma novidade.

Romantismo e Realismo: conceitos paralelosEmbora alguns manuais de literatura insistam em estabelecer uma grande

ruptura entre as propostas estéticas do Romantismo e do Realismo, acreditamos que é possível considerar que há um movimento de continuidade entre esses dois importantes momentos da história literária.

Continuidade principalmente no sentido de implementar a representação e o vínculo com a realidade histórica e política nos romances. O Romantismo conquistou o direito de registrar e debater os grandes momentos da história nacional dos países em que floresceu; o Realismo, a seu modo, amplificou esse interesse e trouxe a reflexão sobre a realidade social e política para o centro das narrativas realistas. É nessa medida que apontamos a continuidade entre um movimento e outro. Embora no desenvolvimento e na expansão do Roman- tismo tenha havido uma espontaneidade criativa muito diversificada, há alguns conceitos e práticas que se tornaram marca própria do movimento, e podemos sintetizá-los da seguinte forma:

popularização da literatura, principalmente por meio da leitura de romances; �

temáticas associadas à experiência do homem comum e não mais apenas �os nobres;

relação entre história e literatura por meio dos romances históricos; �

o desenvolvimento de uma sensibilidade para a realidade das ruas e das �pessoas simples, tanto na prosa quanto no verso.

Todas essas características ou marcas foram acolhidas pelo Realismo e capi-talizadas no sentido em que o Realismo é um movimento organizado a priori, ou seja, diferentemente da espontaneidade do Romantismo, o Realismo contou com autores e intelectuais dispostos a propor um ideário formal para a orien- tação da prática literária. Isso se deu por meio da redação de documentos e pela organização de encontros cuja finalidade era justamente discutir e propor uma nova estética para a literatura.

No caso do Realismo francês, importa citar o texto O Romance Experimental (1880), de Émile Zola. Esse texto é considerado o manifesto do Realismo francês

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e serviu de norte para um grande número de autores, de várias nacionalidades, interessados em seguir os passos do mestre francês.

No Realismo português, um evento com a mesma intenção de regrar e orien-tar o movimento foi as Conferências do Cassino Lisbonense, realizadas em 1871, em Lisboa. Nessas conferências, discutiu-se justamente o que se deveria esperar do movimento Realista.

O que percebemos a partir desse paralelo entre Romantismo e Realismo é que os realistas se propuseram a sistematizar algumas conquistas dos artistas românticos e assim o fizeram, contribuindo para que o Romantismo também permanecesse entre nós.

Autores do Romantismo e precedentes realistasAlguns autores do Romantismo europeu e do Romantismo brasileiro pode-

rão nos ajudar a compreender o processo de transição para o Realismo, tanto na Europa como no Brasil. Nosso objetivo aqui é observar como algumas temáticas e estratégias narrativas presentes na obra desses autores estabeleceram cami-nhos que o Realismo seguirá mais tarde.

Victor HugoGrande expoente do Romantismo francês, Victor-Marie Hugo (1802-1885)

foi influente tanto com os textos literários que produziu quanto com suas posições políticas. Foi um grande crítico do estado de coisas na França do século XIX; questionava o papel da burguesia e pregava reformas que garantissem que a riqueza produzida fosse colocada a serviço da produção de bens e recursos para a sociedade. Produziu obras em todos os gêneros literários, desde a poesia, passando pelo romance e pelo conto e chegando até a textos de teatro. No romance, destacou-se com Nossa Senhora de Paris (1831, popularizado como O Corcunda de Notre Dame) e Os Miseráveis (1862). Nesses dois romances, a temá-tica toca em pontos capitais da sociedade da época, como a influência do clero, a relação entre diferentes classes sociais, a perseguição aos pobres e a exclusão dos menos favorecidos.

O retrato da França do século XIX nas obras de Victor Hugo pode ser consi-derado extremamente realista, pois é possível conhecer as ruas de Paris, bem como seus subterrâneos, de modo surpreendentemente detalhado por meio da

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leitura das páginas de Nossa Senhora de Paris ou de qualquer outro dos roman-ces do autor.

