A Funcionalização Da Empresa e Seus Reflexos Sobre Os Consumidores

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  • PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO

    PUC-SP

    Deborah Pierri

    A funcionalizao da empresa e seus reflexos sobre os consumidores

    DOUTORADO EM DIREITO

    SO PAULO 2009

  • PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO

    PUC-SP

    Deborah Pierri

    A funcionalizao da empresa e seus reflexos sobre os consumidores

    Tese apresentada Banca Examinadora como exigncia parcial para obteno do ttulo de Doutora em Direitos Difusos e Coletivos pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, sob a orientao da Professora Doutora Patrcia Miranda Pizzol.

    SO PAULO 2009

  • Banca Examinadora

    _________________________

    _________________________

    _________________________

    _________________________

    _________________________

  • Dedico aos scios: Rubens Rihl e Luiz Pierri

    Amor e gratido

  • RESUMO

    O estudo volta-se ao direito fundamental de proteo aos consumidores. O universo

    jurdico (cdigos, sistemas, normas) e os instrumentos de atualizao do Direito

    (clusulas gerais, conceitos indeterminados, princpios e direitos fundamentais). O

    relacionamento entre o Direito e a Economia. A funcionalizao dos institutos de direito

    privado. Os princpios constitucionais como ferramentas de efetivao dos direitos

    fundamentais e instrumentos de conformao da propriedade. A propriedade empresarial

    e sua funo social. A funo social da empresa nas relaes de consumo e a influncia

    dessa perspectiva constitucional no relacionamento das empresas e dos consumidores.

    Palavras-chaves: funcionalizao dos institutos de direito privado, Direito e Economia,

    direitos fundamentais e princpios constitucionais, funo social da propriedade

    empresarial e sua relao com consumidores.

  • ABSTRACT

    The analysis refers to the fundamental right of consumer protection. The legal universe

    (codes, systems, rules) and the instruments of modernization of the Law (general clauses,

    indeterminate concepts, fundamental principles and laws). The relationship between Law

    and Economics. The functionalism of the private law institutes. The constitutional

    principles as tools of the applicability of the fundamental laws and of the acceptance of

    property. The business property and its social function. The social function of the

    company in consumer relations and the influence of such constitutional perspective in the

    company-consumer relationships.

    Keywords: functionalism of the private law institutes, Law and Economics, fundamental

    law and constitutional principles, social function of business property and its relation with

    the consumers.

  • SUMRIO

    INTRODUO ............................................................................................................................... 9

    1. A EXPERINCIA JURDICA .................................................................................................... 15

    1.1. Os sistemas de direito .......................................................................................................................... 15

    1.2. As codificaes .................................................................................................................................... 19

    1.3. Descodificao ou integrao .............................................................................................................. 21

    2. ATUALIZAO DOS CONTEDOS DAS NORMAS JURDICAS ........................................... 28

    2.1. Clusula geral ...................................................................................................................................... 28

    2.1.1. Definio. Espcies. Caractersticas. ...................................................................................... 29

    2.1.2. Funo ..................................................................................................................................... 32

    2.1.3. Vantagens e desvantagens na aplicao das clusulas gerais .................................................. 36

    2.2. Conceitos indeterminados ................................................................................................................... 39

    2.2.1. Definio. Espcies. ................................................................................................................ 41

    2.2.2. Valorao e discricionariedade ............................................................................................... 43

    2.2.3. Vantagens e desvantagens na aplicao dos conceitos jurdicos indeterminados ................... 45

    2.3. As normas constitucionais ................................................................................................................... 47

    2.3.1. Os direitos fundamentais ......................................................................................................... 48

    2.3.1.1 A interdisciplinaridade ..................................................................................................... 48

    2.3.1.2. A eficcia nas relaes privadas. O olhar de Alexy. ....................................................... 50

    2.3.2. Os princpios ........................................................................................................................... 54

    2.3.2.1. Princpios, regras e normas jurdicas ............................................................................... 57

    2.3.2.2 Os princpios e as antinomias ........................................................................................... 61

    2.3.2.3. Os princpios no direito privado ...................................................................................... 64

    a) A dignidade da pessoa humana ........................................................................................... 65

    b) A autonomia privada ........................................................................................................... 66

    c) A boa-f objetiva ................................................................................................................. 67

    d) direito privado e o princpio da responsabilizao civil ...................................................... 69

    e) O princpio da socialidade e da eticidade no direito privado ............................................... 69

    3. DIREITO E ECONOMIA .......................................................................................................... 75

    3.1. O Direito .............................................................................................................................................. 75

    3.2. A Economia ......................................................................................................................................... 79

    3.3. Interligaes e influncias ................................................................................................................... 83

  • 3.4. Anlise econmica do direito (AED) .................................................................................................. 92

    3.5. Direito e a nova economia mundial ..................................................................................................... 94

    4. A ORDEM ECONMICA CONSTITUCIONAL ......................................................................... 97

    4.1. Participao do Estado na vida econmica .......................................................................................... 97

    4.2. A ordem constitucional e o direito econmico .................................................................................. 102

    4.2.1. Ordem econmica, justia social e dignidade da pessoa humana ......................................... 104

    4.3. Marcas da globalizao na ordem jurdica econmica constitucional ............................................... 108

    5. A PROTEO AOS CONSUMIDORES ................................................................................ 116

    5.1. Os sujeitos relacionados no consumo ................................................................................................ 120

    5.1.1. Definio de consumidor ...................................................................................................... 120

    5.2.2. O conceito de fornecedor segundo a Lei 8.078/90. ............................................................... 127

    5.2.2.1. Fornecimento em rede ou cadeia de fornecimento ........................................................ 128

    5.2.2.2. Fornecedores e a gratuidade dos servios ..................................................................... 130

    5.3. Natureza jurdica da proteo ao consumidor.................................................................................... 132

    5.4. Os princpios assumidos pelo CDC ................................................................................................... 139

    a) Da vulnerabilidade ............................................................................................................ 143

    b) Da harmonizao dos interesses dos participantes da relao de consumo. ...................... 146

    c) Da represso aos abusos contra os consumidores.............................................................. 150

    5.5. Fornecedor versus Consumidor O litgio judicial ........................................................................... 154

    6. RESPONSABILIDADE DA EMPRESA ENFOQUE SOCIAL E JURDICO ......................... 168

    6.1. Responsabilidade social ..................................................................................................................... 170

    6.1.1. Conceito e evoluo histrica ............................................................................................... 175

    6.1.2. A atualizao do tema e a globalizao ................................................................................ 179

    6.1.3. A responsabilidade social como meta empresarial................................................................ 182

    6.2. Responsabilidade civil ....................................................................................................................... 185

    6.2.1. Elementos da responsabilidade civil subjetiva ...................................................................... 186

    6.2.2. Elementos da responsabilidade objetiva e outras anotaes ................................................. 189

    6.2.2.1. A responsabilidade objetiva como clusula geral no Cdigo Civil .............................. 190

    6.2.2.2. A responsabilidade objetiva no Cdigo de Defesa do Consumidor .............................. 192

    7. CONSIDERAES SOBRE O DIREITO DE PROPRIEDADE .............................................. 195

    7.1. A propriedade e sua perspectiva histrica ......................................................................................... 195

    7.1.1. A propriedade na modernidade ............................................................................................. 196

    7.1.2. A propriedade na contemporaneidade e seu real significado ................................................ 198

  • 7.2. A propriedade empresarial................................................................................................................. 200

    7.2.1. O conceito de empresa. ......................................................................................................... 203

    7.2.1.1. A concepo econmica de empresa ............................................................................. 203

    7.2.1.2. A concepo jurdica de empresa .................................................................................. 204

    7.3. Asquini e a construo da teoria da empresa ..................................................................................... 206

    7.4. A contribuio dos juristas brasileiros ............................................................................................... 207

    7.5. Teoria da empresarialidade. Supremacia da funcionalidade .............................................................. 208

    7.6. Atualizando a definio de empresa .................................................................................................. 209

    8. RELAES PRIVADAS: FUNO SOCIAL - EMPRESA - CONSUMIDORES .................... 212

    8.1. A perspectiva da funo na cincia do direito ................................................................................... 214

    8.2. Funo social: limitao ou conformao dos institutos jurdicos privados ...................................... 215

    8.3. Evoluo na aplicao da funcionalizao ........................................................................................ 218

    8.4. A funo social: pilar do direito privado de propriedade .................................................................. 221

    8.5. Funo social: princpio conformador das propriedades ................................................................... 227

    8.6. A empresa relacionada com o consumidor na perspectiva da funo social ..................................... 230

    8.7. Funo social, filantropia e responsabilidade social .......................................................................... 231

    8.8. Funo social da empresa: ampliao do conceito constitucional de propriedade ............................ 232

    8.9. A funo social da empresa nas relaes de consumo ....................................................................... 239

    CONCLUSES .......................................................................................................................... 261

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ........................................................................................... 275

  • 9

    INTRODUO

    Sutilmente despertada por fragmentos da obra clssica de COHEN1,

    principalmente nos sua escrita ps-crise de 29, igualmente encantada com o pensamento

    de BOBBIO2, em seus escritos de 1977 - Dalla struttura alla funzione: nuovi studi di teoria

    del diritto, o presente estudo desenvolveu-se sob o primado inabalvel de que o direito

    promocional e somente se realiza quando atende sua funcionalidade, que, em ltima

    anlise promover o bem comum.

    Interessante analisar a empresa, o modo como ela se relaciona com os vrios

    segmentos da sociedade, seus objetivos, compromissos sociais, pois na empresa que

    se integram funo diversa, sua relevncia tamanha que decises tomadas em seu

    mago repercutem de modo expressivo no desenvolvimento da sociedade.

    Compreendem-se pela experincia jurdica os motivos pelos quais nas

    economias capitalistas as empresas esto no eixo do desenvolvimento econmico e

    social, justificando racionalmente o esforo de vrios segmentos em prol da preservao

    da empresa.

    Nessa trajetria o estudo aborda a experincia histrica e jurdica na evoluo

    do conceito de empresa, realando-se o quanto na contemporaneidade h supremacia

    da funcionalidade.

