A Dimensao Subjetiva Do Conceito Lugar - Paulo Irineu

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Uberlândia-MG, 1 a 3 de Setembro de 2010 28 A DIMENSÃO SUBJETIVA DO CONCEITO “LUGAR” E A COMPLEXIDADE DOS DESLOCAMENTOS FORÇADOS 1 Paulo Irineu Barreto Fernandes Aluno especial do Programa de Pós-Graduação (Doutorado) em Geografia – UFU Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Triângulo Mineiro [email protected] RESUMO O presente texto apresenta um estudo dos fundamentos filosóficos do conceito “lugar”, quando utilizado na Geografia e no discurso geográfico. Observa-se que o conceito de “lugar” é o que, no universo da Geografia, melhor exprime a relação da convivência: é a dimensão da nossa relação espaço-temporal com o mundo e com a realidade. O trabalho se divide em duas partes bem definidas: uma investigação a respeito da dimensão subjetiva (psicomórfica) do conceito “lugar” e, como desdobramento desta, uma análise sobre a complexidade própria dos deslocamentos forçados. A hipótese formulada é a de que há um primado da subjetividade na maneira como se compreende o “lugar” e na maneira como os sujeitos se relacionam com o mesmo. Eis o porquê de as remoções e os deslocamentos forçados serem, via de regra, tão complexos e traumáticos. Palavras-chave: geografia, lugar, discurso geográfico. INTRODUÇÃO O universo acadêmico brasileiro vive um momento de aproximação de áreas e disciplinas que sempre estiveram separadas, até mesmo porque cada uma delas lutava para definir o seu objeto de estudo, conquistar o seu espaço e consolidar a sua área de abrangência. Neste momento de aproximações, estimulado por uma nova configuração global e por iniciativas da gestão educacional de âmbito nacional, com a normatização dos PCNs e a instituição do Enem que, desde 2009, passou a ter uma nova conotação, destaca-se a relação entre a Filosofia e a Geografia. Obras como “Geografia e Filosofia”, de Eliseu Sposito e “O que é a Filosofia?”, de Deleuze e Guatarri, propiciam um diálogo que está apenas no seu início, conforme evidenciam as seguintes citações: “A geografia, como campo do saber científico, tem uma história marcada pelo distanciamento e pela quase ausência do diálogo com a Filosofia” (SPOSITO, 2003, p.9) e “Se a filosofia aparece na Grécia, é em função de uma contingência mais do que de uma necessidade (...) de uma geografia mais do que de uma historiografia...” (DELEUZE e GUATARRI, 1997, p. 126). O texto a seguir toma como ponto de partida esse diálogo e tem como objetivo contribuir para com o mesmo. A proposta do presente texto é apresentar, na forma de introdução, um problema que pretendemos investigar de forma mais ampla em trabalhos subsequentes: o estudo dos fundamentos filosóficos do conceito “lugar”, quando utilizado na Geografia e no discurso geográfico. Observa-se que o conceito “lugar” é o que, no universo da Geografia, melhor exprime a relação da convivência: é a dimensão da nossa relação espaço-temporal com o mundo e com a realidade. “É o somatório das dimensões simbólicas, emocionais, culturais, políticas e biológicas” (LEITE, 1998, p. 10). Além disso, este conceito está entre os pilares 1 Trabalho desenvolvido sob a orientação do Prof. Dr. Vicente de Paulo da Silva

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A DIMENSÃO SUBJETIVA DO CONCEITO “LUGAR” E A COMPLEXIDADE DOS DESLOCAMENTOS FORÇADOS1

Paulo Irineu Barreto Fernandes Aluno especial do Programa de Pós-Graduação (Doutorado) em Geografia – UFU

Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Triângulo Mineiro [email protected]