A preocupação em retratar fielmente o cenário em que ocorrerá a ação é uma das estratégias narrativas que depois se tornarão caras aos autores do Realismo.

Honoré de BalzacAo lado de Victor Hugo, Honoré de Balzac (1799-1850) personifica o Ro-

mantismo francês em sua essência humana, pois a ele interessou retratar com fidelidade a face do homem comum do seu tempo. Sustentam-se lendas de que, a distância, Balzac perseguia pessoas pelas ruas, de modo a lhes registrar os modos, as conversas, o modo de ser. Tais lendas justificam a qualificação de hiper-realismo que algumas de suas figuras receberão ao longo do tempo.

Balzac começa a produzir sua obra sob a regência do Romantismo, mas sua vocação natural pelo retrato da realidade em suas minúcias o faz um verdadeiro antecessor das técnicas realistas, que desejavam retratar a realidade como um inventário material.

Os seus romances estabelecem com detalhamento quase fotográfico o cená-rio da ação, a narrativa sempre se inicia após o cenário ser explorado em todos os seus aspectos pelo narrador, que só então coloca as personagens em cena, de modo a valorizar ao máximo a relação das personagens com o espaço da ação. Essa técnica descritiva se tornará um dos grandes méritos dos autores realistas.

Da vasta obra do autor, destacam-se, sobretudo, o conjunto de romances que compõem A Comédia Humana (1842).

Camilo Castelo BrancoRomântico tardio e renitente, Camilo Castelo Branco (1825-1890) é um dos

grandes nomes do Romantismo português. Foi o primeiro autor da literatura portuguesa a viver daquilo que escrevia. Seus romances – ou novelas, como ele as chamava – tinham público cativo. Embora tenha sido um dos críticos mais mordazes do Realismo, em seus textos, Camilo Castelo Branco já utilizava muitos dos recursos que acabaram por enriquecer a narrativa realista – a interlocução com o leitor é um desses recursos. Mesmo com a temática ultra-romântica que

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marcava seus textos, Camilo costumava rechear seus romances com reflexões metalinguísticas em que a consciência sobre a realidade da escritura revela um autor bastante consciente do processo de elaboração textual. A ironia, a meta-linguagem e a intertextualidade são estratégias muito presentes em seus textos e revelam um escritor que já dominava as técnicas que depois se tornariam pró-prias do Realismo.

Entre seus numerosos romances destacam-se Amor de Perdição (1862); Cora-ção, Cabeça e Estômago (1862) e Amor de Salvação (1864).

José de AlencarJosé Martiniano de Alencar (1829-1877) pode ser considerado uma síntese

do romance romântico brasileiro. Sua obra abarcou desde o romance indianista, passando pelo romance rural, pelo romance urbano, alcançando até o romance histórico.

A síntese da sua obra revela que Alencar não só recebeu os influxos do romance europeu como traduziu para a realidade brasileira as principais carac-terísticas dessa modalidade narrativa.

O próprio José de Alencar traçou um panorama retrospectivo de sua obra no prefácio do livro Sonhos d’Ouro, demonstrando a perfeita consciência do papel que ele representa no cenário da literatura brasileira. Para melhor visualizarmos a perspectiva do autor sobre a própria obra, transcrevemos abaixo as suas pala-vras e o inventário de sua produção:

O período orgânico desta literatura (a brasileira) conta já três fases.A primitiva, que se pode chamar aborígene, são as lendas e mitos da terra selvagem e conquistada; são as tradições que embalaram a infância do povo [...].Iracema pertence a essa literatura primitiva, cheia de santidade e enlevo, para aqueles que venceram na terra da pátria a mãe fecunda – alma mater – e não enxergaram nela apenas o chão onde pisam.O segundo período é histórico: representa o consórcio do povo invasor com a terra americana [...]A ele pertencem O Guarani e As Minas de Prata. [...]A terceira fase, a infância de nossa literatura, começada com a independência política, ainda não terminou; espera escritores que lhe deem os últimos traços e formem o verdadeiro gosto nacional [...].O Tronco do Ipê, o Til e O Gaúcho vieram dali, embora, no primeiro sobretudo, se note já, devido à proximidade da corte e à data mais recente, a influência da nova cidade, que de dia em dia se modifica e se repassa do espírito forasteiro. [...]