    1 COHEN, Felix. O referido autor considerado um dos mais proeminentes juristas norte-americanos do sculo XX, escreveu Nonsense Transcendental e a Abordagem Funcional 35 Colum. L. Rev. 809, 1935 (trechos traduzidos e coletados pela Escola de Direito da Fundao Getlio Vargas) numa poca em que decises baseadas em princpio ou diretrizes juridicamente consagradas no eram to influentes quanto hoje. De qualquer modo, preocupado com a ineficincia dos discursos tericos, o racionalista americano props oposio acirrada ao positivismo normativista. Essa referncia importante para compararmos, ainda que de passagem, a grande crise do capitalismo mundial em 1929, do acirramento das tenses ligadas ao movimento sindical e da ascenso dos governos totalitrios, especialmente o nazismo e o fascismo, durante a dcada de 30 e o ceticismo com o Estado liberal e suas instituies, o que parece repetir-se nas primeiras dcadas do sculo XXI. 2 BOBBIO, Norberto. Da estrutura funo: novos estudos de teoria do direito. trad. de Daniela B.Versiani. Barueri: Manole, 2007. Bobbio props a funcionalizao do direito, indo alm dos estruturalismos de Kelsen, cujo objetivo terico precpuo foi regular a conduta dos indivduos. Para o mestre italiano, enquanto a estrutura do ordenamento envolve seus elementos (normas) e suas relaes recprocas, a funo volta-se orientao real e concreta onde cada elemento tem seu papel na realizao do direito.

  • 10

    O tema da funcionalidade da propriedade empresarial se renova na atualidade,

    observando-se coincidentemente que, a primeira grande crise econmica experimentada

    no sculo XXI, iniciou-se com negcios de consumo indevidamente entabulados com os

    adquirentes de crditos imobilirios.3

    O proposto ver a empresa no desempenho de sua funo social, em suas

    mltiplas dimenses, especialmente nas suas relaes com os consumidores.

    Nesse sentido h ntida e proveitosa relao com as experincias vividas pelas

    cincias jurdicas, que, como o direito do consumidor, tambm evoluram, por exemplo,

    na adoo de normas mais aptas a responder s demandas e situaes submetidas ao

    direito privado.

    As concepes e classificaes tradicionais da propriedade h muito se

    mostravam inadequadas. A propriedade empresarial mais do que qualquer outra foi vista

    ao longo de sculos como direito subjetivo inatingvel, exercido de modo alheio aos

    compromissos assumidos pela ordem e programa constitucional, quase totalmente

    reservado aos agentes estatais.

    Liberdade de agir, a concentrao de riquezas e a satisfao dos investidores

    foi alguns dos objetivos do liberalismo econmico, garantidos por frmulas jurdicas

    severas e impactantes; em contrapartida promessas de acesso e de igualdade de

    condies poucas vezes mostraram-se mais do que simples perspectivas.

    3 Vejam algumas notcias: Departamento do Tesouro dos EUA de um pacote para injetar at US$ 200 bilhes nas duas gigantes americanas do segmento de hipotecas, (....) a fim de evitar a falncia de ambas. (..) Ontem, o Departamento do Tesouro anunciou uma interveno federal na Freddie Mac e na Fannie Mae, profundamente afetadas pela recente crise dos crditos "subprime". O setor imobilirio americano enfrenta uma severa crise provocada por uma inadimplncia elevada em operaes de hipoteca de alto risco, que se espalhou pelo restante do setor financeiro e est na origem da recesso que ameaa a maior economia do planeta. (..) informou que as duas companhias passam a ser dirigidas em carter temporrio pela FHFA (sigla em ingls para Agncia Financeira Federal de Casas), que vai gerir as dvidas financeiras. (In: http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u442498.shtml, acesso em 08.09.08).

  • 11

    Essa precariedade com a igualdade, com a dignidade humana e com a tica,

    mostraram-se inadequados, criando um abismo social entre os que detinham e no

    detinham propriedades e poder.

    Sistemas fechados, cdigos hermticos, regras e regras, tornaram as cincias

    jurdicas frias, distantes do interesse pblico, do bem comum, enfim, dos objetivos

    primrios da humanidade.

    O movimento favorvel de funcionalizao do direito contribuiu em muito para a

    adoo de frmulas geis, aptas e prontas para se atualizarem. Nas regras, passou-se

    com freqncia a lidar com clusulas gerais, conceitos indeterminados e outras tcnicas.

    H no trabalho, preferncia justificada pela aptido e eficincia na adoo de

    tcnicas e de estudos tericos que prestigiam rigorosamente a ordem constitucional, isso

    porque, so os comandos constitucionais que vivificam e unificam o sistema jurdico.

    Facilitando a aplicao dos direitos fundamentais, dos valores e dos princpios

    constitucionais nas mais variadas situaes, inclusive naquelas eminentemente privadas

    e patrimonialistas, que a cincia jurdica no se afasta do seu grande compromisso que

    de servir ao homem.

    Ao longo do estudo, verifica-se o quanto princpios como o da justia social,

    dignidade da pessoa humana, livre iniciativa, autonomia privada, so compreendidos e

    por isso, podem ser plenamente aplicados de modo convergente na compreenso do

    direito e da economia, cincias que se completam e se influenciam reciprocamente.

    O trabalho tambm foca o desenvolvimento das relaes multifacetadas no

    desenvolvimento recproco do consumidor e do empresrio produtor ou prestador de

    servio.

  • 12

    De modo bem particular, as normas de proteo ao consumidor so visitadas e

    justificadas exuberantemente na ordem constitucional e infraconstitucional.

    Propositadamente um dos captulos do texto dedicado aos princpios assumidos pelo

    prprio Cdigo de Defesa dos Consumidores, particularmente os: da vulnerabilidade do

    consumidor, da harmonizao entre os interesses dos participantes e a represso aos

    abusos que contrariem os direitos dos consumidores.

    Nessa linha, o trabalho debrua-se sobre a responsabilidade da empresa para

    com terceiros, cuidando, porm, distinguir a opo empresarial pela responsabilidade

    social, amplamente debatida e divulgada pela grande Mdia, da responsabilidade jurdica

    da empresa tida como um dos vrios deveres do empresariado em assumir os resultados

    concretos ou potencialmente danosos aos consumidores.

    Na segunda metade do trabalho abordam-se as propriedades, especialmente a

    trajetria terica sobre a propriedade empresarial, que, assim como vrios outros

    institutos do direito privado (propriedade urbana e agrria, contratos etc), denotam a

    adoo do movimento pela supremacia na funcionalizao.

    H justificativas nessa opo, pois toda reflexo at ento havida em sede do

    direito pblico, estendeu-se a vrios e vrios institutos jurdicos clssicos, fala-se com

    facilidade na funo da propriedade, das cidades, dos contratos, das empresas.

    Hoje se exigem tambm aes dos agentes privados e das empresas, conforme

    os interesses sociais. Caso contrrio, ou h interdies ao manejo dos direitos no seu

    exclusivo interesse, ou se impem sanes aos que no observam essas conformidades.

    O estudo no deixa de encarar as dificuldades na aplicao dessas

    perspectivas, seno pelo conservadorismo dos que se limitam ao estruturalismo das

    normas, mas concretamente pela ambincia imposta pela globalizao, o que at bem

    pouco tempo era considerada como a grande soluo para a hegemonia do capitalismo.

  • 13

    Os planos das cincias econmicas suplantam tradicionais institutos, objetos

    peculiares das cincias jurdicas, por exemplo, arqutipos de soberania, de relaes

    jurdicas e at de direitos humanos.

    Os ensaios na contemporaneidade, mesmo antes da grande crise econmica do

    sculo XXI, de fato, caminhavam para a reflexo de novas perspectivas da empresa, no

    para tirar-lhe a fora motriz da ordem econmica, mas para coloc-la como fenmeno

    jurdico complexo que lida, por sobrevivncia ou imposio, com o dever de convivncia

    harmoniosa entre os interesses dos acionistas e dos anseios e

    interesses daqueles que com a empresa se relacionem .

    Nessa categoria esto os consumidores, concebidos no como simples

    adquirentes dos produtos e servios, mas parceiros reais com que a empresa pode

    compartilhar interesses.

    A exemplo da funo social da propriedade, dos contratos, etc, tambm o

    exerccio das atividades empresariais conformado pela funcionalizao, revelador de

    um dos princpios informadores da ordem econmica, sublinhado como uma das grandes

    orientaes da ordem jurdica, menos voltado limitao dos abusos, mais para garantir

    a atividade, equilibrando os interesses da empresa com os interesses da sociedade de

    consumo.

    O ponto culminante do trabalho procura clarificar a importncia da reafirmao

    dos anseios constitucionais de desenvolvimento da sociedade, tomando-se como

    referncia, as relaes jurdicas privadas entre as empresas fornecedoras de produtos e

    servios e os consumidores

    Se o direito tende a harmonizar os interesses, vasto o trabalho oferecido na

    seara do consumo. Fornecedores e consumidores parecem estar envolvidos num infinito

    conflito, cuja minimizao pretensiosamente se pretende oferecer pequena contribuio

    terica.

  • 14

    Vivenciar o princpio da funo social, enquanto dever da empresa, contribuir

    com a experincia jurdica, estimulando formas mais solidrias e ticas na produo,

    organizao e proteo dos consumidores, renovando as trilhas do Direito que sempre

    estaro na busca incessante da igualdade e da justia social.

  • 15

    1. A EXPERINCIA JURDICA

    No convvio social, antes e aps a sua morte, o homem no prescinde de um

    mnimo de ordem, que lhe garanta condies de exercer sua existncia e a de grupos

    sociais.

    O direito serve a isso e constitui-se, dentre as vrias possibilidades conceituais,

    um sistema de disciplina social, estabelecendo entre os homens poderes e deveres

    recprocos, geralmente por meio de normas impostas pelo Estado.

    1.1. Os sistemas de direito

    O ordenamento jurdico de um povo, mesmo um nico diploma legal, somente

    ser entendido quando houver mnima compreenso do sistema em que se insiram.

    Na verdade, o sistema d sentido e unifica os institutos e regras jurdicas.

    De fato, a expresso polissmica4, mas pode ser vista como

    estrutura particularizada, na qual se empregam vocabulrios especficos,

    correspondentes a certos conceitos e interpretaes prprias.

    No prisma do presente trabalho o sistema jurdico tratado como conjunto de

    elementos que determina o modo de aplicao do Direito.5

    Ao falar em sistema, estamos procurando introduzir um aspecto dinmico,

    em que sistema entendido como um conjunto de elementos que evoluem e interagem de modo relativamente uniforme, - como o sistema solar, na Astronomia, ou as clulas na Biologia. Os elementos do sistema jurdico so, (i) alm das normas, que precisam

    4 Considerado o sistema como conjunto de elementos materiais ou ideais que define algo (determinado astro no sistema solar), quanto o conjunto de instituies e mtodos adotados (sistema parlamentar). 5AZEVEDO. A. Junqueira. O direito ontem e hoje. Crtica ao neopositivismo constitucional e insuficincia dos direitos humanos. (In: Revista do Advogado, So Paulo: AASP, ano XXVIII, set. 2008, no. 99, p.7-14).

