A DOCÊNCIA COMO OBRA DE ARTE. UM ESTUDO COM … · Ao meu pai Juvenal Francisco do Nascimento, ......

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO LILIAN ROSE AGUIAR NASCIMENTO GARCIA DE SANTANA A DOCÊNCIA COMO OBRA DE ARTE. UM ESTUDO COM PROFESSORES DA EDUCAÇÃO SUPERIOR CUIABÁ-MT 2013

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

LILIAN ROSE AGUIAR NASCIMENTO GARCIA DE SANTANA

A DOCÊNCIA COMO OBRA DE ARTE. UM ESTUDO COM

PROFESSORES DA EDUCAÇÃO SUPERIOR

CUIABÁ-MT 2013

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LILIAN ROSE AGUIAR NASCIMENTO GARCIA DE SANTANA

A DOCÊNCIA COMO OBRA DE ARTE. UM ESTUDO COM

PROFESSORES DA EDUCAÇÃO SUPERIOR

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso como requisito para a obtenção do título de Doutor em Educação na Área de Concentração Educação, Linha de Pesquisa Cultura, Memória e Teorias em Educação.

Orientador: Prof. Dr. Silas Borges Monteiro

Cuiabá-MT 2013

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Dados Internacionais de Catalogação na Fonte.

S232d Santana, Lilian Rose Aguiar Nascimento Garcia de. A docência como obra de arte. : Um estudo com professores da educação superior / Lilian Rose Aguiar Nascimento Garcia de Santana. -- 2013 161 f. : il. color. ; 30 cm. Orientador: Silas Borges Monteiro. Tese (doutorado) - Universidade Federal de Mato Grosso, Instituto de Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação, Cuiabá, 2013. 1. formação de professores. 2. educação superior. 3. vivências. 4. estilos. I. Título.

Ficha catalográfica elaborada automaticamente de acordo com os dados fornecidos pelo(a) autor(a).

Permitida a reprodução parcial ou total, desde que citada a fonte.

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DEDICATÓRIA

Ao meu pai Juvenal Francisco do Nascimento,

a mais sentida ausência neste momento da minha

vida, cuja lembrança foi o principal incentivo para

esta realização.

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AGRADECIMENTO

Ao meu esposo Carlos Ivam Garcia de Santana e aos meus filhos Ivana Garcia de Santana e

Carlos Ivam Garcia de Santana Júnior pelo amor que me dedicam, alicerce para as minhas

realizações.

Ao Prof. Dr. Silas Borges Monteiro, que me orienta desde o mestrado, pela confiança que

depositou em mim, por ter contribuído para que eu tivesse a oportunidade de cursar o

doutorado e, principalmente, pela competente orientação.

Aos professores participantes da banca de qualificação – Profa. Dra. Maria Amélia do Rosario

Santoro Franco, Profa. Dra. Maria Isabel de Almeida, Prof. Dr. Luiz Augusto Passos e Profa.

Dra. Ozerina Victor de Oliveira por terem aceitado participar, pela leitura atenta do texto, e

pelas valiosas contribuições.

Aos professores Prof. Dr. José Cerchi Fusari, Prof. Dr.Wilson Conciani, Prof. Dr. Luiz

Augusto Passos, Profa. Dra. Ozerina Victor de Oliveira e Prof. Dr. Edson Caetano por terem

aceitado participar da banca avaliadora, o que muito me honrou.

Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFMT, cujo trabalho

oportunizou-me realizar o doutorado.

Aos amigos do Grupo Estudos de Filosofia e Formação pelas contribuições para este

trabalho, pelo companheirismo, apoio e solidariedade.

À Márcia Helena Moraes Souza pela parceria nos artigos, pela ajuda em todos os momentos

que precisei, pelo apoio, incentivo e, sobretudo, pela amizade.

Às amigas Emília Carvalho Leitão Biato e Alessandra Christina Arantes Abdala Azevedo

pelo apoio, principalmente, na fase final da redação da tese.

À “minha equipe técnica”, colegas do grupo de pesquisa que gravaram em vídeo as

entrevistas dos professores: Cláudia Moreira, Polyana Olini, Sirlene Guimarães Ribeiro,

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Kreyssia Nara do Carmo Leite, Ângela T. Fontana de S. Tambara Velho e Márcia Helena

Moraes Souza.

Aos colegas do doutorado pelo companheirismo, de modo especial à Solange Tomé

Gonçalves Dias, amiga, confidente e parceira ao longo dessa caminhada.

Aos colegas do Departamento de Engenharia Civil, Prof. Dr. Cláudio Cruz Nunes e Prof. Dr.

Milton Soares, pelo apoio e, de modo especial, ao Prof. Dr. Jéfferson Heleno Brandão, que

adiou sua aposentadoria para me substituir enquanto eu terminava o doutorado.

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“Os filósofos de folhetim, que constroem uma filosofia

não a partir da sua vida, mas de coleções de provas para certas teses. Nunca querer ver para ver! Como psicólogo, é preciso viver e esperar até que o resultado, crivado de muitas vivências, extraia de si mesmo sua conclusão. Nunca se deve saber de onde vem o que se sabe. Do contrário, há uma ótica e uma artificialidade ruins. O esquecimento involuntário do caso particular é filosófico, não o querer esquecer, a abstração intencional: esta última caracteriza mais a natureza não-filosófica”.

Nietzsche, Fragmento póstumo 9[64] do outono de 1887.

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RESUMO

O presente trabalho trata de uma pesquisa de doutorado, na linha de pesquisa Cultura,

Memória e Teorias em Educação. A pesquisa é de cunho filosófico-educacional e tem como

tema a formação dos professores da educação superior, vista aqui como constituição de estilos

de docência. A questão que movimenta o trabalho é: como alguém se torna o que é, nascida

do pensamento filosófico de Friedrich Nietzsche, especialmente do conceito de vivência. Para

aproximar-se de seu objeto, é feito diálogo com a produção de Selma Garrido Pimenta

visando compreender o cenário formativo dos professores da educação superior. A tese

defendida neste trabalho é que a docência é feita de estilos singulares, embora encontremos

elementos comuns ao modo de ser do professor. Uma lógica sustenta este procedimento: as

implicações da vida para a reflexão, ou, neste caso, para a constituição do estilo da docência.

Assim, este trabalho procura operar uma inversão de perspectiva: olhar a formação dos

professores da educação superior a partir do próprio professor, da sua vida, ou seja, a

docência como arte do estilo. Para isso, se vale do conceito de otobiografia criado por Jacques

Derrida, reconcebido por Silas Borges Monteiro, como elemento operador da análise das

entrevistas feitas com os professores, colaboradores deste trabalho.

Palavras-chave: formação de professores – educação superior – vivências - estilos

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ABSTRACT

This work is about a doctoral research on Culture, Memory and Theories in education.

The research is of a philosophic-educational perspective about the formation of teachers of higher education, conceived here as the constitution of teaching styles. The question that moves the work is: how does someone become a what is, it’s born of the philosophical thought of Friedrich Nietzsche, especially the concept of life-experience. To approach of the object, is done in dialogue with the production of Selma Garrido Pimenta to understand the formation of teachers of higher education. The thesis defended in this work is that the teaching is made of unique styles, although we find common elements to be of the teacher. Logic underpins this procedure: the implications of life for reflection, or, in this case, for the constitution of the teaching style. Thus, this work seeks to operate an inversion of perspective: look at the formation of teachers of higher education from the teachers, their life, that is, teaching as an art style. To do this, whether it is the concept of otobiography created by Jacques Derrida, redesigned by Silas Borges Monteiro, as the operator element analysis of interviews with teachers, collaborators of this work. Key-words: formation of teacher - higher education - life-experiences - styles.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 10 1 UMA PESQUISA ............................................................................................................ 19

1.1 ELEMENTOS CONSTITUINTES ................................................................................. 19 1.2 CONTEXTUALIZAÇÃO .............................................................................................. 28 1.2.1 Formação dos Professores da Educação Superior ................................................... 29 1.2.2 Constituição do Quadro Docente da UFMT ............................................................. 37 1.2.3 Visão Institucional dos Professores........................................................................... 43 2 CONCEITOS OPERADORES ....................................................................................... 54 2.1 O CONCEITO DE VIVÊNCIA E SEUS DESDOBRAMENTOS................................... 54 2.1.1 As Vivências nos Tornam o que Somos .................................................................... 54 2.1.2 A Interpretação e os Instintos ................................................................................... 71 2.1.3 Vontade de Potência como Afirmação da Vida na sua Tragicidade ....................... 76 2.2 A OTOBIOGRAFIA E O GESTO OTOBIOGRÁFICO ................................................. 79 2.2.1 Um Texto, um Conceito............................................................................................. 80 2.2.2 Um Pesquisador, um Método .................................................................................... 85 2.3 IDEIAS COMPLEMENTARES ................................................................................... 101 2.3.1 Quando a Repetição não é a Generalidade ............................................................. 101 2.3.2 Instituições como Manifestação e Meio de Satisfação de Instintos ........................ 108 2.3.3 A vida como obra de arte ........................................................................................ 111 3 A ESCUTA .................................................................................................................... 120

3.1 ELEMENTOS CONSTITUINTES DO ESTILO DA DOCÊNCIA ............................... 122 3.1.1 Uma professora das inovações tecnológicas ........................................................... 122 3.1.2 Um engenheiro......................................................................................................... 125 3.1.3 Uma professora de sala de aula .............................................................................. 130 3.1.4 Um pesquisador ....................................................................................................... 134 3.1.5 Uma coordenadora de ensino de graduação ........................................................... 138 3.1.6 Um médico com sonho de ser professor.................................................................. 143 3.2 REVERBERAÇÕES.........................................................................................................147 CONCLUSÃO .................................................................................................................. 152 REFERÊNCIAS ............................................................................................................... 158

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INTRODUÇÃO

Ao concluir o Doutorado em Educação no Programa de Pós-Graduação em Educação

da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), na linha de pesquisa Cultura, Memória e

Teorias em Educação, apresento à academia e aos leitores do tema, esta tese sobre docência

na educação superior, quando se trata de professores que são oriundos de áreas não voltadas

ao ensino.

Trata-se de pesquisa de cunho filosófico-educacional sobre a formação dos professores

da educação superior.

De acordo com o filósofo alemão Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844 – 1900), em

quem busco as ideias que fundamentam este trabalho, a produção de um autor é sempre

marcada pelas suas vivências: “Os escritos de nossos conhecidos e seus leitores. – Lemos de

maneira dupla o que escrevem os conhecidos (amigos e inimigos), na medida em que nosso

conhecimento nos sussurra permanentemente: “Isso é dele, é uma marca de sua natureza

interior, de suas vivências [Erlebnisse], de seu talento”.1 Se bem assim, quando alguém

escreve, fala de si mesmo, das suas vivências. Então, ao escrever este trabalho, falo,

principalmente, de mim mesma, das minhas vivências como pessoa formada para ser

engenheira civil e que se tornou professora da educação superior. Meus instintos tomam a

palavra, porém, sem descuidar do rigor que requer um trabalho científico. A competente

orientação do professor Dr. Silas Borges Monteiro, que me acompanha desde o Mestrado em

Educação, foi fundamental para a realização deste trabalho.

Para Nietzsche, uma pessoa se torna o que é com as suas vivências, assim dirá:

“Nossas vivências [Erlebnisse] determinam nosso indivíduo, e de tal maneira que, de acordo

com cada impressão afetiva, nosso indivíduo encontra-se determinado até o interior de nossas

células”2, ideia que fundamenta este trabalho. O conceito de otobiografia de Jacques Derrida,

é usado no trabalho com as narrativas dos professores que, gentilmente, colaboraram com a

pesquisa.

De acordo com Marton, “Não há, pois, como dissociar vida e obra, biografia e trabalho

filosófico”.3 Nietzsche começa o seu Ecce Homo, com a seguinte frase: “Prevendo que dentro

em pouco devo dirigir-me à humanidade com a mais séria exigência que jamais lhe foi

1 NIETZSCHE apud MONTEIRO, 2009, p. 40. 2 NIETZSCHE apud MONTEIRO, 2009, p. 31. 3 MARTON, 2000, p. 49.

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colocada, parece-me indispensável dizer quem sou”. Ao iniciar a este texto, parece-me,

também indispensável dizer quem sou e, inspirada em Nietzsche, quando digo o que sou hoje,

faço-o a partir da minha história, ou de uma parte dela. Conto-a, principalmente, para mim

mesma, sou a primeira destinatária da narração, reflito.

O meu interesse pelo tema sobre a formação dos professores da educação superior

decorre das minhas vivências como professora universitária. Por isso, o recorte que aqui faço

da minha vida trata-se da minha trajetória na docência da educação superior até chegar ao

Doutorado em Educação e, por conseguinte, à produção desta tese.

Embora textos sobre professores da educação superior como os de Pimenta e

Anastasiou tenham a pretensão de generalizar, de algum modo me identifiquei com o que elas

dizem. Pois contam o que vivi, parece que falam de mim. Por isso, ao narrar minha trajetória

na docência da educação superior, faço um diálogo com a produção dessas autoras e de alguns

outros autores da área educacional.

Ao concluir o curso de Engenharia Civil, não me sentia devidamente preparada para o

mercado de trabalho da engenharia. Por isso, e também porque já desejava a carreira

acadêmica, busquei a continuidade da minha formação, com vistas à especialização na área de

Estruturas, no Mestrado em Engenharia de Estruturas da Escola de Engenharia de São Carlos,

um campus avançado da Universidade de São Paulo (USP) que funciona na cidade de São

Carlos, interior do Estado de São Paulo. Essa capacitação me proporcionou mais segurança

para atuar como professora de engenharia e alguma experiência como pesquisadora. Durante

o mestrado, fui contratada como professora da UFMT, instituição onde cursei a graduação.

Antes de concluir a dissertação do mestrado, precisei voltar à UFMT para assumir os encargos

de professora do Departamento de Engenharia Civil. No curso de graduação em engenharia

civil, eu havia exercido a função de monitora de algumas disciplinas. Com a experiência

dessas monitorias e a formação do mestrado, considerava-me preparada para lecionar

disciplinas da área de Estruturas nos cursos de engenharia.

Os cursos de graduação em engenharia não contribuem para a formação de professores

de engenharia no que se refere aos conhecimentos pedagógicos. Para os estudantes que

pretendem seguir a carreira acadêmica, o Programa de Iniciação Científica colabora para a

formação de pesquisadores, mas a preparação para o ensino não é contemplada. No Mestrado

em Engenharia de Estruturas, a situação não era diferente. A finalidade era formar

pesquisadores e não havia nenhuma atividade com vistas à capacitação para o ensino. Assim,

comecei a carreira de professora da educação superior sem nenhuma formação pedagógica,

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mas não via nisso um problema, pois me achava vocacionada para a docência e tinha alguns

referenciais sobre como ser uma boa professora, construídos observando os professores que

tive. A esse respeito, Pimenta e Anastasiou4 apontam os saberes da experiência como os

saberes construídos no decorrer das vidas dos professores, com a observação dos professores

que tiveram. De acordo com essas autoras, tendo como referência os saberes de suas

experiências como alunos, os professores da educação superior adotam vários procedimentos

para dar conta da tarefa de ensinar, como tentativas que levam a erros e acertos e imitação dos

professores que tiveram.

Nesse sentido, Benedito contribui com a seguinte colocação:

o professor universitário aprende a sê-lo mediante um processo de socialização em parte intuitiva, autodidata ou (...) seguindo a rotina dos “outros”. Isso se explica, sem dúvida, devido à inexistência de uma formação específica como professor universitário. Nesse processo, joga um papel mais ou menos importante sua própria experiência como aluno, o modelo de ensino que predomina no sistema universitário e as reações de seus alunos, embora não há que se descartar a capacidade autodidata do professorado. Mas ela é insuficiente.5

Sobre o início da carreira docente na educação superior, Pimenta e Anastasiou

comentam:

geralmente os professores ingressam em departamentos que atuam em cursos aprovados, em que já estão estabelecidas as disciplinas que ministrarão. Aí recebem ementas prontas, planejam individual e solitariamente, e é nesta condição – individual e solitariamente - que devem se responsabilizar pela docência exercida. Os resultados obtidos não são objeto de estudo ou análise individual nem no curso ou departamento. Não recebem qualquer orientação sobre processos de planejamento, metodológicos ou avaliatórios, não têm de prestar contas, fazer relatórios, como acontece normalmente nos processos de pesquisa – estes, sim, objeto de preocupação e controle institucional.6

O início da minha carreira docente ocorreu do mesmo modo como descrito por essas

autoras. Quando ingressei na Universidade, o chefe do departamento informou quais as

disciplinas que eu iria ministrar e, com relação aos conteúdos programáticos, disse que eram

os mesmos de quando eu era aluna do curso. Não me apresentou ementas, planos de ensino,

4 PIMENTA e ANASTASIOU, 2005. 5 BENEDITO apud PIMENTA E ANASTASIOU, 2005, p. 36. 6 PIMENTA E ANASTASIOU, 2005, p. 37.

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muito menos o Projeto Pedagógico do curso. Assim, sem receber qualquer orientação sobre

planejamento pedagógico, sem experiência na docência desse nível da educação, individual e

solitariamente, conforme colocam Pimenta e Anastasiou, iniciei a minha atuação como

professora dos cursos de engenharia da UFMT. Por conseguinte, tive muitas dificuldades.

Mesmo com a experiência das monitorias e os conhecimentos construídos na graduação e no

mestrado em andamento, não me sentia segura no exercício da docência. Acreditava que o

conhecimento profundo dos conteúdos das disciplinas que ministrava resolveria as minhas

dificuldades, o que se alia ao pensamento de Pimenta e Anastasiou: “há certo consenso de que

a docência no ensino superior não requer formação no campo de ensinar. Para ela seria

suficiente o domínio de conhecimentos específicos, pois o que a identifica é a pesquisa e/ou o

exercício profissional no campo”.7 Com esse entendimento, eu dedicava muito tempo ao

estudo dos conteúdos das disciplinas e à preparação das aulas. Por conseguinte, não conclui a

dissertação do mestrado dentro do prazo normatizado para a defesa e, assim, não obtive o

título de Mestre em Engenharia de Estruturas.

Eis o que nos é dito por Pimenta e Anastasiou sobre os primeiros anos dos professores

na universidade:

quando chegam à docência na universidade, trazem consigo inúmeras e variadas experiências do que é ser professor. Experiências que adquiriram como alunos de diferentes professores ao longo de sua vida escolar. Experiência que lhes possibilita dizer quais eram bons professores, quais eram bons em conteúdo, mas não em didática, isto é, não sabiam ensinar. Formaram modelos “positivos” e “negativos”, nos quais se espelham para reproduzir ou negar. Quais professores foram significativos em suas vidas, isto é, que contribuíram para sua formação pessoal e profissional.8

No começo da carreira docente, tive como referência os professores da área de

Estruturas que, geralmente, são os mais exigentes com o aprendizado dos alunos, os que

aplicam as provas mais difíceis e, também, os que reprovam maior número de alunos. Pimenta

e Anastasiou comentam que existe, principalmente na universidade, certo entendimento de

que “o professor é aquele que ensina, isto é, dispõe os conhecimentos aos alunos. Se estes

aprendem ou não, não é problema do professor”.9 Assim como outros professores, eu atribuía

o número elevado de reprovações apenas às dificuldades dos alunos que, além de não

7 PIMENTA e ANASTASIOU, 2005, p. 36. 8 Id.,ib., p.79. 9 PIMENTA e ANASTASIOU, 2005, p. 36.

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trazerem os pré-requisitos necessários, em termos de conhecimento, não estudavam o

suficiente. Apontava também como causa das reprovações a imaturidade e a indisciplina dos

estudantes, não incluindo, contudo, nesse contexto, a minha dificuldade para ensinar os

conteúdos. Hoje entendo que o conhecimento sobre os conteúdos e sobre a forma de ensiná-

los são coisas distintas e ambos são necessários para a prática do ensino.

No decorrer da minha trajetória como professora, fui aprendendo algumas coisas sobre

o processo de ensino-aprendizagem com a experiência prática, com erros e acertos. Dezesseis

anos após o meu ingresso na UFMT, assumi a função de Coordenadora de Ensino de

Graduação em Engenharia Civil. Essa foi minha primeira experiência com gestão acadêmica e

muito importante para a constituição de um estilo de docência, porque pude ver o curso na sua

totalidade. Antes, me preocupava apenas com as disciplinas que ministrava. O exercício da

coordenação me oportunizou, entre outras coisas, maior relacionamento com todos os alunos

e professores do curso. Comecei a ver o curso sob outra perspectiva. De um papel passivo,

reprodutor, cumpridor das normas institucionais, passei a desempenhar um papel mais ativo,

transformador, criador, enfim, fiquei mais independente das referências que trazia da

experiência como aluna do curso.

Pimenta e Anastasiou10 comentam que os professores da educação superior, na maioria

das vezes, não se identificam como professores, porque olham o ser professor e a instituição

de ensino do ponto de vista do ser aluno, uma vez que a sua percepção é baseada nas

lembranças das suas experiências como aluno. Sendo assim, para a construção das suas

identidades docentes é preciso mudar a perspectiva. Professores que se percebem como ex-

alunos da instituição tendem a manter as tradições e costumes com os quais se familiarizaram.

Já os que se veem como docentes realizam as transformações que se fazem necessárias. Desse

modo, acredito que a experiência como coordenadora de ensino de graduação foi fundamental

para a mudança de uma perspectiva docente sustentada nas referências de ex-aluna do curso

para uma nova perspectiva, mais madura, mais consciente da identidade docente, que,

importante firmar, neste trabalho não é tomada como categoria, mas como estilo de vida.

Exerci a função de Coordenadora de Ensino de Graduação em Engenharia Civil por

duas gestões, de dois anos cada uma. Como coordenadora de ensino, constatei que não era

incomum, disciplinas apresentarem altos índices de reprovação, docentes com pouca

organização na sua documentação de trabalho como Plano de Ensino e Diário de Classe, além

de pouca diversidade metodológica na oferta dos conteúdos. Questões como essas e outras 10 PIMENTA e ANASTASIOU, 2005.

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tantas ouvidas em depoimentos de outros coordenadores de cursos, me levaram a pensar que

pudessem estar relacionadas com a ausência de formação específica para a docência na

educação superior. Eu constatava as dificuldades, mas não sabia como resolvê-las. Assim, fui

percebendo os meus limites, as minhas fragilidades no campo da docência, enfim, a minha

própria falta de formação para a profissão que havia assumido.

Como coordenadora de ensino, passei a frequentar ambientes que não frequentava, a

ouvir frases, discursos, que não ouvia, enfim, foram novas afetações que começaram a

compor outro estilo de docência. Fiquei mais interessada por conhecimentos da área da

Educação e, no ano de 2004, objetivando o título de especialista, mas, principalmente,

formação nessa área, comecei a fazer o Curso de Especialização em Docência no Ensino

Superior: formação e ação, ofertado pelo Instituto de Educação da UFMT. Esse curso tinha

como objetivos discutir, entre outros assuntos, a formação do professor universitário e suas

implicações nos processos de ensino-aprendizagem; o uso das novas tecnologias de

comunicação na educação; as políticas públicas e a avaliação na educação superior.

O começo do curso de especialização causou-me estranheza, pois tudo era novidade.

Tive os primeiros contatos com as teorias de John Dewey, Phillipe Perrenoud, Antônio

Nóvoa, Lev Vygotsky, Jean Piaget e Paulo Freire. Esse curso me proporcionou entender que

nos cursos de engenharia, na maioria das vezes, somente são realizadas avaliações somativas.

Que a ciência, muitas vezes, está fundamentada em paradigmas que não atendem mais às

demandas de uma sociedade que passou por muitas transformações. Que vivenciamos,

atualmente, uma fase de transição de paradigmas. Que o paradigma emergente requer

mudanças de concepções, crenças e práticas. Compreendi melhor a influência das políticas

públicas em quase todas as atividades realizadas na universidade, assim como o papel das

novas tecnologias da informação e comunicação nos processos educacionais. Tive a minha

primeira experiência com pesquisa na área da Educação em função da produção da

monografia de conclusão de curso.

Quando começava a cursar a especialização, participei pela primeira vez do Congresso

de Ensino de Engenharia (COBENGE). Nesse evento conheci engenheiros professores que

haviam se capacitado na área da Educação, no nível de mestrado e/ou doutorado. Assistindo

às apresentações dos seus trabalhos, percebi a valorosa contribuição que traziam para o ensino

de engenharia. Tudo isso despertou em mim o interesse pelo Mestrado em Educação.

Assim que conclui a especialização, ingressei no Mestrado em Educação da UFMT.

Fui selecionada para a área de Teorias e Práticas Pedagógicas da Educação Escolar na linha

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de pesquisa Formação de Professores e Organização Escolar, sob a orientação do professor

Dr. Silas Borges Monteiro, graduado em Filosofia e doutor em Educação. Monteiro propôs

para a dissertação de mestrado uma pesquisa no campo de formação de professores, fato que

me preocupava com relação à falta de formação pedagógica dos professores do curso de

Engenharia Civil. Sendo assim, elaborei um projeto sobre a formação dos engenheiros-

professores.

A pesquisa que realizei no Mestrado em Educação teve como foco os professores

lotados nos departamentos de Engenharia Civil, Engenharia Elétrica e Engenharia Sanitária da

Faculdade de Arquitetura, Engenharia e Tecnologia (FAET) da UFMT. O objetivo foi

investigar como profissionais formados para serem engenheiros, se tornam professores dos

cursos de engenharia. A pesquisa se fundamentou no conceito de vivências de Friedrich

Nietzsche, no conceito de Profissional Reflexivo de Donald Schön e em pesquisas realizadas

por Selma Garrido Pimenta e Kenneth Zeichner sobre os professores da educação superior. O

método adotado para o trabalho com os textos transcritos das narrativas dos engenheiros-

professores, teve como fundamento o conceito de otobiografia de Jacques Derrida,

reconcebido por Monteiro11, inicialmente, para as pesquisas sobre formação de professores.

Acredito que o fato de também ser engenheira-professora tornou a escuta das narrativas dos

meus colegas mais próxima do entendimento de como nos tornamos professores.

Observei algumas similaridades nas narrativas dos professores participantes da

pesquisa, a partir das quais elaborei o perfil de um tipo ideal de engenheiro-professor. Ideal

não no sentido de um modelo, mas de uma visão construída a partir do referencial teórico que

fundamentava o meu estudo, da escuta das suas narrativas e das minhas próprias vivências.

No Mestrado em Educação ampliei e aprofundei os conhecimentos da área de

Educação. Já não os estranhava muito. As novidades dessa fase foram, principalmente, os

conhecimentos sobre os métodos e tipos de pesquisa utilizados nas ciências humanas e

sociais. A formação nas ciências exatas privilegia o método positivista e este era o único que

eu conhecia. No mestrado, tomei conhecimento da fenomenologia e do materialismo histórico

dialético, dentre outros métodos. Antes de cursar o referido mestrado, tinha em mente que as

pesquisas eram teóricas ou experimentais. No mestrado tomei conhecimento de outros tipos

de pesquisas como: etnográfica, histórica, colaborativa, pesquisa-ação, participante, estudo de

11 MONTEIRO, 2004.

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caso, história de vida e survey. Nesse stricto sensu a formação foi muito direcionada para a

pesquisa em educação.

Nesse processo de formação, comecei os meus estudos no campo da Filosofia.

Acompanhei as aulas do meu orientador no Curso de Graduação em Filosofia onde foram

abordados temas que iam da Filosofia Clássica à Filosofia Contemporânea, ou seja, dos

filósofos pré-socráticos aos filósofos pós-modernos. Também acompanhei as aulas da

disciplina Filosofia da Educação do curso de Pedagogia. Conhecimentos importantes para

uma professora da educação superior.

Gostei do mestrado e resolvi cursar o Doutorado em Educação. Por conseguinte, após

ter concluído o mestrado, preparei o projeto da pesquisa em pauta com a finalidade de

participar do processo seletivo para o Doutorado em Educação do Programa de Pós-

Graduação em Educação da UFMT. Fui aprovada e selecionada para a linha de pesquisa

Cultura, Memória e Teorias em Educação, também sob a orientação do professor Dr. Silas

Borges Monteiro.

Com a intenção de dar continuidade ao trabalho que realizei no mestrado sobre os

engenheiros-professores, ampliando-o para professores com formação e atuação nas outras

áreas do conhecimento, o projeto tinha como tema a formação dos professores da educação

superior. Vejo na escolha do tema abordado desde o Mestrado em Educação, as afetações de

uma pessoa formada para ser engenheira civil e que atua como professora da educação

superior há 32 anos. Pimenta e Anastasiou sublinham a relevância e a intencionalidade

presentes no pesquisa da própria prática, e apontam este ato como “espaço de apropriação de

uma diferenciada competência profissional, que se apoia em conhecimentos construídos

processualmente”.12

Até aqui, relatei minha trajetória na docência da educação superior, procurando

mostrar os elementos que me levaram ao Doutorado em Educação, à escolha do tema

formação de professores para a minha pesquisa e, por conseguinte, à elaboração desta tese.

No entanto, com os professores que colaboram com esta pesquisa concedendo suas narrativas,

realizo outro tipo de atividade. Isto é, as narrativas não visam apresentar os percursos

cronológicos deles na docência, mas como os mesmos são afetados quando lhes são colocadas

palavras da docência.

12 PIMENTA e ANASTASIOU, 2005, p. 27-28.

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Após apresentar as trilhas percorridas até o momento, trago o texto que resultou da

pesquisa, estruturado em três capítulos.

No primeiro capítulo, inicialmente, exponho os elementos que compoem a pesquisa e

a sua contextualização, apresentando algumas ideias de autores do campo da educação sobre a

formação dos professores da educação superior; um breve histórico sobre a composição do

quadro docente da UFMT e, com dados dos registros da Secretaria de Gestão de Pessoas

(SGP) da UFMT uma visão institucional dos professores do campus de Cuiabá.

No capítulo seguinte, mostro os conceitos que dão fundamentação à pesquisa. Parto do

pensamento de Friedrich Nietzsche sobre como alguém se torna o que é. A seguir, reporto-me

ao conceito de otobiografia de Jacques Derrida, bem como à reconcepção desse conceito,

realizada por Silas Borges Monteiro, como procedimento metodológico nas pesquisas em

educação. Em seguida, evidencio pensamentos de Gilles Deleuze que ajudam na compreensão

da perspectiva metodológica, bem como do jogo entre o público e o privado. Encerro o

capítulo com o pensamento de Nietzsche sobre a vida como obra de arte.

No capítulo final, expresso o que pude ouvir nas narrativas dos professores, o que

ressoou em mim. Os elementos constituintes dos seus estilos da docência.

Embora o que aqui apresento seja perspectivo e traga a marca das minhas vivências,

tenho a expectativa de que contribua para criar circunstâncias favorecedoras para o

surgimento de novas perspectivas para as pesquisas na área da educação, como uma

epistemologia da docência na educação superior construída a partir do professor. Um saber

que nasce com a vida.

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1 UMA PESQUISA

Neste capítulo trago o caminho percorrido na realização desta pesquisa. Um caminho

labiríntico, com avanços, retrocessos, tateamentos, experimentações, caminho para a perdição,

porque é preciso perder os referenciais que tradicionalmente orientam as pesquisas nas

ciências humanas e sociais para que o novo apareça.

Inicialmente, trago os elementos que compoem a pesquisa: tema, questão

problematizadora, objetivos, pressupostos, referencial teórico, tipo de pesquisa e os

procedimentos metodológicos que são utilizados. A seguir, com vistas à contextualização da

pesquisa, apresento algumas ideias de autores do campo educacional sobre a formação dos

professores da educação superior; um breve relato sobre a constituição histórica do quadro

docente da UFMT e, finalizando, através de dados dos professores do campus de Cuiabá,

procuro compor a visão institucional dos mesmos.

1.1 ELEMENTOS CONSTITUINTES

Na pesquisa realizada no Mestrado em Educação, ouvi engenheiros-professores que,

como eu, não foram formados para ser professores. Então, comecei a estudar a formação dos

professores da educação superior com os meus colegas de faculdade. A questão

problematizadorada da pesquisa era “como pessoas formadas para serem engenheiros e que,

inicialmente, o desejavam ser, se tornam professores de engenharia?”. Nesse trabalho comecei

a trilhar o caminho labiríntico da otobiografia. Monteiro13 usa a metáfora do labirinto ao se

referir à otobiografia devido à não linearidade do método.

Ao concluir o mestrado, desejava mais, queria ouvir professores de outras áreas do

conhecimento, ampliar e aprofundar o referencial teórico, experimentar outras ideias, outros

exercícios com o método otobiográfico visando consolidá-lo como método que pode trazer

importantes contribuições para as pesquisas em Educação, realizar outras pesquisas, escrever

outros artigos, outras produções, enfim, havia em mim uma vontade de expansão, vontade de

potência, diria Nietzsche: “onde encontrei vida, ali encontrei vontade de potência; e até

13 MONTEIRO, 2004.

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mesmo na vontade daquele que serve encontrei vontade de ser senhor. (...) Somente, onde há

vida, há também vontade: mas não vontade de vida, e sim – assim vos ensino – vontade de

potência!”.14

No ano de 2009, ingressei no Doutorado em Educação do Programa de Pós-Graduação

em Educação da UFMT sob a orientação do professor Dr. Silas Borges Monteiro. Desde que

ingressei no Mestrado em Educação, participo do grupo de pesquisa coordenado por

Monteiro. Atualmente, o referido grupo é denominado Estudos de Filosofia e Formação

(EFF) e suas linhas de pesquisa são: Constituição de estilos de individuação;

Experimentações em teorias e políticas educacionais; e Diferença e normalização em

educação e saúde. Nos trabalhos realizados por esse grupo, o conhecimento produzido em

Filosofia serve como ferramenta de trabalho para a construção, análise e crítica de teorias e

práticas pedagógicas. A Filosofia é entendida como campo do conhecimento que se põe

crítico das produções humanas, com a intenção de ver o processo educativo sob diversas

perspectivas. O projeto de pesquisa que apresentei ao me candidatar para o doutorado, tratava-

se da formação dos professores da educação superior vista como constituição de si, sendo

assim, se adequava às linhas de pesquisa do grupo. Então, esse foi o tema escolhido para a

pesquisa aqui relatada que é de cunho filosófico-educacional.

As produções do grupo EFF se fundamentam no campo teórico da Filosofia da

Diferença. Até o momento, os autores mais lidos pelo grupo são Friedrich Nietzsche, Jacques

Derrida, Gilles Deleuze e Michel Foucault. Nessa linha de pensamento, a formação de

professores é tomada como constituição de si e fundamentada nas ideias de Nietzsche sobre

como alguém se torna o que é. Esse foi o ponto de partida para este trabalho.

Sendo assim, a questão que movimenta o trabalho é: como alguém se torna o que é,

nascida do pensamento filosófico de Nietzsche, especialmente do conceito de vivência. Isso

porque, para o filósofo, as pessoas se tornam o que são com as suas vivências.

O “tornar o que se é” é um movimento constante, um devir, conforme explica

Viesenteiner15, “Tornar-se o que se é, porém, acontece unicamente na vida e precisamente

14 NIETZSCHE, Assim falava Zaratustra, II, Da superação de si. N.B.: As citações dos textos de Nietzsche estão de acordo com a convenção usada nas publicações acadêmicas sobre o autor: autor, título da obra, seção em que se encontra a citação. 15Viesenteiner, 2009, p. 7.

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através da Erlebnis, de modo que tornar-se se converte em um imenso processo de

experimentação essencialmente fluido”.16

Conforme dito anteriormente, a formação dos professores é tomada neste trabalho

como constituição de si. Mas, constituição de si é “tornar-se o que se é”, o que acontece

unicamente na vida, através das vivências. Então, faço um recorte na vida do professor e tomo

um gesto dessa vida: a docência. Poderia estudar a formação dos professores a partir do

currículo, ou da instituição, ou da política, entre muitas outras possibilidades, mas a escolha

que faço é estudar essa formação a partir do próprio professor com o pressuposto de que ao se

constituir, ao se tornar o que é, ele adota estilos de docência. Sendo assim, o objeto desta

pesquisa é o professor e a formação é tomada como constituição de estilos de docência.

Em sendo assim, a pesquisa se propõe a compreender a docência na educação

superior, quando se trata de professores que são oriundos de áreas não voltadas ao ensino.

Com este propósito, persegue os seguintes objetivos:

a) tirar da vida o material para pensar a docência na educação superior;

b) perceber como a docência chega à vida desses professores;

c) compreender os elementos que constituem os estilos da docência.

O pressuposto primordial deste trabalho é que a docência é feita de estilos singulares,

embora encontremos elementos comuns ao modo de ser do professor. Essa ideia é sustentada

por uma lógica: as implicações da vida para a constituição do estilo da docência.

Como referencial teórico, tomo conceitos da Filosofia para dar fundamento à pesquisa.

Por isso, é possível dizer que esta pesquisa se situa no campo da Formação de Professores

assim como no campo da Filosofia da Educação. O quadro conceitual que dá fundamento à

pesquisa é composto por conceitos que, por um lado, apoiam os fenômenos relativos à

docência e, por outro, dão suporte ao método. O principal operador teórico do trabalho é o

conceito de vivência de Friedrich Nietzsche. A ideia de vivência decorre da absoluta

singularidade de cada professor. Desse conceito desdobram-se outros que também têm papel

importante na pesquisa: instinto, vontade de potência e afeto. De Jacques Derrida tomo o

conceito de otobiografia, para o trabalho com as narrativas dos professores. O pensamento de

Gilles Deleuze sobre diferença e repetição é inspiração para a perspectiva adotada. Também

de Deleuze, faço uso de ideias sobre instintos e instituições. No campo educacional, diálogos

com a produção de Selma Garrido Pimenta, Léa das Graças Camargos Anastasiou, entre

16 Erlebnis: vivência na língua alemã.

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outros autores, colaboram na compreensão do cenário formativo dos professores da educação

superior e suas possibilidades contemporâneas. Também orienta o trabalho a produção de

Silas Borges Monteiro sobre o emprego do conceito de otobiografia de Derrida, como método

de escuta dos textos autobiográficos nas pesquisas em educação.

A escolha de uns autores e não de outros vem da especificidade e da demanda da

pesquisa, da corrente filosófica que orienta os trabalhos realizados no âmbito do EFF, da

formação e experiência do orientador, como também das minhas afecções.

Desde que ingressei no doutorado, comecei a realizar a revisão bibliográfica visando

melhor compreensão dos conceitos que dariam fundamentação à pesquisa. Com esse

propósito, participei de vários eventos e de muitas reuniões de estudo do grupo de pesquisa.

No ano de 2009, participei dos seminários temáticos Estudos Otobiográficos; Leitores de

Nietzsche; A Questão do Método na Pesquisa: Positivismo, Materialismo Histórico Dialético,

Fenomenologia e Otobiografia; e Introdução ao pensamento de Nietzsche. No ano de 2010,

participei do seminário temático Filosofia da Educação. No seminário realizado no ano de

2011 estudamos as seguintes obras de Derrida: Espolones. Los estilos de Nietzsche17 e

Otobiographies. L’enseignement de Nietzsche et la politique dun nom propre18.

Para Demo, pesquisa teórica é aquela "dedicada a reconstruir teoria, conceitos, ideias,

ideologias, polêmicas, tendo em vista, em termos imediatos, aprimorar fundamentos

teóricos".19 Segundo o mesmo autor, a pesquisa empírica é a pesquisa que busca aprofundar o

tratamento da "face empírica e fatual da realidade; produzindo e analisando dados,

procedendo sempre pela via do controle empírico e fatual".20 De acordo com essa orientação,

este trabalho, não obstante seja ausente de ação experimental, trata-se de uma pesquisa

empírica, uma vez que o uso de entrevistas lhe confere essa denominação.

Para melhor compreender a docência na educação superior, quando se trata de

professores que são oriundos de áreas não voltadas ao ensino, fui fazendo recortes. O primeiro

recorte foi a escolha do tema formação, uma vez que eu poderia ter buscado melhor

compreensão dessa docência estudando outros temas como as práticas ou a profissionalização

desses professores. Conforme comentado em passo anterior, a formação dos professores

poderia ser estudada a partir do currículo, ou da instituição, ou da política, entre outras

possibilidades. Então, o segundo recorte foi estudar a formação a partir do próprio professor 17 Esporas. Os escritos de Nietzsche. 18 Otobiografia: o ensino de Nietzsche e a política do nome próprio. 19 DEMO, 2000, p. 20. 20 Id.,ib., p. 21.

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com o pressuposto de que formação é constituição de si. Assim, me aproximei do pensamento

de Nietzsche segundo o qual constituição de si é tornar-se o que se é, o que acontece

unicamente na vida através das vivências. Para Nietzsche, ao se constituir, ao se tornar o que

é, a pessoa adota estilos de vida. A docência é um gesto da vida dos professores, por isso o

pressuposto de que ao se constituírem, ao se tornarem o que são, eles adotam estilos de

docência.

Ao fazer esses recortes, cheguei a algumas pessoas que são professores da educação

superior, particularmente, do campus de Cuiabá da UFMT. E desejei ouvi-los, mais do que

isso, precisava ouvi-los dadas as escolhas epistemológicas que fiz.

O conceito de otobiografia foi empregado como procedimento metodológico pela

primeira vez por Monteiro no seu trabalho de doutorado realizado na Universidade de São

Paulo sob a orientação da professora Dra. Selma Garrido Pimenta, defendido no ano de 2004,

cujo título é Quando a pedagogia forma professores. Uma investigação otobiográfica.21 Esse

trabalho é sobre a formação de professores na Licenciatura Plena em Pedagogia da UFMT.

Monteiro escolheu como objeto de análise os dossiês de conclusão de curso das alunas e, ao

iniciar a leitura deles, constatou uma característica sempre presente: o tom autobiográfico. Por

isso julgou ser fértil experimentar na análise desses textos as concepções de Nietzsche sobre

reflexão filosófica e vivência. Para esse procedimento metodológico, escolheu não se colocar

como leitor, mas como ouvinte, daí recorrer a Derrida para o uso do conceito de otobiografia.

Então, na sua pesquisa de doutorado, Monteiro trabalhou com textos escritos, os dossiês das

estudantes.

No âmbito do grupo EFF, antigo Grupo de Estudos em Didática, Filosofia e

Formação de Educadores (GEDFFE), antes desta pesquisa, foram realizadas quatro pesquisas

relacionadas com o conceito de otobiografia, sendo que três utilizaram a otobiografia como

procedimento metodológico e uma teve como objetivo aprofundar e ampliar os

conhecimentos sobre Derrida como leitor de Nietzsche, visando propiciar maior

fundamentação teórica para a consolidação do método otobiográfico.

O segundo trabalho realizado com a utilização do método otobiográfico foi a minha

dissertação de mestrado, defendida em 2008. Nesse trabalho, intitulado Quando engenheiros

21 MONTEIRO, 2004.

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tornam-se professores22, adotei como procedimento metodológico a escuta das vivências dos

engenheiros-professores, tendo como referência o trabalho de doutorado de Monteiro.

A seguir, foi produzida a dissertação de mestrado de Oliveira23, também sob a

orientação de Monteiro e intitulada de Caminhos formativos que conduzem à Pedagogia. A

pesquisa da qual se trata essa dissertação teve como foco as concluintes do curso de

Licenciatura em Pedagogia da UFMT. O objetivo desse trabalho foi investigar como essas

estudantes tornaram-se pedagogas. Adotou-se como procedimento metodológico a escuta das

suas vivências com o propósito de identificar os impulsos que tomam a palavra nas suas

narrativas e que as direcionam para a profissão, dando sentido às suas ações. Oliveira também

trabalhou com os dossiês das estudantes.

O terceiro trabalho foi o de Mainardi24, outra dissertação de mestrado orientada por

Monteiro, cujo título é A formação da mulher para se tornar policial militar em Mato Grosso.

Essa pesquisa teve como finalidade compreender a formação das mulheres policiais militares

de Mato Grosso através da escuta das vivências cotidianas que compõem sua identidade

pessoal e profissional, com o emprego do método otobiográfico. Assim, buscou-se a

identificação das experiências vividas por elas e que as tornaram o que são. Mainardi também

trabalhou com textos escritos.

No ano de 2010, Lopes25, orientanda de Monteiro, defendeu a dissertação de mestrado

intitulada Otobiografias – escuta-estilo-escrita para a autobiografia e a autoformação. Esse

trabalho visa criar uma atmosfera para a inscrição do método otobiográfico a partir de Derrida

como leitor de Nietzsche.

Na pesquisa que realizei no mestrado, sobre os engenheiros-professores, trabalhei com

narrativas orais, o que também ocorreu nesta produção de doutorado. Na época, o grupo

questionava sobre como aplicar a otobiografia em textos orais. A solução encontrada foi

gravar as entrevistas em áudio e depois transcrevê-las. Aos textos transcritos, era dado o

mesmo tratamento aplicado aos textos originalmente escritos.