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Dessa luta entre o espírito conterrâneo e a invasão estrangeira, são reflexos Lucíola, Diva, A Pata da Pazela, e tu, livrinho, que aí vais correr mundo com o rótulo Sonhos d’Ouro (Benção Paterna). (apud ,BOSI, 1994, p. 136)

O autor mostra que sua obra perpassa os vários períodos da literatura bra-sileira marcando cada um desses períodos com um ou mais títulos de grande relevância para o cenário nacional.

Alencar, como poucos autores, está muito à vontade tanto com temas con-temporâneos à sua escritura como temas remotos no tempo. Nota-se, entretan-to, uma certa predileção por temas distantes no tempo: seus romances indianis-tas revelam-se verdadeiras obras-primas de interpretação e representação do Brasil dos primeiros tempos.

O realismo de Alencar está, sobretudo, no modo como ele procurou revelar a natureza e os costumes brasileiros. Já nos romances urbanos, vemos uma preo-cupação reiterada em constituir uma época em todo seu detalhamento cultural e social.

Nas palavras de Alfredo Bosi encontramos ainda alguma reflexão sobre o realismo de Alencar:

De que realismo se trata aqui? É melhor falar no gosto do pitoresco ou na curiosidade do pormenor brilhante, destinados romanticamente a criar um halo de “diferença” em torno dos protagonistas. Mas, descontada a intenção, Alencar, ao descrever a natureza e os ambientes internos, é tão preciso como qualquer prosador do fim do século. (BOSI, 1994, p. 140)

Assim, é possível apontar também em José de Alencar o procedimento des-critivo como um precedente importante que será aproveitado e continuado pelas narrativas do Realismo. Embora possamos dizer que a descrição romântica atendia mais ao aspecto emocional dos cenários, esse cuidado já denota a preo-cupação realista que se faz presente nos autores do Romantismo.

Continuidade e ruptura entre o Romantismo e o Realismo

Tanto na Europa como no Brasil, o posicionamento crítico e a matriz criativa do Romantismo tiveram profunda relação com o sentimento de nacionalismo.

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Na Europa, interessava resgatar certa identidade nacional vinculada aos novos valores burgueses, que buscavam superar o tradicionalismo aristocrata.

No Brasil, o nacionalismo era a tradução do desejo de emancipação política e cultural da metrópole portuguesa. Isso acabou se manifestando na invenção do herói nacional na figura do índio, que seria o autêntico brasileiro, desvinculado da influência do português.

Esse interesse nacionalista acabou por limitar um pouco a temática român-tica, gerando críticas posteriores sobre a ênfase dada a temas locais e o pouco interesse por assuntos universais.

Entretanto, a partir de 1860 a poesia social de Castro Alves (1847-1871) e a ficção urbana de José de Alencar começaram a denotar um Brasil em crise com seu ideal nacionalista. A consciência amena em relação às crises nacionais passou para um estágio mais agudo.

Bosi (1994, p. 163) relaciona essa crise à extinção do tráfico de negros, que levou à decadência da economia açucareira; ao deslocar-se do eixo de prestí-gio para o sul e aos novos anseios das classes médias urbanas. As ideias libe-rais e republicanas, junto com o abolicionismo, pintaram um quadro que exigia mudanças também na concepção artística.

Foi justamente na arte que se deu uma ruptura mental com o regime escra-vocrata e as instituições políticas que o sustentavam. O Realismo veio responder à necessidade de se fixar a preocupação social como marca da literatura, e havia uma urgência de que a literatura representasse ação diante da realidade.

