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4. Violência doméstica contra a mulher: a evolução do marco legal A dor e a humilhação que sofri ao longo de quase vinte anos, tendo que tolerar a má-fé e a torpeza de muitos, tendo que bater de porta em porta para mendigar justiça é a mesma dor que me castrou o direito de acompanhar, mais de perto, o desenvolvimento de minhas filhas, hoje adultas e aqui presentes. É a mesma dor que lhes causou danos irreparáveis, pois não pude acompanhá-las à escola, aos passeios, não pude curar os seus machucados, não pude tomá-las no colo quando crianças e nem fazer o acalanto da maneira que nós, mães, gostamos de fazer. É a mesma dor que senti por temer causar-lhes dúvidas acerca da veracidade do que realmente aconteceu, veracidade essa, por duas vezes negada por aqueles que se propunham a fazer justiça. É a mesma dor que me dá a certeza de que nunca mais poderei correr ao encontro delas, para abraçá-las. Essa dor, senhores e senhoras, não tem preço. Essa dor está ligada à violação da dignidade da pessoa humana que o Estado jamais poderá reparar. Resta, porém, a alegria de saber que a decisão em reparar um erro da justiça serve para evitar que novos casos se repitam. Resta a alegria que o meu Estado me proporciona, hoje, neste momento, por honrar esse compromisso que extrapola seus limites territoriais e adentra na esfera internacional. (...) Estou feliz por receber essa indenização, porém a minha maior alegria continua sendo a existência da lei 11.340/06 chamada Lei Maria da Penha, que me permite dividir com cada mulher que sofre violência nesse país. É ela que garante que a dignidade da mulher exige respeito e que transforma a violência contra a mulher em crime contra os direitos humanos. Trecho do discurso de Maria da Penha no evento de reparação simbólica e material, em 2008. (Maria da Penha, 2010, p.200-201) Neste capítulo iremos investigar a evolução do marco legal sobre o tema da violência doméstica contra a mulher perpetrada pelo parceiro íntimo, no plano internacional, nacional e no estado do Rio de Janeiro, estabelecendo os nexos entre os referidos planos a partir da década de 1970 até a Lei Maria da Penha (2006). A realização da I Conferência Mundial da Mulher (1975), a instituição do Ano Internacional da Mulher 1975 e a elaboração da Convenção Para a

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4.

Violência doméstica contra a mulher: a evolução do marco

legal

A dor e a humilhação que sofri ao longo de quase vinte anos, tendo que tolerar a má-fé e a torpeza

de muitos, tendo que bater de porta em porta para mendigar justiça é a mesma dor que me castrou

o direito de acompanhar, mais de perto, o desenvolvimento de minhas filhas, hoje adultas e aqui

presentes. É a mesma dor que lhes causou danos irreparáveis, pois não pude acompanhá-las à

escola, aos passeios, não pude curar os seus machucados, não pude tomá-las no colo quando

crianças e nem fazer o acalanto da maneira que nós, mães, gostamos de fazer.

É a mesma dor que senti por temer causar-lhes dúvidas acerca da veracidade do que realmente

aconteceu, veracidade essa, por duas vezes negada por aqueles que se propunham a fazer justiça.

É a mesma dor que me dá a certeza de que nunca mais poderei correr ao encontro delas, para

abraçá-las.

Essa dor, senhores e senhoras, não tem preço. Essa dor está ligada à violação da dignidade da

pessoa humana que o Estado jamais poderá reparar. Resta, porém, a alegria de saber que a decisão

em reparar um erro da justiça serve para evitar que novos casos se repitam. Resta a alegria que o

meu Estado me proporciona, hoje, neste momento, por honrar esse compromisso que extrapola

seus limites territoriais e adentra na esfera internacional.

(...)

Estou feliz por receber essa indenização, porém a minha maior alegria continua sendo a existência

da lei 11.340/06 chamada Lei Maria da Penha, que me permite dividir com cada mulher que sofre

violência nesse país. É ela que garante que a dignidade da mulher exige respeito e que transforma

a violência contra a mulher em crime contra os direitos humanos.

Trecho do discurso de Maria da Penha no evento de reparação simbólica e material, em 2008.

(Maria da Penha, 2010, p.200-201)

Neste capítulo iremos investigar a evolução do marco legal sobre o

tema da violência doméstica contra a mulher perpetrada pelo parceiro íntimo, no

plano internacional, nacional e no estado do Rio de Janeiro, estabelecendo os

nexos entre os referidos planos a partir da década de 1970 até a Lei Maria da

Penha (2006).

A realização da I Conferência Mundial da Mulher (1975), a instituição

do Ano Internacional da Mulher – 1975 e a elaboração da Convenção Para a

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Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (Cedaw1) de

1979, promovida pela ONU2 foram os provocadores para desencadear, no Brasil,

a manifestação das ideias feministas e a ação das mulheres, através, por exemplo,

da criação de vários grupos de mulheres e feminista, do ressurgimento da

impressa feminista formada pelos setores de esquerda do País que atingiu a

opinião pública. Nesse contexto, aprovou-se, no Congresso Nacional, a Lei do

Divórcio, em 19773.

O Brasil possui a tradição de acompanhar as discussões e assinar os

tratados internacionais pela ONU e dentre os tratados e convenções internacionais

assinados e ratificados pelo Brasil que, direta ou indiretamente, referem-se à

temática da violência doméstica contra a mulher perpetrada pelo parceiro íntimo,

merece destaque a Cedaw (ONU, 1979); a Recomendação Geral N.º 19 do Comitê

Cedaw (ONU, 1992); as Declarações e Programas de Ações decorrentes das

principais Conferências Internacionais das Nações Unidas (Viena/93, Cairo/94 e

Beijing/95); a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a

Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará, OEA, 1994); e, o

Relatório do Comitê Cedaw em relação ao Brasil (ONU, 2003).

Essa tradição ganhou força com a Constituição Federal de 1988 ao

assegurar em seu art. 5.º, § 2.º que “Os direitos e garantias expressos nesta

Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela

adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil

seja parte” e, ainda, ao garantir que “Os tratados e convenções internacionais

sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso

1 Convention on the Elimination of All Forms of Discrimination against Women

2 A Organização das Nações Unidas (ONU) “é uma organização internacional formada por países

que se reuniram voluntariamente para trabalhar pela paz e o desenvolvimento mundiais. O

preâmbulo da Carta das Nações Unidas – documento de fundação da Organização – expressa os

ideais e os propósitos dos povos cujos governos se uniram para constituir as Nações Unidas: Nós,

os povos das Nações Unidas, resolvidos a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra,

que, por duas vezes no espaço da nossa vida, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade, e a

reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na

igualdade de direitos dos homens e das mulheres, assim como das nações grandes e pequenas, e a

estabelecer condições sob as quais a justiça e o respeito às obrigações decorrentes de tratados e

de outras fontes de direito internacional possam ser mantidos, e a promover o progresso social e

melhores condições de vida dentro de uma liberdade mais ampla.” (ONU.Conheça a ONU.<

http://www.onu.org.br/conheca-a-onu/conheca-a-onu/>. Acesso em 12 jun. 2011). 3 O divórcio no Brasil foi instituído oficialmente com a Emenda Constitucional n.º 9 de

28.06.1977, regulamentada pela Lei n.º 6.515 de 26 de dezembro de 1977 de autoria do senador

Nelson Carneiro (MDB/RJ). O texto original da lei está disponível

em:http://www2.camara.gov.br/legin/fed/lei/1970-1979/lei-6515-26-dezembro-1977-366540-

publicacaooriginal-1-pl.html Acesso em 10 jan. 2011

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Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros,

serão equivalentes às emendas constitucionais” (art. 5.º, § 3.º aprovado na

Emenda Constitucional n.º 45/2004).

No âmbito nacional além da Constituição Federal de 1988 cabe

ressaltar a Carta da Mulher Brasileira aos Constituintes (1986); o novo Código

Civil de 20034; o Código Penal

5 (1940); a Lei 9099/95 e a Lei 11.340/06 (Lei

Maria da Penha), ao longo desses anos, repercutiram diretamente na prática

jurídica sobre o tema da violência contra a mulher no Brasil.

No plano estadual, a Constituição do Rio de Janeiro de 1989 teve

papel central na formulação e implementação das políticas públicas de

enfrentamento da violência doméstica contra a mulher. No entanto, o movimento

feminista fluminense desde a primeira metade da década de 1980 reivindicou e

conquistou a aprovação de leis estaduais no campo dos serviços de atendimento

para as mulheres vítimas de violência. Assim sendo, daremos destaque para a

legislação do estado do Rio de Janeiro, ressaltando os principais acertos e vitórias,

assim como os equívocos desse percurso, apontando os desafios vividos pelo

movimento feminista fluminense no processo de formulação das políticas públicas

de enfrentamento da violência doméstica contra a mulher no estado do Rio de

Janeiro.

4.1 Discussão Teórica sobre a cidadania das mulheres

A noção de cidadania nasce com a Declaração dos Direitos do

Homem e do Cidadão em 1789, universalmente reconhecida como momento

fundador dos modernos direitos à liberdade e à igualdade. Portanto, é nessa época

que “se prepara a construção concreta e não linear daquele modelo de cidadania

que atravessou o Ocidente europeu nos últimos duzentos anos e do qual as

4 A Lei 10.406/2002 instituiu o Código Civil brasileiro e entrou em vigor em 11.01.2003, em

substituição ao primeiro Código Civil Brasileiro – Lei 3.071 de 01 de janeiro de 1916. “A doutrina

jurídica brasileira classifica o Direito Civil como um ramo do direito privado, distinto do Direito

Penal, definido como direito público.

Essa diferença significa que, sendo direito privado, o Direito Civil regula as relações entre

particulares, que podem contratar sem a necessária interferência do Estado. No caso do direito

considerado público, como o direito penal, o Estado quase sempre intervém nas relações entre

particulares, a despeito da vontades destes” (Barsted & Garcez, 1999, p. 13). 5 O Código Penal brasileiro foi criado pelo então Presidente Getúlio Vargas através do decreto-lei

n.º 2.848 de 1940.

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mulheres permaneceram por muito tempo excluídas.” (Groppi, 1995, p. 12) No

entanto, Scott afirma que, ainda no período em que os arquitetos da Revolução

Francesa anunciavam os princípios da Revolução a partir da Declaração dos

Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, tinham “consciência do perigo que um

pronunciamento tão universal poderia acarretar: entraria em conflito, sem dúvida,

com os pormenores práticos de qualquer constituição que fosse elaborada”. (Scott,

2002, p. 49) Se de um lado, a referida Declaração encontrou seguidores que

defendiam a Revolução, de outro houve grupos que explicitaram sua insatisfação,

pois estavam excluídos da cidadania definida na Declaração, dentre os quais as

mulheres, os escravos e os homens livres negros. (Scott, 2002, p. 50).

A consciência dos revolucionários em relação aos conflitos entre princípios e

prática, entre direitos individuais abstraídos do contexto social e a

necessidade de uma política que levasse em conta diferenças sociais, fornece-

nos um início muito apropriado para a história do feminismo na França. Há,

porém, uma complicação a mais nessa história. A Revolução rapidamente

concedeu à mulher direitos civis, especialmente na esfera matrimonial. Em

1791, o casamento foi definido como um contrato social, e, em 1792, o

divórcio tornou-se direito legal de ambos os cônjuges. Os homens

legisladores, dessa forma, aprovaram leis que tinham efeitos contraditórios

sobre as mulheres, tornando-as ao mesmo tempo pessoas com direitos civis e

objetos de preocupações legislativas. Essa condição ambígua do status das

mulheres, seu reconhecimento como agentes da sociedade civil e sua

exclusão da política, geraram o feminismo. (Scott, 2002, p. 50)

Nesse contexto, foram elaboradas várias declarações feministas, mas

segundo Scott a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, publicada por

Olympe de Gouges6 se tornou a mais representativa Declaração tanto para as

feministas quanto para os historiadores, pois questiona a restrição masculina do

conceito de igualdade, constituindo-se na mais orgânica crítica contemporânea ao

pretenso universalismo da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.

É sem dúvida a reivindicação mais abrangente de direitos para a mulher

naquele período histórico: toma ao pé da letra a característica universal da

Revolução e, ao chamar a atenção para as diferenças que as mulheres

incorporam, revela os limites dessa universalidade, em face da sua tentativa

paradoxal de representar as mulheres como indivíduos. (Scott, 2002, p. 50-

51)

6 “Em sua vida Olympe rompeu com uma série de papéis atribuídos às mulheres, iniciando pelo

abandono do nome de seu pai e de seu marido, passando pela interessante carreira de escritora de

peças abolicionistas e feministas para teatro, culminando com sua condenação à morte pela

guilhotina em 1793. Acusada de viver de excessos nocivos da imaginação, Olympe foi uma

pensadora da mesma ordem de Rousseau e Voltaire, sem, contudo, ter tido idêntico

reconhecimento posterior na história do pensamento filosófico.” (Scott, 2002, p. 12)

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Para Groppi (1995) o texto de Olympe e o texto de Mary

Wollstonecraft “Vindication of the rights of woman”, escrito em 1792,

“representam um protótipo das afirmações e reivindicações das mulheres em

termos de direito.” (Groppi, 1995, p. 12) Sobre a universalidade dos direitos, os

textos citam expressamente os dois sexos, reivindicando uma co-presença no

campo político. Nessa perspectiva, a Declaração dos direitos da mulher em seu

art. III estabelece que “O princípio de toda soberania reside essencialmente na

nação, que é a união da mulher e do homem: nenhum organismo, nenhum

indivíduo, pode exercer autoridade que não provenha expressamente deles”.

(Groppi, 1995, p. 303)

A Declaração dos direitos da mulher reescrita por uma mulher contempla a

co-presença política e social de homens e mulheres e uma igual dignidade

para os dois sexos.

Co-presença que vai na direção de uma complementaridade não mais

entendida como justificação de uma relação desigual entre ambos, mas como

possibilidade de uma relação igualitária mesmo que não necessariamente

simétrica, baseada no fato de que a diferença de sexo não pode justificar a

exclusão das mulheres do poder político e da cidadania social. No

“Preâmbulo” de Olympe de Gouges, fala-se dos “atos do poder das mulheres

e dos do poder dos homens”, e, no artigo VI, de “igual admissão a todas as

dignidades, postos e empregos públicos, segundo as suas capacidades e sem

outra distinção a não ser suas virtudes e seus talentos”. Neste sentido, a

enunciação da diferença feminina resulta menos ameaçadora e lesiva para os

homens do que seria o seu cancelamento na Declaração de 1789 e na

Constituição de 1791 da qual foi premissa. O sujeito feminino quer juntar-se

ao masculino e não obliterá-lo, no momento em que afirma a sua

especificidade. (Groppi, 1995, p. 13 e 14)

À medida que explicita a diferença, o sujeito feminino quer juntar-se

ao masculino e não suprimi-lo. Ao contrário, os homens ao introduzir a noção da

diferença, fazem em prejuízo das mulheres, confirmando sua ligação com o

privado e seu afastamento do governo da coisa pública.

Estamos diante de um dos quadros fundadores da exclusão das mulheres do

terreno da cidadania: as mulheres não podem participar da esfera pública não

porque são abstratamente incapazes, mas enquanto são “por natureza”

destinadas à esfera familiar e privada, para a qual possuem “virtudes”

específicas. O apelo a uma natureza feminina intrinsecamente separada da

masculina é um dos elementos em que se apoia a construção revolucionária

da cidadania. (Groppi, 1995, p. 15)

Por esta perspectiva, as mulheres são destinadas a exercerem o papel

social de esposa e mãe e esta condição, para os autores da cidadania, constitui a

causa da impossibilidade de serem cidadãs. Neste sentido, como explica Christine

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Fauré, “a noção filosófica e política dos direitos naturais, em contato com os

eventos revolucionários da reivindicação da igualdade civil para todos, tinha-se

transformado no predomínio de uma norma viril”. (Groppi, 1995, p. 15) Desta

forma, encontramos nestes textos, os elementos fundadores da exclusão das

mulheres no campo da cidadania.

Com efeito, a noção de cidadania - que reveste um caráter simbólico

central na Revolução Francesa - não só não leva em conta o elemento

feminino no momento constitutivo, mas se define e se constrói em

oposição a ele. Não se trata então de uma simples ‘remoção’ da diferença

feminina do imaginário dos modernos pensadores políticos, como

sublinhou Adriana Cavarejo. Parece antes uma necessária e consciente

expulsão de um sujeito feminino que serve para confirmar por oposição a

identidade de um sujeito masculino, que procura para si mesmo novas

definições e novas relações, uma vez liberto do arbítrio do antigo

soberano e exatamente no momento em que deve definir seu próprio

papel num campo social e político em vias de renovação. Se o caráter

constitutivo do termo cidadão em oposição ao de súdito reside em sua

participação ativa na esfera pública, no curso da Revolução ele se reforça

em oposição à passividade da esfera doméstica e privada que compete às

mulheres. (Groppi, 1995, p. 18)

Ainda no campo da cidadania, Groppi (1995) enfatiza a dificuldade

das mulheres em adquirir uma identidade individual e a construir uma identidade

coletiva. Assim sendo, a consolidação de uma solidariedade feminina baseada na

participação política das mulheres tornou-se difícil pelo fato de que:

A construção de uma solidariedade feminina com vistas a uma presença

política das mulheres tornou-se árdua não tanto pelo fato de que os processos

de modernização destroem as redes comunitárias femininas das sociedades

do Antigo Regime – isso vale também para os homens -, mas pelo fato de que

enquanto as redes solidárias masculinas do passado confluíam em estruturas

organizadas e reconhecidas no plano estatal, as femininas eram informais ou

circunscritas a âmbitos ou de suplência do aparato institucional, como atesta

o amplo e secular engajamento nas atividades caritativas e beneficentes. Isso

quer dizer que essas redes ofereceram a homens e mulheres quadros culturais

de referência profundamente diferenciados e expansíveis de maneira diversa

quanto à presença social e à negociação dos direitos. (Groppi, 1995, p. 23 e

24)

Diferente do que preconiza a cultura masculina, a história das ideias

fundantes da reivindicação feminina da cidadania, a partir do contexto da

Revolução Francesa, “foi também a história da construção de uma individualidade

até então vedada às mulheres e de uma identidade coletiva de gênero.” (Rossi-

Doria, 1995, p. 109). Neste sentido, para entender a luta das mulheres contra a

exclusão da esfera pública é imprescindível compreender, nesse processo histórico

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de longa duração, a extraordinária persistência de esteriótipos que caracterizam as

definições do sexo feminino. Nesta perspectiva, “uma das principais constantes na

história do pensamento político é representada pelo fato de que a exclusão das

mulheres na esfera pública nunca é um esquecimento, mas, pelo contrário, um

elemento constitutivo das categorias de “cidadão” e de “política” (Rossi-Doria,

1995, p. 110)

Cabe ressaltar que, o dilema da cidadania, a partir do debate sobre a

igualdade e/ou a diferença, traz à tona a questão “(...) de por que recentemente a

alternativa assim formulada pôde tornar-se ponto de referência da teoria e da

política feminista, e encontrar tanto interesse mesmo fora do círculo daqueles que

participam do movimento e da pesquisa feminista.” (Gerhard, 1995, p. 67) Sobre

essa questão à autora afirma que não possui nenhuma verdade a propor.

O que podemos oferecer é no máximo uma motivação política: a despeito de

todo mau auspício, o movimento de mulheres atingiu a meu ver um grau de

maturidade e de diferenciação que exige uma tomada de posição nesta

controvérsia. (...) O movimento das mulheres pôs em discussão e tornou

públicas essas experiências cotidianas de desvantagens, de injustiça e de

violência nas relações entre os sexos. Todavia, o que estava na base desta

denúncia não era tanto o ponto de vista da igualdade, de uma melhor

equiparação, mas antes o objetivo de pôr fim ao predomínio do sexo

masculino, tanto na esfera privada como na pública. (Gerhard, 1995, p. 67)

Para a autora, o pano de fundo dessa discussão estava relacionado à estrutura

das relações sociais entre os sexos e a divisão do trabalho.

Pretendia-se assim reivindicar, tanto no pessoal como no político, a

autodeterminação e a independência, vale dizer, a autonomia. Com isso foi

posta em questão uma estrutura fundamental das relações sociais existentes: a

hierarquia nas relações entre os sexos e a divisão sexual do trabalho, cuja

forma é mantida sobretudo pelo instituto familiar e o ordenamento da esfera

privada. Só com a falência da equiparação tornou-se claro que o predomínio e

a constante disparidade entre os sexos não se baseiam apenas em maus

hábitos, papéis sexuais tradicionais ou atraso cultural, mas têm antes causas

estruturais, sobre as quais se apóia nosso ordenamento social. Entretanto,

como a pesquisa feminina já demonstrou de múltiplos modos e em vários

setores, o signo “sexo” estrutura as posições e as relações sociais em todos os

campos da sociedade: não só o sistema familiar e profissional ou as

instituições políticas e econômicas, mas também as formas da cultura e os

âmbitos das normas, dos direitos, dos símbolos, da língua, do pensamento e

da ciência. Do ponto de vista de uma crítica da razão e do saber cada vez

mais radical, de uma crítica do direito de todos como direito dos homens, e –

enfim – da tão discutida reviravolta nas orientações de valor, não parece mais

possível um acordo entre homens e mulheres sobre quais sejam o modo e a

medida da equiparação ou do ainda mais “antiquado” direito à igualdade.

(Gerhard, 1995, p. 69 e 70)

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A partir dessa reflexão, aponta que o “problema da equiparação não

reside apenas na sua neutralidade em relação a cada pessoa (perante a lei todos

são iguais mas não idênticos), ou seja, no fato de que ela permanece tão

facilmente formal.” (Gerhard, 1995, p. 70) De um lado, a questão que se coloca é

que a igualdade não pode prescindir da liberdade e, de outro, “que sob o

predomínio da liberdade – da liberdade contratual e da ‘livre economia de

mercado’ – continua a existir o perigo de que a igualdade formal degenere em

paridade das oportunidades ou na chamada liberdade de escolha.” (Gerhard, 1995,

p. 70-71). Neste sentido, conclui que:

A Declaração dos direitos da mulher e da cidadã encoraja-nos a receber

finalmente como herança uma tradição e uma cultura jurídico-estatutárias até

agora marginalizadas no plano científico e político. Nesse quadro, os direitos

humanos devem ser entendidos também como direitos das mulheres, entre os

quais se incluem aqueles princípios de liberdade, igualdade e solidariedade

que, a meu ver, podem ainda constituir as linhas mestras de uma política dos

sexos válida também para o presente. (Gerhard, 1995, p. 71-72)

Na sociedade brasileira, os movimentos sociais que surgiram, a partir

da década de 1970, dentre os quais o movimento feminista, compreendem que a

cidadania deve ser entendida enquanto prática concreta de luta. (Dagnino, 1994)

Afirmar a cidadania como estratégia significa enfatizar o seu caráter de

construção histórica, definida portanto por interesses concretos e práticas

concretas de lutas e pela sua contínua transformação. Significa dizer que não

há uma essência única imanente ao conceito de cidadania, que o seu conteúdo

e o seu significado não são universais, não estão definidos e delimitados

previamente, mas respondem à dinâmica dos conflitos reais, tais como

vividos pela sociedade num determinado momento histórico. Esse conteúdo e

significado, portanto, serão sempre definidos pela luta política. (Dagnino,

1994, p. 107)

A cidadania deve ser compreendida enquanto uma prática de

transformação, na qual se explicita onde e como são incluídos seus direitos7.

(Dagnino, 1994)

O conceito de cidadania que o feminismo vai explorar está vinculado ao

acesso e à redefinição de direitos: direitos a ter direitos. Identifica a cidadania

como o processo de criação de espaços existentes anteriores à prática dos

sujeitos políticos. Portanto não é uma conquista legal, ou o acesso a direitos

previamente definidos, ou a implementação de direitos abstratos e formais

7 “Direito” é uma figura deôntica e, portanto, é um termo da linguagem normativa, ou seja, de uma

linguagem na qual se fala de normas e sobre normas. A existência de um direito, seja em sentido

forte ou fraco, implica sempre a existência de um sistema normativo, onde por “existência” deve

entender-se tanto o mero fato exterior de um direito histórico ou vigente quanto o reconhecimento

de um conjunto de normas como guia da própria ação. (Bobbio, 1992, p. 79-80)

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(NEDER, 1997). Vincula-se fortemente com a invenção/criação de novos

direitos, que emergem das lutas concretas (direito à vida sem violência;

direito à posse da terra e à moradia; direito à autonomia do seu corpo). O

movimento feminista explora o conceito de sujeitos ativos: definem o que

consideram ser seus direitos e lutam pelo seu reconhecimento. É a

capacidade dos indivíduos de participarem na organização do Estado e da

sociedade, contribuindo na elaboração de políticas públicas capazes de

concretizarem direitos (Benevides, 1991). (Soares, 2004, p. 172) (grifo da

autora)

Para Souza-Lobo a década de 1980 é marcada por uma cidadania

emergente de mulheres, “que se constrói a partir de três correntes distintas: as

práticas das mulheres nos movimentos, os discursos sobre a dignidade elaborados

nos movimentos populares e os discursos feministas.” (Souza-Lobo, 2011, p. 272)

Essa cidadania emergente remete a noções difusas na sociedade como a

discriminação das mulheres, em particular de seus direitos sociais e políticos.

Os temas das mulheres coincidem com as questões sociais debatidas na

sociedade brasileira. Isso explica a transversalidade da problemática da

igualdade e dos direitos das mulheres assim como uma consciência frágil e

difusa da discriminação. A questão democrática, hoje o centro dos debates,

está atravessada pela problemática da extensão da cidadania. Durante os anos

1980, e em particular quando da Constituinte, as mulheres conseguiram ser

interlocutores visíveis. (Souza-Lobo, 2011, p. 272-273)

No entanto, a autora ressalta que nesse processo, há limites a ser

enfrentados.

Sua aspiração à liberdade é contra-arrestada pelas formas institucionalizadas

que, em nome da legalidade formal, obscurecem os mecanismos que fundam

as diferenças. A participação decisiva das mulheres nos movimentos não se

traduz ou se reflete insuficientemente no nível da representação institucional.

O gênero da representação permanece masculino na sua forma clássica e a

representação das mulheres na vida pública permanece ainda periférica.

(Souza-Lobo, 2011, p. 273)

Isto posto, “o problema fundamental em relação aos direitos do

homem, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los. Trata-se de um

problema não filosófico, mas político.” (Bobbio, 1992, p. 24)

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4.2 Os tratados internacionais e o marco jurídico brasileiro

A partir do pós-guerra, portanto, na segunda metade do século XX, o

reconhecimento de que as mulheres devem ter direitos iguais aos homens teve

impulso com a Carta das Nações Unidas (Rodrigues, 2006, p. 200) na qual a ONU

estabeleceu que dentre seus propósitos e princípios o de:

(...) 3. Realizar La cooperación internacional em La solución de problemas

internacionales de caráter econômico, social, cultural o humanitário, y em el

desarollo y estímulo Del respeto a los derechos humanos y a las libertades

fundamentales de todos, sin hacer distinción por motivos de raza, sexo,

idioma o religión; (...) (Carta de las Naciones Unidas p. 3 - versão oficial,

1991 apud Rodrigues, 2006, p. 200)

Ao reconhecer que há problemas internacionais a ONU através do

instrumento da cooperação internacional, deverá buscar solução desses problemas,

tendo como premissa o respeito aos direitos humanos e as liberdades

fundamentais independente de raça, sexo, língua ou religião. Para tanto, deve

incluir as políticas públicas como forma de solução para esses problemas. Assim

sendo, “é lícito considerar que a própria Carta da ONU enseja a formulação e a

execução de políticas públicas internacionais.” (Rodrigues, 2006, p. 201)

Com efeito, os anos 90 converteram-se na década das conferências globais.

