A doação modal e a imposição de cláusulas restritivas

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O tema está na ordem do dia. Inúmeros notários e registradores têm lavrado e registrado títulos que têm por objeto a doação de numerário para aquisição de bem imóvel, impondo-se cláusul as res tri- tivas, nominando tais contratos de doa- ção moda!. A chamada doação com encargo, moda/ ou onerosa (donatione sub modo), consoante di spõe o artigo 1180 do Código Civil, é o negócio jurídico que se singulariza na incumbência cometida ao donatário, pelo doador, em favor deste, de terceiro ou no interesse geral. É obrigação imposta ao gratifica- do. Identificam-se, pois, dois elementos essenciais da doação moda/: o ato da liberalidade e o encargo. o Jacomino é registrador em São Paulo, As cláusulas restritivas, impostas even- ·tal, e coordenador editorial do IRIB tua/mente pelo doador, constituem-se "As cláusulas restri- tivas de domínio tradu- zem limitação do poder de dispor. Não consti- tuem modus, obriga- ção imposta àquele em cu;o proveito se consti- tui um direito nos atos de liberalidade" em limitação do poder de dis por. O que o Código denomina cláusula de in alienabilidade não é senão uma limitação de poder; não constitui modus . É preciso não confundir encargo com limitação de poder. Reconhecer a natureza do modus, destrinçar os seus elementos para distingui-lo da restrição. Modo é obrigação imposta àquele em cujo proveito se constitui um direito nos atos de liberalidade - tes - tamento ou doação. O modus ou encargo repre sen- ta uma categoria jurídica autônoma, distinta das con- dições resolutivas ou suspensivas . Consiste em víncu- lo a cargo do onerado, manifestação de vontade anexa. Incidem a seu respeito as regras jurídicas gerais sobre capacidade, forma e validade. De outra parte, as restrições de poder- como o são as cláusulas re stritivas de inalienabilidade, impe- nhorabilidade e incomunicabilidade- distinguindo- se da condição (falta-lhe suspensivid ade e resolutivida- de) e do modus (a cláusula atua contra a vontade do beneficiado) supera-as todas, numa original e pecu- li ar natureza jurídi ca: "trata-se de fenômeno autôno- mo, à altura da condição como do modus, que preci- sa- depois do nome que lhe deu F. Regelsberger- ser estudado, sem as exóticas referências ao modus e à condição. Se fosse condição, seria condição que não suspende, nem resolve: condição que não é condição. O modus obriga, mas o não cumprimento autori- za o pedido de perdas e danos. Tal não é o efeito das cláusulas. Se fosse modus, se ria um modus, que é mais do que o modus, que não seria modus", conclui Pontes de Miranda em sua conhecida obra .. Enfim, não há modus, se o interesse no cumpri- mento é exclusivamente do donatário. Estabelecido que as cláusulas restritivas não podem ser consideradas encargos, mas tão limitação de poder, desnatura-se , destarte, a idéia da doação moda/ nos termos aqui propostos. Por uma razão muito simples: o negócio jurídico, não encerrando encargo qualquer, seria, no exemplo analisado, doação pura. Mas, se deste ponto de vista não se poderia falar Sérgio Jacomino propriamente em encargo, modus, vamos verificar que, no caso de doação de numerário para aquisição do bem e, concomitantemente, a imposição de cl áu- sulas restritivas, exsurge então um novo elemento, dissociado do complexo que forma a doação moda!. Sob o ângulo dessa indi spe nsável conexão - que na opinião de Agostinho A/vim é li ame essencial que deve existir entre a doação e a obrigação imposta - observaremos que a dissociação que se identifica na imposição de cláu s ulas acarreta a desnaturação da doação moda!. Vejamos graficamente. É preciso distinguir as várias etapas que se sucedem na doação moda/ na prototi- pação que pode existir na entrega do numerário para aquisição de bem imóvel. Aproveitando-nos dos exempl os joeirados na prática notarial e registra/, é razoável identificar-se os seguintes momentos: (a) doação do numerário; (b) imposição do encargo (adquirir determinado bem imóvel); (c) aquisição do bem imóvel e (d) imposição das cláusulas. A conexão que existe entre o ato de liberalidade e a obrigação se aperfeiçoa, no máximo, na aquisição do bem imóvel. Esse o encargo. Esse o modus. Aqui a doação moda!. É bastante razoável identificar o interesse do doador na aquisição do bem de raiz e não a di ssipação dos recursos em outro qualquer emprego, ainda que lícito. Mas nem mesmo isso, muitas vezes , pode ser considerado uma doação moda/, pelas razões que não cabe aqui discutir. Se a doação moda/, nos termos propostos, é per- feitamen te possível, não o é, entretanto, a imposi- ção de cl áus ulas. M as é preciso verificar atentamente um aspecto crucial: cogitando -se de manifestação de vontade do benefici ado no adimplemento do encargo, incidindo aqui, portanto, as regras jurídicas sobre validade do negócio jurídico anexo, patenteia-se a nulidade de impos ão de cl áus ulas pelo próprio titular de domí- nio: é cediço que ninguém pode tornar inalienável bem de seu domínio. Em conclusão, ouso insinuar que a doação de pecúnia para aquisição de bem imóvel, com imposi- ção de cl áusulas de in ali enabilidade, incomunicabili- dade e impenhorabilidade não traduz doação moda!. As cláus ul as res tritivas de domínio traduzem limitação do poder de dispor. Não constituem modus. Este, por sua vez, é obrigação imposta àquele em cujo provei- to se constitui um direito nos atos de liberalidade - o qu e, à evidência, não ocorre nos exemplos tratados. Assim sendo, a restrição, favorecendo o próprio donatário, não pode configurar encargo, não sendo razoável admiti-la como elemento da doação moda!. Depoi s, se a restrição, ou a obrigação, for impos- ta em ato posterior, não haverá associação alguma, e sim dissociação; não existirá encargo, ainda que se lhe dê esse nome. Finalmente, considerando-se que há obrigação do benefici ado, no adimplemento do encargo - incidin- do, portanto, as regras jurídicas sobre validade do negócio jurídico anexo - patenteia-se nulidade de imposição de cláusulas pelo próprio titular de domí- nio, já que não é lícito tornar inalienável bem de seu próprio domínio. Jornal da Associação dos Serventuári os de Justi ça do Estado de Mina s Gerais.