RESUMO

O presente texto apresenta um estudo dos fundamentos filosóficos do conceito “lugar”, quando utilizado na Geografia e no discurso geográfico. Observa-se que o conceito de “lugar” é o que, no universo da Geografia, melhor exprime a relação da convivência: é a dimensão da nossa relação espaço-temporal com o mundo e com a realidade. O trabalho se divide em duas partes bem definidas: uma investigação a respeito da dimensão subjetiva (psicomórfica) do conceito “lugar” e, como desdobramento desta, uma análise sobre a complexidade própria dos deslocamentos forçados. A hipótese formulada é a de que há um primado da subjetividade na maneira como se compreende o “lugar” e na maneira como os sujeitos se relacionam com o mesmo. Eis o porquê de as remoções e os deslocamentos forçados serem, via de regra, tão complexos e traumáticos.

Palavras-chave: geografia, lugar, discurso geográfico.

INTRODUÇÃO O universo acadêmico brasileiro vive um momento de aproximação de áreas e disciplinas que sempre estiveram separadas, até mesmo porque cada uma delas lutava para definir o seu objeto de estudo, conquistar o seu espaço e consolidar a sua área de abrangência.

Neste momento de aproximações, estimulado por uma nova configuração global e por iniciativas da gestão educacional de âmbito nacional, com a normatização dos PCNs e a instituição do Enem que, desde 2009, passou a ter uma nova conotação, destaca-se a relação entre a Filosofia e a Geografia. Obras como “Geografia e Filosofia”, de Eliseu Sposito e “O que é a Filosofia?”, de Deleuze e Guatarri, propiciam um diálogo que está apenas no seu início, conforme evidenciam as seguintes citações: “A geografia, como campo do saber científico, tem uma história marcada pelo distanciamento e pela quase ausência do diálogo com a Filosofia” (SPOSITO, 2003, p.9) e “Se a filosofia aparece na Grécia, é em função de uma contingência mais do que de uma necessidade (...) de uma geografia mais do que de uma historiografia...” (DELEUZE e GUATARRI, 1997, p. 126). O texto a seguir toma como ponto de partida esse diálogo e tem como objetivo contribuir para com o mesmo.

A proposta do presente texto é apresentar, na forma de introdução, um problema que pretendemos investigar de forma mais ampla em trabalhos subsequentes: o estudo dos fundamentos filosóficos do conceito “lugar”, quando utilizado na Geografia e no discurso geográfico. Observa-se que o conceito “lugar” é o que, no universo da Geografia, melhor exprime a relação da convivência: é a dimensão da nossa relação espaço-temporal com o mundo e com a realidade. “É o somatório das dimensões simbólicas, emocionais, culturais, políticas e biológicas” (LEITE, 1998, p. 10). Além disso, este conceito está entre os pilares 1 Trabalho desenvolvido sob a orientação do Prof. Dr. Vicente de Paulo da Silva

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da Geografia, nas suas mais diversas abordagens, conforme evidencia Milton Santos: o espaço é “um conjunto de fixos (que servem para definir o lugar) e fluxos (as ações que atravessam ou se instalam nos fixos), que ao interagir expressam a realidade geográfica.” (SPOSITO, 2003, pp. 95 e 96 – O grifo é nosso)

Considerando a extensão do tema, tanto no aspecto da fundamentação filosófica, quanto nos seus desdobramentos no âmbito da Geografia, faz-se necessária a delimitação do campo de trabalho ora proposto, para evitar que, por excesso de abrangência, percamos em objetividade. Por isso, o presente trabalho é dividido em duas partes bem definidas, a saber: uma investigação a respeito da dimensão subjetiva (psicomórfica) do conceito “lugar” e, como desdobramento desta, uma análise sobre a complexidade dos deslocamentos forçados. O percurso acima especificado fornece evidências de que há um primado subjetivo na formulação do conceito “lugar” na Geografia, no discurso geográfico e nos seus mais diversos desdobramentos. Estas evidências constituem a base para a formulação de uma hipótese que marca a conclusão do presente texto e é o ponto de partida para estudos vindouros: há um primado da subjetividade na maneira como compreendemos o lugar e na maneira como nos relacionamos com o mesmo, eis porque as remoções, os deslocamentos forçados e os exílios são, via de regra, tão traumáticos.