Patrocinados pela ONU, estes megaeventos passaram a reunir mais de uma

centena de chefes de Estado e de Governo, milhares de técnicos e diplomatas,

e foram progressivamente invadidos pelas organizações não governamentais

(ONG’s), tendo como marco a Conferência da ONU sobre Meio Ambiente e

Desenvolvimento, realizada em junho de 1992, no Rio de Janeiro, e seu

principal documento, a Agenda 21.

Desde então, como em nenhum outro tempo, as Nações Unidas vêm se

dedicando a debater, a esmiuçar, a negociar e a lançar diretrizes a geração de

políticas públicas em todo o mundo. (Rodrigues, 2006, p. 201)

Nesse processo de forja de políticas públicas da ONU, a partir da

década de 1990, entram em cena os governos subnacionais (municípios, estados,

províncias, por exemplo) e as ONG’s, intervindo diretamente nas negociações e

nas próprias políticas. Neste sentido, “as políticas públicas municipais, estaduais e

provinciais, transformadas em Best practices, inverteram a tradicional ordem de

verticalidade internacional-nacional-local introduzindo as agendas locais no

tabuleiro local.” (Rodrigues, 2006, p. 202) É, portanto, necessário ressaltar que os

resultados das conferências da ONU expressos através das convenções, dos

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tratados, das declarações e dos planos de ação das Nações Unidas devem levar em

conta a diversidade de cada Estado-membro.

As respostas e a eficácia destes organismos não são nem podem ser

homogêneas, pois cada um tem sua história de atuação, um orçamento

limitado e, muito importante, cada qual cuida de um tema que poderá reunir

maior ou menor nível de consenso internacional e de aceitação nacional por

parte dos países-membros. Nesse sentido, quaisquer críticas e julgamentos

sobre as políticas da ONU em relação aos países-membros deve levar em

conta sua diversidade. (Rodrigues, 2006, p. 204)

Com o fim da Segunda Guerra Mundial (1939–1945) e com a

Declaração Universal dos Direitos Humanos aprovada pela Assembleia das

Nações Unidas em 1948 se desenvolveu o Direito Internacional dos Direitos

Humanos8. A adoção, por exemplo, de tratados internacionais

9 voltados para a

promoção10

dos direitos fundamentais, constituíram-se no âmbito da ONU, o

sistema normativo global de proteção dos direitos humanos. No entanto, “os

direitos elencados na Declaração não são os únicos e possíveis direitos do homem:

são os direitos do homem histórico, tal como este se configurava na mente dos

redatores da Declaração após a tragédia da Segunda Guerra Mundial.” (Bobbio,

1992, p.33)

A Declaração Universal representa a consciência histórica que a humanidade

tem dos próprios valores fundamentais na segunda metade do século XX. É

uma síntese do passado e uma inspiração para o futuro: mas suas tábuas não

foram gravadas de uma vez para sempre.

Quero dizer, com isso, que a comunidade internacional se encontra hoje

diante não só do problema de fornecer garantias válidas para aqueles direitos,

mas também de aperfeiçoar continuamente o conteúdo da Declaração,

articulando-o, especificando-o, atualizando-o, de modo a não deixá-lo

cristalizar-se e enrijecer-se em fórmulas tanto mais solenes quanto mais

8 Direitos humanos “(...) são ressalvas e restrições ao poder político ou as imposições a este,

expressas em declarações, dispositivos legais e mecanismos privados e públicos, destinados a

fazer respeitar e concretizar as condições de ida que possibilitem a todo ser humano manter e

desenvolver suas qualidades peculiares de inteligência, dignidade e consciência, e permitir a

satisfação de suas necessidades materiais e espirituais.” (Almeida, 1996. p.24. apud Robert,

1999, p. 10) 9 “Os tratados internacionais são acordos formais entre países que criam obrigações legais e

direitos entre aqueles que deles fazem parte. Em função desses acordos, os países podem ser

fiscalizados, para que se verifique se estão cumprindo o que foi combinado entre eles. Os tratados

internacionais de direitos humanos também criam direitos para as pessoas que vivem nos países

que a eles aderiram. Quando o país decide assinar e ratificar acordos internacionais, torna-se sua

obrigação garantir internamente os direitos neles previstos, criando leis e tomando medidas para

fazê-los valer para toda a população.” (Libardoni, 2002, p. 16) 10

“Por promoção, entende-se o conjunto de ações que são orientadas para este duplo objetivo: a)

induzir os Estados que não têm uma disciplina específica para a tutela dos direitos do homem a

introduzi-la; b) induzir os que já a têm a aperfeiçoá-la, seja com relação ao direito substancial

(número e qualidade dos direitos a tutelar), seja com relação aos procedimentos (número e

qualidade dos controles juriscidionais).” (Bobbio, 1992, p. 39-40)

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vazias. Esse problema foi enfrentado pelos organismos internacionais nos

últimos anos, mediante uma série de atos que mostram quanto é grande, por

parte desses organismos, a consciência da historicidade do documento inicial

e da necessidade de mantê-lo vivo fazendo-o crescer a partir de si mesmo.

Trata-se de um verdadeiro desenvolvimento (ou talvez, mesmo, de um

gradual amadurecimento) da Declaração Universal, que gerou e está para

gerar outros documentos interpretativos, ou mesmo complementares, do

documento inicial. (Bobbio, 1992, p. 34)

Sobre o abstrato sujeito “homem” a Declaração Universal dos Direitos

Humanos “encontrara uma primeira especificação no “cidadão” (no sentido de

que podiam ser atribuídos ao cidadão novos direitos com relação ao homem em

geral).” (Bobbio, 1992, p. 62) A partir daí, indagou-se sobre a especificação desse

homem e, portanto, desse cidadão. “Essa especificação ocorreu com relação seja

ao gênero, seja às várias fases da vida, (...). Com relação ao gênero, foram cada

vez mais reconhecidas as diferenças específicas entre a mulher e o homem.”

(Bobbio, 1992, p. 62)

Vários documentos internacionais foram formulados a partir desse

questionamento, dentre os quais: a Declaração dos Direitos da Criança

(1959), a Declaração sobre a Eliminação da Discriminação à Mulher (1967) e

a Declaração dos Direitos do Deficiente Mental (1971). (Bobbio, 1992, p. 63)

Sobre o tema da violência contra a mulher, a partir da década de 1970

foi elaborado um sistema especial de proteção, através dos tratados e convenções

internacionais, dentre os quais, merece destaque a Cedaw (ONU, 1979) e a

Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a

Mulher (Convenção de Belém do Pará, OEA, 1994)

4.2.1 A Cedaw e a garantia do princípio da igualdade

A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de

Discriminação contra a Mulher (Cedaw)11

adotada pela Assembleia Geral das

Nações Unidas12

em 1979, “define em que consiste a discriminação contra as

mulheres, estabelece uma agenda para ações nacionais com o fim de eliminá-la e

11 Adotada pela Resolução 34/180 da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 18/12/1979 e

entrou em vigor em 03 de setembro de 1981. 12

A CEDAW por ser uma Convenção adotada pela ONU está inserida no sistema global-espacial

de proteção valendo no mundo todo.

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prevê uma série de direitos a serem respeitados, protegidos e implementados (arts.

1.º ao 16.º).” (Pandjiarjian, 2006, p. 80)

Ao afirmar que os direitos das mulheres são direitos humanos a Cedaw

estabelece que todos os direitos fundamentais - o direito à vida, à igualdade, à

liberdade e à dignidade da pessoa humana -, são também direitos das mulheres.

Em seu artigo primeiro, define a expressão discriminação contra a mulher, pois

considera que discriminar as mulheres é tratá-las de forma desigual em relação

aos homens.

Artigo 1.º - Para os fins da presente Convenção, a expressão “discriminação

contra a mulher” significará toda a distinção, exclusão ou restrição baseada

no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o

reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente de seu

estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos

humanos e liberdades fundamentais nos campos políticos, econômico, social,

cultural e civil ou em qualquer outro campo. (Cedaw, 2004, p. 107)

Nessa perspectiva, compreende que a discriminação e a desigualdade

favorecem a violência contra as mulheres o que limita os demais direitos, pois é

uma forma de discriminação e deve ser considerada como todos os atos que

trazem dano ou sofrimento físico, psicológico ou sexual.

A Cedaw no campo dos direitos humanos foi a Convenção que mais

recebeu reservas dos Estados-Partes, principalmente sobre a igualdade entre

homens e mulheres na família.

Tais ressalvas foram justificadas com base em argumentos de ordem

religiosa, cultural ou mesmo legal, havendo países, como Bangladesh e Egito,

que acusaram o Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra a

Mulher de praticar “imperialismo cultural e intolerância religiosa”, ao impor-

lhes a visão de igualdade entre os sexos, inclusive na família. Isso reforça o

quanto a implementação dos direitos humanos das mulheres está

condicionada à dicotomia entre o papel desempenhado por elas na vida

pública e privada, que, em muitas sociedades, fica restrito ao espaço da casa e

da família. (Piovesan, 2006, p.48 e 49)

O Brasil, ao ratificar a Cedaw, em 1984, incorporou a seu

ordenamento jurídico interno a definição legal de “discriminação contra a mulher”

(art. 1.º), assim como assumiu o compromisso em enviar ao Comitê Cedaw 13

13 Com o intuito de fiscalizar a aplicabilidade de suas recomendações aos Estados-partes, a

CEDAW em seu artigo 17 definiu a criação de um Comitê sobre a Eliminação da Discriminação

contra a Mulher, composto por 23 membros, eleito em votação secreta na Assembléia Geral da

ONU, por um mandato de quatro anos com o objetivo de analisar os relatórios que os países

enviam, descrevendo as medidas legislativas, judiciárias e administrativas que adotaram para

cumprir a Convenção.

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relatórios periódicos14

. No entanto, o governo brasileiro não fugiu à regra, pois a

ratificação ocorreu com reservas no artigo 15, § 4º. “Os Estados-partes

concederão ao homem e a mulher os mesmos direitos no que respeita à legislação

relativa ao direito das pessoas, à liberdade de movimento e à liberdade de escolha

de residência e domicílio” e, no artigo 16, § 1º (a), (c), (g) e (h).

Artigo 16

1. Os Estados-Partes adotarão todas as medidas adequadas para eliminar a

discriminação contra a mulher em todos os assuntos relativos ao casamento e

às relações familiares, em particular, com base na igualdade entre homens e

mulheres assegurarão:

a) O mesmo direito de contrair matrimônio;

b) O mesmo direito de escolher livremente o cônjuge e de contrair

matrimônio somente com livre e pleno consentimento;

c) Os mesmos direitos e responsabilidades durante o casamento e por

ocasião de sua dissolução;

d) Os mesmos direitos e responsabilidades como pais, qualquer que seja seu

estado civil, em matérias pertinentes aos filhos. Em todos os casos, os

interesses dos filhos serão a consideração primordial;

e) Os mesmos direitos de decidir livre e responsavelmente sobre o número

de seus filhos e sobre o intervalo entre os nascimentos e a ter acesso à

informação, à educação e aos meios que lhes permitam exercer esses direitos;

f) Os mesmos direitos e responsabilidades com respeito à tutela, curatela,

guarda e adoção dos filhos, ou institutos análogos, quando esses conceitos

existirem na legislação nacional. Em todos os casos, os interesses dos filhos

serão a consideração primordial;

g) Os mesmos direitos pessoais como marido e mulher, inclusive o direito de

escolher sobrenome, profissão e ocupação;

h) Os mesmos direitos a ambos os cônjuges em matéria de propriedade,

aquisição, gestão, administração, gozo e disposição dos bens, tanto a título

gratuito quanto a título oneroso.

2. Os esponsais e o casamento de uma criança não terão efeito legal e todas

as medidas necessárias, inclusive as de caráter legislativo, serão adotadas

para estabelecer uma idade mínima para o casamento e para tornar

obrigatória a inscrição de casamento em registro oficial. (Cedaw, 2004, p.

114-115)

Por tratar da igualdade no casamento e na família esses artigos estão

diretamente relacionados ao tema da violência doméstica contra a mulher

perpetrada pelo parceiro íntimo. No que tange a essa temática, em 1989 em seu 8º

período de sessões, a ONU aprovou a Recomendação Geral n.º 12, na qual

recomendou aos Estados-Partes que incluíssem em seus relatórios informações

14

Estabelece o artigo 18 da Cedaw: “Os Estados-Partes comprometem-se a submeter ao

Secretário-Geral das Nações Unidas, para exame do Comitê, um relatório sobre as medidas

legislativas, judiciárias, administrativas ou outras que adotarem para tornarem efetivas as

disposições desta Convenção e sobre os progressos alcançados a esse respeito:

a) No prazo de um ano a partir da entrada em vigor da Convenção para o Estado interessado; e

b) Posteriormente, pelo menos cada quatro anos e toda vez que o Comitê o solicitar.” (Cedaw,

2004, p.117)

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sobre a violência contra a mulher, assim como as medidas para seu enfrentamento,

visto que considera a violência contra a mulher “uma forma de discriminação que

impede gravemente o desfrute de seus direitos e liberdades em pé de igualdade

com o homem.” (Piovesan & Pimentel, 2002, p. 37)

O Comitê concluiu que os informes dos Estados-Partes nem sempre

refletiam de maneira apropriada a estreita relação entre a discriminação

contra as mulheres, a violência contra elas e as violações dos direitos

humanos e as liberdades fundamentais. Para o Comitê, a aplicação cabal da

Convenção exige que os Estados adotem medidas positivas para eliminar

todas as formas de violência contra a mulher. (Piovesan & Pimentel, 2002, p.

37) Grifo das autoras.

Nessa perspectiva, em 1992, em seu 11.º período de sessões, o Comitê

Cedaw aprovou a Recomendação Geral n.º 19 “A violência contra a mulher”, na

qual:

(...) dispõe expressamente que a definição de discriminação contra a mulher,

prevista no art. 1.º da Convenção, inclui a violência baseada no sexo, isto é, a

violência dirigida contra a mulher porque é mulher ou que a afeta de forma

desproporcional. Estabelece que a Convenção aplica-se à violência

perpetrada por autoridades públicas e por quaisquer pessoas, organizações ou

empresas, e que os Estados também podem ser responsáveis por atos

privados, se não adotam medidas com a devida diligência para impedir a

violação dos direitos ou para investigar e castigar os atos de violência e

indenizar as vítimas. (Piovesan & Pimentel, 2002, p. 37)

Em 1994, dez anos após sua ratificação, o Brasil notificou ao

Secretário-Geral da ONU a retirada dessas reservas. Essa decisão só foi possível

porque a Constituição Federal de 1988 consagrou, pela primeira vez na história

constitucional brasileira, a igualdade entre mulheres e homens como um direito

fundamental. (Pitanguy & Miranda, 2006, p.23)

Com o decorrer do tempo, o Comitê Cedaw constatou que para

realizar uma análise que pudesse apurar de forma efetiva o cumprimento da

Convenção pelos Estados-Partes necessitaria ampliar a possibilidade de obtenção

das informações fornecidas pelos Estados-Partes, visto que os relatórios

elaborados pelos governos, na maioria, não explicitava, de forma satisfatória,

elementos que possibilitavam uma análise consistente sobre a implementação das

recomendações da Cedaw. Além dessa dificuldade, havia Estados-Partes que

descumpriam o art. 18 da Convenção, como foi o caso do governo brasileiro que

levou 17 anos para enviar ao Comitê seu primeiro relatório. Para superar essa

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dificuldade foi criado o Protocolo Facultativo15

, aprovado pela ONU em 1999, no

qual permite que qualquer pessoa ou grupo de pessoas, vítimas de violação dos

direitos previstos na Convenção, possam denunciar o ocorrido diretamente ao

Comitê. Para Benevides a participação popular é a expressão da cidadania ativa e

a realização concreta da soberania popular. “Esta cidadania ativa supõe a

participação popular como possibilidade de criação, transformação e controle

sobre o poder, ou os poderes.” (Benevides, 2002, p. 20)

Somente em 2002, no governo do presidente Fernando Henrique

Cardoso16

(PSDB), o Brasil submeteu ao Secretário-Geral das Nações Unidas,

para análise do Comitê Cedaw, seu primeiro relatório incorporando o relatório

inicial (1985) e os quatro relatórios periódicos nacionais que estavam pendentes

de apresentação (1989, 1993, 1997 e 2001)17

. O Ministério das Relações

Exteriores coordenou a elaboração desse relatório, que teve como equipe

responsável o Consórcio formado pelas organizações da sociedade civil:

Advocaci, Agende, Cepia, Cfemea, Cladem18

, Gededés19

, NEV20

e Themis.

15

“É um mecanismo jurídico, adjunto a uma Convenção ou Pacto, que introduz aspectos não

contemplados na Convenção ou Pacto ao qual se refere. É um documento que está aberto à

ratificação dos Estados que já ratificaram a Convenção ou Pacto. Denomina-se opcional ou

facultativo porque os Estados não são obrigados a ratificá-lo, mesmo que tenham ratificado a

Convenção.” Disponível em:

http://www.iidh.ed.cr/comunidades/derechosmujer/docs/DM_DocumentosPub/protocoloportugues

.htm. Acesso em 25 jun. 2011. 16

Fernando Henrique Cardoso foi presidente do Brasil por dois mandatos consecutivos (de 1995 a

1998 e de 1999 até 2002) 17

O Relatório Nacional Brasileiro relativo aos anos de 1985, 1898, 1993, 1997 e 2001 encontra-se

disponível em: http://www.cladem.org/images/stories/portugues_Inf_alter/brazil/4._cedawbrasil_-

_estado.pdf. Acesso em 28 jun. 2011. 18

“O CLADEM, fundado em 1989, é uma rede regional de pessoas e organizações – com sede em

Lima, no Peru, e articulações nacionais em 14 países da América Latina e Caribe – que trabalha na

promoção, vigilância e defesa dos direitos humanos das mulheres, em uma perspectiva

sociojurídica de gênero e feminista. O Cladem tem status consultivo junto às Nações Unidas desde

1995 e está autorizado a participar das atividades da OEA desde 2002. Desenvolve diversas

atividades referentes a propostas legislativas, investigação, capacitação e campanhas, litígio

nacional e internacional, monitoramento aos Estados para cumprimento da normativa internacional

de direitos humanos, entre outras ações no campo dos direitos das mulheres. Em 2009, o Cladem

recebeu o prêmio Rei da Espanha de Direitos Humanos e, em 2010, o Prêmio Gruber de Direitos

das Mulheres. (www.cladem.org)” (Fernandes, 2010, p. 191). 19

Geledés Instituto da Mulher Negra é uma ONG, criado em 1988, por um conjunto de mulheres

negras, com o objetivo de combater a discriminação racial e de gênero na sociedade brasileira e

desenvolver propostas de políticas públicas que promovam a equidade de gênero e raça. Cf.:

http://www.geledes.org.br. e http://orgs.tigweb.org/geledes-instituto-da-mulher-negra. Acesso em

05 jun. 2011 20

“Criado durante a transição democrática, em 1987, o Núcleo de Estudos da Violência é um dos

Núcleos de Apoio a Pesquisa da Universidade de São Paulo. Uma das características do NEV/USP

é o caráter interdisciplinar de suas pesquisas, as quais giram em torno de uma questão teórica

comum: a persistência de graves violações de Direitos Humanos durante o processo de

consolidação democrática. O NEV/USP desenvolve projetos de pesquisas, cursos de extensão e

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Em 2003, já no governo Lula21

, a Secretaria Especial de Políticas para

as Mulheres (SPM) sistematizou e atualizou o Relatório Nacional submetido à

ONU em 2002, que foi apresentado, oralmente, pela, então, ministra Emília

Fernandes, da SPM na 29.ª Sessão do Comitê Cedaw realizada em 2003, onde

foram analisados os Relatórios do Brasil, da Costa Rica, do Equador, da França,

do Japão, do Marrocos, da Eslovênia e da Nova Zelândia. Além da ministra

Emília Fernandes, a delegação brasileira enviada à 29ª Sessão do Comitê Cedaw

era formada por oito integrantes, sendo seis representando o governo federal e

duas integrantes de ONG’s feministas: Iáris Ramalho Cortês (assessora técnica do

Cfemea e Leila Linhares Barsted – pesquisadora – Coordenadora técnica do grupo

de trabalho e coordenadora da Cepia). (Brasil, 2004b, p. 6)

No ano seguinte, a SPM publicou o documento intitulado

“Participação do Brasil na 29.ª Sessão do Comitê Para a Eliminação da

Discriminação Contra a Mulher – Cedaw” contendo o texto apresentado

oralmente pela ministra Emília Fernandes; as respostas da Delegação Brasileira às

questões e dúvidas levantadas; e as recomendações do Comitê ao Brasil, para a

eliminação da discriminação contra as mulheres. (Brasil, 2004b, p. 5)

Esta publicação visando cumprir com o compromisso assumido perante este

Comitê para divulgar o mais amplamente possível, a importância dos

mecanismos de proteção aos direitos humanos das mulheres, apresenta um

conjunto de documentos que retratam o processo de apresentação, argüição e

resposta do governo brasileiro junto a este Comitê. (Brasil, 2004b, p. 6 e 7)

Na apresentação oral do Relatório Nacional Brasileiro à 29.ª Sessão

do Comitê da Cedaw, a ministra Emília Fernandes:

(...) destaca as medidas legislativas, administrativas e judiciais adotadas pelo

Estado, a partir de 1985 em cumprimento a Cedaw, apresenta avanços e as

conquistas das mulheres brasileiras na luta pelos seus direitos; e aponta os

desafios para a sua implementação. Evidencia que, para a promoção e

proteção dos direitos das mulheres é fundamental superar orçamentos

exíguos, descontinuidades administrativas, atuações isoladas e políticas

fragmentárias. (Brasil, 2004b, p. 11 e 12)

atividades voltadas à promoção e proteção dos direitos humanos. Através da Comissão Teotônio

Vilela, o NEV também atua na denúncia de graves violações de direitos humanos e na promoção

do acesso universal aos direitos humanos.” Cf.:

http://www.nevusp.org/portugues/index.php?option=com_content&task=view&id=3&Itemid=3.

Acesso em: 05 jun. 2011. 21

O Presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) foi empossado em 1º de janeiro de 2003, exercendo

o cargo de presidente do Brasil por dois mandatos consecutivos (de 2003 a 2006 e de 2007 a

2010).

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Assim sendo, o referido Relatório baseou-se na Constituição Federal

de 1988, pois “constitui o marco jurídico da transição democrática e da

institucionalização dos direitos humanos no Brasil e acolhe os tratados e

convenções internacionais assinados, como parte do sistema normativo nacional”

(Brasil, 2004b, p. 15). Realizou, também, um resgate histórico a partir de 1985,

dando ênfase a atuação das organizações dos movimentos feministas e de

mulheres e do CNDM nas conquistas da Constituição Federal de 1988. Ainda no

campo legal o relatório ressalta o Novo Código Civil Brasileiro, que entrou em

vigor no ano de 2003.

Ainda no marco legal, cumpre assinalar a entrada em vigor, a partir de

janeiro de 2003, do Novo Código Civil Brasileiro que revogou o código de

1916, e adequando-se à nova Constituição, elimina normas discriminatórias

de gênero e introduz expressamente conceitos como o de direção

compartilhada, em vez de chefia masculina na sociedade conjugal; poder

familiar compartilhado, no lugar da prevalência paterna; substitui o termo

“homem”, quando usado, genericamente, pela palavra “pessoa”; permite ao

marido adotar o sobrenome da mulher; garante a união estável; reconhece a

igualdade de direito dos filhos gerados fora do casamento e estabelece que a

guarda dos filhos passa a ser do cônjuge com melhores condições de exercê-

la; dentre outros preceitos fundados na igualdade. (Brasil, 2004b, p.17)

O Relatório do governo brasileiro para o Comitê da Cedaw reconhece

também “a urgente e profunda reforma do Código Penal de 1940, pois este

contém artigos que discriminam negativamente as mulheres.” (Brasil, 2004b,

p.18). No campo temático, o Relatório apresenta os avanços nesses 17 anos,

dentre os quais a criação das Deams. Porém, admite que a ausência de uma Lei

específica que coíba a violência doméstica dificulta o cumprimento do disposto na

Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a

Mulher, ratificada pelo Brasil em 1995.

Na esfera institucional, ressalta a criação da Secretaria Especial de

Políticas para as Mulheres22

, da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da

Igualdade Racial23

e da Secretaria Especial de Direitos Humanos24

, vinculadas

22

A Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM) foi criada em 1.º de janeiro de 2003,

através da Medida Provisória 103, convertida na Lei 10.683/2003, cujo objetivo é desenvolver

ações conjuntas com todos os Ministérios e Secretarias Especiais, tendo como desafio a

incorporação das especificidades das mulheres nas políticas públicas e o estabelecimento das

condições necessárias para a plena cidadania. Maiores informações ver site:

http://www.sepm.gov.br. Acesso em 05 jun. 2011. 23

A Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) foi criada pelo

Governo Federal no dia 21 de março de 2003, em que se comemora o Dia Internacional pela

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diretamente à Presidência da República e com status de ministério, enquanto

mecanismos institucionais para lutar contra a discriminação.

Em outubro de 2003 o Comitê da Cedaw publicou o documento

“Recomendações do Comitê para a Eliminação de Todas as Formas de

Discriminação contra a Mulher (Cedaw) ao Governo Brasileiro”25

no qual

reconheceu os avanços do Brasil frente a Cedaw, principalmente por sua

Constituição Federal de 1988, assim como apresentou uma série de preocupações

e recomendações ao governo brasileiro em relação “as diferenças existentes entre

as garantias constitucionais de igualdade entre as mulheres e os homens e a

situação social, econômica, cultural e política em que se encontram de fato das

mulheres no Estado-Parte.” (Brasil, 2004b, p. 91). Também demonstrou

preocupação com que “ainda que os tratados internacionais de que o Brasil é parte

tenham sido incorporados à legislação interna, existe uma discordância no

judiciário e na doutrina jurídica em relação à situação desses tratados

internacionais e à sua aplicabilidade imediata.” (Brasil, 2004b, p. 91). O Comitê

recomendou, ainda, que a aplicação da Cedaw no Brasil seja realizada não apenas

no nível federal, mas também no âmbito estadual e na esfera municipal, “mediante

uma coordenação eficaz e o estabelecimento de um mecanismo para monitorar o

cumprimento das disposições da Convenção em todos os níveis e em todas as

áreas.” (Brasil, 2004b, p. 92)

Em relação especificamente ao tema da violência doméstica contra a

mulher, o Comitê da Cedaw apresentou suas preocupações sobre o Código Penal

brasileiro.