Nas primeiras pesquisas que realizamos com a otobiografia, inspirados pelo Ecce

Homo de Nietzsche, solicitamos aos entrevistados que contassem as suas vidas como se

contassem para eles mesmos, ao estilo reflexivo do autor do Ecce Homo. Desse modo, as

narrativas além de privilegiarem uma cronologia dos acontecimentos, o que não nos

22 SANTANA, 2008. 23 OLIVEIRA, 2009. 24 MAINARDI, 2009. 25 LOPES, 2010.

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interessava, abordavam mais as fases da vida que antecederam a docência. Então, a partir

dessas experiências, resolvemos mudar o modelo das entrevistas. Para evitar a narrativa

cronológica, comum nas pesquisas que trabalham com histórias de vida, assim como para tirar

o foco da vida pregressa à docência, escolhemos como eixo orientador das entrevistas

oferecer aos interlocutores palavras da vida acadêmica, do ambiente docente da educação

superior, e solicitar que eles falassem o que essas palavras suscitavam neles.

Tais palavras foram escolhidas pelos pesquisadores do grupo EFF, após discussão da

questão em uma reunião. Nessa ocasião, havíamos tomado conhecimento da única entrevista

concedida pelo filósofo Gilles Deleuze em toda a sua vida. Nessa entrevista, realizada pela

jornalista francesa Claire Parnet, adotou-se o procedimento de solicitar a Deleuze que falasse

sobre sua vida a partir de palavras previamente escolhidas e que se relacionavam com fatos

polêmicos e interessantes da vida do filósofo. Cada uma dessas palavras iniciava com uma das

letras do alfabeto, totalizando 25 palavras, daí a entrevista ficar conhecida como O

Abecedário de Gilles Deleuze. Achamos interessante a estratégia de Parnet para entrevistar

Deleuze e, com essa inspiração, resolvemos experimentar uma nova orientação para a

realização das entrevistas nas pesquisas que utilizam a otobiografia como procedimento

metodológico, com o emprego de palavras previamente escolhidas.

Existe a crença de que o que se ouve alimenta o espírito. Para Nietzsche, essa divisão

não existe, o cérebro não é um aparelho cognitivo e se existisse um aparelho cognitivo seria o

estômago ou o intestino. Por isso, em uma pesquisa sobre professores que se fundamenta no

pensamento nietzschiano, é melhor perguntar-lhes o que eles vivem e não o que eles pensam.

Nesse sentido, foram escolhidas 22 palavras, uma sigla e a sequência de três letras que

remetem à docência como um gesto da vida. Dessa forma, também tínhamos um limite para a

quantidade de palavras, uma vez que esse limite era necessário para a efetivação das

entrevistas. Tal procedimento metodológico foi denominado de entrevista abecedária, sendo

esta a primeira pesquisa a adotar a nova orientação para as entrevistas.

Muitas palavras, também, poderiam ter sido escolhidas. Dentre esse grande número de

possibilidades, o grupo escolheu algumas que julgou suficientes para atender ao propósito da

pesquisa. São as seguintes: aula; beleza; conhecimento; didática; estudante; formação; gestão;

hoje; identidade; juventude; Kepler ou Kant; leituras; magistério; nocivo; ordem; professor;

qualidade; realização; social; trabalho; universidade; valor; a sigla: WWW e a sequência de

letras: X, Y, Z.

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As palavras da entrevista abecedária funcionam como um disparo para o interlocutor

falar sobre a vida dele. Ao falar da vida, ele fala de si e faz isso em uma determinada posição:

como professor. Ele vai dizer dos estilos a partir das suas vivências. A ideia das vivências é

porque não coloco em debate com os professores o que significam as palavras. Assim, eles

falam sobre cada palavra a partir das suas vivências. Por exemplo, quando é dada a palavra

aula, não se faz a pergunta: o que é aula para você? ou o que significa aula para você?

Como geralmente ocorre nas pesquisas que se fundamentam na Teoria das Representações

Sociais. Mas, ao falar aula, o que você tem a dizer? E a pessoa ao dizer, remete à vida dela.

Então, é como se ela estivesse pensando a educação a partir da vida dela. Uma resposta do

tipo: “aula é uma prática social....” é diferente de “eu não gosto de dar aula, prefiro fazer

pesquisa”. É muito diferente uma coisa da outra e é do segundo caso que trato. As palavras

remetem à docência como um gesto dessa vida. Por isso a ideia de estilos de docência.

Esse é o modo como pensei capturar o pensamento dos professores. Para ouvi-los,

oferecer palavras da vida acadêmica e ver como eles são afetados por elas. Quero ouvir o que

volta. Quero parar na experiência de cada um e tirar as pedras preciosas do conhecimento

daquela vida que fala aquilo, com aquelas palavras. Nietzsche chama a atenção para a

importância das vivências para a produção de conhecimentos, referindo-se a elas como pedras

preciosas do conhecimento e critica os filósofos por focarem as suas buscas por

conhecimentos apenas nos fenômenos da natureza ou da alma, ignorando as vivências.

Ressalta, também, que as vivências mais instrutivas são as cotidianas:

as vivências mais admiráveis, mais instrutivas, as vivências decisivas, são exatamente as vivências cotidianas, que estas constituem justamente o grande enigma que cada um tem sob os olhos, mas que poucos compreendem como sendo um enigma, e que, para o pequeno número de verdadeiros filósofos, são justamente estes os problemas que permanecem ignorados, abandonados no meio do caminho e, por assim dizer, pisoteados pela multidão, antes que eles os recolham cuidadosamente e a partir deste momento resplandeçam como pedras preciosas do conhecimento [grifo nosso].26

Assim, a entrevista tem a ver com o modo como capturo o pensamento do professor,

os conhecimentos por ele produzidos. A casuística do destino é o que me interessa e é isso

que vou buscar nas narrativas desses professores.

26 NIETZSCHE, Sobre o futuro de nossas instituições de ensino, § 5.

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A seguir, defini os critérios para a composição do grupo de interlocutores. Adotei,

como primeiro critério, que o grupo deveria ser constituído por seis professores, sendo dois de

cada grande área do conhecimento: Ciências Exatas; Ciências Humanas e Sociais; e Ciências

Biológicas e da Saúde. A classificação das grandes áreas do conhecimento que considero

neste trabalho praticamente, emergente do senso comum é a classificação mais elementar, ou

seja, não segue a classificação adotada por órgãos atuantes em ciência, tecnologia, cultura,

arte e inovação, como o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico

(CNPq) e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). A

Tabela das Áreas do Conhecimento adotada por esses órgãos abrange oito grandes áreas do

conhecimento e é um instrumento para organizar informações visando implementar,

administrar e avaliar seus programas e atividades.

Decidi ouvir seis professores porque o método otobiográfico consiste em uma escuta

minuciosa das narrativas autobiográficas, o que demanda muito tempo. A opção por dois

professores de cada grande área do conhecimento objetivou ouvir pessoas com formações

diversas.

Outro critério para a escolha dos interlocutores foi a rica experiência deles no

magistério superior, para o que foram consultadas as datas de suas admissões na Instituição.

De acordo com as informações prestadas pela Secretaria de Gestão de Pessoas (SGP)

da UFMT, existe no campus de Cuiabá 410 professoras e 517 professores. Considerando a

pequena diferença entre o número de homens e de mulheres do quadro docente, decidi,

também, que a quantidade de professores e de professoras ouvidos seria igual.

Mesmo com os critérios definidos, o número de possibilidades de escolha dos

professores para a interlocução era muito grande. Também considerei pessoas que conhecia,

certa de que elas colaborariam com a pesquisa, além de acatar opiniões de outros professores

que indicaram colegas copensei também em pessoas que, por conhecê-las, acreditava que

aceitariam prestar essa colaboração a pesquisa e, até mesmo, o fariam com muita satisfação.

Também ouvi opiniões de outros professores que me indicaram colegas que atendiam aos

critérios adotados e aceitariam de bom grado conceder a narrativa. Assim, escolhi os seis

professores que seriam convidados para compor o grupo de interlocutores e realizei o

primeiro encontro com cada um deles, quando apresentei as informações primordiais sobre a

pesquisa e indaguei se o professor, ou professora, concordava em conceder a narrativa, cuja

duração era estimada em torno de uma hora e trinta minutos. Essa estimativa foi baseada na

experiência com as entrevistas da minha pesquisa do mestrado. No primeiro encontro com

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cada professor, indaguei, também, se ele, ou ela, autorizaria a publicação do seu nome e da

sua narrativa, pois esta era uma exigência da pesquisa. Os seis professores convidados

autorizaram as referidas publicações e aceitaram participar da mesma. Nessa ocasião já

definíamos a data, o horário e o local para a realização da entrevista.

O passo seguinte foi um encontro individual com cada um dos professores, para a

realização da entrevista abecedária. As entrevistas se efetivaram no período de 18 de maio de

2010 a 26 de agosto de 2012. Todas foram gravadas em vídeo e tiveram a duração média de

uma hora e trinta minutos conforme a expectativa.

As narrativas coletadas por meio da entrevista abecedária são os textos considerados

neste trabalho, por isso são os dados empíricos do mesmo. O tom autobiográfico é uma

característica sempre presente nas narrativas, motivo pelo qual escolhi o método otobiográfico

para o trabalho com elas, que não é de análise, mas de escuta, conforme será explicitado em

passo posterior.

O trabalho que realizo com as narrativas é bem distinto daquele que, geralmente, é

feito com os dados nas pesquisas tradicionais: tratamentos estatísticos, análises de discurso,

tabulações de recorrências e outros procedimentos. Não as manipulo com a expectativa de

revelar o fenômeno causa-efeito. Não dou ao trabalho que realizo com elas o caráter de exame

ou análise. Com elas pretendo dialogar: escuto e depois tenho algo a dizer. Também, no meu

entender, aqui não cabe a clássica relação sujeito-objeto, pois essa dicotomia demanda

neutralidade e distanciamento da parte do pesquisador. Por eu fazer parte do universo

estudado, isso não seria possível.

Recorro a Nietzsche para uma leitura dessa questão sob outra perspectiva: “Para aquilo

a que não se tem acesso por vivência, não se tem ouvido.”27 Nesse sentido, acredito que as

minhas vivências como professora da UFMT, por 32 anos, me ajudam a ter ouvidos para as

vivências dos meus colegas.

1.2 CONTEXTUALIZAÇÃO

Com vistas à contextualização da pesquisa, apresento a seguir algumas ideias de

autores do campo da educação, sobre a formação dos professores da educação superior. Logo

27 NIETZSCHE, Ecce Homo, Por que escrevo livros tão bons, §1.

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após, exponho um breve histórico sobre a constituição do quadro docente da UFMT e, depois,

uma visão institucional dos professores do campus de Cuiabá da mesma instituição.

1.2.1 Formação dos Professores da Educação Superior

O atual quadro da educação superior no Brasil, com destaque à sua expansão

relativamente desordenada, desde o início da década de 1990, fez com que profissionais de

diversas áreas do conhecimento encontrassem na docência da educação superior um meio

importante de atuação e renda. Segundo dados oficiais28, em 1991, Mato Grosso contava com

dezessete instituições de educação superior e, em 2004, com 47 instituições. Em 1995, havia

111 cursos de nível superior oferecidos em todo o estado; em 2007 totalizavam 483. Em

termos de funções docentes, eram 2.052 em 1995, 6.247 em 2007 e 7.007 em 2009. Esse

cenário indica claramente a expansão da oferta de empregos na docência da educação superior

em Mato Grosso. As questões que coloco são: quem são esses professores? São os abnegados,

os doadores, ou seja, engenheiros, advogados, médicos, padres,...que dedicam parte das suas

vidas, dos seus tempos, para ensinar? Obviamente que, na maior parte, são doutores e

recebem bons salários. Como esses profissionais, que não foram formados para a docência,

estão se constituindo professores desse nível da educação?

Pessoas escolhem em uma determinada fase das suas vidas a profissão que desejam

exercer e, em geral, buscam a competência profissional em um curso de graduação. Ao

concluírem o curso, em alguns casos, ocorre a decisão pela carreira acadêmica. Nesses casos,

a carreira acadêmica, por vezes, não é vista como uma escolha. Existe um discurso corrente

de que alguns professores ingressam na carreira acadêmica para alcançar mais prestígio

profissional e social ou porque não conseguiram ingressar no mercado de trabalho, ou, ainda,

não foram bem sucedidos o suficiente para permanecer nesse mercado. Há, também, os que

atribuem essa escolha a um dom, ou vocação para o ensino. Esta pesquisa oportunizará ouvir

de alguns desses professores o que eles têm a dizer sobre isso.

Pimenta contribui para provocar a pesquisa nos seguintes termos:

A centralidade colocada nos professores traduziu-se na valorização do seu pensar, do seu sentir, de suas crenças e seus valores como aspectos importantes para

28 MEC/INEP/Deaes apud VELOSO, SILVA e BERALDO, 2006.

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30

se compreender o seu fazer, não apenas de sala de aula, pois os professores não se limitam a executar currículos, senão que também os elaboram, os definem, os re-interpretam. Daí a prioridade de se realizar pesquisas para se compreender o exercício da docência, os processos de construção da identidade docente, de sua profissionalidade, o desenvolvimento da profissionalização, as condições em que trabalham, de status e de liderança.29

Como toda profissão, a docência, em qualquer nível da educação, demanda saberes

específicos. Pimenta e Anastasiou30 nomeiam os docentes universitários que não tiveram

formação pedagógica como ocupantes da docência e apontam como condição para a

superação dessa situação a profissionalização nesse campo, o que, na opinião das autoras,

demanda a construção dos saberes específicos para a docência, quais sejam: saberes da

experiência, saberes das áreas de conhecimento, saberes pedagógicos e saberes didáticos.

De acordo com Pimenta e Anastasiou31, os saberes da experiência dizem do modo

como se apropriam do ser professor em suas vidas. São os saberes construídos no decorrer das

suas vidas, com a observação dos professores que tiveram. Também são os saberes que

provêm da experiência socialmente acumulada, os saberes que os professores constroem com

a prática e os saberes que os professores constroem com a reflexão sobre suas práticas.

Tarcia concorda com essa ideia e destaca opinião de André: “a ação do professor em

sala de aula é produto da sua vivência como aluno. Para além das teorias pedagógicas que ele

aprende o que define o seu perfil são as práticas dos seus antigos professores”.32

Sobre os conhecimentos da experiência, Veiga enfatiza “a pessoa do professor como

um sujeito de conhecimentos, um protagonista que desenvolve com seus alunos teorias,

conhecimentos e saberes de sua própria prática pedagógica”.33

Os saberes das áreas de conhecimento são de fundamental importância porque

ninguém ensina o que não sabe. São os conhecimentos específicos da área profissional ou

científica. No entanto, como coloca Pimenta34, os professores devem ter em mente o

significado que esses conhecimentos específicos têm para eles mesmos e para a sociedade

contemporânea; a diferença entre conhecimentos e informações; até que ponto conhecimento

é poder; o papel do conhecimento no mundo do trabalho e a relação entre esses

conhecimentos e os conhecimentos de outras áreas, entre outras questões. 29 PIMENTA, 2005, p.36. 30 PIMENTA E ANASTASIOU, 2005. 31 Id., ib. 32 ANDRÉ apud TARCIA, 2001, p. 153. 33 VEIGA, 2012, p. 147. 34 PIMENTA, 2007.

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31

Os saberes pedagógicos visam à organização de meios e processos educativos.

Abrangem temas como relacionamento professor-aluno, importância da motivação e do

interesse dos alunos no processo de aprendizagem, técnicas de ensinar, entre muitos outros.

São construídos através do estudo e da investigação sistemática por parte dos professores

sobre sua própria prática, com a contribuição da teoria pedagógica. E os saberes didáticos são

os “que tratam da articulação da teoria da educação e da teoria de ensino para ensinar nas

situações contextualizadas”.35

Os profissionais de diferentes áreas do conhecimento, quando ingressam na docência

da educação superior já possuem saberes sobre a mesma, que foram construídos com a

prática, como alunos e, em alguns casos, também como docentes dos outros níveis da

educação. Então, de acordo com Pimenta e Anastasiou36, são os saberes da experiência, visto

que simplesmente agem por reprodução do modelo de professor que conheceram. Muitos

desses docentes são especialistas em suas áreas de conhecimento, com cursos de pós-

graduação e anos de experiência prática profissional em seus campos de conhecimento. Deste

modo, acumulam conhecimento do conteúdo a ser ensinado, ou seja, os saberes das áreas de

conhecimento, na concepção de Pimenta e Anastasiou.

As referidas autoras citam os saberes docentes como elementos fundantes da docência,

ou seja, a base para o exercício desta profissão e os professores da educação superior,

geralmente não têm o fundamento teórico necessário para a construção dos saberes

pedagógicos e dos saberes didáticos. É possível constatar que, mesmo os professores com

bastante experiência na docência, têm pouco conhecimento dos princípios desta profissão,

pois lhes faltam os referidos saberes, o que os levam a adotar sempre as mesmas práticas,

mesmo quando essas não atendem mais às demandas atuais do processo ensino-

aprendizagem. Contudo, mesmo sem a formação adequada, eles têm exercido a docência, até

porque os pedagogos e os licenciados não podem ensinar os conteúdos profissionalizantes das

outras áreas do conhecimento. Sendo assim, nesta pesquisa adoto o pressuposto de que os

professores constroem alguns dos saberes demandados pela docência na educação superior

com a prática, mas os reconheço como insuficientes. Os problemas nitidamente percebidos,

principalmente pelos coordenadores de cursos, podem estar relacionados com a ausência de

formação específica para a docência neste nível da educação.

35 PIMENTA e ANASTASIOU, 2005, p. 71. 36 Id., ib.

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32

Tarcia lembra que na educação superior, “muitas vezes é um profissional liberal que

assume o magistério sem ter tido a oportunidade de desenvolver aspectos de sua formação

pedagógica e política”.37 Além disso,

Esse profissional liberal-docente possui a formação técnica em seu curso de graduação e a formação prática, muitas vezes, adquirida por meio do exercício profissional. Quanto aos aspectos de sua formação pedagógica e política, não há oportunidade de serem desenvolvidos ao longo de sua carreira.38

Os professores das licenciaturas, com exceção da Licenciatura em Pedagogia, têm

alguma formação para a docência, mas pesquisas têm mostrado que essa formação é

insuficiente. As suas práticas docentes não são muito diferentes das práticas dos demais

professores da educação superior, ou seja, nos cursos de licenciatura, muitas vezes, são

constatados os mesmos problemas dos outros cursos com relação à atuação dos professores.

Desde o ano 2000, o Conselho Nacional de Educação (CNE) vem elaborando as novas

diretrizes curriculares nacionais para os cursos de graduação. Essas diretrizes apresentam uma

proposta, segundo a qual o antigo conceito de currículo, entendido como grade curricular, é

substituído por um conceito bem mais amplo, qual seja, um conjunto de experiências de

aprendizado, visando ampliar os horizontes da formação profissional e proporcionar uma

formação sociocultural mais abrangente. Essas diretrizes curriculares problematizam a

necessidade de processos de ensino-aprendizagem que privilegiem o aprendizado autônomo

do aluno. Portanto, trata-se de proposta que exige dos professores desse nível da educação

uma revisão de seus referenciais, de suas crenças e de suas práticas na docência. Nesse

sentido Tarcia39 alerta que muito se tem dito a respeito da desejável melhora do ensino em

todos os níveis, inclusive no 3º grau, e que, de algum modo, mudanças silenciosas vm

acontecendo, tanto na ruptura de paradigmas da ciência com a incorporação de inovações,

quanto na perspectiva de um ensino interdisciplinar e mais relacionado com o aluno e o

mundo. Nesse contexto, as pesquisas sobre os ocupantes da docência são de fundamental

importância para apontar os caminhos para uma prática consciente e autônoma como

profissionais da educação.

37 TARCIA, 2001, p. 155. 38 Id., ib., p. 155. 39 Id., ib.

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33

A questão da formação dos professores da educação superior tem sido uma

preocupação em muitos países, e no Brasil não é diferente, por isso é tema relevante em

vários eventos científicos.

A esse respeito, Gaeta comenta:

O interesse e a preocupação com a formação dos docentes para o ensino

superior têm mobilizado educadores, pesquisadores e os próprios professores. Constantemente e em números cada vez mais expressivos são publicadas pesquisas relevantes e artigos específicos sobre o tema. Obras sobre didática para o ensino superior sofreram significativo aumento de produção tanto no Brasil como no exterior. Os congressos nacionais de educação (Anped e Endipe)40 e muitos eventos internacionais abrem cada vez mais espaço para o debate sobre formação docente.41

A contribuição de Abramowicz vem de Nóvoa: “A formação não se constrói por

acumulação (de cursos, conhecimentos ou técnicas) mas, sim, através de um trabalho de

reflexibilidade crítica sobre as práticas e de reconstrução permanente de uma identidade

pessoal”.42 No entanto, o artigo 66 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB - Lei

9394/96) estabelece: “A preparação para o exercício do magistério superior far-se-á em nível

de pós-graduação, prioritariamente em programas de mestrado e doutorado.”43 Apesar de não

considerar esses cursos como obrigatórios, a exigência de que toda universidade deva ter um

mínimo de trinta por cento de seus docentes titulados na pós-graduação stricto sensu, a torna

o lugar privilegiado para se dar a referida formação. Há de se considerar, também, a

inexistência de vagas suficientes nesses programas para atender à demanda. Além do mais, a

história dos programas de pós-graduação tem mostrado que eles se voltam exclusivamente

para a formação de pesquisadores. Essa é uma formação importante para o docente da

educação superior, porém, fica faltando a formação para o ensino. Gaeta concorda:

existe uma evidente lacuna de espaços pertinentes para a formação de professores do ensino superior. O cenário que se apresenta é que os cursos de pós-graduação stricto sensu, normalmente indicados para esse processo, estão principalmente voltados para o desenvolvimento da pesquisa e de pesquisadores e não atendem a essa demanda.44

40 Anped – Associação Nacional de Pesquisa em Educação e Didática. Endipe – Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino. 41 GAETA, 2012, p. 37. 42 NÓVOA apud ABRAMOWICZ, 2012, p. 138. 43 BRASIL, 2008. 44 GAETA, 2012, p. 37-8.

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Ainda sobre os programas de pós-graduação stricto sensu, Gaeta afirma que acabam,

privilegiando a formação do pesquisador especialista em determinada área de estudos e reforçando o princípio da racionalidade técnica, onde possuir certo conhecimento formal pressupõe a capacidade de ensiná-lo. Em geral, não têm preocupação com a formação de profissionais dedicados ao ensino, nem oferecer oportunidade de desenvolver as dimensões pedagógicas e políticas da prática docente. Este fato, em simples análise, promove uma defasagem entre capacitação final do professor oriundo desses cursos de pós-graduação e as expectativas atuais sobre o papel do professor do ensino superior.45

No entanto, não se trata de um processo excludente: ou formar o pesquisador ou

formar o docente alerta Vasconcelos, “Trata-se, ao contrário, de chamar a atenção para a

complementaridade dessas duas ênfases, uma vez que o mesmo indivíduo será,

necessariamente, pesquisador e docente concomitantemente”.46

Tampouco se trata de negar a importância do aprofundamento dos saberes das áreas

de conhecimento, quando os docentes optam por cursos de pós-graduação com ênfase em seu

campo de formação inicial, mas, segundo Fernandes, se trata de,

construir pontes que permitam travessias em outros campos de sua prática cotidiana, numa perspectiva dialética entre a dimensão epistemológica (a questão do conhecimento), a dimensão pedagógica (a questão de ensinar e aprender) e a dimensão política (a questão da escolha do projeto de sociedade e universidade que se pretende).47

Gaeta chama a atenção para a complexidade da formação do professor do ensino

superior:

inquestionável, complexa, multifacetada e composta por conhecimentos objetivos e subjetivos, competências pedagógicas específicas, atitudes inovadoras, adquiridas de modo amplo e não linear. Pressupõe revisão, reflexão e mudança em várias dimensões, tais como: aquisição e processamento de informações para construção e atualização de conhecimentos; busca de novas habilidades de ensino e de gestão; intensificação da pesquisa e reflexão sobre sua prática; e conhecimento e compreensão de si mesmo para saber exatamente o que quer e como quer promover seu desenvolvimento.48

45 GAETA, 2012, p. 42. 46 VASCONCELOS, 1998, p. 94. 47 FERNANDES, 1998, p. 105. 48 GAETA, 2012, P. 38.

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Nesse sentido, conhecimento e compreensão de si mesmo são condições para a

promoção do desenvolvimento profissional do professor. Nietzsche, filósofo cujas ideias

fundamentam este trabalho, dirá que para alguém se conhecer é preciso ter ouvidos para as

próprias vivências:

Nós, homens do conhecimento, não nos conhecemos; de nós mesmos somos desconhecidos – e não sem motivo. Nunca nos procuramos: como poderia acontecer que um dia nos encontrássemos? [...] Quanto ao mais da vida, as chamadas “vivências”, qual de nós pode levá-las a sério? Ou ter tempo para elas? Nas experiências presentes, receio, estamos sempre “ausentes”: nelas não temos nosso coração – para elas não temos ouvidos. Antes, como alguém divinamente disperso e imerso em si, a quem os sinos acabam de estrondear no ouvido as doze batidas do meio-dia, e súbito acorda e se pergunta ‘o que foi que soou?’, também nós por vezes abrimos depois os ouvidos e perguntamos, surpresos e perplexos inteiramente, ‘o que foi que vivemos?’, e também ‘quem somos realmente?’, e em seguida contamos, depois, como disse, as doze vibrantes batidas da nossa vivência, da nossa vida, nosso ser – ah! E contamos errado... Pois continuamos necessariamente estranhos a nós mesmos, não nos compreendemos, temos que nos mal-entender, a nós se aplicará para sempre a frase: ‘Cada qual é o mais distante de si mesmo’ – para nós mesmos somos ‘homens do desconhecimento’.49

Pimenta e Anastasiou50 entendem que, em se tratando de professores da educação

superior, o conceito de desenvolvimento profissional é mais adequado que o de formação,

dada a complexidade de um processo que envolve ações e programas de formação inicial e de

formação em serviço. Nesse sentido e de conformidade com os pressupostos desta pesquisa, o

desenvolvimento profissional desses professores demanda a constituição de estilos da

docência.

“É a partir da década de 1980 que a pesquisa educacional em todo o mundo passa a

trazer os professores para o centro da investigação e dos debates educativos”.51 Sobre as

pesquisas que têm o professor como objeto, Castanho destaca: “A questão da identidade é

fundamental quando nos indagamos sobre a vida e a pessoa do professor, quando queremos

saber como e por que cada um se tornou o professor que é.52

Nos anos 1990, a preocupação com a formação dos professores chega aos professores

da educação superior. Perguntavam-se como formar pessoas que já tiveram uma graduação

inicial, mas em áreas não voltadas ao ensino. As respostas foram as mais diversas, destas, as

mais simples: “é uma questão de teorias”; “é uma questão de currículo”; “é uma questão de

49 NIETZSCHE, Genealogia da moral: uma polêmica, §1. 50 PIMENTA e ANASTASIOU, 2005. 51 NÓVOA apud FONTANA, 2005, p. 20. 52 KRAMER e SOUZA apud CASTANHO, 2012, p. 156.

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compreender a escola”; “é uma questão de política”... Nesse sentido, Gaeta53 elenca aspectos

que comporiam certa “sabedoria docente”: domínio do conteúdo; engajamento com a

organização curricular; competência pedagógica; identidade docente; reflexão sobre a prática

e carreira docente.

O exposto, embora de forma concisa, dá uma noção da complexidade da formação dos

professores da educação superior. Neste trabalho proponho olhar essa formação sob outra

perspectiva. Embora as teorias, o currículo, a política, entre outros assuntos, sejam

importantes, proponho uma inversão dessa visão. Não trato do estudante de licenciatura que

será professor, mas do professor que já está em atividade na universidade e proponho olhar o

seu desenvolvimento profissional a partir dele mesmo. Em vez de uma epistemologia da

prática, uma epistemologia do sujeito, da pessoa. Enfim, o que proponho e procuro fazer neste

trabalho é uma inversão de perspectiva. Faço isso, também, por acreditar que quando se olha

qualquer coisa, qualquer fenômeno, sob outra perspectiva, outros aspectos serão observados e

novos conhecimentos construídos.

Quando falo de epistemologia do sujeito, não estou falando de subjetividade. Não

transito no campo psicológico. Não falo de opiniões, mas de afetações (ou afecções). Falo em

dar voz ao professor, mas também em dar a essa voz um tratamento diferenciado do que é

dado pelos estudos que se pautam mais no campo da sociologia. Busco um pensamento, um

saber, que nasce da vida. O eu pessoal não se distinguindo do profissional, conforme observa

Nóvoa:

eis-nos de novo face à pessoa e ao profissional, ao ser e ao ensinar. Aqui estamos. Nós e a profissão. E as opções que cada um de nós tem de fazer como professor, as quais cruzam a nossa maneira de ser com a nossa maneira de ensinar e desvendam na nossa maneira de ensinar a nossa maneira de ser. É impossível separar o eu profissional do eu pessoal.54

Tenho a expectativa de que uma das contribuições que este trabalho trará para a

formação dos professores da educação superior seja essa nova perspectiva de se pensar a

formação. Com esta pesquisa, eu objetivo dar o primeiro e grande passo nesse sentido para

que outros venham aprimorar e consolidar essa ideia.

53 GAETA, 2012. 54 NÓVOA, 1995, p. 17.

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1.2.2 Constituição do Quadro Docente da UFMT

Tomo como foco desta pesquisa professores do campus de Cuiabá da UFMT. A opção

por professores de apenas um campus da Universidade deveu-se a um recorte para fins de

estudo e realização do trabalho de doutorado. Esse estudo pode ser ampliado futuramente para

professores de todos os campi da UFMT. Optei pelos professores do campus de Cuiabá por

ser o campus central e onde a UFMT teve o seu começo. Também por ser o local onde atuo

como professora e curso o doutorado.

Dando continuidade à contextualização da pesquisa, apresento a seguir um breve

histórico da constituição do quadro docente da UFMT, bem como os primeiros movimentos

no sentido de formação dos professores.

A história da composição do quadro de professores da UFMT, assim como a

constituição da própria universidade foi registrada por Benedito Pedro Dorileo que, em 2005,

escreveu a obra Ensino superior em Mato Grosso: até a implantação da UFMT, utilizada

como referência para a contextualização que ora é apresentada.

Antes mesmo da criação da UFMT, no ano de 1970, esse quadro docente já vinha se

constituindo, uma vez que grande parte dos professores veio de instituições já existentes,

como Aecim Tocantins que, de acordo com Dorileo55, era professor da Escola Técnica de

Comércio, criada no ano de 1914 como Escola Superior de Comércio. Tocantins tornou-se,

posteriormente, professor de ciências contábeis do Instituto de Ciências e Letras de Cuiabá

(ICLC) e, a seguir, professor da UFMT.

A Faculdade de Direito e o Instituto de Ciências e Letras de Cuiabá (ICLC),

efetivamente, foram o nascedouro da UFMT e a base para a sua criação em Cuiabá. O

primeiro curso de ensino superior de Mato Grosso foi o curso de Direito, criado no ano de

1934. Os seus professores eram magistrados e jurisconsultos, a maioria exercendo cargo

público remunerado, o que indica que a profissão docente não era em jornada de dedicação

exclusiva.

Dorileo56 nos conta que, em 1936, foi criada a Faculdade de Direito de Mato Grosso,

ficando sob a responsabilidade exclusiva do Estado. Quando, finalmente, a juventude mato-

grossense tem o seu curso de bacharelado em Direito, o artigo 159 da Constituição Federal de

55 DORILEO, 2005. 56 Id., ib., 2005.

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1937 veda a acumulação de cargos remunerados no serviço público, o que leva os professores

a optarem pela magistratura ou promotoria que ofereciam salários mais elevados. Sem

professores, a Faculdade recém-criada deixa de funcionar.

Mais tarde, a Constituição Federal de 1946 facultou acumular cargo remunerado com

o de magistério, o que levou à reinstalação da Faculdade de Direito de Mato Grosso, cujo

corpo docente era composto, em sua maior parte, por graduados em nível superior, como

dentistas, farmacêuticos, médicos, engenheiros, além de contadores, jornalistas, escritores e

outros.57

A carreira do magistério da Faculdade de Direito compreendia três classes:

catedrático, adjunto e assistente. Mediante contrato trabalhista, também admitia a livre-

docência e professor interino. Sobre as funções docentes nessa Faculdade, Dorileo comenta:

Naquela época, o catedrático, senhor da disciplina, gozava de plena liberdade para o desempenho de suas funções docentes, quanto à exposição, análise e críticas das doutrinas e opiniões científicas, assim como no que concerne ao método e aos processos de ensino, vedado o sectarismo ideológico.58

No ICLC foi deixada de lado a figura do catedrático e instituído o Departamento. A

situação dos professores do ICLC era de muita dificuldade, conforme relata Dorileo:

Eram docentes idealistas, percebendo parcos salários, sem plano de carreira, com precário contrato de trabalho; esforçavam-se em organizar as suas aulas diante da estrutura curricular em formação e imaginavam o conteúdo das matérias ou disciplinas, com audiência do Conselho de Professores.59

A UFMT foi instituída em dezembro de 1970. Idealizada para ser uma universidade

com vocação regional, atuante no processo de integração e desenvolvimento amazônico, ficou

conhecida como UNISELVA.

Em dezembro de 1971, na Escritura de Constituição da Fundação Universidade

Federal de Mato Grosso fica decidido que o ICLC e a Faculdade de Direito seriam integrados

à incipiente universidade e transformados no sistema departamental, em atendimento à lei da 57 DORILEO, 2005. 58 Id., ib., p. 35-6. 59 Id., ib., p. 319.

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reforma universitária de 1968. Acompanhando a estrutura da carreira docente na antiga

Faculdade de Direito, a carreira docente na UFMT foi estabelecida em classes: assistente,

adjunto e titular. Às classes de assistente e titular, a admissão era por meio de exame de

seleção de títulos e provas para candidatos com pós-graduação. Dorileo60 lembra que os

professores fundadores da Faculdade de Direito e do ICLC receberam do Conselho Federal de

Educação e do MEC, extraordinariamente, a outorga de fundadores titulares da UFMT.

No ano de 1976, foi aprovado o Regulamento do Pessoal Docente e criado o Quadro

Permanente de Pessoal Docente. Os professores foram lotados nos diversos Departamentos,

por área de conhecimento.

Dorileo61 cita documento redigido pelo primeiro reitor da UFMT, o médico Gabriel

Novis Neves, em maio de 1977, expedido à comunidade universitária, no qual sintetiza as

atividades desenvolvidas na Instituição a partir de 1971. De acordo com o referido

documento, em 1972, a Vice-Reitoria Acadêmica classificou, através de teste de seleção, os

primeiros auxiliares de ensino, que se juntaram aos professores fundadores. A partir de 1973,

houve um empenho institucional na melhoria do processo de ensino que culminou na

implantação, em 1974, do Serviço de Assistência Técnica de Ensino, cuja finalidade era

assegurar assessoria e assistência técnica aos professores no planejamento de ensino, bem

como promover cursos de treinamento com a utilização de modernas técnicas de ensino, o que

à época se caracterizava, principalmente, pela instrução programada.

O histórico apresentado por Dorileo mostra que, desde os primórdios da UFMT, havia

o entendimento de que a melhoria do processo de ensino de graduação, também, demandava

formação dos professores em cursos de pós-graduação. Não era incomum a contratação do

docente e sua imediata capacitação. Um exemplo disso é a inclusão do Centro de Ciências

Agrárias, assim que foi criado em 1974, no Programa de Ensino Agrícola Superior (PEAS)

que permitia ao Centro promover aperfeiçoamento do corpo docente em cursos de mestrado e

doutorado no Brasil ou Estados Unidos da América, o que foi feito, programaticamente, desde

1974, através de um sistema especial de bolsas de estudo.62

Na década de 1970, foi instalada a Fazenda Experimental do Centro de Ciências

Agrárias, onde eram desenvolvidos projetos de pesquisa por alunos e docentes que retornaram

60 DORILEO, 2005. 61 Id., ib. 62 NEVES apud DORILEO, 2005.

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dos centros de pós-graduação onde realizaram mestrados com bolsas de estudo concedidas

pela UFMT.63

Do documento de Neves, citado anteriormente, destaco texto que mostra a

preocupação com a falta de professores titulados em cursos de pós-graduação e os primeiros

movimentos realizados pela Instituição com a finalidade de capacitação dos professores nos

níveis lato sensu e stricto sensu:

Desde os primeiros anos de sua recente implantação, a Universidade vem-se preocupando com o estabelecimento de uma política de aperfeiçoamento de pessoal do magistério. Dificuldades de recursos financeiros restringiram sua ação, limitando-nos inicialmente à oferta de cursos de Especialização na própria Universidade, com participação de professores de outras Instituições de Ensino Superior. A oferta desses cursos era programada em função das necessidades mais urgentes, atendendo principalmente áreas mais carentes como Matemática, Letras, Metodologia Científica.

Embora com dificuldade, contando principalmente com nossos minguados recursos próprios e com a colaboração de entidades nacionais (INPA, UFRJ), entidades estrangeiras (LASPAU, Universidade Nacional do México) nossa Universidade conseguiu, em 1974, assegurar oportunidade de curso de Mestrado a seis professores e curso de Doutorado a um professor. Todavia, ainda que computando o retorno desses professores, o índice de docentes titulados em cursos de Pós-Graduação, stricto sensu, não chegaria a alcançar 3% do total.

Elaborado preliminarmente, em novembro de 1974, nosso I Plano Plurianual de Capacitação de Docentes garantiu-nos participar da experiência piloto de iniciativa do DAU64, de capacitação institucional de docentes, envolvendo quatro Universidades Federais. O DAU e a CAPES comprometeram-se a dar assessoramento técnico e financeiro na elaboração e execução de nossos planos.65

Através do Programa Institucional de Capacitação de Docentes (PICD), a UFMT

procurou diminuir a carência de qualificação do corpo docente. Do PICD, participaram

professores e candidatos à docência. Do ano de 1975 ao ano de 1977, foram encaminhados em

torno de 130 bolsistas aos diversos centros de pós-graduação do País, para realizar cursos de

especialização e/ou mestrado. Em 1977, sete anos após a criação da UFMT, a Universidade

contava em números globais com 126 bolsistas, entre docentes e recém-graduados, em cursos

de pós-graduação no País e três em curso de doutorado no exterior (França, Inglaterra e

México). Neves relata, também, que desde os primeiros meses de funcionamento da

63 DORILEO, 2005. 64 DAU - Departamento de Assuntos Universitários. 65 NEVES apud DORILEO, 2005, p. 129.

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Universidade, docentes eram encaminhados para o exterior em busca de cursos de excelência,

ou para o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA).66

O histórico da UFMT mostra o empenho institucional na formação dos professores em

cursos de pós-graduação. As únicas ações voltadas para a formação pedagógica e didática dos

professores, citadas por Dorileo, foram os cursos de treinamento e a assessoria e assistência

técnica, oportunizados pelo Serviço de Assistência Técnica de Ensino, implantado em 1974.

Nos primeiros anos após a criação da UFMT, as atenções voltavam-se, principalmente,

para a implantação da infraestrutura necessária ao seu funcionamento, à composição do seu

quadro docente e para a criação dos primeiros cursos. A seguir, conforme relato anterior, veio

a fase da capacitação dos professores para a pesquisa. Depois vieram a implementação da

extensão, a criação de novos cursos e as reestruturações curriculares dos cursos criados

inicialmente. Em 1992 ocorreu a reformulação da organização administrativa e acadêmica da

UFMT, o que levou à substituição dos Centros por Institutos e Faculdades. Também como

parte dessa reestruturação e com o objetivo de assegurar melhores condições para administrar

o Programa de Ensino de Graduação, foi criada uma coordenação de ensino para cada curso

de graduação. Durante todos esses anos, a UFMT foi passando pelas mudanças que se fizeram

necessárias, dentre as quais o processo de interiorização com a criação e desenvolvimento dos

campi no interior do estado e a oferta dos cursos de formação de professores na modalidade

de educação a distância, nos quais a Universidade é pioneira e referência nacional.

Atualmente, o seu quadro de professores é composto por muitos doutores e mestres, que se

dedicam em grande parte se dedica à pesquisa científica.

Superadas as preocupações iniciais relativas à sua implantação e as inerentes a uma

Instituição de Ensino Superior que precisava crescer para atender às demandas peculiares a

um estado de grande extensão territorial, chegou o momento de focar as atenções na busca

pela excelência do ensino de graduação, o que passa pela profissionalização dos professores

que, como citado, demanda, entre outras providências, formação específica para a docência.

Algumas instituições de nível superior já desenvolvem programas de formação de

professores e a UFMT vem dando os primeiros passos nesse sentido. No ano de 2006,

realizou o I Ciclo de estudos e debates sobre docência na educação superior: perspectivas

para definição de um programa institucional de formação continuada para docentes da

UFMT e, no ano de 2007, do seminário temático Docência na educação superior: desafios da 66 NEVES apud DORIELO, 2005.

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contemporaneidade. O Instituto de Educação da UFMT tem ofertado o Curso de

Especialização em Docência no Ensino Superior: formação e ação. Outra iniciativa da

UFMT com vistas à formação dos professores do seu quadro é o Programa de Atividades de

Capacitação e Aperfeiçoamento Pedagógico. O Art. 4 da Resolução CONSEPE no. 24, de 01

de abril de 2002, que estabelece normas para avaliação do estágio probatório de docentes da

UFMT, prevê que o docente ingressante deverá incluir em seu primeiro plano de trabalho a

participação obrigatória nesse programa. Nesse sentido, a Pró-Reitoria de Ensino de

Graduação, por meio da Coordenação de Programas de Formação Docente, oferece o Curso

de Docência no Ensino Superior/Estágio Probatório, para todos os professores em estágio

probatório e que ainda não participaram desse tipo de capacitação. Esse curso tem como

objetivos, entre outros, discutir o ensino superior brasileiro, conhecer a estrutura e o

funcionamento da UFMT e refletir sobre a formação do professor universitário e suas

implicações nos processos de ensino-aprendizagem.

Vimos que a história da composição do quadro de professores da UFMT começa nas

primeiras décadas do século XX, embora a Universidade tenha sido criada apenas no ano de

1970. Isso porque muitos dos professores fundadores da Universidade vieram das primeiras

instituições de ensino superior do Estado, como a Escola Superior de Comércio, a Faculdade

de Direito e o Instituto de Ciências e Letras de Cuiabá. Nessas instituições, exerceram as suas

primeiras experiências como docentes, cujo aprendizado levaram para a Universidade

Federal. Assim, durante todos esses anos, a UFMT foi passando pelas mudanças que se

fizeram necessárias para a sua consolidação como centro de produção de conhecimentos e

hoje começa a seguir a tendência atual e internacional de implementação de ações voltadas

para a formação pedagógica e didática dos professores. Daí, este momento ser propício para o

desenvolvimento da pesquisa aqui relatada, assim como para a absorção institucional dos seus

resultados.

Para acrescentar outros elementos à contextualização da pesquisa, levantei junto à

Secretaria de Gestão de Pessoas (SGP), unidade da Pró-Reitoria Administrativa (PROAD) da

UFMT, informações sobre os professores ativos permanentes do campus de Cuiabá para

compor uma visão dos mesmos na perspectiva institucional, ou seja, na perspectiva pública.

Os resultados desse levantamento, bem como algumas análises dos mesmos são apresentados

a seguir.

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43

1.2.3 Visão Institucional dos Professores

Dando continuidade à contextualização da pesquisa, procurei algumas peças que, a

meu ver, também contribuiriam para a composição do cenário da pesquisa. Com esse

propósito, levantei junto à SGP algumas informações sobre os professores lotados nas

unidades acadêmico-administrativas do campus de Cuiabá. Solicitei à referida Secretaria a

relação nominal de todos os professores ativos permanentes desse campus da UFMT, ou seja,

não foram considerados os professores aposentados e os substitutos. De cada professor,

solicitei respectivamente lotação, jornada de trabalho, classe profissional, data de admissão na

Instituição e a titulação, informações que me foram enviadas através de uma planilha

eletrônica. As informações foram quantificadas e lançadas em gráficos para fins de análise.

Importante frisar que as informações correspondem à situação dos professores até o mês de

abril de 2012. Os dados quantitativos não são decisivos para o estudo apenas contribuem para

a contextualização da pesquisa.

No campus de Cuiabá da UFMT existem dezoito unidades acadêmico-administrativas,

sendo dez Faculdades e oito Institutos. Nos Institutos dá-se ênfase ao campo das ciências

básicas, e nas Faculdades ao campo das ciências aplicadas.