Em termos formais, o Realismo manteve e expandiu as conquistas do Roman-tismo. Se tomarmos um romance romântico, por exemplo, veremos pouca dife-rença em relação a um romance realista no que diz respeito às estratégias nar-rativas, a composição de personagens. A diferença ou a ruptura está na função creditada à literatura. Para os realistas, a literatura precisava definir-se por uma ação direta nos problemas sociais – a interpretação e a análise da sociedade pas-savam a servir de escopo para a transformação que se esperava alcançar nessa sociedade.

O grande paradoxo realista está, entretanto, em propor a mudança da socie-dade por meio da intervenção da literatura de modo muito direto. O programa de ação do Realismo pretendia responder aos anseios da sociedade de modo muito rápido e a “receita” para isso acabava sendo muito simplificada.

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É justamente nessa medida que é possível dizer que o Romantismo represen-ta maior intervenção na sociedade, embora não tivesse se proposto formalmen-te a realizar essa intervenção. A presença de gente comum, dramas humanos ordinários e a realidade social, aspectos verificáveis no Romantismo, são de certo modo o que era desejado formalmente pelos realistas.

Entretanto, houve – tanto no Brasil como na Europa – um interesse muito grande em deixar muito claro, por meio de documentos, manifestos e reuniões formais, quais eram os interesses dos realistas, e se perdeu algum tempo em seguir modelos e regras para realizar-se uma literatura que, em certa medida, o Romantismo espontaneamente já realizava.

Ao estudarmos o Realismo, precisamos ter em mente que não é possível des-vinculá-lo totalmente do momento precendente – o Romantismo – e nem dos momentos posteriores, que acabaram por recuperar elementos propostos pelo Realismo em diferentes contextos.

Assim, é possível dizer que o estudo do Realismo deve ser feito sempre tendo em mente a obra dos autores que produziram nesse momento histórico e esté- tico e também o contexto maior da realidade social, política e cultural do país.

Textos complementaresVamos ler os prefácios da segunda e da quinta edição do romance Amor de

Perdição, de Camilo Castelo Branco. Os prefácios são do próprio autor e nos re-velam muito do que ele pensava sobre o Romantismo, movimento do qual afir- mava fazer parte, e do Realismo, a Ideia Novíssima, que o autor afirma rejeitar por ser pouco decente.

Prefácio da segunda edição(CASTELO BRANCO, 1996, p. 17)

Nas Memórias do Cárcere, referindo-me ao romance que novamente se imprime, escrevi estas linhas:

“O romance, escrito em seguimento daquele (O Romance de um Homem Rico), foi o Amor de Perdição. Desde menino, ouvia eu contar a triste história

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Realismo na Literatura Brasileira

de meu tio paterno Simão António Botelho. Minha tia, irmã dele, solicita-da por minha curiosidade, estava sempre pronta a repetir o facto aligado1

à sua mocidade. Lembrou-me naturalmente, na cadeia, muitas vezes, meu tio, que ali deveria estar inscrito no livro das entradas no cárcere e no das saídas para o degredo. Folheei os livros desde os de 1800, e achei a notí-cia com pouca fadiga, e alvoroços de contentamento, como se em minha alçada estivesse adornar-lhe a memória como recompensa das suas trágicas e afrontosas dores em vida tão breve. Sabia eu que em casa de minha irmã estavam acantoados uns maços de papéis antigos, tendentes a esclarecer a nebulosa história de meu tio. Pedi aos contemporâneos que o conheceram notícias e miudezas, a fim de entrar de consciência naquele trabalho. Escrevi o romance em 15 dias, os mais atormentados de minha vida. Tão horrorizada tenho deles a memória, que nunca mais abrirei o Amor de Perdição, nem lhe passarei a lima sobre os defeitos nas edições futuras, se é que não saiu tolhi-ço2 incorrigível da primeira. Não sei se lá digo que meu tio Simão chorava, e menos sei se o leitor chorou com ele. De mim lhe juro que...”