  • 16

    sempre de interpretao, (ii) as instituies jurdicas, como Advogados, Promotores e Juzes; (iv) a Doutrina; e (v) a jurisprudncia.

    De povo para povo, tempos para tempos, h variaes nos sistemas jurdicos. 6

    Tradicionalmente se subdividem em - abertos ou fechados, isto , cujo elemento

    distintivo a possvel interpretao dada ao contedo da norma.

    Diz-se aberto, o que permite ao intrprete apoiar-se na lei, nos fatos e nos

    valores externos; fechado, o sistema cuja referncia a prpria lei e os cdigos sem

    oferecer grande margem ao hermeneuta.

    Ressalte-se, o fechamento do sistema no se relaciona com a existncia de

    codificao, pois fechado o sistema que tem apoio quase exclusivo nas leis e nos

    cdigos, como o extremo a que chegou o movimento racionalista, capitaneado pelos

    filsofos Descartes e David Hume.7

    Isso tambm foi defendido por Windscheid, para quem o Direito era algo de

    contedo absolutamente racional e produto de elaborao cientfica.

    LARENZ explica bem o positivismo racionalista de Windscheid: 8

    Assim, adere WINDSCHEID idia do sistema lgico; no o fim de certa regulamentao, o sentido tico ou sciopoltico de um instituto ou de todo um sector do Direito que fundamenta a conexo intrnseca das proposies jurdicas, mas o serem comuns os elementos conceptuais que neles se repetem.

    6Nos sculos XII e XIII o sistema era aberto e com leis escritas inter-relacionado com outros micro-sistemas e valores: imperium, Igreja Romana e tradio escolar da Antiguidade. (MARTINS COSTA, Judith. As clusulas gerais como fatores de mobilidade do sistema jurdico. Revista dos Tribunais. So Paulo: RT. n. 680, p. 46-58). Respondendo s vrias possibilidades havidas no sculo XIV, a busca era pela segurana e certezas na aplicao do Direito, a base era a communis opinio doctorum. (MARQUES, Mario Reis. O liberalismo e a codificao do direito civil em Portugal. Apud: MARTINS COSTA, Judith. As clusulas..., op. cit., p. 48). 7S tem valor o passvel de conhecimento e verificao: De modo geral, ento, devemos considerar a distino entre justia e a injustia, como tendo dois fundamentos diferentes, a saber, o fundamento do interesse, quando os homens observam que impossvel viver em sociedade sem se restringir por meio de determinadas regras; e o fundamento da moralidade, quando esse interesse observado e os homens passam a ter prazer com a viso de que essas aes tendem para a paz da sociedade, e a sentir inquietaes com as aes que so contrrias a essa paz. (HUME, David. Algumas reflexes adicionais relativas justia e injustia. Os grandes filsofos do direito. org. Clarence Morris. So Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 206-7). 8LARENZ, Karl. Metodologia da cincia do direito. Lisboa: Fundao Calouste Gulbekian, 1997, p. 37.

  • 17

    At o final do sculo XIX esses pensamentos dominaram a cincia jurdica,

    mantendo o mundo jurdico num sistema fechado de razes e verdades, de construo

    lgica-matemtica, no qual as normas so deduzidas pelo raciocnio.

    De fato, os cdigos e as leis foram, desde muito, as principais fontes do direito,

    como observa FERRAZ: 9

    (...) em todos os tempos, o direito sempre fora percebido como algo estvel

    face s mudanas do mundo, fosse o fundamento desta estabilidade a tradio, como para os romanos, a revelao divina na Idade Mdia, ou a razo na Era Moderna. Para a conscincia social do sculo XIX, a mutabilidade do direito passa a ser o usual: a idia de que, em princpio, todo direito mude torna-se a regra, e que algum direito no mude, a exceo. Esta verdadeira institucionalizao da mutabilidade do direito corresponder ao chamado fenmeno da positivao do direito (Luhmann, 1972).

    Essas mesmas perspectivas afloram no trabalho de Kelsen, o mais legtimo e

    clebre representante do positivismo jurdico ou do positivismo voluntarista, que via o

    direito como produto da vontade das autoridades (voluntarismo), afastado dos juzos de

    valor, como recorda COELHO: 10

    (...) o conhecimento jurdico para ser cientfico deve ser neutro, no sentido de que no pode emitir qualquer juzo de valor acerca da opo adotada pelo rgo competente para a edio da norma jurdica.

    Pouco a pouco o positivismo desgastou-se, principalmente a partir da Revoluo

    Industrial, pois os fatos sociais passaram a exigir do sistema jurdico respostas mais

    rpidas e prontas s demandas.11

    9FERRAZ JUNIOR, Trcio S. Introduo ao estudo do direito - Tcnica, deciso e dominao. So Paulo: Atlas, 2001, p.74. 10COELHO, Fbio U. Para entender Kelsen. So Paulo: Saraiva, 2001, p. 4. Para o autor, Kelsen no admitia o juzo de valor e o considerava arriscado para a veracidade das afirmaes cientficas. 11Em especial na segunda fase da Revoluo Industrial (1860 a 1900). Essa compreendeu transformaes econmicas, polticas e sociais: da oficina artesanal (manufatura) fbrica (mquinas), da sociedade rural urbana (burguesia e proletariado), processo iniciado pela organizao fabril e trabalho assalariado. (In:www.senado.gov.br/comunica/historia/revolind.htm, ac. em 26/08/06).

  • 18

    Optou-se, ento, pelo sistema aberto, deixando a lei em si mesmo de ocupar a

    mesma posio privilegiada. Lembra CANARIS, a abertura do sistema jurdico relaciona-

    se com sua prpria sensibilidade s mudanas dos valores jurdicos fundamentais.12

    Essa mobilidade jurdica ser to ampla quanto maior for a aptido que houver

    para aceitarem-se mudanas sociais, como explica GONDINHO: 13

    Quanto mais rgidas forem as previses normativas, mais inflexvel ser o

    sistema, menor, portanto ser a sua mobilidade. Nesse sentido, no raro o sistema positivado estar em desarmonia com aquilo que pretende disciplinar, tudo isso levando s indesejveis crises da ineficcia social. Por outro lado, um sistema que adote previses normativas menos rgidas, cujo contedo dado sua vagueza, necessite de preenchimento constante, proporcionar maior mobilidade para as disciplinas legais, acompanhando, passo a passo, os avanos da sociedade.

    Com essa aptido que se inseriu no cenrio jurdico brasileiro o Cdigo Civil

    de 200214, prdigo no uso de princpios, conceitos indeterminados e de clusulas gerais.

    A despeito de todas as crticas que lhe possam ser atribudas, o novo Diploma

    permitiu, acompanhando ao menos em parte as mudanas sofridas pela sociedade, a

    atualizao do prprio Direito, como bem anotou MARTINS COSTA: 15

    O Cdigo Civil, na contemporaneidade, no tem mais por paradigma a

    estrutura que, geometricamente desenhada como um modelo fechado pelos sbios iluministas, encontrou a mais completa traduo na codificao oitocentista. Hoje, a sua inspirao, mesmo do ponto de vista de tcnica-legislativa, vem da Constituio, farta em modelos jurdicos abertos. Sua linguagem diferena do que ocorre com os cdigos penais, no est cingida rgida descrio de fattispecies cerradas, tcnica casustica. Um cdigo no totalitrio tem janelas abertas para a mobilidade da vida, pontes que ligam a outros corpos normativos mesmo os extrajurdicos e avenidas, bem trilhadas, que o vinculam, dialeticamente, aos princpios e regras constitucionais.

    12CANARIS, Claus W. Pensamento sistemtico e conceito de sistema na cincia do direito, Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2002, p. 281. 13GONDINHO, Andr O. Codificao e clusulas gerais. (In:Revista Trimestral de Direito Civil RTDC. Rio de Janeiro: Padma, 2000, vol. 2, p. 7). 14A reunificao do direito das obrigaes (civis e comerciais) e a insero de clusulas gerais na parte geral so duas das principais caractersticas do Cdigo Civil de 2002. 15MARTINS COSTA, Judith. O direito privado como um sistema em construo as clusulas gerais no projeto do cdigo civil brasileiro. (In: Revista dos Tribunais. So Paulo: RT, n. 753, p. 26).

  • 19

    H os que defendam a extino de todos os cdigos, proclamando a inutilidade

    desse formato na regulao da complexa vida social.

    Entretanto, essa dualidade: codificar ou no codificar exige minimamente

    reflexo madura sobre o melhor caminho a ser adotado, ou mais precisamente, o

    caminho mais legtimo para determinada nao ou sociedade.

    1.2. As codificaes

    Desde os tempos mais remotos os cdigos ocupam posio de destaque no

    ordenamento jurdico, consideradas tbuas reguladoras da vida social. 16

    Alis, dentre as vrias codificaes, dois especialmente marcaram poca, seja

    porque representaram novas idias sobre direitos e homens, seja tambm porque

    influenciaram e muito outros diplomas, a saber: Cdigo Napolenico de 1804 e o BGB

    Brgerliches Gesetzbuch (Cdigo alemo de 1900). 17

    No Brasil a experincia jurdica com as primeiras codificaes ocorreu no sculo

    XIX (v.g. Criminal de 1830; de Processo Criminal em 1832; o Cdigo Comercial de

    1850).18

    Vistos sob mltiplas perspectivas: ideolgica, poltica, tcnica e outras, os

    cdigos so concebidos como meios tcnicos e cientficos de sistematizao e unificao

    16O Cdigo de Hamurabi data de 1694 a.C e continha 282 clusulas, dentre elas a lei de talio. 17O BGB fruto do dissenso entre Savigny e Thibaut. Favorvel a codificao, Thibaut acreditava que a codificao daria segurana jurdica, j Savigny temia o engessamento das regras de direitos, incompatvel com o dinamismo das relaes na sociedade. O primeiro saiu-se vencedor, confiram-se: NERY, Rosa M. de Andrade. Introduo ao pensamento jurdico e teoria geral do direito privado. So Paulo: RT, 2008, p. 201-202. 18O Cdigo Comercial de 1850, parcialmente em vigor (v.g. ttulo dedicado ao direito martimo), regulou as relaes mercantis at o ano de 2002, ano em que o novo diploma unificou de modo expressivo as obrigaes civis e comerciais.