Na Tabela 1 estão relacionados as Faculdades e os Institutos do campus de Cuiabá da

UFMT e os respectivos números de professores ativos permanentes.

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44

Tabela 1

Distribuição dos professores ativos permanentes por Faculdade / Instituto

Faculdade / Instituto Professores ativos permanentes total Faculdade de Administração e Ciências Contábeis (FAeCC)...

Faculdade de Agronomia e Medicina Veterinária (FAMEV)...

Faculdade de Arquitetura, Engenharia e Tecnologia (FAET)...

Faculdade de Ciências Médicas (FCM).....................................

Faculdade de Direito (FD).........................................................

Faculdade de Economia (FE)....................................................

Faculdade de Educação Física (FEF)........................................

Faculdade de Enfermagem (FAEN)..........................................

Faculdade de Engenharia Florestal (FENF)..............................

Faculdade de Nutrição (FANUT)..............................................

46

75

84

125

26

25

21

39

20

30

491

Instituto de Biociências (IB)......................................................

Instituto de Ciências Exatas e da Terra (ICET).........................

Instituto de Ciências Humanas e Sociais (ICHS)......................

Instituto de Computação (IC)....................................................

Instituto de Educação (IE).........................................................

Instituto de Física (IF)...............................................................

Instituto de Linguagens (IL)......................................................

Instituto de Saúde Coletiva (ISC)..............................................

41

91

94

20

65

30

69

26

436

Campus de Cuiabá..................................................................... 927 927 Fonte: Dados organizados com base na planilha da SGP / PROAD / UFMT.

O número total de professores ativos permanentes é de 927. Desses, 53% atuam no

campo das ciências aplicadas (Faculdades) e 47% no campo das ciências básicas (Institutos).

A unidade com maior número de professores ativos permanentes é a Faculdade de Ciências

Médicas que conta com 125 professores, o que corresponde a 13,5% do total de professores

do campus. Seguem o Instituto de Ciências Exatas e da Terra e o Instituto de Ciências

Humanas e Sociais, com 91 e 94 professores respectivamente, números que correspondem a

aproximadamente 10% do mesmo total.

A jornada de trabalho dos professores da UFMT pode ser de dedicação exclusiva, de

quarenta horas semanais ou de vinte horas semanais. Quanto à jornada de trabalho, os

professores estão distribuídos conforme apresentado no Gráfico 1.

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Gráfico 1

Distribuição dos professores quanto à jornada de trabalho, em termos percentuais

Fonte: Dados organizados com base na planilha da SGP / PROAD / UFMT.

No Gráfico 1 verifica-se que predominam os professores com jornada de trabalho de

dedicação exclusiva, que correspondem a 87% do total de professores do campus. Os

professores com jornada de quarenta horas semanais correspondem a 11% do mesmo total e

os com jornada de vinte horas semanais, a apenas 2%.

Pimenta e Anastasiou tecem o seguinte comentário sobre o professor universitário:

o professor é aquele que ensina, isto é, dispõe os conhecimentos aos alunos. Se estes aprendem ou não, não é problema do professor, especialmente do universitário, que muitas vezes está ali como uma concessão, como um favor, como uma forma de complementar salário, como um abnegado que vê no ensino uma forma de ajudar os outros, como um bico, etc.67

Os dados do Gráfico 1 não estão de acordo com o pensamento das autoras porque, pela

lei, professores com jornada de dedicação exclusiva devem ter um único vínculo

empregatício, caso que ocorre com 87% dos professores do campus de Cuiabá. Os professores

com jornada de quarenta horas semanais, 11% do total dos professores do campus, podem ter

outro vínculo empregatício, mas com essa jornada de trabalho eles têm a atividade

profissional na UFMT como primordial, pelo menos em termos de carga horária. Enfim,

apenas entre os professores com jornada de vinte horas semanais, 2% dos professores do

campus, poderiam se encontrar aqueles com as motivações citadas pelas autoras.

67 PIMENTA e ANASTASIOU, 2005, p. 36-7.

87%

11%2%

Dedicação Exclusiva 40 horas 20 horas

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Merece destaque a representativa porcentagem de professores que exercem jornada de

trabalho de dedicação exclusiva em determinadas unidades, chegando a até 100% em algumas

delas. Por isso, apresento no Gráfico 2 a porcentagem de professores por jornada de trabalho

em cada unidade acadêmico-administrativa em relação ao número total de professores da

unidade.

No Gráfico 2 merecem destaque a Faculdade de Educação Física (FEF), a Faculdade

de Engenharia Florestal (FENF), o Instituto de Ciências Humanas e Sociais (ICHS) e o

Instituto de Física (IF) nos quais todo o corpo docente cumpre jornada de trabalho de

dedicação exclusiva. A porcentagem de professores com jornada de trabalho de dedicação

exclusiva também é expressiva no Instituto de Saúde Coletiva (ISC) (85%) e no Instituto de

Ciências Exatas e da Terra (ICET) (99%). A porcentagem de professores com jornada de

quarenta horas semanais é expressiva apenas na Faculdade de Ciências Médicas (FCM) (53%)

e na Faculdade de Direito (FD) (58%). Em apenas seis das dezoito unidades acadêmico-

administrativas existem professores com jornada de trabalho de vinte horas semanais, sendo

que, dessas, destacam-se a Faculdade de Administração e Ciências Contábeis (FAeCC) e a

Faculdade de Arquitetura, Engenharia e Tecnologia (FAET) com 11% e 6% dos professores

com essa jornada de trabalho respectivamente.

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Gráfico 2

Distribuição dos professores quanto à jornada de trabalho por unidade acadêmico-administrativa, em termos percentuais

Fonte: Dados organizados com base na planilha da SGP / PROAD / UFMT.

80

9990

4538

96 100 97 100 97 98 99 10090 94

100 9785

90 4

53 58

4 0 3 0 3 2 1 0 5 60 3

15111

6 2 4 0 0 0 0 0 0 0 0 5 0 0 0 0

Dedicação Exclusiva 40 horas 20 horas

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O Gráfico 3 apresenta a distribuição dos professores quanto à classe profissional da

carreira docente na educação superior, que são as seguintes: auxiliar de ensino, assistente,

adjunto, associado e titular.

Gráfico 3 Distribuição dos professores quanto à classe profissional da carreira docente na educação

superior, em termos percentuais

Fonte: Dados organizados com base na planilha da SGP / PROAD /UFMT

Verifica-se no Gráfico 3 que prevalecem os adjuntos (48%) e que esses correspondem

a quase metade do total dos professores do campus. Seguem-se os assistentes (32%) e os

associados (16%). Observa-se que a concentração de professores quanto à classe profissional

está na metade da carreira, uma vez que apenas 3% dos professores são titulares e 1%

auxiliares de ensino.

Em valor absoluto, são oito professores titulares, sendo que destes, apenas um não é

doutor e só tem título de especialista. A data de admissão do referido docente na instituição é

de 1971, ano em que o ICLC e a Faculdade de Direito foram integrados na UFMT, donde se

infere ser ele um dos professores que receberam do Conselho Federal de Educação e do MEC

o título de fundador titular da UFMT. Os outros que receberam o mesmo título provavelmente

já se aposentaram.

Devido à grande quantidade de informações e para melhor visualização da distribuição

dos professores quanto à classe profissional por unidade acadêmico-administrativa, são

apresentados, a seguir, dois gráficos: o gráfico 4 mostra essa distribuição para os professores

das Faculdades e o gráfico 5 para os professores dos Institutos.

3%32%

48%

16%1%

Auxiliar Assistente Adjunto Associado Titular

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Gráfico 4 Distribuição dos professores quanto à classe profissional por Faculdade, em termos percentuais

Fonte: Dados organizados com base na planilha da SGP / PROAD / UFMT

Gráfico 5

Distribuição dos professores quanto à classe profissional por Instituto, em termos percentuais

Fonte: Dados organizados com base na planilha da SGP / PROAD / UFMT

Conforme citado anteriormente, no campus de Cuiabá existem oito professores

titulares, e destes, quatro são da Faculdade de Ciências Médicas. Como mostram os Gráficos

4 e 5, em treze unidades predominam os adjuntos; em quatro unidades, os assistentes e apenas

na Faculdade de Engenharia Florestal (FENF) predominam os associados.

2 0 413 12

0 0 3 0 3

65

5

3543

35

20

3341

25 2733

72

37 35

5056

62

4435

47

0

21 25

6 4

20

513

40

23

0 1 0 3 0 4 0 0 0 0

Auxiliar Assistente Adjunto Associado Titular

0 2 0 0 2 04

07

26 27

55

25

13

48

31

76

5156

40

55 57

32

42

1520 17

5

18

30

16

27

2 1 0 0 0 0 0 0

Auxiliar Assistente Adjunto Associado Titular

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Como a carreira dos professores tem duração em torno de trinta e cinco anos, para se

ter uma ideia da situação dos professores quanto ao tempo de serviço na UFMT, considerei

três fases: a fase inicial que abrange professores com menos de dez anos de tempo de serviço.

A fase intermediária que inclui professores com tempo de serviço de dez a vinte anos e a fase

final, daqueles com mais de vinte anos de tempo de serviço.

O Gráfico 6 mostra a distribuição dos professores quanto ao tempo de serviço na

UFMT de acordo com as fases consideradas.

Gráfico 6

Distribuição dos professores quanto ao tempo de serviço na UFMT

Fonte: Dados organizados com base na planilha da SGP / PROAD / UFMT

Como mostrado no gráfico 6, é maior o número de professores que se encontram na

fase inicial da carreira, correspondendo a 42% do total de professores do campus. O número

de professores na fase final da carreira também é expressivo e corresponde a 37% do mesmo

total. Observa-se que 21% dos professores se encontram na fase intermediária da carreira.

Objetivando uma visão da formação dos professores em cursos de pós-graduação lato

sensu e stricto sensu, é apresentada no Gráfico 7 a distribuição dos professores de acordo com

a titulação e em termos percentuais.

42%21%

37%

Menos de 10 anos De 10 a 20 anos Mais de 20 anos

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Gráfico 7 Distribuição dos professores quanto à titulação, em termos percentuais

Fonte: Dados organizados com base na planilha da SGP / PROAD / UFMT

O Gráfico 7 mostra a importância que os professores dão para a capacitação,

principalmente para a pós-graduação stricto sensu. Verifica-se que mais da metade dos

professores são doutores: 58% do total de professores do campus. A porcentagem de mestres

é de 34%, o que computa 92% dos professores com formação stricto sensu. A porcentagem de

especialistas é 6%, e apenas 2% dos professores não cursaram nenhuma pós-graduação.

No Gráfico 8 temos a distribuição dos professores quanto à titulação para cada

unidade acadêmico-administrativa. Nesse gráfico se observa que em doze unidades

acadêmico-administrativas (67% do total de unidades do campus) o número de doutores é

maior, com destaque para a Faculdade de Medicina Veterinária (FAMEV), na qual 92% dos

professores são doutores. Merecem destaque também, as porcentagens de doutores do

Instituto de Física (IF) (83%), do Instituto de Biologia (76%), da Faculdade de Engenharia

Florestal (75%), do Instituto de Educação (71%) e do Instituto de Ciências Humanas e Sociais

(70%).

O número de mestres é maior em três unidades. A unidade com maior porcentagem de

professores que não cursaram pós-graduação, stricto sensu ou lato sensu, é a Faculdade de

Ciências Médicas (FCM), onde 9% dos professores são apenas graduados.

Há de se considerar, também, que somente nos últimos anos foram implantados alguns

programas de pós-graduação na UFMT e muitos professores, por motivos diversos, não

podem se afastar para cursar a pós-graduação em instituições fora de Cuiabá.

2%6%

34%58%

Graduados Especialistas Mestres Doutores

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Gráfico 8 Distribuição dos professores quanto à titulação por unidade acadêmico-administrativa

Fonte: Dados organizados com base na planilha da Secretaria de Gestão de Pessoas (SGP) / PROAD / UFMT

0 0 5 9 4 4 0 0 5 3 2 1 0 0 2 0 0 011

3 4

18 23

8

24

3 0 0 5 4 0 0 2 07

0

72

5

4337 38

24

3844

2030

17

33

55

2617

46

31

17

92

49

37 35

64

38

54

7567

76

6270

45

7183

46

69

Graduados Especialistas Mestres Doutores

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Vimos que o número de professores que atuam nas ciências básicas não difere muito

do número dos que atuam nas ciências aplicadas. Predominam os professores com jornada de

trabalho de dedicação exclusiva, demonstrando que 87% do total de professores do campus

têm o emprego na UFMT como único vínculo empregatício. Em algumas unidades

acadêmico-administrativas o corpo docente na sua totalidade tem jornada de trabalho de

dedicação exclusiva. Com relação à carreira docente, prevalecem os adjuntos, que

correspondem a quase metade do total de professores do campus (48%). Dos 927 professores

do campus, apenas oito são titulares. Quanto ao tempo de serviço na UFMT, existe uma

concentração maior de professores na fase inicial (dez anos de tempo de serviço) e na fase

final (mais de vinte anos de tempo de serviço) correspondendo, respectivamente, a 37% e

42% do total de docentes do campus. O processo histórico da UFMT privilegiou a formação

dos professores em cursos de pós-graduação. Do total de professores do campus de Cuiabá,

92% deles têm formação stricto sensu e mais da metade são doutores (58%).

A seguir, orientada pela ideia de Nietzsche segundo a qual as nossas vivências nos

tornam o que somos, entendi que deveria ir à busca das vivências dos profissionais que os

tornam os professores que são. Com esse propósito, decidi tomar o conceito de otobiografia

como método de acesso às vivências constituintes dos professores, presentes nas suas

narrativas.

Então, nesta pesquisa foi empregado o método otobiográfico que será comentado no

próximo capítulo. A opção por esse método oportunizou o aproveitamento da experiência

adquirida com o trabalho que realizei no mestrado. Além disso, este novo exercício com o

conceito de otobiografia é mais uma contribuição para a consolidação de um procedimento

científico que pode trazer novas perspectivas para as pesquisas em educação.

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2 CONCEITOS OPERADORES

2.1 O CONCEITO DE VIVÊNCIA E SEUS DESDOBRAMENTOS

Neste capítulo, apresento os conceitos que deram fundamentação à pesquisa. Parto do

pensamento de Nietzsche sobre como alguém se torna o que é. A seguir, reporto-me ao

conceito de otobiografia de Derrida, bem como à reconcepção desse conceito, feita por

Monteiro, para aplicação como procedimento metodológico nas pesquisas em educação.

Continuando, faço uma breve incursão pelas ideias de Deleuze sobre diferença e repetição, e

instintos e instituições que darão subsídios para a minha movimentação em relação às falas

dos professores. Para encerrar o capítulo, volto a Nietzsche ao apresentar suas ideias a

respeito da vida como obra de arte.

2.1.1 As Vivências nos Tornam o que Somos

A formação dos professores neste trabalho é entendida como constituição de si,

embora incorrendo em uma simplificação, uma vez que a docência é apenas um dos gestos

das vidas dos professores. Constituição de si é tornar-se o que é. O pensamento de Nietzsche

sobre como alguém se torna o que é dá fundamentação a este trabalho. Para o filósofo, uma

pessoa se torna o que é com as suas vivências. Por isso, o conceito de vivência em Nietzsche é

o principal operador teórico desta pesquisa.

Todo processo de tornar-se desdobra-se unicamente na vida. Posto assim, o tornar-se

o que se é se realiza unicamente na vida e em meio às vivências que experimentamos.

Existem distintas e inúmeras formas de tornar-se. Cada uma delas, porém, possui um

elemento em comum: a existência de alguma forma de mediação entre o homem e a vida:

religião, moral, etc. Essa mediação demanda, incondicionalmente, a compreensão conceitual

da existência.68 Ao contrário, para Nietzsche, o tornar-se o que se é deve ser compreendido

sob a perspectiva da vida como pathos. Tornar-se o que se é, patheticamente, não tem mais

qualquer imperativo moral ou conceitual, apenas a singularidade da sua própria vida. Por isso,

todo tornar-se converte-se em um experimento: ser “o grande experimentador de si

68 VIESENTEINER, 2009.

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mesmo”69, esta é a proposta de Nietzsche. Viesenteiner70 elucida que como o tornar-se o que

se é ocorre unicamente através da vida, se trata de um processo que se desdobra

patheticamente, ou seja, sem que tenhamos consciência de tal processo no instante mesmo em

que nos tornamos. Sendo assim, patheticamente, tornar-se o que se é se converte em um

processo cujo conteúdo daquilo que vivenciamos é inacessível a nós.

Para melhor compreensão do conceito de vivência e do papel das vivências na

constituição de si, no “se tornar o que é”, apresento a seguir, o entendimento que tenho desse

conceito, um pouco do pensamento de Nietzsche a esse respeito, e algumas interpretações de

leitores do filósofo. O que apresento vem de leituras que foram fundamentais para a

compreensão que tenho, até este momento, do conceito de vivência.

Deleuze e Guatarri dão-me o ponto de partida: “Não há conceitos simples. Todo

conceito possui componentes, e se define por eles. Tem, portanto, uma cifra”.71 E o esforço de

identificar seus componentes e sua assinatura é próprio da filosofia.72

Então, vamos ao signatário. O conceito de vivência, principal operador deste trabalho

é do filósofo alemão Friedrich Nietzsche que nasceu na Alemanha, no ano de 1844. Estudou

Letras Clássicas na célebre Escola de Pforta e Filosofia Clássica na Universidade de Leipzig.

Lecionou Filosofia Clássica na Universidade da Basiléia (Suíça) e, nesse período, escreveu O

nascimento da tragédia (1872), Considerações extemporâneas (1873-1876) e parte de

Humano, demasiado humano (1876). Em 1879 aposentou-se da universidade devido a

problemas de saúde e, a partir daí, viveu na Suíça, Itália e França. Nesse período, escreveu

Aurora, A gaia ciência, Assim falava Zaratustra, Além do bem e do mal, Genealogia da

moral, O caso Wagner, Crepúsculo dos ídolos, O Anti-Cristo e Ecce homo, sua autobiografia.

No início de 1889, a sua condição de saúde piorou e faleceu em 1900. Deixou também

milhares de páginas de esboços e anotações conhecidos como fragmentos póstumos. É

considerado um dos pensadores mais influentes de nossa época.73

Vivência não tem um significado. Quando eu digo “vivência é”, estou tratando do

conceito de vivência. Estou dizendo como entendo esse conceito. Conforme comentado por

Viesenteiner74, etimologicamente, a vivência é a condição de possibilidade de um

69 NIETZSCHE, Genealogia da moral III, § 13. 70 VIESENTEINER, 2009. 71 DELEUZE e GUATTARI, O que é filosofia?, p.27. 72 MONTEIRO, 2009, p. 3. 73 NIETZSCHE, Ecce homo. 74 Id., ib.

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experimento. O experimento é a instrumentalização racional de uma vivência e, sendo assim,

se deixa comunicar através de signos. A vivência, ao contrário, não pode ser conceitualmente

compreendida, pois, sendo pathos, o seu conteúdo nos está conceitualmente obstruído, uma

vez que não conseguimos instrumentalizá-la racionalmente enquanto nela estamos. A vivência

não tem um significado em si mesma. Somos nós que inserimos nela uma interpretação.

Para Nietzsche, qualquer tentativa de atribuir uma palavra à vivência, no sentido de

dizer o que é vivência, é uma simplificação. Tentamos inaugurar uma palavra e não

conseguimos, então, usamos uma que já conhecemos, mas com a vontade de que fosse outra.

Com a vontade de que fosse uma palavra que ainda não temos. Temos um sentimento, é como

se a nossa sensação fosse livre, e não encontrássemos o vocabulário apropriado a ela. As

palavras não traduzem, é como se fosse uma primeira experiência.

Então, incorrendo nessa simplificação, digo que entendo vivência como pathos, ou

seja, como paixão, arrebatamento, acometimento. Disparos frequentes e ininterruptos, que nos

acometem sem termos qualquer controle sobre eles: coragem, rancor, angústia, pathos

interiores. Vejo vivência como uma das mais efetivas formas de singularidade; não vem de

fora, não tem uma origem, é da própria pessoa. É do corpo, portanto, fisiológica, orgânica.

Não vejo uma só ideia de vivência, uma ideia que esteja presente o tempo inteiro. São

várias ideias. No meu entender, sendo pathos, vivência também tem a ver com afetação. A

absurdidade de que tudo afeta e, portanto, não se consegue contê-la, é que garante a

singularidade da vivência. Tudo afeta e as pessoas não são afetadas da mesma forma pelas

mesmas coisas. Porém, vivência não é a afetação.

Vivência também não é experiência, embora nas experiências possamos ter vivências.

Mas nem sempre isso acontece. Existem experiências que vemos como estranhas a nós

mesmos, não dizem de nós, são de outra ordem. Segundo Derrida, são acidentes empíricos75.

De acordo com Viesenteiner76, a palavra erlebnis, vivência na língua alemã, aparece

nesse vocabulário na primeira metade do século XIX como um termo substantivado do verbo

erleben (vivenciar) e significa estar presente na vida quando algo acontece. Acompanho essa

ideia. Vivência é a experiência de estar presente na vida quando algo acontece. Isto é, quando

ela está acontecendo não sabemos dela. Quando a vivência ocorre, não sabemos que a

estamos tendo. Então, podemos dizer que vivência é o que vivemos sem saber. Nesse sentido,

75 DERRIDA, 1984. 76 VIESENTEINER, 2009.

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representa o instante em que sentimos algo, por isso, o conteúdo da vivência não é

determinado através de meios racionais. Daí, a sua dimensão estética. Nela, alguém sente. Ela

é incomunicável. Também é incapturável, ou seja, não é identificável.

Se somos inconscientes do pathos de uma vivência quando nela estamos, não se pode

atribuir qualquer intencionalidade no momento mesmo em que se vivencia, ou seja, não se

pode determinar que tipo de vivência alguém precisa experimentar para se tornar o que é. A

esse respeito, Nietzsche assegura: “Que alguém se torne o que é pressupõe que não suspeite

sequer remotamente o que é”. Tornar-se o que é, para o filósofo, mais do que uma tarefa, é

um destino.

De acordo com Viesenteiner,77 Nietzsche nunca sistematizou o conceito de vivência e

tomou a palavra com variadas significações em diferentes épocas da sua produção. Nos

textos da juventude, o significado é bem semelhante ao da literatura alemã. Posteriormente,

empregará o conceito com contornos bem próprios. Até o ano de 1876, quando publica a

Extemporânea sobre Wagner, Nietzsche anseia por uma linguagem capaz de exprimir o que é

vivenciado e atribui essa tarefa à arte, referindo-se, especialmente, à música de Wagner.

“Cada ação continua a nos criar a nós mesmos, ela tece nossa colorida roupagem.

Cada ação é livre, mas a roupagem é necessária. Nossa vivência — eis aí nossa roupagem”.78

No assim se expressar, parece que Nietzsche está num esforço de dizer que o pensamento, a

experiência são livres, mas necessitam de uma roupagem, de um jeito. Esse jeito não fica

preso à experiência, só não consegue ser do tamanho dela, do tamanho da liberdade do

experimentado, do vivido. Essa roupagem, esse jeito, é a vivência.

Roupagem também remete a estilo. Então, vivência também tem a ver com estilo, mas

não se confunde com o mesmo. Retomemos a citação de Deleuze e Guatarri feita

anteriormente: “Não há conceitos simples. Todo conceito possui componentes, e se define por

eles. Tem, portanto, uma cifra”. Então, todo conceito possui componentes que o definem,

cifras, chaves de interpretação. De conformidade com o pensamento de Deleuze e Guatarri,

entendo que afetação, ou afeto, experiência e estilo, são elementos que comparecem quando

se busca uma compreensão do conceito de vivência. Assim também, outros elementos, outros

conceitos, como instinto e vontade de potência.

77 VIESENTEINER, 2009. 78 NIETZSCHE, Fragmento póstumo (208) 5[1] de novembro de 1882/fevereiro de 1883.

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Viesenteiner79 oferece elementos importantes para mostrar uma ideia de vivência a

partir da etimologia do vocábulo alemão e também a partir do modo como o conceito foi

pensado e do modo como Nietzsche o recebeu. Esse autor também mostra um pouco da

impossibilidade de se dizer o que é vivência. O uso geral da palavra possui três aspectos

principais: imediatez, significabilidade e estética. O caráter de imediatez decorre de estar

presente na vida. O que é vivenciado tem uma significativa intensidade que transforma o

contexto global da vida daquele que vivencia. Além do mais, tem um caráter estritamente

individual, o que confere significabilidade para quem vivencia. Outro significado do vocábulo

erlebnis se refere ao conteúdo da vivência. Esse, impossível de determinar através de meios

racionais80, por isso, deve ser experimentado, sentido, o que confere ao conceito uma

dimensão estética.

Viesenteiner aponta a necessidade de diferenciar erlebnis (vivência) e erfahrung

(experiência) e apresenta o significado de erlebnis encontrado em dicionários da língua

alemã: “Erlebnis significa tudo o que propriamente se vivenciou (sentiu, presenciou, pensou,

quis, fez ou permitiu)”81, sendo assim, consiste nas condições para toda erfahrung

(experiência). Ao contrário da vivência, a experiência não tem o caráter de imediatez já que é

constituída por uma mediação lógica. Já a vivência é radicalmente estética-individual-

imediata, cujo conteúdo permanece sempre pathético e não racional82.

A partir da metade do século XIX, a palavra ganha estatuto filosófico. Nietzsche

encontra na noção de vivência um meio de relacionar vida com produção filosófica e toma o

vocábulo erlebnis com a carga semântica dessa época. A tríplice significação do vocábulo

vivência: imediatez, significabilidade e estética, encontra ressonância nos textos de Nietzsche.

Para melhor compreensão da noção de vivência em Nietzsche, foi realizado por

membros do grupo EFF, um levantamento de todas as referências ao termo erlebnis

(vivência), bem como ao seu plural erlebnisse, no conjunto da sua obra. Os aforismos

encontrados estão apresentados no texto de Monteiro: Antologia de textos de Nietzsche sobre

vivências, escrito no ano de 2009.

O termo alemão erlebnis, muitas vezes, é traduzido como experiência, no sentido de

experiência de vida. Outras vezes, é traduzido como vivência. Entendo que o termo vivência é

79 VIESENTEINER, 2009. 80 KÖNIGSHAUSEN & NEUMANN apud VIESENTEINER, 2009. 81 VIESENTEINER, 2009, p. 114. 82 Id., Ib.

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mais apropriado para este trabalho. O vocábulo aparece com maior frequência nos fragmentos

póstumos. Entre os livros publicados, aqueles onde mais comparece são: Humano, demasiado

humano; Aurora e A gaia ciência. A produção literária de Nietzsche está dividida em três

períodos: o primeiro compreende os anos de 1870 a 1876, denominado de Pessimismo

Romântico. O segundo período, denominado de Positivismo Cético, abarca os anos de 1876 a

1882 e o terceiro, denominado de Transvaloração dos Valores, vai de 1882 a 1888.83

Desse modo, o conceito de vivência atravessa toda a obra de Nietzsche, aparecendo

com maior força a partir do segundo período de sua produção. É no terceiro período que o

filósofo experimenta mais vezes o uso de vivências na sua reflexão filosófica, dando-lhe papel

significativo. O fato das referências às vivências, ou às experiências, crescerem no decorrer

dos três períodos é um indicador de que Nietzsche foi se interessando cada vez mais pelo

conceito.

Apresento, a seguir, as ideias sobre vivências, encontradas nas obras do primeiro

período da produção do filósofo.

Nietzsche propõe o conhecimento de si mesmo, mas sobre bases investigativas

diferentes da proposta socrática. Para o filósofo, conhecer a si mesmo “não é examinar suas

motivações interiores ou fazer brotar o conhecimento conservado no pavilhão da memória

reminiscente. É trazer em questão aquilo que se é, a própria individualidade”.84

Para Nietzsche, o que caracteriza o que nós somos é a nossa individualidade e esta é

fisiológica: “nossas vivências determinam nossa individualidade, e elas são de tal modo que

após cada impressão emocional, nossa individualidade é determinada para cada última

célula”.85 Nesse período, já encontramos nas suas obras a ocorrência do vínculo entre

vivências e estrutura orgânica, pois o autor diz que são as vivências que nos tornam o que

somos e que somos o que nosso corpo é, assim como, nosso corpo é o que somos. Então, cada

pessoa é um corpo que experimentou alguma coisa, inclusive doenças. As enfermidades

deixam rastros no corpo. O corpo tem as marcas das vivências da pessoa. A esse respeito,

Viesenteiner dirá: “a mesma ‘vivência trivial’ é de tal modo radicalmente individual, a ponto

de ser diferentemente vivenciada por cada pessoa – segundo a configuração de seu grupo de

sensações”.86 Monteiro completa: “Cria-se um estilo de individuação. Não é feito por

83 MONTEIRO, 2009. 84 Id., Ib., p. 18. 85 NIETZSCHE, Fragmentos póstumos, 19[241] de verão de 1872 ao fim de 1874. 86 VIESENTEINER, 2009, p. 122.

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exercício racional, algo como tomada de consciência que reviravolta o sentido das ações. A

radicalidade desse pensamento encontra seu fundamento em uma questão fisiológica”87.

No segundo período, denominado de positivismo cético, o sentido de vivência ainda

tem a mesma conotação do período anterior, por exemplo, quando afirma que “geralmente

não é a qualidade, mas a quantidade das vivências que determina o homem baixo ou elevado,

no bem e no mal”88. Então, de conformidade com o pensamento nietzschiano, a

inflamabilidade moral de uma pessoa, para o bem ou para o mal, depende mais da quantidade

das vivências do que da qualidade das mesmas.

Para Nietzsche, não há um centro racional que regula as ações, entende que “quem

pensa muito e pensa objetivamente, esquece com facilidade as próprias vivências, mas não os

pensamentos por elas suscitados”89, pois as vivências impregnam o corpo, atuam no corpo e

não apenas na memória e, sendo assim, não se dissolvem no esquecimento. No assim se

expressar, o filósofo subentende que nossas ações são movidas pelas nossas vivências e não

pela racionalidade.

O primado do intelecto vai sendo substituído pela primazia do corpo na filosofia de

Nietzsche. O filósofo enfatiza a ligação da vivência à vida orgânica e seus impulsos,

afirmando que as vivências alimentam impulsos fora de qualquer nexo racional:

nossas vivências [Erlebnisse] diárias lançam sua presa quer a este instinto quer ao outro; e os agarra avidamente, mas todo vaivém desses acontecimentos se encontra fora de qualquer nexo racional com as necessidades nutritivas do conjunto dos instintos [Triebe]: de sorte que sempre ocorrerão duas coisas: a inanição e definhamento de uns e a excessiva alimentação de outros.90

O que nós somos é resultado de vivências na concepção nietzschiana, e essas nutrem

instintos que ganham o tônus para tomarem a palavra. Os impulsos orgânicos nunca são

conscientes à pessoa enquanto ela vivencia, ou seja, quando algo acontece. Isso vai de

encontro à noção de vivência como a mais extrema imediatez entre o homem e a vida.

Nietzsche afirma que a produção de um autor é sempre marcada pelas suas vivências:

87 MONTEIRO, 2009, p. 19. 88 NIETZSCHE, Humano, demasiado humano, §72. 89 NIETZSCHE, Humano, demasiado humano, §526. 90 NIETZSCHE, Aurora, §119, versaõ de Silas Borges Monteiro em MONTEIRO, 2009, p. 49.

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Os escritos de nossos conhecidos e seus leitores. – Lemos de maneira dupla o que escrevem os conhecidos (amigos e inimigos), na medida em que nosso conhecimento nos sussurra permanentemente: “Isso é dele, é uma marca de sua natureza interior, de suas vivências [Erlebnisse], de seu talento”, enquanto uma outra espécie de conhecimento busca verificar que proveito tem essa obra, que estima ela merece independentemente do autor, que enriquecimento traz para o saber. Essas duas espécies de leitura e de consideração se chocam, está claro. Mesmo a conversa com um amigo só produzirá bons frutos de conhecimento quando ambos pensarem apenas na questão e esquecerem que são amigos.91

As vivências suscitam pensamentos e, mesmo quando pensamos objetivamente, o

nosso pensamento é alimentado por elas: “Esquecendo as vivências [Erlebnisse]. – Quem

pensa muito e pensa objetivamente, esquece com facilidade as próprias vivências [Erlebnisse],

mas não os pensamentos por ela suscitados”92. Aqui, também, a ideia nietzschiana de que não

há um centro racional regulador das nossas ações, e que são as vivências que produzem as

operações chamadas de racionais.

Nietzsche adverte sobre a possibilidade de interpretação falsa das próprias vivências e

afirma que estas podem ser interpretadas de modos diversos, uma vez que a interpretação

depende do sentido que é dado a elas.93 Pode-se inferir então que, para o filósofo, as vivências

não têm um sentido, o pretenso intérprete é que dá um sentido a elas.

O filósofo alemão adverte que para se tornar sábio é preciso experimentar certas

vivências em profundidade, mesmo que isto implique correr riscos: “Da prática do sábio. –

Para se tornar sábio [weise], é preciso querer experimentar [erleben] certas vivências

[Erlebnisse], ou seja, cair deliberadamente em suas goelas. Algo certamente muito perigoso:

mais de um “sábio” já foi aí devorado”94. Podemos inferir desse aforismo, que para sermos

sábios precisamos nos colocar em situações extremas de vida, não sabendo que vivências

virão, porque não tem como sabermos. Se ficarmos acostumados a uma dieta de vida, se nos

colocarmos sempre nas mesmas situações, não cultivaremos vivências. Nesse sentido,

Nietzsche dirá: “Está em nossas mãos cultivar o temperamento como um jardim. Plantar

certas vivências [Erlebnisse], arrancar outras”.95 Plantar vivências pode ser entendida como

se colocar em situações que oportunizem experiências estéticas diferentes. Não no sentido de

um programa educacional, um fitnees mental, mas no sentido de abertura para o inusitado,

para o diferente, enfim, para o que se afasta do hábito, para novas impressões emocionais. 91 NIETZSCHE, Humano, demasiado humano, § 197. 92 NIETZSCHE, Humano, demasiado humano, §526. 93 NIETZSCHE, Humano, demasiado humano I, § 134-135. 94 NIETZSCHE, Humano demasiado humano II, O andarilho e sua sombra, § 298. 95 NIETZSCHE, Fragmento póstumo 7[211] do fim de 1880.

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As expectativas que temos em relação aos acontecimentos, quando são muito boas ou

muito ruins, desdobram-se em vivências agradáveis. Por outro lado, temperamento sombrio,

sem grandes expectativas, boas ou ruins, não levam a vivências agradáveis.

Pensando bem demais e mal demais do mundo. – Se pensamos bem demais ou mal demais das coisas, sempre temos a vantagem de colher uma satisfação superior: com uma opinião preconcebida que é boa demais, geralmente introduzimos nas coisas (nas vivências [Erlebnisse]) mais doçura do que elas realmente têm. Uma opinião pré-concebida que é ruim demais produz uma decepção agradável: o que havia de agradável nas coisas é aumentado pelo agradável da surpresa. – Mas um temperamento sombrio terá experiência inversa em ambos os casos.96

O filósofo pondera que relatar a história é dar atenção às vivências, como que detalhes

do que se passou, pois as vivências é que dão o sentido ao relato. Assim, afirma: “Na verdade,

minha maneira de relatar feitos históricos consiste em contar vivências próprias a propósito de

épocas e pessoas do passado. Nada coerente: os detalhes me apareceram, os demais não”.97

Critica os historiadores dizendo que, contrário a isso, esses se obrigam a dar atenção ao todo,

que, geralmente, não é experimentado por eles98.

A partir do início dos anos 1980, ocorrem fatos determinantes na vida de Nitezsche,

que refletirão na sua produção. Entre esses, o rompimento com Schopenhauer e Wagner, e os

problemas de saúde. A solidão e a doença passam a servir como substrato para os seus

pensamentos. Isso não quer dizer que podemos tomar as vivências como justificativa para os

seus escritos. Nessa época, tem início a filosofia nietzschiana de interpretação do corpo e o

vínculo entre textos e vivências se torna mais forte, sobretudo nos textos até 1886.99

Viesenteiner enfatisa que não considera erlebnis como sinônimo de autobiografia, mas

que se trata de uma autogenealogia100, ou seja, embora os textos resultem das vivências, não

são, necessariament, narrativas de histórias de vida. Nietzsche nunca teve por objetivo narrar

suas aventuras, escreve sobre o que vivenciou. Assim, ele próprio se revela através dos textos.

O pensamento vem à tona a partir das vivências. Ao afirmar: “Uma coisa sou eu, outra são

meus escritos”101, o filósofo está dizendo que os seus textos não são descrições da sua vida,

mas teorias, pensamentos, ideias que procedem das suas vivências.

96 NIETZSCHE, Humano, demasiado humano § 622. 97 NIETZSCHE, Humano demasiado humano II, Fragmentos póstumos 30 [60]. 98 NIETZSCHE, Fragmento póstumo 30[60] do verão de 1878. 99 VIESENTEINER, 2009. 100 Id., ib. 101 NIETZSCHE, Ecce Homo. Por que escrevo livros tão bons, § 1.

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Com o conceito de vivência, Nietzsche não tinha pretensão de fundar uma teoria

objetiva, ao contrário, esse conceito era uma forma de resistência ao método impessoal que

caracterizava a cientificidade da sua época.102

Nietzsche propõe uma estratégia de interpretação: experimentos com o pensamento e

considerar-se a si mesmo como experimento alcança o ponto mais intenso através do conceito

de vivência: “Mas nós, os sequiosos de razão, queremos examinar nossas vivências de modo

rigoroso como se faz uma experiência científica, hora a hora e dia a dia! Queremos ser nossos

experimentos e nossas cobaias”103.

Como referido anteriormente, para Nietzsche nossas ações decorrem mais das nossas

vivências do que da racionalidade, no entanto, seria um equívoco atribuir a ele a defesa da

irracionalidade, conforme vemos na denúncia que faz da irracionalidade do discurso religioso:

Há uma honestidade que sempre faltou aos fundadores de religiões e pessoas desse tipo: - eles nunca fizeram de suas vivências uma questão de consciência para o conhecimento. “O que foi que vivi realmente? Que sucedeu então em mim e à minha volta? Minha razão estava suficientemente clara? Minha vontade estava alerta para todos os enganos dos sentidos e foi valorosa ao defender-se das fantasias?104

Ao propor a questão: “– O que são, então, as nossas vivências? São muito mais aquilo

que nelas pomos do que o que nelas se acha! Ou deveríamos até dizer que nelas não se acha

nada? Que viver é inventar?”105, Nietzsche chama a atenção para a ideia de que as tentativas

de tornar consciente ou racionalizar o conteúdo das vivências resultam em invenções

fantasiosas do substrato de impulsos que compõe as vivências. Nesse sentido, assegura esse

pensador que: “também nossos juízos e valorações morais são apenas imagens e fantasias

sobre um processo fisiológico de nós desconhecidos, uma espécie de linguagem adquirida

para designar certos estímulos nervosos? Que tudo isso que chamamos de consciência é um

comentário, mais ou menos fantástico, sobre um texto não sabido, talvez não ‘sabível’, porém

sentido?”106

102 BRUSOTTI apud VIESENTEINER, 2009. 103 NIETZSCHE, A gaia ciência, §319. 104 Id., ib. 105 NIETZSCHE, Aurora, §119. 106 Id., ib.

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O filósofo pondera que olhando as nossas vivências de fora, agregamos a elas novas

perspectivas, o que é aconselhável. Porém, tornar as vivências do outro em nossas próprias é

fantasia. Não há razão para duplicar o eu:

Por que duplicar o “Eu”? − Observar nossas vivências com o olhar com que costumamos observá-las quando são as vivências dos outros — isso tranqüiliza bastante e é um remédio aconselhável. Mas observar e acolher as vivências de outros como se fossem nossas — a exigência de uma filosofia da compaixão —, isso nos destruiria em pouco tempo: apenas façam a tentativa e deixem de fantasiar!107

Para Nietzsche, as vivências arrastam nossas decisões e quem foge delas torna-se

idealista: “A que podem nos arrastar as vivências, portanto! Que são nossas opiniões! Deve-

se, para não se perder, para não perder sua razão, fugir das vivências!”108

Considera pessoas encantadoras, e de muita sorte, aquelas que têm intelecto finamente

constituído e vivências apropriadas a esse refinamento, porém, ressalva que esses casos são

raros: “A grande sorte. – Eis algo muito raro, mas encantador: uma pessoa de intelecto

finamente construído, que tem o caráter, as inclinações e também as vivências apropriadas a

esse intelecto”109.

Tamanha a importância que o filósofo atribui a esse conceito, que se refere às

vivências como riquezas que acumulamos. No entanto, adverte que elas não são fáceis de

administrar. Eis o que nos é dito pelo filósofo:

Na festa da colheita do espírito. − Isto se acumula dia a dia e cresce, experiências, vivências, pensamentos sobre elas e sonhos sobre os pensamentos — uma incomensurável, fascinante riqueza! Sua visão dá vertigem; já não entendo como se pode louvar a beatitude dos pobres de espírito! — Mas ocasionalmente os invejo, quando estou cansado: pois administrar uma tal riqueza é coisa pesada, e não raro esse peso asfixia toda felicidade. — Se bastasse apenas olhar para ela! Se fôssemos apenas o avarento do próprio saber!110

Nietzsche frisa que a história da Filosofia tratou o humano como universalidade, isto

é, o que é comum a todos é tomado como sua natureza quando, ao contrário, o conceito de

humano deveria partir da idiossincrasia de cada um. O que é mais particular, em termos de

107 NIETZSCHE, Aurora, §137. 108 NIETZSCHE, Aurora, §448. 109 NIETZSCHE, Aurora, §458. 110 NIETZSCHE, Aurora, §476.

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vivências, é a base inicial da construção do que seria um conceito superior de humano. Assim,

dirá:

Enquanto pretendermos determinar que é o fim do homem, estamos pressupondo um conceito de homem. Mas apenas há indivíduos [Individuen], do até agora conhecido apenas obtivemos um conceito em mudança de desentendermos do individual [Individuelle], — por isso, estabelecer o fim do homem significaria impedir que os indivíduos [Individuen] cheguem a ser individuais [Individuellwerden], tornando-os universais [allgemein]. Não deveria ser o contrário, que todo indivíduo [Individuum] supusera a tentativa de alcançar, graças ao que tivera de individual [individuellsten], uma espécie superior ao do homem? Minha moral estaria em ir suprimindo nos homens o que têm de universal, em ir especializando-os, fazê-los até certo ponto incompreensíveis para os demais (e, assim, objeto para eles de vivência [Erlebnisse], de assombro, de instrução [Belehrung])111

A esfera moral atinge todas as vivências humanas. Tudo é moral, porque tudo é

avaliação. A retidão e a equidade tomam como diretriz suas próprias vivências. No limite, o

filósofo nos convida a sermos justos em relação às nossas próprias vivências:

Até onde vai a esfera moral. — Ao vermos uma nova imagem, imediatamente a construímos com ajuda de todas as experiências que tivemos, conforme o grau de nossa retidão e eqüidade. Não existem vivências que não sejam morais, mesmo no âmbito da percepção sensível.112

A publicação da obra A gaia ciência, no ano de 1882, marca o final do segundo

período de sua obra e o início do terceiro (1882-1888), conhecido como Transvaloração dos

Valores. Nesse período, Nietzsche fará mais uso das vivências na sua reflexão filosófica,

dando-lhes papel significativo113. O filósofo reconstruirá seu pensamento pela organização de

sua Filosofia e “fortalecerá, cada vez mais, a profunda vinculação entre a reflexão filosófica e

as vivências, deslocando a concepção de que pensamento ou razão sejam de ordem lógica

para fundá-los na concretude da vida”.114 Marton comenta que na obra Assim falava

Zaratustra, “o autor agencia um conteúdo filosófico e uma forma literária, que se mostram

111 Fragmento póstumo 6[158] do outono de 1880. Vertido para o português por Silas Borges Monteiro em MONTEIRO, 2009. 112 NIETZSCHE, A Gaia Ciência, §114. 113 MONTEIRO, 2009. 114 Id., ib., p. 5.

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indissociáveis. Recusando-se a opor ciência e sabedoria, tenta recuperar a unidade original do

conceito e da imagem”.115

Para o filósofo, a grandeza de um homem está na sua transitoriedade: “O que há de

grande, no homem, é ser ponte, e não meta: o que pode amar-se, no homem, é ser uma

transição e um ocaso”.116 Aquele que consegue continuar na sua trajetória mesmo quando

perece devido às ocorrências pessoais, é o que merece ser amado. Assim, afirma: “Amo

aquele cuja alma é profunda também no ferimento, e que por poucas vivências pode ir ao

fundo: assim ele passa de bom grado por sobre a ponte”.117

Nietzsche continua enfatizando que as vivências não são do âmbito da racionalidade.