A dimensão subjetiva do conceito “lugar” e a complexidade dos deslocamentos forçados. Sob o ponto de vista da historicidade, ainda causa espanto o fato de terem sido os gregos que introduziram a Filosofia, e o pensamento especulativo, no Ocidente, ainda mais quanto somos forçados a admitir a importância da constituição geográfica grega para que tal fato se desse. A importância dada pelos antigos gregos ao lugar em que viviam era ímpar. Os indivíduos, sobretudo os ilustres, se identificavam tanto com o seu local de origem, que o mesmo passava a ser parte de seu próprio nome: Tales de Mileto, Anaxágoras de Clazômena, Heráclito de Éfeso e tantos outros. O fato de associar o nome ao lugar de origem (ou de permanência) não só servia para denominar o cidadão da polis, quanto para localizá-lo espacialmente. Além disso, os gregos consideravam-se povos autóctones, ou seja, originários do lugar em que viviam e isto era motivo de grande orgulho. Embora ainda não houvesse, no contexto histórico do surgimento da filosofia, uma nação grega e muitas cidades do mundo pré-helênico lutassem entre si, o fato de compartilhar um lugar e uma língua conferia aos gregos (autóctones) um caráter único e os diferenciava dos demais povos.

A relação entre a razão (nome/sujeito) e a natureza (lugar/objeto) sempre constituiu um problema para o conhecimento humano. No que se refere à filosofia, este problema está na sua origem. Foi a partir de uma consideração acerca da constituição do mundo natural que o pensamento racional surgiu no ocidente, quando Tales afirmou que “a água é a origem e a matriz de todas as coisas” (PRÉ-SOCRÁTICOS, 1996, p. 43). Por mais simplificador que pareça, nos nossos dias, resumir numa única afirmação os primórdios do pensamento e da própria cultura ocidental, a afirmação de Tales contém um valor do qual não podemos escapar: o ser humano precisa compreender o mundo no qual está inserido e o primeiro impulso neste sentido foi dado na observação de que há uma realidade objetiva que afeta a sua sensibilidade: o lugar em que vive.

Na geografia e no discurso geográfico, há um ponto recorrente a respeito do estudo do lugar, é o de que o mesmo sempre foi abordado em plano secundário (HOLZER, 1999, p. 67), se comparado a outros conceitos fundamentais do discurso geográfico, como: paisagem, ambiente e território. Há quem afirme que o conceito “lugar” é auto-explicável (SUERTEGARAY, p. 99). Por outro lado, há também quem defenda que, entre os conceitos fundamentais da geografia, o conceito “lugar” é o menos desenvolvido (LEITE, p. 9), o que não deixa de ser intrigante, pois ainda há quem afirme que “o estudo do lugar é a matéria-

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prima da geografia, porque a consciência do lugar é uma parte imediatamente aparente da realidade, e não uma tese sofisticada (HOLZER, p. 69). Yi-Fu Tuan, ao apresentar o neologismo “topofilia”, estabelece uma relação indissociável entre o sentimento e o objeto e entre o lugar e o meio ambiente: “podemos estar certos de que o lugar ou meio ambiente é o veículo de acontecimentos emocionalmente fortes…” (TUAN, p. 107). Todas estas afirmações, quando tomadas em conjunto, nos permitem inferir que ainda há muito a se investigar sobre o conceito “lugar”. Comecemos, portanto, pelo fundamento: o que é “lugar”? É possível uma definição única do termo?