104. O Comitê expressa sua preocupação pelo fato de que o Código Penal

contenha ainda várias disposições que discriminam a mulher. Causam

preocupação os artigos 215, 216 e 219 em que, para ajuizar ao autor dos

delitos a que se referem esses artigos, se exige que a vítima seja uma “mulher

honesta”. Também causa preocupação que no artigo 107, em que são

abordados os “crimes contra os costumes”, seja prevista uma diminuição da

Eliminação da Discriminação Racial. Mais informações sobre a SEPPIR Cf.: site

http://www.seppir.gov.br/. Acesso em 05 jun. 2011. 24

A Secretaria Nacional dos Direitos Humanos foi criada na estrutura do Ministério da Justiça em

07.04.1997, através do Decreto n.º 2.193. Em 1.º de janeiro de 1999 foi transformada em

Secretaria de Estado dos Direitos Humanos, com assento nas reuniões ministeriais. A Secretaria

Especial dos Direitos Humanos foi criada pela Lei n.º 10.683, de 28 de maio de 2003, órgão que

trata da articulação e implementação de políticas públicas voltadas para a promoção e proteção dos

direitos humanos. Mais informações Cf.; http://www.direitoshumanos.gov.br/. Acesso em 05 jun.

2011. 25

Esse documento compõe o conjunto de documentos que retratam o processo de apresentação,

argüição e resposta do governo brasileiro junto ao Comitê da CEDAW. (Brasil, 2004)

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pena se o autor contrair matrimônio com a vítima ou se esta contrair

matrimônio com um terceiro. O Comitê tem conhecimento de que

anteprojetos de lei de reforma do Código Penal estão sendo discutidos no

Congresso Nacional.

105. O Comitê aconselha ao Estado-Parte que dê prioridade à reforma das

disposições discriminatórias contidas no Código Penal, sem demora, afim de

que fique em concordância com a Convenção, e leve em conta as

recomendações gerais do Comitê, em particular a recomendação geral 19,

referente à violência contra a mulher. (Brasil, 2004b, p. 92)

Mesmo reconhecendo a decisão adotada em 1991 pelo STJ em não

considerar jurídica a tese da “legítima defesa da honra”, o Comitê enfatizou sua

preocupação com o fato de que:

106. (...) o “judiciário continue algumas vezes aplicando a “legítima defesa

da honra” aos homens acusados de atacar ou assassinar mulheres. Preocupa

ao Comitê que essas decisões conduzam a graves violações dos direitos

humanos e tenham consequências negativas para a sociedade, ao fortalecer as

atitudes discriminatórias contra a mulher” (Brasil, 2004b, p. 92 e 93)

Ainda sobre o tema da violência doméstica contra a mulher, o Comitê

ressaltou a falta de informação e dados, assim como a ausência de uma lei

específica sobre a violência doméstica.

112. Sem deixar de reconhecer os esforços realizados para fazer frente à

violência contra a mulher, entre eles a implantação de Delegacias

Especializadas de Atendimento à Mulher (Deams) e as Casas Abrigo para

mulheres, o Comitê expressa preocupação pela persistente violência contra

mulheres e meninas, a violência doméstica e a violência sexual, a indulgência

com que são punidos os autores desses atos de violência e a ausência de uma

lei específica sobre a violência doméstica. O Comitê também expressa

preocupação pelo fato de que a violência contra a mulher, incluídas a

violência doméstica e a violência sexual, não seja abordada em grau

suficiente devido à falta de informação e de dados. (Brasil, 2004b, p. 94)

A partir desse conjunto de preocupações relacionadas ao

enfrentamento da violência doméstica contra a mulher, o Comitê da Cedaw

recomendou ao Governo Brasileiro:

113. O Comitê recomenda ao Estado-Parte adotar todas as medidas

necessárias para combater a violência contra a mulher, de conformidade com

a recomendação geral 19 do Comitê de prevenir a violência, punir os

agressores e prestar serviços às vítimas. O Comitê recomenda que o Estado-

Parte adote sem demora uma lei sobre a violência doméstica e tome medidas

práticas para acompanhar de perto e monitorar a aplicação de uma lei desse

tipo e avaliar sua eficácia. O Comitê solicita ao Estado-Parte que proporcione

informações gerais e dados sobre a violência contra a mulher em seu próximo

relatório periódico. (Brasil, 2004b, p. 94)

Isto posto, os avanços obtidos no cenário internacional pelo

movimento feminista, dentre os quais as conquistas adquiridas na Cedaw tem

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impulsionado o movimento feminista no Brasil e, em específico no estado do Rio

de Janeiro a exigir que no plano nacional e estadual sejam garantidos os direitos

conquistados no âmbito internacional.

4.2.2 A repercussão da Convenção de Belém do Pará no marco legal brasileiro

A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a

Violência contra a Mulher - Convenção de Belém do Pará26

- foi adotada pela

Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA)27

em 09 de

junho de 199428

e ratificada pelo Estado brasileiro em 27 de novembro de 1995.

A partir da ratificação da Convenção de Belém do Pará pelo Estado

brasileiro passamos a contar com dispositivo legal internacional que diz o

que é e como se manifesta esta forma específica de violência que atinge as

mulheres pelo simples fato de serem mulheres e de estarem inseridas em um

contexto histórico e cultural permissivo que propicia relações desiguais entre

mulheres e homens. (Libardoni & Massula, 2005, p. 13)

A Convenção de Belém do Pará “único instrumento internacional

voltado para tratar a violência de gênero” (Barsted, 2007a, p. 121) constitui-se,

portanto, num marco histórico na luta das mulheres por uma vida sem

discriminação e violência, ao definir a violência contra as mulheres. “Para os

efeitos desta Convenção, entender-se-á por violência contra a mulher qualquer ato

ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual

ou psicológico à mulher na esfera pública como na esfera privada.” (Libardoni &

Massula, 2005, p. 18).

Para Saffioti, gênero é uma categoria de análise, na qual:

26

A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher ficou

conhecida como Convenção de Belém do Pará, por ter sido aprovada na Assembléia Geral da OEA

realizada nesta cidade. Utilizaremos a expressão Convenção de Belém do Pará, no decorrer de

todo o texto, significando sempre a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a

Violência contra a Mulher. 27

“A Organização dos Estados Americanos (OEA) é uma organização internacional estabelecida

em 1948 para obter entre seus Estados membros, como indica o Artigo 1° da sua Carta, “uma

ordem de paz e de justiça, para promover sua solidariedade, intensificar sua colaboração e

defender sua soberania, sua integridade territorial e sua independência”. Hoje ela compreende os

35 Estados independentes das Américas e constitui o principal fórum governamental político,

jurídico e social do Hemisfério.” Disponível em: http://www.oas.org/pt/sobre/quem_somos.asp

Acesso em 23 jun. 2011. No âmbito das Nações Unidas a OEA constitui um organismo regional. 28

A Convenção de Belém do Pará está inserida no sistema regional-espacial, valendo apenas no

continente americano e no Caribe.

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“O gênero é o primeiro modo de dar significado às relações de poder” (Scott,

1990, p. 14). Por conseguinte, é ubíquo, permeando as instâncias do

simbólico, das normas de interpretação do significado dos diferentes

símbolos, da política institucional e da política lato sensu e da identidade

masculina ou feminina ao nível da subjetividade (Scott, 1990). Desta sorte,

embora o gênero não se consubstancie em um ser específico, por ser

relacional, atravessa e constrói a identidade do homem e da mulher. (Saffioti

& Almeida, 1995, p. 8)

Mas, também, é uma categoria histórica, que em seus termos, tem

demandado muito investimento intelectual por parte do/as pesquisadores e apesar

de haver várias abordagens, há consenso de que “(...) o gênero é a construção

social do masculino e do feminino.” (Saffioti, 2004, p. 45).

Diferentemente do sexo, o gênero é um produto social, aprendido,

representado, institucionalizado e transmitido ao longo das gerações. E,

segundo, envolve a noção de que o poder é distribuído de maneira desigual

entre os sexos, cabendo às mulheres uma posição subalterna na organização

da vida social. (Sorj, 1992, p. 15)

No entanto, há “necessidade de ampliar este conceito para as relações

homem-homem e mulher-mulher.” (Saffioti, 2004, p. 70) Nessa perspectiva,

“gênero concerne, preferencialmente, às relações homem-mulher. Isto não

significa que uma relação de violência entre dois homens ou entre duas mulheres

não possa figurar sob a rubrica de violência de gênero” (Saffioti, 2004, p. 71)

grifo da autora. Isto posto, a violência de gênero:

1) visa à preservação da organização social de gênero, fundada na hierarquia

e desigualdade de lugares sociais sexuados que subalternizam o gênero

feminino; 2) amplia-se e reatualiza-se na proporção direta em que o poder

masculino é ameaçado; 3) é mesclada com outras paixões com caráter

positivo, como jogos de sedução, afeto, desejo, esperança que, em última

instância, não visam abolir a violência, mas a alimentá-la, como forma de

mediatização de relações de exploração-dominação; 4) denuncia a fragilizada

autoestima de ambos os cônjuges, que tendem a se negar reciprocamente o

direito à autonomia nas mínimas ações.(Saffioti & Almeida, 1995, p. 159)

A violência de gênero ocorre em função do estabelecimento de um

território físico e simbólico que se organizam hierarquicamente, segundo uma

escala de poder. Para ilustrar essa escala, a autora, utiliza-se do exemplo figurado

pela “ordem das bicadas”.

A sociedade assemelha-se a um galinheiro, sendo, contudo, o galinheiro

humano muito mais cruel que o galináceo. Quando se abre uma fresta na tela

do galinheiro e uma galinha escapa, o galo continua dominando as galinhas

que restaram em seu território geográfico. Como o território humano não é

meramente físico, mas também simbólico, o homem, considerado todo-

poderoso, não se conforma quando sua mulher o abandona por não mais

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suportar seus maus-tratos. Qualquer que seja a razão do rompimento da

relação, quando a iniciativa é da mulher, isto constitui uma afronta para ele.

Na condição de macho dominador, não pode admitir tal ocorrência, podendo

chegar a extremos de crueldade. A sociedade, similarmente ao galinheiro,

também apresenta uma ordem das bicadas. (Saffioti, 2004, p. 62)

Ao conceituar a violência contra a mulher enquanto uma violência

baseada no gênero a Convenção de Belém do Pará reconhece que há violências

cometidas contra as mulheres apenas pelo fato de serem mulheres, que “não se

restringe à família, agregando outras situações: o estupro por estranhos, os

assédios sexuais no trabalho, o tráfico de mulheres, a prostituição forçada entre

outras.” (Schraiber, 2005, p. 29) e que são consequências de uma sociedade em

que prevalece a desigualdade de gênero.

Nessa perspectiva, segundo a autora a dimensão simbólica é

fundamental para a compreensão da violência doméstica enquanto uma

modalidade da violência de gênero.

Forjada em um campo de forças mais amplo, vivida em limites geográficos

extremamente restritos, com as características peculiares assinaladas, a ordem

simbólica favorece o exercício da exploração e da dominação, por limitar a

possibilidade de apreensão de novos referenciais simbólicos e de construção

de alianças. Dessa forma, a família e o espaço doméstico apresentam-se

como território propício para a reprodução da violência de gênero. Com esta

argumentação, pretende-se sustentar a concepção de que a violência instala-

se na família e, na medida em que esta é hierarquizada, atinge, em diferentes

níveis e intensidades, os seus membros que se encontram em posições

subalternizadas. Ainda que não se apresente para todos em sua expressão

física, a violência simbólica – altamente eficaz – é extensiva a outros

membros da família, sobretudo às gerações imaturas e aos idosos, na

qualidade de vítimas ou de testemunhas, porquanto partícipes dessas

relações.

A violência de gênero (sobretudo a restrita à dimensão simbólica), uma vez

instalada no seio de relações familiares, tende a se reproduzir de forma

ampliada, sob o olhar complacente da sociedade, do poder público e dos

técnicos envolvidos nesse campo, prescindindo de justificativas para seu

exercício cotidiano contra suas vítimas preferenciais. Se a violência visa a

abrir caminho para maior efetividade da dominação, o que significa dizer –

reitera-se – que não se dirige a seres passivos mas àqueles capazes de oporem

resistência, a sua reprodução contínua tende a acentuar a heteronomia, a

fragilizar sobremaneira a autoestima dos seus protagonistas, a provocar

sintomas psicossomáticos e a levar à crescente passividade das suas vítimas.

A passividade é, antes, consequência e não causa da violência de gênero

institucionalizada. (Almeida, 2007, p. 29-30)

A Convenção de Belém do Pará reconhece que a violência é um

fenômeno que afeta todas as dimensões da vida da mulher, dentre as quais, a

família, a escola, o trabalho, a comunidade, independente do grupo social,

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econômico, religioso ou cultural. A autora entende que “a violência de gênero,

gerada no interior de disputas pelo poder em relações íntimas, visa a produzir a

heteronomia, a potencializar o controle social e, em última análise, a reproduzir a

matriz hegemônica de gênero na sua expressão microscópica.” (Almeida, 2007, p.

28).

O artigo 2.º da referida Convenção define a tipologia, os espaços e as

relações privilegiadas em que esta violência pode ocorrer.

Entende-se que a violência contra a mulher abrange a violência física, sexual

e psicológica:

a) ocorrida no âmbito da família ou unidade doméstica ou em qualquer

relação interpessoal, quer o agressor compartilhe, tenha compartilhado ou

não a sua residência, incluindo-se, entre outras formas, o estupro, maus tratos

e abuso sexual;

b) ocorrida na comunidade e cometida por qualquer pessoa, incluindo, entre

outras formas, o estupro, abuso sexual, tortura, tráfico de mulheres,

prostituição forçada, sequestro e assédio sexual no local de trabalho, bem

como em instituições educacionais, serviços de saúde ou qualquer outro

local; e

c) perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde quer que ocorra.

(Libardoni & Massula, 2005, p. 19)

Essa definição é de suma importância porque ao tratar da violência no

âmbito privado, conhecida como violência doméstica, em que os agressores são

geralmente parentes ou pessoas próximas do convívio familiar, reconhece que a

violação dos direitos humanos mesmo acontecendo no âmbito da família ou da

unidade doméstica diz respeito à sociedade e ao poder público. (Libardoni &

Massula, 2005; Almeida, 2007)

Os artigos 3, 4, 5 e 6 da Convenção de Belém do Pará tratam dos

direitos a serem respeitados, protegidos e implementados na esfera nacional,

dentre os quais o direito a viver livre de toda forma de discriminação, portanto,

ratifica que a violência é um obstáculo aos direitos humanos das mulheres e neste

sentido, viver sem violência significa, dentre outros, o direito a viver livre de toda

forma de discriminação. Assim sendo, o conceito de violência contra a mulher

deve ser articulado ao conceito de “discriminação contra a mulher” definida pela

Cedaw.

Artigo 3.º - Toda mulher tem direito a uma vida livre de violência, tanto na

esfera pública como na esfera privada. (...)

Artigo 4.º Toda mulher tem direito ao reconhecimento, desfrute, exercício e

proteção de todos os direitos humanos e liberdades consagrados em todos os

instrumentos regionais e internacionais relativos aos direitos humanos. Estes

direitos abrangem, entre outros:

a) direito a que se respeite sua vida;

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b) direito a que se respeite sua integridade física, mental e moral;

c) direito à liberdade e à segurança pessoais;

d) direito a não ser submetida a tortura;

e) direito a que se respeite a dignidade da sua pessoa e a que se proteja sua

família;

f) direito a igual proteção perante a lei e da lei;

g) direito a recurso simples e rápido perante tribunal competente que a

proteja contra atos que violem seus direitos;

h) direito de livre associação;

i) direito à liberdade de professar a própria religião e as próprias crenças, de

acordo com a lei; e

j) direito a ter igualdade de aceso às funções públicas de seu país e a

participar nos assuntos públicos, inclusive na tomada de decisões. (...)

Artigo 5.º Toda mulher poderá exercer livre e plenamente seus direitos civis,

políticos, econômicos, sociais e culturais, e contará com a total proteção

desses direitos consagrados nos instrumentos regionais e internacionais sobre

direitos humanos. Os Estados-Partes reconhecem que a violência contra a

mulher impede e anula o exercício desses direitos. (...)

Artigo 6.º O direito de toda mulher a ser livre de violência abrange, entre

outros:

a) o direito da mulher a ser livre de todas as formas de discriminação; e

b) o direito da mulher a ser valorizada e educada livre de padrões

estereotipados de comportamento e costumes sociais e culturais baseados

em conceitos de inferioridade ou subordinação. (Libardoni & Massula,

2005, p. 20-22)

Os artigos 7 e 8 tratam respectivamente dos deveres dos governos dos

Países-Membros que aderem a Convenção de adotar medidas imediatas e

progressivas para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, dentre as

quais a promoção de mudanças na legislação. No artigo 9 a Convenção reconhece

que há diferenças entre as mulheres e que, portanto, é dever do Estado-Parte

adotar medidas levando em consideração a situação de vulnerabilidade à violência

das mulheres, dentre outros, em função da cor, da raça, da condição de migrante

ou de refugiada.

A Convenção exige que os governos dos Países-Membros, assim como

ocorreu com a Cedaw, prestem contas, através de relatórios, para a Comissão

Interamericana de Mulheres (CIM)29

, que é um órgão da OEA, sobre as medidas

adotadas para prevenir e erradicar a violência contra a mulher, reconhecendo

assim o arbítrio da Corte Interamericana de Direitos Humanos (art. 11). Além

29

“Establecida em 1928, La Comisión Interamericana de Mujeres (CIM) fue el primer órgano

intergubernamental creado com el propósito de asegurar el reconocimento de los derechos civiles,

políticos, económicos, sociales y culturaless de las mujeres. La CIM está constituída por 34

Delegadas Titulares, uma por cada Estado miembro de La OEA y se ha convertido em el principal

foro de debate y de formulación de políticas sobre los derechos de las mujeres y La igualdad de

gênero em las Américas. htpp://www.oas.org/ES./cim/nosotros.asp. Acesso em 08 out. 2011

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disso, assim como ficou estabelecido no Protocolo Facultativo da Cedaw, a

Convenção de Belém do Pará, em seu artigo 12 garante que qualquer pessoa,

grupo de pessoas ou ONG pode apresentar à Comissão Interamericana de Direitos

Humanos petições referentes a denúncias ou queixas de violação prevista na

referida Convenção.

Artigo 10 – A fim de proteger o direito de toda mulher a uma vida livre de

violência, os Estados-Partes deverão incluir nos relatórios nacionais à

Comissão Interamericana de Mulheres informações sobre as medidas

adotadas para prevenir e erradicar a violência contra a mulher, para prestar

assistência â mulher afetada pela violência, bem como sobre as dificuldades

que observarem na aplicação das mesmas e os fatores que contribuem para a

violência contra a mulher. (...)

Artigo 11 – Os Estados-Partes nesta Convenção e a Comissão

Interamericana de Mulheres poderão solicitar à Corte Interamericana de

Direitos Humanos sobre a interpretação desta Convenção. (...)

Artigo 12 – Qualquer pessoa ou grupo de pessoas, ou qualquer entidade não-

governamental juridicamente reconhecida em um ou mais Estados-Membros

da Organização, poderá apresentar à Comissão Interamericana de Direitos

Humanos petições referentes a denúncia ou queixas de violação do artigo 7

desta Convenção por um Estado-Parte, devendo a Comissão considerar tais

petições de acordo com as normas e procedimentos estabelecidos na

Convenção Americana sobre Direitos Humanos e no Estatuto e

Regulamentação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, para a

apresentação e consideração de petições. (Libardoni & Massula, 2005, p. 25)

Neste sentido, no Brasil, a Convenção de Belém do Pará representou

“uma ferramenta jurídica poderosa no enfrentamento da violência contra as

mulheres, a qual foi utilizada com êxito, pelas organizações da sociedade civil, no

que se refere à denúncia sobre a violência doméstica contra as mulheres no país.”

(Pandjiarjian, 2006, p. 87)

Os direitos das mulheres foram garantidos também na Conferência

Mundial de Direitos Humanos, realizada em junho de 1993, em Viena. Nessa

Conferência, pela primeira vez os direitos das mulheres foram reconhecidos

enquanto direitos humanos. Estabelece o seu artigo 18:

Os direitos humanos das mulheres e das meninas são inalienáveis e

constituem parte integrante e indivisível dos direitos humanos universais (...).

A violência de gênero e todas as formas de assédio e exploração sexual (...)

são incompatíveis com a dignidade e o valor da pessoa humana e devem ser

eliminadas (...) Os direitos humanos das mulheres devem ser parte integrante

das atividades das Nações Unidas (...), que devem incluir a promoção de

todos os instrumentos de direitos humanos relacionados à mulher.

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Na Declaração aprovada pelos governos, dentre os quais o Brasil, que

participaram da IV Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada em Beijing no

ano de 1995, reafirmam o compromisso, dentre outros, de garantir:

A igualdade de direitos e da dignidade humana inerente a mulheres e

homens e aos demais propósitos e princípios consagrados na Carta das

Nações Unidas, a Declaração Universal dos Direitos Humanos e outros

instrumentos internacionais de direitos humanos, em particular a Convenção

sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres

e da Convenção sobre os Direitos da Criança, bem como a Declaração sobre

a Eliminação da Violência contra as Mulheres e na Declaração sobre o

Direito ao Desenvolvimento. Disponível em:

http://www.un.org/womenwatch/daw/beijing/beijingdeclaration.html. Acesso

em 18 fev. 2010

Em função da persistência da violência contras as mulheres e contra as

meninas, as Conferências Internacionais da década de 1990: a Conferência de

Direitos Humanos realizada em Viena/1993, a Conferência sobre População e

Desenvolvimento (Cairo/1994) e a IV Conferência Mundial sobre a Mulher

(Beijing/1995), declararam em seus textos a preocupação com a segurança das

mulheres e a urgência dos Estados-Membros da ONU inserirem em suas agendas

nacionais, dentre outras questões: a equidade de gênero, a implantação e

implementação de políticas públicas voltadas para o enfrentamento da violência

contra as mulheres e as meninas. (Barsted, 2007a, p. 123)

Nesse processo é incontestável a atuação decisiva do movimento de

mulheres e feminista internacional na elaboração do sistema especial de proteção,

no âmbito da ONU e da OEA sobre a equidade de gênero e em relação às

violências sofridas pelas mulheres, em especial a violência doméstica contra a

mulher. No entanto, merece atenção o depoimento de Branca Moreira Alves sobre

a importância das Conferências Mundiais.

Essa década de 90 foi uma década super importante porque a ONU estava à

frente das grandes Conferências Internacionais (Conferência de população,

Conferência do meio ambiente, da mulher). Outro dia, eu estava pensando

assim: como nós éramos, como o mundo ainda era bom pré 11 de Setembro.

A gente acreditava, na década de 90, que a gente iria mudar o mundo com as

Plataformas de Ação das Nações Unidas. (Alves, 2007)

O depoimento de Branca Moreira Alves demonstra o grau de

expectativa que as militantes dos diversos movimentos sociais, dentre os quais o

movimento de mulheres e feminista brasileiro tinha em relação à implantação

desse sistema especial de proteção no país e, em específico, no estado do Rio de

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Janeiro. Esse sentimento, em última instância, nos ajuda a compreender as

estratégias utilizadas por esses segmentos sociais na luta pelos direitos das

mulheres com base nas Declarações e Convenções das Conferências da ONU.

4.3 Os direitos das mulheres no marco legal brasileiro

Além das conquistas internacionais, já apresentadas, a construção da

agenda do movimento de mulheres e feminista no campo das políticas públicas

voltadas para a equidade de gênero e o processo de redemocratização no País,

constituíram-se o solo fértil para que o tema da violência doméstica contra a

mulher ganhasse espaço na agenda governamental. Conforme apresentamos no

capítulo anterior, no âmbito federal essa incorporação ocorreu no governo José

Sarney e no estado do Rio de Janeiro, no primeiro mandato do governo Brizola.

Vale ressaltar que, o conjunto de reivindicações que pautaram a

agenda do movimento feminista e de mulheres, a partir do final da década de

1970, no Brasil, para o enfrentamento da violência contra a mulher no campo das

políticas públicas girou em torno da criação de organismos institucionais, com

destaque para a criação da Deam, enquanto um serviço especializado no

Atendimento à Mulher, e a criação de Conselhos de Direitos da Mulher, tanto na

esfera federal, quanto nas unidades da União. “Em tese, políticas públicas

implicam a geração de um conjunto de medidas que pressupõem uma certa

permanência, coerência e articulação dos distintos poderes e esferas de governo.”

(Barsted, 2007a, 119)

Para tanto, “um elemento fundamental na demanda por políticas

públicas sociais é a formalização de direitos garantidos por lei. Esse é o

pressuposto necessário para legitimar e fortalecer as ações em prol de políticas

públicas” (Barsted, 2007a, p. 119). Nesse tempo histórico (1986-2006) o

movimento de mulheres e feminista atuou junto ao poder legislativo, através dos

mandatos parlamentares feministas e da pressão política para a elaboração de leis

que tratassem do tema da violência contra a mulher.

Iremos apresentar a evolução do marco legal sobre o tema, a partir da

atuação da Bancada Feminina na Câmara Federal e na Assembléia Legislativa do

estado do Rio de Janeiro.

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4.3.1 A Bancada Feminina na Câmara dos Deputados

Apesar das conquistas das mulheres no Brasil ainda prevalece a

desigualdade entre os sexos da participação das mulheres nos diversos espaços de

poder. No que se refere especificamente à participação feminina no poder

legislativo federal30

, cabe registrar que de 193231

até as eleições de 1978 o número

de deputadas eleitas foi mínimo ou mesmo inexistente, com exceção apenas da

legislatura32

de 1967-1971 que teve a presença de seis deputadas federais, eleitas,

em sua maioria, pelo MDB, partido de oposição, conforme demonstra a Tabela

9.1.1: Câmara dos Deputados – Mulheres e Homens Eleito/as a partir da

Conquista do Voto Feminino, anexo 9.1, p. 293.

Nos primeiros 50 anos em que as mulheres conquistaram o direito de

votar e de serem votadas no Brasil, tivemos apenas a presença de 12 mulheres

exercendo o cargo de deputada federal no país, com destaque para Ivete Vargas

(PTB/SP) eleita pela primeira vez em 1950, impulsionada pelo presidente Getúlio

Vargas, seu tio-avô, e reeleita por mais quatro mandatos, exercendo o cargo por

20 anos ininterruptos. O Rio de Janeiro, com três deputadas, foi o estado que teve

o maior número de parlamentares na Câmara Federal nesse período.

Nas eleições de 1982 oito deputadas federais vencem as eleições,

sendo cinco parlamentares eleitas pelos partidos de oposição (três pelo PMDB e

duas pelo PT). Vale lembrar, ainda, que nesse contexto eleitoral o movimento

feminista consagrou-se enquanto ator político.

No pleito eleitoral de 198633

apesar de não eleger nenhuma senadora, o

percentual da Bancada Feminina na Câmara Federal mais do que triplica, saltando

de 1,67% para 5,13%, com a vitória de 25 mulheres para a Assembleia Nacional

30

Sobre a participação da mulher no Parlamento Federal de 1932 até 2011, cf.: AZEVEDO, D. B.

de.; RABAT, M. N. (orgs.) Palavra de mulher: oito décadas do direito ao voto. Brasília: Câmara

dos Deputados, Edições Camara, (Série obras comemorativas. Homenagem; n. 2), 2011.

Disponível em: < http://bd.camara.gov.br/bd/handle/bdcamara/7367> Acesso em 10 dez.2011 31

Nesse ano as mulheres brasileiras conquistaram o direito de votar e de serem votadas 32

Legislatura “é o período da atividade parlamentar, estabelecido a partir de eleições diretas e tem

a duração de quatro anos (mandato dos deputados).” Disponível em:

http://www.alerj.rj.gov.br/arquivo.htm. Acesso em 04 agost. 2011 33

As informações foram obtidas no site da câmara dos deputados, disponíveis em:

http://www.camara.gov.br. Acesso em 26 jun. 2011

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136

Constituinte34

, trazendo para dentro da Câmara Federal um conjunto de

experiências somente possível com a presença feminina que a partir de então

demandou para a Presidência da Casa reivindicações específicas, tendo como

rebatimento o enfrentamento de preconceitos de todos os tipos, conforme narra a

ex-deputada Constituinte Anna Maria Rattes, em entrevista à autora, sobre a

reivindicação de construção de banheiros femininos nos gabinetes e no plenário

da Câmara Federal.