Assim, afirma: “A maior parte de nossas vivências é inconsciente, mas atuante.”118.

Viesenteiner lembra que, para Nietzsche, não há um eu por trás da vivência, o que há é uma

vida orgânica. Nesse sentido, a consciência é um desenvolvimento do orgânico119.

Para o filósofo alemão, depois que a pessoa sente a vivência e a digere, é possível

torná-la consciente e expressá-la através de signos de comunicação, mas isso vai ocorrer de

forma imensamente simplificada pela linguagem, uma vez que é pathos: termo grego que

significa paixão, afeto, desejo, padecimento... Dessa forma, o que entendemos como

compreensão do conteúdo de uma vivência consiste em uma linguagem figurada, por isso,

contamos errado, conforme Nietzsche dirá:

Quanto ao mais da vida, as chamadas "vivências" [Erlebnisse], qual de nós pode levá-las a sério? Ou ter tempo para elas? Nas experiências presentes, receio, estamos sempre “ausentes”: nelas não temos nosso coração — para elas não temos ouvidos. Antes, como alguém divinamente disperso e imerso em si, a quem os sinos acabam de estrondear no ouvido as doze batidas do meio-dia, e súbito acorda e se pergunta “o que foi que soou?, também nós por vezes abrimos depois os ouvidos e perguntamos, surpresos e perplexos inteiramente, “o que foi que vivemos?”, e também “quem somos realmente?”, e em seguida contamos, depois, como disse, as doze vibrantes batidas da nossa vivência [Erlebnisses], da nossa vida, nosso ser — ah! e contamos errado... Pois continuamos necessariamente estranhos a nós mesmos, não nos compreendemos, temos que nos mal-entender, a nós se aplicará para sempre a frase: “Cada qual é o mais distante de si mesmo” — para nós mesmos somos “homens do desconhecimento”.120

115 MARTON, 2000, p. 45. 116 NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, § 4. 117 Id., ib. 118 NIETZSCHE, Fragmento póstumo 25[359] da primavera de 1884. 119 VIESENTEINER, 2009. 120 NIETZSCHE, Genealogia da moral, Prefácio § 1.

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Assim como na obra Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino, aqui

também, uma crítica aos filósofos que não se dedicam a ouvir as suas “vivências, por isso, de

acordo com Nietzsche, são homens do desconhecimento. Do mesmo modo, faz outra crítica

aos filósofos: “Os filósofos de folhetim, que constroem uma filosofia não a partir da sua vida,

mas de coleções de provas para certas teses”121.

O conteúdo da vivência é sentido por quem vivencia, conforme já mencionado, mas

não é sabível, ou seja, não é possível ser acessado por meios racionais. Assim, se comunicado

de forma compreensiva aos outros, terá o significado obliterado ou achatado, como frisa

Viesenteiner122. Nesse sentido, o pensamento é uma tentativa de tornar consciente o que, em

si, é impossível ser acessado racionalmente. Pensamento e vivência foram se tornando temas

indissociáveis na filosofia de Nietzsche, mas uma ideia de pensamento sem conotação de

racionalidade. Em Nietzsche, pensamentos e teorias se originam da filosofia como

interpretação do corpo. Um pensamento só pode ser a posterior interpretação do vivenciado,

dada a sua inconsciência no instante mesmo em que se vivencia.123 Viesenteiner coloca que,

na filosofia de Nietzsche, pensamentos e vivências não se confundem numa espécie de

unidade, ou autobiografia, uma vez que as vivências são apenas o substrato, as condições de

surgimento e transformação dos pensamentos.

Ouvir as vivências significa tomar contato com algo de significativa consistência.

Afinal, são elas que permitem acesso a regiões compreensivas que, geralmente, denominamos

de teóricas124. A esse respeito, eis o que nos é dito pelo filósofo:

Em última instância, ninguém pode escutar mais das coisas, livros incluídos, do que aquilo que já sabe. Não se tem ouvido para aquilo a que não se tem acesso a partir da experiência. Imaginemos um caso extremo: que um livro fale de experiências situadas completamente além da possibilidade de uma vivência freqüente ou mesmo rara – que seja a primeira linguagem para uma nova série de vivências. Neste caso simplesmente nada se ouvirá, com a ilusão acústica de que onde nada se ouve nada existe... Esta é em definitivo minha experiência ordinária e, se quiserem, a originalidade da minha experiência.125

Assim como no fragmento anterior, Nietzsche explicita a sua ideia de que não se

compreende o que não foi vivenciado, ao tecer comentário sobre o seu livro Assim falava 121 NIETZSCHE, Fragmento póstumo 9[64] do outono de 1887. 122 VIESENTEINER, 2009. 123 Id., ib. 124 MONTEIRO, 2009. 125 NIETZSCHE, Ecce Homo, Por que escrevo livros tão bons, §1.

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Zaratustra: “É um livro incompreensível, porque remete a vivências contundentes que não

partilho com ninguém”.126 De acordo com Marton127, “Zaratustra não expõe doutrinas; não

impõe preceitos. Limita-se - e isso não é pouco – a partilhar ensinamentos, comungar

vivências”. Nietzsche e o seu alter ego querem interlocutores específicos, aqueles que

experimentam tensões de impulsos, disposições de afetos, similares às suas, ou seja, vivências

análogas às suas.128

O filósofo faz analogia com a biologia, para dizer que vivências semelhantes se

reconhecem: “Mas quem for da minha espécie deparará, em abundância, com vivências como

as minhas”.129 Assegura que vivências compartilhadas criam vínculos entre pessoas:

Não basta utilizar as mesmas palavras para compreendermos uns aos outros; é preciso utilizar as mesmas palavras para a mesma espécie de vivências interiores, é preciso, enfim, ter a experiência em comum com o outro. (...) Em todas as almas, um mesmo número de vivências recorrentes obteve primado sobre aquelas de ocorrência rara: com base nelas as pessoas se entendem cada vez mais rapidamente.130

Sobre o papel das vivências no conhecimento, Nietzsche dirá: “Nunca querer ver para

ver! Como psicólogo, é preciso viver e esperar até que o resultado, crivado de muitas

vivências, extraia de si mesmo sua conclusão. Nunca se deve saber de onde vem o que se

sabe. Do contrário, há uma ótica e uma artificialidade ruins”.131 Marton132, comenta que Assim

falava Zaratustra, o livro preferido de Nietzsche na opinião da autora, é o que melhor ilustra

o estreito vínculo entre vivência e reflexão filosófica no pensamento nietzschiano. Nessa obra,

o filósofo “jamais lança mão da linguagem conceitual. As posições que avança tampouco se

baseiam em argumentos ou razões; assentam-se em vivências”.133

Marton134 elucida que Nietzsche, nas suas obras, sempre faz uso da sua experiência

singular e, para reforçar esta atitude, recorre à imagem do sangue: “De todos os escritos”, diz

ele, “amo apenas o que alguém escreve com seu sangue”.135 Ao assim se expressar, o filósofo

126 NIETZSCHE apud MARTON, 2000, p. 45. 127 MARTON, 2000, p. 46. 128 Id., ib. 129 NIETZSCHE, Assim falava Zaratustra, III, Dos renegados. 130 NIETZSCHE, Para além de bem e mal, §268. 131 NIETZSCHE, Fragmento póstumo 9[64] do outono de 1887. 132 MARTON, 2000. 133 Id., ib., p. 47. 134 Id., ib. 135 NIETZSCHE, Assim falava Zaratustra I, “Do ler e escrever”.

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dá ênfase à sua ideia de vínculo entre reflexão filosófica e vivência. Por isso, a produção de

Nietzsche “expressa muito mais que a narrativa de sua vida: ela é a genealogia das condições

de suas teorias”.136

Referindo-se a Assim falava Zaratustra, Marton137 conta que “Em suas vivências

singulares, o autor e a personagem percebem os impulsos que deles se apossam, os afetos que

deles se apoderam; notam as estimativas de valor que com estes impulsos se expressam; e se

dão conta das ideias que com estes afetos se manifestam” e afirma: “É sobretudo nisto que

consiste o estreito vínculo entre reflexão filosófica e vivência”.

Nietzsche nos propõe a questão: “O que é afinal a vulgaridade?” Em resposta, frisa

que para compreendermos uns aos outros, é preciso termos vivências em comum. Entretanto,

a necessidade de nos comunicarmos com rapidez leva-nos à valorização das vivências

recorrentes em detrimento das mais raras e, ao desprezarmos as singularidades individuais,

caminhamos para o que ele denomina de vulgaridade138.

A esse respeito Viesenteiner139 comenta que o homem está relegado “a experimentar

vivências apenas medianas e vulgares”, na medida em que precisa se fazer compreensível aos

outros e, para isso, “precisa ter a experiência em comum com o outro”.140 Marton

complementa dizendo:

para comunicar, é preciso partir de um solo comum. Não basta ter as mesmas ideias, abraçar as mesmas concepções. Tampouco basta atribuir às palavras o mesmo sentido ou recorrer aos mesmos procedimentos lógicos. É preciso bem mais; é preciso partilhar experiências, comungar vivências [...] É sobretudo para garantir a própria sobrevivência que os indivíduos se relacionam; é para conservar a própria vida que se comunicam. As experiências que partilham são, por isso mesmo, as mais básicas e gerais; as vivências que comungam são, precisamente, as mais comuns. No limite, todo comunicar é tornar-se comum.141

O filósofo continua destacando o movimento fisiológico das vivências, ao afirmar:

Um homem forte e bem logrado digere suas vivências (feitos e mal feitos incluídos) como suas refeições, mesmo quando tem de engolir duros bocados. Se

136 VIESENTEINER, 2009, p. 136. 137 MARTON, 2000, p. 48. 138 NIETZSCHE, Para-além de bem e mal § 268. 139 VIESENTEINER, 2009. 140 NIETZSCHE, Além do bem e do mal, § 268. 141 MARTON, 2000, p. 41-2.

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não ‘dá conta’ de uma vivência, esta espécie de indigestão é tão fisiológica quanto a outra – e muitas vezes, na verdade, apenas uma conseqüência da outra.142

No assim se expressar, Nietzsche recorre à fisiologia humana para dizer que homem

forte é o que não se sente incomodado com suas vivências, pois consegue tirar proveito das

experiências boas e ruins. Diz também que um mal estar físico pode ser a causa da dificuldade

de lidar com uma vivência. Então, as vivências precisam ser digeridas e, assim como a

digestão alimentar, o processo de digestão das vivências leva a um estado de lerdeza, isto é,

precisa acontecer sem pressa e atropelamento, o que provoca indignação nos adeptos da vida

corrida. Nietzsche entende que com a pressa e o atropelamento desta era, as pessoas estão

desaprendendo a digerir as suas vivências.143

O filósofo critica aqueles que acham que estão acima das vivências e que a razão é que

deve ser o fio condutor de suas vidas: “Nós não inventamos aí: calculamos. Mas, para que

possamos calcular, primeiro inventamos. Não vivencio mais nada: estou também acima de

vivências. Vós, frios e lúcidos, vós não conheceis os encantos do frio!”144

No entender de Nietzsche, antes que se possa perdoar é preciso vivenciar o que foi

feito, isto é, sentir todos os sentimentos suscitados pelo que foi feito.145

Para o filósofo, interpretar não é mais do que uma excitação nervosa. Isso mostra o

quanto ele esvazia a noção de racional e enfatiza o fisiológico:

Toda “experiência interior” repousa no fato de que a uma excitação dos centros nervosos se busca e se imagina uma causa – e que é somente a causa assim encontrada que penetra na consciência: esta não é absolutamente adequada à causa verdadeira, - é uma espécie de tateamento baseado nas anteriores “experiências interiores”, quer dizer, na memória.146

Nietzsche está preocupado com o que impera: os sentidos ou a razão? Para ele, a razão

falsifica os sentidos. Para Nietzsche, espírito, razão, pensamento, consciência, alma e verdade

são, simplesmente, ficções inutilizáveis. O homem evolui com as suas percepções,

principalmente, com a regularidade destas, e, assim, vai acumulando experiências. Nesse

142 NIETZSCHE, Genealogia da moral, Terceira dissertação, §16. 143 NIETZSCHE, Fragmento póstumo 4[58] de novembro de 1882/fevereiro de 1883. 144 NIETZSCHE, Fragmento póstumo 4[131] de novembro de 1882/fevereiro de 1883. 145 NIETZSCHE, Fragmento póstumo 5[33] de novembro de 1882/fevereiro de 1883, versão para o português de Carmen Lúcia Torniado apud MONTEIRO, 2009. 146 NIETZSCHE, Vontade de potência, § 265.

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sentido, demonstra admiração pelos gregos da antiguidade. O helenista dizia sim à vida,

assumia a vida do modo como ela se apresentava. Nietzsche, dirá: “Creio que nesse gênero de

vivências interiores somos rudes noviços e tateantes decifradores de enigmas; há quatro mil

anos os homens sabiam mais desses infames refinamentos da fruição de si”.147

O pensador sublinha que as vivências não se expressam por meio de palavras: “Nossas

verdadeiras vivências não são nada loquazes. Não poderiam comunicar a si próprias, ainda

que quisessem. É que lhes faltam as palavras. Aquilo para o qual temos palavras, já o

deixamos para trás”148 Portanto, só temos palavras para as vivências que já foram superadas,

para o que já foi vivenciado.

Implicar vida e obra também se corre o risco da abordagem psicológica na filosofia.

No início dos anos 1890, Lou Salomé, partindo do pressuposto de que em Nietzsche, obra e

vida coincidem, publica uma biografia do filósofo, em que opta por uma abordagem

psicológica dos seus textos. Para Marton149, a produção de Salomé é uma interpretação

redutora da filosofia de Nietzsche, aprisionando-a em referenciais teóricos que lhe são

estranhos. Nos primórdios da filosofia no Brasil, era comum a leitura da obra à luz da

biografia. Com o movimento estruturalista francês, a filosofia deixou de ser elaborada pela

mediação vida-obra do filósofo e passou a ser elaborada pelo trato com os textos. A noção de

otobiografia segue essa linha, por isso, pode ajudar a ouvir as vivências como reflexão

filosófica150.

De acordo com Deleuze e Guattari, os componentes dos conceitos desdobram-se sobre

outros conceitos, “compostos de outra maneira, mas que constituem outras regiões do mesmo

plano, que respondem a problemas conectáveis, participam de uma co-criação”.151 Instinto ou

Impulso e Vontade de Potência são outros conceitos que apoiam o conceito de vivência.

2.1.2 A Interpretação e os Instintos

O termo alemão Trieb aparece nos primeiros escritos de Nietzsche e atravessa toda a

sua produção. Em geral, “o termo pode ser traduzido por impulso, ímpeto, inclinação,

147 NIETZSCHE, Aurora, §113. 148 NIETZSCHE, Crepúsculo dos ídolos, Incursões de um extemporâneo, §26. 149 MARTON, 2000. 150 MONTEIRO, 2009. 151 DELEUZE e GUATTARI, O que é filosofia?, p. 30.

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propensão, propulsão, pressão, movimento, vontade; em botânica: broto, rebento”.152 Como a

maioria dos conceitos nietzschianos, não há consenso em sua utilização, mas instinto, a meu

ver, vai mais ao encontro do caráter fisiológico do pensamento de Nietzsche e reforça a ideia

tipicamente nietzschiana de que são esses operadores fisiológicos que tomam a palavra nos

processos de comunicação.

Monteiro153 cita o livro A gaia ciência como uma obra que oferece boas razões para

pensar o humano a partir de suas funções orgânicas, ou Trieb, que opta traduzir por instinto,

por reforçar a biologização necessária para o afastamento da metafísica que pensa os atributos

humanos a partir de substâncias platônico-cartesianas.

Nietzsche contrapõe o pensamento positivista com a ideia de que, ao contrário de

fatos, o que há são interpretações:

Contra o positivismo que fica preso ao fenômeno “só há fatos”, eu diria: não, justamente fatos é o que não há, e sim interpretações. Não podemos constatar nenhum fato “em si”: talvez seja um absurdo querer algo assim. “Tudo é subjetivo”, direis vós: mas já isso é interpretação, o “sujeito” não é nada dado, porém algo inventado por acréscimo, subposto. – Será que é necessário, em última instância, colocar o intérprete ainda por trás da interpretação? Já isso é invencionice, hipótese. Na medida em que a palavra “conhecimento” ainda tem qualquer sentido, o mundo é cognoscível: mas ele é interpretável de outro modo, ele não tem nenhum sentido por trás de si, mas inumeráveis sentidos, “perspectivismo”. São nossas necessidades que interpretam o mundo: nossos impulsos e seus prós e contras. Cada instinto é um modo de despotismo, cada um tem sua perspectiva, que desejaria impor como norma a todos os demais impulsos.154

Nesse fragmento vemos, também, que a ideia de sujeito, para Nietzsche, é

interpretação. Não existindo o sujeito, também não existe o intérprete privilegiado. O mundo

não tem um sentido a ser desvendado, mas inúmeros sentidos que lhe podem ser atribuídos,

por isso, tudo é questão de perspectiva. O filósofo também afirma que são nossas

necessidades que interpretam o mundo e essas estão nos instintos. Esses estão em constante

embate, cada um procurando impor a sua perspectiva aos demais, conforme dirá Azeredo:

“são nossos instintos que em luta permanente configuram interpretações”.155

152 SOUZA apud MONTEIRO, 2009, p. 13. 153 MONTEIRO, 2009. 154 NIETZSCHE, Fagmento Póstumo XII 7[60]. 155 AZEREDO apud MONTEIRO, 2009, p. 16.

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Então, “a interpretação é movimento dos instintos que lutam para exercer supremacia.

Estes, ao tomarem a palavra, buscam impor sua perspectiva”.156 Sendo assim, o problema

hermenêutico é fisiológico.

Azeredo explicita o sentido de sintoma: “expressão de sucessos ou fracassos

fisiológicos como resultantes das lutas que interagindo ao mesmo tempo compõem o

organismo e impõe sua interpretação, sua perspectiva”157. Nietzsche aponta a interpretação

como um sintoma de configurações fisiológicas e frisa que quem interpreta são os nossos

afetos.158

A seção § 119 de Aurora explicita bem o pensamento de Nietzsche a respeito dos

instintos e de como esses são nutridos pelas vivências: As nossas vivências cotidianas

alimentam nossos impulsos fora de qualquer nexo racional:

Viver e inventar. − Qualquer que seja o grau a que cada um de nós possa

atingir no conhecimento de si próprio, nada pode ser mais incompleto que a imagem que se forma de todos os instintos [Triebe] que constituem si mesmo. Mal saberá dar o nome dos mais grosseiros entre eles: o número e a intensidade deles, o fluxo e refluxo, o jogo recíproco e, sobretudo, as leis de sua nutrição, permanecem inteiramente desconhecidas para esse alguém. Esta nutrição é, pois, obra do acaso: nossas vivências [Erlebnisse] diárias lançam sua presa quer a este instinto quer ao outro; e os agarra avidamente, mas todo vaivém desses acontecimentos se encontra fora de qualquer nexo racional com as necessidades nutritivas do conjunto dos instintos [Triebe]: de sorte que sempre ocorrerão duas coisas: a inanição e definhamento de uns e a excessiva alimentação de outros. Cada momento de nossa vida provoca o crescimento de algum dos braços do pólipo de nosso ser e que outros se murchem; conforme o alimento levado ou não pelo momento. Nossas vivências [Erlebnisse], como disse, são todas, neste sentido, alimentos, mas distribuídos às cegas, sem saber quem tem fome e quem já está saciado. E, devido a essa casual alimentação das partes, o pólipo crescido será algo tão fortuito como tem sido sua gênese. Falando mais claramente: admitindo que um instinto [Trieb] se ache no ponto em que exija ser satisfeito — ou exercer sua força, ou satisfazê-la, ou preencher um vazio – é tudo imagem figurada −: examinará cada acontecimento do dia, como pode utilizá-lo para seus fins; se o indivíduo corre, descansa, lê, irrita-se, luta, fala ou exulta, o instinto [Trieb] sedento tateia, de certo modo, cada uma destas condições, e, na maior parte dos casos, nada encontrará para si, tem de esperar e continuar sedento: um instante mais e ele se debilita, mais alguns dias ou meses, se não for satisfeito, e ele secará como uma planta sem água. Talvez esta crueldade do acaso saltasse aos olhos ainda de maneira mais viva se todos os instintos fossem radicais como a fome, que não se contenta com alimentos sonhados; mas a maioria dos instintos, sobretudo os assim chamados “morais”, fazem justamente isso — se for permitida a minha conjectura que nossos sonhos servem para compensar, em certa medida, a casual ausência de “alimento” durante o dia. Por que o sonho de ontem foi pleno de ternura e lágrimas, o de anteontem foi brincalhão e exuberante, e outros, mais antigo ainda, aventureiro e cheio de busca sombria e constante? Por que razão nesse desfruto belezas indescritíveis da música, por que pairo no ar e vôo naquele outro, com o enlevo de uma águia, em direção aos cumes mais distantes?

156 MONTEIRO, 2009, p. 16. 157 AZEREDO apud MONTEIRO, 2009, p. 16. 158 NIETZSCHE, Fragmentos Póstumos, XII 2[190].

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Tais criações, que dão margem e desafogo aos nossos instintos [Triebe] de ternura, de gracejos, de aventura, ou a nosso anseio de música e de ascensão — cada qual terá à mão seus próprios exemplos mais eloqüentes —: são as interpretações de nossas excitações nervosas durante o sono, interpretações muito livres, muito arbitrárias, da circulação de sangue e dos intestinos, da pressão do braço e das cobertas, dos sons dos sinos da torre, dos cata-ventos, dos noctívagos e de outras coisas assim. Se esse texto, que em geral pouco varia de uma noite para outra, é comentado de maneira tão diversa, se a razão inventiva imagina, ontem e hoje, causas tão diferentes para as mesmas excitações nervosas: o motivo para isso está em que o souffleur [ponto de teatro] [inspirador] dessa razão foi hoje diferente do de ontem — um outro instinto [Trieb] quis satisfazer-se, ocupar-se, exercitar-se, reanimar-se, expandir-se —, ele estava em seu momento mais forte de fluxo, onde estava a vez do outro. — A vida de vigília não tem essa liberdade de interpretação que tem a vida que sonha, é menos poética e desenfreada — mas devo acrescentar que nossos instintos, nas horas “despertas”, igualmente não fazem se não interpretar as excitações nervosas e, conforme suas necessidades, estabelecer as “causas” deles? Que não há diferença essencial entre sonho e vida desperta? Que, mesmo comparando graus de cultura bem diversos, a liberdade da interpretação desperta, em um, não fica atrás da liberdade do outro em sonhos? Que também nossas avaliações morais e nossos juízos são apenas imagens e fantasias sobre um processo fisiológico de nós desconhecido, uma espécie de linguagem adquirida para designar certas irritações nervosas? Que tudo isso o que chamamos de consciência, em suma, não é mais que o comentário, mais ou menos fantástico, sobre um texto não sabido, talvez “incognoscível”, porém sentido? − Tomemos o exemplo de uma experiência trivial. Suponhamos que um dia, passando pela praça pública, notamos que alguém ri de nós: se este ou outro instinto [Trieb] tiver alcançado em nós seu ponto culminante, este acontecimento terá para nós tal ou qual significado, e conforme o tipo de pessoa que somos, será um incidente bastante diferente. Uma pessoa o toma como uma gota de chuva, outra vai sacudi-la para longe como um inseto, outra vê aí um pretexto para brigar, outra examina sua própria roupa para ver se tem alguma coisa, outro pensará, como conseqüência, no ridículo em si, outra se sente bem por haver contribuído, sem o querer, para a alegria e a luz e sol que há no mundo — e em cada caso houve a satisfação de um instinto [Trieb] diferente, seja o da irritação, o da vontade de briga, o da reflexão ou o da benevolência. Esse instinto [Trieb] agarrou o incidente como uma presa: por que justamente ele? Porque estava à espreita, sedento e faminto. — Pouco tempo faz, às onze horas da manhã, um homem caiu subitamente à minha frente, como que atingido por um raio, e todas as mulheres em volta gritaram; eu o ajudei a levantar-se e esperei até que recuperasse a fala — nenhum músculo de meu rosto se moveu enquanto isso, e eu nada senti, nem espanto nem compaixão, apenas fiz o que era necessário e razoável e prossegui firmemente meu caminho. Supondo que me tivessem anunciado, um dia antes, que as onze horas do dia seguinte alguém cairia de tal forma junto a mim – eu teria sofrido tormentos variados, não teria dormido a noite e, no momento decisivo, eu teria procedido como este homem, em lugar de socorrê-lo. Pois, naquele ínterim, todos os instintos possíveis teriam tido tempo de imaginar a experiência e comentá-la. — O que são, então, nossas vivências [Erlebnisse]? São muito mais aquilo que nelas pomos do que o que nelas se acha! Ou deveríamos até dizer que nelas não se acha nada? Que viver é inventar? –159

Nessa sessão, alguns instintos são nomeados: o seu viver e a sua força, o fluxo e o

refluxo, as ações e as reações mútuas e sobretudo as leis da nutrição. De acordo com

159 NIETZSCHE, Aurora § 119. Versão de Silas Borges Monteiro em MONTEIRO, 2009, p. 47-9.

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Monteiro160, os instintos querem crescer em potência, por isso, criam meios para apreender o

mantimento oriundo das vivências. Os instintos incorporam as vivências. Desse modo, a

interpretação, ao invés de uma ordenação lógica para a apreensão da realidade, é dominação

dos fluxos orgânicos buscando conhecer e avaliar.

Segundo o pensador, sentimentos como inclinação, aversão, afinidade são sintomas de

que os instintos já estão constituídos. Os instintos regulam complicadas avaliações:

É preciso rever posições quanto à memória: ela é a soma de todas as

vivências de toda vida orgânica, vivida, ordenando-se, formando-se reciprocamente, brigando umas com as outras, simplificando-se, condensando-se e transformando-se em muitas unidades. É preciso haver um processo interno que se comporta como a formação de conceitos a partir de muitos casos individuais: o dar destaque e o sublinhar reiterado do esquema básico e o deixar de lado os traços secundários. – Enquanto algo ainda pode ser retirado como factum individual, ele ainda não está derretido nem dissolvido: as vivências mais recentes ficam ainda sobrenadando na superfície, sentimentos de atração, repulsa etc. são sintomas de que tais unidades estão constituídas; nossos assim chamados “instintos” são tais formações. Pensamentos são o mais superficial: juízos de valor, avaliações que aparecem de modo incompreensível e estão aí, vão mais fundo – agrado e desagrado são efeitos complicados de valorações reguladas por instintos.161

Para Nietzsche, as vivências não são do âmbito da racionalidade. Assim, afirma: “A

maior parte de nossas vivências é inconsciente, mas atuante”.162 O que nós somos é resultado

de vivências e elas nutrem instintos que ganham o tônus para tomarem a palavra. Certa

impotência concreta que experimentamos na vida tem uma vontade: eu quero isso; de todas as

opções, a que tomei é essa. São os instintos debatendo entre si. Não no sentido racional, mas

no sentido de luta porque, para Nietzsche, não há a ideia de algo que organiza os instintos e,

por isso, não há a ideia de sujeito. Há instintos aosr quais damos o nome de razão. Há uma

diversidade de instintos que querem tomar a palavra e temos a impressão de que há um centro

regulador. Quando alguém entende que precisa dizer algo, é um instinto que quer falar, um

instinto que gosta de ser chamado de sujeito. Então, a palavra é a efetivação dos instintos. O

hábito é uma espécie de vitória de um instinto, por isso, lutar contra um hábito é lutar contra

um instinto muito forte.

160 MONTEIRO, 2009. 161 NIETZSCHE, Fragmento póstumo 26[94] do verão/outono de 1884. 162 NIETZSCHE, Fragmento póstumo 25[359] da primavera de 1884.

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Na opinião de Nietzsche, existem, também, instintos reativos que estão sempre agindo.

O homem forte diz: eu sou bom, eu crio a moral. O homem ressentido olha para aquele que se

denomina bom e diz: se ele é bom e me faz mal, eu é que sou bom.

Nietzsche abandona a ideia do unoprimordial, da identidade atômica, isto é, do

conceito de indivíduo como aquele que não se divide. Para o filósofo, existem indivíduos

contidos em cada um de nós. Cada um de nós se multiplica em nós mesmos, pois somos

embebidos de múltiplos instintos. Há instintos de lucidez e instintos de embriaguez, instintos

apolínicos e instintos dionisíacos. Todos esses instintos presentes no corpo querem domínio,

querem exercer a potência. E por melhor que uma pessoa se conheça, ela não tem como lidar

racionalmente com os seus instintos.

2.1.3 Vontade de Potência como Afirmação da Vida na sua Tragicidade

O conceito de vontade de potência é fundamental para se compreender o pensamento

de Nietzsche e a otobiografia de Derrida. A vivência é a singularidade da vontade de potência.

Por isso, o conceito de vontade de potência, também ajuda a compreender o conceito de

vivência.

Conforme comentado em passo anterior, a filosofia de Nietzsche está submetida à

interpretação. O filósofo inaugura uma nova raiz interpretativa. Vimos que os instintos são

impulsos orgânicos que atribuem sentido ao mundo e que eles são alimentados pelas

vivências. Então, o filósofo vai à procura das vivências. Essa nova estrutura de

questionamento demanda a substituição da questão o que é? por quem? Sendo assim,

Nietzsche não pergunta pela essência das coisas, mas pelas forças que atribuem predicado a

elas. Para Deleuze, “A questão ‘quem?’, segundo Nietzsche, significa o seguinte: sendo uma

coisa dada, quais são as forças que dela se apoderam, qual é a vontade que a possui?”.163 O

que quer essa coisa? O que quer essa vida? A proposta nietzschiana: “Seguir os vestígios da

vontade efetivada nas afirmações e ações realizadas”164; “seguir os rastros das forças na

efetivação da vida”165.

163 DELEUZE, apud MONTEIRO, 2009, p. 10. 164 MONTEIRO, 2009, p. 10. 165 Id., Ib.

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Deleuze sublinha: “apenas um princípio: uma palavra só quer dizer qualquer coisa na

medida em que aquele que diz quer qualquer coisa ao dizê-lo”.166 Então, quando algo é dito,

sempre existe um querer, uma vontade. Existe um movimento de forças nessa vontade, uma

configuração dinâmica de forças. Sendo assim, o que querem quando dizem é a interrogação

que deve ser feita.

Em suma, o questionamento que sustenta a investigação das vivências é: o que quer?,

e dessa forma pergunta: “quem?”. Um método que procura localizar o sintoma de uma

vontade, por isso, faz-se necessário, mesmo que brevemente, uma abordagem à noção de

vontade de potência no pensamento de Nietzsche.

Os termos vida e vontade de potência, no pensamento nietzschiano, se identificam:

“Mas, o que é vida? Aqui precisamos de uma nova, mais definitiva formulação do conceito

‘vida’. Minha fórmula para isso é: vida é vontade de potência”.167 Eis o que nos é dito pelo

alter ego de Nietzsche em Assim falava Zaratustra: “onde encontrei vida, ali encontrei

vontade de potência; e até mesmo na vontade daquele que serve encontrei vontade de ser

senhor. (...) Somente, onde há vida, há também vontade: mas não vontade de vida, e sim –

assim vos ensino – vontade de potência!”.168 Posto assim, vontade de potência é vontade

orgânica no sentido mais amplo: de todo ser vivo.

Nietzsche é absolutamente contra toda a história da Filosofia que colocou o homem

em uma condição superior em relação aos demais animais por ser racional (concepção

aristotélica) ou por ser político (concepção marxista). Para ele, a diferença entre o ser humano

e os outros animais é unicamente de ordem orgânica. Monteiro chama a atenção: “Enxergar,

com isso, superioridade de um sobre outro nada mais é que ‘vontade de mando’”.169 Também,

é próprio do pensamento nietzschiano a radicalidade com que trata o ser humano como ser

vivo, chegando a não notar alguma superioridade deste em relação a todos os outros.170

A ideia de que nós, seres humanos, queremos, desejamos, está sustentada em um

imaginário ocidental de que há um centro regularizador do desejo: a razão. O nosso plano

para desejar é artificial porque não há esse centro organizador do desejo. Temos a ideia de que

cumprimos um plano e, para Nietzsche, cumprimos um destino de expansão. Sendo assim, o

que há é uma vontade de alargamento, de domínio.

166 DELEUZE, s/d, p.113. 167 NIETZSCHE, XII 2[190]. 168 NIETZSCHE, Assim falava Zaratustra, II, Da superação se si. 169 MONTEIRO, 2009, p. 22. 170 Id., ib.

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Para Nietzsche, o pensamento não opera por princípios lógicos, racionais, mas por

movimentos orgânicos: “pressupõe-se aqui que todo o organismo pensa, todas as formas

orgânicas tomam parte no pensar, no sentir, no querer – por conseguinte, o cérebro é apenas

um enorme aparelho de centralização”.171 Para Marton172, querer, pensar e sentir são forças

disseminadas pelo corpo. No pensamento, sentimento e vontade aparecem como

indissociáveis.

Na concepção do desejo, um eu quer algo e na concepção da vontade de potência, um

instinto quer algo. Como comentado anteriormente, instintos presentes no corpo também

querem domínio, querem exercer a potência. Lembremos que a interpretação é movimento

dos instintos que buscam impor sua perspectiva. Se bem assim, a interpretação é uma forma

de vontade de potência, conforme dirá Nietzsche: “Não há razão de perguntar: ‘quem então

interpreta?’, pois a interpretação, ela mesma, é uma forma de vontade de potência, que existe

(não como um ‘ser’ mas como um processo, um devir) como um afeto”.173

Nietzsche assegura que: “Toda força motora é vontade de potência, não existe fora

dela nenhuma força física, dinâmica ou psíquica”.174 Sendo assim, vontade de potência para o

filósofo alemão é força, é o movimento que faz com que as coisas estejam vivas, é vida. É

impulso de expansão e não se sabe para onde. Quando algo expande, domina. E quando essa

expansão se enfraquece, outro domina. Então, expansão é a efetivação da vontade de potência.

Por isso, o que é bom para Nietzsche é o que expande, e o que é mal, é o que reprime. Em

Além do bem e do mal ele problematiza isso. Entendendo que o bem e o mal é uma concepção

da cultura, Nietzsche, que não era imperativo, questiona se o que chamamos de o bem e o mal

não decorre de um rebanho e não de espíritos livres. E levanta a questão: por que não

podemos pensar a moral de outra forma? Ou seja, não há a possibilidade de pensar as coisas

além do bem e do mal?

Então, a vida, ou a vontade de potência é efetivada por forças que, de acordo com

Deleuze175 podem ser ativas ou reativas. Deleuze, com a sua Teoria das Forças, tenta dar um

corpo conceitual para as ideias de Nietzsche. Para o filósofo francês, há uma singularidade

que torna o que cada um é. Assim, aproxima-se de Nietzsche. Uma força ativa quer sempre

171 NIETZSCHE, Fragmento póstumo 27[19] da primavera ao outono de 1884. 172 MARTON apud MONTEIRO, 2009. 173 NIETZSCHE, XI 2[150]. 174 NIETZSCHE, Fragmento póstumo 14 [21] da primavera de 1888. 175 DELEUZE, s/d.

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dominar e comandar, criar algo novo. Dizer-se, entretanto, que forças ativas são dominantes

não significa que estejam sempre no poder.

Em suma, de acordo com Nietzsche, todas os seres vivos querem. E todo querer é

querer algo. Então, o que querem? Querem domínio, alargamento, expansão, comando.

Enfim, querem poder, potência; querem efetivar-se. Esse querer potência é o que Nietzsche

conceitua como vontade de potência ou vontade de poder. Para o filósofo, não existe o querer

em si, puro, mas a vontade é sempre vontade de algo. Não se quer apenas preservar a vida, se

quer mais da vida, se quer poder, potência, e isso demanda uma produção de diferença.

A vontade de potência é afirmação da vida na sua tragicidade, logo com sentido não

metafísico, sendo assim, é o dizer sim à vida do jeito que ela é, não no sentido cristão de

aceitar o sofrimento por uma recompensa posterior, mas no sentido de intensidade, de afirmar

a todo instante sua forma de existência. A potência se efetiva. A vida quer se efetivar. Para o

filósofo alemão, a vida só faz sentido na sua efetivação e é mais efetiva no corpo.

Nietzsche não associa vida apenas à ideia do corpo animado. Então, todo ente quer

efetivar-se porque existe. A vontade de potência não está na coisa é a coisa. Vontade de

potência é movimento, então, as coisas não são, elas estão sempre se tornando algo.

Monteiro176 explica que o termo vontade de potência funciona como operador de

sentido. Procura explicar a vida: social, psicológica e fisiológica. A vontade de potência

mostra-se nas vivências. Dizendo de outro modo, as vivências são sintomas da vontade de

potência177. Pelo conceito de vontade de potência, Nietzsche procura explicar as diversas

forças que tomam a palavra na vivência humana. Portanto, o que está em questão são as

forças implicadas na vontade de potência que são experimentadas na vida. Ouvi-las é o grande

aprendizado.

2.2 A OTOBIOGRAFIA E O GESTO OTOBIOGRÁFICO

O grupo de Estudos de Filosofia e Formação (EFF) é vinculado ao Programa de Pós-

Graduação em Educação da UFMT e coordenado pelo Prof. Dr. Silas Borges Monteiro. Esse

grupo tem desenvolvido algumas pesquisas nas quais é empregado o procedimento

denominado de método otobiográfico ou gesto otobiográfico. O referido método decorre do 176 MONTEIRO, 2009. 177 Id., ib.

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conceito de otobiografia do filósofo argelino Jacques Derrida (1930 – 2004) que Monteiro

reconcebeu como método para ouvir as vivências nos textos das pesquisas em educação.

Jacques Derrida nasceu em 15 de julho de 1930, na cidade de El Biar, Argélia. De

família judia, sofreu durante a época da Segunda Guerra com as consequências das políticas

anti-semitas. A descoberta dos livros de Jean-Jacques Rousseau, Friedrich Nietzsche, André

Gide e Albert Camus, durante a adolescência, contribuiu para sua vocação literária e

filosófica. Nos anos 1960, criou a desconstrução em filosofia. Depois de ter leccionado na

Sorbonne (1960-1964) e na École Normale Supérieure de Paris (1964-1984) e ter sido

Director de Estudos da École des Hautes Études em Sciences Sociales de Paris (1984-2003),

tornou-se desde finais dos anos 1960 professor convidado das mais prestigiadas universidades

europeias e norte-americanas. Nos Estados Unidos da América não é lido nos departamentos

de Filosofia, mas nos de Estudos Culturais. Tem como marca o pensamento diferencial. Por

isso, também deve ser inscrito como filósofo da diferença. O estilo da escrita derridiana é

refinado e não carrega sentido prévio, pois o sentido é dado no ato de escrever. O texto A

Farmácia de Platão parece conter seu melhor ensaio desconstrutivo. Derrida desconstrói a

filosofia ocidental usando como estratégia elementos ambivalentes que escapam das

oposições binárias, denominados por indecidíveis. Derrida morreu em Paris, em 8 de outubro

de 2004.178

2.2.1 Um Texto, um Conceito

Otobiografia é um conceito de Derrida, leitor de Nietzsche, apresentado na obra

Otobiographies. L’enseignement de Nietzsche et la politique dun nom propre.179 O grupo EFF

quer extrair da referida obra elementos para o estudo da didática, da política e do método.

Didática, porque o texto aborda o ensino; política, porque discute a política do nome próprio

e método porque trata da vida. Para este trabalho, tal texto é de fundamental importância

porque, além de apresentar o conceito de otobiografia, que aqui é aplicado como método para

ouvir as narrativas dos professores, traz a questão da assinatura e um vislumbre do estilo de

pensamento de Derrida. Por isso, apresento a seguir, algumas considerações sobre o referido

texto.

178 NASCIMENTO, 2004. 179 Otobiografias: o ensino de Nietzsche e a política do nome próprio.

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Como narra Monteiro180, o conceito de otobiografia foi proposto por Derrida e

apresentado nos Estados Unidos, em texto de uma conferência proferida na Universidade de

Virgínia, no ano de 1976, dando origem à referida obra. O evento era uma comemoração do

bicentenário da Declaração da Independência dos Estados Unidos da América e Derrida havia

sido convidado para proferir uma conferência sobre os documentos da Declaração da

Independência e da Declaração dos Direitos Humanos. Ao iniciar a conferência, Derrida se

desculpa por não falar sobre o que lhe fôra proposto: uma análise “textual”, à vez filosófica e

literária dos referidos documentos. Em seguida, declara que falará sobre a questão: quem

assina, e com que nome supostamente próprio, o ato declarativo que funda uma instituição?

Nesse trabalho, o filósofo aborda questões do contexto político e cultural da época do

Nietzsche acadêmico, a segunda metade do século XIX, também época da construção do

Estado Alemão. Há um ensino, uma didática e uma política em Nietzsche. Não é uma política

do Estado, é uma política do nome. Derrida181 cita Nietzsche dizendo que a denúncia da falta

de ouvidos para as vivências é tema recorrente na produção do filósofo. Otobiografias é uma

leitura que Derrida faz do Nietzsche acadêmico. Em Nietzsche, tudo começa e termina pelo

ouvido. Para o filósofo, o grande problema da universidade é o método acroamático de

ensino, ou seja, fixar os estudantes pelo ouvido. Os estudantes universitários são ouvintes

passivos, fundamentalmente escutam. Para eles, estudar é ouvir o professor e Nietzsche

entende que os estudos deveriam ser mais independentes. Por isso, vê a liberdade acadêmica

nesse contexto como a liberdade de fazer crescer as orelhas, como ele diz. Para o filósofo

alemão, viver na universidade é mais do que assistir às aulas e aprende-se com as vivências,

ouvindo-as, conforme mencionado em passo anterior. Derrida recupera a crítica de Nietzsche

sobre o aspecto passivo da educação e entende liberdade acadêmica como o empenho naquilo

que vale a pena. Então, na visão de Nietzsche, tudo passa pelo ouvido e só se ouve o que se

vive. Nesse sentido, há um limite existencial para o conhecimento do mundo.

Outro conceito derridiano importante para a otobiografia é o de margem. Derrida dirá:

“margem entre a ‘obra’ e a ‘vida’, o sistema e o ‘sujeito’ do sistema”.182 Identificam-se nos

textos de Derrida os duplos e os duplos jogando. A ideia de margem em Derrida 183é o lugar

onde acontece o jogo entre escritor e escritura. Para o filósofo, a relação de vida e obra tem

outro papel: há uma dynamis entre a vida do autor e a sua obra, o sujeito do sistema e o

180 MONTEIRO, 2004. 181 DERRIDA, 1984. 182 DERRIDA, 2008. 183 DERRIDA, 1984.

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sistema. A vida do escritor comparece a todo o momento na obra. A vida do escritor joga com

o texto e o texto joga com a vida do escritor e é essa dynamis que a otobiografia vai perceber.

No mesmo texto o filósofo diz também que essa margem divisível atravessa os dois corpos

segundo leis que nós começamos apenas a entrever. Santiago184 coloca que, para Derrida, a

margem é o “jogo de comparecimento duplo. Transbordamento”. Nela o tempo inteiro se diz

de um e de outro, não é possível dizer quem está dentro e quem está fora.

Derrida185 critica as ciências por criarem objetos recortados de sua dinâmica, de sua

vida. Para o filósofo, na linguagem a pessoa pode ser inteira, não há como distinguir vida e

texto. A otobiografia visa não apartar o autor de sua obra e, assim, perceber no texto as

experiências de vida que deixaram marcas e que o tornou o que é. A ideia é: o texto tem

marcas do estilo do pensamento do autor, do estilo da sua constituição.

Na obra citada, o filósofo franco-argelino se aproxima de Nietzsche como pessoa,

como nome próprio. Diz que tudo o que temos do filósofo alemão são os seus textos. Não

sabemos quem era Nietzsche. No assim se expressar, parece que Derrida quer dizer que

quando temos um texto, temos apenas um texto. Dizendo que tudo o que temos de Nietzsche

são textos, propõe a escuta dos mesmos. E como fazer isso? Desconstruindo-os.

Nesta pesquisa não trabalho com a ideia de desconstrução, deixando-a para trabalhos

futuros que possam ser realizados a partir deste. Mas, apenas para ilustrar, incorro em uma

simplificação ao dizer que a desconstrução, para Derrida, não é derrubar, desmanchar tudo,

mas identificar as lacunas, inquirir certas afirmações das quais todos os textos estão plenos.