No que se refere à filosofia, o primeiro a propor uma definição para o termo “lugar” foi Aristóteles que, no livro IV da Física, afirma que o sentido mais preciso, a respeito do qual se pode enumerar uma substância, sem que este seja parte dela, é o lugar, ou aquilo que a contém (ABBAGNANO, 2000, p. 632). Ou seja, o lugar não é parte das substâncias ou dos corpos, mas é aquilo que os circunda e os situa no espaço. Na concepção aristotélica, portanto, o “lugar” possui uma realidade autônoma. Esta noção prevaleceu durante toda a antiguidade e foi um dos fundamentos da física aristotélica e, sobretudo, de sua cosmologia geocentrista: o lugar que a Terra ocupa no Universo é central.

Bem diferente é a concepção moderna, para a qual o lugar não difere dos corpos: o lugar... ...nada significa de realmente diferente dos corpos que afirmamos estarem em algum lugar, e indica apenas seu tamanho e forma, e como estão situados entre os outros corpos. Para determinar essa situação, é necessário referir-se a outros corpos que consideramos imóveis, mas, como tais corpos podem ser diferentes, podemos dizer que uma mesma coisa, ao mesmo tempo, muda e não muda de lugar (ABBAGNANO, 2000, p. 632).

Embora diferentes e, aparentemente, antagônicas, as duas concepções apresentam um fundamento comum: são noções meramente espaciais e objetivas de lugar, não consideram a subjetividade, que é, fundamentalmente, o que nos interessa no presente trabalho.

As concepções aristotélica e moderna de lugar, ao desconsiderarem os elementos subjetivos do termo, dificultam a sua conceituação, uma vez que ampliam muito a sua abrangência. Tomando-as como referência, temos uma noção muito ampla, embora objetiva, de lugar. “Podia-se dizer que o lugar é um dado; pode ser uma cidade, pode ser genericamente uma parte, pode ser um país, pode ser uma ilha, pode ser um continente, pode ser uma oficina” (SILVA, 1978, p. 127). Em uma biblioteca, o lugar pode ser a localização de um livro na prateleira, que sempre será diferente da localização de outro livro; em um estádio de futebol, pode ser um assento numerado, que será ocupado pelo portador do bilhete com aquele número; numa cidade, pode ser um ponto específico daquela construção urbana: uma ponte ou uma praça; enquanto que, numa dimensão astronômica, o lugar pode ser a posição determinada de um astro dentro de uma órbita, situado tanto espacial, quanto temporalmente.

Quais são, por sua vez, as implicações subjetivas do conceito “lugar” que “escapam” à definição meramente objetiva? São aquelas que se referem à maneira como os indivíduos vivenciam a experiência: tudo aquilo que acontece, acontece em determinado lugar, deixando uma marca característica. Tudo o que existe, ocupa um lugar, tanto objetivo e quantitativo, quanto subjetivo e qualitativo, no espaço.

... o papel do lugar é determinante. Ele não é apenas um quadro de vida, mas um espaço vivido, isto é, de experiência sempre renovada, o que permite, ao mesmo tempo, a reavaliação das heranças e a indagação sobre o presente e o futuro. A existência naquele espaço exerce um papel revelador sobre o mundo. (SANTOS, 2009, p. 114).

Como exemplos desta dimensão subjetiva de lugar, podemos citar comportamentos e “falas” comuns: uma pessoa que rompeu um relacionamento amoroso e sente-se abandonada, pode dizer: “aquela pessoa ocupa um lugar que era meu, na vida do meu ex-parceiro”, ou

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uma pessoa que está prestes a ser removida do seu lugar de origem, em virtude da construção de uma barragem, ou outro grande empreendimento, pode dizer: “eles estão nos tirando do lugar em que nascemos e construímos nossas vidas e do qual extraímos as nossas recordações, levando-nos para um lugar com o qual não nos identificamos”. Neste último exemplo, além das diferenças espaciais dos dois “lugares”, o que mais marca a diferença entre ambos, na subjetividade da pessoa removida, é a dimensão da vivência, da experiência. É por isto que o “lugar” exige, fundamentalmente, um ponto geográfico, um sentimento (subjetivamente localizado – um “endereço” psíquico) e uma reflexão (filosófica) sobre o encontro de ambos, do objetivo e do subjetivo, que constitui o primado “psicomórfico” do conceito. Sob a ótica da subjetividade, portanto, “lugar” é: “uma localização geográfica significativa, que implica em sentimentos e requer uma reflexão”. É esta a perspectiva de “lugar” que interessa ao presente trabalho.