Nós chegamos lá e não havia banheiro feminino. Essa história toda é muito

interessante, folclórica, mas é verdade. Nós fomos pedir ao Presidente da

Casa banheiro e gabinetes com banheiros no anexo 4. Muitos Deputados

disseram: “Ah! Elas já chegam aqui querendo privilégios, disseram que vêm

para cá para serem iguais a gente, mas já chegam querendo privilégios”. Aí

nós dissemos: “Mas, aonde que querer um banheiro feminino é privilégio?!”.

Quer dizer, a cabeça dos homens funcionava de uma maneira inteiramente

viciada nessa cultura machista (Rattes, 2010).

No entanto, a incorporação da grande maioria das propostas das

mulheres na Constituição Federal de 1988 através da atuação do Lobby do Batom,

evidenciou a força da Bancada Feminina tanto no que diz respeito a sua

capacidade de movimentação dentro do Congresso, quanto seu potencial de

articulação junto aos segmentos da sociedade civil, principalmente com o

movimento de mulheres e feministas. Esse processo, segundo Anna Maria Rattes,

em entrevista à autora, trouxe mudanças significativas na relação dos deputados

com a Bancada Feminina após a promulgação da Constituinte.

Quando acabou o processo Constituinte em que foi promulgada a

Constituição, nós ainda tínhamos dois anos de Mandato e aí eles passaram a

nos respeitar tanto que quando queriam aprovar alguma coisa, diziam: vamos

falar com o lobby do batom, a bancada do batom, porque aí se elas toparem o

negócio sai. Porque a gente se movimentava e articulava muito bem dentro

da Casa. Isso pra eles foi uma surpresa. Cada mulher que chegou lá, eu acho

que tinha sua plataforma específica, partidária, seus compromissos locais

com o seu Mandato, mas todas, sem exceção, assumiram o fato de ser Mulher

como uma coisa prioritária, brigando por esse espaço. Então, se você me

pergunta assim: O quê que nós fomos fazer lá? Mais do que tudo, provar que

34

A Bancada Feminina foi constituída por 25 deputadas eleitas por 16 estados brasileiros,

distribuídos pelas regiões brasileiras com exceção da região sul do país. O estado do Rio de

Janeiro elegeu três deputadas (Benedita da Silva pelo PT – primeira mulher negra eleita para a

Câmara Federal -, Ana Maria Rattes (PMDB) e Sandra Cavalcanti pelo PFL O Diap publicou o

livro Quem foi Quem na Constituinte, registrando a atuação de cada um dos 573 parlamentares

durante o processo de elaboração da Constituição de 1988. “Aos parlamentares foram atribuídas

notas de zero a dez. As questões fundantes para essa avaliação concentraram-se nas votações de

projetos com os seguintes temas: sistema de governo, soberania da economia nacional, reforma

agrária e, sobretudo, direitos sociais dos trabalhadores.” Disponível em

http://www.diap.org.br/index.php/index.php?option=com_jdownloads&Itemid=262&task=viewcat

egory&catid=14. Acesso em 16 jun. 2010.

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a Mulher naquele tempo já podia. Entendeu? Hoje é tão moderno dizer isso,

mas dizer que já naquele tempo a Mulher podia, querendo podia. E nós

provamos que podíamos e aprovamos a nossa pauta quase que na sua

totalidade. Aquela pauta aprovada, eu acho que deu um fortalecimento a

todas as instituições femininas. (Rattes, 2010).

Não obstante, nas eleições de 1990 até 1998 houve uma estagnação do

percentual de deputadas eleitas. No pleito de 2002 o número cresce para 42

deputadas eleitas e nas duas eleições seguintes são eleitas em cada legislatura 45

deputadas (Tabela 9.1.1). Apesar desse crescimento, até as últimas eleições (2010)

as brasileiras não conseguiram alcançar o percentual de 10% da representação

parlamentar federal demonstrando a pequena representatividade feminina no

legislativo federal. Essa representatividade fica ainda menos expressiva se

compararmos com o quantitativo de mulheres eleitoras, visto que, nesse período, o

eleitorado feminino no País foi crescendo, ultrapassando, a partir das eleições de

2002, o número de eleitores masculinos, constituindo-se, portanto, mais da metade

do eleitorado nacional, chegando a 51.82% do eleitorado em 2010, conforme

demonstra a tabela 04.

Tabela 04: Estatística do Eleitorado por Sexo Pesquisa Brasil – 1990 a 2010

Ano Masculino

(M)

%

M/T

Feminino

(F)

%

F/T

Não

Informado

(N)

%

N/T Total (T)

1990 42.400.684 50,59 41.082.440 49,01 334.469 0,4 83.817.593

1994 47.681.889 50,31 46.804.055 49,38 296.859 0,31 94.782.803

1998 53.033.650 49,98 52.794.597 49,76 272.820 0,26 106.101.067

2002 56.431.672 48,96 58.604.571 50,85 217.591 0,19 115.253.834

2006 60.690.555 48,29 64.822.477 51,57 176.624 0,14 125.689.656

2010 65.282.007 48,07 70.373.970 51,82 148.453 0,11 135.804.430

Fonte: http://www.tse.jus.br/eleicoes/estatisticas-do-eleitorado/distribuicao/estatistica-do-

eleitorado-por-sexo-e-faixa-etaria. Acesso em 03 nov. 2011.

Tabela adaptada pela Autora.

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Esses dados por si só demonstram que há uma discrepância entre o

percentual de mulheres eleitoras e o índice das parlamentares do sexo feminino,

gerando um déficit democrático de gênero, que em última instância, ratifica a

desigualdade de gênero na sociedade brasileira.

No Parlamento Federal o tema da participação política da mulher

esteve presente nos pronunciamentos dos parlamentares apenas quando das

comemorações do Dia Internacional da Mulher, segundo Miguel (2000). Emergiu,

com maior ênfase, no Congresso Nacional quando da apresentação da proposta de

adoção de cotas para mulheres nas listas de candidaturas dos partidos, que tinha

como objetivo ampliar a representação política feminina, no âmbito do legislativo,

em função do déficit democrático de gênero.

A primeira tentativa para assegurar a política de cotas para as

candidaturas de mulheres, no Brasil, foi em 1993, através de uma emenda de

autoria do Deputado Marco Penaforte (PSDB/CE), que foi rejeitada sem discussão

e sem a participação do movimento feminista brasileiro no debate. Em 1995, no

contexto da discussão sobre a lei eleitoral que regulamentou as eleições para

Prefeituras e Câmaras Legislativas Municipais, o tema ganhou intenso debate no

âmbito do legislativo federal com a apresentação na Câmara e no Senado Federal

de várias propostas e as Bancadas Femininas dessas Casas “trabalharam

articuladas para a aprovação de um artigo na legislação eleitoral que assegurasse a

cota mínima para candidatura de mulheres” (Miguel, 2000, p. 24) e em setembro

foi aprovada a lei n.º 9.10035

(Brasil, 1995b) tendo em vista apenas as eleições

municipais de 1996. No final de 1997, foi votada a lei n.º 9.50436

(Brasil, 1997)

ampliando a cota de vagas de 20% para 30%, ou seja, uma cota mínima de 30% e

máxima de 70% asseguradas para qualquer um dos sexos, ficando definido um

número mínimo de 25% de vagas, transitoriamente em 1998.

A “Lei de Cotas” foi aprovada na Câmara Federal após uma forte negociação

com políticos do sexo masculino resultando uma distorção profunda. Para

compensar uma cota de 20% para as mulheres, os partidos políticos exigiram

a ampliação do total de vagas, isto é, se o total era X ele passou a ser X +

20%. Ou seja, o número de vagas para candidatos cresceu de 100% para

100% + 20%. Nos anos seguintes, como a cota subiu para 25% e 30%

respectivamente, o número de vagas também cresceu na mesma percentagem.

35

Art. 11 § 3.º “Vinte por cento, no mínimo, das vagas de cada partido ou coligação deverão ser

preenchidas por candidaturas de mulheres.” 36

Art. 10 §3.º “Do número de vagas resultante das regras previstas neste artigo, cada partido ou

coligação deverá reservar o mínimo de trinta por cento e o máximo de setenta por cento para

candidaturas de cada sexo”.

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A título de exemplo, se um partido político tivesse o direito de apresentar 100

candidatos, em decorrência da Lei de Cotas ele pode, atualmente, apresentar

130 candidatos. (Blay, 2002, p. 59)

É inegável, porém, que essa política busca reequilibrar a participação

política das mulheres nos espaços de poder “(...) a partir do momento em que em

diferentes partes do mundo, se percebe a distância entre o discurso da igualdade

entre homens e mulheres e a igualdade na vida de mulheres e homens” (Miguel,

2000, p. 15). Ressalta a autora:

Da mesma forma que a conquista do direito das mulheres ao voto e à

elegibilidade faz parte de um processo mundial, a conquista de cotas por sexo

em processos eleitorais também se dá em diferentes países e vai, aos poucos,

colocando-se como uma forma incisiva de se fazer política. Uma política de

ação direta, que interfere nas hierarquias das estruturas de poder e altera

imediatamente as relações desiguais estabelecidas entre homens e mulheres.

Estas políticas interferem, modificam, trazem o outro, no caso a outra, para a

cena. Contribuindo para mesclar o mundo de mulheres e homens. (Miguel,

2000, p. 19)

Tanto Blay (2002) quanto Miguel (2000) afirma que a atuação de

diversas representantes do movimento feminista foi importante para a aprovação

da Lei 9.504/97 (Lei de Cotas), quer seja dialogando permanentemente com os

deputados; participando como convidadas de Audiências Públicas na Câmara e no

Senado; assessorando a formulação dos pareceres sobre as propostas apresentadas,

quer seja dando visibilidade a esse tema no conjunto da sociedade brasileira.

Apesar de tudo isso, Blay (2002) ressalta que no Brasil é dada pouca

relevância à Lei de Cotas, isso porque seu debate durante o processo da

elaboração da Constituição Federal de 1988 ficou restrito ao âmbito do legislativo,

com pouca quantidade de discussão com a sociedade civil, especialmente com o

movimento de mulheres. Para ratificar a pouca importância, a autora constata que

“até mesmo no âmbito acadêmico a Lei de Cotas é pouco conhecida como se pode

constatar através da literatura – há raros trabalhos sobre o tema (Araújo 1999;

Miguel 2000) ou via contatos diretos com o corpo docente”. (Miguel, 2002, p.

60). A inoperância da Lei também ocorre nas eleições para a Câmara Federal nos

pleitos eleitorais após sua vigência, conforme atesta a Tabela 9.1.2: Tabela

comparativa - eleições 2010-2006-2002-1998-1994 (Câmara dos Deputados –

Candidaturas de Mulheres por Partidos Políticos), anexo 9.1, p.294.

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O tema da participação da mulher nos níveis de tomada de decisões na

vida política tanto nos órgãos indicados, como nos escolhidos, fez parte das

preocupações do Comitê da Cedaw (Brasil, 2004b, p. 95 e 96). A perspectiva do

Comitê é que o Brasil consiga uma representação equilibrada entre homens e

mulheres. Para tanto, o Comitê recomenda a adoção de uma ampla estratégia para

imprimir maior velocidade nesse campo, recomendando, inclusive o

estabelecimento de penas e sanções “O Comitê recomenda (...) sejam

estabelecidas sanções e outros meios eficazes para apoiar a implementação.”

(Brasil, 2004b, p.95-96)

Uma lei desse tipo suporia, se houvesse uma adesão substantiva dos partidos

políticos, a preparação e incentivo, inclusive sustentação financeira das

campanhas das mulheres. Isso não significa que as mulheres não atuem

politicamente, ao contrário, são elas as responsáveis por grande parte do

trabalho de base, organização, contatos diretos com os/as eleitores/as,

propaganda e administração. O mais grave está em que os partidos não

desenvolveram nenhuma estratégia para socializar o conhecimento de

mecanismos eleitorais, nem mesmo divulgar, com a devida antecedência, a

possibilidade de candidaturas femininas. A maioria das que ousaram entrar

na arena eleitoral não teve nenhum apoio intra-partidário. (Blay, 2002, p. 60)

O problema, também, está no fato de que os partidos têm dificuldade

de encontrar no quadro do/as seus/suas filiado/as, mulheres que se disponibilizam

em candidatar-se aos cargos eletivos. De qualquer forma, tanto pela falta de

estratégia dos partidos para viabilizar candidaturas femininas, quanto pelo fato das

militantes responderem negativamente ao convite feito pelas direções partidárias,

o resultado, sem dúvida, é o número pequeno de parlamentares mulheres na

Câmara Federal, evidenciando que no Brasil continua em alto grau o desequilíbrio

entre os sexos nas instâncias de poder (Tabela 9.1.3: Tabela comparativa –

Eleições 2010 – 2006 – 2002 – 1998 – 1994 (Câmara dos Deputados – Mulheres

Eleitas por Partido Político, anexo 9.1, p.295).

Ao compararmos os dados do quantitativo de mulheres candidatas

(Tabela 9.1.2) com o número de deputadas eleitas (Tabela 9.1.3) para a Câmara

Federal, começando pela eleição anterior à Lei de Cotas (1994) observamos que a

partir de 1998 (período pós-Cotas) há crescimento do número de candidatas,

mesmo sendo muito inferior ao percentual de 30%. Entretanto, apesar do aumento

das deputadas eleitas, a referida Lei não resultou, na mesma proporção, na eleição

de mulheres para o cargo de deputada federal. Não obstante, cabe destacar que a

representação das mulheres significa um elemento transformador na política e

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que, portanto, a adoção de políticas de cotas, deve ser analisada para além da

questão quantitativa.

As mulheres devem se fazer representar não porque sejam os vetores de uma

“política desinteressada” mas, ao contrário, porque possuem interesses

especiais, legítimos, ligados ao gênero, que precisam ser levados em conta.

Quando o sistema político está estruturado de forma tal que veda ou

obstaculiza a expressão destes interesses (ou de quaisquer outros), ele se

revela injusto. (Miguel [199-] apud Miguel, 2000, p. 171)

Assim sendo, se é verdade que a Lei de Cotas contribuiu para o

aumento da participação feminina no âmbito do legislativo, mesmo que tímido, é

verdadeiro também frisar que não é suficiente. É fundamental que a Bancada

Feminina e os deputados alinhados com a causa das mulheres intensifiquem o

debate no Parlamento sobre as questões voltadas para o enfrentamento da

desigualdade de gênero, a começar pela discussão sobre a construção de

estratégias visando potencializar a participação das mulheres, conforme

recomenda o Comitê da Cedaw ao Estado brasileiro, em posições de tomada de

decisão na vida política.

4.3.2 A atuação do CNDM na Constituição Federal de 1988

O CNDM, desde seu início, estabeleceu como prioridade atuar no

processo Constituinte com o objetivo de garantir os direitos das mulheres na nova

Constituição Federal. Em novembro de 1985, ano da sua criação, em conjunto

com o movimento feminista, promoveu a campanha nacional “Mulher e

Constituinte”, organizada em várias fases. A primeira tinha como objetivo

“levantar reivindicações das brasileiras e incentivar as candidaturas femininas

comprometidas com essas reivindicações” (Ávila, 2008, p. 108), e tinha como

lemas “Constituinte Para Valer tem que ter Palavra de Mulher” e “Constituinte pra

Valer tem que ter Direitos de Mulher”. Esse processo teve início com Ruth

Escobar à frente do CNDM, seguida pela feminista Jacqueline Pitanguy que,

assumiu a presidência do Conselho em 25 de março de 1986, exercendo o cargo

até o ano de 1989. “Desde 1985 até 1989, minha vida esteve intrinsecamente

ligada ao CNDM, onde o processo constituinte ocupou lugar central” (Pitanguy,

2008, p.98)

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Em menos de um ano o CNDM, através de suas conselheiras, visitou

todas as capitais do país, articulando-se com os movimentos feministas locais e

incentivando as mulheres a elaborar propostas para a nova Constituição,

argumentando a importância das mulheres em participar desse momento histórico.

Houve uma resposta extremamente positiva por parte da sociedade civil que

encaminhou centenas de propostas analisadas pela equipe técnica do CNDM e por

uma comissão de mulheres advogadas que, de forma voluntária, apoiaram o

Conselho na elaboração de propostas para os Constituintes. (Pitanguy, 2008, p.

99)

Esse processo culminou na realização, no final de 1986, do encontro

nacional promovido pelo CNDM, em Brasília, no Congresso Nacional, com a

participação de centenas de mulheres de todas as regiões do país, onde foi

aprovada a “Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes.”. Essa “Carta”, sem

dúvida, tornou-se registro histórico, sendo considerado o principal documento

elaborado no Brasil, naquele momento marcante para a efetivação da cidadania

das mulheres brasileiras, pois expressava as propostas do movimento feminista e

de mulheres para a nova Constituição, baseadas nos princípios da igualdade entre

homens e mulheres e na perspectiva do Estado assumir o papel na efetivação deste

marco normativo, significando, portanto, um novo pacto no que tange às relações

de gênero e as responsabilidades do Estado sobre essas questões. Além disso,

“Carta das mulheres” é possivelmente um dos mais importantes documentos

elaborados pelo feminismo brasileiro contemporâneo. (Pinto, 2003, p. 75)

O documento foi organizado em duas partes. A primeira trata de

questões que passam, mas também, ultrapassam a agenda específica das mulheres.

Para nós mulheres, o exercício pleno da cidadania significa, sim, o direito à

representação, à voz e à vez na vida pública, mas implica, ao mesmo tempo, a

dignidade na vida cotidiana, que a lei pode inspirar e deve assegurar o direito

à educação, à saúde, à segurança, à vivência familiar sem traumas. O voto das

mulheres traz consigo essa dupla exigência: um sistema político igualitário e

uma vida civil não autoritária.

Nós, mulheres, estamos conscientes que este país só será verdadeiramente

democrático e seus cidadãos e cidadãs verdadeiramente livres quando, sem

prejuízo de sexo, raça, cor, classe, orientação sexual, credo político ou

religioso, condição física ou idade, for garantido igual tratamento e igual

oportunidade de acesso às ruas, palanques, oficinas, fábricas, escritórios,

assembleias e palácios. (CNDM, 1986, Não paginado)

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Nessa perspectiva, evocam os escritos de Adigail Adams37

para

lembrar que, desde o século XVIII, quando da elaboração da Declaração de

Independência dos EUA38

, reivindicava-se a igualdade de direitos entre as

mulheres e os homens e para afirmar que a não garantia desses direitos naquele

contexto histórico, tornou-se fonte inspiradora na luta pela incorporação das

propostas das mulheres brasileiras na Constituição Federal de 1988.

Nesse importante momento, em que toda a sociedade se mobiliza para uma

reconstituição de seus ordenamentos, gostaríamos de lembrar, para que não

se repita o que mulheres já disseram no passado: “se não for dada a devida

atenção às mulheres, estamos decididas a fomentar uma rebelião, e não nos

sentiremos obrigadas a cumprir leis para as quais não tivemos voz nem

representação” (Abigail Adams, 1776).

Hoje, dois séculos após estas palavras, no momento em que a sociedade

brasileira se volta para a elaboração de uma nova Constituição, nós,

mulheres, maioria ainda discriminada, exigimos tratamento especial à causa

que defendemos.

Confiamos que os constituintes brasileiros, mulheres e homens, sobre os

quais pesa a grande responsabilidade de refletir as aspirações de um povo

sofrido e ansioso por melhores condições de vida, incorporem as propostas

desta histórica Campanha do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher. .

(CNDM, 1986, Não paginado)

Isto posto, apresenta quatro princípios que considera fundamental para

que a efetivação do princípio da igualdade seja garantido na futura Constituição

brasileira:

1. Estabeleça preceito que revogue automaticamente todas as disposições

legais que impliquem em classificações discrimatórias;

2. Determine que a afronta ao princípio de igualdade constituirá crime

inafiançável;

3. Acate, sem reservas, as convenções e tratados internacionais de que o país

é signatário, no que diz respeito à eliminação de todas as formas de

discriminação;

4. O reconhecimento da titularidade do direito de ação aos movimentos

sociais organizados, sindicatos, associações e entidades da sociedade civil, na

defesa dos interesses coletivos. (CNDM, 1986, Não paginado)

37

Abigail Adams foi esposa de John Adams (segundo presidente dos EUA nos anos de 1797 a

1801). No entanto, no período anterior quando do processo de elaboração da Declaração de

Independência dos EUA, iniciou uma série de correspondências com seu marido abordando vários

temas, dentre os quais reivindicava a igualdade dos direitos das mulheres. É consenso na literatura

de que essas cartas formam o conjunto de documentos de que se tem registro onde a igualdade de

direitos das mulheres é um ponto de reivindicação. Sobre a repercussão da Declaração de

Independência dos Estados Unidos no processo de luta do movimento de mulheres sufragista

americano Cf.: DRIVER, Stephanie Schwartz. A declaração da Independência dos Estados

Unidos. Tradução de Mariluce Pessoa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006. 38

A Declaração de Independência dos EUA foi aprovada em 04 de julho de 1776. Em 1788, os

EUA asseguraram à mulher o direito de ser eleita. No entanto, o direito de voto só foi conquistado

pelas americanas em 1920, portanto, após 132 anos depois de ter conquistado o direito de ser

eleita.

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A segunda parte da “Carta” diz respeito às reivindicações específicas,

divididas em seis temas: família, trabalho, saúde, educação e cultura, violência e

questões nacionais e internacionais. Esse conjunto de propostas é fruto do

acúmulo de reflexão, mobilização e articulação do movimento feminista brasileiro

no âmbito estadual, nacional e na esfera internacional a partir da segunda metade

dos anos 70 do século XX, tendo como referência, sem dúvida, as recomendações

da Cedaw, ao reivindicar no título das questões nacionais e internacionais a

integração dos Tratados e Convenções Internacionais, ratificados pelo Brasil, ao

texto constitucional “que consagrem os direitos fundamentais, humanos e sociais,

entre os quais os que proíbem tratamento discriminatório, com exigibilidade do

seu cumprimento” e ao enfatizar, no tema da família, o papel da nova

Constituição enquanto fonte inspiradora para a mudança na legislação civil.

A nova Constituição deverá inspirar diversas mudanças na legislação civil,

estabelecendo:

1. A plena igualdade entre os cônjuges no que diz respeito aos direitos e

deveres quanto à direção da sociedade conjugal, à administração dos bens do

casal, à responsabilidade em relação aos filhos, à fixação do domicílio da

família, ao pátrio poder;

2. A plena igualdade entre o casal no que concerne ao registro de filhos;

3. A plena igualdade entre os filhos não importando o vínculo existente entre

os pais;

4. A proteção da família, seja ela instituída civil ou naturalmente;

5. Acesso da mulher rural à titularidade de terras em Planos de Reforma

Agrária qualquer que seja seu estado civil;

6. A maternidade e a paternidade constituem valores sociais fundamentais,

devendo o Estado assegurar os mecanismos do seu desempenho;

7. A lei coibirá a violência na constância das relações familiares, bem como o

abandono dos filhos menores. . (CNDM, 1986, Não paginado)

A “Carta” apresentou originalidade, em relação aos demais

documentos do período, ao abordar a questão do aborto39

e ao tratar, de forma

detalhada, as demandas sobre os direitos da mulher relacionadas ao tema da

violência contra a mulher no campo da legislação redefinindo o conceito de

estupro propondo, inclusive, uma classificação penal; mas também expondo,

dentre outras, questões referentes à criação de equipamento social e no âmbito da

segurança pública especializado no atendimento à mulher vítima de violência.

(Pinto, 2003, p. 75)

39

No título da Saúde a “Carta” reivindica que “Será garantido à mulher o direito de conhecer e

decidir sobre o seu próprio corpo”. Segundo Pinto “a carta não propõe explicitamente a legalização

da prática, mas postula um preceito constitucional que abriria caminho para uma posterior

discussão do tema.” (Pinto, 2003, p. 75)

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1. Criminalização de quaisquer atos que envolvam agressões físicas,

psicológicas ou sexuais à mulher, fora e dentro do lar.

2. Consideração do crime sexual como “crime contra a pessoa” e não como

“crime contra os costumes”, independentemente de sexo, orientação sexual,

raça, idade, credo religioso, ocupação, condição física ou mental ou

convicção política.

3. Considerar como estupro qualquer ato ou relação sexual forçada,

independente do relacionamento do agressor com a vítima, de ser esta última

virgem ou não e do local em que ocorra.

4. A lei não dará tratamento nem preverá penalidade diferenciados aos crimes

de estupro e atentado violento ao pudor.

5. Será eliminada da lei a expressão “mulher honesta”.

6. Será garantida pelo Estado a assistência médica, jurídica, social e

psicológica a todas as vítimas de violência.

7. Será punido o explorador ou exploradora sexual da mulher e todo aquele

que a induzir à prostituição.

8. Será retirado da lei o crime de adultério.

9. Será responsabilidade do Estado a criação e manutenção de albergues para

mulheres ameaçadas de morte, bem como o auxílio à sua subsistência e de

seus filhos.

10. A comprovação de conjunção carnal em caso de estupro poderá realizar-

se mediante laudo emitido por qualquer médico, da rede pública ou privada.

11. A mulher terá plena autonomia para registrar queixas, independentemente

da autorização do marido.

12. Criação de Delegacias Especializadas no atendimento à mulher em todos

os municípios do país, mesmo naqueles nos quais não se disponha de uma

delegada mulher. (CNDM, 1986, Não paginado)

Em março de 1987, a presidente Jacqueline Pitanguy e todas as

conselheiras do CNDM entregaram, oficialmente, ao presidente do Congresso

Nacional, o então deputado Ulysses Guimarães, a “Carta das Mulheres

Brasileiras” e para demonstrar a articulação do Conselho e do movimento

feminista em âmbito nacional em relação à Campanha “Constituinte Pra Valer

tem que ter Direitos de Mulher” nessa mesma data as organizações feministas, os

diversos segmentos da sociedade civil e as representantes dos Conselhos de

Direitos dos Estados e Municípios que tinham esse organismo institucional

entregaram o mesmo documento nas Assembleias Legislativas dos diversos

estados. Esse ato simbolizou a nova fase da campanha que teve como ação

prioritária sensibilizar o/as deputado/as para aprovação das reivindicações

contidas na “Carta das Mulheres Brasileiras”. Sobre essa experiência, a então

presidente do CNDM, narra:

Circulávamos pelo Congresso Nacional de gabinete em gabinete,

incorporadas a este grande fluxo de pessoas representando as mais variadas

expressões da sociedade brasileira que enchia os corredores daquela Casa,

que, depois de 21 anos de um regime totalitário, tinha o compromisso

histórico de restaurar os alicerces legais da democracia, da justiça social e da

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igualdade de gênero, raça e etnia. Lembro-me com nitidez, deste caminhar

político e da sensação de que estávamos participando, como protagonistas, de

um momento histórico. (Pitanguy, 2008, p.101-102)

Essa fase ficou conhecida como O Lobby do Batom, outro exemplo da

capacidade criativa e bem-humorada de comunicação do CNDM e do movimento

feminista em expressar, através do design gráfico, suas mensagens de cunho

ideológico na perspectiva das relações de gênero.