Se bem assim, a linguagem é que vai permiti-la. Santiago186 define desconstrução como

“Operação que consiste em denunciar num determinado texto (o da filosofia ocidental) aquilo

que é valorizado e em nome de quê e, ao mesmo tempo, em desrecalcar o que foi

estruturalmente dissimulado nesse texto”. “A leitura desconstrutora propõe-se como leitura

descentrada... O descentramento é, pois, a abolição de um significado transcendental que se

constituía como centro do texto. Descentramento é a independência total da cadeia dos

significantes”.187 Desconstruir implica também separar o que está ligado, romper nexos,

desfazer pressupostos. O mesmo autor usa uma metáfora para mostrar essa ideia: “As marcas

184 SANTIAGO, 1976, p. 57. 185 DERRIDA, 1984. 186 SANTIAGO, 1976, p. 17. 187 Id., ib., p. 17.

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se reinscrevem sempre num tecido antigo que é preciso continuar a desfazer sempre. Nesse

sentido, desconstruir é também descoser”.188

De acordo com Lopes189, Derrida, propondo a desconstrução, inaugura uma nova

forma de examinar os textos literários e, por extensão e vínculo, os textos filosóficos. Por

isso, uma das feições do gesto otobiográfico é a proximidade com a desconstrução.

Derrida190 propõe outro movimento que liga vida e obra, pensar de outro modo o autor

com o seu texto. Nesse sentido, fala da política do nome próprio que, para ele, é jogo de vida

e obra.

Entendo ser pertinente apresentar aqui a distinção entre nome (comum) e nome

próprio. Nome é “Palavra(s) com que se designa pessoa, animal ou coisa”.191 Os nomes

subclassificam-se em nomes próprios e comuns. O nome comum serve para nomear seres da

mesma espécie, representa a ideia do ser, traz os atributos do mesmo, por isso, possui

sentido.192 Nome próprio é “nome com que se nomeiam individualmente os seres e que se

aplica em especial a pessoas, nações, povoações, montes, mares, rios, etc”.193 Posto assim, o

nome próprio serve apenas para distinguir o ser de todos os outros da mesma espécie, por isso

não traz sentido.

Na conferência de Charlottesville, Derrida fala um pouco do vínculo, das assinaturas

dos tratados do Estado. Ele vai escolher a partir de uma declaração de estado uma política do

nome próprio. Há uma Política de Estado, mas alguém assina por ela, então, há uma

assinatura que dá consistência a essa Política. O autor chama isso de política do nome próprio

e levanta questões como: o quanto aquele que representa tem do seu nome próprio na

assinatura? O quanto as instituições falam por nós? Com que assinatura, com que

legitimidade? Para o anseio popular ganhar legitimidade precisa, antes, se transformar em lei.

A legitimidade é uma consequência da legalidade. O direito nasce do fato, a lei vem depois.

Nesse sentido, Derrida pergunta: qual a função da lei? A lei mata ou dá vida?

O espaço entre o público e o privado também é colocado em pauta nesse texto. Para o

autor, os espaços públicos não atendem integralmente, ou seja, nunca haverá em uma

instituição pública a adesão total daquele que dela participa. A política do nome próprio para

188 SANTIAGO, 1976, p. 19. 189 LOPES, 2010. 190 DERRIDA, 1984. 191 FERREIRA, [S.d.], p. 976. 192 MACEDO, 1991. 193 FERREIRA, [S.d.], p. 976.

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Derrida, e também para Nietzsche, é uma política que se coloca em uma perspectiva

diferenciada da democracia. Existe algo no nome próprio que não é público, portanto,

privado. Logo, quando se apaga o nome próprio, fala-se de algo público.

Para Derrida194, a escritura não é só gráfica, ela também abrange o campo da fala. Se

há utilização de nome próprio, já é escritura.

A Filosofia tradicional é da ordem do espaço público uma vez que obedece a regras, a

formalidades. Nietzsche pensa e faz diferente. Para o filósofo alemão, a Filosofia é uma

espécie de discurso privado, pois o filósofo é aquele que fala a partir das próprias vivências.

No texto tradicional, há um ritmo próprio do discurso público. Derrida também escapa disso,

ele dá ao texto a oportunidade de ter suas brechas, suas lacunas para o jogo, ou seja, para o

leitor dialogar com o texto.

No limite, toda política é uma política de um nome próprio. Quando Nietzsche fala em

uma grande política, quando ele pensa em inovações da formação, da educação, ele pensa a

partir de uma assinatura, de uma instituição, então, é a instituição que funda aquilo, e essa

instituição é o próprio nome. Nietzsche tem um compromisso com o texto que escreve, maior

do que qualquer outro filósofo, parece que escreve mesmo com o sangue, como ele próprio

diz. Então, ele se materializa no texto, o texto é ele e ele é o texto, daí ser uma política do

nome próprio.

Segundo Derrida195, toda ciência é ciência de morte porque lida com objetos

recortados da dinâmica da vida. A Biologia, a Medicina, são ciências da morte porque

estudam corpos sem vida. Nas pesquisas com narrativas, as pessoas não falam do que elas são

naquele instante, mas do que elas foram. Parafraseando o poeta Manoel de Barros, são

memórias inventadas nesse instante. Mais ainda, a escritura tem lógica de morte

(tanatológico) e lógica de gráfico (tanatográfico). Isto porque há algo no texto que significa

morte: o texto escrito congela. Como dizia Nietzsche: “Meus escritos falam somente de

minhas superações”.196 Ao assim se expressar, o filósofo alemão está subentendendo que um

texto sempre mostra um movimento do que foi deixado para trás, talvez por isso para Derrida,

o texto seja um material morto, mas que depois de escrito, parece que começa a ter vida

própria e as pessoas veem ou ouvem nele o que querem.

194 DERRIDA, 1984. 195 Id., ib. 196 NIETZSCHE, Miscelânea de opiniões e sentenças, §1.

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Na leitura que Derrida197 faz de Nietzsche, um texto é autobiográfico não porque o

autor conta sua vida, mas porque ele a conta para si mesmo, ou é o primeiro destinatário da

narração. Segundo Monteiro198, “Tecnicamente a Filosofia tem chamado isso de reflexão, pois

é retorno do pensamento sobre si mesmo, destinando a si mesmo sua descrição, análise e

avaliação”.

2.2.2 Um Pesquisador, um Método

A seguir, procurarei mostrar como o conceito de otobiografia foi reconcebido como

método em pesquisas sobre formação. O método otobiográfico foi empregado pela primeira

vez por Monteiro no seu trabalho de doutorado realizado na Universidade de São Paulo

(USP), defendido no ano de 2004, cujo título é Quando a pedagogia forma professores. Uma

investigação otobiográfica. Nesse trabalho, Monteiro tomou o conceito de otobiografia de

Derrida e o reconcebeu para outro fim, a pesquisa em educação.

A tese de Monteiro trata-se de pesquisa teórica, de cunho filosófico-educacional, sobre

formação de professores na Licenciatura em Pedagogia da UFMT e o autor procura

demonstrar que teorias filosóficas que procuram captar e evidenciar os fenômenos da prática

podem ser muito úteis para a avaliação da formação de professores.

Com vistas à melhor compreensão do gesto metodológico inaugurado por Monteiro,

apresento, a seguir, o movimento realizado por ele e descrito na sua tese, até chegar à

reconcepção do conceito de otobiografia como método de escuta dos textos do seu trabalho

de doutorado.

A tese de Monteiro199 versa sobre processos formativos. Como sua formação de

graduação se assenta na Filosofia, ele fundamentou seu trabalho em conceitos dessa área do

conhecimento, com destaque para o conceito de otobiografia de Derrida. Na sua tese,

Monteiro ensaia novos diálogos entre a contribuição conceitual da educação de Selma Garrido

Pimenta, José Carlos Libâneo e Kenneth M. Zeichner e as elaborações filosóficas de filósofos

197 DERRIDA, 1984. 198 MONTEIRO, 2004, p. 66. 199 Id., ib.

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como Martin Heidegger, os pré-socráticos e Friedrich Wilhelm Nietzsche, a respeito do qual

diz: “é com quem mais opero no trabalho dessa tese; com ele ensaio outras ideias”.200

Com o propósito de indicar elementos para iniciar uma reflexão sobre a formação de

professores na Licenciatura Plena em Pedagogia da UFMT, Monteiro escreveu o ensaio

Pesquisa e produção de conhecimento na formação de professores. Os conceitos que deram

sustentação a essa discussão foram os de pesquisa-colaborativa de Selma Garrido Pimenta e

autoredescrição de Richard Rorty, este último por entender que contribuía para a avaliação do

dossiê de conclusão de curso, uma vez que esse trabalho pretende ser uma reflexão sobre a

formação da estudante. Monteiro havia escolhido o dossiê de conclusão de curso como objeto

de análise. Entretanto, no decorrer do doutorado, substituiu a autoredescrição proposta por

Rorty pelo conceito de professor reflexivo, por compreender que se adequava melhor ao que

pretendia e produziu o texto que se intitula: Epistemologia da prática: professor reflexivo e

pesquisa colaborativa.

De acordo com Monteiro201, até o momento da sua qualificação no doutorado, ainda

não tinha muita clareza de como abordar a produção das estudantes, ou seja, os dossiês de

conclusão de curso, e que só após esse momento surgiu o conceito de otobiografia. Ao iniciar

a leitura dos dossiês, constatou uma característica sempre presente nesses trabalhos: o tom

autobiográfico. Por isso, julgou ser fértil experimentar na análise desses textos as concepções

de Nietzsche sobre reflexão filosófica e vivência. Para esse procedimento metodológico,

escolheu não se colocar como leitor, mas como ouvinte, daí recorrer ao conceito de

otobiografia de Derrida.

Monteiro conta que dos escritos dos filósofos que orientam o seu trabalho, ele toma os

conceitos para compreender os escritos das estudantes da Pedagogia, e o conceito de

otobiografia é um desses. Nesse sentido declara: “tomei de Derrida, leitor de Nietzsche, o

termo otobiografia, por entender que esse conceito me ajuda no movimento entre os trabalhos

das professorasestudantes da Licenciatura em Pedagogia da UFMT”.202

O prefixo oto significa orelha, ouvido, portanto, órgão da fisiologia humana que tem a

função de captar sinais sonoros. Se bem assim, otobiografia significa ouvir a biografia, ouvir

a escritura da vida. Ouvir a vida nos textos autobiográficos, nesse contexto, não é mera

200 MONTEIRO, 2004, p.18. 201 Id., ib. 202 Id., ib., p. 18.

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captação acústica, mas atribuição de sentido aos textos e como citado anteriormente, as

vivências é que dão o sentido do relato. Portanto, na otobiografia ouvem-se as vivências.

No trabalho de Monteiro a otobiografia toma a conotação de método, mais

especificamente, método de escuta das vivências das professoras em formação. A partir da

leitura que faz de Derrida, o autor ajuíza que a otobiografia é “o empenho em dar ouvido às

vivências que tomam a palavra nas expressões humanas”.203 A audição é, então, uma metáfora

orientadora do seu trabalho, por isso intitula vários capítulos por ressonâncias.

Em outro passo, o autor se refere ao método tomado em seu trabalho como

“experimento de perspectivas acerca da formação”.204 Citando Descartes, diz que propôs a si

mesmo, não o caminho da investigação, mas um que lhe fosse útil, talvez só a si mesmo.

Declara que não visa a generalizações, embora estas possam ser feitas e que não se coloca fiel

a um só princípio metodológico. Inspirando-se no estilo filosófico de Nietzsche, propõe a

construção do conhecimento por experiências com o pensamento: “Entendo que, ao contrário

das formulações dogmáticas, o pensamento científico deve permitir-se transitar no provisório,

com a compreensão de que esse provisório é a marca da pesquisa.”205 Vejo a aplicação do

conceito de otobiografia em seu trabalho de doutorado como um sintoma desse pensamento.

Monteiro206 declara que pretende examinar os trabalhos de conclusão de curso das

estudantes, mas, a seguir, ressalva que o verbo examinar é inadequado ao que pretende fazer e

o substitui por ouvir, explicando que pretende ouvir o que foi vivido por algumas estudantes

durante a formação, ouvir as vivências que ressoam dos dossiês. Justifica a opção pelo termo

ouvir porque o mesmo remete ao fisiologismo da Filosofia de Nietzsche, principal operador

teórico de seu trabalho, o qual, radical na crítica à metafísica, estabelece o organismo como

operador do pensamento. Posto assim, ao propor ouvir as vivências das estudantes, Monteiro

elege o ouvido como caminho de produção de conhecimento, conforme dirá:

Portanto, otobiografia é tomado como método de acesso às vivências formadoras das professoras-estudantes, captadas por suas falas presentes nos dossiês de conclusão de curso. Este método não é linear, por certo. Toma a configuração de labirinto, pela razão da metáfora do aparelho auditivo e pela forma visual-vivencial de encontrar o caminho por tentativas, assim como é estruturado o pensamento de Nietzsche.207

203 MONTEIRO, 2004, p. 21. 204 Id., ib., p. 19. 205 Id., ib., p. 20. 206 Id., ib. 207 Id., ib., p. 21.

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Monteiro toma como hipótese conceitual a ideia de Nietzsche de que os conceitos não

resultam de operação cerebral, mas de experiências orgânicas, movimentos fisiológicos que o

filósofo alemão conceitua como vivências. Então, se são as vivências que produzem

conceitos, pensamentos, ideias, estes remetem a elas. Assim, mediado pela Filosofia de

Nietzsche, ao ouvir o que foi produzido pelas estudantes em seus dossiês, o pesquisador supôs

ouvir as vivências da formação. Por isso, o conhecimento das vivências das estudantes no

âmbito do curso de formação poderia levar a um melhor entendimento do tipo de profissional

formado no curso de Licenciatura em Pedagogia da UFMT. A esse respeito, Monteiro declara:

“Em suma: o que faço aqui é uma experiência de pôr fenômenos fisiológicos (vivências)

como produtores conceituais”.208

Para melhor compreensão dos caminhos epistemológicos percorridos por Monteiro,

apontarei outros aspectos do seu trabalho. Uma das fases do trabalho científico, tal como é

compreendido no âmbito da ciência, é a análise dos dados, todavia Monteiro209 declara que

não trata os dossiês como dados da pesquisa. Isso implicaria a clássica relação sujeito-objeto,

marcada pela postura de neutralidade e distanciamento do pesquisador em relação ao seu

objeto. Em contrário, ele os assume como conhecimento produzido pelas estudantes ao

término de sua formação, por recolher suas assinaturas, seus estilos e, com esse entendimento,

os lê como lê os autores que dão fundamentação teórica ao seu trabalho. Além disso, como a

proximidade infinitamente pequena entre autor e texto é um dos pressupostos do seu trabalho,

os dossiês não poderiam ser tratados como objeto, porque, se assim o fosse, o pesquisador

também estaria tratando indivíduos como objetos, pretensão que não existia.

Com o pressuposto de que a vida cria um estilo de pensamento, Monteiro procura

ouvir a vida das estudantes, dialogando com suas produções, dado que a vida cria forças que

impulsionam decisões e ações. Nesse sentido, busca identificar os sintomas, as forças

presentes na formação das estudantes e explicitadas nos textos. Os sintomas são suas

vivências, contadas e analisadas por elas mesmas nos trabalhos de conclusão de curso.

Procura pelas vivências da formação, por acreditar que são essas vivências que nos

patenteiam os valores e os saberes construídos ao longo do processo formativo.

208 MONTEIRO, 2004, p. 27. 209 Id., ib.

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Conforme comentário anterior, Monteiro não dá o caráter de exame ao trabalho que

realiza com os textos das estudantes. Pondera que com eles pretende dialogar: “Elas falam.

Escuto. Depois, tenho algo a dizer”.210 Fala em interpretação do conhecimento produzido

pelas estudantes e em captação hermenêutica do sentido que deram a essa formação.

Estabelece a tese de que pedagogos e professores possuem vivências que os tornam

peculiares.

O pesquisador adverte: a consideração de uma estreita vinculação entre a produção e

as vivências do autor não acarreta dar tratamento de análise psicológica a este. Nesse sentido,

comenta sobre as estudantes: “Elas não estão no divã. Não as coloco sobre mesa clínica. Não

são meus objetos. Sou ouvinte. Faço otobiografia”.211

Monteiro dá ao trabalho que realiza com os textos das estudantes a conotação de

método: “O termo que estou usando para esse método é otobiografia”; “O método

otobiográfico se propõe a ouvir a vida implicada na formação das professoras-estudantes”212 ;

“Diálogo é o que faço com a produção das estudantes. Sua denominação: método

otobiográfico”; “creio que preciso de algumas linhas para mostrar o sentido que dou ao

método”.213

Para o autor, não é possível ouvir a vida que se apresenta nos textos através de formas

de raciocínio lineares, uma vez que exige diálogo contínuo com o que foi produzido. Por esse

motivo, usa a metáfora do labirinto: “pensar num método cuja metáfora é o labirinto,

dificilmente poderia proceder com raciocínio lógico-dedutivo ou empírico-indutivo. Não é

possível tal conexão.”214 Entretanto, nos propõe a questão: como pensar não-linearmente?

Adverte: “Essa superfície complexa, de caminhos e velocidades múltiplos, exige saberes e

riscos, sem a garantia de um caminho correto”.215

Assevera que o seu trabalho não tem a pretensão de registro da verdade e que é

tomado como verdade, o que foi narrado. Frisa que não procura, prioritariamente, as

semelhanças, mas abre-se às diferenças, ao intempestivo, à assinatura. Porém, afirma que isso

não significa desprezar repetições e que a essas dá tratamento conforme sugere Deleuze: “a

repetição só é uma conduta necessária e fundada apenas em relação ao que não pode ser

210 MONTEIRO, 2004, p.27. 211 Id., ib., p. 80. 212 Id., ib., p. 74. 213 Id., ib., p. 75. 214 Id., ib., p. 78. 215 Id., ib., p. 78.

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substituído. Como conduta e como ponto de vista, a repetição concerne a uma singularidade

não trocável, insubstituível”.216 De conformidade com o pensamento de Deleuze, Monteiro

repetiu a diferença que possui cada produção ao respeitar e publicar as suas assinaturas.

Na conclusão, Monteiro (2004) retoma, em tom interpretativo, as falas das

professoras-estudantes e também acena as suas próprias vivências. A provisoriedade e o

perspectivismo são marcas de seu trabalho que faz questão de firmar.

Além do trabalho de doutorado de Monteiro, foram realizados, no âmbito do programa

de Pós-Graduação em Educação da UFMT e do grupo EFF, até o ano de 2012, mais três

trabalhos utilizando a otobiografia como procedimento metodológico e um trabalho com o

objetivo de aprofundar e ampliar os conhecimentos sobre Derrida como leitor de Nietzsche,

visando propiciar maior fundamentação teórica para a consolidação do método. A realização

desses trabalhos tem proporcionado a ampliação e o aprofundamento das teorias que dão

fundamento ao método, bem como maior experiência com os instrumentos metodológicos

como a coleta das narrativas. Às vezes por tentativas, com diversos erros e alguns acertos, o

grupo vai amadurecendo a proposta do gesto otobiográfico. A esse respeito e na picada de

Nietzsche, Monteiro dirá: “É necessário melhor fundamento para essa trilha, sem deixar de

reconhecer que são passos não muito bem equilibrados; melhor: são ensaios, tentativas,

experimentos com o pensamento”.217

O fato de os pesquisadores fazerem parte do universo estudado, até agora, tem sido

uma peculiaridade das pesquisas otobiográficas. Isso é compatível com o pensamento de

Nietzsche (Assim falava Zaratustra, Por que escrevo livros tão bons, § 1): “Para aquilo a que

não se tem acesso por vivência, não se tem ouvido.”218 Orientados por essa ideia do filósofo,

os pesquisadores do EFF acreditam que a participação do pesquisador no contexto estudado

torna a escuta mais reverberante e mais próxima da compreensão do processo de como os

indivíduos ouvidos se tornam o que são.

A otobiografia é um neologismo derridiano que se aproxima das correntes de

pensamento estruturalismo e fenomenologia, mas, também, se afasta dessas. No decorrer do

tempo, algumas correntes de pensamento tiveram destaque e deram orientação ao processo de

produção de conhecimentos. Nos primórdios do que tradicionalmente é conhecido como

ciência, destacou-se a metafísica aristotélica. Isaac Newton foi a experiência mais bem

216 DELEUZE, 2004, p. 22. 217 MONTEIRO, 2009, p. 3. 218 NIETZSCHE, Ecce Homo, Por que escrevo livros tão bons, §1.

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sucedida depois de Aristóteles com a sua Mecânica Racional. Depois disso, Auguste Comte

leva o positivismo para as ciências sociais. Em seguida, o estruturalismo aponta que é

possível um modelo de ciência sem se recorrer ao modelo newtoniano. No início de século

XX havia certa associação do caráter moral do autor com o que ele escrevia, o estruturalismo

acabou com isso. A abordagem psicológica na Filosofia, prática muito comum nos primórdios

da Filosofia no Brasil, foi superada com a influência do movimento estruturalista que

introduziu um método para o tratamento dos textos, substituindo a mediação vida-obra do

filósofo. O estruturalismo nasce do olhar para a língua porque a língua tem uma estrutura.

Compreender o ser colocado na linguagem é quase como dizer: somos o que falamos.

Corrente metodológica surgida na França no início do século XX, o estruturalismo tem

como núcleo teórico a noção de estrutura, ou inter-relações, e se inspirou no modelo da

linguística. Virou moda intelectual nos anos 60 e 70, inclusive no Brasil. É um método que

pesquisa pela estrutura que sustenta e dá significado ao discurso, que busca a compreensão do

processo de raciocínio que levou às afirmações, à estrutura do pensamento, enfim, à

essência.219

O estruturalismo põe elementos opostos em jogo. É possível duas perspectivas

contraditórias comparecerem no mesmo objeto. Porém, nessa corrente de pensamento a

dialética está presente e essa vai dizer que as coisas são ou não são e, por conseguinte, buscar

uma solução. Pois o que importa nessa linha de pensamento é a síntese. Então, o fundamento

do estruturalismo é, ainda, metafísico, pois requer um centro, um ponto de organização.

Na otobiografia comparece o jogo duplo próprio do estruturalismo. São duplos que, ao

estilo de Nietzsche, ficam em luta. Porém, não é dialética. Derrida, de todos os pós-

estruturalistas, é o que mais coloca que as coisas podem ser ditas de mais de um jeito. Por

isso, deixa buracos no texto para que o leitor coloque a sua palavra. No texto Espolones. Los

estilos de Nietzsche, fala do mesmo que fura para ferir e fura para curar. O filósofo dá à

contradição um encaminhamento diferente do que é dado na dialética. A dialética exige uma

solução mesmo que provisória e Derrida não dá uma solução. Ele diz que as palavras são

polissêmicas, polifônicas, para o leitor tirar delas inclusive contradições.

Um exemplo de perspectivas diferentes comparecendo ao mesmo tempo é o caso do

professor, pois ele, no momento do exercício profissional, não faz comparecer somente a

técnica. Assim como nos momentos de lazer, saberes e habilidades docentes, também

219 DELEUZE, 1974.

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comparecem. Por isso, uma ética docente não poderia, no exercício da profissão, deixar alheio

tudo o que ele é.

A otobiografia não consiste em análise psicológica, mas também se afasta do método

estruturalista, com o qual tem em comum apenas o trato com o texto, porém de forma

diferenciada. Quando se analisa um texto, não se pode ignorar as contribuições do

estruturalismo, a questão do signo, da estrutura, sabendo que todo texto tem uma estrutura que

vem da linguagem. No entanto, a otobiografia é um conceito de Derrida, que não era

estruturalista. Nessa esteira, a otobiografia se assemelha ao estruturalismo no que se refere ao

trabalho com o texto e seu discurso. Enquanto o estruturalismo se preocupa com as produções

simbólicas, isto é, com os signos, a otobiografia se atém aos signatários, ou seja, aos que

assinam. A otobiografia remete àquele que escreve, a partir das vivências, busca-se a

construção do pensamento do autor. Além disso, na otobiografia as narrativas são analisadas

sem pretender um sentido oculto, uma essência para além do que está sendo dito.

A otobiografia não ignora a noção do signo, das características da própria estrutura do

texto, mas, além disso, não perde a perspectiva de que o texto é a coisa mesma, não em um

sentido existencialista, mas em um sentido fenomenológico, de que as coisas revelam a minha

consciência. Então, a otobiografia se aproxima da fenomenologia, mas também se afasta

dessa. A perspectiva da dialética encaminha as coisas de um modo e Derrida encaminha de

outro modo. Ele se opõe à ideia de que não se é nada se se perder a verdade. Sendo esse um

dos principais motivos que o fez romper com a corrente fenomenológica. Derrida abandona a

fenomenologia e o estruturalismo inaugurando outra perspectiva. Para o filósofo alemão

Martin Heidegger, todas as tentativas de romper com a metafísica antes de Nietzsche foi um

niilismo fraco. Derrida propõe uma perspectiva que se aproxima de Nietzsche: vai discutir

uma metafísica da presença.

Derrida se afasta do estruturalismo ao afirmar que não podemos conhecer a mente do

autor. O filósofo dirá: coloque o logos (a palavra) na periferia e o texto no centro. Enfatiza

que não podemos continuar com as mesmas referências de antes; não há um vínculo entre o

signo e o significante. Entender é uma pretensão que a linguagem não permite, sendo assim,

podemos apenas dizer: eles disseram isso. Dessa forma, o filósofo traz um tom reflexivo para

as pesquisas nas ciências humanas.

Se bem assim, a otobiografia se afasta do estruturalismo e da fenomenologia, dá um

passo a mais. Monteiro contribui para esse entendimento com o comentário:

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a biografia, quando é tratada na Filosofia, vai além dos “acidentes empíricos” dos autores. Entretanto, também vai além dos exames estruturalistas dos textos: [...]. Opta por questionar a dynamis do texto, designando-a como a força, a potência virtual e móbil que dão ao texto vivência.220

A otobiografia vai às vivências materializadas no texto, sendo essa sua peculiaridade.

Para isso, Monteiro propõe uma perspectiva de análise diferenciada: o que quer a vida ouvida.

Conforme dirá:

O ponto fundamental é colocar o nome: a assinatura com suas cetras, o estilo, as marcas, a estampa, os sinais que permitem identificar a autoria, buscando o que quer a obra, o que quer a autobiografia, o que querem as vivências. Ouvir o logos, o “logo-tipo” – logos-typos, o ritmo: movimento de “como tornar-se o que se é.221

Monteiro acena que Nietzsche faz uma inversão do questionamento e, ao contrário dos

filósofos da Grécia antiga, que buscavam captar a essência das coisas através da interrogação

lógica, “pergunta pelos estados de alma, pelas forças que atribuem predicado às coisas”.222

Platão perguntava pelo que é, Nietzsche quer saber quem se é e, no entender de Monteiro, isto

acarreta esta explicação: “sendo uma coisa dada, quais são as forças que dela se apoderam,

qual é a vontade que a possui? Quem se exprime, se manifesta, e mesmo se esconde nela?”.223

Como citado em passo precedente, para Nietzsche, quando alguém escreve, escreve

somente sobre o que já superou. Então a escrita é a síntese da superação daquilo que

experimentou. De conformidade com o pensamento de Nietzsche, depois que digere suas

vivências e se torna o que é, a pessoa é capaz de sentar-se e escrever. Desse modo, quando

alguém elabora, fala, narra, descreve, está descrevendo aquilo que superou, digeriu e, como já

foi vivido, é a oportunidade de lhe atribuir novos significados. Por isso é que, às vezes, a

pessoa diz: “Puxa! Eu nunca tinha pensado nisso”. Isso acontece porque, nesse momento, ela

foi capaz de trazer à memória suas vivências e lhes atribuir um novo sentido.

Outra perspectiva das pesquisas realizadas com a otobiografia é a noção de sujeito.

Nessas pesquisas, o sujeito não é uma questão de espaço, mas de tempo. O sujeito não ocupa

220 MONTEIRO, 2004, p. 6. 221 Id., ib., p. 35. 222 Id., ib., p.38. 223 Id., ib., p. 38.

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um lugar porque existe o interno e o externo. Nessa linha de pensamento, o sujeito não é

tomado como uma síntese, mas como um efeito, um devir. Ideia que se aproxima do

pensamento de Espinoza (1632 – 1677), um dos grandes racionalistas do século XVII,

segundo o qual o espaço produz afetos e, ao afetar, produz um efeito que chamamos de

sujeito. Então, o sujeito é um efeito do instante e o instante é inapreensível, por isso, o sujeito

é entendido como um tornar-se, ou seja, um efeito. Deleuze224 contribui com a questão: como

pensarmos sem sujeito? E sublinha que o sujeito é um hábito da linguagem. Para o filósofo, as

diversas forças que operam nas pessoas fazem o devir. Aristóteles já sinalizava isso. Nesse

sentido, uma pessoa nunca mais será a mesma e está sempre vindo a ser outra pessoa.

Quanto à escuta, é preciso levar em conta de que base teórica esse narrador será

ouvido. Todo movimento realizado nas pesquisas otobiográficas partem de Nietzsche e,

conforme citado em passo anterior, o filósofo acena um compartilhamento de vivências

porque só se ouve o que se vive. Então, a ideia da otobiografia é tomar a vida das pessoas

(narradores, autores) e se pôr numa posição de escuta dessa vida, porque há um saber nela.

Depois, tratar o que se revela, os fenômenos, como sintomas.

Derrida225 problematiza o texto. Para ele, o significado e o significante é um jogo. O

ser que pode ser compreendido é linguagem, mas é preciso buscar o que está oculto; ler o que

não é evidente. Não há um por trás do texto, mas há um silêncio. Há sempre alguma coisa que

permanece silenciada no texto.

Na otobiografia o pesquisador se insere na história do narrador e só tem uma coisa a

dizer: o que ele tem a dizer a partir do que ouviu. Nada mais que isso. Também é preciso

frisar que, ao dizer o que ouviu, ele está dizendo mais de si mesmo. Para Nietzsche, só se

escreve com a própria vida, por isso, todo texto é autobiográfico, toda filosofia é

autoconfissão do próprio autor, assim dirá: “Aos poucos se evidenciou para mim o que toda

grande filosofia foi até o momento: a autoconfissão de seu autor, uma espécie de memórias

involuntárias e inadvertidas”.226 Todo texto diz mais do próprio autor porque é permeado

pelas suas vivências. Nietzsche via em tudo que lia uma expressão do espírito humano. Nesse

sentido, ao apresentar as leis da mecânica clássica, Isaac Newton fala de si mesmo, uma vez

que o que apresenta é a expressão da sua visão dos fenômenos da natureza. Do mesmo modo,

224 DELEUZE, 2001. 225 DERRIDA, 1973. 226 NIETZSCHE, Para além de bem e mal, §6.

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quando Albert Einstein formula a Teoria da Relatividade, ele está falando de si mesmo, de

como ele vê o mundo a partir das suas vivências.

Quando alguém fala sobre o texto do outro, se trai constantemente na sua própria

intenção. Todos os textos têm buracos, não são monolíticos e o leitor, ou ouvinte, vai

colocando significados nos espaços vazios e ao fazer isso, o tempo todo fala de si mesmo.

Deste modo, todo texto é a efetivação de um corpo. O corpo é constituído por

vivências e a otobiografia vai escutar quais são as vivências que se efetivam no texto. Vai

ouvir a vida que está em funcionamento no momento em que algo é pensado.

A questão que orienta a pesquisa otobiográfica é como alguém se torna o que é e o

texto autobiográfico é a narrativa por excelência para se perceber como uma pessoa se torna o

que ela é, melhor dizendo, para se perceber como ela vem se tornando naquele instante, pois,

conforme aludido anteriormente, no campo teórico que dá sustentação à otobiografia, a ideia

é que estamos em devir, ninguém é alguma coisa definitiva. No próprio processo de

elaboração da narrativa a pessoa se torna outra. Quando escreve, algo vem. Escreve porque

quer vir a ser. Se bem assim, o texto a constitui. Escrever é assinar, então assinar é constituir-

se. Talvez daí, a ideia de Derrida227: a assinatura inventa o signatário.

Então, quando uma pessoa escreve, escreve sobre o que passou, sobre o que não é

mais. Os seus escritos, por mais que ela tente, nunca oferecerão a amplitude da vida porque

falam do que ela foi deixando para traz. Uma coisa é o que se diz, outra é o que se vive,

porque se diz apenas do vivido. Talvez por isso a declaração de Nietzsche: “Uma coisa sou

eu, outras são meus escritos”.228

A otobiografia é interpretação, mas não é hermenêutica; escuta narrativas, mas não é

história de vida; faz escuta, mas não é psicanálise. Na otobiografia, a forma como o

pesquisador se coloca frente a um texto não é a de um intérprete privilegiado, ou seja, de

alguém que se julga capaz de descobrir o que está por trás do que o autor disse, de desvelar o

que não está explícito. A referência não é a psicologia, mas a filosofia. O texto de alguém

sobre o que o outro disse é a sua interpretação mais literal. Por isso a ideia de metáfora é

exemplar para a otobiografia. A interpretação da metáfora depende do interprete e do seu

criador. Narrativas são fundamentalmente metafóricas, sendo assim, a interpretação delas

recai tanto em quem narra como em quem as interpreta. Sendo metáfora, faz pouco sentido

227 DERRIDA, 1984. 228 NIETZSCHE, Ecce Homo, “Por que escrevo livros tão bons”, § 1.

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saber se o que foi dito é a verdade. Na otobiografia toma-se como verdade o que o narrador

diz. Mas como é entendida a verdade no campo conceitual que fundamenta a otobiografia? A

verdade é uma ficção grega, é uma palavra destituída de conteúdo. Sócrates disse: “Sei que

nada sei”. David Hume emudeceu os filósofos da sua época quando disse que não há

conhecimento; aquilo que chamamos de conhecimento não passa de hábito. Aí veio Immanuel

Kant e disse: Hume está certo e errado ao mesmo tempo. Vamos olhar na perspectiva do

mundo e não na perspectiva do sujeito. Segundo Kant, não há verdade, não há conhecimento.

Escrevemos sobre o que não sabemos, escrevemos sobre algo que nos falta, não é questão de

verdade, assevera Deleuze. Esse filósofo nos propõe a questão: por que só Física é verdade?

Solver esse caminho, estabelecer essa margem entre poesia e ciência, sublinha Deleuze. Nesse

sentido, textos de mentira como a poesia, são textos da verdade. A arte só faz sentido quando

diz coisas da vida.

Derrida229, ao modo de Nietzsche que busca conceitos na Biologia para fazer Filosofia,

busca conceitos na Psicanálise para o mesmo fim. Valendo-se de conceitos freudianos, diz

que a verdade é mulher. Isto porque como a mulher não tem uma insígnia que a represente,

ela não existe. Por isso quando ele diz que a mulher não existe, está dizendo que a verdade

não existe, não há um padrão, há um devir. A insistência em se buscar a verdade pode ser um

sinalizador da incapacidade de achá-la.

Ao dizer o que o outro disse, o pesquisador não precisa ser extremamente fiel à forma

como o outro se expressou gramaticalmente, uma vez que os erros gramaticais têm pouco

valor na otobiografia. Então, as narrativas não precisam ser transcritas na íntegra e tudo se

passa como se os textos passassem por uma revisão ortográfica. Posto assim, o pesquisador

atua como um editor.

O grupo EFF tem apostado em uma contundência de olhar o cotidiano. O

contemporâneo tem apontado que o real nunca será apreendido porque, como na fotografia, há

sempre o comparecimento de outro alguém. No caso da otobiografia, o outro é quem escuta,

ou seja, o percebido vai depender do ouvido daquele que escuta. Outro ouvinte, em outro

tempo, em outras circunstâncias, perceberá outras coisas. Mesmo não chegando à verdade, dá-

se mais um passo nesse sentido. Busca-se um saber nas vidas ouvidas e um saber não é falso

nem verdadeiro.

229 DERRIDA, 1981.

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Também, não se trata de interpretação no sentido tomado nas pesquisas tradicionais

porque não se busca o que o autor, ou narrador quis dizer com o texto, mas o que ele quer ao

dizer o texto, qual a vontade presente. Buscar o que se lê e não se ouve, buscar o que está

oculto. Trata-se, então, de pôr à luz a vontade em questão sem se colocar como um intérprete

privilegiado. Com esse intento, deve-se substituir a questão que busca o núcleo dinâmico ou

estático da coisa: o que é? Para: o que quer? Isto porque quando alguém diz, quer algo ao

dizer, há uma vontade. Ela também quer algo de quem escuta. O que a pessoa quer ao dizer,

ela diz. Cabe ao pesquisador ter competência para dizer sobre o que o outro disse. Deleuze230

sublinha que algo quer e quando quer, ele se movimenta. É esse movimento que deve ser

percebido pelo pesquisador. Quando o pesquisador diz algo sobre esse movimento, ou sobre

os sintomas, diz apenas da sua percepção, ou seja, de si mesmo. Se bem assim, o que ele quer

ao dizer é uma perspectiva adotada por aquele que escuta.

Por tudo o que já foi apresentado aqui, pode-se inferir que não há um conjunto de

enunciados sobre como ouvir uma narrativa, não se regula a escuta, se faz no exercício do

escutar. O movimento que tem sido realizado nas pesquisas otobiográficas realizadas pelo

grupo EFF é o seguinte: o pesquisador diz o que ouviu em cada narrativa, ou seja, o que

ressoou nele do que o outro falou. Em seguida, diz de si a partir do que os outros disseram na

expectativa de que os leitores do seu texto digam: “ele disse de mim também” ou “ele não

disse de mim”. Uma poesia é bem sucedida quando o leitor diz: ela diz de mim. Quando ele se

reconhece na poesia. O maior mérito de qualquer texto é o leitor dizer: o autor conseguiu

dizer o que eu sinto. Por isso, o maior mérito das pesquisas otobiográficas é dizer algo e

alguns leitores se reconhecerem nesse discurso.

A ideia é: como o autor não está presente, tudo o que se tem dele é o texto, então, diz-

se do texto e não do autor. Assim, elaboram-se novos discursos que alimentarão outros

discursos. Os discursos vão alimentando os processos e o que mais interessa são os

movimentos processuais.

Portanto, outra peculiaridade da pesquisa otobiográfica é, assim como na poesia, dizer

algo sobre o que os outros pensam instigante o suficiente para fertilizar outras ideias. O que os

narradores dizem produz ressonâncias no pesquisador para dizer o que ele tem a dizer e o que

ele tem a dizer vem das suas vivências. Ao dizer do outro, o pesquisador não dá ao discurso o

significado de vida do outro, mas de sua percepção dessa vida. Não há um sentido no texto, o

pesquisador, ao ouvi-lo, atribui-lhe um sentido, entre tantos outros passíveis de atribuição. 230 DELEUZE, s/d.

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O pesquisador diz algo do texto e não do seu autor. Mesmo falando de um nome, ele

está falando de si mesmo, está em polêmica consigo mesmo. Nesse sentido, há a

impossibilidade de um pensamento descritivo. Sendo assim, toda biografia é uma peça de

ficção porque é sempre uma aproximação devido à absoluta impossibilidade de descrever uma

vida. Então, toda biografia, toda descrição é uma criação. A vida é recriada no texto. O autor

agrega elementos para entender do seu modo. Afinal, dirá Nietzsche: “– O que são, então, as

nossas vivências? São muito mais aquilo que nelas pomos do que o que nelas se acha! Ou

deveríamos até dizer que nelas não se acha nada? Que viver é inventar?”.231

Na filosofia da identidade, quando não se tem algo pode se ter a sua representação.

Quando se fala “a coisa é”, é como se fizesse comparecer a coisa pela mobilização do

discurso, tornar presente o que não está, o que é típico da teoria das representações e que

Derrida chama de metafísica da presença dizendo que o discurso torna o indecidível,

decidível: “isso é tal coisa”. Para o filósofo, não há como decidir, não é isto ou aquilo, daí, o

conceito de indecidível. Lidar com o ambíguo não é tarefa fácil, talvez por isso a Filosofia

Clássica faz outra opção. A filosofia da presença já era posta em questão na crítica

nietzschiana da metafísica. Então, a Filosofia da Identidade diz: eu não tenho a coisa, mas

tenho a sua representação. Derrida, no entanto, dirá: eu não tenho a coisa porque não é

possível ter.

Nas pesquisas tradicionais percebe-se, quase que apenas, as evidências, não a

diferença. As pesquisas que se fundamentam no pensamento de Derrida não se acomodam na

tentativa de descobrir relações encobertas porque a todo tempo elas dispersam. Se for

encontrada uma relação, ela deve ser desfeita. Se for encontrada uma lógica, também deve ser

desfeita. Se for encontrada uma origem, se deve perdê-la. O sentido se dispersa. Deve

aparecer algo que intriga e escapa. Algo inapreensível, por isso, trágico. Reconhecer que não

se tem algo é a sensação trágica. No entanto, Derrida232 dirá: não se tem porque não é possível

ter. Como não se tem, imagina-se; a imaginação é a tentativa de trazer à presença aquilo que

não é.

Imagina-se, cria-se, inventa-se. Não é a toa que Monteiro233 usa a metáfora do

labirinto quando se refere ao método. O labirinto originalmente, na Grécia, não era uma

prisão, mas um ambiente de experimentação onde seu percurso era mais importante que a

231 NIETZSCHE, Aurora, §119. 232 DERRIDA, 1981. 233 MONTEIRO, 2004.

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saída. Um labirinto é constituído por um conjunto de percursos intrincados criados com a

intenção de desorientar quem os percorre. É de tal modo configurado que faz com que a

pessoa se perca, por isso, arquitetura para a perdição. A esse respeito, Monteiro adverte: “Essa

superfície complexa, de caminhos e velocidades múltiplos, exige saberes e riscos, sem a

garantia de um caminho correto”.234 Então, só resta inventar o caminho.

A ciência tradicional olha para a pesquisa como um quebra cabeça: existe apenas uma

cena e esta deve ser montada para depois ser interpretada. Na otobiografia, a pesquisa é vista

como um LEGO. O sistema LEGO é um brinquedo cujo conceito se baseia em partes que se

encaixam permitindo inúmeras combinações. Nas pesquisas otobiográficas vão sendo

estabelecidos objetivos com o que se consegue no percurso. Quem vai criando os nexos é o

pesquisador: “o meu LEGO diz isso”. O pesquisador faz a pergunta da constituição de si: do

que ele é feito? O que o compõe? Nomeia as forças, cria a trama da constituição. A clínica

está na sua mão. Desse modo, a potência do pesquisador é possível de ser efetivada. Falo aqui

de potência e não de competência, uma vez que existem muitos pesquisadores trabalhando

com grande competência segundo as formas tradicionais de se fazer pesquisa.

De acordo com Lopes235, Derrida, ao propor a desconstrução, confere status de

identidade à diferença, rompe com a univocidade, o unitário e insere vocábulos que

engendram multiplicidade e ambivalência. A autora sinaliza que o trabalho da escuta e da

escrita no método otobiográfico também é atravessado pelo phármakon de Platão (427 a.C. -

347 a .C). Para esse filósofo, a linguagem é um phármakon. O termo grego phármakon, que

deu origem à palavra pharmáco, daí a nossa palavra pharmácia, possuir três sentidos

principais: remédio, veneno e cosmético. Com a linguagem, Derrida tem o aconchego

suficiente para falar do novo. Aquele que escuta, ao contrário dos filósofos, que falam. Ele

encontra nela a possibilidade de ser inteiro (sem cisão), sem o embate que teria com outros

filósofos.

Há uma questão metodológica em Derrida236. Ele aponta o paradoxo da escritura: o

que se escreve, se escreve para esquecer o que está na memória. Como em toda escritura, o

jogo comparece. É o anúncio da incompletude. Sendo jogo, qualquer tentativa de

intermediação deve ser evitada.

234 MONTEIRO, 2004, p. 78. 235 LOPES, 2010. 236 DERRIDA, 1973.

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A escrita é escatológica e, ao escrever, algo se perde. O que lembra o pensamento

trágico: a alegria de dizer sim à perda. Derrida escapa disso porque para ele, nada se perde

porque nada se tem.

Nos exames estruturalistas, não se buscam as referências fora do texto. A esse

respeito, Derrida237 dirá: não existem referências. Assegura também esse pensador que não é

possível estabelecer uma origem, um centro, a partir do qual se tem um sentido. Ou mesmo

uma fonte da verdade de modo que, ao se conhecer essa fonte, encontra-se a essência.

Portanto, de acordo com o filósofo, a condição para a percepção do texto é a dissolução de um

leitor centrado. A proposta de Derrida é buscar a exorbitância, uma causalidade que tira do

centro, que deixa fora da órbita. Qualquer empenho em considerar um centro, uma origem, o

filósofo identifica como metafísico. O que não tem uma essência, uma origem é um devir.