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O tema está na ordem do dia. Inúmeros notários e registradores têm lavrado e registrado títulos que têm por objeto a doação de numerário para aquisição de bem imóvel, impondo-se cláusulas restri­tivas, nominando tais contratos de doa­ção moda!. A chamada doação com encargo, moda/ ou onerosa (donatione sub modo), consoante dispõe o artigo 1180 do Código Civil, é o negócio jurídico que se singu lariza na incumbência cometida ao donatário, pelo doador, em favor deste, de terceiro ou no interesse geral. É obrigação imposta ao gratifica­do.

Identificam-se, pois, dois elementos essenciais da doação moda/: o ato da liberalidade e o encargo.

o Jacomino é registrador em São Paulo, As cláusulas restritivas, impostas even-·tal, e coordenador editorial do IRIB tua/mente pelo doador, constituem-se

"As cláusulas restri­tivas de domínio tradu­zem limitação do poder de dispor. Não consti­tuem modus, obriga­ção imposta àquele em cu;o proveito se consti­tui um direito nos atos de liberalidade"

em limitação do poder de dispor. O que o Código denomina cláusu la de inalienabilidade não é senão uma limitação de poder; não constitui modus.

É preciso não confundir encargo com limitação de poder. Reconhecer a natureza do modus, destrinçar os seus elementos para distingui-lo da restrição. Modo é obrigação imposta àquele em cujo proveito se constitui um direito nos atos de liberalidade - tes­tamento ou doação. O modus ou encargo represen­ta uma categoria jurídica autônoma, distinta das con­dições resolutivas ou suspensivas. Consiste em víncu­lo a cargo do onerado, manifestação de vontade anexa. Incidem a seu respeito as regras jurídicas gerais sobre capacidade, forma e validade.