O Lobby do Batom foi outra tirada de humor nossa. Quando entrávamos nos

corredores do Congresso, invariavelmente retocávamos o batom e alguns

gaiatos diziam: “Lá vem o lobby do batom”. De tanto ouvir a piadinha,

resolvemos responder com nosso sempre presente bom humor: mandamos

imprimir um selo que trazia as duas colunas do Congresso como um batom e

escrito lobby do batom. Foi ótimo passar pelos piadistas e perguntar: Quer

um? Quer entrar também nesse lobby? Olha! Sua vida vai ficar bem melhor

quando homens e mulheres tiverem direitos iguais!” (Cabral, 2008, p. 94-95)

(grifo da autora)

Em todas as fases do processo constituinte (nos trabalhos das

subcomissões, das comissões temáticas, na apresentação de emendas, na análise

dos trabalhos do relator, na discussão dos anteprojetos e do projeto) era

acompanhado pelas integrantes do CNDM, pelas representantes de várias

organizações feministas e de mulheres do país e pelas deputadas constituintes,

conhecida como Bancada Feminina40

- grupo suprapartidário de deputadas. A

deputada Constituinte Anna Maria Rattes, coordenadora da Bancada Feminina,

narra em entrevista à autora, a atuação da Bancada no processo Constituinte,

ressaltando a importância do Movimento de Mulheres e Feminista e do CNDM

nesse processo:

A atuação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher e do Movimento de

Mulheres durante o processo Constituinte que foi fundamental e o fato de nós

termos conseguido uma Bancada Feminina inteiramente responsável pelo

fato de ser mulher, deixando de lado todas as suas diferenças partidárias, mas

trabalhando unida a questão de nós aprovarmos uma plataforma que nos foi

entregue pelo Movimento de Mulheres, praticamente nós aprovamos tudo,

ficou de fora só a questão do aborto por uma diferença ideológica de uma

Deputada que não aceitava. (...) Eu acho que esse Movimento fortaleceu

40

A Bancada Feminina na Assembleia Nacional Constituinte foi composta por 25 deputadas

eleitas por 16 estados brasileiros, distribuídos pelas regiões brasileiras com exceção da região sul

do país. O estado do Rio de Janeiro elegeu, como já foi dito, três deputadas (Benedita da Silva pelo

PT – primeira mulher negra eleita para a Câmara Federal -, Ana Maria Rattes pelo PMDB e

Sandra Cavalcanti pelo PFL). O Departamento Intersindical de Assessoria Parlamental (Diap)

publicou o livro Quem foi Quem na Constituinte, no qual registrou a atuação do/as deputado/as

federais durante o processo de elaboração da Constituição de 1988.

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muito, o movimento de mulheres saiu fortalecido, a Bancada adquiriu uma

nitidez. Os homens passaram a nos respeitar e entender o que nós tínhamos

ido fazer lá (Rattes, 2010).

No entanto, nem todas as deputadas federais participaram da Bancada

Feminina, a exemplo da Sandra Cavalcanti, do Rio de Janeiro, como ressalta

Jaqueline Pitanguy (Pimenta, 2010, p. 93).

Para “fora” do Congresso o lobby do batom realizava manifestações

públicas, campanhas na mídia e na imprensa escrita, dentre outras ações,

retratando as discussões temáticas relacionadas aos direitos das mulheres na

intenção de publicizar o trabalho realizado junto aos congressistas e buscava

apoio para a campanha, transformando-a num movimento de amplitude nacional

que culminou com a vigília para acompanhar a votação final da Carta Magna. O

resultado desses três anos de intenso trabalho materializou-se na incorporação de

várias propostas apresentadas na “Carta das Mulheres aos Constituintes” no texto

constitucional.

4.3.3 As Conquistas na Constituição Federal de 1988 e a Legislação Pós-Constituição

A recomendação do Comitê Cedaw de consagrar e garantir por lei o

princípio da igualdade entre o homem e a mulher consta na Constituição Federal

de 1988 quando diz que constitui objetivo fundamental do Brasil “promover o

bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer

outras formas de discriminação” (artigo 3.º, IV) e em seu artigo 5.º ao especificar

que mulheres e homens têm os mesmos direitos, assim como as mesmas

obrigações.

Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,

garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a

inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à

propriedade, nos termos seguintes:

I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta

Constituição. (Brasil, 1988)

A Constituição Federal de 1988 estabelece, ainda, que “a lei punirá

qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais” (artigo

5.º, XLI). Contudo, cabe ressaltar que, enquanto no contexto internacional a ONU

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adotava a Cedaw que recomenda aos Estados-Partes adotar medidas para eliminar

a discriminação contra a mulher em todos os assuntos relativos ao casamento e às

relações familiares, com base na igualdade entre os homens e as mulheres, no

Brasil, nesse mesmo período, os assassinatos de mulheres praticados por seus

parceiros íntimos eram julgados segundo a tese da “legítima defesa da honra”.41

Sobre esse tema, a Constituição Federal de 1988 mudou substancialmente o

estado de desigualdade das mulheres, aos estabelecer no artigo 226 que os direitos

e deveres referentes ao casamento são exercidos igualmente pelo homem e pela

mulher e que devem ser compreendidos enquanto direito fundamental.

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

§ 1.º O casamento é civil e gratuita a celebração.

§ 2.º O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.

§ 3.º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o

homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua

conversão em casamento.

§ 4.º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada

por qualquer dos pais e seus descendentes.

§ 5.º Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos

igualmente pelo homem e pela mulher.

§ 6.º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio.

§ 7.º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da

paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal,

competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para

o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de

instituições oficiais ou privadas.

§ 8.º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos

que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de

suas relações. (Brasil, 1988)

Nesse artigo, a Constituição Federal de 1988, ao considerar a família a

base da sociedade definiu que o Estado lhe deve especial proteção. Não obstante

às conquistas na Constituição Federal de 1988, a questão do aborto não foi

contemplada e o trabalho doméstico foi considerado condição inferior em relação

aos avanços na equiparação de direitos entre os trabalhadores urbanos, visto que

no Art. 7.º exclui dessas trabalhadoras os direitos assegurados às demais

categorias profissionais.

A legislação brasileira pós-Constituição Federal de 1988 sofreu

mudança significativa no que se refere ao enfrentamento da violência doméstica

contra a mulher, merecendo destaque as alterações ocorridas no Código Penal e no

Código Civil.

41

Esse tema foi abordado no capítulo anterior.

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Apresentamos, no anexo 9.2, Quadro 9.2.1: A Constituição Federal

(1988) e a Legislação Ordinária: Violência Doméstica contra a Mulher, p. 299, o

quadro resumo com as leis ordinárias de âmbito federal que tratam das demandas

que contemplam as necessidades específicas das mulheres relacionadas ao

enfrentamento da violência doméstica contra a mulher.

Essas alterações foram indicadas, em grande parte, nas

Recomendações do Comitê da Cedaw e na Convenção de Belém do Pará, que

serviram de instrumento legitimador das reivindicações do movimento de

mulheres e feminista brasileiro no diálogo estabelecido com o Poder Legislativo.

Cabe ressaltar que as Declarações, os Tratados, as Convenções Internacionais não

têm força de lei. No entanto, como afirma a ex-Presidente do CNDM.

Conferem, no entanto, legitimidade a determinadas demandas e estabelecem

um novo patamar ético onde diferenças de sexo, raça e etnia, idade,

orientação sexual e situação social e econômica deveriam ser reconhecidas

como categorias fundamentais na definição de esferas específicas de respeito

e proteção dos direitos individuais, deixando de ser variáveis determinantes

de cidadãos de segunda categoria. (Pitanguy, 2003, p.32)

Apesar dos avanços, Silvia Pimentel apresenta alguns conceitos e

valores anacrônicos no Código Civil brasileiro. Diz a pesquisadora:

A título de exemplo, ressaltamos no artigo 1.573, VI, o fato de que ‘conduta

desonrosa’ possa ensejar ação de separação por parte de qualquer um dos

cônjuges. Sob a aparência de uma neutralidade ideológica quanto ao gênero,

a expressão ‘conduta desonrosa’ apresenta-se como passível de ser atribuída

a ambos os sexos. Contudo, tradicionalmente, expressões alusivas à honra e à

honestidade, em nossa legislação civil, estão carregadas de conotações

pejorativas e discriminatórias quanto à sexualidade das mulheres.

Outro exemplo dado por ela é o artigo 1.520 do Novo Código Civil, que

permite o casamento de quem ainda não alcançou a idade núbil para evitar

imposição ou cumprimento de pena criminal. No entender da especialista,

esse artigo relaciona-se com o dispositivo existente no Código Penal que

prevê a extinção da punibilidade quando a vítima de delitos sexuais se casa

com o agressor. Segundo ela, o pressuposto para a concessão de tal benefício

consiste no fato de a vítima ter sua “honra preservada” por meio do

casamento.

É importante lembrar que a legislação penal adotada na década de 1940

contempla preceitos discriminatórios em relação à mulher. Prevê, por

exemplo, tipos penais que têm por sujeito passivo a “mulher honesta” e

estabelece o estupro e demais delitos contra a liberdade sexual no título

dedicado aos costumes, em que o bem jurídico tutelado é a moral pública, e

não a dignidade de pessoa humana. “Mantém-se, assim, no Novo Código

Civil, o tradicional papel destinado à mulher na sociedade: o casamento. Essa

norma viola o princípio da igualdade e fere a dignidade e os direitos humanos

das mulheres, ao atribuir ao casamento o caráter reparador da violência

cometida e, consequentemente, também o de gerador da impunidade”, avalia

Silvia Pimentel. (Pimentel, 2003 apud Piovesan, 2006, p. 49-50)

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Mesmo com esses anacronismos, o Novo Código Civil representa um

importante avanço na perspectiva da igualdade entre os gêneros, com destaque

para a proteção dos direitos civis das mulheres, assim como as alterações do

Código Penal ao incorporar as reivindicações históricas construídas pelo

movimento feminista no Brasil, a partir da década de 1970, caminhou nessa

mesma direção.

4.4 A Violência Doméstica contra a Mulher em debate na Alerj

A Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) é a Casa

do Poder Legislativo de competência estadual, criada em 1975, com a fusão42

dos

estados da Guanabara e do Rio de Janeiro com atribuição de legislar sobre todas

as matérias de competência do Estado. A primeira Legislatura43

da Alerj pós-

fusão foi de 1975-197944

e desde então, o movimento de mulheres e feminista do

Estado atua a fim de garantir os direitos das mulheres e, em específico, os

relativos ao enfrentamento da violência doméstica contra a mulher perpetrada pelo

parceiro íntimo, quer seja através da ação da Bancada Feminina, quer seja

pressionando o parlamento a incorporar as reivindicações do movimento na sua

agenda política.

Neste sentido, analisaremos no período de 1986-2006, a atuação da

Bancada Feminina na Alerj e o processo de tramitação dos projetos de Leis

Ordinárias, focalizando o tema da violência doméstica contra a mulher perpetrada

pelo parceiro íntimo. Para tanto, realizamos um inventário das espécies

normativas que tratam sobre essa questão, priorizando os projetos que dispõem

sobre a criação de serviços especializados no atendimento à mulher vítima de

violência de gênero.

42

Sobre esse tema Cf: MOTTA, M.; SARMENTO, C. E. A construção de um Estado: a fusão

em debate. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001. O livro reúne depoimentos de oito personagens que

tiveram participação ativa no processo de construção do novo estado do Rio de Janeiro. 43

Legislatura é o período da atividade parlamentar, estabelecido a partir de eleições diretas e tem a

duração de quatro anos (mandato dos deputados). Disponível em:

<http://www.alerj.rj.gov.br/arquivo.htm> Acesso em: 12 out. 2011. 44

As informações de cada legislatura (data de início, término, nomes de deputados e partidos

políticos aos quais os deputados estiveram ou estão vinculados) encontra-se disponível em:

http://www.alerj.rj.gov.br/arquivo.htm Acesso: 12 out. 2011.

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4.4.1 A bancada feminina na Alerj

O quadro de desigualdade de gênero no Legislativo Federal também

ocorre no âmbito dos estados da Federação, embora em comparação aos índices

nacionais, as candidaturas para as Assembleias Estaduais, de acordo com os dados

da Tabela 9.1.4: Tabela comparativa – Eleições 2010 – 2006 – 2002 – 1998 –

1994. – Assembléias Legislativas Estaduais e Câmara Legislativa do DF –

Candidaturas de Mulheres por Partido Político, anexo 9.1. p. 296, apresentam

índices mais elevados.

A Bancada feminina na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de

Janeiro (Alerj) ampliou no decorrer do tempo. No entanto, permanece reduzida,

apesar da Lei de Cotas, em termos percentuais, pois “o fato é que, seja nestes

âmbitos ou nas várias organizações de caráter político, a presença das mulheres

nos espaços de poder e direção continua tendo um caráter de exceção”. (Godinho,

2004, p. 152)

As deputadas estaduais na Alerj, assim como aconteceu na Câmara

Federal, sofreram várias formas de discriminação pelo fato de serem mulheres

numa Casa em que prevalecia (nas décadas de 1980 e 1990) a cultura masculina.

Isso, porém, não significa que esses espaços estão atualmente desprovidos de

preconceito de gênero. A ex-deputada Rose Souza45

, em entrevista à autora, narra

sua experiência:

Uma Casa que era tão masculina e que passou a receber as primeiras

parlamentares. No que chegaram as primeiras parlamentares mulheres... e não

tinha banheiro feminino, querida. Nós usávamos o banheiro dos homens

durante um tempo. Tivemos que criar uma pressão para que fosse feito o

banheiro feminino. Uma Casa tão masculina e de repente a chegada das

mulheres com outro modo de falar em Plenário, outro modo de se posicionar,

de sensibilizar para algumas coisas, isso tudo trouxe essa questão mais

presente. O fato de ter se conseguido que a Casa Parlamentar passasse a ser

uma Casa de manifestações culturais e nesse aspecto eu acho que tive um

papel importante (...). A Casa era totalmente fechada e não podiam acontecer

manifestações culturais, nem exposição de arte, nem música, nada disso

podia acontecer na Casa Legislativa. A primeira exceção foi a tal da dança

45

Rose Souza, médica-sanitarista, foi eleita vereadora pelo PT em Nova Iguaçu nas eleições de

1988. Ainda exercendo o mandato parlamentar municipal candidatou-se pelo PT/Nova Iguaçu para

o cargo de deputada estadual nas eleições de 1990, assumindo o mandato na Alerj em 1991. Na

ALERJ, foi Vice-Líder da Bancada do PT. Membro efetiva da Comissão de Obras Públicas.

Suplente das Comissões de Saúde, Trabalho, Legislação Social e Seguridade Social, Assuntos da

Mulher, da Criança e do Adolescente. Cf.: RIO DE JANEIRO (ESTADO). Deputados Estaduais

Fluminenses: Quinta Legislatura (1991-1994). Rio de Janeiro: ALERJ: Departamento de

Documentos Parlamentares, 1995.

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que eu apresentei chamada “Dança da Vida” porque foi uma surpresa

generalizada, ninguém imaginava (Souza, 2010).

A ex-deputada prossegue, relatando como foi a apresentação “Dança

da Vida”.

Eu compus um grupo e escrevi uma peça chamada “Dança da Vida” que

tratava de uma mulher parindo uma criança e sofrendo toda uma violência

externa em que não era aceita que ela tivesse aquele filho. Primeiro eu tive

que pedir autorização. Eles não sabiam que ia apresentar, que eu iria dançar.

Eu convenci que a Casa Legislativa precisava de espaço para alguma

manifestação cultural e disse que a peça era uma beleza. Eu achava mesmo

eu só não disse tudo e aceitaram.

Quando chegou o dia que começamos a arrumar o cenário e tudo mais...

porque eu dancei de malha e eu fazia o papel de que eu paria a pessoa. A

pessoa vinha por dentro de mim e eu paria ela. Isso em Plenário, não no

momento de Sessão, nós usamos o espaço. Aí juntou, Bom! os funcionários

todos, todo mundo assistindo, todo mundo queria ver a primeira

apresentação, mas só não sabiam que era eu, porque eu estava com roupa por

cima e quando estava tudo pronto para começar eu tirei a roupa, já com a

malha por baixo e entrei em cena para fazer. (Souza, 2010).

Continua dizendo da repercussão na mídia e que em decorrência de

toda a polêmica criada diante do episódio, tanto fora quanto dentro da Alerj, abriu

a possibilidade, por exemplo, para outras manifestações culturais na Assembleia

Legislativa.

E aquilo teve aquele impacto, aquela coisa toda, tanto que no dia seguinte,

em todos os jornais “Deputada tira a roupa e dança”. (...) Só não diziam que

eu estava de malha. (...) Então disseram que eu iria perder o mandato por

falta de decoro parlamentar e eu perguntei: onde está escrito? Claro que

naquele tempo ninguém iria pensar em colocar um artigo que deputado não

podia dançar porque ninguém iria imaginar que algum parlamentar iria fazer

isso. E, aí eu estudei, peguei os livros todos e vi que em lugar nenhum dizia

que deputado não podia dançar. (...) Não teve jeito, tiveram que aturar a gente

dançar (...). Depois apresentamos em vários sindicatos, apresentamos na

Praça XV, apresentamos em Niterói na rua, apresentamos no Largo da

Carioca (...). Em suma, abriu um viés para que aquela Casa, porque ninguém

podia mais dizer que a Casa não podia servir para outras manifestações

culturais e aí a polêmica da época era: Ah! não deveria ter tido aberto, não.

Aí é que nós mostrávamos que deveria ter sim. E, dali para adiante

começaram grupos a proporem um espaço para apresentações (...) outros

grupos começaram a apresentar (...) Isso tudo foi permeando a Assembléia

Legislativa de um outro tipo de toque: primeiro o toque feminino, com a

presença das mulheres e depois o toque da arte. Então, essas questões

começaram a aparecer pertinentes (Souza, 2010).

A presença da Bancada Feminina nas Casas Legislativas foi

promovendo uma transformação, mesmo que lenta, ao longo dos anos. Essas

mudanças acontecem tanto no âmbito da representação, do debate sobre os temas

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específicos das mulheres; e, consequentemente da incorporação desses temas na

agenda parlamentar.

Além dos temas específicos historicamente definidos como

prioritários pelo movimento feminista, dentre os quais a violência doméstica

contra a mulher perpetrada pelo parceiro íntimo, outros tiveram que ser

introduzidos na agenda parlamentar fazendo com que tanto a estrutura física,

quanto a dinâmica da Casa própria do Parlamento, sofresse alterações.

Um exemplo significativo dessas alterações foi a criação em 1987 da

Comissão Permanente46

de Assuntos sobre a Mulher e o Menor, através da

Resolução 30/1987 de autoria da Deputada Daisy Lúcidi, com competência de

“manifestar-se sobre as proposições referentes aos assuntos especificamente

relacionados com a mulher e o menor, em especial os atinentes à defesa de seus

direitos” (Rio de Janeiro, Resolução n.º 30, 1987, não paginado).

Nessa Legislatura (1987-1991) teve 05 mandatos de parlamentares

femininas: Yara Vargas (PDT), Daisy Lúcidi Mendes (PFL), Heloneida Studart

(PMDB/PSDB/PT), Jandira Feghali (PC do B) e Lúcia Arruda (PT).

Dentre as parlamentares que exerceram mandatos, destacam-se como vozes

feministas na Alerj as deputadas Heloneida Studart, Lucia Arruda, Jandira

Feghali, Lucia Souto, Cida Diogo, Cidinha Campos, Jurema Batista e Inês

Pandeló. Todas estas oriundas de movimentos sociais, militantes feministas e

filiadas aos partidos ditos de esquerda (...). Elas se assumiram como

feministas e empenharam seus mandatos na luta por maior visibilidade,

conscientização e melhoria na condição de vida das mulheres. (Moreira &

Araújo, 2010, p. 28)

Segundo a ex-deputada Daisy Lúcidi (PFL) a criação da Comissão da

Mulher, da Criança e do Adolescente foi um processo marcado por dificuldades,

destacando a resistência por parte dos demais parlamentares para a sua criação.

Eles diziam: “Não. Por que mais uma comissão? Mais uma coisa? a

Assembleia já tinha muitas Comissões...”. E eu falava da importância, que

não tinha nada especificamente para a mulher e para o adolescente, para a

criança. Eles acabaram concordando e foram eles que me ajudaram a fazer

(Lúcidi, 2010).

46

As Comissões Permanentes fazem parte dos Órgãos da Alerj e segundo o artigo 109 da

Constituição Estadual do Rio de Janeiro “A Assembléia Legislativa terá comissões permanentes e

temporárias na forma e com as atribuições previstas nos respectivos Regimento ou ato legislativo

de sua criação.” (Rio de Janeiro, 2006, p. 74).

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Criada a Comissão, a divisão da Bancada Feminina entre as feministas

e as não-feministas marcou a disputa entre Daisy Lúcidi (PFL) e Heloneida

Studart (PT) para o cargo de presidência.

[...] E, aí, a Heloneida não queria que eu fosse a presidente porque eu não era

feminista. Eu não via ser uma coisa com a outra: ter que ser feminista para

dirigir uma Comissão dessa. Tem que ser feminista para dirigir uma comissão

dessa? Não. (...) Eu ganhei porque a Yara Vargas, que era a mais velha do

setor e era quem estava presidindo a seção porque, geralmente, quando não

tem a presidente eleita, a mais velha da comissão é quem dirige os trabalhos,

e era a Yara Vargas. E a Yara Vargas estava dirigindo e me deu ganho e, aí

eu fui presidente da Comissão Permanente de Assuntos da Mulher na

Assembléia Legislativa (Lúcidi, 2010).

Sua posição de distanciamento com o movimento de mulheres e

feminista do estado do Rio de Janeiro também ocorreu no processo de elaboração

da Constituição Estadual do Rio de Janeiro de 1989. Nas atas do Conselho

Deliberativo do Cedim que trataram da articulação da Bancada Feminina da Alerj

com o movimento feminista pela garantia dos direitos das mulheres no texto

constitucional do Rio de Janeiro, não encontramos registros da participação da ex-

deputada, confirmada no documento intitulado “Conquistas da Mulher na

Constituinte Estadual” no qual foi assinado pelas deputadas que atuaram nesse

processo, não constando da participação da então presidente da Comissão da

Mulher, da Criança e do Adolescente.

Nesse tempo histórico, ocorreram mudanças substantivas em relação à

competência da Comissão. A primeira delas aconteceu em 1997, através da

Resolução 810/1997, quando passou a tratar especificamente dos assuntos

relacionados à mulher, sendo, a partir de então, denominada de Comissão de

Assuntos da Mulher. Em 2000, com aprovação da Resolução 360, nova alteração

de conteúdo ocorreu, pois incorporou a ideia de defesa dos direitos da mulher

enquanto questão central de sua competência, alterando seu nome para Comissão

de Defesa dos Direitos da Mulher. Segundo o § 20 do artigo 26 da referida

Resolução “À Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher compete se manifestar

sobre as proposições referentes aos direitos especificamente relacionados com a

mulher.” (Rio de Janeiro, 2009. p. 168)

Apesar dos avanços alcançados no Parlamento Federal e na Alerj, pela

Bancada Feminina, em relação aos direitos da mulher, cabe enfatizar, no entanto,

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que a participação feminina nos espaços de poder decisório ainda é caracterizada

enquanto exceção.

4.4.2 A Constituição Estadual do Rio de Janeiro de 1989

No processo de elaboração da Constituição Estadual do Rio de Janeiro,

o Lobby do batom no âmbito estadual, formado pelos movimentos de mulheres e

feminista, pelas associações de moradores, pelos sindicatos de classe e pelo

Cedim47

, dentre outras instituições da sociedade civil fluminense, atuou de forma

decisiva para a incorporação na nova Carta Constitucional do estado do Rio de

Janeiro das reivindicações historicamente construídas a partir da década de 1970

pelo movimento de mulheres e feminista.

O Cedim atuou em diversas frentes nesse processo. Ainda em 1988,

logo após a promulgação da Constituição Federal, no Rio de Janeiro, foi instituída

uma “Comissão de Alto Nível” formada por juristas, dentre outros, o ex-ministro

do Supremo Tribunal Federal, Clóvis Ramalhete e representantes da OAB, da

ABI, do Plenário Pró-Participação Popular na Constituinte e do Cedim para

elaborar o esboço do texto constitucional. (Jornal do Brasil, 1988, não paginado).

A participação da presidente do Conselho para participar da “Comissão de Alto

Nível” se deu através da indicação da deputada estadual Heloneida Studart (PT).

O convite foi realizado pelo deputado estadual Gilberto Rodrigues (PMDB).

(Cedim, 1987, p.26)

Ainda no ano de 1988, as conselheiras do Cedim, em reunião do

conselho deliberativo, apresentaram várias sugestões visando à atuação do

Conselho no processo de elaboração da Carta Estadual, no sentido de garantir os

direitos da mulher. Assim sendo, em sua primeira reunião de 1989, o conselho

deliberativo aprovou como prioridade a atuação no processo da Constituinte

Estadual, mobilizando as mulheres e atuando junto ao parlamento estadual em

articulação com a bancada feminina da Alerj.

No final do mês de janeiro, o Cedim e o Fórum Feminista organizaram

o encontro “Se liga mulher na Constituinte Estadual”, com a presença de,

47

O Conselho Estadual dos Direitos da Mulher do Estado do Rio de Janeiro – Cedim – foi criado

em 1987, pelo então governador Leonel Brizola, atendendo a reivindicação do movimento

feminista do Estado. Sobre a atuação do Cedim dedicaremos nossa atenção no capítulo 05.

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aproximadamente, quarenta lideranças dos diversos grupos e organizações

feministas do Estado do Rio de Janeiro, durante o qual elaboraram o documento

com as reivindicações para o texto constitucional. (Cedim, 1987, p. 27) Apenas as

deputadas feministas conforme demonstra as atas do conselho deliberativo do

Cedim e o documento intitulado “Conquistas das Mulheres na Constituinte

Estadual” assinado pelas referidas deputadas, participaram do “lobby do batom”

no estado do Rio de Janeiro.

Nesse processo, porém, a relação entre o Cedim, os movimentos de

mulheres e feminista e os mandatos das parlamentares na Alerj, teve também

momentos de tensão. Um deles ocorreu em detrimento da apresentação da

proposta do capítulo “Mulher” ao texto constitucional pela deputada Jandira

Feghali. Essa proposta foi discutida na reunião do conselho deliberativo do

Cedim, realizada no dia 02 de março de 1989, com a presença das deputadas

Jandira Feghali, Lúcia Arruda e Heloneida Studart. Ao iniciar a reunião, a

presidente do Cedim, Branca Moreira Alves “fala sobre sua surpresa a respeito da

decisão de Jandira: não ter sido discutido o referido Projeto entre as representantes

do Conselho.” (Cedim, 1987, p. 37-38) Apesar das divergências sobre o conteúdo

das propostas do projeto e do descontentamento em relação ao seu

encaminhamento, houve, no decorrer do encontro, consenso sobre a realização do

trabalho em conjunto para garantir no texto constitucional os direitos das

mulheres no estado do Rio de Janeiro.

Para tanto, reconheceram que o projeto apresentado pela referida

deputada era um primeiro rascunho do que deveria ser as reivindicações do lobby

do batom na Alerj. Segundo a deputada Heloneida Studart, relatora da comissão

dos direitos e garantias fundamentais “esse é apenas o texto que poderia ser refeito

nas sub-comissões.” (Cedim, 1987, p. 38) A partir daí, refletiram sobre os

procedimentos legais para a garantia de suas propostas no texto constitucional.