Não havendo um centro privilegiado, as coisas são geradas por diversos processos. Ao

elucidar o pensamento derridiano, Santiago enfatiza: “O conceito de jogo* propõe o aleatório,

abalando o centro (origem e fim). Sem centro, o texto é uma estrutura que deve ser pensada na

sua estruturalidade*, e essa natureza dinâmica é que possibilitará a polissemia*”.238

Há um estilo em Derrida. Para ele, toda filosofia tem a potência de dizer e de esconder

coisas. O apolíneo e o dionisíaco estão presentes nos textos; não há dose, não há controle. Há

a luta entre a racionalidade apolínica e o instinto dionisíaco. Para Nietzsche, o nosso instinto

mais antigo é o de rebanho e o rebanho quer a ordem. Derrida dirá que a obsessão pela ordem

é a nossa experiência cultural. A ideia de que há uma ordem é tipicamente grega, previsível.

Ao contrário, Derrida tem um texto labiríntico, texto para perdição. A experiência da vertigem

é fundamental nos textos do filósofo da desconstrução. Sua proposta é: experimente dizer sem

definir.

A Filosofia tradicional sempre buscou a totalidade nos textos, um elemento íntegro. A

proposta de Derrida239, porém, é não olhar o texto como uma peça homogênea. Para o

filósofo, um texto é bom quando é heterogêneo, quando levanta questões e, mais do que isso,

quando é possível encontrar o diverso no mesmo.

237 DERRIDA, 1973. 238 SANTIAGO, 1976, p. 5. 239 DERRIDA, 2001.

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Para Derrida240, há algo a aprender com a psicanálise. Essa ciência não tem um quadro

de referência pleno, se faz ouvindo o outro. Não havendo uma referência anterior, não há o

que se prestar atenção, há um acontecimento, um fenômeno, uma aparição, um sintoma.

Com a otobiografia, busca-se escutar a diferença nas narrativas e dar tratamento

diferenciado à repetição. Visando melhor compreensão sobre essa questão, busquei as ideias

de Deleuze, leitor de Nietsche, sobre diferença e repetição.

2.3 IDEIAS COMPLEMENTARES

A seguir apresentarei algumas ideias de Deleuze que contribuem para a perspectiva da

escuta, ou seja, da não generalização, da busca da singularidade de cada professor, bem como

para melhor compreensão das instituições como meio de manifestação e satisfação dos

instintos das pessoas que delas participam.

2.3.1 Quando a Repetição não é a Generalidade

Assim como Derrida, Gilles Deleuze (1925 – 1995) também é leitor de Nietzsche. Na

década de 1960, Deleuze e Michel Foucault começaram a ler Nietzsche. Levaram a tradução

das obras completas do filósofo alemão para o francês e Nietzsche começou a ser lido sem ser

associado ao nazismo, marxismo ou pós-modernismo.

Há um senso comum na área das Ciências Humanas e Sociais de que quando algo

começa a repetir, aí está a generalidade. A indução é o tipo de raciocínio mais usado nas ditas

ciências da natureza, em cujo âmbito predomina o método experimental. A partir da

observação de um número considerado suficiente de casos particulares, conclui-se uma

verdade geral. A generalização implica reunir coisas supostamente semelhantes sob um

mesmo conceito ou casos supostamente semelhantes sob uma mesma “lei”. As pesquisas na

área das ciências humanas e sociais começaram posteriormente às pesquisas na área das ditas

ciências da natureza, ou seja, ciências exatas e biológicas. Nos primórdios da produção

científica nas ciências humanas e sociais adotou-se o mesmo tipo de raciocínio utilizado nas

ciências da natureza: costuma-se observar o que repete, o que possui maior frequência; daí a

240 DERRIDA, 2001.

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razão de tabular as respostas frequentes com o intuito de capturar a quantidade de pessoas que

possuem, o que se julga, o mesmo pensamento sobre algo. Das quantidades de repetições

encontra-se o que aquele tipo pensa. E, certamente, com a generalização, fica de fora a

diferença. A generalização é, portanto, um tipo de raciocínio, ou de pensamento, que demanda

a substituição como ação. Uma representação é um objeto físico ou mental, que para certos

efeitos, é suposto substituir a coisa.

Deleuze diz absolutamente o contrário de toda a história da Filosofia. O filósofo abre

seu livro Diferença e Repetição com a sentença: “A repetição não é a generalidade”.241 Nessa

obra, o autor aponta distinções entre dois conceitos: repetição e generalidade. Também tece

críticas à aplicação da generalidade como tipo de raciocínio nas pesquisas.

As pesquisas na área das ciências humanas e sociais, regularmente, têm como método

o das representações e como concepção a noção de sujeito. Deleuze242 se opõe a essa linha de

raciocínio e afirma que o pensamento moderno nasce da falência da representação e da perda

das identidades.

A primeira distinção entre repetição e generalidade apontada por Deleuze243 é do

ponto de vista das condutas, das ações. Quando fala de repetição, ele não está falando da

reprodução do mesmo, ou do semelhante, mas da produção da singularidade e do diferente.

Para o filósofo, repetir é uma ação, uma conduta em relação a algo único ou singular, algo que

não tem semelhante ou equivalente, por isso não pode ser substituído, representado. O

insubstituível, só pode ser repetido. Não tendo semelhante ou equivalente, é da ordem da

diferença, daí a ideia de que a repetição potencializa a diferença. Portanto, repetir é

comportar-se, é diferenciar-se. Uma fotografia, uma obra de arte, um poema, são repetidos

porque não podem ser substituídos. Poesia não pode ser feita paráfrase, piada explicada não

tem graça. Tradicionalmente, entende-se que quando algo repete é porque é igual ou

semelhante, mas para Deleuze é o contrário, repete-se o que é diferente.

Deleuze, o repetido não é a coisa mesma, por isso é uma ação externa. Não segue um

modelo, daí a sua feição interna. Deleuze também chama a atenção para a oposição entre

generalização e repetição, apontando a primeira como generalidade do particular e a segunda

como universalidade do singular.

241 DELEUZE, 2009, p. 19. 242 Id., ib. 243 Id., ib.

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A segunda distinção apontada pelo filósofo é do ponto de vista da lei. Afinal, dirá que

“a lei só determina a semelhança dos sujeitos que estão a ela submetidos e sua equivalência a

termos que ela designa”.244 A semelhança e a equivalência são as duas grandes ordens da

generalidade, sendo assim, a generalidade é da ordem das leis. Existe, então, distinção entre a

repetição baseada na semelhança e a repetição baseada na singularidade. A última não segue

um modelo e é destacada pelo filósofo como repetição diferencial. Nesse caso, a diferença

não é conceituada, é diferença em si e não em relação a alguma coisa.

A lei constrange os sujeitos da lei e, destarte, limita sua potência de repetir, de

diferenciar-se. Posto assim, repetir é escapar à lei. Nesse sentido, Deleuze dirá: “Se a

repetição pode ser encontrada, mesmo na natureza, é em nome de uma potência que se afirma

contra a lei”.245

Deleuze246 aponta como características da repetição diferencial: a singularidade, a

universalidade, o notável, a instantaneidade e a eternidade. Então, o que se repete segundo

essa concepção, não pode ser reduzido à generalidade; só pode ser universalizado; ocorre uma

única vez; acontece inesperadamente; não tem origem e nem finalidade. O filósofo pensa um

programa de uma filosofia da repetição segundo Kierkegaard, Nietzsche e Péguy, como ele

diz, o pastor, o anticristo e o católico. Como não pensar em ritos? Poderíamos ver a repetição

como uma espécie de operação rito, algo feito por Freud. Com Deleuze, a filosofia da

repetição, entendida também como filosofia da diferença, tem como correspondente um

programa do teatro, nomeadamente, o Teatro Trágico, tendo na repetição a máscara

significante. Como ele diz, “É porque a repetição difere por natureza da representação que o

repetido não pode ser representado, mas deve sempre ser significado, mascarado por aquilo

que o significa, ele próprio mascarando aquilo que ele significa.”247. A máscara é, então, o

verdadeiro sujeito da repetição. Teatro Trágico sem representação. A cena não se vincula a

algo oculto, cuja manifestação requer outro objeto que a represente. Afinal, “a repetição tem

menos a função de identificar acontecimentos, pessoas e paixões, do que de autenticar papéis,

selecionar máscaras.”248 Mas, deixando de lado o senso comum que nota na máscara o véu da

verdade, como é frequente nas considerações das pesquisas que se propõem a desvelar a

verdade, lembremos Foucault, para quem atrás das máscaras só se encontram outras máscaras.

244 DELEUZE, 2009, p. 20–1. 245 Id., ib., p. 21. 246 Id., ib. 247 DELEUZE, 2009, p. 42. 248 Id., ib., p. 43.

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Signos remetem a outros signos infinitamente. Deleuze249 dirá que a repetição não está sob as

máscaras, mas forma-se de uma máscara para outra, com e nas variantes. Nesse sentido, é

preciso abandonar o pensamento que organiza, que cria categorias.

Deleuze250 usa como ilustração de diferença na repetição o caso da reprodução de uma

figura sob um conceito absolutamente idêntico. Diz que o artista não justapõe exemplares da

figura, mas, de cada vez, combina um elemento de um exemplar com outro elemento de um

exemplar seguinte. “No processo dinâmico da construção, ele introduz um desequilíbrio, uma

instabilidade, uma dissimetria, uma espécie de abertura, e tudo isto só será conjurado no efeito

total” (DELEUZE, 2009, p. 44). Elucida que chamamos “signo” àquilo que se passa num

sistema dotado de elementos de dissimetria, provido de ordens de grandeza discordantes; um

efeito que implica uma diferença interna, não obstante deixando no exterior as condições da

sua reprodução.

Deleuze (2009) distingue dois tipos de repetição: estática e dinâmica. A repetição

estática resulta da obra, remete para um mesmo conceito e deixa subsistir apenas uma

diferença exterior entre os exemplares. A repetição dinâmica é “evolução”, é repetição de uma

diferença interna, de uma diferença sem conceito, não mediatizada. Elucidando melhor a sua

ideia, dirá: “Uma é repetição “nua”, a outra é repetição vestida, que se forma a si própria

vestindo-se, mascarando-se, disfarçando-se”.251 Sobre a interdependência entre as duas,

afirma: “a verdade do nu está na máscara, no disfarce, no travestismo”.252

Os signos são os verdadeiros elementos do teatro. Testemunham potências da natureza e do espírito, potências que agem sob as palavras, os gestos, as personagens e os objetos representados. Eles significam a repetição, entendida como movimento real, em oposição à representação, entendida como falso movimento do abstrato.253

Deleuze nos propõe encontrar o Si da repetição, ou seja, a singularidade naquilo que se

repete, pois não há repetição sem um repetidor.

Este programa de uma filosofia da repetição, no entender de Deleuze, deve:

249 DELEUZE, 2009. 250 Id., ib. 251 Id., ib., p. 50. 252 Id., ib., p. 50. 253 Id., ib., p. 49.

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1) Fazer da própria repetição algo novo; ligá-la a uma prova, a uma seleção, a uma prova seletiva; colocá-la como objeto supremo da vontade e da liberdade...2) Opor a repetição às leis da Natureza...3) Opor a repetição à lei moral; fazer dela a suspensão da Ética; o pensamento do para além do bem e do mal...4) Opor a repetição não só às generalidades do hábito, mas às particularidades da memória.254

Temos aqui, um programa oposto ao da sociologia. Se para essa área a repetição é da

ordem da generalidade, ou seja, é na repetição que encontramos a essência do que é dito por

muitos, aqui a repetição terá outro efeito. Nela há: 1) o objeto do querer, como algo que seja

novo e expressão da liberdade; 2) ao mesmo tempo, o desejo de ser si mesmo; 3) ausência de

sentido moral, portanto, sem cabimento de juízo de bem ou mal, pois é da ordem do privado;

4) abandono da retrospecção, pois vista como pensamento do futuro.

Como no Teatro Trágico, a cena não se vincula a algo oculto, cuja manifestação

requer outro objeto que a represente. Para Deleuze, teatro é o movimento real, dramatização

de ideias. Parafraseando Nietzsche, Deleuze dirá:

Trata-se, também aí, para Nietzsche, de preencher o vazio interior da máscara num espaço cênico: multiplicando as máscaras superpostas, inscrevendo a onipresença de Dioniso nesta superposição, colocando aí o infinito do movimento real como a diferença absoluta na repetição do eterno retorno.255

“Eis o que nos é dito: este movimento, a essência e a interioridade do movimento, é a

repetição, não a oposição, não a mediação”. 256 No assim se expressar, o autor está afirmando

que é a repetição que tudo movimenta, ao contrário de Hegel para quem a oposição e a

contradição, via mediação, encontram-se na origem de todo o movimento das coisas.

Assegura também esse pensador que “As sucessões especulativas substituem as coexistências;

as oposições vêm recobrir e ocultar as repetições”.257 Nesse sentido, o movimento é a

repetição e é este o verdadeiro teatro.

Vimos haver uma repetição que não se confunde com a generalidade, mais ainda, a

repetição e a generalidade opõem-se do ponto de vista da conduta e do ponto de vista da lei.

Deleuze aponta, também, uma terceira oposição, agora do ponto de vista do conceito ou da

representação: “Há uma grande diferença entre a generalidade, que sempre designa uma

254 DELEUZE, 2009, p. 25-7. 255 Id., ib., p. 30. 256 Id., ib., p. 30-1. 257 Id., ib., p. 31.

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potência lógica do conceito, e a repetição que testemunha a impotência ou o limite real do

conceito”.258 A repetição aparece, pois, como a diferença sem conceito. Ela exprime uma

potência própria do existente, que resiste a toda a especificação pelo conceito.

Mais ainda, o filósofo aponta a existência de um momento em que a repetição e a

representação se misturam, se confrontam, porém, sem se confundirem, uma refletindo-se na

outra, nutrindo-se da outra.

Ao contrário do método das representações sociais, segundo o qual é na repetição que

se encontra a essência do que é dito por muitos, em Deleuze, a repetição remete a uma

potência singular. De acordo com o filósofo, pelo disfarce e pela ordem do símbolo, a

diferença é compreendida na repetição. Parafraseando Deleuze, Silva dirá: “a repetição é o

motor da diferença”,259 ou seja, a diferença tem na repetição sua potência.

Na Filosofia da Diferença, ao contrário, o que é diferente, e por isso único, é o que

indica o que somos: Humano, demasiado humano, diria Nietzsche. A aposta que Deleuze faz

é que a diferença é da ordem da profundidade, ou da verticalidade: “o que há de mecânico na

repetição, o elemento de ação aparentemente repetido, serve de cobertura para uma repetição

mais profunda que se desenrola numa outra dimensão, verticalidade secreta em que os papéis

e as máscaras se alimentam no instinto de morte”.260 Para o filósofo é possível fazer ciência

com o único porque ser único é o que repete e isso é que permite a diferença.

Neste trabalho, não faço interpretação, mas busco o movimento nas falas dos

professores. Quando falam, os entrevistados falam de si; diferem entre si; afirmam-se como

individualidade e, como boa ouvinte, procuro perceber a diferença no que se repete. Ao

contrário dos procedimentos metodológicos tradicionais que buscam a repetição pelo

pressuposto de que a repetição diz de todos, isto é, generaliza, não procuro a repetição, mas

reconheço que ela pode ocorrer. Nesse caso, proponho buscar na repetição, a idiossincrasia, a

singularidade, a diferença. Afinal, como narra Deleuze: “A diferença habita a repetição”261,

ou ainda, “A diferença está entre duas repetições. Não será isto dizer, inversamente, que a

repetição também está entre duas diferenças, que ela nos faz passar de uma ordem de

diferença a outra?”.262 Citando Tarde: “a repetição como passagem de um estado das

258 DELEUZE, 2009, p. 35. 259 SILVA, 2000, p. 2. 260 DELEUZE, 2009, p. 41. 261 Id., ib., p. 118. 262 Id., ib., p. 119.

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diferenças gerais à diferença singular, das diferenças exteriores à diferença interna — em

suma, a repetição como o diferenciador da diferença”.263

Assegura também esse pensador que:

Pensa-se no espaço cênico, no vazio desse espaço, no modo como ele é preenchido, determinado, por signos e máscaras, através dos quais o ator desempenha um papel que desempenha outros papéis; pensa-se como a repetição se tece de um ponto notável para outro, compreendendo em si as diferenças.264

Pois bem, quando tomo as narrativas dos professores, é de máscaras que falo. Não

busco o sentido oculto, mas as máscaras que comparecem na entrevista abecedária. Falo de

cenas. Falo de teatro. Ouço repetições e diferenças como máscaras, cujo sentido não é dado,

mas produzido por mim que escuto. As repetições são ressonâncias no meu ouvido, por isso,

dizem mais de mim do que deles. A visão da repetição é daquele que enxerga e não da coisa

que se mostra. Queremos entrar no ritmo, no balanço da natureza. A natureza se repete, isso

para o filósofo escocês David Hume (1711-1776), que se tornou célebre por seu empirismo

radical e seu ceticismo filosófico, é coisa nossa porque somos incapazes de perceber a

variação, assim, somente enxergamos o padrão. Somos exercitados à repetição. Talvez por

isso a academia estar convencida de que a repetição é a generalidade.

Conforme o exposto, este trabalho de doutorado está inserido em um contexto onde se

busca fazer ciência da diferença, o que acarreta produzir ciência para mostrar o singular, o

único, uma vez que é esse que produz a diferença. O desafio é como fazer aparecer o único.

Como olhar para a pessoa como única e não substituí-la por nada. E depois outras pessoas

olharem para o que for falado sobre ela e dizerem: eu me identifico com isso. A diferença é

mascarada pelo comum e, quando isso acontece, não percebemos as singularidades,

percebemos o que Nietzsche denomina de instinto de rebanho. Lembremos que Deleuze é

leitor de Nietzsche. E “rebanho” é da ordem do positivismo, da metafísica, não da filosofia da

diferença. O empenho atual do grupo EFF é aprender a ouvir as repetições e não as

generalidades. E ouvi-las como algo que não pode ser substituído. O exercício é não substituir

um caso por outro, mas ouvi-lo como se fosse único. Se conseguirmos perceber a diferença,

aquilo que é único, isso é que indica o que somos: “Humano, demasiado humano”.

263 TARDE apud DELEUZE, 2009, p. 119. 264 DELEUZE, 2009, p. 31.

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Então, de acordo com o pensamento deleuziano, é preciso aprender a ouvir com o

mínimo de espaço para que o indivíduo diga de si. Buscar condições e possibilidades para o

surgimento do diverso, do singular, do peculiar. Para que a diferença seja percebida é preciso

ver na coisa o que ela é por ela mesma, sem compará-la com outra coisa. A diferença em si e

não em relação a alguma coisa. As narrativas dos professores são como fotografias, se forem

realizadas em outros momentos, serão diferentes. Por isso, cada narrativa é ouvida como

única. Como já foi colocado aqui, a busca da otobiografia é escutar a diferença e como tratar a

repetição. Nesse sentido, a expectativa dos que trabalham com a otobiografia é que a

pergunta: o que ele quer ao dizer forneça o caminho da profundidade, da diferença. E assim,

traga à tona a densidade e a profundidade da experiência humana. Queremos criar um saber, e

é esse saber que queremos distribuir. Um saber com densidade, um saber que, assim como na

boa poesia, ao ser dito, possa ser distribuído. Ao colocarmos as questões: por que com tantas

pesquisas não estamos tendo grandes progressos na melhoria da educação? Será que não

estamos apenas querendo que os nossos alunos se enquadrem em padrões pré-estabelecidos?

Propomos: talvez precisemos um pouco de neoceticismo do tipo deleuziano.

Este trabalho tem como foco pessoas envolvidas com uma instituição. Por isso, o jogo

da singularidade e o coletivo estão sempre presentes. Para Deleuze265, toda instituição é o

resultado dos instintos das pessoas que nela estão. Sendo assim, a universidade é o resultado

dos instintos dos professores, dos técnicos administrativos e dos alunos que nela estão,

principalmente, dos professores e técnicos, que nela permanecem por mais tempo. À medida

que vai mudando o quadro desses três segmentos, a universidade também vai modificando-se.

2.3.2 Instituições como Manifestação e Meio de Satisfação de Instintos

A função primordial da Filosofia, mais do que conceituar, é buscar relações entre os

conceitos. Deleuze abre seu texto Instintos e Instituições sentenciando: “Os termos instinto e

instituição são empregados para designar essencialmente procedimentos de satisfação”.266

Desta forma, aponta relação direta entre os dois conceitos.

Confundidas pelo senso comum com a ideia de entidades ou estabelecimentos, as

instituições costumam ser designadas como meros lugares com certa organização que lhes

265 DELEUZE, 2005. 266 Id., ib., p. 20.

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legitima o título. De todas as diferentes concepções de instituição, a jurídica é a mais

proeminente. Deleuze267 pensa em outro domínio, para ele, as instituições são a emergência

dos instintos dos que as constituem. Têm a marca das ecceidades e a lógica dos seus instintos.

Isso explica melhor o que leva as pessoas a formarem estas e não outras instituições.

Um instinto quer sempre se satisfazer e se satisfaz na instituição. As pessoas vão se

associando às instituições que alimentam os seus instintos, conforme dirá Deleuze: “Isso quer

dizer que toda experiência individual supõe, como um a priori, a preexistência de um meio no

qual a experiência é levada a cabo, meio específico ou meio institucional”.268

Deleuze269 ajuíza que a instituição é um sistema organizado de meios e é nisso que se

diferencia da lei. Para o autor, a lei é uma limitação das ações visto que é sempre impeditiva:

criada para impedir que o outro faça ou não faça. Por outro lado, a instituição é modelo

positivo de ação, pois o querer fazer parte dos instintos. Assim, dissolve-se a ideia de algo que

seja o centro das decisões.

A ideia de instinto é fundamentalmente fisiológica, deste modo, a instituição é o que

as pessoas são. No caso de uma pessoa que é submetida a um transplante, a troca do órgão

muda muita coisa, porque a sua experiência de corpo é modificada, ela tem outro corpo. Da

mesma forma, a experiência da instituição é modificada com qualquer mudança que ocorra no

seu quadro de constituintes. Mudar as pessoas sem que a instituição mude é desejo, mas não é

a efetividade, pois aparentemente imóveis e intocáveis, as instituições são constituídas de

partes que se movimentam, imperceptivelmente, de modo a garantir sua forma sempre

arriscada a sucumbir ou deformar-se.

São os instintos que dão nome à instituição. Um exemplo: a Universidade Federal de

Mato Grosso, desde os seus primórdios, é conhecida também por Unisselva. Como narra

Dorileo270, a Unisselva foi proposta pelo primeiro reitor da Universidade, Gabriel Novis

Neves e, naturalmente, pelo grupo que lhe dava apoio, composto por mato-grossenses, cujos

instintos clamavam por responsabilidade geográfica e histórica numa dimensão sócio-

antropológica.

267 DELEUZE, 2005. 268 Id., ib., p. 20. 269 Id., ib. 270 DORILEO, 2005.

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Deleuze271 afirma que os organismos têm tendências que se satisfazem nas

instituições, no entanto, a instituição não se explica pelas tendências, uma vez que para

mesmas tendências existem diversas possibilidades de instituições. Ao abordar a questão da

utilidade das organizações institucionais, o autor pondera: “A tendência é satisfeita por meios

que não dependem dela”.272 Desse modo, a formação das instituições vem sempre

acompanhada de coação, maltrato, transformação e sublimação das tendências dos que as

constituem. Dando continuidade ao raciocínio, o filósofo nos propõe as questões:

não basta dizer que “a instituição é útil”, pois é preciso ainda perguntar: para quem ela é útil? Para todos aqueles que dela têm necessidade? Ou antes, para alguns (classe privilegiada), ou somente para aqueles que põem em funcionamento a instituição (burocracia)?273

Nesse sentido, Deleuze dirá: “Não há tendências sociais, mas somente meios sociais de

satisfazer as tendências”.274

De acordo com o filósofo, “Toda instituição impõe ao nosso corpo, mesmo em suas

estruturas involuntárias, uma série de modelos, e dão à nossa inteligência um saber, uma

possibilidade de prever e de projetar”.275

Deleuze conclui o seu texto com a afirmação: “o homem não tem instintos, ele faz

instituições. O homem é um animal em vias de despojar-se da espécie. Do mesmo modo, o

instinto traduziria as urgências do animal, e a instituição as exigências do homem.”276 Um

paradoxo: sendo as instituições elaborações humanas, quem estabelece esses padrões de

exigência são os próprios homens que, também, queixam-se das normas e valores que lhes são

impostos. Dito de outra forma, a vida em instituições é feita por todos nós que criticamos as

instituições que construímos. Luta eterna entre a necessidade de satisfação dos instintos e as

leis que viabilizam as instituições. Algo de trágico, a vida como ela é.

Se bem assim, as instituições refletem os nossos modos de existência e somos o que,

em geral, achamos delas, pois as instituições somos nós.

271 DELEUZE, 2005. 272 Id., ib., p. 21. 273 Id., ib., p. 21. 274 Id., ib., p. 22. 275 Id., ib., p. 22. 276 Id., ib., p. 23.

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Na concepção deleuziana, as instituições são formas organizadas de busca de

satisfação, que a experiência individual transformou em tendência da espécie, portanto, são

espaços de singularização, de produção de vida e, por que não dizer, de expansão, de

efetivação da vontade de potência. Todavia, também existe o aspecto de estreitamento e

redução da vida. Nessa perspectiva, as instituições aparecem como guardiãs da moral e dos

bons costumes.

Neste trabalho procuro ouvir a vida dos professores e a vida está em toda parte,

estruturada em instituições como escola, igreja, clube, família, universidade...Procuro ouvir

nas vivências institucionais, os elementos que constituem os estilos da docência.

2.3.3 A vida como obra de arte

No texto A escritura e a diferença: uma leitura de Jacques Derrida, Monteiro277

discorre sobre a arte do estilo a partir de três ideias. A primeira delas vem de um texto do

Ecce Homo de Nietzsche:

Direi ao mesmo tempo uma palavra geral sobre a minha arte do estilo.

Comunicar um estado, uma tensão interna de phatos por meio de signos, incluído o tempo desses signos – eis o sentido de todo estilo; e considerando que a multiplicidade de estados interiores é em mim extraordinária, há em mim muitas possibilidades de estilo – a mais multifária arte do estilo de que um homem já dispôs. Bom é todo estilo que realmente comunica um estado interior, que não se equivoca nos signos, no tempo dos signos, nos gestos – todas as leis do período são arte dos gestos. Nisso meu instinto é infalível. Bom estilo em si – pura estupidez, mero “idealismo”, algo assim como o “belo em si”, como o “bom em si”, como a “coisa em si”.278

No seu trabalho de doutorado, Viesenteiner tece comentários sobre o limite da

linguagem ordinária de signos para comunicar o pathos de uma vivência. Para o autor,

“Deixar-se compreender significa, porém, comunicar suas vivências com base em um

determinado conjunto de signos ‘em comum’ de comunicação, que por sua vez, é o que se

torna ‘consciente’ para ser comunicado”.279 Lembra, no entanto, que para Nietzsche, “o

pensar que se torna consciente é apenas a parte menor, a mais superficial, a pior, digamos: –

277 MONTEIRO, 2013. 278 NIETZSCHE, Ecce Homo, Por que escrevo livros tão bons, § 4. 279 VIESENTEINER, 2009, p. 327.

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pois apenas esse pensar consciente ocorre em palavras, ou seja, em signos de

comunicação”.280 Se bem assim, o que comunicamos de nossas vivências são, portanto,

apenas abreviação, simplificação, empobrecimento da própria vida, pois a linguagem nunca

poderá comunicar o pathos próprio da vida, aquilo que em uma vivência é original, mas

apenas as vivências comuns, ou seja, as que são compartilhadas com todos os outros.

Para comunicar algo que é pathos e, por isso, não compreendido conceitualmente,

Nietzsche cria uma linguagem própria, a sua ‘arte do estilo’. Ele comunica seus pensamentos

não através de uma doutrina conceitual, plena de fundamentos, sistemática, etc. –, mas através

de uma linguagem que precede o conceito, uma linguagem ditirâmbica, pois devemos ler seus

textos como se ouve música.281

Na esteira do pensamento de Nietzsche, os corpos são afetados, dizendo de outra

forma, são acometidos por afetos. Monteiro282 diz que estilos comunicam os afetos

incorporados, por isso eles têm sentido. Nietzsche, afirma que o sentido de todo estilo é

comunicar um estado interior. O filósofo alemão entende estilo como sintoma, enquanto

manifestação de uma tensão interna, de um pathos: “Comunicar um estado, uma tensão

interna de phatos através de signos, incluído o ritmo desses signos – eis o sentido de todo

estilo”.283 Posto assim, um estilo emana de um estado interior, de uma tensão interna. A

tensão interna é uma configuração de forças que afetam o corpo. É uma questão de forças e de

forma, ou configuração, dessas forças que estão sempre em relação umas com as outras. Um

corpo não é constituído por apenas uma configuração, mas por uma multiplicidade delas, por

isso, também existem diversas possibilidades de estilo. Portanto, um estilo não decorre do

domínio de uma configuração, mas da multiplicidade de tensões internas ou estados

interiores. Sobre essa pluralidade de forças, Nietzsche dirá:

A uma pluralidade de forças ligadas mediante um processo comum de alimentação, a denominamos “vida”. A esse processo e alimentação pertencem como meios de sua realização, o que se chama de sentir, representar-se, pensar, ou seja: 1) A resistência contra as demais forças, 2) Uma organização das mesmas segundo sua forma e seu ritmo, 3) Uma avaliação em função de sua assimilação ou rejeição.284

280 NIETZSCHE, A Gaia Ciência § 354. 281 VIESENTEINER, 2009. 282 MONTEIRO, 2013. 283 NIETZSCHE, Ecce Homo, Por que escrevo livros tão bons, § 4. 284 NIETZSCHE, Fragmentos póstumos 24 [14] do inverno de 1883.

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Monteiro285 entende que quanto maior a quantidade de exposições às tensões

interiores, maior será a possibilidade de estilos. Existem tantos estilos quanto os estados

interiores. O autor também pondera que o contato com o diverso da arte oportuniza a

exposição a novas configurações de tensões internas e, com isso, outras possibilidades de

estilo.

Sobre o estilo de Nietzsche fazer filosofia, Marton comenta:

É no âmbito da relação entre autor e leitor que o autor e seu alter ego situam as questões estilísticas. Ao escolher um estilo, burilá-lo, aprimorá-lo, Nietzsche/ Zaratustra seleciona o seu leitor. Repele quem lhe é estranho; atrai quem é do seu feitio.286

A este respeito, dirá Nietzsche:

Todo espírito, todo gosto mais elevado, escolhe para si os seus ouvintes, quando quer comunicar-se; ao escolhê-los, impõe limites a ‘os outros’. Aí tem origem todas as leis mais sutis de um estilo: elas afastam, criam distância, proíbem ‘a entrada’, a compreensão, como se diz, - enquanto abrem os ouvidos dos que são de ouvidos aparentados aos nossos.287

Tudo se passa como se o estilo fosse uma senha que o leitor precisa decifrar para ser

digno da cumplicidade com o pensamento do filósofo; condição básica para a comunicação

entre Nietzsche e seu leitor.

De acordo com Marton, “Enquanto manifestação de um estado de pathos, o estilo

indica quais impulsos dominam o autor num determinado momento, quais afetos dele se

apoderam e, por conseguinte, quais estimativas de valor nele se expressam”.288 Sendo assim,

não existe um único estilo que seja bom para todos os autores, ou mesmo, um que seja bom

para um mesmo autor. Para Nietzsche, “Bom é todo estilo que realmente comunica um estado

285 MONTEIRO, 2013. 286 MARTON, 2000, p. 41. 287 NIETZSCHE, A gaia ciência, §381. 288 MARTON, 2000, p. 42-3.

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interior”.289 Nesse sentido, quem acha que existe um estilo que seja bom para todos, apenas

está expressando os instintos que o dominam.

Ao se referir ao seu estilo de filosofar, e de modo especial a Assim falava Zaratustra,

Nietzsche fala de arte: “E até lá não haverá ninguém que compreenda a arte que aqui se

esbanjou; jamais alguém pode esbanjar tantos meios artísticos novos, inauditos, em realidade

só para isso criados”.290 Sobre essa obra, Marton291 comenta que, nela, o filósofo recusa-se a

opor ciência e sabedoria. Assim, agencia um conteúdo filosófico e uma forma literária, que se

mostram indissociáveis. Retorna ao gênero do poema didático e, com isso, apresenta-se como

o renovador moderno da língua mais antiga da filosofia.

Nietzsche se referia ao seu Zaratustra de maneiras muito distintas: sinfonia, pregação

moral, poesia, evangelho, livro sagrado. No limite, a obra não se identifica com nenhum

desses gêneros em particular. O filósofo escrevera para o seu editor dizendo que esse livro

bem poderia ser “algo para o qual ainda não existe nome”. O que mostra que ele tinha ciência

das múltiplas implicações da forma estilística que adotou.

Nietzsche tinha uma dificuldade: encontrar a linguagem que julgava adequada para o

que tinha a dizer. Por conseguinte, inaugurou um estilo de filosofia que, talvez, servisse

apenas a ele:

Moro em minha própria casa,

Nada imitei de ninguém

E ainda ri de todo mestre,

Que não riu de si também.

Sobre minha porta.292

A segunda ideia apresentada por Monteiro procede de Deleuze:

Dizemos isto, fazemos aquilo: que modo de existência isso implica? [138] Há coisas que só se pode fazer ou dizer levado por uma baixeza de alma, uma vida rancorosa ou por vingança contra a vida. Às vezes basta um gesto ou uma palavra.

289 NIETZSCHE, Ecce Homo, Por que escrevo livros tão bons, § 4. 290 Id., ib. 291 MARTON, 2000. 292 NIETZSCHE, A gaia ciência. Epígrafe.

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São os estilos de vida, sempre implicados, que nos constituem de um jeito ou de outro.293

Então, “Corpos possuem estilos; vidas possuem estilos”294. Ditos e feitos; baixeza e

altivez; vingança da vida e afirmação da vida: estilos de vida.

Estilo também ter a ver com a lógica do pensamento. Não no sentido de uma lógica

racional, mas no sentido atribuído por Deleuze:

A lógica de um pensamento não é um sistema racional em equilíbrio. [...] A lógica de um pensamento é como um vento que nos impele, uma série de rajadas e de abalos. Pensava-se estar no porto, e de novo se é lançado ao alto mar.”295

Deleuze, ao se referir à produção filosófica de Michel Foucault, diz que vê nos últimos

livros do filósofo, a descoberta de um pensamento como “processo de subjetivação”, mas que

isso não tem como consequência um retorno à ideia de sujeito. Trata-se da constituição de

modos de existência, ou da invenção de novas possibilidades de vida na concepção

nietzschiana. Deleuze faz questão de elucidar: “A existência não como sujeito, mas como obra

de arte”296, o que ele denomina de pensamento-artista.

A existência como obra de arte, para Deleuze, não é um retorno ao sujeito, mas a

invenção de “novas possibilidades de vida”; a operação artista da vontade de potência na

concepção de Nietzsche. Enfim, são estilos de vida, modos de existência, como afirma:

Não se trata mais de formas determinadas, como no saber, nem de regras coercitivas, como no poder: trata-se de regras facultativas que produzem a existência como obra de arte, regras ao mesmo tempo éticas e estéticas que constituem modos de existência ou estilos de vida.297

293 DELEUZE, 1992, p. 130. 294 MONTEIRO, 2013. 295 DELEUZE, 1992. 296 Id., ib., p. 124. 297 DELEUZE, 1992, p. 127.

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Portanto, o processo de subjetivação para Deleuze não pode ser confundido com um

sujeito; é uma produção de modo de existência, maneiras de nos constituirmos como “si”, e,

como diria Nietzsche, maneiras suficientemente “artistas”, para além do saber e do poder.

O que Foucault chama de estilos de vida, Deleuze denomina de modos de existência.

A constituição dos modos de existência, ou dos estilos de vida, não é somente estética, mas

também é ética, por oposição à moral.

Deleuze aponta a diferença entre os dois conceitos, moral e ética:

a moral se apresenta como um conjunto de regras coercitivas de um tipo especial, que consiste em julgar ações e intenções referindo-as a valores transcendentes (é certo, é errado...); a ética é um conjunto de regras facultativas que avaliam o que fazemos, o que dizemos, em função do modo de existência que isso implica.298

Vejamos outro exemplo de estilo, no comentário de Deleuze sobre o estilo de

Foucault:

é um grande estilista. O conceito toma nele valores rítimicos, ou de contraponto, como nos curiosos diálogos consigo mesmo com os quais ele termina alguns livros. Sua sintaxe recolhe reflexos, cintilações do visível, mas também se contorce como uma correia, se dobra e se desdobra, ou estala ao ritmo dos enunciados. Depois, nos últimos livros, esse estilo tenderá para uma espécie de apaziguamento, buscando uma linha cada vez mais sóbria, cada vez mais pura...299

Nesse sentido, há uma estética e uma ética da vida, por isso, a vida como obra de arte.

O estilo de um escritor também é um estilo de vida; a invenção de uma possibilidade de vida,

de um modo de existência.

Olini contribui para a terceira ideia na argumentação de Monteiro sobre a arte do

estilo:

É, portanto, a pluralidade de estilos, gêneros, tropos e ritmos – textos curtos ou longos, frases interrompidas, traços longos ou espaços em branco entre os aforismos, metáforas, níveis diferentes de escrita, alusões, etc. -, que servem para

298 DELEUZE, 1992, p. 129-130. 299 Id., ib., p. 130.

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escritura de Nietzsche como meio de expressar um pensamento que é, em si, pluralista.300

Monteiro301 sinaliza que pensamentos possuem estilos, percebidos em seu ritmo, suas

opções, seus lugares, seu movimento. Um estilo de pensamento é afetado pela intensidade das

exposições às tensões, assim como pela diversidade dessas. Quanto maior a diversidade,

maior a pluralidade de estilos de pensamento e quanto maior a intensidade, maior a

contaminação destes, maior a afetação, a virulência. A pluralidade de estilos, a meu ver,

remete à ideia de criação, de arte.

Lembremos que o texto de Monteiro tem como título: A escritura e a diferença: uma

leitura de Jacques Derrida, portanto, trata-se do estilo de Derrida. Como o abordado aqui é o

estilo, ou a arte do estilo, tomo as considerações sobre o estilo do filósofo franco-argelino,

esboçadas por Monteiro, como exemplo.

Monteiro ressalta o estilo refinado de Derrida. Diz que o seu estilo vem do que ele

quer fazer. O estilo derridiano de escrever não carrega sentido prévio, conforme dirá: “É

também não poder fazer preceder absolutamente o escrever pelo seu sentido: fazer descer

deste modo o sentido mas elevar ao mesmo tempo a inscrição”.302 Nem nasce de um sentido,

uma vez que o sentido é concebido no ato da escrita: “O sentido deve esperar ser dito ou

escrito para se habitar a si próprio e tornar-se naquilo que a diferir de si é: o sentido”.303

Então, o estilo está na origem: “O ato literário reencontra assim na sua origem o seu

verdadeiro poder”.304

Monteiro305 coloca que Derrida “quer, pelo estilo, criar um sentido para além do

sentido” e “que isso é notado no estilo derridiano, com seus buracos, lacunas, incompletudes

do texto”.

De acordo com Monteiro306, o estilo da filosofia tem a marca do discurso público e

racional, obedece a um sentido prévio. O estilo derridiano não se alia a esse modelo. Derrida

quer colocar os discursos da filosofia e da literatura lado a lado para criar uma margem entre

300 OLINI, 2012, p. 42. 301 MONTEIRO, 2013. 302 DERRIDA, 2009, p. 13. 303 Id., ib., p. 13-4. 304 Id., ib., p. 14. 305 MONTEIRO, 2013. 306 Id., ib.

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eles, onde situaria seu discurso. O sentido da escrita derridiana não é depositado, mas

habitado, imanente no texto. Sobre o estilo do filósofo franco-argelino, Monteiro ainda dirá:

quer que a filosofia seja vista como texto entre outros textos, e que deve ser tratado como lógica da margem, isto é, sua operação joga com o que é interno e externo. Seu sentido sempre vazará dos limites filosóficos, pois não é controlado por um centro de força, mas sim pela instabilidade gravitacional. Ora, por isso seu texto sempre dará vertigens, pois não tratará de tema de competência significativa dada pela sociedade ou pela história, mas estará sempre em criação autoral. Não se faz isso a priori; isso é criação de trajeto.307

Derrida também tem um estilo de filosofia: a filosofia da diferença, porque tem como

marca o pensamento diferencial. Embora, nos EUA, principalmente a partir dos anos de 1990,

os textos de Derrida estejam sendo lidos como estudos culturais e sociais, o filósofo situa-se

em um movimento singular: produzir a différance. Sendo assim, o estilo filosófico de Derrida

se afasta do estilo socrático, que privilegia o logos e se aproxima do estilo de Nietzsche, com

a sua filosofia dionisíaca, trágica. Um estilo que “acolhe a dispersão, que marca o indecidível,

que rastreia a incerteza”.308

A melhor expressão da filosofia de Derrida é a desconstrução. Monteiro309 se refere à

desconstrução de Derrida como uma filosofia de manipulação e diz que o texto no qual o

filósofo parece fazer o seu melhor exercício desconstrutivo é A farmácia de Platão.

Monteiro afirma que o ponto crítico da filosofia ocidental é o seu empenho pela

preservação da figura central do falante, do logos. Sendo assim, a origem do pensamento,

entendido como racional está no autor. Derrida entende isso como “o rebaixamento da

escritura em nome da razão lógica, e, certamente, dialética”.310 Usa como estratégias para a

desconstrução dessa filosofia o encontro dos indecidíveis. Sobre os indecidíveis, Monteiro

dirá:

elementos ambivalentes que escapam das oposições binárias, ou seja, ou um ou outro. Os indecidíveis se mostram aditivamente, pois é e não-é um e/ou outro. Decidir por um fará recuar a riqueza da ambivalência do pensamento, além de cometer falta com o rigor da ideia.311

307 MONTEIRO, 2013. 308 Id., ib. 309 Id., ib. 310 Id., ib. 311 Id., ib.

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Desconstrução; manipulação da filosofia; manipulação da morte; morte do autor.

Como comenta Olini312, segundo a tradição logocêntrica, a escritura é considerada apenas

como um complemento da voz e, nessa concepção, o falante é simultaneamente presente para

o ouvinte. Derrida escapa disso, abraça a dissolução da noção de autoria (falante e escritor).

Decreta a morte do autor e toda sua preponderância: “A morte passeia entre as letras”.313 É o

seu estilo.

312 OLINI, 2012. 313 DERRIDA, 2009, p. 100.

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3 A ESCUTA

Este é o ato do desfecho ou clímax: os professores falam, escuto. Os professores falam

através da entrevista abecedária. O gesto realizado com as entrevistas é qualitativo. Não me

permiti tabular as falas em gráficos e medidas, não faço tratamentos estatísticos, análises de

discurso, tabulações de recorrências ou outros procedimentos para ir ao encontro dos estudos

que realizei e, especificamente, do método otobiográfico.

Ouvir, no método otobiográfico, é partilhar afetos, o que acarreta ecoar em mim o que

ecoou em quem escreveu e, assim, atribuir sentido ao que foi dito, criar a minha narrativa a

partir da narrativa do outro.

Não me coloco como leitora, mas como ouvinte das produções dos meus colegas.

Neste trabalho, as produções são as suas narrativas. O que é dito por eles são ressonâncias no

meu ouvido.

As narrativas dos professores são tomadas neste trabalho como conhecimento

produzido por eles. Não faço análise psicológica, não busco um sentido oculto, uma essência

para além do que está sendo dito. Tomo como verdade o que foi narrado. Não viso à

generalização, não procuro repetição, mas reconheço que ela pode ocorrer. Neste caso,

proponho dar tratamento diferenciado a ela com o pressuposto de que a repetição diz de um só

indivíduo e que nela está a diferença.

Recapitulando, esta pesquisa propõe compreender a docência na educação superior,

quando se trata de professores que são oriundos de áreas não voltadas ao ensino Tem como

pressuposto primordial que a docência é feita de estilos singulares, embora encontremos

elementos comuns na maneira de ser do professor. Essa ideia é sustentada por uma lógica: as

implicações da vida para a constituição do estilo da docência. Sendo assim, o que procuro

ouvir na narrativa de cada professor são os elementos constituintes do estilo da docência.

Esses elementos são os afetos, são pathos, são da vida. Então, o que quero ouvir nas

narrativas é a forma como ele põe a vida nas palavras da entrevista abecedária. Eu ofereço a

palavra e vejo o que volta. Busco perceber como a palavra chega na vida dele, não no sentido

de análise psicológica, mas como ela afeta, como ele é afetado pela ideia da palavra que lhe é

oferecida. Não busco o que a palavra significa para ele, mas como ele é afetado ao falar sobre

a palavra. Não é a ideia da palavra, mas como a ideia da palavra o afeta. Por exemplo, quando

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o professor fala sobre aula, ele não pensa na ideia de aula, mas a palavra aula o remete a uma

espécie de simplificação de toda a sua experiência com aula.