Quadro 1

O que? Como? Portanto: Lugar, enquanto localização geográfica.

Fenômeno. Objetivo e material

Lugar, enquanto percepção, sentimento e recordação (reminiscência).

Representação. Subjetivo e imaterial

Lugar, enquanto reflexão. Conceito. “Psicomórfico”

É importante salientar, no entanto, que não se trata de propor uma “psicologia do lugar”, ou uma noção de lugar totalmente subjetiva e desprovida de substancialidade, pois, desta forma, correríamos o risco de cair no erro apontado e criticado por Werther Holzer: “Parece-me totalmente inadequada esta utilização do ‘lugar’ descaracterizado de suas qualidades espaciais e geográficas e transfigurado em um mero símbolo não-espacial denominado ‘lugar de memória’ ou ‘lugar distinto’” (HOLZER, p. 75).

O que se busca no presente texto é a investigação do conceito “lugar” sob o ponto de vista de que ele não pode ser concebido sem a existência do sujeito, a priori. Não porque é o sujeito que o concebe, o que seria óbvio, mas em um sentido semelhante ao que permite pressupor, a priori, a existência do espaço. Ou seja, é possível pensar o espaço sem a interferência humana, mas não o lugar. O lugar é o espaço humanizado, é um centro de significados e significações que só existem no entendimento humano. Esta proximidade entre o humano e o lugar permite estabelecer um paralelo ontológico entre ambos: o ser do indivíduo humano se assemelha ao ser do lugar. Assim como o homem, o lugar exige uma identidade, um nome. O lugar possui uma extensão corpórea, uma localização geográfica, na mesma medida em que os seres humanos possuem um corpo. O lugar possui uma história e uma “biografia”, assim como o humano. Do ponto de vista da subjetividade, não é muito diferente o querer estar com alguém, do querer estar em algum lugar: “...seria possível a um indivíduo apaixonar-se a primeira vista por um lugar tal qual por uma pessoa” (LEITE, p. 10).

Quadro 2

Requer/possui Indivíduo humano Lugar Nome/identidade

Corpo História/Biografia

Consciência Movimento

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As pessoas estabelecem com o lugar os mesmos laços que estabelecem com os seus semelhantes. Amam e odeiam, desejam e evitam, elogiam e caluniam, conhecem e reconhecem, lembram-se e se esquecem. As grandes obras da criação humana fazem referência a lugares: a República, de Platão, descreve uma cidade perfeita; os livros de Júlio Verne descrevem lugares exóticos e inexplorados; na literatura brasileira imperam os regionalismos, as descrições detalhadas de lugares e personagens, numa síntese entre literatura e geografia humana, na qual se destacam, dentre outras, obras como Terras do Sem Fim, de Jorge Amado, Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa e Vila dos Confins, de Mário Palmério, da qual extraímos o parágrafo a seguir:

Contava-se a coisa assim. Há mais de duzentos anos, ponta desgarrada de catadores de ouro descobriu a aluvião do Morro Redondo nas nascentes do rio do Caracol. A notícia correu, levantou-se a rancharia, instalou-se a mina. E tal a quantidade de ouro em pó carregado pelas enxurradas das vertentes do morro e depositada na areia do ribeirão, que Mina Velha virou corrutela importante, com igreja, sobrado e tudo. Mas lá um dia – a explicação mais acertada é a da barbaridade dos brancos – os índios revoltaram-se e botaram fogo no povoado: acabaram mesmo com o garimpo. Se alguém sobrou da carnificina, esse nunca mais pôs pé naquelas bandas conflagradas nem convenceu ninguém a fazê-lo. E a mata tomou conta de tudo: virou virgem outra vez (PALMÉRIO, 1997, p. 75 – o negrito é nosso).