Nesse sentido, afirmou a deputada Jandira Feghali, “para garantir o conteúdo das

propostas, precisamos colocá-las como emenda.” (Cedim, 1987, p. 38) Assim

sendo, deliberaram enquanto estratégia a elaboração de emendas populares.

(Cedim, 1987, p. 38-39) Esse processo de iniciativa popular no campo do

legislativo, trata-se, segundo Benevides:

Do direito assegurado a um conjunto de cidadãos de iniciar o processo

legislativo, o qual desenrola-se num órgão estatal, que é o Parlamento. As

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condições para o exercício desse direito – como também sua abrangência

quanto aos temas e à circunscrição eleitoral – variam de acordo com os

dispositivos constitucionais e os preceitos legais. (...)

Por iniciativa popular legislativa entende-se sempre o mesmo mecanismo,

que inclui um processo de participação complexo, desde a elaboração de um

texto (das simples moções ao projeto de lei ou emenda constitucional

formalmente articulados) até à votação de uma proposta, passando pelas

várias fases da campanha, coleta de assinaturas e controle da

constitucionalidade. (Benevides, 2002, p. 33)

No que tange ao tema da violência contra a mulher especificamente

tratando, dentre outras ações, o Cedim e as várias entidades48

do lobby do batom

elaboraram a Emenda Popular ao Projeto de Constituição do Estado do Rio de

Janeiro “Violência/Mulher” contendo proposta de três artigos reivindicando

serviços especializados no atendimento à mulher vítima de violência.

Art. O Estado garantirá a assistência médica, jurídica, social e psicológica às

mulheres vítimas de violência.

Art. O Estado garantirá a criação e manutenção de abrigos para vítimas de

violência específica.

Art. O Estado instituirá Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher

em todos os Municípios (Cedim et al, Mimeografado, s/data)

A Constituição Estadual do Rio de Janeiro, promulgada em 05 de

outubro de 1989, em relação aos direitos das mulheres, reafirmou as conquistas na

Constituição Federal de 1988. No Preâmbulo do texto Constitucional, o/as

deputado/as estaduais Constituintes afirmam seu compromisso na busca pela

igualdade entre as/os cidadã/aos, reiterando assim o reconhecimento da igualdade

como princípio fundamental do Estado. (Rio de Janeiro, 2006, p. 17)

Após a aprovação da Constituição Estadual, as deputadas Heloneida

Studart (PSDB), Jandira Feghali (PC do B) e Lúcia Arruda (PV) assinam o

documento intitulado “Conquistas da Mulher na Constituinte Estadual”.

O movimento de mulheres representado pelo Fórum Feminista do Rio de

Janeiro, integrado por entidades e grupos de mulheres, esteve presente com o

Conselho Estadual dos Direitos da Mulher (CEDIM) em todos os momentos

da elaboração da nova Constituição Estadual.

Ao acompanhar diretamente o processo Constitucional e ao contribuir com os

constituintes trazendo as reivindicações das mulheres, o movimento feminista

mostrou sua força, dando exemplo da participação nesse importante

momento.

48

Patrocinam a Emenda Popular “Violência/Mulher além do Conselho Estadual dos Direitos da

Mulher (Cedim), o Fórum Feminista do Rio de Janeiro, o Centro da Mulher Brasileira (CMB), o

Centro de Atividades Culturais, Econômicas e Sociais (Caces), o Mulherando, a OAB-Mulher e o

Núcleo de Estudos da Mulher – PUC/Rio (NEM).

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O resultado desse trabalho conjunto, parlamentares e movimento, foi uma

série de conquistas, já registradas e consagradas no texto constitucional.

(Alerj. s/data. Não paginado)

Apesar da lei estadual (1.340/1988) que dispõe da criação de

Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher o movimento de mulheres e

feminista fluminense priorizou a garantia desse serviço na Constituição Estadual,

pois sendo a violência contra a mulher fruto da desvalorização do feminino, para

romper com esse processo, é necessário, segundo os argumentos usados na

justificativa da proposta da Emenda Popular que a Constituição Estadual garanta a

criação de mecanismos para coibir a violência específica contra a mulher, assim

como ficou estabelecido na Constituição Federal de 1988 no artigo 226 § 8.º.

Neste sentido, a criação das Deams permite o rompimento da barreira da

discriminação enfrentada pelas vítimas nas delegacias tradicionais.

No Rio de Janeiro, o movimento de mulheres vem lutando contra a violência

e reivindicando a implantação de serviços especializados no atendimento

jurídico, psicológico e social indispensáveis à orientação e plena recuperação

da mulher vitimizada, a fim de proporcionar melhor conscientização do

problema, destacando o verdadeiro papel que ela ocupa na sociedade.

Uma das providências mais importantes e urgentes é a criação de abrigos

para as mulheres vítimas de violência, recurso extremo para aquelas que não

têm refúgios (parentes ou amigos), em momento dramático e de

reestruturação de suas vidas. Outro mecanismo que a Constituição deve

garantir para coibir a violência são as Delegacias Especializadas de

Atendimento à Mulher. Dentre outros objetivos, a criação destas delegacias

permite o rompimento da barreira da discriminação enfrentada pela vítima

nas delegacias tradicionais, onde comumente tratada com desrespeito, agrava

sua situação, levando-a à humilhação e ao sofrimento, haja vista que a

maioria das vezes a autoridade policial não entende como crime a violência

doméstica. (Cedim, et al, Mimeografado, s/data)

A Constituição Estadual do Rio de Janeiro, no Capítulo I Dos Direitos

e Deveres Individuais e Coletivos tratou do tema da violência contra a mulher nos

artigos 30, 33 e 34, garantindo a criação de mecanismos para coibir a violência

específica contra a mulher, dentre os quais, acatou a reivindicação do movimento

de mulheres e feminista de incorporar ao texto Constitucional Estadual a criação

das Casas Abrigo e das Deams.

Art. 30 – O Estado obriga-se, através da Defensoria Pública, a prestar

assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de

recursos.

§ 1.º - A lei disporá, como função institucional da Defensoria Pública, sobre

o atendimento jurídico pleno de mulheres e familiares vítimas de violência,

principalmente física e sexual, através da criação de um Centro de

Atendimento para Assistência, Apoio e Orientação Jurídica à Mulher.

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§ 2.º - Comprova-se a insuficiência de recursos com a simples afirmação do

assistido, na forma da lei. (...)

Art. 33 - Para garantia do direito constitucional de atendimento à mulher,

vítima de violência, principalmente física e sexual, ficam instituídas as

Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher.

§ 1.º - O corpo funcional das Delegacias Especializadas de Atendimento à

Mulher será composto, preferencialmente, por servidores do sexo feminino,

com formação profissional específica.

§ 2.º - O Estado providenciará, nos setores técnicos da Polícia Civil, a

instalação de serviços especiais de atendimento à mulher, constituídos,

preferencialmente, por servidores do sexo feminino.

Art. 34 – O Estado garantirá a criação e a manutenção de abrigos para

acolhimento provisório de mulheres e crianças, vítimas de violência, bem

como auxílio para subsistência, na forma da lei. (Rio de Janeiro, 2006, p. 27)

Cabe registrar que, além do Rio de Janeiro, a implantação de Deams

ficou definida nas Constituições Estaduais do Amapá, da Bahia, do Ceará, do

Mato Grosso do Sul, do Pará, do Paraná, de Pernambuco, do Rio Grande do Sul e

da Lei Orgânica do Distrito Federal. (Dutra, 2006, p.80)

4.5. Alerj: Leis Ordinárias sobre a violência doméstica contra a mulher

Tomando a formulação das políticas públicas de enfrentamento da

violência doméstica contra a mulher perpetrada pelo parceiro íntimo, conforme já

dito na introdução, torna-se importante colocar em primeiro plano a legislação

estadual concernente à temática da violência de gênero apesar do amplo

distanciamento, na realidade brasileira e, em especial no estado do Rio de Janeiro,

entre o texto legal e a sua aplicabilidade.

O artigo 59 da Constituição Federal de 1988 conceitua o processo

legislativo49

como sendo o concernente à elaboração das espécies normativas,

49

Sobre o processo legislativo cf.: AVELAR, Matheus Rocha. Manual de Direito Constitucional.

Curitiba: Juruá, 2004, ou SOUZA, Nelson Oscar de. Manual de direito constitucional. Rio de

Janeiro: Forense, 2006.

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dentre outras as leis complementares50

, as leis delegadas51

, as medidas

provisórias52

, os decretos legislativos53

, as resoluções54

e as leis ordinárias.55

Realizamos inventário dos Projetos de Lei Ordinárias56

específicos

sobre as políticas públicas de enfrentamento da violência de gênero na Alerj a

partir dos mandatos legislativos de 1975 (ano da criação da atual Assembléia

Legislativa do Estado do Rio de Janeiro) até 2006 (ano da promulgação da Lei

Maria da Penha).

Nas três primeiras legislaturas (1975 a 1987) não encontramos

nenhuma lei específica sobre o tema. A partir de 1988 (quarta legislatura) até

2006 (oitava legislatura) encontramos 12 leis ordinárias57

específicas sobre as

políticas públicas de enfrentamento da violência de gênero no estado do Rio de

Janeiro, conforme demonstra o Quadro 01: Relação das Leis Ordinárias que

tratam das políticas públicas voltadas para o enfrentamento da violência contra a

mulher no estado do Rio de Janeiro (1988-2006), apêndice 8.1, p. 291.

Analisaremos o processo de tramitação das leis ordinárias que dispõem

sobre a criação dos serviços especializados no atendimento à mulher58

, quais

sejam: a Lei de criação das Deams - n.° 1340/88; a Lei de criação das Casas

50

A Lei Complementar, como o próprio termo diz, completa o texto constitucional, quando uma

matéria exige maior especificação ou detalhamento. 51

O art. 95 do Regimento Interno da Alerj estabelece que “As leis delegadas são de iniciativas do

Governador do Estado, que deverá solicitar a delegação à Assembléia Legislativa (Rio de Janeiro,

2006, p. 76) 52

“Medida provisória é o ato normativo, com força de lei, editado pelo Presidente da República

em caso de relevância e urgência, submetido de imediato ao Congresso Nacional, e cuja eficácia se

extingue, desde a edição, se não for convertido em lei no prazo de 60 dias a partir da publicação”

(Avelar, 2004, p. 280). 53

O decreto-lei é instituto colocado à mercê do chefe do Executivo para, em situações

excepcionais previstas no Texto Magno, editar ato normativo com força de lei. ”A espécie

normativa denominada decreto legislativo enverga matérias de competência exclusiva do

Congresso Nacional. Por óbvio, sua aprovação independe de sanção presidencial. A promulgação é

feita pelo presidente do Congresso (Avelar, 2004, p.291) 54

“As resoluções são igualmente atos normativos emanados exclusivamente dos órgãos

legislativos, sendo, pois, dispensável a sanção do Presidente da República para sua aprovação”

(Avelar, 2004, p. 291). 55

A lei ordinária difere da complementar basicamente em relação ao quórum exigido para

aprovação. Na primeira, exige-se maioria simples, já para a segunda é necessário maioria absoluta.

Diz, ainda, que “O âmbito material da lei ordinária é residual, isto é, pode ela tratar de qualquer

assunto que não tenha sido reservado para disciplina da lei complementar. (Avelar, 2004, p. 273) 56

O artigo 94 do Regimento Interno da Alerj estabelece que “Os projetos de lei ordinária serão

destinados a regular as matérias de competência do Poder Legislativo, com a sanção do

Governador do Estado”. (Rio de Janeiro, 2006, p. 75) 57

As Leis estão disponíveis em: http://www.alerj.rj.gov.br/processo2.htm Acesso: 12 out. 2011. 58

O II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres considera Serviços Especializados de

Atendimento à Mulher: Centros de Referência, Casas Abrigo, Deams, Juizados de Violência

Doméstica e Familiar contra a Mulher, Varas Adaptadas e Defensorias Públicas. (Brasil, 2008. p.

95 e 96)

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Abrigo - n.° 2449/95; e a Lei de criação dos Centros de Referência - n.° 2899/98 e

a Lei n.° 2837/97, de criação do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher -

Cedim/RJ, pois constituíram, ao longo desse tempo, o principal conjunto de

reivindicações do movimento de mulheres e feminista, tanto no âmbito nacional,

quanto na esfera do estado do Rio de Janeiro, para coibir a violência específica

contra a mulher.

4.5.1 O processo de formulação da Lei de criação da Deam

A criação das Delegacias Especializadas no Atendimento à Mulher –

Deams se constituiu, na década de 1980, na principal reivindicação do movimento

de mulheres e feminista no Brasil e no estado do Rio de Janeiro enquanto

mecanismo para coibir a violência específica contra a mulher e diante da pressão

desses grupos organizados.

A criação e a implantação de Delegacias Especializadas no atendimento à

Mulher (DEAMs), enquanto resultado de reivindicações concretas da

militância política feminista aos governos, deram maior visibilidade às

formas de agressividade experimentadas no espaço de intimidade, que

naquele momento escapava dele, para se tornarem assuntos incluídos na

esfera do diálogo e da interação entre diversos setores da sociedade e as

diversas instituições do Estado. Essas políticas tiveram um impacto simbólico

de grande importância no reconhecimento do direito das mulheres. (Ferreira,

2010. p. 112)

Em 1986, o governador Leonel Brizola, em seu último ano de

mandato, criou através de decreto a primeira Deam do Estado do Rio de Janeiro

(localizada no Centro da cidade do Rio de Janeiro) e em sequência, criou a Deam-

Niterói e a Deam-Caxias. A partir de então, sobre as Deams a reivindicação do

movimento feminista era para garantir esse direito através de lei e ampliação do

número de Deams no Estado.

No ano seguinte, a deputada Lúcia Arruda (PT) apresentou o projeto

de Lei n.º 43/87 que garantia no Estado a continuidade e o aperfeiçoamento das

Delegacias Especiais de Atendimento à Mulher, aprovado pela Alerj em 15 de

maio de 1988. No entanto, havia rumores veiculados pela imprensa de que o

governador Moreira Franco iria vetá-lo.59

Diante dessa possibilidade foi

59

A Constituição Estadual do Rio de Janeiro estabelece que:

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organizado, pelo movimento feminista e pelo mandato da deputada Lúcia Arruda,

um ato nas escadarias da Alerj reivindicando a aprovação do governador do

referido projeto de lei. No panfleto convocatório para o ato, em linguagem

poética, se dirigiam ao governador Moreira Franco.

Sr. Governador / Torne Lei as Delegacias da Mulher: / Sr. Governador, /

Ouça o grito das Marias / Que querem delegacias / Aprove o nosso projeto,

Que não somos objeto / E muito menos de pancada!

Precisamos ser ouvidas – / Estupram, batem, violentam, / E não acontece

nada?...

Temos três delegacias – / Centro, Niterói, Caxias, / É lá que somos ouvidas,

É lá que denunciamos, / E é lá que nós brigamos / Pelo fim da impunidade.

Se elas não se tornam lei / Lá se vai por água abaixo / Todo o espaço

conquistado – / Aprovar esse projeto / É mais que dever do Estado.

Por isso, Governador, / Ouça a mensagem da gente: / Mulher quer delegacia

Já, urgente, permanente. (Panfleto, s/data)

A posição do governador foi pauta de várias reuniões do Conselho

Deliberativo do Cedim60

, formado por representantes dos diversos movimentos de

mulheres e feminista do Estado e por representantes do governo estadual, dentre

as quais a presidente Branca Moreira Alves, feminista histórica e militante do

PMDB. Nesse contexto, havia consenso, entre as conselheiras, da necessidade da

lei e que o Cedim deveria atuar para que a mesma fosse sancionada, embora

diante dos rumores, a avaliação indicava que o governador vetaria o referido

projeto. (Cedim, 1987, p. 20-21).

Apesar da mobilização e da tentativa de negociação do Cedim, o

governador Moreira Franco vetou o referido projeto em 04 de julho de 1988,

justificando sua inconstitucionalidade. A partir de então, a pressão do movimento

junto ao poder executivo estadual se intensificou. O Jornal do Brasil no dia 1.º de

julho publicou a seguinte nota:

As feministas do Rio de Janeiro estão se organizando para deslanchar uma

guerra contra o governador Moreira Franco.

Artigo 115 – O Projeto de Lei, se aprovado, será enviado ao Governador do Estado, o qual,

aquiescendo, o sancionará.

§ 1° - Se o Governador do Estado considerar o Projeto de Lei, no todo ou em parte,

inconstitucional ou contrário ao interesse público, veta-lo-á total ou parcialmente, no prazo de

quinze dias úteis, contado da data do recebimento e comunicará, dentro de quarenta e oito horas,

os motivos do veto ao Presidente da Assembléia Legislativa. § 2° - O veto parcial somente

abrangerá texto integral de artigo, de parágrafo, de inciso ou de alínea. § 3° - Decorrido o prazo de

quinze dias úteis, o silêncio do Governador importará sanção. (Rio de Janeiro, 2006. p. 77) 60

O Conselho Deliberativo do Cedim é o órgão que define a deliberações do Conselho, formado

por representantes dos diversos setores da sociedade civil e do governo. Sobre esse tema

discutiremos no próximo capítulo.

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Elas acabam de saber que, na moita, enquanto a presidente do Conselho

Estadual dos Direitos da Mulher, Branca Moreira Alves, está na Alemanha, o

governador vetara projeto de lei, recentemente aprovado, que cria delegacias

especializadas em atendimento às mulheres. (Jornal do Brasil, 1.º jul. 1988, p.

6)

Em resposta à publicação do dia 1.º de julho, na mesma coluna, foi

publicada a resposta do governador.

Do governador Moreira Franco sobre a possibilidade de as feministas virem

a se rebelar contra o veto à criação das delegacias especializadas em

atendimento às mulheres:

- A questão não é política, é técnica. Aguardo parecer do secretário de Polícia

Civil, Hélio Saboya, para decidir. (Jornal do Brasil, 04 jul. 1988, p. 6)

A pressão política do movimento feminista intensificava-se tanto no

Cedim, quanto no conjunto da sociedade. Para superar esse conflito político o

governador Moreira Franco determinou que o Cedim formasse uma comissão para

elaboração do projeto de Lei de criação das Deams, o que aconteceu em 04 de

agosto, na reunião do Conselho Deliberativo do Conselho. Ato contínuo a

comissão elaborou o texto do projeto utilizando-se, evidentemente, do conteúdo

da Lei que sofrera o veto do chefe do executivo estadual, encaminhando

imediatamente para o governador. Este por sua vez, em 11 de agosto, enviou a

referida proposta para a Alerj através da Mensagem n.º 49/98.

Na justificativa, o governador Moreira Franco enfatizou que as Deams

eram uma reivindicação antiga de importantes setores da sociedade, assim como

destacou a participação das instituições ligadas organicamente ao movimento

feminista e de mulheres no estado do Rio de Janeiro na elaboração do projeto de

Lei.

As Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (Deams) constituem

antiga reivindicação de importantes setores da sociedade, que tiveram

participação efetiva na elaboração do projeto, através de uma Comissão

constituída por representantes do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos

da Mulher, Ministério Público, Defensoria Pública, Departamento Feminino

da OAB/RJ, Gabinete da Deputada Lúcia Arruda e da Secretaria de Estado

de Polícia Civil. (Alerj, 1988, não paginado)

Em 16 de agosto, a Mesa Diretora61

da Alerj, deferiu a urgência62

para

a tramitação do Projeto de Lei n.º 563/88 (Mensagem n.º 49/88), encaminhando às

61

Segundo o Regimento Interno da Alerj “art. 17 – À mesa Diretora, órgão colegiado, na

qualidade de comissão diretora incumbe a direção dos trabalhos legislativos e dos serviços

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Comissões Permanentes para estudo da matéria e oferecimento de parecer63

,

segundo o artigo 117 do Regimento Interno (Rio de Janeiro, 2009. p. 83). No dia

seguinte o/as deputado/as estaduais aprovaram o projeto de Lei, que foi

sancionado pelo governador em 23 de agosto, que “dispõe sobre a criação das

Delegacias Especializadas no Atendimento à Mulher”, sancionada pelo

governador no dia 23 de agosto de 1988. (Departamento de Arquivo da Alerj.

Projeto de Lei. 563/88. Lei n.º 1340/88. não paginado).

Esse processo demonstrou a força do movimento de mulheres e

feminista frente ao poder executivo estadual, que resultou no recuo do governador

Moreira Franco ao sancionar a lei de criação das Deams. Branca Moreira Alves se

posicionou publicamente sobre essa questão minimizando a pressão sofrida pelo

governador. Esse posicionamento, em última instância, demonstra que no

Conselho Deliberativo do Cedim co-existem distintas posições sobre essa questão.

A líder feminista Branca Moreira Alves, que preside o Conselho Estadual do

Direito da Mulher do Rio de Janeiro, reagiu com veemência à notícia de que

o governador Moreira Franco “voltou atrás” e sancionou a lei que cria as

delegacias especializadas no atendimento às mulheres:

- Nunca houve recuo por parte do governador. Ele vetou o projeto da

deputada Lúcia Arruda por ser inconstitucional. Depois disso foi criada uma

comissão, com a participação da deputada, que resultou na lei atual. (Jornal

do Brasil, 06 set. 1988, não paginado)

A Lei n.º 1340/88 em seu art. primeiro estabelece que as Deams

“integrarão a estrutura da Secretaria de Estado da Polícia Civil e terão as

atribuições e circunscrições a serem definidas em regulamento.” (Rio de Janeiro,

1988, não paginado) No artigo segundo define a atribuição das Deams: “Serão de

atribuição das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (Deams), em

suas circunscrições, a investigação e a apuração dos delitos decorrentes da

violência específica contra a mulher” (Rio de Janeiro, 1988, não paginado)

administrativos da Assembléia, e decide pela maioria de seus membros.” (Rio de Janeiro, 2006, p.

23) 62

Segundo o Regimento Interno da Alerj, art. 127 – Urgência é a abreviação do processo

legislativo em virtude de interesse público relevante. (Rio de Janeiro, 2006, p.87) 63

Segundo o art. 50 do Regimento Interno “Parecer é o pronunciamento da comissão sobre

matéria sujeita ao seu estudo, emitido com observância das normas estipuladas no parágrafo

seguinte: Parágrafo único – O parecer constará de três partes: I – relatório, em que se fará breve

exposição da matéria em exame; II – parecer do relator, em termos sintéticos, com a sua opinião

sobre a conveniência da aprovação ou rejeição, total ou parcial, da matéria, ou sobre a necessidade

de se lhe dar substituto, ou se lhe oferecerem emendas, ou concluir por proposição; III – parecer da

comissão com assinatura dos Deputados que votarem a favor e contra.” (Rio de Janeiro, 2009. p.

57)

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A Lei prevê, no artigo terceiro, também que, enquanto não houver

número suficiente de Deams no Estado, as delegacias distritais terão atribuições

concorrentes, em suas circunscrições e nesses casos, o Cedim poderá solicitar ao

Secretário Estadual de Polícia Civil que seja feita a redistribuição da ocorrência a

uma das delegacias de atendimento à mulher. (Rio de Janeiro, 1988, não

paginado)

Para a aprovação da lei de criação das Deams a dificuldade ocorreu

junto ao executivo estadual. No entanto, a lei que dispõe sobre a criação das

Casas-Abrigo obteve maior resistência na esfera do parlamento estadual.

4.5.2 A tramitação da lei de criação das Casas Abrigo

O projeto de lei sobre a criação e manutenção de abrigos para

acolhimento provisório de mulheres vítimas de violência específica, isto é, toda

aquela decorrente de uma relação de opressão de gênero que vitima as mulheres,

foi apresentado pela deputada Rose Souza (PT) em março de 1992.

Em entrevista à autora, a ex-deputada Rose Souza, relata que a criação

de abrigos para mulheres era uma questão fundamental na sua agenda enquanto

parlamentar desde o período em que foi vereadora, tanto que incluiu um

indicativo de abrigo na Lei Orgânica de Nova Iguaçu e que na Alerj recebeu em

seu gabinete muitas mulheres vítimas de violência doméstica, inclusive moradoras

dos municípios da Baixada Fluminense. “Elas iam procurar sozinhas para contar

determinadas coisas (...) e ia me revoltando, mesmo! até que resolvi trabalhar em

cima disso” (Souza, 2010). Tomou, então, a iniciativa de visitar um abrigo para

mulheres vítimas de violência em São Paulo.

Fiquei muito sensibilizada. Achei impressionante como aquilo funcionava.

Tinha todo um sistema integrado, inclusive no campo da psicologia. No

campo social, as mulheres conseguiam trabalho. (...) Tinha convênio com

empresas que, então, admitiam essas mulheres para poder começar a

trabalhar. Para poder depois sair do abrigo elas tinham que conseguir

trabalhar porque elas tinham que mudar de casa (...) Se não tem esse suporte

não adianta (Souza, 2010).

Fruto desse processo, a ex-deputada elaborou o projeto de Lei

Ordinária, em conjunto com o Cedim, que “dispõe sobre a criação e manutenção

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de abrigos para acolhimento provisório de mulheres de violência específica e seus

dependentes, e dá outras providências” (Alerj, 1995, não paginado).

Ressalta, no entanto, que o diálogo com as feministas era difícil, pois

mantinha uma posição de distanciamento com o movimento feminista.

Eu não tinha muito afinidade. Achava que tinha bandeiras que eu não me

identificava (...). Tinha coisas tão mais prementes da necessidade das

mulheres do que ficar discutindo outras coisas (...) O que eu considerava

mais premente, por exemplo, eram abrigos para as mulheres; era uma defesa

das mulheres contra a violência; mais Deams; eram leis que garantissem

igualdade nas condições de trabalho. (...) Enquanto que começavam [as

militantes do movimento feminista], nessa época, a levantar questões de

propaganda. Começavam a demandar questões sobre produtos vendidos que

prejudicavam a mulher dona-de-casa. Hoje em dia eu vejo que isso tem

importância também (...), mas eu achava aquilo tudo tão supérfluo, perto do

que eu convivia (Souza, 2010).

Na narrativa, a entrevistada, aponta elemento da diferenciação entre

movimento de mulheres e feminista, apresentando-se enquanto participante do

movimento cujo objetivo era a transformação da situação socioeconômica e

política das mulheres, assim como seu papel na sociedade, portanto, representante

do movimento de mulheres, segundo a definição de Descarries (2002) e Gohn

(2001). Se essa divergência não inviabilizou a ação conjunta para a elaboração do

referido projeto de Lei, concorreu para a pouca pressão do movimento feminista

junto aos deputados no processo de tramitação da Lei.

Ao escrever a justificativa do projeto, no entanto, ressalta a

compreensão de que a violência de gênero é um problema de ordem política e de

dimensão pública e que com a criação das Deams foi possível identificar que

grande parte dos crimes sofridos pelas mulheres decorria do fato de serem

mulheres, portanto, sofriam uma violência de gênero, conforme definição da

Convenção Belém do Pará.

A compreensão de que a violência contra a mulher não é uma questão

particular e sim um problema de ordem política e pública, fez com que o

Movimento Feminista conquistasse a partir de 1985 a criação de Delegacias

de Defesa dos Direitos da Mulher e, a partir daí, os registros de atendimento

passaram a demonstrar que as denúncias correspondem em grande número

aos crimes de lesão e ameaça, sendo que mais de 70% dos agressores moram

com as vítimas e que mais de 60% destas, possuem dependentes (Alerj, 1999,

não paginado).