  • 20

    dos temas e matrias, eleitas de interesse pela comunidade. Sobre essa unificao,

    acompanhem-se: 19

    Uma codificao no surge por acaso, expressa uma tentativa de unificao,

    em nico corpo normativo, de um ramo do Direito Positivo de uma sociedade. Entretanto, mais que um conjunto de regras jurdicas sistematizadas, eleitas pelo legislador como convenientes a disciplinar determinados tipos de relaes jurdicas, um cdigo representa, ao mesmo tempo obra jurdica e ideolgica.

    Claro que h vantagens na unificao, melhora a apreenso do direito,

    minimizando as incompatibilidades entre as fontes. Correta afirmao de que os cdigos

    podem ser considerados trilhas possveis, dadas ao intrprete compreenso mais

    adequada do direito.

    Entretanto, as desvantagens no so poucas. Alis, muitos ponderam que os

    cdigos h muito j no cumprem sua funo, descompassados com a velocidade das

    alteraes ocorridas e menos com a heterogeneidade dos interesses hiper-

    especializados.20

    Os valores sociais e ideolgicos mudam com velocidade muitssimo superior

    aos considerados na legislao e codificao.21 A histria demonstra, valores dos

    cdigos clssicos, que sustentaram por tantos anos os ideais liberais, foram pouco a

    pouco perdendo o sentido e a utilidade.

    Se for aceitvel a idia de que os cdigos denotam opo poltica e ideolgica,

    por certo, tambm devem refletir modelos amplos, de padres mais adequados, enfim,

    imunes aos desgastes provocados com a mudana dos valores sociais.

    19GONDINHO, Andr O. Codificao..., op cit. 20LORENZETTI, apoiado em Umberto Eco e outros autores da obra A nova Idade Mdia, aduz que o direito, pela ineficincia do Estado ,vem sendo paulatinamente feudalizado. Os indivduos mantm-se nos seus feudos e do as solues, como, por exemplo, se a segurana pblica ineficiente, substitui-se pela privada. Privada tambm so as solues para a sade, escola, crdito. Pior a justia estatal que vem sendo substituda pela justia privada. Essa feudalizao, fruto principalmente das ineficincias do Estado, mina a fora dos cdigos, frutos que so da ao estatal. (LORENZETTI, Ricardo L. Fundamentos do direito privado. So Paulo: RT, 1998, p. 55). 21AMARAL, Paulo. A descodificao do direito civil brasileiro. (In: Revista do Tribunal Regional Federal da 1 Regio, Braslia, out./dez. 1996, p. 545-657).

  • 21

    Adequao e atualidade garantem o xito das leis e das codificaes, da

    porque so necessrias certas tcnicas legislativas, consideradas ferramentas teis (v.g.

    conceitos vagos ou indeterminados, princpios e clusulas gerais) ou pontos de apoio na

    lei que auxiliam a interpretao da norma e sua aplicao ao caso concreto..

    Em resumo, a descodificao do direito pode ser um caminho, mas tambm um

    novo modo de enxergar ou interpretar pode funcionar como mecanismo eficaz de

    atualizao do direito.

    1.3. Descodificao ou integrao

    Como foi dito, a insero na sociedade brasileira do novel diploma civil em 2002,

    substituto do j desgastado Cdigo Civil de 1916, provocou avalanche de crticas,

    principalmente dos que professam a desnecessidade dos cdigos em geral. 22

    Desde a Constituio de 1988, seus adeptos analisaram as profundas

    alteraes havidas nas relaes jurdicas civis, que se adaptaram mais a partir de vrias

    decises judiciais mais arrojadas e tambm pelo trabalho do Legislativo (v.g.locaes,

    parcelamento do solo, relaes de consumo, criana e adolescente).

    Esse movimento de descodificao disseminou-se em todo o mundo, como bem

    esclarece TEPEDINO: 23

    Pouco a pouco, o esmorecimento do interesse pelo velho projeto de lei

    parecia coincidir com a perda da centralidade do Cdigo Civil no sistema de fontes normativas. Assim como na Europa Continental, numerosas leis especiais passaram a regular setores relevantes do ordenamento, na medida em que a disciplina do Cdigo era considerada mais e mais ultrapassada. Este processo, amplamente registrado em doutrina, conhecido como movimento de descodificao, na experincia brasileira reservou Constituio de 1988 o papel de reunificador do sistema.

    22FACHIN, Luiz E. e RUZYK, Carlos E.P. Um projeto de Cdigo Civil na contramo da Constituio. (In: Revista Trimestral de Direito Civil. vol.4. Rio de Janeiro: Padma, 2000, p. 243 ss.) 23TEPEDINO, Gustavo. Crise de fontes normativas e tcnica legislativa na parte geral do Cdigo Civil de 2002. (In: A parte geral do novo cdigo civil: estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 15-33).

  • 22

    De fato, h muito que o cdigo no poderia mesmo ocupar o eixo central na

    interpretao do direito privado.24 Entretanto, intil no se dar aproveitamento s

    experincias jurdicas, postas pela Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002, pois, de modo

    geral, esse novo diploma civil brasileiro adotou corretamente a sistemtica de outros

    cdigos exemplares que, por essa razo sempre foram bastante prestigiados (v.g cdigo

    civil alemo -1896; italiano-1942; portugus-1966). Isto porque, seguindo os passos e

    tcnicas do constituinte, deu trato especial manejando clusulas gerais e princpios.

    Partilha-se a idia de que a complexidade da vida contempornea no condiz

    com a rigidez de um nico sistema codificado. Entretanto, o diploma de direitos privados

    em 2002 foi editado com considervel envergadura tcnica e principiolgica, permitindo-

    se discordar dos que vem os cdigos como bices ao desenvolvimento do direito civil e

    da prpria sociedade.

    Alis, essas mesmas tcnicas parecem ter inspirado o surgimento de mini

    codificaes providas de contedos multidisciplinares, mais aptos a atender aos novos

    direitos, como ocorreu com temas relacionados - ao consumidor, ao meio ambiente, a

    criana e adolescente: 25

    O douto em Direito torna-se, pouco a pouco, um exegeta, um tradutor da lei

    especializada. Isso conduz perda da globalidade, da pretenso de regular a sociedade em seu conjunto, o que era a finalidade precpua dos Cdigos.

    Os juristas so unnimes em proclamar, mesmo nos sistemas mais abertos,

    patamares mnimos de regulao. Tome-se, por exemplo, o movimento quase universal

    24Confiram-se os sinais de mudana: 1.EMENTA: Pacta sunt servanda. Este princpio comanda o acordo de vontades. Qualquer exceo, decorrente de princpio de ordem pblica, mais valiosa de que o interesse dos particulares, deve ser demonstrado, por quem a suscita-(TJDF APC5683, rel. Luiz Vicente Cernicchiaro, 2 Turma Cvel, j. 30/08/1978, acesso em 28/08/2006); 2.EMENTA: APELAO CVEL - AO ORDINRIA REVISIONAL DE CONTRATO BANCRIO - FORA OBRIGATRIA DOS CONTRATOS (PACTA SUNT SERVANDA) - PRINCPIO MITIGADO PELA NOVA REALIDADE CONTRATUAL DE MASSA - POSSIBILIDADE DE CONTROLE JUDICIAL VISANDO ESTABELECER O EQUILBRIO CONTRATUAL - CAPITALIZAO MENSAL - IMPOSSIBILIDADE DE INCIDNCIA - VEDAO LEGAL (...)1. Sem embargo de a parte ter anudo com o contrato, tendo em vista os princpios norteadores do direito e a mitigao da autonomia da vontade, os contratos bancrios, tpicos de adeso, esto sujeitos apreciao pelo Judicirio, sendo permitida a reviso, visando estabelecer o pretendido equilbrio contratual. (TJPR, Ap.C.n 0170251-0, rel. Milani de Moura, 6 CC, j. 25/10/2005, acesso em 28/08/2007). 25LORENZETTI, Ricardo L. Fundamentos..., op. cit., p. 57.

  • 23

    de proteo indispensvel dos direitos humanos, do meio ambiente, da qualidade dos

    produtos, tica nas empresas, dignidade da pessoa humana, entre outras.

    Sabe-se que essa regulao mnima indispensvel na garantia da dignidade

    da pessoa humana, contedo nuclear do Direito no mundo, mesmo que o seu contedo

    assuma contornos bastante diversos de pas para pas, como leciona GARCIA: 26

    A preocupao com a dignidade da pessoa humana tem encontrado

    ressonncia numa generalizada consagrao normativa, geralmente no prprio texto constitucional, assumindo o status de norma estruturante de todo o ordenamento jurdico. Apesar disso, no divisada uma unidade metodolgica quanto ao lugar por ela ocupado e exata extenso da inter-relao mantida com as normas de organizao estatal e com a prpria disciplina dos direitos fundamentais, em especial com os direitos econmicos, sociais e culturais. A partir de uma situao aparentemente isonmica de liberdade, os Estados, por seus respectivos poderes constituintes, conferem um tratamento diversificado dignidade da pessoa humana.

    No tiramos a razo dos que proclamam a descodificao como soluo para

    algumas naes, mas, num pas como o Brasil, tradicionalmente de ordem jurdica

    codificada, isso parece imprprio e improvvel e de pouco resultado.

    A discusso sobre o valor da codificao h tempos ganhou novo enfoque, pois

    indiscutvel sua utilidade como mecanismo de unidade e ordenao do direito (civil, penal

    etc).

    Alis, o que est em jogo e ocupa a preocupao dos juristas, a tcnica de

    criao das normas jurdicas, como bem lembra NERY:27

    Hoje o plo de discusso a forma de se codificar o direito civil: se por

    intermdio de grandes codificaes (v.g. Cdigo Civil) ou por meio de pequenas codificaes setorizadas, isto , por microssistemas (v.g. Lei do Divrcio, Lei do Inquilinato etc); se por meio de conceitos jurdicos fechados, totalitrios, ou se por intermdio de conceitos legais indeterminados, de conceitos determinados pela funo e por clusulas gerais.

    26GARCIA, Emerson. Dignidade da pessoa humana: referenciais metodolgicos e regime jurdico. (In: Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n 719, 24 jun. 2005. In: jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6919, acesso em 26 de julho de 2006). 27NERY, Rosa M. de Andrade. Introduo ao pensamento..., op.cit., p. 202.