Então, são oferecidos aos professores, pelas palavras da entrevista, elementos próprios

da docência, disparadores das narrativas, imagens do pensamento que os afetam de um jeito

imprevisível, porque não há controle sobre isso, isto é, quando o pesquisador fala aula, não

quer dizer que o professor vai falar apenas sobre aula, o que ele fala depende de como foi

afetado e as pessoas são afetadas de modo diferente pelas mesmas coisas.

Desse modo, cada narrativa é ouvida como algo que emerge do que é mais pessoal: os

afetos que constituem o professor. Por isso, a diferença está nos afetos que tomam uma

narrativa e outra. Então, é necessário saber que tipos de afetos movem esses professores. O

estilo do texto, ou da narrativa, diz do estilo do autor, no entanto, vários estilos poderão

comparecer em uma mesma narrativa, mas tomo como pressuposto que existe um estilo

preponderante.

A seguir, apresento o resultado da escuta das narrativas dos professores. Os textos

apresentados não são transcrições diretas das falas dos professores, mas o resultado da

aplicação da otobiografia nas narrativas. Ao apresentar o que eles disseram, estou dizendo

apenas o que eu pude ouvir do que eles disseram, o que ecoou em mim, as ressonâncias das

suas narrativas no meu ouvido. Ouvi os professores porque eles tinham algo a dizer, mas

quando eu digo, digo de mim. Não busco sentido, atribuo sentido. O que me interessa é saber

de algumas experiências, de alguns conhecimentos, para que, depois, eu consiga dizer algo de

mim de modo mais contundente a partir do que os professores disseram. Eu digo do texto dos

professores e não dos professores, assim como digo do texto de Derrida e não de Derrida.

Para cada professor, faço, inicialmente, uma breve apresentação a partir do que dizem de si

publicamente, isto é, a partir do seu Currículo Lattes. Em seguida, apresento a escuta da sua

narrativa.

O nome próprio serve para distinguir a pessoa de todas as outras, por isso não traz

sentido. É a ideia que se tem da pessoa. A partir do nome próprio se mostra uma pessoa. Uma

das propostas deste trabalho é pensar o professor como aquele que fala e tomar isso como um

efeito. Investir que o nome próprio, a assinatura, a fala, são efeitos.

Os professores que participam como interlocutores nesta pesquisa são:

Da área das Ciências Exatas:

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Professora Ma. Eunice Pereira dos Santos, do Instituto de Computação e o Professor

Dr. Norman Barros Logsdon, da Faculdade de Engenharia Florestal.

Da área das Ciências Humanas e Sociais:

Professora Dra. Paola Biasoli Alves, do Instituto de Educação e o Professor Dr.

Adriano Marcos Rodrigues Figueiredo, da Faculdade de Economia.

Da área das Ciências Biológicas e da Saúde:

Professora Dra. Tereza Christina Mertens Aguiar Veloso, da Faculdade de Nutrição e

o professor Edson Virgílio Martins, da Faculdade de Ciências Médicas.

3.1 ELEMENTOS CONSTITUINTES DO ESTILO DA DOCÊNCIA

Foi abordado neste trabalho um pouco dos estilos de Nietzsche e de Derrida. Estilos de

literatura e estilos de filosofia. Aqui teremos estilos de docência visto que os interlocutores

não são escritores e nem filósofos, mas sim docentes.

3.1.1 Uma professora das inovações tecnológicas

No Currículo Lattes de Eunice Pereira dos Santos encontramos a seguinte descrição de

si: “Possui graduação em Bacharelado em Ciência da Computação pela Universidade de Mogi

das Cruzes (1993) e Mestrado em Engenharia Elétrica pela Universidade Federal de

Uberlândia (2002). Atualmente é professora assistente do Instituto de Computação da

Universidade Federal de Mato Grosso e doutoranda da Poli-USP atuando na linha de pesquisa

de Realidade Virtual e Aumentada. Tem experiência na área de Ciência da Computação,

atuando principalmente nos seguintes temas: Realidade Aumentada, Realidade Virtual,

Ambientes Virtuais de Aprendizagem, Interface humano-computador”

(http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/busca.do).

Eunice foi uma estudante dedicada. Sempre muito tranquila, nunca foi motivo de

preocupação para os pais. Na época do curso de segundo grau, começou a cursar o magistério,

mas não gostou porque não se via lecionando para crianças. Transferiu-se para o curso

Técnico em Contabilidade. Tem boas lembranças dos seus professores da educação básica.

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Na educação superior pensou em cursar Ciências Contábeis, mas ficou com Ciências

da Computação por ser um curso novo. Em sua opinião, nesse curso teve professores bons e

professores ruins. Acredita que isso acontece em todo processo de ensino.

Não tinha como perspectiva a docência. Após a conclusão do curso de graduação,

trabalhou em empresa da área de computação em São Paulo. Ao mudar-se para Cuiabá, foi a

perspectiva objetiva de trabalho quando chegou à cidade. Nessa época, o curso de Ciências da

Computação da UFMT era novo e precisava de profissionais formados em informática. Então,

mesmo sem experiência na docência, ela foi contratada como professora substituta. Exerceu a

atividade durante um semestre em substituição a um professor que estava de licença. Tinha

vinte e um anos e essa foi a sua primeira experiência com ensino. Lecionou para o curso de

engenharia; muitos alunos eram mais velhos do que ela; ficou muito nervosa na primeira aula,

mas os alunos a receberam bem e deu tudo certo. Parece que a docência a afetou de modo que

não queria mais deixá-la. Depois dessa primeira experiência, trabalhou como professora em

várias instituições privadas e como professora substituta em algumas instituições públicas.

Há quinze anos ingressou no quadro regular de professores da UFMT por meio de

concurso público. Entende que o magistério é a sua profissão; não se vê como cientista da

computação. Porém, faz questão de declarar-se professora do ensino superior.

Antes de ingressar na carreira acadêmica, não pensava em cursar o mestrado. Depois

que ingressou, cursou uma especialização e, em seguida, o mestrado. Durante esse tempo,

casou e teve filhos. Suas opções pessoais tardaram a cursar o doutorado, algo que a ocupa

muito atualmente. Lutou muito para trazer um programa interinstitucional de Doutorado em

Computação para a UFMT. Finalmente, está cursando um doutorado interinstitucional

envolvendo a USP e a UFMT. Além de cursar o doutorado, é coordenadora de curso,

professora de uma disciplina, tem uma pesquisa em andamento, orienta alunos de iniciação

científica e realiza trabalho de extensão. A concomitância do doutorado com as outras

atividades docentes estão deixando-a muito cansada, por isso solicitou dois anos de

afastamento para concluir o doutorado, mas a sua solicitação não foi atendida pelo Colegiado

de Departamento.

Sobre os professores da pós-graduação, achou que alguns deles se mostraram mais

cansados, não motivavam a turma e ensinavam apenas o básico. Uma professora do doutorado

despertou sua admiração pelo compartilhamento do conhecimento e pela boa interação com

os alunos. Enfim, da sua experiência como aluna percebeu que uns professores ensinam mais,

outros menos, uns são mais dinâmicos e outros mais lentos.

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Gosta de todo tipo de trabalho. Sente prazer em lecionar para jovens e adultos. Para

ela, o diferencial da docência é sempre ter trabalho para fazer em casa, até mesmo nos

feriados e finais de semana. Adverte que é preciso cuidado para não ficar apenas trabalhando,

pois professor sempre tem trabalho para fazer.

Acredita que, mesmo que o docente esteja lecionando uma determinada disciplina há

muitos anos, cada aula sempre será diferente. Com o passar do tempo, buscou estratégias que

tornassem as aulas mais interessantes, com vistas a motivar mais os alunos, até porque nos

últimos anos houve grandes avanços tecnológicos e isso acaba influenciando o modo de

conduzir as aulas.

Seus alunos são muito jovens, e ela se diverte bastante com eles. Ajuíza que os jovens

de hoje são muito diferentes dos jovens de alguns anos atrás; acha-os mais dinâmicos. Devido

à tecnologia que está muito presente na vida deles, não se contentam em apenas ouvir, querem

participar, desejam novidades, esperam aulas dinâmicas. Sendo assim, pensa que o professor

precisa ser muito criativo para despertar o interesse e a consequente atenção dos alunos. Tem

visto em seus alunos pouco interesse para leitura, o que a leva a buscar estratégias de pesquisa

para incentivá-los a ler mais.

Eunice gosta muito de estudar. Ainda se vê como estudante e acredita que será assim

por muitos anos.

Sobre aula, pensa que sua marca é a imprevisibilidade. Procura sempre estratégias

diferentes para tornar sua aula interessante, dando a entender que o interesse no processo

decorre, também, do professor. Conta que procura passar os conteúdos para os seus alunos de

forma bem didática, embora não saiba exatamente o que seja didática, uma vez que não teve

formação pedagógica. Pensa que didática seria o uso de diversas estratégias para passar um

conteúdo para os alunos da forma mais clara possível. Nesse sentido, aponta a necessidade de

se trabalhar com uma linguagem simples e de se buscar táticas que viabilizem maior

proximidade com o pensamento dos alunos.

Eunice já foi chefe do Departamento de Computação, mas lhe dá mais prazer a função

de coordenadora de ensino de graduação, que já exerceu por várias gestões. Tem predileção

pelas funções administrativas, apesar de reconhecer que ocupam tempo que poderia ser usado

para pesquisa e extensão.

Eunice já participou de vários projetos de extensão. Vê esses projetos como uma

forma de contribuir com a sociedade, ao mesmo tempo em que se trabalha a questão social

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com os alunos. Suas pesquisas voltam-se para a inovação tecnológica, o que, no seu entender,

favorece implicitamente o lado social, embora essa contribuição não seja tão explícita como

na extensão.

Para ela, a formação também pode ser adquirida em situações práticas, de acordo com

o que a necessidade impõe. Tem em mente que quanto mais conhecimento se adquire, mais se

percebe que ainda falta muito para se conhecer. Entende que o conhecimento também pode

ser adquirido por meio de leituras. Ela gosta de ler de romances a aventuras, apesar de,

atualmente, deter-se prioritariamente nas leituras exigidas pelo doutorado.

Sente-se muito bem na vida acadêmica. Aprecia se relacionar com pessoas de outras

unidades da instituição para compartilhar experiências. Gosta de participar de diversas

atividades da universidade como apresentações culturais, terapias para o bem estar e saúde

oferecidas pela Coordenação de Assistência e Benefícios ao Servidor e reuniões da associação

dos docentes da UFMT.

O trabalho é uma das coisas que mais dá sentido à sua vida, daí sua opinião

concordante com a ampliação de vagas na universidade pública. Pensa a universidade pública

para todos que dela necessitam.

O que tem valor para ela é o que é conquistado, mas em primeiro lugar em termos de

valor estão os filhos. Depois a família, o trabalho e os amigos. A qualidade do que realiza

também tem um valor significativo para ela. Julga que tudo deve ter ordem. A internet faz

parte importante da sua vida. Vê a si mesma como pessoa emotiva e muito comprometida

com o que se propõe a fazer.

Como aprecia por demais o trabalho na universidade, pensa nos problemas que terá ao

se aposentar, por imaginar que sentirá falta das atividades. Sente-se uma pessoa realizada em

todos os aspectos de sua vida.

3.1.2 Um engenheiro

Na descrição pública de si, Norman Barros Logsdon relata: “Possui graduação em

Engenharia Civil pela Escola de Engenharia de São Carlos Universidade de São Paulo (1976),

mestrado em Engenharia de Estruturas pela Escola de Engenharia de São Carlos Universidade

de São Paulo (1982) e doutorado em Engenharia de Estruturas pela Escola de Engenharia de

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São Carlos Universidade de São Paulo (1998). Atualmente é Professor Associado da

Universidade Federal de Mato Grosso, atuando na pós-graduação, no Mestrado em

Engenharia de Edificações e Ambiental (Faculdade de Arquitetura, Engenharia e Tecnologia),

e na graduação, no Curso de Engenharia Florestal (Faculdade de Engenharia Florestal). Tem

experiência na área de Engenharia Civil, com ênfase em Madeiras e Estruturas de Madeiras,

atuando principalmente nos seguintes temas: características físicas, descrição dendrológica,

características mecânicas e pontes de madeira”

(http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/busca.do).

Durante o curso de graduação, Norman, participou do Programa de Iniciação

Científica. Nessa época, começou a pensar em cursar o mestrado.

Trabalhar como professor em uma universidade era um sonho, uma forte aspiração

para Norman, tanto que assim que concluiu a graduação, ingressou no mestrado em

Engenharia de Estruturas e antes mesmo de concluir o mestrado, atuou como professor

visitante na UFMT. Vê-se emocionado quando pensa na Universidade, pois a entende como

espaço de realização de sonhos: foi o seu.

Quando Norman falou que a pessoa muda de profissão ao seguir a carreira docente, eu

esperava que ele fosse dizer que a pessoa deixa de ser engenheiro e torna-se professor, mas

não foi isso que ele disse. Para Norman, o profissional que ingressa na carreira acadêmica

torna-se especialista em uma área. Com mestrado e doutorado em Engenharia de Estruturas,

se especializou em estruturas de madeira, por isso não se vê mais como engenheiro civil, mas

como engenheiro de madeiras, também porque é a área que escolheu para atuar como

professor.

Na sua trajetória como docente da UFMT, ocupou diversos cargos administrativos na

universidade. Apesar da rica experiência administrativa, tem preferência pelo ensino e pela

pesquisa, principalmente, pela última.

Norman julga que a sua formação no curso de Engenharia Civil da USP foi excelente e

que por causa dessa rígida formação, recebeu melhor preparo para o ensino. Mesmo assim, o

magistério lhe é complicado, ao que atribui a não formação para o seu exercício. Entende que

o professor universitário não é formado para o magistério e vê nisso uma lacuna. Tem em

mente que a boa qualidade do ensino depende da capacidade do professor para transmitir o

conhecimento aos estudantes. Crê que essa capacidade é parte do modo de ser de cada um,

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pois em sua opinião, alguns docentes têm, naturalmente, mais didática do que outros. Nesse

sentido, a capacidade do professor em ensinar é inata.

Para Norman, a aula é o elemento central da atuação docente. Vê como requisitos

importantes para essa atividade, a boa transmissão do conhecimento ao estudante, no que a

didática pode ajudar, e a ordem que para ele é fundamental.

Pensa que aprender com a prática os princípios da atividade docente, também é uma

habilidade inata e os que não a têm enfrentam dificuldades e não encontram ajuda nesse

sentido. Não foi o seu caso, porque quando ingressou na carreira docente da UFMT, pode

contar com a orientação de uma coordenação pedagógica e participou de um curso para

professores ingressantes que abordava o processo ensino-aprendizagem. Atualmente ainda

aplica o que aprendeu nesse curso de capacitação.

Norman tem em mente que o conhecimento é importante para a docência, mas, mais

importante, é saber transmiti-lo e é aí que se encontram as dificuldades dos professores da

educação superior. Norman fala em transmissão de conhecimentos repetidas vezes: “nas

ciências exatas a transmissão dos conhecimentos é feita por treinamentos e as repetições

levam ao aprendizado”. Deleuze vê na repetição a insistência de si mesmo. Norman insiste

tanto na ideia de transmissão de conhecimento que isso marca uma diferença.

Norman acredita que tem facilidade inata para ensinar, mas a falta de infraestrutura

adequada para as aulas atrapalha a sua atuação nessa atividade. Vê a internet como uma

ferramenta muito útil para o processo ensino-aprendizagem porque possibilita acesso a muitas

informações. Entende como atribuições do professor, no âmbito do ensino, apenas ensinar e

avaliar o aprendizado dos seus alunos. Por isso, não controla a frequência deles, tarefa que

atribui à administração acadêmica. Tem em mente que procura praticar o ensino da melhor

forma que pode e, não obstante as dificuldades, sente-se bem na carreira acadêmica.

Tem em mente que o elemento primordial da universidade é o aluno, mas não conhece

os seus pelo nome. Sabe que têm alunos que foram reprovados várias vezes nas disciplinas

que leciona, o que atribui ao despreparo deles para a universidade, provavelmente, decorrente

da má qualidade da Educação Básica, bem como à falta de condições para atender grande

quantidade de estudantes em sala de aula. Para ele, os alunos do curso que são reprovados três

ou mais vezes na mesma disciplina, não têm capacidade para exercerem a profissão de

engenheiros, sendo assim, não deveriam concluí-lo. Tem em mente que a universidade não

deva ser para todos, afinal, nem todos têm capacidade para ela.

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É crítico com o modo como a universidade lida com os estudantes, a vê muito

tolerante e permissiva. De formação rígida, sua tendência é transferir sua experiência como

estudante aos seus alunos. Julga que a exigência feita por instituição e professores levariam os

estudantes a uma melhor formação. Atribui à permissividade e à falta de rigidez no trato com

os estudantes, o pouco respeito destes para com os professores. Vê uma lacuna ética na

formação deles, pois cedem a práticas nem sempre lícitas na vida acadêmica e no cotidiano da

profissão. Atribui a falta de ética no exercício profissional à ausência de uma formação sólida.

Parece que Norman insiste na ideia de que a rigidez nas práticas pedagógicas e institucionais

resolveria muitos problemas da formação dos estudantes. Declara essa ideia repetidas vezes.

Aquilo que retorna, dirá Nietzsche, é o que se deseja. Então, a rigidez nas condutas e

procedimentos acadêmicos é outra ideia que marca o pensamento de Norman com relação à

docência.

Em sua opinião, o principal objetivo de quem cursa o nível superior é a formação

profissional, por isso os estudantes deveriam buscar absorver ao máximo o conhecimento dos

professores para utilizá-lo, posteriormente, no mercado de trabalho. Contudo, percebe que

grande parte dos estudantes se preocupa apenas em conseguir o diploma. Não obstante, o

trabalho com os alunos lhe faz bem, sente-se renovado.

Assim como para o ensino, Norman entende que alguns professores têm capacidade

inata para a gestão, enquanto que outros chegam despreparados para exercê-la. No início da

sua trajetória acadêmica, se aborrecia com o que denomina de carreirismo no âmbito da

gestão. Nesse caso, os professores assumiam cargos administrativos apenas para dar menos

aulas e ter a gratificação pela função incorporada ao salário. Em sua opinião, essas

ocorrências diminuíram porque a produção científica passou a ser mais valorizada e a

gratificação pela função deixou de ser incorporada ao salário. Assim, a gestão ficou mais

profissional. Contudo, Norman entende que os docentes não deveriam assumir cargos de

gestão, ficando estes apenas para os servidores técnicos. No entanto, quando o assunto for de

natureza técnica, os gestores devem ouvir a opinião dos professores especialistas para tomar

as decisões, o que não acontece. Para Norman, os professores são pouco ouvidos

institucionalmente.

Também tem opinião de que os cargos de gestão da universidade deveriam ser

assumidos por meritocracia. A disputa deve ser democrática, mas entre os de mesmo mérito

como acontece na USP, onde, de acordo com o professor, apenas os docentes titulares podem

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ser chefes de departamento. Toda a formação de graduação e pós-graduação de Norman foi

realizada na USP. Parece que as afecções dessas épocas deixaram marcas na sua constituição.

Norman nunca se interessou por cargos eletivos. Assumiu várias funções de gestão por

substituição ao afastado ou em atendimento a um convite: subchefe de departamento, diretor

da Faculdade de Engenharia Florestal, coordenador de ensino de pós-graduação da UFMT e

pró-reitor de pós-graduação. Participou de processo eletivo apenas uma vez, quando

concorreu ao cargo de coordenador de ensino de pós-graduação da Faculdade de Engenharia

Florestal, mas não havia outro candidato.

Norman julga o ambiente da pós-graduação mais salutar que o ambiente de ensino de

graduação, que, em sua opinião, é extremamente competitivo. A configuração do ambiente

tem uma potência. Quando assumiu a função de coordenador de ensino de pós-graduação da

UFMT, Norman passou a frequentar um ambiente, um espaço físico, que antes não

frequentava. A ouvir frases que ele nunca tinha ouvido. A ver rostos que ele não via com tanta

frequência. Tudo isso começa a compor algo diferente, é outra experiência, são novas

afetações, novas impressões emocionais.

A pesquisa é para Norman importante campo de atuação. Suas leituras voltam-se mais

para essa atividade. Vê a Universidade pouco eficiente no apoio aos pesquisadores,

principalmente com relação às condições de trabalho como manutenção dos equipamentos

necessários.

Suas leituras têm sido apenas profissionais, não obstante, essas também lhe deem

prazer. Nos momentos de lazer aprecia assistir filmes, programas de televisão e sair para

jantar com a esposa. Ajuíza que tem mais amigos entre os alunos do que entre os professores.

Pretende continuar trabalhando até quando se sentir disposto. Seu projeto mais recente

é a colaboração com o Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Arquitetura Engenharia e

Tecnologia, no qual atua como professor, orientador. A implantação do doutorado nesse

programa é para ele um estímulo novo, talvez um pathos.

Tem duplo sentimento sobre a universidade: se por um lado a vê tolerante e

burocrática demais, assim como pouco eficiente no apoio aos pesquisadores, por outro é lugar

de realização, ao menos da sua foi: fica emotivo ao pensar até onde pode chegar por estar na

universidade.

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3.1.3 Uma professora de sala de aula

Ao falar publicamente sobre si, Paola Paola Biasoli Alves conta que “possui

graduação em Psicologia pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto

(1995), mestrado em Programa de Pós Graduação em Psicologia do Desenvolvimento pela

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1998) e doutorado em Programa de Pós

Graduação em Psicologia do Desenvolvimento pela Universidade Federal do Rio Grande do

Sul (2002). Foi professora da Universidade Católica de Brasília entre 2001 e 2008, atuando na

Graduação em Psicologia, Extensão e Programa de Pós-Graduação em Educação. Desde

agosto de 2008 é professora efetiva do Instituto de Educação da Universidade Federal de

Mato Grosso, pertencendo ao Departamento de Psicologia. Tem experiência na área de

Psicologia, com ênfase em Desenvolvimento Humano em Situações de Risco, atuando

principalmente nos seguintes temas: desenvolvimento infantil, crianças em situação de rua,

desenvolvimento humano, ensino-aprendizagem e metodologia”

(http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/busca.do).

Paola foi criada de uma maneira extremamente disciplinada, cheia de parâmetros, de

processos de rigidez. Dos professores que teve no decorrer da sua vida escolar, lembra-se de

alguns com bastante rancor e de outros com muita afeição. O seu primeiro grande exemplo de

docente foi uma professora do jardim de infância que estimulava a sua curiosidade. Desde o

ensino fundamental, Paola tinha maior dedicação apenas às disciplinas que lhe davam prazer.

Sobre as outras, ela só se preocupava em assistir às aulas e conseguir a média para aprovação.

Tem boas recordações de alguns professores do curso colegial, como os de Biologia e de

História.

Quando concluiu o ensino fundamental, foi questionada pelos pais se desejava cursar o

Magistério para ser professora das séries iniciais ou se preparar para a graduação em curso de

nível superior. Paola estudava balé e não queria o magistério, nem o curso de nível superior,

mas escolheu o último porque pensava que este lhe daria menos trabalho. Prestou vestibular

para o curso de História e foi aprovada, mas depois resolveu cursar Psicologia.

No curso de Psicologia teve dois professores que ela admirava muito: um professor de

Filosofia que a ensinou a “pensar com o coração” e uma professora de Psicologia Criminal a

quem deve o objeto de pesquisa e a opção teórica e metodológica da sua vida como

pesquisadora. Nesse curso, também foi aluna da sua mãe que, em sua opinião, foi uma das

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melhores professoras que teve; não no sentido da relação professor-aluno, mas no sentido de

conhecimento. Com ela aprendeu a ser irônica e absolutamente arrogante na sala de aula, mas

cogita que isso também possa ser um traço genético. Mãe, filha, professora, aluna, paciência,

intolerâncias, se misturavam.

Paola desejava a carreira acadêmica. Seus pais eram professores de uma universidade

pública, o que a levava a desejar trabalhar nesse mesmo tipo de instituição. No entanto, sua

primeira experiência na docência foi em uma universidade privada porque quando se

doutorou, não estava sendo realizados concursos em universidades públicas.

Primeiramente, escolheu viver em Cuiabá. Depois, veio a oportunidade de trabalhar na

UFMT. Os pais de Paola sonhavam com uma universidade pública que, realmente, fosse para

todos. Paola achava que os seus pais lhe mostravam apenas o lado bom da universidade,

porque desde os tempos em que ela era aluna, percebia brigas, disputas e mesquinharias, na

universidade. Percebia que essas coisas não tinham importância para a sua mãe; que o

importante para ela era o que eles estavam construindo. Hoje Paola consegue entender o

sentimento da sua mãe com relação à universidade, mas essa compreensão veio com um

pouco de sofrimento. Agora ela pensa que se sofre na universidade, porém, se ama muito

também e para que o lado ruim da universidade não importe, é preciso ter tolerância para o

sofrimento. Quando ingressou na UFMT, era muito afoita, estava muito aflita, queria ver as

coisas acontecendo. Atualmente, se permite ser menos drástica afetivamente com a instituição

onde é professora. A carreira docente é uma profissão que a realiza. Pensa que não faria outra

coisa na vida. Contudo, não gostaria de ser professora de outros níveis da educação. Declara

que é indescritível como se sente sendo professora universitária e que é um grande privilégio

ter essa profissão.

Vê a universidade como uma senhora de seios fartos, que deve ser amada porque foi

de onde veio o seu sustento desde que nasceu; como um universo de afeto, um universo de

sustentabilidade humana. Praticamente nasceu dentro dela. Aprendeu a amá-la e a criticá-la.

Enfim, a universidade pública para Paola é um universo familiar de amor, afeto,

responsabilidade, compromisso, um nicho de transformação do mundo.

Para Paola, o trabalho não tem sentido de peso, de obrigação, de ordenação, mas

relaciona-se com a sua existência, é constituinte e processual. No entanto, Acha o social na

universidade muito desonesto ou pouco verdadeiro e, por isso, muito penoso. Entende que a

universidade é um microcosmo onde as questões sociais ficam postas dentro da não verdade

da racionalização, da não verdade de que o conhecimento existe pronto, da não verdade de

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que porque nós temos títulos, cargos, funções, as coisas são possíveis de serem vividas dentro

da ordem. O social na universidade a incomoda, mas aprendeu a lidar com ele. Quando as

relações não são boas, sadias, harmoniosas, ela se defende com seu título de doutora. Acha

isso ruim, mas necessário. Os processos sociais fora da universidade lhe são mais agradáveis.

A sua ideia de magistério era ingênua, infantil. Depois que começou a cursar a pós-

graduação, deu conta de que magistério é magistral, tem uma série de salões espelhados; é

uma rede de relações. Hoje em dia, a sua ideia de magistério é um “Palácio de Versalhes”

onde ela gosta de ficar, embora não aprecie ficar nos salões, nos espelhos, prefere caminhar

nos jardins desse palácio. Agora, entende e assume que o magistério faz parte da sua vida.

Vê o professor como um jardineiro. Primeiro, ele é um ser em si, depois, ele é alguém

que tem função de semear, podar, perceber diferentes espécies e realizar esse trabalho de

forma harmoniosa. A atividade docente vista assim não lhe pesa; o que lhe incomoda é a

posição de autoridade que normalmente é atribuída ao professor. Aprecia o respeito, não a

distinção de autoridade. Entende que há tipos diferentes de professores e isso deve ser

respeitado: melhor, pior, mais bem formado, menos bem formado, intuitivos, empíricos...

Não tem com a profissão docente uma identidade de categoria, uma identidade

corporativa. O seu jeito de ser docente de uma universidade pública está diretamente

relacionado com o ensino, onde estabelece relações com o conhecimento. No entanto, tem em

mente que a qualidade do professor não depende do conhecimento que ele tem e muito menos

do seu Currículo Lattes. Depende do que ele é capaz de ouvir e de falar com os seus alunos e

com os seus colegas.

Filha de professores, aula, para ela, sempre foi algo da sua responsabilidade pessoal. É

o espaço onde o conhecimento está circulando e isso lhe agrada. Porém, não entende de

didática e nunca se interessou pelo assunto. No curso de graduação, ela tentou a Licenciatura

em Psicologia, mas não gostava das disciplinas de didática. Nunca teve contato com a didática

como campo de conhecimento formal. Na sua experiência acadêmica, teve contato com

professores que julgava terem, ou não, algum tipo de didática que lhe favoreciam trabalhar o

conhecimento com seus alunos. Ela tem isso como um modelo invertido, pois quando

começou a dar aulas, não queria agir como a maior parte dos professores que teve. Como não

tinha modelos de professores e não havia aprendido formalmente uma técnica de ensinar,

resolveu que teria um estilo próprio. Com a sua mãe aprendeu, em termos de didática, a

trabalhar com filmes. Assistiam a filmes de Carlos Saura para fazer análise, o que também

contribuiu para sua formação cultural.

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Para Paola, juventude é movimento, processo de construção, esperança,

responsabilidade. Os jovens que, atualmente ingressam na universidade, a questionam, a

desafiam a viver algo que não viveu na sua juventude cronológica. Ela julga que não tem

parâmetros para eles. Vê na juventude de hoje grandes mudanças de valores e processos de

muito sofrimento. Acha que ser jovem nos tempos atuais é muito duro. Entretanto, acha que

ser estudante é a melhor coisa da vida. Entende estudante como aquele que quer conhecer, não

interessa exatamente o que.

Em toda sua trajetória profissional na UFMT sempre assumiu funções de gestão. Não

teve formação para a gestão, mas acredita que herdou geneticamente alguma competência

para esse tipo de atividade. No entanto, suas impressões emocionais com as experiências de

gestão são de aprisionamento. Ela não se candidata aos cargos administrativos, quando os

assume é contra sua vontade, porque ficar presa a incomoda muito. Pensa que as pessoas

deveriam assumir essas funções de maneira livre, comprometida e responsável. Caso

contrário, teme que elas não possam existir dentro dos processos de gestão de forma integrada

e produtiva, de forma que a atividade faça bem a elas.

Entende que teve boa formação. Levantar questionamentos, rever paradigmas, se

colocar de frente para o desconhecido não são problemas para ela. Atua pouco no campo de

formação do seu stricto sensu, mas acha que essa formação lhe deu uma base sólida para atuar

em outros campos.

Aprendeu a ver o mundo através da leitura. Está sempre lendo algo novo. Isso lhe é

imprescindível. Pensa que esse gosto pela literatura vem do exemplo da sua mãe que era

leitora voraz, inclusive em várias línguas. Paola lê sistematicamente Milan Kundera, Gabriel

Garcia Marquez e Saramago. Não sente prazer com as leituras da Psicologia, que lhe são mais

árduas, as realiza por obrigação. Também gosta de textos de Filosofia. Embora a leitura lhe

seja familiar, não se vê competente para despertar em outras pessoas a paixão pela mesma.

Ente Kant e Kepler, simpatiza-se com Kant. Fez uma leitura de Kepler na pós-

graduação e achou-a muito racional, teórica e falseável demais para ela. A leitura de Kant a

tocou. Esse filósofo a remete à ideia de uma verdade quase absoluta, mas que não é tão

verdade assim.

Ao colocar-lhe outras palavras, Paola parecia ser afetada por elas de formas diferentes,

umas a afetavam mais, outras menos e, assim, algo do pensamento da professora ia sendo

captado pela escuta. Paola tem como valores o conhecimento, a vida, a universidade, a

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carreira docente. O modo como se encontra dentro dessa carreira lhe permite atribuir valor a

si mesma. Vê beleza na possibilidade de construção do conhecimento e nocividade nas

relações humanas, dentre as quais, a professor-aluno e as que comparecem no processo de

gestão da universidade. Vê também como muito nociva a transformação da vida acadêmica

em uma caixinha sem surpresas; a crença de que o que existe para conhecer é o que já é

conhecido. Qualidade, para ela, tem a ver com avaliação e interação; demanda liberdade para

falar e ouvir. Não vê possibilidade de a qualidade ser parametrizada para ser medida. Não é

afetada pela ordem, mas pensa ser necessária. Entende a necessidade da organização, a deseja,

mas reconhece que, nesse aspecto, é falha e isso a incomoda profundamente. Não acredita na

desordem, mas em uma ordem interna que é o desejo. Julga que tem muita dificuldade para

externalizar e conduzir o que deseja.

A internet a encanta pela possibilidade de acesso ao conhecimento, mas, ao mesmo

tempo, a paralisa pela generalidade. Orgulha-se muito do br, porque crê que na psicologia há

muita coisa para se fazer e para se ensinar ao mundo. Nesse sentido, www.com.br serve para o

envio de artigos para congressos, para a troca de mensagens, para elaborar artigos em

parcerias com pessoas que não estão perto fisicamente, entre outras possibilidades.

Para ela, o trabalho na Chefia do Departamento ou na sala de aula, ao contrário do

início da carreira, tem sido sereno, tranquilo e realizante. Aprecia muito viver em Cuiabá e

estar na sala de aula, para ela, também é motivo de satisfação, pois entende que sendo filha da

professora Zélia Maria não poderia ser diferente.

3.1.4 Um pesquisador

Eis o que sublinha Adriano Marcos Rodrigues Figueiredo no seu Currículo Lattes:

“Possui graduação em Engenharia Civil pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul

(1993), graduação em Ciências Econômicas pela Universidade Católica Dom Bosco (1994),

doutorado em Economia Aplicada pela Universidade Federal de Viçosa (2002) e Pós-

doutorado em Economia Aplicada pela Universidade Federal de Viçosa (2011). Atualmente é

Professor Associado I da Universidade Federal de Mato Grosso. Tem publicado em

periódicos científicos e apresentado trabalhos em eventos no Brasil e em diversos outros

países. Tem experiência na área de Economia, com aplicações em Economia Agrária, Política

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Agrícola, Economia Regional, Modelos de Equilíbrio Geral, Econometria Espacial e

Desenvolvimento Regional Sustentável” (http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/busca.do).

Adriano desejava ser militar da Força Aérea ou engenheiro de Aeronáutica, mas era

muito difícil ingressar em qualquer uma dessas carreiras. Ele tinha parentes que eram

engenheiros civis; desde criança frequentava ambientes de engenharia e, provavelmente, foi

tendo afetações nesses ambientes, de modo que resolveu cursar engenharia civil. Tinha

parentes que cursavam duas graduações simultaneamente, então resolveu fazer o mesmo e

cursou economia concomitantemente à engenharia civil. De acordo com Nietzsche, tem coisas

externas à pessoa que cria situações para ela se tornar o que é. A nossa vida vai sendo afetada

pelo mundo.

Ao se formar, trabalhou durante três anos como engenheiro civil. Gostava, mas

desejava mais conhecimentos. Então, cursou o mestrado em Economia Aplicada porque

pensava que esse lhe traria resultados mais interessantes do que o mestrado em Engenharia.

Escolheu o mestrado em Economia Aplicada também porque era na linha de pesquisa de

Economia Rural e esse tema o empolgava. Antes de concluir o mestrado transferiu-se para o

doutorado em Economia Aplicada. Entende que se tivesse cursado o stricto sensu em

Engenharia, hoje estaria fazendo ensino e pesquisa sobre engenharia, ou seja, estaria na

carreira acadêmica do mesmo jeito.

Sua primeira experiência como docente da educação superior foi em uma instituição

privada. Não pensava em trabalhar numa instituição pública porque, nesse caso, o salário seria

menor. Contudo, três meses depois do seu ingresso na instituição privada, prestou concurso

para uma vaga de professor da Faculdade de Economia da UFMT. Foi aprovado, contratado,

gostou e permanece na instituição até hoje.

Adriano tem em mente que a universidade deve ser um lugar de criações, de inovações

e não de reproduções. Também deve ter diversidade de pensamentos e liberdade de expressão.

Pensa que todos que desejassem cursar o nível superior deveriam ter oportunidade de

fazê-lo. Para ele, a universidade pública ainda não atende todos que precisam dela para se

formar. Desagrada-lhe as políticas públicas que, em sua opinião, dão muito apoio às

instituições privadas em detrimento das públicas.

Adriano vê a docência como uma missão. Para ele, professor é aquele que tem o

conhecimento, por isso, deveria ser referência. Entende que a principal atribuição docente é

buscar mais conhecimentos e procurar passá-los para os alunos. Alia-se à opinião de que o

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professor é pouco valorizado. Para Adriano, o corpo docente universitário é heterogêneo.

Existem professores que buscam competência para o ensino e para a pesquisa; existem os que

querem buscar competência, mas não têm oportunidades e existem aqueles que não deveriam

ser considerados professores porque não têm competência e nem o interesse de buscá-la. Em

sua opinião, há pessoas que ingressaram na carreira acadêmica porque não conseguiram outro

emprego, por isso, pensa que deveria haver um dispositivo legal que, quando o professor não

quisesse dar aula, não quisesse fazer pesquisa, fosse transferido para outra função.

Quanto à sua profissão, afirma e repete que é professor: “sou professor, sim,

professor”. Tem a opinião de que professores das universidades são mais respeitados do que

professores dos outros níveis da educação. Mesmo sabendo que receberia um salário melhor

em outro emprego, está satisfeito na docência e não se vê fazendo outra coisa. Sua

preocupação é ser um bom professor e, nesse sentido, procura sempre cumprir com o que foi

combinado, realizar bem o seu trabalho e assumir sua condição de professor contratado para

jornada de trabalho de dedicação exclusiva.

Na visão de Adriano, a formação é fundamental para o professor. Entende essa

formação como busca de mais competência para o ensino e para a pesquisa. Pensa que

estudando mais, o professor transmitirá o conhecimento para os alunos de modo mais

eficiente. Para ele, conhecimento é o que é aprendido sobre diferentes assuntos e esse

aprendizado pode acontecer de diferentes formas: conversas, leituras, programas de

televisão...

Adriano gosta muito de dar aula e a entende como oportunidade que o professor tem

de transmitir o conhecimento sobre determinado assunto aos seus alunos. O professor prepara

a aula e, a seguir, explana aos alunos o que preparou. Para Adriano, uma aula de qualidade é

quando o plano de aula foi cumprido e os alunos conseguiram compreender o que foi

transmitido. Entende a didática como meio de realizar o ensino, como uma forma de

transmitir o conhecimento. Acredita que não é possível desvincular ensino de pesquisa, pois

as aulas ficam muito mais interessantes quando associadas à pesquisa.

Adriano identifica-se com a juventude que, para ele, remete à energia, movimento,

desejo de aprender e fazer coisas novas. Acha importante o contato com os alunos que, entre

outras coisas, ajuda a manter a mentalidade jovem. Acha os jovens de hoje mais afoitos,

porém, mais ansiosos. Pensa que o acesso a muitas informações os deixa desorientados.

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Às vezes, tem problemas de mau comportamento de alunos na sala de aula e acha que

todo professor passa por isso. Crê que ordem é muito importante, mas enquanto disciplina,

organização e respeito. É contra autoritarismo. Entende que o respeito vem do fazer bem

aquilo a que a pessoa se propôs.

Tem afeição por todos os seus alunos. Vê heterogeneidade neles. Compreende que eles

não têm, necessariamente, o mesmo interesse pelos mesmos assuntos; que cada aluno tem

características próprias; que todos vão aprender alguma coisa assistindo às aulas; que uns têm

mais empatia com o professor, que alguns vão ter notas melhores, enfim, que sendo

diferentes, aprendem de formas diferentes. Desagrada-lhe não corresponderem à sua

expectativa de estudarem antes das aulas e não apenas nas vésperas das provas.

Adriano tem muita experiência com gestão na UFMT. Já exerceu as funções de

coordenador de núcleo de pesquisa, de coordenador de ensino de graduação em economia, de

diretor adjunto da Faculdade de Economia e de coordenador de planejamento físico da

UFMT. Algumas vezes, substituiu a pró-reitora de planejamento. Entende gestão como a

forma de reunir os instrumentos de trabalho e de se relacionar com as pessoas no contexto

profissional. Pensa que na gestão existe a preocupação de atender à expectativa de um maior

número de pessoas, uma vez que não é possível atender a todos. Crê que experiências

diversificadas contribuem para uma formação mais abrangente e para uma visão mais

holística das coisas. Para ele, a atividade administrativa oportuniza melhor compreensão do

funcionamento da instituição, mas, por outro lado, prejudica a concentração necessária para as

atividades docentes que, em sua opinião, são o ensino, a pesquisa e a extensão. Além do mais,

a atividade administrativa ocupa grande parte do tempo que seria destinado para a formação

do professor. Por tudo isso, ajuíza que os professores não deveriam assumir atividades de

gestão.

Embora tenha em mente que a extensão é uma atividade importante para sociedade,

nunca desenvolveu projetos nesse âmbito. É nos âmbitos do ensino e da pesquisa que atua.

Para ele, ensino e pesquisa são indissociáveis. O seu interesse pela pesquisa começou na pós-

graduação. Eu diria que é muito mais que um interesse, talvez, uma paixão. Tem relativa

convicção de que a pesquisa é mais importante que o ensino, embora reconheça que grande

parte dos professores não compartilha essa ideia. Devido à jornada de trabalho de dedicação

exclusiva, ele não trabalha como economista fora da UFMT e a atividade de pesquisa

oportuniza um trabalho voltado para a prática e vinculado a outras instituições. Assim, o

conhecimento produzido empiricamente é levado para o ensino.

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Adriano acha leitura essencial. Lê muito, mas não consegue ler tudo que gostaria.

Gosta de ler sobre religião, cultura e informações em geral, mas, atualmente, cerca de 80%

das leituras que realiza são sobre assuntos técnicos da área da Economia.

Para Adriano, a internet é um meio de deixar a universidade mais universal, mais

acessível a todos. Vê como grande avanço a circulação do conhecimento viabilizada pela

internet.

Retidão, honestidade, respeito e família são valores de grande importância para

Adriano. Beleza, para ele, é algo subjetivo, desejável, uma abstração. Vê o autoritarismo, a

preguiça, os extremos e pessoas com comportamentos inapropriados como coisas nocivas.

Entende que, para um cientista social que trabalha em uma instituição pública, ter

responsabilidade social é imprescindível.

Tem em mente que os professores precisam se preparar para realizações profissionais

depois que se aposentarem. Imagina que será difícil para ele continuar na universidade depois

que se aposentar. Com relação à vida na aposentadoria, preocupa-lhe a situação financeira e a

saúde. Para ele, aposentar não significa parar de trabalhar, de produzir. Percebe haver

professores de sessenta a setenta anos, com muito conhecimento, deixando a universidade e,

em sua opinião, a instituição está perdendo com isso. Essas pessoas estão aptas para

produções muito interessantes. Tendo em vista tudo isso, Adriano pensa em desacelerar e não

parar na fase da aposentadoria. O cenário ideal para ele quando chegar a fase da aposentadoria

é estar com disposição para trabalhar e sem preocupações financeiras. Nesse caso,

aproveitaria o tempo mais livre para produzir trabalhos interessantes.

Adriano estabelece metas para si e se sente realizado com o cumprimento das mesmas.

Atualmente sua meta é realizar mais pesquisas e mais publicações. Acredita que sendo bom

professor e realizando pesquisas importantes para a sociedade, o reconhecimento acontece

naturalmente.

3.1.5 Uma coordenadora de ensino de graduação

Tereza Christina Mertens Aguiar Veloso também diz sobre si no seu Currículo Lattes:

que “possui graduação em Nutrição pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1979),

graduação em Administração Bacharelado (1983), Mestrado em Educação pela Universidade

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Federal de Mato Grosso (2000) e Doutorado em Educação pela Universidade Federal de

Goiás(2008). É professor Associado da Universidade Federal de Mato Grosso atuando na

Coordenação de Graduação em Nutrição, no ensino de graduação e na pós graduação stricto e

lato sensu, em Educação e Nutrição. Integra: o Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Políticas

da Educação Superior, o Grupo de Estudo e Pesquisa em Políticas Educacionais e a Rede

UNIVERSITAS/Br. Experiência na área de Educação, com ênfase em Politicas Educacionais,

com publicações nas temáticas: educação superior, políticas de acesso à educação superior,

mecanismos de seleção na educação superior, valiação educacional , políticas de formação na

área da saúde” (http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/busca.do).

Tereza não planejou a carreira acadêmica, objetivava ser nutricionista. Vejo o ingresso

dela no quadro docente da UFMT como um movimento de vontade de expansão. Desejava

mudanças na sua vida: mudar de cidade, cursar pós-graduação, estabilidade profissional, e via

o emprego na UFMT como meio de realização dos instintos.