Diante do quadro de denúncia advindo das Deams, argumenta, ainda,

que a criação das casas abrigo é importante porque “estas denúncias são

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dificultadas pelo fato das mulheres vítimas não terem, na maioria das vezes, locais

para se abrigarem dos agressores, tendo que continuar a ‘coabitar’ com eles”

(Alerj, 1995, não paginado). Por fim, registra que:

Sabemos que a criação inicial de um abrigo no Estado do Rio de Janeiro não

contempla as inúmeras necessidades das mulheres vítimas destas violências,

mas garante o começo do processo de cumprimento daquilo que a

Constituição do Estado do Rio de Janeiro na forma do Artigo 34, já garante.

Além do mais, no ano de 1991, foi aprovada a emenda n.º 2.777 de nossa

autoria, que garante 100 (cem) milhões de cruzeiros (valor de julho/91), para

a criação dos abrigos para mulheres vítimas de violência específica e seus

dependentes a qual estamos contemplando este Projeto de Lei que

regulamenta a criação destes abrigos (Alerj, 1995, não paginado).

Em março de 1992, a deputada Rose Souza apresentou o projeto à

Mesa Diretora, encaminhado em regime de tramitação ordinária.64

Nesse mesmo

ano, recebeu parecer favorável das Comissões Permanentes de Constituição e

Justiça; e de Orçamento, Finanças e de Tributação.

Diante da morosidade no processo de tramitação do projeto, no ano

seguinte, a deputada Rose Souza, requereu a urgência para a sua tramitação, que

foi assinado por 35 deputados, mesmo assim não conseguiu entrar em discussão

em Plenário. Segundo a ex-deputada, o então presidente da Alerj, deputado José

Nader65

, atuou de forma decisiva para a não apreciação do projeto.

Ele dizia, por exemplo, para a gente, que iria colocar em votação o projeto

num dado dia e a gente com muito esforço conseguia aglutinar pelo menos

alguns agrupamentos mais de apoio e tal e chegava no dia ele tirava de pauta

(...). E, aí você já não conseguia mobilizar as pessoas novamente. Ele botava

e tirava. Ele tinha um poder absoluto (Souza, 2010).

Acrescenta, ainda, que os deputados do PT concordavam com o

projeto, todavia não se mobilizavam para pressionar pela sua apreciação em

Plenário. Por outro lado, menciona o apoio recebido por deputadas de outros

64

Segundo o artigo 126 do Regimento Interno da Alerj, os projetos de tramitação ordinária são

aqueles que sofrerão duas discussões. (Rio de Janeiro, 2009. p. 86). Discussão, segundo, ainda, o

referido Regimento Interno, em seu artigo 144 “é a fase dos trabalhos destinada ao debate em

Plenário” (Rio de Janeiro, 2009. p. 92) 65

José Nader “elegeu-se deputado estadual em 1975 e tornou-se vice-líder da bancada da Aliança

Renovadora Nacional (Arena) entre 1977 e 1978. Voltou à Assembléia Legislativa em 1983 e

atuou como vice-líder da bancada do Partido Democrático Social (PDS) e m1985. Reeleito para a

legislatura de 1987 destacou-se como vice-líder da bancada do Partido Democrático Trabalhista

(PDT). Em 1990 foi reeleito e presidiu a Assembléia nessa legislatura por dois períodos em 1991-

1992 e 1993-1994. Foi nomeado, então, pelo governador do estado, Nilo Batista para o Tribunal

de Contas do Estado” Disponível em: <http://www.alerj.rj.gov.br/memoria/nucleo.htm> Acesso

em 27 dez.2011.

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partidos, dentre os quais destaca as deputadas Graça Matos (PDT) e Daisy Lúcidi

(PFL/PPR) e o deputado Wagner Montes (PTB).

Cabe registrar os argumentos do relator da Comissão de Orçamento,

Finanças e de Tributação, deputado Paulo Banana (PT), do seu parecer favorável.

A Constituição do Estado do Rio de Janeiro determinou em seu Artigo 34

que “o Estado garantirá a criação e a manutenção de abrigos para

acolhimento provisório de mulheres e crianças, vítimas de violência, bem

como auxílio para subsistência, na forma da Lei”. Como se vê, a presente

proposição busca regulamentar um dispositivo constitucional.

Quanto ao aspecto orçamentário, a ilustre propositora cuidou de apresentar

emenda ao Orçamento para 1992 prevendo recursos para a criação e

manutenção dos abrigos que por este projeto pretende regulamentar (Alerj,

1995, não paginado).

Diante do exposto, fica evidenciado que o projeto tinha importância no

campo constitucional, pois regulamentaria o artigo 34 da Constituição Estadual de

1989 e no âmbito orçamentário, a referida proposição estava garantida com a

emenda orçamentária de 1992, portanto a dificuldade estava na esfera política.

Neste sentido, esse processo, que durou quase três anos e que resultou no seu

arquivamento, por não ter sido apreciado em Plenário, pode ser explicado, além

dos motivos elencados pela ex-deputada que tratam das dificuldades políticas

também nesse aspecto deve ser considerada a pouca pressão do movimento

feminista nesta fase.

Na legislação seguinte, assim que assumiu seu quinto mandato

parlamentar consecutivo, a deputada Heloneida Studart (PT) procurou a ex-

deputada Rose Souza, que não se candidatou no pleito eleitoral de1994, para saber

sua opinião sobre a retomada do projeto de Lei de sua autoria. Ao obter o seu

apoio, a deputada Heloneida Studart solicitou e obteve sucesso ao pedido de

desarquivamento. “Sr. Presidente: Requiro, na forma regimental, o

desarquivamento do Projeto de Lei n.° 833/92, de autoria da deputada Rose de

Souza” (Alerj, 1995, não paginado).

A partir de então, o projeto foi encaminhado pela Mesa Diretora às

Comissões Permanentes para emissão de parecer, obtendo parecer positivo da

Comissão de Servidores Públicos e da Comissão de Assuntos da Mulher, da

Criança e do Adolescente. Em outubro, os deputados aprovaram o projeto, que foi

sancionado pelo governador Marcello Alencar, transformando-se na Lei 2.449 de

24 de outubro de 1995 de autoria da deputada Rose Souza (Alerj, 1995, não

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paginado). Fica evidente que as dificuldades políticas enfrentadas no processo de

tramitação do projeto não ocorreram nesse momento.

A Lei n.º 2449/95 autoriza o Poder Executivo a criar os abrigos para

acolhimento provisório de mulheres vítimas de violência de gênero. Para tanto,

estabelece que as unidades policiais competentes deverão encaminhar as vítimas e

seus dependentes aos referidos abrigos; fixa o prazo máximo de três meses para as

mulheres e seus dependentes permanecerem abrigados, podendo, ser prorrogado

por um tempo limite de 30 dias; e determina que, durante o tempo de

abrigamento, os abrigos deverão garantir a infraestrutura necessária para alojar as

mulheres e seus dependentes, assim como lhes assegurar assistência médica,

psicológica, jurídica e social.

4.5.3 O poder executivo estadual e a lei de criação do Cedim

O Conselho Estadual dos Direitos da Mulher – Cedim, no estado do

Rio de Janeiro foi criado em através do decreto 06.05.1987 – Decreto n.º 9.923 –

pelo governador Moreira Franco. Após o primeiro ano de sua criação, de forma

recorrente, na pauta das reuniões do Conselho Deliberativo, discutia-se a

necessidade de se criar o Conselho através de Lei Ordinária específica.

A presidente Branca Moreira Alves, informou às Conselheiras, em

reunião ordinária do Conselho Deliberativo de 1.° de setembro de 1988, que

apresentou ao governador Moreira Franco a sugestão de se elaborar uma lei

ordinária para a criação do Cedim, obtendo sua autorização para formular a

proposta do projeto de Lei. Mediante o informe, as conselheiras deliberaram sobre

a “criação do Cedim mediante Projeto de Lei de iniciativa do Executivo. Branca

avisa que convocará assembleia para ser discutido, o que foi aprovado por todas”

(Cedim. 1987, p. 25 verso).

Na reunião do Conselho Deliberativo de 14 de fevereiro de 1989, a

proposta do Projeto de Lei de autoria do Poder Executivo foi aprovada. No

entanto, não houve condições políticas para que a proposta fosse encaminhada à

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Alerj, em função do desgaste66

da relação entre o governador Moreira Franco e o

Cedim e também porque naquele momento a prioridade do Cedim era buscar a

garantia das reivindicações do movimento de mulheres e feministas na

Constituição Federal e Estadual.

O período de 1991 a 1994, foi marcado pela realização das

Conferências Internacionais e pela criação de serviços especializados no

atendimento à mulher no Rio de Janeiro, o que levou o Cedim a priorizar esses

eventos e consequentemente a proposta do projeto de Lei de criação do Cedim,

não teve desdobramentos.

Na segunda metade da década de 1990, quando discutia-se a

implementação a nível estadual das recomendações da Declarações Internacionais

retomou-se a questão sobre a importância da Lei de criação do Cedim e, diante do

contexto favorável o projeto de Lei foi apresentado pelo governador em exercício

Luiz Paulo Corrêa da Rocha, em 21 de outubro de 1997, através da Mensagem n.°

38/97, obtendo número 1787/97 do projeto de Lei que cria o Conselho Estadual

dos Direitos da Mulher e dá outras providências. Na justificativa da mensagem o

governador apresenta os objetivos do Conselho.

O Projeto tem como primeiro fundamento instituir e fortalecer colegiado

destinado a implementar políticas públicas voltadas para a valorização e a

promoção da mulher, de modo a assegurar à população feminina fluminense

o pleno exercício da cidadania e a superação dos preconceitos e

desigualdades de gênero.

Importante registrar, por relevante, que o Cedim tem por escopo incrementar

ações específicas nas áreas de saúde, educação, cultura, combate à violência,

trabalho, de assistência jurídica e social, além de outras que retratam a

promoção da cidadania a partir de um minucioso levantamento dos

problemas e aspirações femininas realizado em nosso Estado, sendo, assim,

importante instrumento de colaboração com o Poder Público.

Visando assegurar resultados mais eficientes na implementação dos objetivos

do CEDIM, a proposta prevê parcerias com os movimentos organizados da

sociedade civil, nacionais e internacionais, e, ainda, com órgãos públicos de

todas as esferas da Federação (Alerj, 1997, não paginado).

Para alcançar os objetivos prevê a instituição do Fundo Especial dos

Direitos da Mulher.

Outro importante instrumento destinado a garantir a efetividade das ações do

Cedim é o Fundo Especial dos Direitos da Mulher, instituído para gerir

66

Sobre esse assunto iremos discutir no próximo capítulo. No entanto, um episódio que marcou e

demarcou o desgaste foi o veto do governador ao projeto de Lei de autoria da deputada Lucia

Arruda PT/Rio que tratava da criação das Deams, conforme abordamos no presente capítulo

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recursos e financiar suas atividades, a crédito do qual serão alocados recursos

orçamentários e extra-orçamentários.

Por derradeiro, importa considerar que a elevada coordenação entre os

Poderes Legislativo e Executivo, ora renovada, consubstanciará mais de uma

importante iniciativa no que concerne à garantia dos direitos das mulheres,

providência verdadeiramente imprescindível para melhoria de suas condições

de vida e, em especial, do segmento fluminense (Alerj, 1997, não paginado).

Por fim, solicita que a tramitação do Projeto de Lei seja realizada em

caráter de urgência. Assim, o processo de tramitação do projeto de Lei ocorreu

sem dificuldades e em 12 de novembro de 1997, foi aprovado e em 19 de

novembro foi sancionado pelo governador Marcelo Alencar, recebendo n.°

2.837/97.

No artigo 1.° estabelece que:

Fica criado o Conselho Estadual dos Direitos da Mulher – Cedim/RJ,

vinculado ao Gabinete Civil da Governadoria do Estado do Rio de Janeiro,

com a finalidade de elaborar e implementar, em todas as esferas de

administração do Estado do Rio de Janeiro, políticas públicas sob a ótica de

gênero, destinadas a garantir a igualdade de oportunidades e de direitos entre

homens e mulheres, de forma a assegurar à população feminina o pleno

exercício de sua cidadania (Alerj, 1997, não paginado).

Após 10 anos da criação do Cedim foi sancionada a Lei de sua criação,

só possível diante das conquistas alcançadas pelo movimento de mulheres e

feminista no campo da equidade de gênero no estado do Rio de Janeiro, que em

última instância, expressa as conquistas em âmbito nacional e internacional.

4.5.4 A tramitação da lei dos Centros de Referência da Mulher

Em 1997, na sexta legislatura, a deputada Alice Tamborindeguy

(PSDB) apresentou à Mesa Diretora o projeto de Lei 1117/97 que “cria centros de

referências da mulher, visando o apoio à mulher vítima de qualquer tipo de

violência, com atendimento social, psicológico, médico e jurídico zelando pelo

aprofundamento de sua condição humana e possibilidade de mudança” (Alerj,

1998, não paginado). Na sua justificativa, a autora dá ênfase para as

consequências decorrentes da violência contra a mulher praticada pelo seu

parceiro íntimo.

A exemplo de outro projeto apresentado por mim, a minha maior

preocupação é no sentido de dar todo o direito de amparo e assistência social,

psicológica, médica e jurídica a essas mulheres, que, quando em vez, não têm

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qualquer auxílio de parentes ou amigos, tendo que voltar ao convívio com

seu agressor. E o pior: segundo estatísticas, as agressões quase sempre

ocorrem por marido ou companheiro que chega em casa no seu mais elevado

estado etílico.

Ainda, de acordo com os dados, a mulher que fora obrigada a sair de casa

correndo para que uma coisa pior não lhe acontecesse, se vê obrigada a voltar

o lar em virtude do (s) filho (s) que deixou em companhia do agressor.

Mediante isso, se necessário for, que o filho ou filhos também seja (m)

amparado (s) com todos os demais direitos destinados à genitora (Alerj,

1998, não paginado).

O projeto obteve parecer favorável de todas as Comissões

Permanentes que o analisaram: Constituição e Justiça; Assuntos da Mulher, da

Criança e do Adolescente; Assuntos Municipais e Desenvolvimento Regional; e a

Comissão de Orçamento, Finanças e de Tributação, seguindo em regime de

tramitação ordinária, em novembro do mesmo ano, foi aprovado em Plenário na

primeira e segunda sessão e encaminhado ao governador Marcelo Alencar,

conforme estabelece os parágrafos 1°, 2° e 3° do artigo 115 da Constituição

Estadual do Rio de Janeiro.

Em dezembro, através do ofício GG n.° 884/94, o governador

Marcello Alencar comunicou o veto integral ao referido projeto, argumentando

que o mesmo desrespeitava o princípio constitucional e os interesses públicos.

Muito embora imbuído de elogiáveis propósitos, não me foi possível

emprestar a sanção governamental ao projeto de lei em apreço.

Com efeito, a Carta Política Estadual, em simetria com a Lei Maior, atribuiu

com exclusividade ao Chefe do Poder Executivo a prerrogativa de dar início

a leis que disponham sobre criação, estruturação e atribuições das Secretarias

de Estado e órgãos do Poder Executivo, ex vi do seu artigo 112, § 1° , inciso

II, alínea “d”.

Desta forma, resultou lamentavelmente vulnerado o princípio constitucional

de independência e harmonia entre os Poderes de Estado, postulado

fundamental do Estado Democrático de Direito, consignado no artigo 7° da

Carta Política Estadual.

Por outro lado, forçoso reconhecer que o artigo 3° da proposta está também

eivado de inconstitucionalidade, posto que a Carta Fundamental veda, em seu

artigo 167, incisos I e IV, o início de programas ou projetos não incluídos na

lei orçamentária anual (Alerj, 1998, não paginado).

O governador em suas razões afirma, ainda, que:

Importa, afinal, consignar que o veto ora aposto não trará prejuízos às

finalidades almejadas, posto que está vigente a Lei n° 2.449, de 24 de outubro

de 1995, que dispõe sobre a criação e manutenção de abrigos para

acolhimento provisório às mulheres e seus dependentes que forem vítimas de

violência, contendo serviços especializados como a assistência médica,

psicológica, jurídica e social (Alerj, 1998, não paginado).

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Ao evocar a Lei 2.449/95 o governador demonstra seu

desconhecimento sobre a assistência médica, psicológica, jurídica e social

promovida por esses dois serviços especializados no atendimento à mulher vítima

de violência, pois aos abrigos cabe promover essa assistência às mulheres e seus

dependentes que estejam em situação de abrigamento, enquanto que nos centros

de referência esse atendimento deve ser garantido a toda mulher que esteja sendo

vítima de qualquer tipo de violência, conforme estabelece o artigo primeiro, da

Lei n.º 2899/98 que cria os Centros de Referência da Mulher, visando o apoio à

mulher vítima de qualquer tipo de violência, com atendimento social, psicológico,

médico e jurídico, zelando pelo aprofundamento de sua condição humana e

possibilidade de mudança67

. .

Na Sétima Sessão Ordinária 68

de 11 de março de 1998, a Alerj rejeitou

o veto do governador Marcello Alencar e em 23 de março, o Presidente da Alerj,

deputado Sérgio Cabral, promulgou a lei n° 2899/98, em conformidade com o §

7° do artigo 115 da Constituição Estadual, encaminhando, na mesma data, ao

governador Marcello Alencar, por ofício, a cópia da referida Lei para publicação

no órgão oficial do poder Executivo (Alerj, 1998, não paginado).

Cabe ressaltar que essas Leis Ordinárias tiveram como objeto a

criação de serviços especializados no atendimento à mulher, voltados para coibir a

violência específica contra a mulher, ou seja, a violência de gênero. No entanto, a

motivação dessas espécies normativas esteve relacionada a violência de gênero

em que a mulher é vítima e seu parceiro íntimo autor da agressão, ou seja, a

violência doméstica contra a mulher perpetrada pelo parceiro íntimo.

Isto posto, as conquistas das Convenções Internacionais ratificadas

pelo Estado brasileiro e o processo da evolução do marco legal no âmbito do

poder legislativo federal e dos Estados, constituíram-se elementos importantes

para o processo de formulação da Lei n.° 11.340/06, Lei Maria da Penha.

67

A Lei n.º 2899/98 está disponível em: http://www.alerj.rj.gov.br/processo2.htm. Acesso em 02

jan. 2011) 68

Segundo o § 2° do Artigo 69 do Regimento Interno da Alerj “As Sessões Ordinárias são diurnas,

com início às quatorze horas e trinta minutos e término às dezoito horas e trinta minutos,

realizando-se de terça a sexta-feira” (Rio de Janeiro, 2009. p. 63). Nessa Sessão estiveram

presentes 45 deputados que, em votação secreta, rejeitaram o veto do governador com 37 votos. 08

votaram Não e nenhuma abstenção (Alerj, 1998, não paginado).

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4.6

“Maria da Penha: uma mulher, um caso, uma lei”69

Apesar do avanço no marco jurídico internacional e nacional, a

violência doméstica contra a mulher perpetrada pelo parceiro íntimo, constitui-se

numa desigualdade de gênero, ainda não percebida como injusta nas sociedades,

conforme demonstra os dados sobre a opinião das mulheres em relação às

agressões sofridas por seus parceiros apresentados pela OMS70

no Relatório sobre

violência e saúde: “Em sociedades mais tradicionais, surrar a esposa é, em grande

parte, considerado como uma consequência do direito do homem de infligir

punições físicas à sua esposa” (Heise & Garcia-Moreno, 2002, p. 94).

Em muitos países emergentes, as mulheres em geral concordam com a ideia

de que os homens têm direito a disciplinar suas esposas, até pela força se for

necessário (...). No Egito, mais de 80% das mulheres rurais são da opinião de

que as surras são justificadas em determinadas circunstâncias. É significativo

o fato de que uma das razões que as mulheres citam com maior frequência

como causa para apanhar é a mulher negar sexo ao homem (...).

As sociedades normalmente fazem a distinção entre motivos “justos” e

“injustos” para o abuso bem como entre níveis “aceitáveis e “inaceitáveis” de

violência. Desta forma, algumas pessoas – geralmente maridos ou membros

mais velhos da família – têm o direito de punir uma mulher fisicamente, sem

limites, por determinadas transgressões. Somente se o homem ultrapassar

essas fronteiras – por exemplo, tornando-se muito violento ou espancando

uma mulher sem uma causa aceitável – os outros interferirão.

Essa noção de “motivo justo” é encontrada em muitos dos dados qualitativos

sobre violência no mundo em desenvolvimento. Uma mulher indígena no

México comentou, “Eu acho que se a mulher é culpada, o marido tem o

direito de bater nela [...] Se eu tiver feito alguma coisa errada [...] ninguém

deve me defender. Mas, se eu não tiver feito alguma coisa errada, eu tenho o

direito de ser defendida”. No norte e no sul da Índia são encontrados

sentimentos semelhantes entre grupos-alvo participantes. “Se for um grande

erro”, comentou uma mulher em Tâmil Nadu, “então o marido tem razão em

69

Esta frase foi retirada do texto escrito por Beatriz Affonso e Valéria Pandjiarjian na

apresentação do livro “Sobrevivi... posso contar” de Maria da Penha Maia Fernandes (2010). 70

Além da discussão sobre a violência contra a mulher no âmbito dos direitos humanos, outra

perspectiva de debate foi ratificada em 1996, na Quadragésima Nona Assembléia Mundial de

Saúde, através da sua Resolução WHA 49.25, intitulada “Prevenindo a violência: uma prioridade

da saúde pública”, na qual declarou que a violência é um dos principais problemas mundiais da

saúde pública, quando constatou que, no mundo, há um aumento da incidência de lesões

intencionais que afetam pessoas de todas as idades e ambos os sexos, mas especialmente mulheres

e crianças.

Em resposta à essa Resolução, a Organização Mundial de Saúde (OMS), elaborou em Genebra, o

primeiro Relatório Mundial sobre Violência e Saúde, a partir de quatro temas, entre eles, a

violência perpetrada por parceiros íntimos. O Relatório, também, enfatiza a atuação das

organizações feministas e de mulheres do mundo todo que através de suas ações o tema da

violência contra as mulheres se tornou uma questão internacional.

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bater na esposa dele. Por que não? Uma vaca não vai obedecer se amanhar”

(Heise & Garcia-Moreno, 2002, p. 95 e 96).

No Brasil essa percepção se traduzia, por exemplo, no contexto dos

crimes julgados segundo a tese da “legítima defesa da honra” e, ainda hoje, no

senso comum, através dos ditados populares, dentre outros: “Em briga de marido

e mulher não se mete a colher”, ou “Ele até pode não saber por que bate, mas ela,

com certeza, sabe porque apanha”.

A dominação masculina está suficientemente assegurada para precisar de

justificação: ela pode se contentar em ser e em se dizer nas práticas e

discursos que enunciam o ser como se fosse uma evidência, concorrendo

assim para fazê-lo ser de acordo com o dizer. A visão dominante da divisão

sexual exprime-se nos discursos tais como ditados, os provérbios, os

enigmas, os cantos, os poemas ou nas representações gráficas tais como as

decorações murais, os motivos das cerâmicas ou dos tecidos. Mas, ela se

exprime igualmente bem nos objetos técnicos ou nas práticas: por exemplo,

na estrutura do espaço, e em particular nas divisões interiores da casa ou na

oposição entre a casa e o campo, ou ainda na organização do tempo, da

jornada ou do ano agrário, e, mais amplamente, em todas as práticas, quase

sempre ao mesmo tempo técnicas e rituais, e muito especialmente nas

técnicas do corpo, posturas, maneiras, porte.

Se esta divisão parece estar “na ordem das coisas”, como se diz algumas

vezes para falar daquilo que é normal, natural, a ponto de ser inevitável, é

porque está presente, em estado objetivado, no mundo social e também, em

estado incorporado, nos habitus, onde ela funciona como um princípio

universal de visão e de divisão, cmo um sistema de categorias de percepção,

de pensamento e de ação (Bourdieu, 1995, p. 137).

Neste sentido, a dificuldade da mulher em romper com o seu agressor,

em muito se dá em função tanto da objetivação do poder masculino nas relações

sociais, quanto das consequências da violência simbólica contra as mulheres.

Assim sendo, diz respeito a um padrão de comportamento aprendido e, de

diferentes maneiras, avalizado pela sociedade (Soares, 1999).

Efetivamente, a questão se situa na tolerância e até no incentivo da sociedade

para que os homens exerçam sua força-potência-dominação contra as

mulheres, em detrimento de uma virilidade doce e sensível, portanto mais

adequada ao desfrute do prazer. O consentimento social para que os homens

convertam sua agressividade em agressão não prejudica, por conseguinte,

apenas as mulheres, mas também a eles próprios. A organização social de

gênero, baseada na virilidade como força-potência-dominação, permite

prever que há um desencontro amoroso marcado entre homens e mulheres

(Saffioti, 2004, p. 75).

A violência doméstica contra a mulher perpetrada pelo parceiro

íntimo, compreendida enquanto uma modalidade da violência de gênero possui

especificidades, pois “ocorre numa relação afetiva, cuja ruptura demanda, via de

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regra, intervenção externa” (Saffioti, 2004, p.79) podendo ocorrer em “todos os

países, independentemente do grupo social, econômico, religioso ou cultural”

(OMS, 2002, p. 91) e “diferentemente da violência urbana, essa violência

acontece sobre as mesmas vítimas, tornando-se habitual (Saffioti, 2004, p.85) e

com movimentos de saída da relação e de seu retorno, denominado de ciclo da

violência.

Segundo essa concepção, as relações violentas teriam três fases distintas,

cíclicas. A primeira fase é o acúmulo da tensão, em que brigas constantes ou

disputas criam um clima de insegurança. A segunda fase seria o episódio

agudo da violência, e nesse momento, a mulher muitas vezes procura ajuda.

Na terceira fase, o agressor geralmente se arrepende, pede desculpas, e

muitas vezes o casal retoma a relação, na esperança de que dessa vez os

episódios de violência nunca mais ocorram. Inicia-se, então, a fase da “lua-

de-mel”, na qual o casal faz as pazes e fica enamorado novamente. Com o

tempo, a tensão volta a se acumular, retornando à primeira fase até que o

acúmulo leve a um novo episódio de violência (Schraiber, 2005, p. 132-133).

Nesse sentido, “deixar um relacionamento abusivo é um processo e

não um evento ‘definitivo’ (Heise & Garcia-Moreno, 2002, p. 97). A história de

Maria da Penha71

é exemplar.

Como muitas mulheres, Maria da Penha Maia Fernandes, uma

biofarmacêutica brasileira, foi vítima de violência doméstica. Em 1983, seu

então marido, pai de suas três filhas, tentou matá-la duas vezes: primeiro,

simulando um assalto ao lar do casal, atirando em Penha pelas costas,

enquanto esta dormia, e, posteriormente, tentando eletrocutá-la durante o

banho. O tiro a deixou paraplégica (Affonso e Pandjiarjian, 2010 apud

Fernandes, 2010, p. 190).

A vítima denunciou o caso à polícia e somente em 2002, seu agressor

foi preso.

Maria da Penha denunciou o caso à polícia, mas levou 19 anos e 6 meses

para conseguir que seu agressor, um economista e professor universitário,

fosse preso. Ele foi condenado pelo júri em 1991, mas a decisão foi

reformada pelo Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, e o processo retornou

à primeira instância para novo julgamento. O ex-marido de Maria da Penha

foi condenado por um segundo júri somente em 1996, e novos recursos foram

interpostos, retardando ainda mais a obtenção de uma decisão definitiva na

justiça brasileira (Affonso e Pandjiarjian, 2010 apud Fernandes, 2010, p.