De outra parte, as restrições de poder- como o são as cláusulas restritivas de inalienabilidade, impe­nhorabilidade e incomunicabilidade- distinguindo-se da condição (falta-lhe suspensividade e resolutivida­de) e do modus (a cláusula atua contra a vontade do beneficiado) supera-as todas, numa original e pecu­liar natureza jurídica: "trata-se de fenômeno autôno­mo, à altura da condição como do modus, que preci­sa- depois do nome que lhe deu F. Regelsberger- ser estudado, sem as exóticas referências ao modus e à condição. Se fosse condição, seria condição que não suspende, nem resolve: condição que não é condição. O modus obriga, mas o não cumprimento só autori­za o pedido de perdas e danos. Tal não é o efeito das cláusulas. Se fosse modus, seria um modus, que é mais do que o modus, que não seria modus", conclui Pontes de Miranda em sua conhecida obra ..

Enfim, não há modus, se o interesse no cumpri­mento é exclusivamente do donatário.

Estabelecido que as cláusulas restritivas não podem ser consideradas encargos, mas tão só limitação de poder, desnatura-se, destarte, a idéia da doação moda/ nos termos aqui propostos. Por uma razão muito simples: o negócio jurídico, não encerrando encargo qualquer, seria, no exemplo analisado, doação pura.

Mas, se deste ponto de vista não se poderia falar

Sérgio Jacomino propriamente em encargo, modus, vamos verificar que, no caso de doação de numerário para aquisição do bem e, concomitantemente, a imposição de cláu­sulas restritivas, exsurge então um novo elemento, dissociado do complexo que forma a doação moda!. Sob o ângulo dessa indispensável conexão - que na opinião de Agostinho A/vim é liame essencial que deve existir entre a doação e a obrigação imposta -observaremos que a dissociação que se identifica na imposição de cláusulas acarreta a desnaturação da doação moda!.

Vejamos graficamente. É preciso distinguir as várias etapas que se sucedem na doação moda/ na prototi­pação que pode existir na entrega do numerário para aquisição de bem imóvel. Aproveitando-nos dos exemplos joeirados na prática notarial e registra/, é razoável identificar-se os seguintes momentos: (a) doação do numerário; (b) imposição do encargo (adquirir determinado bem imóvel); (c) aquisição do bem imóvel e (d) imposição das cláusulas.

A conexão que existe entre o ato de liberalidade e a obrigação se aperfeiçoa, no máximo, na aquisição do bem imóvel. Esse o encargo. Esse o modus. Aqui a doação moda!. É bastante razoável identificar o interesse do doador na aquisição do bem de raiz e não a dissipação dos recursos em outro qualquer emprego, ainda que lícito. Mas nem mesmo isso, muitas vezes, pode ser considerado uma doação moda/, pelas razões que não cabe aqui discutir.

Se a doação moda/, nos termos propostos, é per­feitamen te possível, não o é, entretanto, a imposi­ção de cláusulas.

M as é preciso verificar atentamente um aspecto crucial: cogitando-se de manifestação de vontade do beneficiado no adimplemento do encargo, incidindo aqui, portanto, as regras jurídicas sobre validade do negócio jurídico anexo, patenteia-se a nulidade de imposição de cláusulas pelo próprio titular de domí­nio: é cediço que ninguém pode tornar inalienável bem de seu domínio.

Em conclusão, ouso insinuar que a doação de pecúnia para aquisição de bem imóvel, com imposi­ção de cláusulas de inalienabilidade, incomunicabili­dade e impenhorabilidade não traduz doação moda!. As cláusulas restritivas de domínio traduzem limitação do poder de dispor. Não constituem modus. Este, por sua vez, é obrigação imposta àquele em cujo provei­to se constitui um direito nos atos de liberalidade - o que, à evidência, não ocorre nos exemplos tratados.

Assim sendo, a restrição, favorecendo o próprio donatário, não pode configurar encargo, não sendo razoável admiti- la como elemento da doação moda!.

Depois, se a restrição, ou a obrigação, for impos­ta em ato posterior, não haverá associação alguma, e sim dissociação; não existirá encargo, ainda que se lhe dê esse nome.

Finalmente, considerando-se que há obrigação do beneficiado, no adimplemento do encargo - incidin­do, portanto, as regras jurídicas sobre validade do negócio jurídico anexo - patenteia-se nulidade de imposição de cláusulas pelo próprio titular de domí­nio, já que não é lícito tornar inalienável bem de seu próprio domínio.

Jornal da Associação dos Serventuários de Justiça do Estado de Minas Gerais.