Na UFMT, teve experiências institucionais de vários âmbitos. Suas primeiras

experiências na instituição foram como gerente do restaurante universitário e supervisora de

estágio. No exercício dessas funções, se via como nutricionista. Com a experiência como

coordenadora de exames vestibulares, atividade desvinculada da área de Nutrição, ela

começou a se ver como professora. A formação na pós-graduação, a prática em sala de aula e

a orientação acadêmica também contribuíram para essa visão.

Como coordenadora de exames vestibulares se interessou pelas políticas públicas.

Vejo aí um afeto de significativa importância na constituição de Tereza. Ser professora

universitária e, mais do que isso, ser professora de uma instituição pública, é um valor que ela

faz questão de firmar.

Sua formação na pós-graduação voltada para as políticas públicas conferiu-lhe uma

visão muito crítica em relação ao contexto universitário. Vê a universidade como um

importante espaço de produção de conhecimento, mas que, também, não pode se isentar do

compromisso com as questões sociais. Acredita que a universidade precisa rever determinadas

posições e o professor tem papel fundamental nesse processo. Desagradam-lhe as políticas de

avaliação da educação superior que, em sua opinião, valorizam muito a produtividade,

estabelecem metas muito difíceis de serem alcançadas e não levam em consideração a

inserção da instituição na região.

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A sua visão crítica também aparece quando fala sobre os professores. Concebe

docência como profissão, sendo assim, pensa que os professores universitários necessitam de

formação específica para a docência e esta não se dá na pós-graduação. Entende que os

doutores contratados pelas universidades não veem essa necessidade, pois acreditam que

sabem dar aula. Acha utópica a ideia de que o professor deve exercer ensino, pesquisa e

extensão. Pensa que o professor deveria poder realizar apenas um bom ensino, caso o

desejasse. Com relação à identidade profissional do professor universitário, tem em mente que

existe certa indefinição entre ser técnico, professor ou pesquisador.

Com relação ao trabalho docente, vê como grande desafio transformar em

conhecimento as informações que os alunos trazem da internet. Ajuíza que com o advento da

rede mundial de computadores, o trabalho do professor passou a não ter horário definido.

Entendendo leitura não apenas como a de necessidade profissional, acha que na dinâmica do

trabalho docente, os professores estão se esquecendo de ler. Vê os programas de pós-

graduação como divisão do trabalho docente. Pondera que o docente da educação superior é

muito desvalorizado, principalmente quando não atua na pós-graduação. Contudo, o trabalho

docente lhe é prazeroso, gosta do que faz. O que lhe dá prazer na docência da educação

superior é poder escolher entre ensino, pesquisa e extensão; é poder decidir se quer participar

de um determinado grupo de pesquisa ou não; é poder expressar a sua opinião sem ser

prejudicada profissionalmente. No entanto, não quer voltar à docência após a aposentadoria

na UFMT.

O mestrado e o doutorado em Educação não lhe oportunizaram formação pedagógica,

contudo, com as leituras que realizou no doutorado passou a ver a formação dos alunos sob

outra perspectiva, valorizando mais a sua dimensão dinâmica do que a utilização de recursos

técnicos. A aula é para Tereza uma oportunidade de transmissão de conhecimentos, de troca

de experiências e de aprendizado recíproco, pois crê que o professor também aprende com os

alunos. Para ela, existem metodologias que facilitam a transmissão de conhecimentos aos

alunos e não se trata de técnicas. Constrói os conhecimentos específicos da docência, ou

saberes da docência, em situações práticas de acordo com a necessidade.

Tereza tem carinho e afeto pelos seus alunos. Mostra-se preocupada com a educação

deles, e não apenas com a formação profissional. Entende que eles carecem de direção e de

um contexto organizado para que também se organizem. Instinto maternal que se desloca do

espaço privado para o espaço público compondo o estilo de Tereza. Como coordenadora de

curso, toma ciência de muitos problemas dos estudantes e, muitas vezes, não sabe como

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ajudá-los. Vê muita diferença nos alunos que ingressam atualmente na educação superior em

relação aos que ingressavam anos atrás. Ajuíza que, mesmo chegando com muitas

informações, eles estão desorientados, não têm projetos, desistem com muita facilidade do

que almejam, valorizam muito a condição financeira, o que ela atribuiu ao consumo

exagerado do capitalismo. Tem dificuldade para trabalhar nas disciplinas que leciona porque

julga que os alunos da área da saúde não têm o hábito da leitura. Nota que eles valorizam os

professores que atuam no mercado de trabalho da Nutrição e que não veem a docência na

educação superior como uma atividade profissional do graduado em Nutrição.

Na UFMT, nunca atuou apenas no ensino, pois sempre assumiu alguma função de

gestão: coordenadora de curso, chefe de departamento, entre outras. A gestão, em geral, lhe

agrada. Gosta de coordenar projetos, de dar viabilidade para suas realizações. Tem apreço

pela organização e transparência nas ações e acha fundamental o respeito entre as pessoas que

partilham o mesmo contexto. Porém, desagrada-lhe ver a gestão nas universidades muito

vinculada às políticas públicas, às questões de financiamento, o que, em sua opinião, leva à

perda da criatividade e à falta de embates. Entende que as universidades perderam a

autonomia e as pessoas não dão conta disso. Não tem interesse por cargos de administração

superior porque acredita que eles tiram a liberdade das pessoas falarem o que pensam. Tem

apreço por projetos pontuais que denomina de seus, como a implantação de um novo modelo

de currículo no curso de Nutrição, seu atual empenho.

Para Tereza, vontade de conhecimento é vontade de si. Entende o conhecimento como

algo dinâmico, no sentido de que está sempre sendo construído. A paixão pelo conhecimento

e o interesse pelas políticas públicas levam-na ao mestrado em Educação e, depois, ao

doutorado na mesma área. No mestrado ela foi afetada pela pesquisa que não mais deixou. A

participação na Rede Universas de Pesquisadores e no Grupo de Trabalho de Políticas

Educacionais da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED)

são experiências que alimentam o seu interesse pelo estudo e debate das políticas públicas e a

repercussão dessas na educação superior.

A formação de Tereza, na área da Saúde e na área da Educação, conferia-lhe

características singulares. Não se via mais envolvida somente com as questões específicas da

Nutrição, então, resolveu discutir a formação dos profissionais da área da saúde e percebeu

que essa formação estava, necessariamente, vinculada a uma política de saúde e a uma

política de educação superior. O seu conhecimento havia extrapolado a nutrição, e mesmo a

saúde. Por outro lado, os conhecimentos da saúde, da nutrição, ainda faziam parte dela. As

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vivências nesse âmbito estão impregnadas no seu corpo, fazem parte do que ela é. No entanto,

vivências de outros contextos também a impregnaram. Nela, conhecimentos do campo da

educação ora se misturam aos da saúde, ora se emparelham, ou mesmo se suplementam como

diria Derrida.

Devido à sua formação na área da Educação, os professores da Faculdade de Nutrição

têm a expectativa de que Tereza resolverá os problemas da formação dos professores do

curso, o que a professora entende ser um equívoco. No entanto, as leituras que vem realizando

desde o doutorado lhe possibilitam dar uma contribuição nesse sentido, o que faz em uma

disciplina que leciona para o mestrado da área da Saúde.

Agrada-lhe mais trabalhar na graduação, que entende ser a principal finalidade da

universidade. Nutre cuidados maternais pelo ensino de graduação. Decepcionou-se com a

lógica da pós-graduação. O que mais lhe desagrada nesse nível da educação é a exigência do

cumprimento de metas e a busca por financiamentos, que em sua opinião, prejudica a

autonomia do pesquisador. Julga que o conhecimento construído nesse âmbito não contribui,

necessariamente, para o ensino de graduação e que a única contribuição da pós-graduação

para a graduação é a melhora da infraestrutura, como laboratórios e bibliotecas. Da pós-

graduação, tem apreço apenas pelo grupo de pesquisa porque com ele dá continuidade aos

seus estudos, alimenta instintos famintos por conhecimento. O seu projeto de pesquisa lhe

interessa, mas gostaria de ter mais disponibilidade para se dedicar a ele. Mesmo não sentindo

prazer em trabalhar na pós-graduação, continua atuando nesse nível.

Tereza não tem experiência com projetos de extensão, mas vê mais dinâmica e

melhores resultados nesses projetos do que nos de pesquisa. Talvez porque valorize mais as

ações de resultados imediatos.

A vontade de conhecimento vincula-se ao gosto pela leitura, que em sua opinião, não

deve se restringir às necessidades profissionais. No entanto, as leituras demandadas pelo

trabalho docente, principalmente pelas atividades da pós-graduação, restringem as leituras ao

campo acadêmico. Sente necessidade de leituras fora desse âmbito e gostaria de ter mais

disponibilidade para elas.

As novas tecnologias de comunicação, ou seja, a internet, com as suas redes sociais,

não a afetam. Tem preferência por contatos presenciais.

A estima pelo ensino de graduação aliada à preferência por realizações pontuais de

certa concretude são forças que, provavelmente, comparecem com bastante intensidade no seu

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empenho atual, que é a implantação do novo currículo do curso de Nutrição. Tem como

planos acompanhar a primeira turma desse currículo até a formatura e, depois, se afastar da

universidade. Pretende com a implantação desse novo currículo, deixar uma marca na

instituição e, mais especificamente, no curso de Nutrição, uma assinatura, diria Derrida.

Vê necessidade de se programar para a sua vida após a aposentadoria na UFMT. Com

formação na Nutrição e na Educação, crê que não poderá atuar no mercado da Nutrição, uma

vez que não fez a sua trajetória acadêmica preservando-lhe um espaço nesse mercado de

trabalho. Também não poderá trabalhar na área pedagógica, por não ser pedagoga. A solução

que Tereza encontra para esse impasse proveniente da sua peculiar formação, seu diferencial,

é novamente, aliar os conhecimentos das duas áreas de formação e se dedicar à formação do

profissional da saúde através da Associação de Ensino de Nutrição.

Sente-se realizada profissionalmente e declara que, se fosse o caso, optaria novamente

pela profissão docente e por viver em Mato Grosso. Vejo nessa declaração uma afirmação da

vida, vontade de potência, diria Nietzsche. A vida de Tereza é composta de amor, ódio,

prazer, desprazer, alegria, tristeza, decepção, raiva, indignação, realização...É a vida que ela

tem e ela a quer, inteira, de volta. Na afirmação da vida, Tereza produz sua diferença: essa sou

eu.

3.1.6 Um médico com sonho de ser professor

Dos professores ouvidos, o professor Edson Virgílio Martins é o único que não possui

Currículo Lattes. As informações sobre sua carreira foram relatadas por ele antes da entrevista

abecedária e são as seguintes: formou-se em Medicina no ano de 1981 pela Universidade

Federal de Juiz de Fora. É estatutário. Atua como cirurgião dermatológico, principalmente nos

casos de câncer de pele. Foi coordenador do Programa de Tratamento e Prevenção da

hanseníase no Estado de Mato Grosso. Por dez anos foi conselheiro do Conselho Regional de

Medicina do Estado de Mato Grosso. É oficial da reserva da Polícia Militar, tendo reformado

como tenente coronel. Foi diretor de saúde da Polícia Militar e diretor de saúde da Caixa de

Previdência e Assistência da mesma instituição. No ano de 1992 se tornou o primeiro

presidente da Sociedade Brasileira de Dermatologia Regional de Mato Grosso, cargo que

voltou a ocupar atualmente. No ano de 1988 foi contratado como professor substituto na

Faculdade de Ciências Médicas da UFMT e, em 2003, como professor convidado para

trabalhar na área de Dermatologia da mesma Faculdade. Atualmente, é um dos preceptores do

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Programa de Residência Médica em Dermatologia do Hospital Universitário Júlio Muller da

UFMT.

Edson atribui sua educação, primordialmente, a seus pais, embora fossem pessoas

muito simples. Julga que os professores que teve desde a infância, também tiveram papel

importante na sua constituição. Sua mãe era enfermeira e o levava aos hospitais onde

trabalhava. Ele conta que desde os cinco anos de idade dizia que ia ser médico. Daí, penso

que Édson foi afetado pelo ambiente de medicina desde criança.

Lembra com muito carinho e extrema gratidão de algumas professoras que teve desde

o antigo curso primário. Lembra, também, que desde essa época, seus colegas de escola

apreciavam estudar em sua companhia porque ele gostava de ensiná-los, de ajudá-los e acha

que tinha facilidade para isso.

Do Bacharelado em Medicina na Universidade Federal de Juiz de Fora, lembra-se de

vários professores pelos quais sempre teve grande admiração. Até hoje tem muita estima por

esses docentes que, em sua opinião, fizeram dele um homem de bem. Considera um deles

como seu eterno mestre, a quem entende dever tudo o que é hoje porque lhe abriu as portas da

dermatologia.

No curso de graduação, foi monitor da cadeira de Dermatologia. Como monitor,

preparava e ministrava as aulas práticas dessa disciplina para os alunos do quinto ano do curso

de Medicina. Desde que exerceu essa monitoria, sonhava em ser professor universitário. Ao

concluir o bacharelado, voltou para Cuiabá pensando em ser professor da UFMT, mas seguiu

outro caminho. Tem em mente que seria uma grande frustração para ele, não terminar a

carreira profissional como professor de uma universidade.

Vê a universidade como uma escola da vida, onde a pessoa recebe a formação

profissional e sai pelo mundo em busca das suas realizações. Porém, a vê, também, como uma

“faca de dois gumes”, porque o estudante cresce culturalmente, aprende muitas coisas boas,

mas também aprende algumas coisas que não são úteis para a vida.

Para Édson, a frase “o trabalho dignifica o homem” não é apenas um clichê. Tem

grande apreço pelo trabalho, o realiza com prazer, amor e dedicação. Vê a si próprio como um

trabalhador com mais competência para realizar o seu trabalho do que para ganhar dinheiro.

Nos finais de semana fica ansioso para chegar a segunda-feira e ir trabalhar.

Vê a docência como algo sublime, porque, em sua opinião, é uma ação que pode

mudar o mundo. Por esse motivo acha que é nobre ser professor. Acredita que existem

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pessoas que têm vocação para ensinar, tem um dom e amam o que fazem. Acha que todas as

pessoas são professores, uma vez que todas têm capacidade para ensinar alguma coisa. A

diferença é que umas recebem formação para a docência e outras não.

Lembra que, antigamente, a imagem do professor era de muito respeito; os professores

universitários ministravam aula de toga. Entende que, hoje, o magistério precisa ser mais

valorizado, olhado com carinho, com respeito, com dignidade. Edson tem esperança de que

isso aconteça.

Das atividades docentes na universidade, identifica-se mais com o ensino. Esse lhe é

prazeroso, faz muito bem para o seu ego, lhe traz plenitude de vida. Ajuíza que pratica o

ensino com amor e acredita que nasceu para fazer isso. Não obstante, geralmente se declara

médico, especificamente, dermatologista. Nunca fala que é professor universitário porque

acha que isso é essencial apenas para o seu ego. Como docente, não se considera uma

sumidade, mas crê que os seus alunos reconhecem que ele dá o melhor de si. Procura fazer

tudo da melhor maneira possível por acreditar mais no exemplo do que no discurso, quando se

trata de solicitar responsabilidade e disciplina aos alunos. Crê que a boa qualidade do

processo ensino-aprendizagem depende mais da dedicação dos professores.

Edson entende que a didática é importante para a transmissão do conhecimento, por

isso, o professor tem que ter. Compreende a didática como algo inerente à pessoa, porque

pensa que o docente pode ser bom professor até quando não tem muito conhecimento, desde

que consiga transmitir a essência dos conteúdos para os seus alunos. Por outro lado, ajuíza

haver pessoas que têm vasto conhecimento, mas não têm tendência, carisma, para transmiti-

lo, então, não conseguem ser bons professores. Pelo exposto, percebemos que Édson entende

o ensino como transmissão de conhecimentos e acha-se competente para fazê-lo desde os

tempos de aluno.

Tem em mente que o conhecimento é fundamental para o ser humano e distingue-o

em conhecimento da vida e conhecimento cultural. Para ele, existem pessoas que não tiveram

formação escolar, mas têm conhecimento da vida e isso também é cultura. Crê que também se

aprende com essas pessoas.

Aprecia muito literatura, mas não tem tempo suficiente para ler como gostaria.

Também gosta de escrever. Escreveu alguns livros. O livro mais recente que publicou, foi

escrito em parceria com um amigo. Trata-se de crônicas existenciais e líricas. Uma leitura da

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juventude que o tocou foi Meu Pé da Laranja Lima. Escreveu uma crônica intitulada Meu Pé

de Cabaça inspirada na obra de José Mauro de Vasconcelos.

Vê como coisas boas da juventude a energia, os sonhos e as realizações. Considera-se

privilegiado por conviver com jovens. Entende que ocorreram mudanças de padrões, por isso,

a juventude de hoje é diferente da juventude da sua época. Lembra que, em tempos atrás, os

estudantes tinham admiração, carinho, respeito e amor pelos seus professores, nos quais se

espelhavam. Hoje, muitos alunos não conseguem ver os professores como aqueles que podem

ajudá-los na preparação para a vida. Diz que não é o caso dos seus alunos da residência

médica, que são extremamente carinhosos e dedicados aos seus mestres. Quanto à

profissionalização, pensa que hoje existe maior dificuldade para os jovens devido à maior

competitividade. Para ele, os estudantes de Medicina não saem da universidade devidamente

preparados para exercerem a profissão com segurança. Os programas de residência médica

têm completado as lacunas da graduação, mas apenas os alunos mais estudiosos conseguem

uma vaga nesses programas. Além disso, devido à grande demanda pelos serviços médicos,

muitos cursos de Medicina foram criados no Brasil, ocasionando a entrada no mercado de

trabalho de um grande número de novos médicos e não existe infraestrutura suficiente para

que esses profissionais possam atuar de forma segura.

Como docente da UFMT, Édson dedica-se apenas ao ensino. Não faz pesquisa e nunca

assumiu cargo administrativo. Acredita que um gestor precisa ter conhecimento amplo e

grande senso de organização. Não se considera um bom gestor. Parece-lhe que, como

presidente da Sociedade Brasileira de Dermatologia Regional Mato Grosso, está fazendo uma

boa gestão, mas atribui isso à equipe que lhe dá apoio.

Tem como valores fundamentais a vida, o amor a si mesmo e às pessoas com quem

convive. Acha que as pessoas encantam umas às outras através da beleza interior, mas a

beleza externa também ajuda. Ver o belo lhe traz certa satisfação pessoal. Pensa que suas

alunas da residência médica têm muita chance de serem bem sucedidas profissionalmente

porque, além de inteligentes, têm boa aparência e são de famílias abastadas, isto é, poderão

contar com o apoio financeiro da família para se organizarem no início da carreira. Mas o belo

também está no que as pessoas têm dentro de si e na forma como passam isso para os outros.

Nesse sentido, entende que não se deve ter a beleza como o essencial da vida; é preciso buscar

o equilíbrio. Édson também vê beleza na natureza e na criatividade da arte.

Valoriza a qualidade de vida e entende que isso demanda ter tempo para trabalhar,

para divertir, para estar com a família e com os amigos.

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A ordem lhe cai bem. Crê que tudo que está em ordem caminha melhor. Edson

também é oficial militar da reserva. Talvez na origem dessa crença esteja a formação militar,

fortemente alimentada pela ideia de ordem.

Edson acha a internet interessante, mas pensa que é preciso haver um equilíbrio; que

as pessoas não devem se tornar dependentes do computador a ponto de abandonarem as

relações sociais, o prazer de encontrar um amigo pessoalmente. Não faz o receituário no

computador porque pensa que o contato com o paciente é maior quando esse é feito do

próprio punho. Acredita que para ser bom médico é preciso aprender os nomes dos pacientes,

tratá-los como se fossem da sua família. Ensina isso para os seus alunos.

Édson é um homem de fé. Atribui todos os acontecimentos da sua vida a Deus. Sente-

se realizado porque está concretizando todos os seus sonhos como médico e como professor.

A criação e a implementação da Residência Médica em Dermatologia no Hospital Júlio

Muller da UFMT é uma realização que o marcou. Com boas realizações e muita experiência

profissional, entende que este é o momento de passar para os jovens tudo que aprendeu, mas,

também, de aprender com eles.

3.2 REVERBERAÇÕES

Tomo emprestado de Monteiro o termo reverberar: “Coloquei-me ouvinte das

estudantes. Já comecei a reverberar minha fala a partir das vivências delas, ou seja, o modo

como me coloco diante do que ouvi” [grifo nosso].314

Reverberação é a “persistência de um som num recinto limitado, depois de haver

cessado a sua emissão por uma fonte”.315 Entendi que o termo era apropriado para o que eu

faria aqui. Som, porque ouvi narrativas; o recinto fechado, talvez, meus ouvidos. Orelhas

compridas, diria Nitezsche. Já foram mais. Para o filósofo alemão, “O método de ensino

acroamático cumpre o papel de dilatar orelhas, pois seduz pelo prazer de ouvir sem exigir o

empenho da resposta, do diálogo. São ouvintes passivos. Não é esse ouvinte que Nietzsche

qualifica como bom para ouvir as vivências”.316

314 MONTEIRO, 2004, p. 280. 315 FERREIRA, 1975, p. 1233. 316 MONTEIRO, 2004, p. 71.

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Então, assim como Monteiro na sua pesquisa de doutorado, coloquei-me como ouvinte

dos professores e agora reverbero minha fala a partir do que ouvi dos meus colegas de

docência.

Com a realização das entrevistas, constatei que a estratégia do uso das palavras para

dar um eixo orientador às entrevistas ajudou a evitar as narrativas cronológicas e no estilo de

histórias de vida, conforme esperávamos. Assim, para cada narrativa, pude perceber como o

professor é afetado pela ideia que cada palavra traz e, quando falam, dizem desses afetos. As

palavras oferecidas aos seis professores foram as mesmas, mas as afetações foram diferentes,

ou seja, os professores são afetados de forma diferente pelas mesmas ideias.

Vimos, também, que ao receber uma palavra, o professor não pensa no significado da

palavra, na ideia da mesma, mas naquilo a que essa ideia o remete. Por exemplo, quando lhe é

oferecida a palavra aula, ele não pensa na ideia de aula, mas a palavra aula o remete a uma

espécie de simplificação de toda a sua experiência com aula. Depois, eles falam dos seus

afetos. Nessa hora, os seus instintos também têm papel fundamental, buscam satisfazê-los.

Um fala da falta de formação pedagógica, outro das dificuldades com a didática, ou do

comportamento dos alunos na sala de aula, outro fala do prazer que o relacionamento com os

alunos lhe traz, enfim, são muito diversas as respostas, não há controle sobre isso. Quando o

pesquisador fala aula, não quer dizer que o professor vai falar apenas sobre aula, o que ele fala

depende de como foi afetado e as pessoas são afetadas de modo diferente pelas mesmas

ideias. Se a entrevista fosse pautada em questões como: “o que significa aula?” ou “o que

você entende por aula?” Provavelmente, as respostas seriam praticamente as mesmas: aula é

uma prática social e tudo mais que já se sabe.

Ao falarem sobre ensino, pesquisa, extensão, gestão, ou seja, sobre as atividades que

desenvolvem na universidade, nenhum professor disse literalmente, por exemplo, “eu não

gosto de dar aula”, ou “não tenho interesse em fazer pesquisa” ou ainda, “se pudesse escolher,

atuaria apenas na pós-graduação”, mas isso aparece nas narrativas, pelo menos nos sentidos

que atribuo a elas ao escutá-las.

Então, são oferecidos aos professores disparadores de imagens do pensamento que os

afetam de um jeito imprevisível. Desse modo, cada narrativa é ouvida como algo que emerge

do que é mais pessoal, ou seja, dos afetos que os constituem. Por isso, a diferença está nos

afetos que tomam uma narrativa e outra. Então, é necessário saber que tipos de afetos os

movem.

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O estilo do texto, ou da narrativa, diz do estilo do autor, no entanto, vários estilos

poderão comparecer em uma mesma narrativa, mas tomo como pressuposto que existe um

estilo preponderante. Como com as palavras da entrevista são oferecidos elementos próprios

da docência, são estilos da docência.

Nesse sentido, palavras remetem à docência como um gesto dessa vida. A docência

tem estilos e vou falar sobre alguns deles.

Eunice é professora das inovações tecnológicas. Formada em Ciência da Computação,

é prática, objetiva, dinâmica, tanto que atua no ensino, na pesquisa e na extensão,

concomitantemente. Ainda cursa o doutorado e é mãe de três crianças. A juventude a

favorece. Tem preferência por projetos de resultados imediatos. As novas tecnologias da

comunicação lhe são “familiares”. No ensino, sua marca é imprevisibilidade, criatividade,

proximidade com a linguagem e o pensamento dos alunos. A gestão lhe agrada, de modo

especial a coordenação de ensino de graduação. É bem sociável, faz questão de interagir com

pessoas de outras áreas para troca de experiências. O trabalho dá sentido à sua vida, qualidade

e ordem são imprescindíveis. Entende que sua profissão é o magistério. Sente-se realizada em

todos os aspectos de sua vida e acha que sentirá falta das atividades docentes quando se

aposentar.

A UFMT é para Norman, sobretudo, espaço de realização de um sonho. Considera-se

engenheiro de madeiras. Apesar de ter muita experiência com gestão, prefere o ensino e a

pesquisa, de modo especial, a última. Entende o ensino como transmissão de conhecimentos e

julga que alguns professores têm capacidade inata para essa tarefa. Tem em mente que o

elemento primordial da universidade é o aluno, mas não conhece os seus pelo nome. Acha que

a universidade deve ser apenas para os que têm capacidade para estar nela. De formação

rígida, sua tendência é transferir sua experiência como estudante aos seus alunos. Contudo, o

relacionamento com os estudantes lhe é prazeroso, tem muitos amigos entre eles. O ambiente

da pós-graduação lhe é mais agradável. Pretende continuar trabalhando mesmo quando tiver

direito à aposentadoria e se emociona ao pensar até onde pode chegar por estar na

universidade.

Filha de professores universitários, talvez a vida acadêmica na universidade fosse o

destino de Paola. O seu estilo da docência privilegia o ensino, onde diz ser irônica e arrogante.

Gosta de “sala de aula” porque é o espaço onde o conhecimento circula. A didática não a

afeta. O trabalho para ela não é um fardo. Como professora, quer respeito e não a distinção de

autoridade. Não tem com a profissão docente uma identidade de categoria. Sempre assumiu

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funções de gestão na UFMT, mas essas lhe suscitam impressões emocionais de

aprisionamento. Os processos sociais na universidade a incomodam, mas aprendeu a lidar

com eles. A leitura lhe é imprescindível. Não tem grande afetação com a ordem, mas pensa

que é necessária. A internet a encanta pela possibilidade de acesso ao conhecimento. A

docência, ao contrário do início da carreira, tem sido serena, tranquila e realizante.

Adriano não separa ensino de pesquisa, mas a maior importância atribuída à pesquisa é

notável. Cumpre com grande responsabilidade as atribuições do ensino, mas a pesquisa é a

sua paixão. Tem muita experiência com gestão na UFMT, mas é de opinião que os

professores não deveriam assumir funções de gestão: professor tem que ensinar e fazer

pesquisa. Tem forte convicção de que a docência é a sua profissão, mas a entende como uma

missão. O estilo pesquisador tem reflexos nas outras atividades docentes com a valorização do

estabelecimento e cumprimento de metas. Entende como condição para ser bom professor, o

cumprimento do que foi planejado. Seus instintos são de criações e inovações, por isso se

identifica com a juventude que, para ele, remete à energia, movimento, desejo de aprender e

fazer coisas novas. Quarenta horas e regime de dedicação exclusiva, é pouco para o que quer

produzir. Tem como principal atribuição do professor buscar mais conhecimentos e procurar

passá-los para os alunos. Gosta muito de dar aula e pensa que estudando mais, transmitirá o

conhecimento para os alunos de modo mais eficiente. Para ele, as aulas ficam mais

interessantes quando associadas à pesquisa. É contra autoritarismo, mas aprecia ordem,

disciplina e organização. Tem afeição pelos alunos, mas desagrada-lhe não dedicarem muito

aos estudos. Para um cientista social responsabilidade social é imprescindível. Na

aposentadoria, pensa em “desacelerar”, mas não parar de produzir. Realizar mais pesquisas e

mais publicações lhe é imperativo.

Em suma, falar do estilo da docência de Tereza é falar da preferência pela gestão e

pelo ensino de graduação, de modo especial pela coordenação deste, que parece ser uma

preferência feminina, pelo menos o foi nesta pesquisa. Interesse pelo debate sobre as políticas

públicas, visão muito crítica em relação ao contexto universitário, mas também crença de que

as mudanças necessárias podem ocorrer, também são elementos que compõem o estilo da

Tereza. O prazer com o trabalho docente merece ser destacado, bem como as opiniões que

contradizem e escapam ao senso comum universitário. A valorização da formação acadêmica,

assim como do aprendizado com a prática; a satisfação em coordenar projetos e dar

viabilidade para suas realizações; o apreço pela organização e transparência nas ações,

também merecem destaque. O instinto maternal que se desloca do espaço privado para o

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espaço público e se exprimi no carinho e afeição pelos alunos e a preocupação com a

educação e não apenas com a formação profissional deles é outro elemento marcante do estilo

da docência de Tereza. A busca permanente por conhecimento, o gosto pela leitura, a

preferência por contatos presenciais, a coragem de buscar formação em outra área do saber, os

planos para produzir após a aposentadoria...enfim, falar do estilo da docência de Tereza é

falar de afirmação da vida.

Édson é um médico dermatologista que sonhava em ser professor da universidade. A

docência para Édson se efetiva exclusivamente no ensino, que lhe é muito prazeroso. Acredita

na sua vocação para ensinar, o que faz com amor. Entende o ensino como transmissão de

conhecimentos e acha-se competente para realizá-lo. Crê que a boa qualidade do processo

ensino-aprendizagem depende mais da dedicação dos professores e quando se trata de

solicitar responsabilidade e disciplina aos seus alunos, procura fazer tudo da melhor maneira

possível por acreditar mais no exemplo do que no discurso. Aprecia muito literatura e gosta

de escrever. Escreveu alguns livros de crônicas existenciais e líricas. É crítico em relação à

formação dos médicos na atual conjuntura da educação superior brasileira. Para ele, os

estudantes de medicina não saem da universidade devidamente preparados para exercerem a

profissão com segurança. Com muita experiência profissional, entende que este é o momento

ideal para passar aos jovens os seus conhecimentos. Está realizando o seu sonho.

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CONCLUSÃO

Com a conclusão do trabalho, é chegado o momento de rever as propostas que,

inicialmente, foram realizadas para este estudo. Também há de se avaliar se os objetivos

foram alcançados e se a tese está defendida.

Nesse sentido, infiro algumas considerações. Este trabalho se propôs a compreender a

docência na educação superior, com relação a de professores que são oriundos de áreas não

voltadas ao ensino. Obviamente que essa compreensão não se esgotaria em uma pesquisa de

doutorado. Entendo que o trabalho traz elementos importantes para reflexões, debates e

muitas outras pesquisas sobre o tema que, certamente, ainda serão realizadas. Penso que a

maior contribuição para a compreensão da docência nesse nível da educação que este trabalho

traz é a ideia de que a docência é feita de estilos singulares, embora encontremos elementos

comuns no modo de ser do professor. Essa ideia é sustentada por uma lógica: as implicações

da vida para a constituição do estilo da docência.

A escuta das narrativas dos professores tornou mais perceptível os elementos

constituintes dos seus estilos de docência que, como vimos, são diversos. Vimos, também,

que compartilham saberes, opiniões e, até mesmo, estilos.

Quanto aos objetivos almejados, entendo que se não foram alcançados plenamente,

houve uma satisfatória aproximação. Com a estratégia usada para a coleta das narrativas, os

professores falaram das suas vidas e as narrativas, gravadas em vídeo, é um material

proveniente da vida para pensar a docência na educação superior, não apenas nesta pesquisa,

mas, também, em muitos outros estudos que, certamente, serão realizados. Esse material

poderá, principalmente, ser utilizado em outros trabalhos no âmbito do grupo EFF,

coordenado por Monteiro e do qual faço parte. Eu mesma tenho intenção de dar continuidade

a este estudo que, por hora, tem como principal finalidade a conclusão do meu doutoramento.

Outro objetivo perseguido foi compreender como a docência chegou à vida desses

professores, uma vez que não foram formados para ela. Vimos que os professores que

colaboraram com a pesquisa, não chegaram à carreira acadêmica por um motivo específico,

mas pela casuística do destino. Embora, para alguns deles, como Norman e Édson, a docência

na universidade fosse um sonho desde os tempos de alunos da graduação. No entanto,

Norman perseguiu esse sonho se preparando para ele com cursos de pós-graduação e Édson

preferiu seguir o caminho da medicina, ingressando na carreira docente somente muitos anos

depois. Para Eunice, a docência foi uma perspectiva objetiva de trabalho quando chegou a

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Cuiabá, mas foi afetada pela mesma de tal modo, que nunca mais a deixou. Paola, filha de

professores universitários, entende que esse era seu destino, talvez fosse mesmo. Adriano

desejava ser militar da Força Aérea ou engenheiro de aeronáutica. No entanto, cursou

economia concomitantemente com engenharia civil e quando teve contato com a pesquisa, foi

afetado de tal forma que não quis mais deixá-la. A universidade seria, então, um meio de

realização da sua vontade. Tereza não planejou a carreira acadêmica, objetivava ser

nutricionista. O ingresso dela no quadro docente da UFMT foi por um movimento de vontade

de expansão, desejava mudanças na sua vida, mas também a estabilidade de um emprego

público. Então, também para ela, a UFMT foi um meio de satisfazer seus instintos.

Lembremos Deleuze317 para quem os organismos têm tendências que se satisfazem nas

instituições. As pessoas vão se associando às instituições que alimentam os seus instintos,

conforme dirá: “Isso quer dizer que toda experiência individual supõe, como um a priori, a

preexistência de um meio no qual a experiência é levada a cabo, meio específico ou meio

institucional”.318

Outro objetivo orientador deste trabalho foi compreender os elementos constituintes

dos estilos da docência. Vimos, com a escuta das narrativas, que os elementos que constituem

os estilos da docência são os afetos. Monteiro319 diz que estilos comunicam os afetos

incorporados, por isso eles têm sentido. Para Nietzsche, o sentido de todo estilo é comunicar

um estado interior, um pathos interior. Um corpo não é constituído por apenas uma

configuração de estados interiores, mas por muitas, por isso, também existem diversas

possibilidades de estilos. Ao receberem cada palavra da entrevista, os professores foram

afetados e falaram de coisas diversas. Diversos estilos, diversos estados interiores, diversos

pathos, porque diversas são as vivências.

No terceiro capítulo, ao apresentar a escuta das narrativas dos professores, apresentei

os elementos constituintes dos estilos da docência de cada um deles e, a seguir, procurei

mostrar o que mais me chamou a atenção no estilo de cada um. Falei do estilo de cada um

deles como docente, porque falei de cada um quando a ele foram colocadas palavras da

docência.

Quando alguém se propõe a uma jornada como o doutorado, quando se propõe a

investir alguns anos da sua vida na realização de uma pesquisa que deve resultar em uma tese,

317 DELEUZE, 2005. 318 Id., ib., p. 20. 319 MONTEIRO, 2013.

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mais do que aprender e receber título, espera que o trabalho traga alguma contribuição para a

comunidade, para melhorar a vida das pessoas. Em sendo assim, penso que o aporte que este

trabalho traz é a proposta de uma nova perspectiva para se estudar a formação dos professores

da educação superior.

As ideias sobre formação dos professores da educação superior apresentadas na

contextualização da pesquisa, embora concisas, deixam transparecer a complexidade da

questão. A partir dos anos 1990, intensificou-se a preocupação com a apropriação da docência

por profissionais que não foram formados para exercê-la, os “ocupantes da docência”

conforme Pimenta e Anastasiou320. Muitos problemas no processo ensino-aprendizagem nesse

nível da educação são atribuídos à falta de formação específica desses professores para a

docência, o que tem levado as instituições a oferecer a seus professores a formação que,

supostamente, lhes falta. Contudo, conforme as ideias, opiniões e comentários de autores do

campo da educação apresentados neste trabalho, ainda é pequeno o número de instituições de

nível superior que assumem um compromisso efetivo com a formação dos docentes. As

iniciativas mais tomadas são: coordenação pedagógica, assistência pedagógica, formação

continuada, oficinas de didática, introdução nos currículos dos cursos de pós-graduação de

formação pedagógica, palestras e seminários. Até as pesquisas têm se voltado mais para esse

tema, como a que realizei. As respostas encontradas referem-se a currículo, à questão de

teorias, de política, à necessidade de entender a universidade, de construir os saberes

pedagógicos, entre outros. Enfim, as respostas são as mais diversas.

Embora entender a política, o currículo, o curso, a instituição, os saberes, seja

importante para a formação dos professores, neste trabalho adoto uma inversão de

perspectiva. Procuro olhar a formação dos professores a partir deles mesmos, melhor dizendo,

a partir da vida deles. É como se fosse uma epistemologia do sujeito, uma epistemologia da

pessoa e não da sua prática. Não se trata de subjetividade porque a subjetividade cai num

campo psicológico. Para o que chamo de epistemologia do sujeito, não busco a sua opinião,

mas os afetos ou como é afetado pelas palavras que remetem à docência. Como é afetado

quando lhe são colocadas palavras como política, currículo, curso, instituição, saberes, ou

qualquer outra que lhe remeta à docência. Então, a partir dessa perspectiva, temos um saber,

um pensamento, que nasce a partir da vida. É o eu pessoal não se distinguindo do profissional.

Eu substitui o eu pessoal por uma pessoa concreta: Eunice, Norman, Paola, Adriano, Tereza,

Édson, e procurei perceber como as palavras do âmbito da universidade os afetam.

320 PIMENTA E ANASTASIOU, 2005.

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Tenho em mente que o movimento que aqui realizo, de dar voz ao professor e, mais

ainda, de dar um tratamento diferenciado a essa voz, no sentido de buscar os afetos que

constituem os seus estilos de docência, pode ser o primeiro passo para que outros

pesquisadores comecem a adotar tal prática. A ideia da inversão da perspectiva com a qual se

olha a formação dos professores foi lançada neste trabalho se configurando em uma proposta.

Posteriormente, em outros trabalhos, com outras leituras, a partir dos afetos se possam

ensaiar valores, recalques, inaugurando assim, novos rumos para a epistemologia da docência

no ensino superior.

Nesta pesquisa exercitei o procedimento metodológico denominado método

otobiográfico, ou gesto otobiográfico, resultante da reconcepção do conceito de otobiografia

de Derrida, realizada por Monteiro, para as pesquisas em Educação. A utilização do método

otobiográfico é uma experiência recente e o objetivo dos que trabalham com ele é

desconstruir hábitos e crenças tradicionais, criando circunstâncias que favoreçam o

surgimento de novas perspectivas para as pesquisas na área de Educação. Nesse sentido, a

aplicação do conceito de otobiografia como método de escuta das narrativas dos professores,

representou mais um passo para a sua consolidação como método eficaz para as pesquisas que

trabalham com textos autobiográficos.

A oferta de palavras escolhidas previamente para as entrevistas, inaugurada nesta

pesquisa, mostrou-se um instrumento interessante, uma vez que atendeu ao esperado, isto é,

evitar as narrativas do tipo histórias de vida.

As impressões que apresento são perspectivas, uma vez que, embora fundamentadas

em operadores teóricos, têm a marca das minhas vivências, dos meus instintos, do meu estilo.

Sim, eu também tenho um estilo de docência. Não me intimida assumir esse perspectivismo

porque entendo qualquer pesquisa como um recorte da realidade. Entendo que na visão de

outros pesquisadores e até mesmo na minha própria, em outros momentos, em outras

circunstâncias, com outras preocupações e outras leituras, outros sentidos poderiam ser

atribuídos às narrativas.

Em Deleuze321, a repetição remete a uma potência singular, e dela não se pode deduzir

a generalidade: a diferença tem na repetição sua potência. Quando falam do conhecimento,

professores falam de si. São cientistas da computação, engenheiros, psicólogos, economistas,

nutricionistas, médicos: diferem entre si; afirmam-se como individualidade. Têm apreço pela

321 DELEUZE, 2009.

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gestão, pela pesquisa, por outras áreas. Professores transitam entre saberes. A docência não

lhes basta: querem algo que lhes distinga. Buscam por tarefas e fazeres que os tornem aquilo

que são. É destino deles. “A diferença habita a repetição [...] A diferença está entre duas

repetições”.322 Entre o que se repete, o ensino, a ordem, encontra-se o que difere: a gestão, a

pesquisa, o saber diverso, e isso não catalogável, pois é da ordem da diferença, do singular.

Isso dá ao ensino um tom de incompletude, daquilo que não preenche, afinal, nada teria esse

caráter. A questão é que ao docente da educação superior sempre haverá predicados que lhe

concedem outro sentido que não apenas o de trabalhar com o conhecimento em função dos

seus alunos. E não temos razões para não ter diante de si o indeterminado, ao menos se

seguirmos Deleuze quando diz, a partir da leitura que faz de Kant: “O indeterminado não é

uma simples imperfeição em nosso conhecimento, nem uma falta no objeto; é uma estrutura

objetiva, perfeitamente positiva, agindo já na percepção como horizonte ou foco”.323 Há um

horizonte diante daquilo que não se determina, uma positividade indicando caminhos da

diferença. Reduzi-la significará comprimir o que deseja ser expansão.

Professores da educação superior, além de lidarem com o ensino, assumidamente a

atividade primordial da universidade, fazem pesquisas, com menor frequência realizam

projetos de extensão e assumem funções de gestão. Os professores transitam por essas

atividades no decorrer das suas carreiras e não aflorou nesta pesquisa uma lógica que regule

esse movimento, provavelmente, porque não existe. Então, o que existe são impulsos

orgânicos, operadores fisiológicos: instintos, afetos, e esses são da ordem da idiossincrasia, da

singularidade, da individuação.

Penso que os professores devem procurar ter experiências estéticas diferentes e isso

passa pela arte. A sensibilidade advém da experiência estética e a arte também nos torna o que

somos porque a vida tem estilos. Não se apropria da arte porque se conhece, não há uma

educação dos sentidos. Daí a importância de se ter contato com o diverso, com o diferente,

com aquilo que escapa do hábito, do que é conhecido. Lembremos que para Nietzsche,

“prazer e desprazer são efeitos de complicadas apreciações reguladas por instintos”.324

A esse respeito, o filósofo dirá:

322 DELEUZE, 2009, p. 136. 323 Id., ib., p. 243. 324 NIETZSCHE, A sabedoria para depois de amanhã, Fragmento póstumo, 26[94] do verão ao outono de 1884.

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...nossos sentidos só aprendem tarde, e jamais inteiramente, a serem órgãos sutis, fiéis e cautelosos do conhecimento. Para o nosso olho é mais cômodo, numa dada ocasião, reproduzir uma imagem com freqüência já produzida, do que fixar o que há de novo e diferente numa impressão; isto exige mais força, mais “moralidade”. Ouvir algo novo é difícil e penoso para o ouvido; ouvimos mal a música estranha.325

Falo de pinturas, esculturas, filmes, peças teatrais, shows musicais, corais, orquestras,

literatura, entre outras experiências estéticas. A universidade dos meus sonhos é aquela na

qual professores das ciências exatas leem poesia, assistem a apresentações de corais, de balé,

frequentam galerias de arte... E os professores das ciências humanas, porque não, assistem a

palestras sobre noções de física quântica ou sobre a ideia do cálculo diferencial. Uma

universidade onde professores mais velhos vão a audiências de bandas de rock e os mais

novos aos concertos de música clássica. Enfim, tomo alguns exemplos para explicitar o meu

pensamento: os professores são afetados pelas experiências estéticas e, ao serem afetados,

criam estilos. Experiências nem sempre agradáveis, confortáveis, tranquilizadoras, mas,

muitas vezes, experiências que incomodam, que tiram do eixo, que desorientam... Enfim, que

produzam algum movimento, mesmo que seja para a perdição porque é preciso perder, é

preciso esquecer, para que o novo apareça. Há a ideia de que a universidade é o lugar onde

desperta-se a memória esquecida. Ao contrário, esqueçamos, experimentemos, façamos

experiências com o pensamento.

Outras questões podem ser levantadas a partir da escuta das narrativas dos professores

que, gentilmente, colaboraram com este trabalho. Espero ter produzido um discurso que seja

fértil para a produção de outros discursos, ou seja, que os leitores do meu texto se

identifiquem com ele, sejam fertilizados pelas ideias apresentadas, mas produzam os seus

próprios discursos, levantem as suas próprias questões.

“No limite, todo escrito é à sua maneira autobiográfico, todo pensamento traz à luz

uma existência”.326Aqui está um pouco da minha existência, do meu estilo, da minha vida,

da minha arte.

325 NIETZSCHE, Para além de bem e mal, §192. 326 MARTON, 2000, p. 49.

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