190).

Em função da inércia dos tribunais brasileiros, Maria da Penha, o

Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil)72

e o Cladem73

denunciaram à

71

Maria da Penha, farmacêutica-química cearense, narra sua história em que foi vítima de

violência doméstica pelo seu marido, no livro “Sobrevivi... posso contar”. Armazém da Cultura,

2010.

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Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que o crime manifesta

uma violação dos direitos humanos, exercendo assim a cidadania ativa

(Benevides, 2002) e o Brasil “por não haver efetivamente tomado por mais de 15

anos as medidas necessárias para processar e punir o agressor, apesar das

denúncias efetuadas” (OEA, 2001) assumiu uma posição de tolerância com a

violência cometida contra as mulheres. A denúncia foi baseada na Convenção

Americana sobre os Direitos Humanos e na Convenção de Belém do Pará.

Durante o processo de tramitação do caso, a Comissão Interamericana

encaminhou petição ao Estado brasileiro solicitando informações a respeito das

denúncias, no entanto, não obteve, durante todo seu processo, nenhuma resposta a

respeito das referidas violações. Em 2001, a Comissão Interamericana apresentou

o relatório final no qual responsabilizou o “Estado brasileiro pelas violações

sofridas por Maria da Penha pela obstrução de seu direito à justiça, por tantos

anos de impunidade” (Affonso e Pandjiarjian, 2010 apud Fernandes, 2010, p. 190)

e estabeleceu para o caso recomendações ao Estado brasileiro.

1. Completar rápida e efetivamente o processamento penal do responsável

pela agressão e tentativa de homicídio em prejuízo da Senhora Maria da

Penha Fernandes Mais.

2. Proceder a uma investigação séria, imparcial e exaustiva a fim de

determinar a responsabilidade pelas irregularidades e atrasos injustificados

que impediram o processamento rápido e efetivo do responsável, bem como

tomar as medidas administrativas, legislativas e judiciárias correspondentes.

3. Adotar, sem prejuízo das ações que possam ser instauradas contra o

responsável civil da agressão, as medidas necessárias para que o Estado

assegure à vítima adequada reparação simbólica e material pelas violações

aqui estabelecidas, particularmente por sua falha em oferecer um recurso

rápido e efetivo; por manter o caso na impunidade por mais de quinze anos; e

por impedir com esse atraso a possibilidade oportuna de ação de reparação e

indenização civil (OEA, 2001).

No âmbito das políticas públicas de enfrentamento da violência

doméstica contra a mulher, a Comissão determinou ao Brasil:

72

“O Cejil é uma organização não-governamental, sem fins lucrativos, que defende e promove os

direitos humanos no continente americano por meio do uso estratégico das ferramentas oferecidas

pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos. O Cejil oferece assessoria e assistência jurídica

gratuita a vítimas de violações a direitos humanos e às organizações que as representam, na busca

pela justiça que não foi alcançada em seus próprios países. Nesta tarefa, o Cejil dá prioridade aos

setores mais excluídos e perseguidos do continente. Para o Cejil, o papel das vítimas é

fundamental, bem como o trabalho em consonância com defensores e defensoras de direitos

humanos e organizações parceiras com quem litiga, coordena esforços e compartilha êxitos na

proteção dos direitos humanos (Affonso e Pandjiarjian, 2010 apud Fernandes, 2010, p. 191), 73

Conferir nota 18 desse capítulo.

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4. Prosseguir e intensificar o processo de reforma que evite a tolerância

estatal e o tratamento discriminatório com respeito à violência doméstica

contra mulheres no Brasil. A Comissão recomenda particularmente o

seguinte:

a) Medidas de capacitação e sensibilização dos funcionários judiciais e

policiais especializados para que compreendam a importância de não tolerar a

violência doméstica;

b) Simplificar os procedimentos judiciais penais a fim de que possa ser

reduzido o tempo processual, sem afetar os direitos e garantias de devido

processo;

c) O estabelecimento de formas alternativas às judiciais, rápidas e efetivas de

solução de conflitos intrafamiliares, bem como sensibilização com respeito à

sua gravidade e às consequências penais que gera;

d) Multiplicar o número de delegacias policiais especiais para a defesa dos

direitos da mulher e dotá-las dos recursos especiais necessários à efetiva

tramitação e investigação de todas as denúncias de violência doméstica, bem

como prestar apoio ao Ministério Público na preparação de seus informes

judiciais.

e) Incluir em seus planos pedagógicos unidades curriculares destinadas à

compreensão da importância do respeito à mulher e a seus direitos

reconhecidos na Convenção de Belém do Pará, bem como ao manejo dos

conflitos intrafamiliares (OEA, 2001).

O Relatório foi enviado ao Estado brasileiro em março de 2001 e foi

concedido o prazo de um mês, para o cumprimento das recomendações. No

entanto, o prazo foi expirado e a Comissão não obteve resposta. Então, “decidiu

reiterar as conclusões e recomendações dos parágrafos 1 e 2, tornar público, este

relatório e incluí-lo em seu Relatório Anual Assembléia Geral da OEA (OEA,

2001).

Após a publicação do referido Relatório, várias ações, com destaque

para as campanhas junto aos meios de comunicação foram realizadas no Brasil e

os movimentos de mulheres e feminista realizaram várias atividades para a

implementação das recomendações da CIDH.

No entanto, apenas no ano de 2002 é que alguns avanços começaram a

despontar. Em março as peticionárias solicitam a realização de uma audiência

de seguimento na CIDH/OEA. E apenas após essa audiência o processo

criminal é finalizado. Logo, em outubro, foi realizada nova reunião de

trabalho junto à CIDH para acompanhar a implementação das

recomendações. Imediatamente, então efetua-se a detenção do agressor, que

estava dando aulas na Universidade Federal do Rio Grande do Norte

(Affonso e Pandjiarjian, 2010 apud Fernandes, 2010, p. 194).

Vale lembrar que, conforme já abordamos no presente capítulo,

somente em 2002, o Brasil apresentou, depois de quase 20 anos, pela primeira vez

o Relatório Nacional sobre a Cedaw à Comissão que monitora o cumprimento da

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Convenção, enquanto parte de seu compromisso internacional de informar,

periodicamente, as medidas que vem realizando para combater a discriminação

contras as mulheres brasileiras.

No campo do marco legal, a Lei 11.340/2006, batizada de Lei Maria

da Penha, “é sem dúvida, um dos resultados mais positivos que a história e o

processo de Penha tanto ajudaram a construir, conquistar e fazer existir” (Affonso

e Pandjiarjian, 2010 apud Fernandes, 2010, p. 194).

4.6.1 O processo de formulação da lei n.° 11.340 (Lei Maria da Penha)

Apesar do avanço no marco legal em âmbito internacional e nacional,

conforme abordamos no presente capítulo, até a Lei 11.340/06 a violência

doméstica contra a mulher cometida pelo parceiro íntimo, continuava sendo

absorvida e absolvida pelo sistema jurídico (Barsted, 2003, p. 15).

Há, de fato, uma cultura nacional, apoiada em contexto histórico de exclusão

social, que naturaliza as discriminações de gênero e diminui sensivelmente o

alcance dos preceitos constitucionais de igualdade. Além disso, a produção

doutrinária do direito, mesmo a mais democrática, não tem igualmente

incorporado a perspectiva de gênero, desconhecendo o trabalho inovador de

juristas feministas (Barsted, 2003, p. 15).

Nesse tempo, a legislação brasileira constava com instrumentos legais

contraditórios no que se refere à violência contra a mulher. A Lei 9.099/9574

(Leis

dos Juizados Cíveis e Criminais – Jecrims) ao incluir a violência contra a mulher

no rol dos “crimes de menor potencial ofensivo”, “praticamente descriminalizou

as violências mais comuns cometidas contra as mulheres por tais agentes – lesões

corporais e ameaças, dentre outras” (Barsted, 2003, p. 15), enquanto que no

Código Penal brasileiro, no artigo 6175

considera que, os crimes cometidos por

74

A Lei n.º 9.099/95 que Dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais no artigo 61

define que “Consideram-se as infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta

Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois)

anos, cumulada ou não com multa. (Redação dada pela Lei n.º 11.313, de 2006.” (Brasil, 1995) O

texto completo da Lei está disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9099.htm.

Acesso em 20 jan 2011) 75

O artigo 61 do Código Penal brasileiro estabelece que: “São circunstância que sempre agravam

a pena, quando não constituem ou qualificam o crime: I – a reincidência; II – ter o agente cometido

o crime: (...) e) contra ascendente, descendente, irmão ou cônjuge; (...)” (Câmara dos Deputados,

2011. p.42).

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pessoas que privam da intimidade da vítima devem ser considerados de maior

gravidade.

A partir da lei 9.099/95, a experiência do/as profissionais que atuam

nos serviços de atendimento à mulher vítima de violência doméstica, demonstra

que a “aplicação da referida Lei nesses casos tem contribuído para a banalização

e a quase descriminalização de fato e de direito desses delitos. São mulheres as

cerca de 70% das denunciantes de lesões corporais e ameaças, cometidas por

maridos e companheiros” (Barsted & Lavigne, 2002, p. 8). Em detrimento à

magnitude desse índice, a Lei 9.099/95, na prática, tornou-se a lei da violência

doméstica.

Em 2001, foi realizado na sede da Cepia, no Rio de Janeiro, o primeiro

encontro para promover refletir de forma crítica e sistemática sobre a Lei

9.099/95, avaliando seu impacto na vida das mulheres.

Nessa reunião constatou-se a banalização com que tem sido tratada a

violência contra a mulher, em especial as lesões corporais e as ameaças,

caracterizadas pela Lei como “crimes de menor potencial ofensivo.” Avaliou-

se que os melhores esforços para aperfeiçoar a Lei 9.099/95 esbarram no

marco ideológico dessa lei que não incorporou a existência de relações de

poder entre homens e mulheres, em especial no espaço doméstico. Como

bem sintetizou a advogada Carmen Campos, do grupo Themis, essa é uma lei

que pressupõe um delito eventual entre homens, ao contrário da violência

doméstica que, longe de ser um fato isolado, desenvolve-se durante anos e

atinge as mulheres de forma contínua (Barsted, 2001, p. 12).

Diante dessa realidade, um grupo de feministas76

operadoras do

direito, iniciou uma articulação para avaliar a Lei 9.099/95, estudar os projetos em

tramitação no Congresso Nacional que tratam sobre a matéria e a legislação sobre

violência doméstica contra a mulher nos países latino-americanos para “buscar

uma resposta legislativa adequada e coerente com a Convenção de Belém do

Pará” (Barsted, 2003, p. 15).

Algumas das conclusões desse grupo de trabalho foram: rejeitar a Lei

9.099/95 no que se refere à violência doméstica cometida contra as mulheres,

dado que esta não é uma violência de “menor potencial ofensivo”; elaborar

um anteprojeto de lei sobre violência contra as mulheres que incorpore a

preocupação com as vítimas, incluindo medidas de proteção; debater esse

76

A primeira reunião aconteceu na sede da Cepia, no Rio de Janeiro, nos dias 19 e 20 de agosto de

2002 e contou com a presença das “advogadas Leila Linhares Barsted (Cepia), Carmen Campos

(Grupo Themis), Silva Pimentel (Cladem), Iáris Ramalho (Cfemea), Ester Kosoviski

(Universidade do Estado do Rio de Janeiro), Elizabeth Garcez (Agende), Beatris Galli (Advocaci),

Rosana Alcântara (Cedim), além da Defensora Rosane Reis Lavigne e da Procuradora da

Pepública Ela Wiecko de Castilho” (Barsted, 2002, p. 8).

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anteprojeto com o movimento de mulheres, com parlamentares e membros da

magistratura, dentre outros atores sociais (Barsted & Lavigne, 2002, p. 8 e 9).

A partir de então, o Consórcio de ONG’s e operadoras do direito

feministas construíram a primeira versão do projeto de Lei específica para o

enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher.

Tal proposta fundamenta-se em alguns princípios: a violência contra as

mulheres é uma violação dos direitos humanos; o direito à segurança e ao

acesso à justiça é parte integrante dos Direitos Humanos; o Estado tem o

dever de atuar de forma eficaz na prevenção, no combate e na reparação

dessa violência assegurando os Direitos Humanos das Mulheres (Barsted,

2003. p. 15).

Em 2003, o Consórcio apresentou a primeira versão da proposta à

Bancada Feminina no Congresso e, no início de 2004, entregou essa proposta à

Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM), pois entendia que a SPM

teria a competência de agilizar o processo de tramitação junto ao Congresso

Nacional.

A SPM partindo da proposta formulada pelo ONG’s e operadoras do

direito feministas, instaurou um Grupo de Trabalho Interministerial77

com o

objetivo de elaborar proposta de medida legislativa para coibir a violência

doméstica e familiar contra a mulher. Em novembro de 2004, a então Secretária

Especial de Políticas para as Mulheres, Nilcéia Freire encaminhou a proposta para

apreciação do Presidente Lula. Nesse documento, apresenta uma síntese das

propostas que integram o Projeto de Lei. Dentre os vários tópicos, merece

destacar alguns itens:

12. É contra as relações desiguais que se impõem os direitos humanos das

mulheres. O respeito à igualdade está a exigir, portanto, uma lei específica

que dê proteção e dignidade às mulheres vítimas de violência doméstica. Não

haverá democracia efetiva e igualdade real enquanto o problema da violência

não for devidamente considerado. Os direitos à vida, à saúde e à integridade

física das mulheres são violados quando um membro da família tira

vantagem de sua força física ou posição de autoridade para infligir maus

tratos físicos, sexuais, morais e psicológicos.

13. A violência doméstica fornece as bases para que se estruturem outras

formas de violência, produzindo experiências de brutalidades na infância e na

adolescência, geradoras de condutas violentas e desvios psíquicos graves.

77

O Grupo de Trabalho Interministerial foi criado pelo Decreto n.º 5.030/2004, integrado pela

Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, da Presidência da República, na condição de

coordenadora; Casa Civil da Presidência da República; Advocacia-Geral da União; Ministério da

Saúde; Secretaria especial dos Direitos Humanos da Presidência da República; Secretaria Especial

de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República; Ministério da Justiça e

Secretaria Nacional de Segurança Púbica/MJ (Câmara dos Deputados, 2004. p. 14).

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14. As disposições preliminares da proposta apresentada reproduz as regras

oriundas das convenções internacionais e visa propiciar às mulheres de todas

as regiões do País a cientificação categórica e plena de seus direitos

fundamentais previstos na Constituição Federal, a fim de dotá-la de maior

cidadania e conscientização dos reconhecidos recursos para agir e se

posicionar, no âmbito familiar e na sociedade, o que, decerto, irá repercutir,

positivamente, no campo social e político, ante ao factível e equilíbrio nas

relações pai, mãe e filhos (Câmara dos Deputados, 2004, p. 16).

No mesmo ano, através de mensagem Presidencial, o Poder Executivo

(SPM) apresentou o Projeto de Lei que recebeu o número do PL 4559/2004.. A

tramitação seguiu em Regime de Urgência e a proposição sujeita à Apreciação do

Plenário. Em 13 de dezembro de 2004, foi encaminhado às Comissões de

Segurança Social e Família, Finanças e Tributação, Comissão de Direitos

Humanos e Minorias e Constituição e Justiça e de Cidadania para emissão de

parecer. O referido Projeto de Lei absorveu grande parte das propostas da primeira

versão, no entanto, no artigo 29 manteve a competência da Lei 9.099/95 para os

crimes com pena de até 2 anos (Câmara dos Deputados, 2004, p. 10).

Não conformadas com a manutenção da competência da Lei 9.099/95, demos

prosseguimento ao desafio de criarmos uma resposta processual inovadora,

contando com o decisivo apoio técnico e político da Relatora e de juristas de

renomado saber nas áreas civil e criminal, respectivamente os Drs. Alexandre

Câmara e Humberto Dalla, do Rio de Janeiro (Consório de ONGs &

Operadoras do direito feministas, 2005).

Nesse processo, a deputada Jandira Feghali, relatora da Comissão de

Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados, em conjunto com o

movimento de mulheres e feminista, realizaram audiências públicas em seis

estados brasileiros, dentre os quais o Rio de Janeiro78

.

As Audiências Públicas têm se constituído em um importante espaço de

participação e de escuta da sociedade civil, em especial das mulheres vítimas

de violência. Nesse espaço, os movimentos de mulheres, os Poderes

Executivo, Legislativo e Judiciário estão debatendo a proposta de lei, a

questão do enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher,

bem como as políticas públicas existentes e/ou necessárias para tal

enfrentamento. Assim, acreditamos que esse processo de escuta tem sido

fundamental para a produção de um substitutivo ao PL 4559/04 capaz de

contemplar as demandas e as necessidades das mulheres, em suas

especificidades e nos distintos contextos regionais e sociais (Consório de

ONGs & Operadoras do direito feministas, 2005).

78

A Audiência Pública no estado do Rio de Janeiro aconteceu na Alerj no dia 06 de junho de

2205, promovida pela deputada estadual Heloneida Studart (PT) e pela deputada federal Jandira

Feghali (PC do B/RJ)

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Maria Conceição dos Santos, em entrevista à autora, afirma que o

estado do Rio de Janeiro teve um papel importantíssimo nesse debate, uma vez

que a relatora do projeto, deputada federal Jandira Feghali, é do Rio de Janeiro e

destaca a atuação da Cepia como uma ONG impulsionadora de projetos de

violência contra a mulher no estado do Rio de Janeiro. Lembra também que o

Cedim participou ativamente desse processo, inclusive realizando vários

seminários sobre a temática e chama a atenção para o pioneirismo do Rio de

Janeiro na assinatura do Pacto de Enfrentamento à Violência e na criação dos

juizados, apesar do fato de não existir nenhum juizado no interior do Estado

(Santos, 2010).

Desse intenso debate foi construído o 1.º Substituto ao PL 4559/04, no

qual estabelece que ao processo, julgamento e execução das causas cíveis e

criminais em que esteja caracterizada a violência doméstica e familiar contra a

mulher serão aplicados os Códigos de Processo Penal e Civil, assim como a

legislação especial em relação à criança e ao adolescente e ao idoso, que não

conflitarem com o estabelecido nesta Lei. Para conhecer e decidir as referidas

ações cíveis e penais prevê a criação dos Juizados de Violência Doméstica e

Familiar contra a Mulher (Câmara dos Deputados, 2004, p. 65). Em agosto de

2005, a Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados

aprovou o Projeto de Lei com o novo Substitutivo apresentado pela relatora,

deputada Jandira Feghali.

Em 06 de março de 2006, o PL 4559/2004 entrou em Pauta no

Plenário, mas não foi apreciado. Esse fato ocorreu, também, na Sessão Ordinária –

Deliberativa dos dias 07, 08, 13, 14 e 20 de março e na Sessão Extraordinária –

Deliberativa dos dias 08 e 15 do mesmo mês. Finalmente, na Sessão

Extraordinária – Deliberativa do dia 21 de março, foi aprovado o Requerimento

dos Líderes que solicita a inversão de pauta, a fim de que o projeto fosse

apreciado. Encerrada a discussão, em votação em turno único, foi votada e

aprovada a redação final do referido PL. A matéria seguiu para o Senado Federal

(PL 4559-C/04), no dia 23 de março.

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Em 31 de março/2006 a Lei foi apresentada no Senado Federal79

, em

04 de julho/2006 a Matéria foi incluída na Ordem do Dia, extrapauta, em regime

de urgência, aprovada e publicada no dia seguinte no Diário do Senado Federal e

sancionada pelo Presidente da República, Luís Inácio Lula da Silva, em 07 de

agosto de 2006.

O processo de elaboração da Lei n.º 11.340/06 (Lei Maria da Penha) é

resultado do “processo democrático e que, por isso mesmo, deve ser analisada

como um caso exemplar bem-sucedido de articulação política entre a sociedade

civil/movimento de mulheres e os Poderes constituídos – Executivo e Legislativo”

(Barsted, 2006).

Esse processo inaugura um novo formato de elaboração de Lei na

sociedade brasileira. Nessa perspectiva, a Lei Maria da Penha, também, torna-se

marco histórico.

A Lei Maria da Penha, Lei 11.340, sancionada em 07 de agosto de 2006, se

constitui em uma reconhecida conquista dos esforços empreendidos pelos

movimentos de mulheres e feministas, com o empenho de órgãos

governamentais, não-governamentais e do Congresso Nacional. Tem por

objetivo maior criar “mecanismos para coibir e prevenir a violência

doméstica e familiar contra a mulher’ (artigo 1º), baseando-se na

Constituição Federal (art. 226, parágrafo 8), na Convenção sobre a

Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, na Convenção

Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher,

entre outros tratados internacionais ratificados pelo Brasil. Essa Lei dispõe

também sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar

contra a Mulher, e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres

em situação de violência doméstica e familiar, além de prescrever a

necessidade de uma ação ampla e integral na prevenção e no combate a essa

violência, por parte dos diversos níveis de governo e do Poder Judiciário, e

de setores organizados da sociedade civil (Gomes et al, 2009, p. 04).

A Lei conceitua violência doméstica e familiar contra a mulher no seu

Art. 5.º:

Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a

mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte,

lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:

I – no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de

convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as

esporadicamente agregadas;

79

Maiores informações sobre o processo de tramitação do PL 4559/2004 no Senado Federal conf.:

http://www.senado.gov.br/atividade/Materia/detalhes.asp?p_cod_mate=77244. Acesso em 21 jan.

2011.

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II – no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por

indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais,

por afinidade ou por vontade expressa;

III – em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha

convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.

Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de

orientação sexual (Câmara dos Deputados, 2011, p. 328 e 329).

Determina, também, as linhas mestras de uma política de prevenção e

atenção para o enfrentamento da violência doméstica e familiar contra as

mulheres, assim como define, em seu Artigo 7.º, as formas de violência doméstica

e familiar contra a mulher.

I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua

integridade ou saúde corporal;

II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause

dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe

o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações,

comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento,

humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição

contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do

direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde

psicológica e à autodeterminação;

III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a

presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante

intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou

a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar

qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao

aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou

manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e

reprodutivos;

IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure

retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos

de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos

econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;

V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure

calúnia, difamação ou injúria (Câmara dos Deputados, 2011, p. 329 e 330).

A Lei Maria da Penha, adequando-se à Convenção Belém do Pará,

retirou da competência dos juizados criminais o julgamento dos delitos de

violência doméstica contra as mulheres, determinando a criação dos Juizados

Especiais de Violência Doméstica e Familiar contra as Mulheres.

Além disso, prevê a criação de um conjunto de serviços

especializados: centros de atendimento integral e multidisciplinar, casas-abrigo,

delegacias, núcleos de defensoria, serviços de saúde e centros de perícia médico-

legal especializados no atendimento à mulher em situação de violência doméstica

e familiar.

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A trajetória do movimento de mulheres e feminista no Brasil e no

estado do Rio de Janeiro pós-Constituição de 1988 sobre a evolução do marco

legal referente ao enfrentamento da violência doméstica contra a mulher é

marcado, em síntese, por avanços e recuos, com vitórias e fracassos, refletindo os

rumos e as contradições da própria democracia brasileira (Barsted, 2008, p. 148).

Vinte anos se passaram da promulgação da Constituição Federal de 1988, e

de certa forma, ainda vivemos na “corda bamba”, tentando consolidar

conquistas, equilibrando-nos, tendo como norte a utopia de uma cidadania

completa, embora saibamos que só teremos a cidadania possível. Pode-se

avaliar que muitos avanços foram possíveis, graças à combinação da

existência de grupos organizados de mulheres, com demandas bem

fundamentadas e amadurecidas no ativismo e na reflexão teórica, com

capacidade de estabelecer articulações nacionais e internacionais. É essa

característica dos movimentos de mulheres que nos possibilita manter acesa a

resistência contra os fundamentalismos e não perder o rumo da caminhada

(Barsted, 2008, p. 149).

A aprovação das Leis constitui um passo importante para que sejam

eliminadas as formas de discriminação contra a mulher e consequentemente

alcançada a equidade de gênero de fato, já que a de direito está garantida nas

espécies normativas. Assim sendo, o desafio posto para o movimento de mulheres

e feminista brasileiro e fluminense é garantir a implementação, quer seja através

da regulamentação, com leis complementares e específicas, quando é exigido,

quer seja pressionando o poder executivo, no acompanhamento do cumprimento

da legislação, de fato, na vida real (Tabak, 1994, p. 50).

Em retrospectiva, sobre a evolução do marco legal no tema da

violência contra a mulher, no Brasil, para as entrevistadas é consenso que a Lei

9.099/95 aplicada aos casos de violência contra a mulher foi, em última instância,

negativa. Para Martha Mesquita Rocha, atual Chefe da Polícia Civil do estado do

Rio de Janeiro, por exemplo, a aplicação equivocada dessa Lei resultou nas

conciliações realizadas em condições desiguais de gênero, na impossibilidade de

pedir a prisão preventiva e atuação em flagrante delito, por exemplo, reforçando a

cultura da prevalência do poder masculino sobre o feminino, por isso, em seus

termos, “(...) foi um período muito ruim para a questão da violência até no seu

aspecto cultural, porque aí é que se manifesta a banalização da violência, a

mercantilização da violência” (Rocha, 2010).

Para o conjunto das entrevistadas, também é consenso de que a Lei

Maria da Penha configurou-se num importante instrumento que veio contribuir no

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para romper com a cultura da violência de gênero. Sobre esse aspecto, a ex-

deputada Cida Diogo comenta: “só o fato de muitas vezes, até fazem de forma

pejorativa, de forma não muito boa, mas, quando você vê a pessoa comentando:

‘Olha! Eu vou jogar a Lei Maria da Penha em você (...).” (Diogo, 2010)

demonstra que a Lei para além de ser instrumento jurídico, está sendo, no

cotidiano das relações sociais incorporada no discurso enquanto argumento contra

a violência doméstica contra a mulher.

No entanto, Martha Mesquita Rocha, adverte para a sua aplicabilidade.

E me incomoda muito, e aí você vê essa questão cultural, dos juízes

contrariando a Lei, aplicando a Lei de forma equivocada. A lei não sendo

aplicada na sua amplitude, porque o Juiz, ele tem poderes do Direito Civil e

do Direito Penal. Mas, na verdade, na questão da guarda, na questão da

separação, na questão do patrimônio [...] na medida em que a casa, às vezes,

é de propriedade do Autor [...] então há alguma resistência da aplicação do

afastamento do lar na sua amplitude alegando que o patrimônio, na verdade,

teria aí uma questão do patrimônio (Rocha, 2010).

Em relação aos serviços especializados no atendimento à mulher

vítima de violência, previstos nas leis ordinárias do estado do Rio de Janeiro Leila

L. Barsted, em entrevista à autora, afirma:

O problema de todas essas leis, na realidade, é que nenhuma delas teve a

força de obrigar o poder público a incluir no seu orçamento recursos para o

funcionamento, para a criação desses equipamentos. Então, se você olhar o

Rio de Janeiro, quanto tempo nós levamos para ter apenas dez Deams? de 85

a 2010: 25 anos” (Barsted, 2010).

O estado do Rio de Janeiro exemplifica essa questão, pois em 25 anos

foram construídas, apenas, onze Deams, portanto, esse é, sem dúvida, um dos

desafios que o movimento de mulheres brasileiro e fluminense vem enfrentando,

no campo das políticas públicas voltadas para o enfrentamento da violência contra

a mulher, desde a década de 1980.

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