Vão passados quase dois anos, depois que protestei não mais abrir este romance. No decurso de dois anos tive de afrontar-me com uns infortúnios menos vulgares que a privação da liberdade, e esqueci os horrores dos outros, a ponto de os recordar sem espanto, e simplesmente como fuzis indispensáveis nesta minha cadeia, em que já me vou retorcendo e sabore-ando com infernal deleitação. Abri o livro, como se o tivesse escrito nos dias mais festivos da minha mocidade; se bem que eu falo em dias de mocidade por me dizer a minha certidão de idade que eu já fui moço; que, no tocante a festas de juventude, estou agora esperando que elas venham no outono, e é de crer que venham, acamaradas com o reumatismo e gota.

Este livro, cujo êxito se me antolhava mau, quando eu o ia escrevendo, teve uma recepção de primazia sobre todos os seus irmãos. Movia-me à des-confiança o ser ele triste, sem interpolação de risos, sombrio, e rematado por catástrofe de confranger o ânimo dos leitores, que se interessam na boa sorte de uns, e no castigo de outros personagens. Em honra e louvor das pessoas que estimaram o meu livro, confessarei agradavelmente que julguei mal delas. Não aprovo a qualificação; mas a crítica escrita conformou-se com a opinião da maioria, que antepõe o Amor de Perdição ao Romance de um Homem Rico e às Estrelas Propícias.

1 Aligado: vinculado.2 Tolhiço: com defeito; de qualidade inferior.

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É grande parte neste favorável, embora insustentável, juízo, a rapidez das peripécias, a derivação concisa do diálogo para os pontos essenciais do enredo, ausência de divagações filosóficas, a lhaneza da linguagem e desar-tifício das locuções. Isto, enquanto a mim, não se estribar em outras reco-mendações mais sólidas deve ter uma voga muito pouco duradoura.

Estou quase convencido de que o romance, tendendo a apelar da iníqua sentença que o condena a fulgir e apagar-se, tem de firmar sua duração em alguma espécie de utilidade, tal como o estudo da alma, ou a pureza do dizer. E dou mais pelo segundo merecimento; que a alma está sobeja-mente estudada e desvelada nas literaturas antigas, em nome e por amor das quais muita gente abomina o romance moderno, e jura morrer sem ter lido o melhor do mais apregoado autor. Dou-me por suspeito nesta questão. Graças a Deus, ainda não escrevi duas linhas a meu favor, nem sequer nas locais do jornalismo. Até escrupulizo em dizer que devem ler-se romances, não vão cuidar que eu recomendo os meus.

É certo que tenho querido imprimir em alguns de meus livros o cunho da utilidade com o valor da linguagem sã e ajeitada à expressão de ideias, que pareciam estranhas, como de feito eram, e não se nos deparam nos escritos dos Sousas, Lucenas e Bernardes.3 Em verdade, foi isto mirar muito longe com vista muito curta; assim mesmo, fiz o que pude; e neste livro direi que fiz menos do que podia. Nos 15 atormentados dias em que o escrevi, faleceu-me o vagar e contenção que requer o acepilhar e brunir períodos. O que eu queria era afogar as horas, e afogar talvez a necessidade de vender o meu tempo, as minhas meditações silenciosas, e o direito de me espre- guiçar como toda a gente, e o prazer ainda de ser tão lustroso na linguagem, quanto, em diversas circunstâncias, podia ser.

O que então não fiz, também agora o não faço, senão em pouquíssimo e muito de corrida. O livro agradou como está. Seria desacerto e ingratidão demudar sensivelmente, quer na essência, quer na compostura, o que, tal qual é, foi bem recebido.

Porto, Setembro de 1863.

Camilo Castelo Branco

3 Sousas, Lucenas e Bernardes: escritores portugueses nos quais Camilo quer se espelhar.

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Realismo na Literatura Brasileira

Prefácio da quinta edição(CASTELO BRANCO, 1996, p. 19)

Publiquei, há 22 anos, o romance Onde Está a Felicidade? Pouco depois, Alexandre Herculano, republicando as Lendas e Narrativas, escrevia na “Advertência”: “...Nestes 15 ou 20 anos, criou-se uma literatura, e pode dizer-se que não há ano que não lhe traga um progresso. Desde as Lendas e Narrativas até o livro Onde Está a Felicidade? que vasto espaço transposto?”