Em um único parágrafo, observemos quantos lugares diferentes são citados, alguns repetidamente, revelando uma riqueza “geográfica” na narrativa que merece ser investigada.

Outros domínios da experiência humana também destacam lugares, sob o ponto de vista do que estes representam. Os Beatles, por exemplo, imortalizaram vários em suas canções. A música Strawberry Fields Forever, retrata um lugar em Liverpool no qual John Lennon brincava na infância e que se transformou num dos pontos do roteiro turístico “beatlemaníaco” da cidade. Ou seja, o que era uma experiência individual de Lennon, foi alçado a uma dimensão universal, diante do sucesso da banda e da canção. E é também dos Beatles a música In my life, que faz um elogio ao lugar e à memória deste, quando diz:

Há lugares dos quais vou me lembrar por toda a minha vida, embora alguns tenham mudado. Alguns para sempre, e não para melhor. Alguns se foram e outros permanecem. (In My Life, Lennon e McCartney)

No Brasil, uma esquina foi imortalizada na música Sampa, de Caetano Veloso: “Alguma coisa acontece no meu coração. Que só quando cruza a Ipiranga e a avenida São João”. (Sampa, Caetano Veloso)

Além disso, há também os lugares que foram eternizados pela própria história, tanto por aspectos religiosos e espirituais, como Stonehenge, na Inglaterra e Machu Picchu, no Peru; por motivos estéticos e turísticos, como a Torre Eiffel, em Paris e a Ponte Golden Gate, em São Francisco (EUA); lugares de beleza natural, como as Cataratas do Iguaçu, no sul do Brasil e o Grand Canyon, no Estado do Arizona (EUA); bem como lugares que foram eternizados por expressarem os extremos da crueldade humana, como Auschwitz, na Alemanha, Hiroshima e Nagasaki, no Japão e o Word Trade Center, em Nova Iorque (EUA).

Todos estes exemplos revelam a humanidade do lugar, o que explica porque as remoções, os exílios e os deslocamentos forçados são, via de regra, tão complexos e traumáticos. É possível retirar, forçadamente, uma pessoa do seu lugar de origem ou de permanência, mas é impossível tirar este mesmo lugar de dentro da pessoa.

Lygia Sigaud oferece um forte indício das implicações subjetivas que envolvem a relação do ser humano com o lugar, quando aponta para a descrença dos camponeses de Itapera (Sento Sé – Bahia), quando do anúncio da inundação da represa, feita pelos funcionários da CHESF, conforme evidencia a citação a seguir:

É do “núcleo” de Itapera que provém as informações mais consistentes a respeito da

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descrença na veracidade da inundação anunciada como fenômeno de crença coletiva. Os camponeses que se deslocaram para a nova Itapera dizem que não acreditavam que as águas do rio pudessem atingir os limites assinalados pela CHESF, os quais ultrapassavam em muito os marcos que conheciam, tanto os das cheias anuais, quanto o das cheias excepcionais. “A gente jurava e batia pé que a água não chegava até aqui”, disse Guimarães reiteradas vezes a Martins-Costa. (SIGAUD, p. 561).

A própria pesquisadora reconhece a dificuldade de investigar a gênese da descrença, mas aponta como fator primordial o “interesse em permanecer na beira do rio” (SIGAUD, p. 562). O que confirma esta hipótese, segundo Sigaud, é o fato de os camponeses que tinham interesse em partir, não terem manifestado a mesma descrença.