  • 24

    Tambm considervel a preocupao com o manejo da tcnica de interpretar

    o contedo das normas, de modo a dar consistncia e integrao aos direito. Essa a

    medida mais adequada, no somente para atualizar a ordem jurdica, mas principalmente

    para dar atendimento efetivo s necessidades sociais.

    Sem razo os que defendem a edio de novas leis, o que no Brasil

    indesejvel, at porque notrio o desprestgio do poder normativo, ora motivado na

    precariedade intelectual e moral de parte dos polticos, ora porque amarga a

    experincia com o cipoal de leis e atos normativos.

    De verdade, no h ordem jurdica operativa sem interpretao atualizada e

    integrada ao sistema jurdico, como, alis, proclamava SICHES: 28

    Respecto del primer punto, de la perentoria necesidad de interpretacin, ntese que sin interpretacin no hay posibilidad alguna ni de observncia ni de funcionamiento de ningn orden jurdico. No puede existir ningn orden jurdico sin funcin interpretativa, porque las normas estn destinadas a ser cumpridas y, em su caso, impuestas por los rganos jurisdiccionales y ejecutivos. Ahora bien, las normas generales constitucin, leyes, reglamentos hablan del nnico modo que pueden hablar: e trminos relativamente generales y abstractos. En cambio, la vida humana, las realidades sociales, en las cuales las leyes deben cumplirse y, en su caso ser impuestas, son siempre particulares y concretas. Por consiguiente, para cumplir o para imponer una ley o un reglamento es inelidiblemente necesario convertir la regla general en una individualizada, transformar los trminos abstractos y genricos en preceptos concretos y singulares. Y esto es precisamente lo que se llama interpretacin del Derecho.

    Medidas provisrias29, leis que no se comunicam, que se modificam por

    decretos, que perdem a eficcia pegam ou no pegam, formam uma teia jurdica

    impenetrvel e sem quase nenhuma utilidade.

    28 Em traduo livre: Quanto ao primeiro ponto, h necessidade da interpretao, note-se que no possvel sem interpretao, a observncia ou funcionamento de qualquer ordem jurdica. No pode haver qualquer fundamento jurdico sem interpretao, pois regras se destinam ao cumprimento. No entanto, as regras gerais - Constituio, leis, regulamentos falam do nico modo como podem, isto , de modo geral e abstrato. Em contrapartida, a vida humana, as realidades sociais so sempre particulares e concretas. Portanto, para cumprir ou para fazer cumprir uma lei ou regulamentao necessrio individualizar a regra geral, transformar o abstrato e genrico, em condies especficas e nicas. Isto o que precisamente se denomina interpretao da lei. (SICHES, Luis R. Introduccion ao estdio del derecho. Mxico: Editorial Porru, 1979, p. 210-211). 29(...) uso abusivo de Medidas Provisrias fere a tica do Direito, ao usurpar a capacidade legislativa do Congresso Nacional e ao comprometer o equilbrio entre os Trs Poderes, nico anteparo democrtico ao Despotismo. (...) Com um ordenamento jurdico em constante mutao, fica impossvel aos operadores do Direito desempenharem, a contento, seu papel. (..) O magistrado, por sua vez, ter de julgar com base em leis casusticas fomentadas pelo Executivo, sendo que muitas delas so de interesse inequvoco deste Poder. Na prtica, o emprego das MPs tornou-se pernicioso, solapando funes constitucionais do Legislativo e

  • 25

    Contudo, as falhas no atendimento e inadequao das respostas s grandes

    questes jurdicas no podem ser atribudas codificao. Na verdade, a interpretao

    sria e dedicada dos elementos bsicos do sistema, espalhados nos cdigos, nos

    tratados, costumes, princpios e principalmente nas constituies, que unificam e

    legitimam o sistema normativo.

    Nesse trabalho de construo jurdica, todas as fontes que traduzem normas

    fundamentais devem ser esmiuadas na busca do justo, pois na contemporaneidade, a

    hermenutica readquiriu fundamental importncia, como demonstra a experincia jurdica

    vivida em nosso pas, no qual as relaes privadas passaram por uma nova lente e por

    ampla reformulao. 30

    Na contemporaneidade no h mais espao para sistemas fechados, ao

    contrrio, o trabalho do hermeneuta no se vincula cegamente aos escritos legais e s

    estruturas da norma jurdica, pois encontram inseridos num sistema jurdico mais amplo e

    abrangente.

    De fato, todas as verdades, mesmo as jurdicas, so relativizadas quando

    houver comprometimento dos valores fundamentais da sociedade.

    Mltiplas so as possibilidades. No vale somente a razo pura, mas tambm a

    intuio pelo justo, como recorda AZEVEDO, lembrando-se das lies de Coreth e

    Grondin em defesa de novos padres de interpretao: 31

    Verificada a fragilidade da razo, no deve, pois o jurista afast-la, mas, sim, colocar a seu lado, como um arrimo, a intuio do justo. Afinal, interpretar, como revelam

    aos direitos dos cidados. (AIDAR, Carlos M. Medidas provisrias ferem a tica do direito. In: http://www.oabsp.org.br/palavra_presidente/2001, acesso em 18.03.2008.). 30Parece-nos que o problema da justia ultrapassa a mera indagao sobre haver normas justas e injustas, porque esse aspecto respeita apenas correspondncia que se espera que haja entre as normas e os valores que inspiram determinado ordenamento jurdico, o que no necessariamente encerra a discusso em torno do direito e da justia, mormente se a questo for vista sob a tica da equidade, ou seja, dessa necessidade que se impe ao cientista do direito de, ao interpretar o ordenamento, evitar conseqncias injustas da norma. (NERY, Rosa M. de Andrade. Introduo...., op. cit., p. 18). 31AZEVEDO, A. Junqueira de. Caracterizao jurdica da dignidade da pessoa humana. (In: Estudos e pareceres de direito privado. So Paulo: Saraiva, 2004, p.3-23).

  • 26

    alguns profundos trabalhos de hermenutica, no apenas entender intelectualmente, tambm intuir especialmente no caso do direito, em que o objetivo final manter a vida e resolver os problemas existenciais da pessoa humana no seu relacionamento recproco. Saudemos, pois, sem medo, tambm esse aspecto do mundo ps-moderno.

    No mesmo caminho da busca pelo justo: 32

    O primeiro compromisso do julgador com a justia; (...) O intrprete no

    um ser solto no espao, liberto de todas as peias, capaz de por a ordem jurdica entre parnteses. Ele atua com a ordem jurdica, fazendo-a viva no caso concreto. Inserido no ambiente social onde vive, tem o dever de perceber e preservar os valores sociais imanentes nessa comunidade, tratando de realiz-los. No pode fazer valer sua vontade a esses valores.

    Na contemporaneidade vive-se alto grau de insatisfao, com constantes

    questionamentos sobre o papel das instituies poltico-jurdico33, dado que o primado

    dos aplicadores e dos intrpretes a unificao do sistema jurdico. Transborda-se o

    direito positivado sempre que necessrio, invocando-se os princpios gerais, a equidade,

    os postulados polticos, dentre outros.

    O mnimo exigvel que se v alm da norma escrita, que haja envolvimento

    com os princpios gerais do direito e com os valores fundamentais da sociedade.

    Mesmo em decises de casos concretos individuais, so verificveis incontveis

    conseqncias no mundo real, o que exige do aplicador o desdobro de responsabilidades

    em suas criaes, conforme as advertiu ENGISH: 34

    Escopo da interpretao uma compreenso da norma tal que torne possvel a deciso justa no caso concreto. O juiz chega deciso justa no caso concreto especialmente resolvendo em certa direo a tenso entre a segurana jurdica e justia (...)

    As intenes do legislador no importam, mas ao aplicador compete buscar o

    real sentido das expresses utilizadas pelo legislador, nunca estreitas e nem absolutas.

    32AGUIAR, Ruy R. Interpretao. (In: Revista AJURIS. Porto Alegre. vol. 45, 1989, p. 07-20). 33Os positivistas veem o direito como conjunto de regras perfeitas. Ao aplicador competiria to somente, por meio do conhecimento, apreender o contedo e aplic-los aos casos concretos. Os anti-racionalistas tm a interpretao no como ato de conhecimento, mas ato de vontade. Essa vontade sofre influncias. O Direito visto como justo ou injusto. Idem. Ibidem. 34ENGISCH, K. Introduo ao pensamento jurdico. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2004, p. 201.

  • 27

    Alm dos tradicionais princpios, normalmente invocados como norteadores na

    soluo de casos concretos, existem outras tcnicas que tambm propiciam abertura do

    sistema, pois como enunciados abstratos colocados na lei, exige do aplicador o

    preenchimento de seu contedo.

    Nos sistemas jurdicos abertos h prodigalidade na utilizao de conceitos

    vagos, indeterminado, discricionariedades, clusulas gerais,35 tornando quase invivel ao

    mais capacitado dos intrpretes conservadores, analisar as questes colocadas sob o

    ngulo simples da lei.

    Alis, ao aplicador compete dar contedos mais adequados aos termos legais e

    jurdicos, solucionando o caso concreto com maior eficcia.36 Isso demanda seletividade,

    especialmente por parte dos magistrados, em relao s vrias opes interpretativas e

    mltiplas possibilidades oferecidas pelas clusulas gerais, conceitos indeterminados,

    princpios, dentre outras frmulas.

    O principal que se valorizem ao mximo os preceitos constitucionais e, dentre

    eles, principalmente os que afirmam os direitos e valores fundamentais da sociedade,

    como, por exemplo, a defesa e proteo jurdica dos consumidores.

    35Difundiram-se, assim, largamente, nos textos normativos, os conceitos jurdicos indeterminados, a serem concretizados pelo julgador no caso a decidir, e as clusulas gerais, como a da boa-f (falou-se at mesmo em fuga para as clusulas gerais, ou seja, a fuga da lei para o juiz). Noes vagas, como ordem pblica, interesse pblico, funo social, tornaram-se moeda corrente no mundo jurdico, servindo a torto e a direito para as autoridades de planto. Multiplicaram-se na doutrina, os trabalhos sobre o papel do juiz, sua funo, sua independncia, sobre o modo como deve interpretar, etc. (AZEVEDO, A. Junqueira de. O direito ps-moderno e codificao. In: Estudos e pareceres ..., op. cit., p. 55-63). 36Portanto, a mesma expresso abstrata, dependendo da funcionalidade de que ela se reveste dentro do sistema jurdico, pode ser tomada como princpio geral do direito (vg. Princpio da boa-f no positivado), conceito legal indeterminado (v.g boa-f para aquisio da propriedade pela usucapio extraordinria CC 1238 e 1260) ou clusula geral (boa-f objetiva nos contratos CC 422) (NERY, Rosa M. de Andrade de. Introduo ao pensamento... op. cit., p. 210).