Se comparo o Amor de Perdição, cuja quinta edição me parece um êxito fenomenal e extralusitano, com O Crime do Padre Amaro e O Primo Basílio, confesso, voluntariamente resignado, que para o esplendor destes dois livros foi preciso que a Arte se ataviasse dos primores lavrados no transcurso de 16 anos. O Amor de Perdição, visto à luz eléctrica do criticismo moderno, é um romance romântico, declamatório, com bastantes aleijões líricos, e umas ideias celeradas que chegam a tocar no desaforo do sentimentalismo. Eu não cessarei de dizer mal desta novela, que tem a boçal inocência de não devas-sar alcovas, a fim de que as senhoras a possam ler nas salas, em presença de suas filhas ou de suas mães, e não precisem de esconder-se com o livro no seu quarto de banho. Dizem, porém, que o Amor de Perdição fez chorar. Mau foi isso. Mas, agora, como indenização, faz rir: tornou-se cômico pela serie-dade antiga, pelo raposinho que lhe deixou o ranço das velhas histórias do Trancoso e do padre Teodoro de Almeida.

E por isso mesmo se reimprime. O bom senso público relê isto, compara com aquilo, e vinga-se barrufando com frouxos de riso realista as páginas que há dez anos aljofarava com lágrimas românticas.

Faz-me tristeza pensar que eu floresci nesta futilidade da novela, quando as dores da alma podiam ser descritas sem grande desaire4 da gramática e da decência. Usava-se então a retórica de preferência ao calão. O escritor antepunha a frequência de Quintiliano à do Colete-encarnado. A gente ima-ginava que os alcouces não abriam gabinetes de leitura e artes correlativas. Ai! quem me dera ter antes desabrochado hoje com os punhos arregaçados para espremer o pus de muitas escrófulas à face do leitor! Naquele tempo, enflorava-se a pústula,5 agora, a carne com vareja pendura-se na escápula e

4 Desaire: escândalo, espanto, inconformismo.5 Pústula: ferida gangrenada.

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vende-se bem, porque muita gente não desgosta de se narcisar6 num espe-lho fiel.

Pois que estou a dobrar o cabo tormentório da morte, já não verei onde vai desaguar este enxurro que rola no bojo a Ideia Novíssima. Como a hones-tidade é a alma da vida civil, e o decoro é o nó dos liames que atam a socieda-de, lembra-me se vergonha e sociedade ruirão ao mesmo tempo por efeito de uma grande evolução-rigolboche. A lógica diz isto; mas a Providência, que usa mais da metafísica que da lógica, provavelmente fará outra coisa. Se, por virtude da metempsicose, eu reaparecer na sociedade do século XX, talvez me regozije de ver outra vez as lágrimas em moda nos braços da retó-rica, e esta quinta edição do Amor de Perdição quase esgotada.

S. Miguel de Seide,

8 de Fevereiro de 1879.

Camilo Castelo Branco

6 Narcisar-se: ver a si mesmo em objetos exteriores, como o livro que se lê, por exemplo.

Estudos literários1. Assinale a alternativa que melhor explica o significado da expressão período

literário.

a) Seleção de algumas obras de diferentes épocas históricas para fins de estudo.

b) Organização da produção de uma certa época histórica de acordo com características comuns.

c) Organização da produção de uma época tendo por base as diferenças propostas pelos autores do momento.

d) Seleção de obras cujas temáticas se mantenham em voga durante mais de um século.

2. Uma das principais proposições do Romantismo no campo da narrativa lite-rária foi

a) a novela de cavalaria.

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b) o conto fantástico.

c) o romance.

d) o relato de viagens.

3. Discorra brevemente sobre as características da modalidade narrativa conhecida como romance, considerada a grande inovação do Romantismo.

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