Quando a população de uma localidade recebe a notícia de que deverá ser deslocada, em virtude da construção de um grande projeto, como uma usina hidrelétrica, mineradora, rodovia, ferrovia ou outro, as reações são as mais diversas. É claro que não devemos menosprezar a importância dos grandes projetos, pois eles são diretamente responsáveis pelo progresso e pela melhoria da qualidade de vida das populações. No entanto, mesmo sem abordar razões de ordem estritamente econômica, que escapam das intenções do presente trabalho, o problema dos grandes projetos é quando eles se tornam um peso muito grande para a população que será removida do lugar, localidade, ou território, conforme evidenciam as citações a seguir, extraídas de estudos sobre a construção e as consequências da instalação da barragem de Itá, no Estado de Santa Catarina:

Um aspecto muito importante e que ainda é muito negligenciado nas políticas e planos de reassentamento refere-se à dimensão temporal do projeto e dos impactos dele advindos. Ao contrário do que se pensa e diz, as angústias e sofrimentos da população atingida iniciam-se muito antes de o projeto começar a ser implementado. (VIANA, 2003, p. 47)

Depoimento de um atingido, a respeito do período de mudança para o novo lugar: No começo foi difícil. Foi difícil porque era mato aonde que a gente foi morar. A gente teve que derrubar, plantar. Nós teve que carpir mesmo. Mas, agora, até que tá melhor (R.1., atingida, núcleo de linha, 2003) (VIANA, 2003, p. 143).

CONSIDERAÇÕES FINAIS Os depoimentos acima apontam para a necessidade de uma investigação mais aprofundada, que envolve não só os domínios da geografia e filosofia, mas também um trabalho conjunto e multidisciplinar com outras áreas do conhecimento humano, como a sociologia, a psicologia e a psicanálise, que possa dar conta de procedimentos que, uma vez adotados, contribuam para a redução do sofrimento dos deslocados, quando este deslocamento for justificável. Se nos lembrarmos que no passado os grandes projetos eram executados de forma muito mais vertical e sem muitas restrições que hoje são impostas, como o respeito às leis de proteção ambiental, não é um otimismo exagerado acreditar que as próximas gerações (talvez até a nossa) poderão contar com ganhos hoje impensados, mas que já estão sendo construídos. Uma compreensão mais humana do lugar, tanto material, quanto subjetivo, que ocupamos na sociedade, com certeza irá contribuir para este avanço.

REFERÊNCIAS ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. Tradução de Alfredo Bosi e Ivone Castilho Benedeti. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

HOLZER, Werther. O lugar na Geografia Humanista. Revista Território, ano IV, nº 7: 67 – 78, 1999.

LEITE, Adriana F. O lugar: Duas acepções Geográficas. Anuário do Instituto de Geografia, Vol. 21: 9 – 19, 1998.

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PALMÉRIO, Mário. Vila dos Confins, Rio de Janeiro: Ediouro, 1997.

PRÉ-SOCRÁTICOS. Os pré-socráticos, São Paulo: Nova Cultural, 1996. (Coleção Os Pensadores)

SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal, Rio de Janeiro: Record, 2009.

SIGAUD, Lygia. Crença, descrença e interesses: por uma sociologia das condutas face ao deslocamento compulsório, em S.M. Magalhães, E. de C. Britto y E. R. Castro (orgs.), Energia na Amazônia, 551 – 570, 2006.

SILVA, Armando C. O Espaço fora do Lugar. São Paulo: Hucitec, 1978.

SUERTEGARAY, Dirce Maria Antunes. Espaço geográfico uno e múltiplo. Scripta Nova – REVISTA ELETRÓNICA DE GEOGRAFIA Y CIENCIAS SOCIALES, nº 5: 93 – 105, 2001.

VIANA, Raquel de Matos. Grandes barragens, impactos e reparações: um estudo de caso sobre a barragem de Itá. 2003. 191f. Dissertação (Mestrado em Planejamento Urbano e Regional) – Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.

TUAN, Yi-Fu. Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. Tradução de Lívia de Oliveira. São Paulo: DIFEL, 1974.