  • 28

    2. ATUALIZAO DOS CONTEDOS DAS NORMAS JURDICAS

    2.1. Clusula geral

    Assim como muitos outros fenmenos jurdicos que se inter-relacionam com

    fenmenos econmicos, o manejo das clusulas gerais tambm decorreu da

    necessidade de superao da hiper-inflao no ps I Grande Guerra.37

    Interpretao inteligente de alguns pargrafos do Brgerliches Gesetzbuch

    (BGB) permitiu, que na Alemanha do ps-guerra, os contratos pudessem ser mantidos,

    conforme lies de MENKE: 38

    poca, o BGB contava com apenas duas dcadas de vigncia, e, em trs

    pargrafos, at ento praticamente adormecidos, a jurisprudncia alem encontraria a soluo para afastar o desequilbrio gerado em milhares de relaes contratuais. Os trs pargrafos foram mais tarde denominados de famous three. Eram os pargrafos 138, 242 e 826, cuja caracterstica central a de autorizar explicitamente o uso de idias morais como boa-f e bons costumes.

    Aps o BGB, as clusulas gerais nunca mais deixaram de ser adotadas e

    prestigiadas, teis na amplificao e atualizao das leis e dos cdigos, pois se adapta a

    realidade e oxigenam o sistema jurdico.

    Esclarecedoras so as palavras de COUTO e SILVA: 39

    (...) dotar a sociedade de uma tcnica legislativa e jurdica que possua uma unidade valorativa e conceitual, ao mesmo tempo em que infunda nas leis especiais essas virtudes, permitindo doutrina integr-las num sistema, entendida, entretanto, essa noo, de um modo aberto.

    37Tambm no Cdigo Napolenico havia diversas clusulas gerais, mas a teorizao decorreu do efetivo emprego dado pela magistratura alem. Os autores convergem em atribuir aos pargrafos 138, 242 e 826 do BGB a origem histrica das clusulas gerais. (MARTINS COSTA, Judith. A boa-f no direito privado. So Paulo: RT, 1999, p. 291). 38MENKE, Fernando. A interpretao das clusulas gerais. A subsuno e a concreo dos conceitos. (In:Revista do Direito do Consumidor. So Paulo: RT, 2004, vol. 50, p. 9-35). 39COUTO E SILVA, C. O direito civil brasileiro em perspectiva histrica e viso de futuro. (In: Revista dos Tribunais. So Paulo: RT, vol. 628, 1988, p. 7-18).

  • 29

    2.1.1. Definio. Espcies. Caractersticas.

    As clusulas gerais so normas orientadoras ou diretrizes, que devem ser

    observadas pelos juzes, como esclarecem as lies de TEPEDINO: 40

    Cuida-se de normas que no prescrevem uma certa conduta, mas,

    simplesmente, definem valores e parmetros hermenuticos. Servem assim como ponto de referncia interpretativo e oferecem ao intrprete os critrios axiolgicos e os limites para a aplicao das demais disposies normativas.

    Com efeito, so formulaes genricas e abstratas contidas na lei, como anotam

    NERY e NERY: 41

    Com significao paralela aos conceitos legais indeterminados as clusulas

    gerais Generalklauseln so normas orientadoras sob forma de diretrizes, dirigidas precipuamente ao juiz, vinculando-o ao mesmo tempo em que lhe do liberdade para decidir (Wieacker, Privatrechtsgeschichte, 25, III, 3, p. 476/77).

    Contudo, em ENGISCH est a melhor expresso das clusulas gerais,

    concebidas por ele como elemento da tcnica legislativa, o que d aos magistrados,

    graas sua generalidade estrutural, possibilidade dilatada no preenchimento de

    eventuais claros, aplicando ao caso concreto soluo que lhe parea mais apropriada. 42

    Sobre algumas delas, previstas no ordenamento italiano (v.g. ordem pblica,

    solidariedade, eqidade, diligncia e lealdade no adimplemento e boa-f no contrato),

    escreveu PERLINGIERI: 43

    (...) ao lado da tcnica de legislar com normas regulamentares (ou seja,

    atravs de previses especficas e circunstanciadas), coloca-se a tcnica das clusulas gerais. Legislar por clusulas gerais significa deixar ao juiz, ao intrprete, uma maior possibilidade de adaptar a norma s situaes de fato.

    40TEPEDINO, G. Cidadania e direitos de personalidade. (In: Revista Jurdica. Rio de Janeiro: Notadez, 2003, ano 51, vol. 309, p. 12). 41NERY JR, Nelson. e NERY, Rosa M. de Andrade. Cdigo civil comentado. Legislao extravagante. So Paulo: RT, 2005, p. 158. 42 ENGISCH, K. Introduo..., op. cit., p. 233. 43PERLINGIERI, Pietro. Perfis de direito civil. Introduo ao direito civil constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 27.

  • 30

    Para CANARIS so meta-normas, ressaltando a importncia do refinamento e

    cultura do aplicador, j que utilizar valoraes prprias para chegar concreo. 44

    No se trata de mais um modismo, como anotado por MARTINS COSTA: 45

    As clusulas gerais, mais do que um caso da teoria do direito pois

    revolucionam a tradicional teoria das fontes -, constituem as janelas, pontes e avenidas dos modernos cdigos civis. Isto porque conformam o meio legislativamente hbil para permitir o ingresso, no ordenamento jurdico codificado, de princpios valorativos, ainda inexpressos legislativamente, de standards, mximas de condutas, arqutipos exemplares de comportamentos, de deveres de conduta no previstos legislativamente (e, por vezes, nos casos concretos, tambm no advindos da autonomia privada), de direitos e deveres configurados segundo os usos do trfego jurdico, de diretivas econmicas, sociais e polticas, de normas, enfim, constantes de universos meta jurdicos, viabilizando a sua sistematizao e permanente ressistematizao no ordenamento positivo.

    Verdadeiramente, no ps-positivismo, na ps-modernidade, no descaso com as

    codificaes, a clusula geral representa, de fato, soluo hermenutica bem razovel. 46

    As caractersticas bsicas das clusulas gerais constituem-se na vagueza,

    fluidez semntica e a quase ausncia de estruturas prprias, dotadas que so de alto

    grau de generalidade.

    De acordo com o uso feito pelo aplicador, classificam-se em trs espcies

    . 47

    44CANARIS, C. W. Pensamento sistemtico..., op. cit., p. 141 e ss. 45 MARTINS COSTA, Judith. O direito privado..., op. cit. 46Sobre o reflexo jurdico dos valores da ps-modernidade:(...) o exame e a prova de como os valores ps-modernos realizam-se e efetivam-se nas ordens jurdicas. Estes valores so a pluralidade, a coexistncia de diferentes culturas, a narrao e a comunicao, assim como o significado existencial de sentimentos e sensaes. (JAYME, Erik. Vises para uma teoria ps-moderna do direito comparado. In: Revista dos Tribunais. So Paulo: RT, vol. 759, p. 24-40). 47a) disposies de tipo restritivo, configurando clusulas gerais que delimitam ou restringem, em certas situaes, o mbito de um conjunto de permisses singulares advindas de regra ou princpio jurdico. o caso, paradigmtico, da restrio operada pela clusula geral da funo social do contrato s regras, contratuais ou legais, que tm a sua fonte no princpio da liberdade contratual; b) de tipo regulativo, configurando clusulas que servem para regular, com base em um princpio, hiptese de fato no casuisticamente previstas na lei, como ocorre na regulao da responsabilidade civil por culpa; c) e, por fim, de tipo extensivo, caso em que servem para ampliar uma determinada regulao jurdica mediante a expressa possibilidade de serem introduzidos, na regulao da causa, princpios e regras prprios de outros textos normativos. o exemplo do art. 7 do Cdigo do Consumidor e o 2 do art. 5 da CF, que reenviam o aplicador da lei a outros conjuntos normativos, tais como acordos e tratados internacionais e diversa legislao ordinria. (MARTINS COSTA, Judith. O direito privado..., op. cit., p. 31)

  • 31

    Restritivas so aquelas que, sem anular o arcabouo jurdico para determinada

    situao, exigem observncia de seu contedo, como por exemplo, as concluses do

    Tribunal paulista sobre a boa-f: 48

    De maneira mais explcita, a 2 Cmara de Direito Privado do Tribunal de

    Justia paulista, julgando idntica hiptese de abusividade em que se consubstancia o excessivo prazo de carncia, textualmente assentou que a Turma julgadora no est alheia aos contornos atuais da funo social do contrato, um tema sedutor e muito bem analisado por Orlando Gomes e Antunes Varela (Direito econmico, Saraiva, 1977). A inalterabilidade das convenes (pacta sunt servanda) continua como fator de segurana, mas a boa-f contra abuso contratual obriga o juiz a buscar o equilbrio pela finalidade do contrato, com a sua adaptao s necessidades reais do contraente mais fraco.

    Ampliativas ou extensivas so as que ampliam a ambincia do sistema jurdico,

    como, por exemplo, a referncia do artigo 7 do Cdigo de Defesa do Consumidor, fonte

    de direito, para o alm do contido na lei no. 8.078/90.49

    Por fim, a clusula geral regulativa, cujo objetivo regular situaes concretas

    com base em princpios reconhecidos no sistema jurdico, por exemplo a clusula geral

    de responsabilidade civil, (Cdigo Civil, art. 927)50, calcada no princpio geral de que todo

    o dano, decorrente de ato ilcito, deve ser reparado.51

    48TJSP, Ap.Civ. 068.744-4/7, 3 C.D.Privado, rel. nio Santarelli Zuliani, j. 26-1-1999. (In: GODOY, Cludio L. B. de. Funo social do contrato. So Paulo: Saraiva, 2004, p. 175). 49 Art. 7, CDC: Os direitos previstos no excluem outros decorrentes de tratados ou convenes internacionais de que o Brasil seja signatrio, da legislao interna ordinria, de regulamentos expedidos pelas autoridades administrativas competentes, bem como dos que derivem dos princpios gerais do direito, analogia, costumes e eqidade. O comentrio de um dos autores do anteprojeto da Lei 8.078/90, d dimenso exata ao seu contedo: O que se procurou fazer, at pela amplitude do tema, foi a sistematizao dos direitos dos consumidores, com a conservao dos institutos do Direito Civil, Comercial e Penal, alm de normas do direito administrativo, espalhadas por inmeros diplomas legais, e, ao mesmo tempo, com a modificao de outros que no entender da comisso elaboradora do anteprojeto e dada a larga experincia prtica de seus membros j no atendiam s exigncias dos consumidores. (FILOMENO, Jos G.B. Cdigo brasileiro de defesa do consumidor. Comentado pelos autores do anteprojeto. So Paulo: Forense Universitria, 2001, p.135). 50Art. 927. Aquele que, por ato ilcito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repar-lo. 51O art. 927 reproduz a clusula geral da responsabilidade aquiliana, contida no art. 159 do CC/1916, entretanto, de modo compartimentado, pois faz referncia a ato ilcito, mas remete aos arts. 186 e 187 para definir. (GODOY, Cludio L. B. de et. al. Cdigo civil comentado. Doutrina e jurisprudncia. Coordenador Cezar Peluso. Barueri: Manole, 2007, p. 765).

  • 32

    2.1.2. Funo

    As clusulas gerais funcionam como fatores de mobilidade do sistema jurdico,

    acompanham os tempos atuais to propensos a mutaes sociais constantes.52

    A lio de GROSSI sobre o descompasso das codificaes com a

    contemporaneidade faz oportuna: 53

    Estatalidade do direito, legalismo rigoroso, viso potestativa e, portanto,

    hierarquia das fontes assemelham-se a uma camisa de fora para um corpo de crescimento transbordante. Direito e jurisperito sempre (e desde sempre) enfrentaram mutaes socioeconmicas, porque natural tendncia a se estabilizarem se chocava com a igualmente natural tendncia a seguir o devir da sociedade para poder convenientemente orden-la; mas, quando, como hoje, as mutaes renunciam lentido tpica dos arranjos sciopolticos estticos e se transformam em uma dinmica que se renova muito rapidamente em tempos breves; quando, como hoje, as mudanas na vida social e econmica so acompanhadas da prodigiosa renovao das tcnicas em contnua e quase cotidiana superao, com solues perturbadoras para aquela mesma vida, comandos e textos so triturados por uma mobilidade que no se encontra no passado remoto e prximo, com escolhas imperiosas por solues flexveis de toda estrutura enrijecedora. O castelo jurdico da modernidade nos aparece, se no como um castelo de areia, pelo menos como aquelas construes de barro que so lentamente erodidas pela chuva que nela batem.

    Nessa ambincia, em que imperam as diferenas e o dinamismo, impossvel

    imaginar que a lei regule todas as situaes, o que torna mais funcional o manejo das

    clusulas gerais.

    Primeiramente, remetem o magistrado a uma pauta de valorao do caso

    concreto, isto , lana-se a outras normas do prprio sistema, ou a critrios meta

    jurdicos (v.g. solidariedade, lealdade).

    De outra banda, flexibilizam e mobilizam o sistema jurdico, ou nas lies

    MARTINS COSTA: do integrao ou mobilidade interna (vrias partes do Cdigo Civil)

    52MARTINS COSTA Judith. As clusulas gerais..., op. cit. 53GROSSI, Paolo. A formao do jurista e a exigncia de um hodierno repensamento epistemolgico. Trad. Ricardo Fonseca. (In Revista da Faculdade de Direito da UFPR, vol. 40, 2004).

  • 33

    ou operam mobilidade intersistemtica com os mais variados conjuntos normativos

    (Constituio e leis especiais): 54

    As clusulas gerais permitem facilitar essa migrao, viabilizando a inflexo

    ponderada, no ordenamento privado, dos princpios da Constituio, sabendo-se que hoje a esfera do Direito Pblico e do Direito Privado no esto seccionadas por intransponvel muro divisrio, antes consistindo, como percebeu Miguel Reale, duas perspectivas ordenadoras da experincia jurdica (...) distintas, mas substancialmente complementares e at mesmo dinamicamente reversveis, por forma a ensejar a dialtica da complementaridade, e no mais a dialtica da polaridade.

    Tambm sobre essa funcionalidade, lapidar o resumo de NERY e NERY: 55

    Dotar o sistema interno do CC de mobilidade, mitigando as regras mais

    rgidas (Canaris, Systendenken, 4, p. 74 et seq., especialmente p. 76 et seq.), alm de atuar de forma a concretizar o que se encontra previsto nos princpios gerais de direito e nos conceitos indeterminados (Judith Martins Costa. As clusulas gerais como fator de mobilidade do sistema jurdico, RT, no. 680, p. 50). Prestam, ainda, para abrandar as desvantagens do estilo excessivamente abstrato e genrico da lei (Larenz-Wolf, Allg. Teil, 3, VI, no. 81 ss., pp.65-66). Outra das funes servir como elemento de correo imposta ao direito estrito.

    O trabalho doutrinrio e jurisprudencial tem muito do mrito na disseminao

    dessa tcnica legislativa, j que nem sempre foram reconhecidas cientificamente nos

    negcios e nos contratos.

    Bom exemplo disso a minorao de certas posies jurdicas no exerccio dos

    direitos subjetivos.

    Tomem-se o venire contra factum proprium, a supressio e a surrectio, que

    veiculam a boa-f e a probidade, institucionalizando as pretenses e direitos em funo

    do fator tempo, conforme lies de GOUVA: 56

    A surrectio consiste no nascimento de um direito, conseqente prtica

    continuada de certos atos. A duradoura distribuio de lucros de sociedade comercial, em desacordo com os estatutos, pode gerar o direito de receb-los do mesmo modo, para o futuro. (...) Na supressio, um direito no exercido durante um determinado lapso

    54 MARTINS COSTA, Judith . O direito privado..., op. cit, 24-48. 55 Cdigo civil..., op. cit., p. 158. 56GOUVA, Eduardo de O. Boa-f objetiva e responsabilidade civil contratual. Principais Inovaes. (In: w.uva.br/icj/artigos_de_professores/boa_f-inov_civil. ac. em 28 de junho de 2006).

  • 34

    de tempo no poder mais s-lo, por contrariar a boa-f. O contrato de prestao duradoura, que tenha passado sem cumprimento durante longo perodo de tempo, por falta de iniciativa do credor, no pode ser exigido, se o devedor teve motivo para pensar extinta a obrigao e programou sua vida nessa perspectiva. Enquanto a prescrio encobre a pretenso pela s fluncia do tempo, a supressio exige, para ser reconhecida, a demonstrao de que o comportamento da parte era inadmissvel segundo o princpio da boa-f.

    A surrectio enquanto fonte de direito subjetivo, decorrente da prtica continuada

    e estvel de certa conjuntura, solidifica e em tudo se assemelha ao direito.57 O contrrio

    ocorre com a supressio, que consiste na limitao ao exerccio de direito subjetivo

    capitulado ante a pretenso da outra parte, em decorrncia do decurso do prazo sem

    exerccio. 58

    Ambas, decorrem da anexa confiana que permeia a clusula geral da boa-f,

    tornando inaceitveis posies jurdicas que contraditem comportamento anteriormente

    assumido (proibio de venire contra factum proprium).59

    Se a clusula geral da boa-f objetiva impe observncia da confiana, lealdade

    e de outros deveres anexos, est logicamente implcita em todos os contratos, o que

    impede os intrpretes e aplicadores de adotarem conduta restrita e automatizada,

    principalmente na aplicao do direito e resoluo de um caso concreto.60

    Essa concretude materializa o direito privado, harmonizando-o s exigncias

    sociais, sendo de grande relevncia no deslinde das contendas contratuais. 61

    57 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-f como modelo (uma aplicao da teoria dos modelos de Miguel Reale). (In: Diretrizes tericas no Cdigo Civil brasileiro. So Paulo: Saraiva, 2002, p. 215). 58MENEZES CORDEIRO, A.M. da Rocha e. Da boa-f no direito civil. Coimbra: Almedina, 2001, p. 797. 59Idem, p. 742 ss. 60O art. 314 do CC veda pagamento fracionado salvo se estipulado. Imagine-se se algum que a despeito disso tenha realizado os pagamentos ao longo do tempo. Poderia o credor invocar o inadimplemento de obrigao? Claro que no, pois se probe o venire contra factum proprium 61BRANCO, Gerson L.C. A proteo das expectativas legtimas derivadas das situaes de confiana:elementos formadores do princpio da confiana. (In: Revista de Direito do Consumidor. So Paulo: RT, n. 12, 1998, p. 187).

  • 35

    O magistrado no desempenho de sua funo, completa a fattispecie62, postura

    necessria na contemporaneidade, especialmente numa sociedade diferenciada e

    hipercomplexa. 63

    Quadra-se, por oportuno, lembrar o quo necessria a concreo do direito e

    das normas, alvo de estudos histricos de Engisch , publicado no ano de 1953, como bem ressalta

    o artigo MENKE: 64

    Na aplicao do direito por meio da concreo, o juiz analisa o caso concreto em toda a sua potencialidade (....) so analisadas todas as circunstncias do caso: o contedo da norma, os precedentes (...). Este ponto pode ser considerado o mais importante para a compreenso da concreo, qual seja a de que por meio dele se procede individualizao do critrio regulador do caso concreto, ocorrendo efetiva criao judicial para a hiptese ftica em questo.

    Exemplo dessa concreo foi experimentado na deciso do Supremo Tribunal

    Federal sobre a cobrana de dvida de jogo, contrada licitamente no pas de origem.

    Alis, contrariando a aparente disposio do artigo 1477 do Cdigo Civil de 1916,

    maximizando a elasticidade do artigo 17 da Lei de Introduo ao Cdigo Civil, o relator

    entendeu possvel sua cobrana. 65

    (...) relativamente obrigao que deu margem sentena, cumpre observar no o disposto no artigo 1.477 do Cdigo Civil, mas a regra do artigo 9 da Lei de Introduo dele constante, que direciona ao atendimento da legislao do pas que contrada a obrigao. Com isso, afasto algo que no se coaduna com a Carta da Repblica, que o enriquecimento sem causa, mormente quando ligado ao abuso da

    62A clusula geral norma de ordem pblica (v.g., CC 2035 pargrafo nico) e deve ser aplicada, ex officio, pelo juiz. Com essa aplicao de ofcio, no se coloca o problema de deciso incongruente com o pedido (extra, ultra ou infra petita), pois o juiz, desde que haja processo em curso, no depende do pedido da parte para aplic-la a uma determinada situao. Cabe ao juiz, no caso concreto, preencher o contedo da clusula geral, dando-lhe conseqncia que a situao concreta reclamar. (NERY, Rosa M. de Andrade. Introduo..., op. cit. p. 213). 63A sociedade mundial convive com a enorme expanso da complexidade social e da contingncia do processo decisrio. Complexidade o mesmo que pluralidade de alternativas. Contingncia significa que se a deciso, hoje, recaiu sobre a hiptese X, nada impediria que, legitimamente, tivesse recado sobre a alternativa Y, ou que, no futuro, recaia sobre a via Z. Vale dizer, quanto mais complexa e contingente a sociedade, mais escassas as chances de decises consensuais (diante da multiplicidade de escolhas) e mais ntidas as artificialidades que informa o poder decisrio (dada sua contingncia). Em razo dessas caractersticas, decidir equivale a fazer escolhas rduas, em curto espao de tempo, sobre matrias no rotinizadas e com conseqncias sociais imprevisveis. (CAMPILONGO, Celso F. O direito na sociedade complexa. So Paulo: Max Limonad, 2000, p. 83). 64 MENKE, Fernando. A interpretao..., op. cit., p. 9-35. 65STF-CR 9970, j.18/03/2002, DJ 01.04.2002. O art. 1477 CC de 1916 em parte foi reproduzido no atual art. 814.

  • 36

    boa-f de terceiro, configurado no que o Requerido se deslocou do Brasil para a Amrica do Norte, vindo a praticar jogos de azar legitimamente admitidos, e at incentivados como mais uma forma de atrair turistas, contraindo dvida e retornando origem onde possui bens, quem sabe j tendo vislumbrado, desde o incio, que no os teriam ameaados pelo credor. O Requerido assumiu livremente uma obrigao, e o fez, repita-se, em pas no qual agasalhada pela ordem jurdica, devendo pacto homologado ser, por isso mesmo, respeitado.

    2.1.3. Vantagens e desvantagens na aplicao das clusulas gerais

    Vantagens so muitas, clusulas gerais abrandam a necessidade de norma

    conceitual casustica e tambm vivificam o sistema jurdico, isto , no h engessamento

    do direito privado.

    Contudo, seu uso indevido traz desvantagens, o que amealhou muitas crticas,

    principalmente quanto a possveis efeitos no direito contratual, exemplarmente anotado

    por ARRUDA ALVIM ao discorrer sobre a funo social do contrato.66

    (...) a funo social vem a ser um valor justificativo da existncia do contrato, tal como a sociedade enxerga no contrato um instituto bom para a sociedade; mas preciso atentar e no vislumbrar nessa funo social, lendo-a de tal forma a que viesse a destruir a prpria razo de ser do contrato, em si mesma.

    A vagueza das clusulas gerais no permite ao intrprete excessos totalitrios

    ou o recrudescimento de idias. Entretanto, o risco considervel como apontam NERY

    e NERY, fiando-se na lio de Wieacker. 67

    Desvantagens da clusula geral. Confere certo grau de incerteza, dada a

    possibilidade de o juiz criar a norma pela determinao dos conceitos, preenchendo seus contedos com valores. Pode servir de pretexto para o recrudescimento de idias, como instrumentos de dominao de regimes totalitrios ou pela economia capitalista extremada. Essas desvantagens foram apontadas por Wieacker, que, a um s tempo, elogiou a jurisprudncia alem, pela forma adulta e responsvel com que enfrentou os perodos ps-primeira guerra mundial, do nacional-socialismo, e ps-segunda guerra mundial, ao aplicar as clusulas gerais do BGB.

    66ARRUDA ALVIM, Jos M. et al. A funo social dos contratos no novo cdigo civil. (In: Simpsio sobre o novo cdigo civil brasileiro. org. Glauber M. Talavera. So Paulo: Mtodo, 2003, p. 100). 67NERY JR, Nelson e NERY, Rosa M. de Andrade. Cdigo civil comentado...., op. cit., p.158.

  • 37

    De qualquer modo, vises sectrias do intrprete, ou m-formao tcnica dos

    aplicadores, no justificam o descrdito das clusulas gerais. 68

    A voz do juiz, no , todavia, arbitrria, mas vinculada. Como j se viu, as

    clusulas gerais promovem o reenvio do intrprete/aplicador do direito a certas pautas de valorao do caso concreto. Estas esto, ou j indicadas em outras disposies normativas integrantes do sistema (caso tradicional de reenvio), ou so objetivamente vigentes no ambiente social em que o juiz opera (caso de direcionamento).

    O valor das clusulas gerais ponto de apoio (starding point) para a formao

    judicial da norma, remetendo o intrprete a valoraes objetivas e socialmente vlidas, o

    que robustece os novos poderes dos magistrados, tirando-os, enfim, das fileiras dos

    soldados dceis, que servem cegamente ao positivismo.

    O juiz ao dar concreo norma tem de ater-se realidade da figura jurdica,

    sua estrutura; aplicando sempre os princpios que informam o sistema, mas deve deixar

    de lado qualquer visgo de conservadorismo.69

    Segurana jurdica uma bandeira freqentemente erguida pelos mais

    conservadores. Argumento falacioso, pois mesmo nos modelos fechados da subsuno

    lgico-racional, no h garantia de segurana jurdica. Alis, a segurana jurdica no

    provm rigorosamente do tradicionalismo interpretativo. Anotem-se: 70

    Em rigor, em qualquer paradigma, qualquer que seja a forma da elaborao legislativa, a segurana jurdica no est, exclusiva ou essencialmente, na lei, na descrio de critrios normativos, porque sempre passveis de interpretaes diversas, nunca s declarativas, a serem dirimidas, nos casos envolvendo relaes cotidianas ou aos quais subjacente uma desigualdade intrnseca, como se acredita e j se disse, forosamente pelo Judicirio. A segurana, nesses casos, o que a garante a necessidade de fundamentao das decises do juiz e a possibilidade de sua reviso.

    Outro argumento que o manejo das clusulas gerais acarreta posio de

    enfrentamento ao Poder Legislativo, o que no corresponde realidade, pois dos

    magistrados exige-se o direito-dever de laborarem para o aperfeioamento das regras 68 MARTINS COSTA, Judith. O direito privado...,op. cit. p. 34. 69AGUIAR JNIOR, Ruy R. de. A boa-f nas relaes de consumo. In: Revista de Direito do Consumidor. So Paulo: RT, 1995, n. 14, p. 25. 70GODOY, Cludio L.B. de. Funo social do contrato..., op. cit., p.187.

  • 38

    normativas, fiis aos misteres constitucionais, que no se traduzem em mecnicos

    aplicadores da lei, como antes sustentado por MONTESQUIEU. 71

    CASTRONOVO esclarece que o magistrado em qualquer sistema (fechado,

    aberto ou semi-aberto) tem o direito-dever de ser partcipe na construo do

    ordenamento jurdico. 72

    Longe das ponderaes de Kelsen, contrrio a qualquer prescrio judicial73, h

    no Brasil ambicioso projeto de trabalho da magistratura, desenhado pelas tintas da

    Constituio Federal, como obtempera THEODORO JUNIOR. 74

    Diante dessa moderna postura normativa, gigantesca ser, sem dvida, a

    tarefa atribuda ao juiz, pois do seu preparo funcional e de sua fidelidade aos valores e princpios consagrados pela Constituio depender o sucesso do ambicioso projeto abraado pela nova codificao, luz da trplice alicerce da socialidade, da tica e da concreo.

    Como intrpretes finais, os magistrados j no se limitam s funes meramente

    declarativas. Na verdade, so agentes de concretizao da ordem constitucional, que os

    remetem s lies de Cappelletti, capturadas por WERNECK VIANNA: 75

    (...) o redimensionamento do papel do Judicirio e a invaso do direito nas

    sociedades contemporneas no soam como fenmenos estranhos tradio democrtica e, sim, como uma efetiva e necessria extenso dessa tradio a setores ainda pouco integrados sua ordem e ao seu iderio.

    71Poderia acontecer que a lei, que ao mesmo tempo clarividente e cega, fosse em certos casos muito rigorosa. Porm, os juzes de uma nao no so, como dissemos, mais que a boca que pronuncia as sentenas da lei, seres inanimados que no podem nem sua fora nem ser rigor. (MONTESQUIEU, Charles L. de S., Baron de la Brde et de. Do esprito das leis. Coleo: Os pensadores. So Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 152). 72CASTRONOVO, C. L avventura delle clausole generali. (In: Cadernos da Escola Superior de Estudos Universitrios e Aperfeioamento. Milo: Giuffr, 1985, v.3, p. 28). 73(...)a cincia jurdica apenas pode descrever o direito, ela no pode, como o direito produzido pela autoridade judiciria, prescrever seja o que for. (KELSEN, H. Teoria pura do direito. So Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 82). 74THEODORO JR, Humberto. O contrato de sua funo social. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 133. 75A concretizao da vontade geral declarada na Constituio seria, nesse sentido, uma obra aberta confiada s futuras geraes, s quais competiria garantir a efetividade do sistema de direitos constitucionalmente assegurados por meio de recursos procedimentais dispostos em seu prprio texto. A poltica se judicializa a fim de viabilizar o encontro da comunidade com os seus propsitos, declarados formalmente na Constituio. (In:WERNECK VIANNA, Luiz et al. A judicializao da poltica e das relaes sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999, p. 32-40).

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    Enfim, a complexidade do mundo exige um Poder Judicirio mais participativo

    na soluo dos conflitos, norteado a cada dia muito mais pelos princpios e pelos direitos

    fundamentais. 76

    Todo esse ativismo do Judicirio foi percebido no ano de 2008, em que o

    Supremo Tribunal Federal viu-se envolvido em julgamentos importantssimos como o

    aborto de fetos anencfalos, demarcao de terras indgenas e outros.

    2.2. Conceitos indeterminados

    Outro mecanismo usual de atualizao do direito so os conceitos

    indeterminados, mas, de fato, sempre relacionados de alguma forma com a hiptese

    posta ao Juzo.

    preciso realmente levar em conta, que, a mutabilidade social, poltica e

    econmica, quase sempre inutilizam os conceitos fixos, tornando-os ineficazes na

    soluo dos casos concretos. Lembrem-se com ENGISCH. 77

    As leis, porm, hoje, em todos os domnios jurdicos, elaboradas por tal forma

    que os juzes e os funcionrios da administrao no descobrem e fundamentam as suas decises to-somente atravs da subsuno a conceitos jurdicos fixos, a conceitos cujo contedo seja explicitado com segurana atravs da interpretao,